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Francesco Alberoni
O Erotismo
CÍRCULO DO LIVRO
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Círculo do Livro S.A. Caixa postal 7413 01051 São Paulo, Brasil
Edição integral Título do original: “L’erotismo” Copyright © 1986 Garzanti Editore s.p.a. Tradução: Élia Edel Capa: detalhe do óleo “Vênus, Cupido, Loucura e Tempo”, de Bronzino — National Gallery, Londres. Licença editorial para o Círculo do Livro por cortesia da Editora Rocco Ltda. Venda permitida apenas aos sócios do Círculo Composto pela Linoart Ltda. Impresso e encadernado pelo Círculo do Livro S.A. 2 4 6 8 10 9 7 53 89 91 92 90 88
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Sumário As diferenças ................................ 5 O sonho da mulher ..................... 17 O sonho do homem ...................... 47 Promiscuidade ............................ 89 Objetos de amor ........................ 118 Contradições ............................. 166 Convergências ........................... 189
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As diferenças
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O erotismo se apresenta sob o signo da diferença. Uma diferença dramática, violenta, exagerada e misteriosa. Essa ideia emerge quando observamos com atenção uma banca de jornais 1. Em um canto, um pouco isolada e meio escondida, encontramos a pornografia hard-core. Ao lado, um pouco mais visíveis, os livros pornográficos da Olympia Press. Ainda mais à vista, as revistas eróticas como Playboy e Penthouse. É o canto dedicado ao erotismo masculino. São publicações que as mulheres não compram, não olham e com relação às quais experimentam um certo sentimento de desconforto, desprezo e até de irritação. Do lado oposto da banca encontramos as publicações compradas e lidas exclusivamente por mulheres 2. A literatura água-com-açúcar, os romances da editora Harlequin, os livros dos Dellys da vida, de Liala ou de Cartland. O imaginário feminino cria outros mitos, alimenta-se de outras imagens e de outros acontecimentos fantásticos. O setor do erotismo feminino se estende também às revistas que trazem o “Correio sentimental”, as histórias amorosas dos artistas, seções de moda, de beleza, de ginástica, de decoração, colunas sociais O interesse das mulheres pelos cremes de beleza, pelos perfumes, sedas, peles, tem um significado mais erótico que social. Já no século passado, um primo de Darwin, Sir Francis Galton, havia demonstrado que as mulheres possuem uma sensibilidade tátil muito mais apurada que a dos homens 3. Havelock Ellis, em seus estudos 4, afirmava que as mulheres possuem um extraordinário erotismo cutâneo. Retomando 1
O exemplo foi tirado da experiência italiana. Nas ruas das cidades da Itália existem bancas onde se vendem jornais, revistas e livros. Não são difundidas, entretanto, as sex shops. 2 Helen Hazel, autora de Endless rapture, Rape romance e Female imagination, Nova York, Charles Scribner’s Sons, 1983. Antes dela, John Money defendera a tese de que as revistas True Confessions e True Love constituem a verdadeira pornografia feminina; ver “Pornography in the home” in Zubin J., e Money J., Contemporary sexual behaviour: critical issues in 1970’s. Baltimore, The John Hopkins University Press, 1973. 3 Francis Galton: “The relative sensibility of men and women at the nape of the neck ’’, Nature, 1894. 4 Havelock Ellis: Sex and the marriage, Londres, Greentvood Press, 1977.
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essas observações, Beatrice Faust defende a tese de que os perfumes, as roupas íntimas delicadas, os corpetes, os saltos altos constituem, em seu conjunto, um complexo de estímulos de altíssima carga auto-erótica 5. E os moralistas, que são homens, sempre se ocuparam com as zonas erógenas enfocadas pela óptica masculina: os seios, as nádegas, o púbis. Mas nunca se ocuparam com a pele, porque jamais lhes passou pela cabeça que fosse exatamente a pele a zona erógena feminina por excelência. As indústrias cosméticas, com suas loções, massagens, perfumes, bálsamos, espumas para banho, voltam-se para esse erotismo, fornecem-lhe os produtos; parece também que as mulheres, eroticamente, são muito mais sensíveis ao ritmo, à música, aos sons. Resumindo, o erotismo masculino é mais visual, mais genital. O feminino, mais tátil, muscular, auditivo, mais ligado aos odores, à nele, ao contato 6. Hoje, com muita frequência essas diferenças vêm sendo minimizadas como consequência da milenar divisão das tarefas entre os sexos e, em particular, do domínio masculino. A diversidade entre os dois sexos — segundo essa tese — expressa as mutilações que cada um deles sofreu por causa desse domínio. O homem, empenhado em seu trabalho, na vida social é ativo, quer saber dos resultados finais e se imagina independente, livre de sentimentos, dotado de uma infinita e insatisfeita potência sexual. A mulher, fechada em casa, imagina-se frágil, fraca, necessitada de apoio emocional por parte do homem. Por isso se ocupa com o corpo, a pele, a beleza. Mas esses seriam resíduos do passado, destinados ao desaparecimento. Quase todos os autores que escrevem sobre o assunto, portanto, propõem receitas sobre como superar esse provisório estado de coisas e como eliminar as diferenças que ainda persistem. Não as estudam, não as levam a sério. Esforçam-se, apenas, em demonstrar seu absurdo. Mas é correto proceder dessa maneira? Certamente as diferenças entre homens e mulheres são o sedimento de milênios de história e de opressão. Faz apenas algumas décadas que o relacionamento entre os dois sexos começou a mudar. O que hoje nos parece natural e perene um dia não 5 6
Beatrice Faust: Woman sex and pornography, Nova York, Penguin Books, 1981. Ibidem. Ver também Susan Brownmiller: Feminity, Nova York, Fawcett Comumbine, 1987.
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existirá mais. Estudando o erotismo não descrevemos um estado, mas um processo. E a primeira vez, na história da humanidade, que mulheres e homens se observam a fundo para se compreenderem. Para isso devem identificar-se, assumir o papel um do outro. Nota-se isso perfeitamente na maneira de vestir, com o aparecimento da moda unissex, as mulheres usando os modelos masculinos (jaquetas, calças) e os homens, os femininos (roupões, cosméticos). A própria possibilidade do erotismo, seu aparecimento no Ocidente, é o resultado dessa descoberta, do jogo da troca de papéis, por meio do qual cada um penetra nas fantasias eróticas do outro, cedendo-lhe as suas. Justamente por isso, porém, é importante deter-se sobre as diferenças, sobre o que cada um dos sexos possui de específico, de peculiar. Entretanto, nada desaparece sem deixar vestígios. A vida sexual, amorosa e erótica das mulheres e dos homens dos próximos anos certamente será diversa, mas não totalmente diferente, comparada com a de hoje. O vir-a-ser é sempre uma síntese entre o antigo e o novo. Os arquétipos depositados na nossa cultura 7, as figuras que determinam a aprendizagem, serão reelaborados, não destruídos. Não é possível livrar-se das diferenças entre homem e mulher como se fossem apenas ilusões. O ponto de partida não pode ser um exorcismo. No momento atual, mulheres e homens buscam o que os iguala, superando as diferenças. Possuem, entretanto, sensibilidades, desejos e fantasias diferentes. Ambos, com frequência, imaginam o outro como na realidade ele não é, e esperam dele coisas que não pode dar. O erotismo se apresenta, então, sob o signo do equívoco e da contradição. Apesar disso, os encontros acontecem, existe a atração recíproca, existe o enamoramento. Como é possível? Qual é o caminho que conduz das diferenças ao entendimento, à compreensão, ao encanto do amor? É disso que trata este livro.
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Na psicologia junguiana, a parte feminina do homem é chamada anima e a parte masculina da mulher, animus. Ver Carl Gustav Jung: O eu e o inconsciente (L’io e l’inconscio), in Opere, vol. VII, Turim, Boringhieri, 1983.
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2 1. A pornografia é uma figura do imaginário masculino. É a satisfação alucinatória de desejos, necessidades, aspirações, medos próprios deste século. Exigências e medos históricos, antigos, mas que persistem até hoje e que ainda são ativos. As mulheres não se interessam particularmente em olhar a fotografia de um homem nu. De um modo geral, isso não as excita sexualmente. A um entrevistador de televisão que lhe perguntou qual a imagem de homem que considerava mais excitante, Barbara Cartland respondeu: “Completamente vestido e, de preferência, de uniforme”. Os homens, ao contrário, ficam excitados com a nudez da mulher e fantasiam um relacionamento sexual com ela. Há alguns anos, antes da legitimação da pornografia, havia fotos e desenhos que os homens passavam de mão em mão, secretamente. Os barbeiros tinham o hábito de presentear os clientes com pequenos calendários perfumados, com figuras de mulheres em roupas sumárias. Era pouquíssimo, quase nada comparado ao furacão de estímulos de hoje, mas suficiente para provocar excitação. Também as estátuas, ou a reprodução das estátuas nuas da Antiguidade, sempre serviram aos rapazes como material pornográfico, para se masturbarem. À excitação também pode ser provocada pela literatura e, mais recentemente, pelo cinema. O que caracteriza o conto erótico masculino foi muito bem descrito por Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut 8. A pornografia, observam eles, é um suceder contínuo de atos sexuais, sem que necessariamente haja uma história. Os protagonistas masculinos não precisam fazer nada. Caminham por uma rua, e uma mulher gostosa os leva para a cama. No escritório, uma secretária se despe e, sem uma única palavra, inicia uma felação. A pornografia ostenta um universo fabuloso “onde não se precisa mais seduzir para obter, onde a concupiscência não se arrisca jamais nem a ser reprimida nem a ser rechaçada, onde o momento do desejo se confunde com o da satisfação, ignorando com soberba a figura do Opositor... O 8
Pascal Bruckner, Alain Finkielkraut: II nuovo disordine amoroso, trad., ital., Milão, Garzanti, 1979.
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relacionamento sexual não se situa ao término de uma maturação, de uma espera, de um trabalho. É um presente, não um salário. Os heróis pornográficos estão milagrosamente isentos do dever de conquistar e de perder-se em prelúdios amorosos: basta um olhar e as mulheres ficam nuas e disponíveis; nada de apresentações, trocas de cumprimentos, nenhum preâmbulo... 9” As mulheres despertam o desejo antes mesmo que o homem tenha pensado em se aproximar delas. Na pornografia (masculina), as mulheres são imaginadas como seres fabulosamente sensuais, arrastadas por um impulso irresistível de atirar-se sobre o pênis, isto é, do mesmo modo que os homens fantasiam comportar-se com elas. A pornografia imagina as mulheres dotadas dos mesmos impulsos masculinos, atribuindo-lhes os mesmos desejos e as mesmas fantasias. Imagina, além disso, que os dois desejos se encontram sempre. Duas pessoas quaisquer, a qualquer momento, desejam a mesma coisa, uma da outra. Não existe procura nem oferta. Não há troca. Todos dão tudo e recebem tudo. O desejo é sempre ardente e sempre satisfeito. É o equivalente erótico do Paese del Bengodi, a fantasia em que o faminto via correr rios de leite, vinho e mel. Árvores que, no lugar dos frutos, exibiam frangos assados, salames e salsichas. Ele sonhava a satisfação instantânea de sua fome sem necessidade de canseiras, de trabalho, sem o pesadelo da carestia. E, apesar da abundância ilimitada, imaginava uma fome sempre viva, devoradora, a fome da miséria. Nesse universo imaginário não há lugar para nenhum outro sentimento, para nenhuma outra relação. A imaginação erótica masculina pura livra-se de tudo o que lhe pode servir de obstáculo. Percebe-se isso claramente, mesmo nos grandes escritores. Tomemos Henry Miller, como exemplo 10. Também para Miller o erotismo é sempre um relacionamento sexual repentino, fácil, desenfreado, com uma mulher jamais vista antes, ou conhecida há alguns instantes. É perfeito, a primeira é a última vez. Da mulher nada mais interessa além do sexo. Se Miller acrescenta alguma particularidade — intelectual, voraz, tímida, reservada —, é sempre referente ao sexo. Não há nem 9
Ibidem, pp. 57-38. Ver especialmente Opus pistorum, trad. ital., Milão, Feltrinelli, 1984.
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ao menos a descrição do corpo. Não diz se é morena, loura ou ruiva. A única coisa que diz é a raça: em geral, judia ou negra, e depois seu comportamento no ato sexual: ávido, desenfreado. Também para Miller todas as mulheres “topam”. Todas, absolutamente todas, e de um modo simplíssimo e repentino. Nunca um obstáculo, jamais uma recusa. E topam, não porque estejam fascinadas por uma qualidade qualquer do homem, mas porque estão tremendamente desejosas de sexo. Ele as toca, e elas soltam todos os freios. É um gesto mágico que não admite exceções, uma potência irresistível. Todas ficam excitadas, cheias de desejo, molhadas, insaciáveis. É o encontro do macho com a cadela no cio. A razão, a civilidade, a educação, são frágeis barreiras que um simples toque faz desaparecer num instante. Há uma ligação entre essas fantasias e a prostituição. A prostituta é, com seu corpo real, a encarnação da mulher famélica de sexo, representada pela pornografia. A prostituta “agarra” o cliente. Não espera que ele a procure, a convide, a seduza. É ela que toma a iniciativa. Dá-lhe uma piscadela, um sorriso convidativo, faz-lhe um sinal de entendimento com a cabeça. Passando a seu lado, chama-o de gostoso, de bonitão, convida-o a acompanhá-la. Faz o que, na realidade, nenhuma mulher faz. A mulher espera a iniciativa masculina. Mesmo que sua intenção seja a de seduzir, não convida abertamente o homem. Espera que o outro decifre o gesto que é um convite, que compreenda. A prostituta, ao contrário, seduz o homem como ele gostaria de poder seduzir a mulher. Pela simples exibição do corpo, convidando-o, prometendo prazeres extraordinários. A prostituta age como a protagonista dos romances pornográficos masculinos. Comporta-se, na verdade, como se comportam as atrizes dos filmes hard-core. Realiza a fantasia masculina de ter seduzido uma mulher alucinada pelo seu pênis. Ele não terá de fazer nada. Permanecerá completamente passivo. Será suficiente que expresse seus desejos, para vê-los satisfeitos. E tudo isso acontecerá, não na fantasia, mas na vida real. Também o relacionamento com a prostituta, no entanto, continua a ser uma viagem pelo fictício. Porque a prostituta não sente o interesse erótico que demonstra. Finge. Finge para
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ganhar dinheiro. É uma atriz e quer ser paga pela sua representação. Corresponde às fantasias sexuais masculinas, aceita seus ritmos, seus desejos eróticos, mesmo que não os aprecie, já que nada têm a ver com estes. Mas isso por um período limitado e por um preço previamente combinado. Pornografia e prostituição nos mostram que há uma região do erotismo masculino totalmente estranha à mulher. Que não a interessa. Que ela aceita apenas por dinheiro, isto é, como atividade explicitamente não-erótica, profissional.
2. Passemos agora ao outro lado da banca, onde encontramos os romances água-com-açúcar. Estes são uma manifestação típica do erotismo feminino, como a pornografia é uma manifestação típica do erotismo masculino. O gênero água-com-açúcar, ou cor-de-rosa, que corresponde ao inglês romance, desenvolveu-se independentemente em todos os países ocidentais. Pensemos no incrível sucesso de venda da italiana Liala, dos franceses Dellys e da anglo-americana Barbara Cartland. Somente esta última já vendeu mais de quatrocentos milhões de exemplares. Por outro lado, a editora Harlequin vendeu, somente em 1980, 188 milhões de exemplares nos Estados Unidos, 23 milhões na Franca e cerca de vinte milhões na Itália. Essa literatura é dirigida exclusivamente às mulheres e não desperta o menor interesse no público masculino. A estrutura do romance rosa foi amplamente estudada 11, e todas as pesquisas revelam que ela tem poucas variantes. A história principal pode ser assim esquematizada: há uma heroína que se parece com uma mulher comum. Nunca é belíssima. Ou então, se é bonita, tem algum pequeno defeito, a boca grande demais, os olhos distanciados, o rosto ligeiramente ossudo. É inteligente, trabalhadora, honesta. É virgem ou não teve outras experiências amorosas. Se as teve, foram infelizes, águas passadas. Nos últimos 11
Em italiano temos a análise de Maria Pia Pozzato: II romanzo rosa, "Espresso Strumenti”, Milão, Editori Europei Associati, 1982. Ver também Susan Koppelman Cornillon: Image of women in fiction, Bowling Green, Ohio, Bowling Green Popular Press, 1976; Nina Baym: Women’s fiction, Ithaca, Cornell University Press, 1978; Marilyn French: The women’s room, Nova York, Summit Books, 1975; Jeanne Cressanges: Tutto quello che le donne non hanno detto, trad. ital., Milão, Rizzoli, 1983, pp. 71-95.
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romances, é divorciada. Em geral, não é rica. Está inserida em seu ambiente, não sofre de solidão. Se tem possibilidades, ela mesma as desconhece. Não se valoriza. Mas o livro demonstrará, com os fatos, que é capaz de suscitar um grande, apaixonado amor. Essa mulher, em determinado ponto da história, encontra um homem extraordinário. Que seja ele o predestinado, o eleito, compreende-se imediatamente, quanto a isso não há a menor dúvida. É alto, forte, seguro de si. Na maior parte das vezes possui olhos de aço, cinzentos, frios, distantes. A mulher sente-se perturbada porque ele lhe parece, a um só tempo, fascinante e inatingível. É bonito demais, rico demais, admirado demais, adorado demais pelas outras mulheres, para que ela possa esperar ser notada. Mas, contrariando todas as expectativas, realiza-se o milagre. Essa criatura distante, selvagem, pérfida, indomável, superior, olha para ela, interessa-se por ela. Já estamos no centro do acontecimento erótico. Acontece o improvável, o inaudito. A mulher é percorrida por um frêmito de excitação, fica transtornada. Gostaria de poder acreditar que ele se interessa verdadeiramente por ela, mas teme entregar-se a esse pensamento. Aquele homem é um sedutor, um dom-juan dono de um poder perigoso. Por esse motivo desconfia, resiste. A essa altura aparece, em geral, uma rival. Uma mulher sem preconceitos, de hábitos livres, mestra na arte da sedução. A história, aqui, pode ter numerosas variantes. Pode acontecer, por exemplo, que a rival parta com o homem e depois lhe envie, de Acapulco, a participação de casamento. A presença da rival, seu sucesso e a incrível distância do herói fazem com que a heroína se convença de tê-lo perdido; desespera-se, perde o controle, foge. O homem, porém, antes de ir embora, insiste, torna a convidá-la. É terno, atencioso, interessado. Agora a heroína já está apaixonada por esse homem forte e gentil, por esse aventureiro delicado, por esse dom-juan que se interessa unicamente por ela. Não sabe, porém, se ele a ama de verdade. Muito pelo contrário, está convencida de que não a ama, que se trata apenas de simpatia, amizade, ou então de uma aventura. Por isso retrai-se novamente, protege-se, faz uma cena, vai
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embora. Isso cria problemas para o homem, que — como se compreenderá somente no final — está verdadeira e profundamente apaixonado. Há, portanto, um duplo mal-entendido. Ambos estão apaixonados, mas ambos pensam não ter o amor retribuído. A história se desenvolve como num romance policial. O problema da mulher é saber se, apesar das aparências, o homem a ama ou não. Eu disse “apesar das aparências”, porque estas são incrivelmente contrárias. Ele se comporta cruelmente com ela. Protege-a, mas a seguir insulta-a e manda-a embora. Ela vem a saber que ele é casado com uma mulher lindíssima e inescrupulosa. Ou então ele a abandona em plena floresta. Pode até acontecer de ela encontrá-lo na cama com a rival. Ou que descubra os vestidos da outra em seu armário. No código do romance policial, tudo depõe contra ele. No final, a solução: não era culpado. Jamais se interessara pela rival e nunca fora casado. Abandonara-a na selva, mas somente para poder salvá-la. Sim, de fato estava na cama com uma mulher, mas porque fora ferido e a mulher simplesmente estava inclinada sobre ele. Quanto aos vestidos no armário, estavam ali havia anos. Tudo o que na vida real não passaria de mentira descarada mostra-se verdadeiro. O homem, na realidade, apesar das aparências em contrário, jamais cometeu nada de culpável. Tudo foi apenas obstáculo externo, acaso, ou então equívoco, mal-entendido, ilusão. Esta é uma história típica, talvez a mais frequente. Helen Hazel demonstrou, porém, que também os romances em que a heroína é estuprada, vendida como escrava, obrigada à prostituição, entram no esquema geral da conquista do verdadeiro amor 12. No romance rosa, as peripécias são representadas pelos mal-entendidos e pelas dúvidas. Nos outros, são adversidades reais, físicas, que a heroína deve superar. Esse erotismo não tem quase nada a ver com o sexo. Podem existir relacionamentos sexuais. Sobretudo na literatura mais recente, a heroína faz amor de maneira alucinada. Mas as emoções profundas que são o que há de especificamente 12
Helen Hazel: Endless rapture.
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erótico nessas histórias não derivam do relacionamento sexual, e sim da languidez, do arrepio causado pela emoção. Da inquietação do ciúme. Da paixão que vem sem ser chamada e que aperta o coração, que faz sofrer, esperar. O erotismo aflora quando essa mulher comum, que nada tem a oferecer, sente o olhar e o interesse do herói pousados nela ou quando acontece o inacreditável, como no mito de Cinderela ou de todos os fracos a quem tudo é dado, por graça. O erotismo é também ansiedade, medo de não ser amada. É necessidade de ser procurada, procurada e mais procurada. É recusa, é dizer “não” com a ansiosa esperança de que o amado volte apesar daquele “não”. O erotismo atinge seu ponto alto nesta tensão, nesta indagação contínua, sempre desiludida e sempre renascente: “Ele gosta de mim? me deseja? me ama?” Sujeitam-se também a essa regra inexorável obras que estão muito longe da literatura rosa, como, por exemplo, os livros de Jackie Collins ou de Erica Jong.
3. A pornografia masculina e os romances cor-de-rosa têm algo em comum. No primeiro caso há uma mulher belíssima, que, na vida real, não lhe daria a menor confiança, recusaria seus assédios, ou então gostaria de ser convidada para um cruzeiro ao Taiti, hospedar-se em hotéis de luxo e frequentar restaurantes refinados. Depois lhe pediria que se casasse com ela. Ao contrário, na pornografia, ela é cheia de desejo, pronta, disponível. Do outro lado há um homem bonito, famoso, milionário, que, na vida real, não lhe daria a menor confiança, mas que, ao contrário, manda-lhe cem cartas de amor, buquês de rosas, comete loucuras e pede que se case com ele. Recusado, insiste; rechaçado, espera. Renuncia aos seus hábitos, torna-se delicado, doméstico, marido. Duas coisas inacreditáveis e impossíveis, mas, para os dois sexos, igualmente excitantes e igualmente incompreensíveis ao outro. Há uma outra correspondência sutil entre os dois gêneros. No erotismo rosa, a heroína que se apaixona não possui vínculos, liames. Ou não é casada, ou é divorciada ou, de modo definitivo, é casada com o homem que ama. Não tem dilemas, portanto. Não encontra obstáculos interiores à realização de seu amor. Os obstáculos são sempre e exclusivamente
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externos. Ele não compreende, a amiga-inimiga o rouba. Também ele ou é livre, ou é divorciado, ou não tem ninguém que lhe importe verdadeiramente. Se retribui o amor, não tem dúvidas, não tem arrependimentos. A única questão, para ela, é a seguinte: “Ele me ama e me amará?” E para ele: “Eu a amo e a amarei?” Não se admite nenhum dilema. Não se admite o compromisso. Ou é tudo sim, ou tudo não. Ambos os gêneros representam a satisfação imediata de um desejo, eliminando a realidade embaraçosa. A pornografia masculina elimina a resistência feminina, a necessidade de galanteios, a exigência de amor. Os romances cor-de-rosa, por seu lado, eliminam os impedimentos, as dúvidas, as responsabilidades. A heroína jamais rouba o marido de uma mulher fiel, jamais abandona um noivo ou um marido que a ama, não tem problemas com os filhos, jamais precisa enfrentar a delicada situação de amante. Os dois são sempre livres, desiludidos de um amor anterior, em busca de uma nova vida, não fazem mal a ninguém. As dificuldades verdadeiras não existem, são eliminadas.
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O sonho da mulher
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3 1. Nos homens, após o ato sexual, há em geral um decréscimo desinteresse pela mulher É um fenômeno que tem muitas gradações, muitas nuances. Está apenas esboçado no homem apaixonado que abraça com força a amada, como se não quisesse mais separar-se dela. Atinge seu ponto máximo no relacionamento com a prostituta porque, neste caso, o desejo desaparece imediatamente, e o homem gostaria de já se ver vestido, fora do quarto, fora do hotel, bem longe. Existem ainda as situações intermediárias, em que o homem perde o interesse momentaneamente. Depois, aos poucos, reacende-se nele o desejo sexual e com este, a ternura, a vontade de ficar ao lado da mulher, de acariciá-la, olhá-la, fazer novamente amor. Num encontro amoroso o homem prefere falar, ler, brincar antes do ato sexual, e concluir o encontro com o êxtase amoroso. Depois do que, parte contente, realizado, enriquecido. Para ele, esse é o momento mais oportuno, mais bonito por causa da separação. É como largar um livro policial quando se revela o nome do criminoso. O que vem depois pode até ser útil, interessante, mas não é mais essencial. Ou como quando, depois de um longo esforço, resolve-se um difícil problema. A demonstração mais acurada, o teor da relação podem vir mais tarde. O grito de Arquimedes, “Heureka”, exprime esse estado de realização feliz, que é também vontade de mexer-se, de sair, de correr. A mulher interpreta esse comportamento como rejeição, desinteresse. Sente-se tratada como um alimento delicioso que provoca grande desejo antes de ser saboreado, mas que depois, quando já se está saciado, torna-se enjoativo. Só que ela não é um alimento, é uma pessoa. O homem, antes, a cortejava, mimava, desejava. Não queria apenas seu corpo, suas pernas, seus seios, seu sexo. Queria sentir seu desejo, admirava sua inteligência. Queria conversar com ela, conhecer sua história, participar de sua vida, fazer projetos. Depois do orgasmo — ou de
um
certo
desaparecesse rejeitado.
número como
de
orgasmos
pessoa,
restando
—,
é
como
apenas
um
se
ela
corpo
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Essa experiência de ser tratada como um corpo (rejeitado) é pré-datada. A mulher é levada a pensar que na verdade o homem queria apenas descarregar sua tensão, que seu interesse por ela como um ser total não existia, nem ao menos antes. Era apenas para satisfazer seu desejo sexual que ele falava, que ouvia. O encontro intelectual e emotivo, a intimidade, eram apenas um meio para atingir um fim. Porque, se ele a tivesse verdadeiramente desejado como pessoa, teria continuado a desejá-la. Ficaria junto dela, ternamente abraçado. Satisfeito o impulso sexual, permaneceria feliz a seu lado, acariciando-a, aspirando seu perfume. Não se teria levantado. Pelo menos, antes que ela estivesse cansada. O desejo da mulher de permanecer ao lado do homem depois do orgasmo (ou orgasmos) é muito mais forte quando ela está apaixonada. Porém, existe sempre, desde que aquele homem lhe agrade. Isso porque o orgasmo da mulher é mais prolongado, mas, acima de tudo, porque ela sente a necessidade de ser desejada, de agradar de modo contínuo, duradouro. A separação do homem lacera, interrompe essa continuidade. Uma vez que o prazer na mulher se manifesta como necessidade de continuidade, a interrupção não pode significar outra coisa a não ser desinteresse, rejeição. Estamos diante de uma estrutura temporal, diversa nos dois sexos. Há uma preferência profunda do feminino pelo contínuo e uma preferência profunda do masculino pelo descontínuo 13. Quando as mulheres dizem que apreciam a ternura, os carinhos, e que por isso mesmo os preferem ao ato sexual, não se referem apenas ao aspecto tátil, sensível da experiência. Indicam a necessidade de atenção amorosa prolongada, de interesse contínuo com relação à sua pessoa. A prevalência do tátil é somente uma manifestação dessa mais profunda prevalência do contínuo.
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A explicação mais racional do fenômeno é a apresentada por Lillian B. Rubin: Intimate strangers, Nova York, Harper Colophon, 1983. Rubin lembra que a mulher, de modo diferente do homem, não se deve diferenciar do seu objetivo primário de amor e de identificação, que ê a mãe. Essa experiência leva -a a experimentar um senso de continuidade com as pessoas que ama. Ela tende à fusão e, às vezes, à confusão com o amado. De modo menos claro veja também, sobre este assunto, E. Newmann: La psicologia dei femminile, trad. ital., Roma, Astrolabio, 1975, e Silvia di Lorenzo: La donna e la sua ombra, Milão, Emme Edizioni, 1980.
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A contraposição contínuo-descontínuo é ponto fundamental da diferença feminino-masculino. No decorrer deste livro tornaremos a encontrá-la várias vezes em todos os relatos, inclusive nos modos de pensar ou de descrever a experiência subjetiva. Para a mulher, os vários estados emotivos são menos diferenciados que no homem. Para a mulher, a ternura e a doçura combinam com o erotismo, inserem-se nele harmoniosamente. Para o homem, isso acontece com muito menor frequência. A mulher sente como erótica tanto a emoção provocada pelo contato do corpo do filho como aquela provocada pelo contato com o corpo do amante. As vezes, gostaria de tê-los a seu lado juntos, juntos na mesma cama. Para o homem são experiências completamente diversas. Também a diferença entre amizade e amor é mais tênue na mulher. Dorothy Tennov observou que as mulheres confundem mais facilmente a enfatuação erótica e a paixão 14. O homem, ao contrário, tende a acentuar as diferenças, a separar as diversas emoções 15. Daí decorre uma curiosa consequência. Como o homem experimenta emoções diversas, não comparáveis, não tem necessidade de mudar rapidamente a sua orientação emocional. Não passa do amor à rejeição, do não ao sim, e vice-versa. A mulher, ao contrário, exatamente porque se move entre emoções semelhantes, quando precisa estabelecer uma diferença, o faz em termos de aceitação ou de recusa, de sim ou de não. Tende a fazer um julgamento de valor, não de qualidade. Por isso, às vezes, ela parece mais descontínua que o homem. Porque antes amava, sentia ternura, erotismo, amizade, admiração, e depois, quando acontece a rejeição, não 14
Dorothy Tennov: Love and limerence, Nova York, Stein and Day, 1979. A confusão feminina, em contraste com a ordem, o logos masculino, é um mito antiqüíssimo. Na mitologia babilônia, “Ti Amat é o ventre primordial eternamente jovem e fecundo... é a confusão do pântano onde vapores infectos, águas doces e águas salgadas se misturam e se confundem. Não possui nenhuma estabilidade, no próprio seio gera toda sorte de criaturas monstruosas, anormais, inferiores, recalcitrantes. Daí a necessidade de uma severa atuação para pôr as coisas em ordem, da parte das forças masculinas”. Ti Amat será então aprisionada por Marduk, deus dos ventos e da chuva. Gabriella Buzzatti: L’immagine intollerabile, i labirinti dell’Eros, Atas da Convenção de Florença, 27-28 de outubro, 1984, Milão, Libreria delle donne. A psicologia junguiana identificou melhor que a freudiana a tensão intrínseca do erotismo feminino. Neste, uma imagem é Afrodite, que tende à fusão, à participação mística com o homem. A outra é Ártemis, a virgem, que o rejeita e vive para si mesma. Ver Silvia di Lorenzo: La donna e la sua ombra. 15
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sente mais nada. Todas as emoções, enquanto indiferenciadas, desabam juntas. A descontinuidade se apresenta como tudo ou nada.
2. Essa natureza contínua, no tempo e no espaço, aparece claramente na excitação sexual feminina e na natureza diversa de seu orgasmo. Porque se é verdade que a mulher pode ter orgasmos semelhantes aos masculinos 16, sua experiência global é totalmente diferente. Não está localizada num ponto, não persegue uma meta e não se exaure num ato. A continuidade do erotismo feminino cria, no homem, uma forte atração e, ao mesmo tempo, inquietude. De fato, o homem entende a continuidade como intensidade, o desejo de proximidade como desejo de orgasmo, o erotismo difuso, cutâneo, muscular, como paixão transbordante, impossível de ser contida. Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut deram voz a essa emoção masculina escrevendo: “Os espasmos da amada não possuem a certeza rudimentar da ejaculação viril; são o rosto contraído que, sob o efeito de uma insustentável devastação, não me vê mais, o rosto que não posso conter num olhar como durante o sono, a pele incandescente que adere à minha ou de mim se afasta, o vertiginoso balé de pernas, braços, beijos, que me aperta, me repele, se exaspera ao meu contato, aumenta se afastada de mim, me fala de mil coisas que não entendo e me repete somente isto: ‘Não estou onde você está, perco o senso onde você não se altera, de mim você não terá nem visão clara nem percepção exata, porque não sou nada nos termos em que você pode compreender...’ 17” E continuam: “Pelo que sabemos, uma única música se aproxima ou equivale ao gozo feminino, a música oriental, geralmente mal tolerada no Ocidente por causa de sua estrutura repetitiva, obsessiva... 18” E mais adiante: “Orgasmos, portanto, no plural, que jamais se repetem da mesma maneira, como um conto que justapõe num mosaico barroco muitos começos, muitos fins, muitas intrigas e linearidades, princípio de desorganização 16
William H. Masters e Virgínia E. Johnson: L’atto sessuale nell’uomo e nella donna, trad. ital., Milão, Feltrinelli, 1967. 17 Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut, já citado. 18 Ibidem.
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permanente no que se refere a uma carne que espera sempre apenas espasmos idênticos... Ela jamais goza no sentido em que sua excitação terminou, goza e é um gozo que circula sempre sem extinguir-se, reabsorver- se... A sua única exigência é: tributem honra a todas as partes, à boca e ao sexo, ao útero e à vulva, à orelha e ao ânus, ao joelho e à delicada pele das pálpebras... Estejam em todos os lugares, contanto que esse gozo... não esteja mais em lugar nenhum” 19. Bruckner e Finkielkraut, após terem intuído a natureza contínua da excitação sexual feminina, sentem quase vergonha da simplicidade masculina. Como se fosse uma modalidade empobrecida, grosseira da outra. Em vez disso, a organização sexual masculina tem estrutura diversa. Exatamente porque ela tem crescendos e finais, produz a escansão da feminina. Excitaa e, ao mesmo tempo, a frustra. Mas a frustração, por sua vez, produz desejo. Sim, é verdade, a mulher perde o senso onde o homem não o encontra, reage onde nem ele nem ela esperam uma resposta. Mas é também verdade que a separação masculina, que se afasta para olhar e ver, obriga a mulher a focalizar o homem como objeto, e a colocar-se na mesma situação. O erotismo não é anulação total, perda de identidade, fragmentação sem fim. É um processo dialético entre contínuo e descontínuo.
3. Simone de Beauvoir escreveu páginas cáusticas sobre a necessidade da mulher de ter a seu lado, fisicamente, o homem amado. “A essência”, escreve ela, “é sempre uma tortura... mesmo sentado a seu lado, enquanto lê ou escreve, ele a abandona, a trai. Ela odeia seu sono.” 20 Simone de Beauvoir e as feministas explicam esse comportamento com o fato de que a mulher é obrigada, pela sua condição social, à passividade. Somente o homem é ativo. Ela procura, então, através do amor, englobar a atividade do homem para poder estar em seu mundo. Procura a fusão com ele para sair de sua maneira de ser incompleta. Quando ele parte, quando a deixa, sente-se perdida, porque sem ele não é nada. Mas esse estado de coisas — segundo Beauvoir — está destinado a desaparecer, quando 19 20
Ibidem. Simone de Beauvoir: O segundo sexo, já publicado no Brasil.
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também a mulher tiver conquistado sua autonomia e sua atividade. Então, mesmo que o homem esteja longe, não se sentirá mais vazia. Naturalmente, a condição histórica da mulher tem um peso relevante na sua reação excessiva ao desinteresse do homem. Uma mulher com atividade própria, vontade própria, com profissão definida, não se sente arrasada se seu amado dorme ou viaja. Mas a necessidade de aproximação, de intimidade, de continuidade prossegue. Depois de ter feito amor, a mulher olha com ternura o seu amado adormecido. Sente-o terno, indefeso. Os traços de seu rosto já não estão mais tensos, tornaram- se serenos como os de um adolescente ou de um menino. Tudo isso é muito bonito para a mulher que ama. O sono lhe dá um sentimento de aproximação, de intimidade, como se o tivesse nos braços ou dentro de si. O sono é uma consequência comovente de seu amor. A mulher somente sente o sono como uma rejeição quando não ama o seu homem, quando não o suporta. La Beauvoir, neste ponto, não tem razão em sua descrição. Por outro lado, também a mulher ativa, também a mulher que tem sucesso, que não teme o mundo, experimenta um sentimento de desapontamento quando percebe seu homem distraído, longe. Não é o sono que separa, é o desinteresse, o pensamento distante, o ir embora, mesmo que seja apenas com a mente. Porque também ela deseja, também ela necessita de sua presença amorosa contínua, da continuidade de seu interesse. Existe uma estreita ligação entre o erotismo tátil, muscular, entre a capacidade de sentir os odores, os perfumes, os sons e o prazer de ser desejada e amada de modo contínuo. A mulher quer sentir a presença física de seu homem, sentir as mãos dele sobre sua pele, a força doce e acolhedora de seu abraço, seu cheiro, a mistura dos cheiros que se torna perfume. Quer ouvir sua voz profunda a chamá-la. Quer sentir a aspereza de seus pêlos, o peso de seu corpo, a força delicada de sua mão, o leve contato de entendimento entre seus dedos, o furtivo tocar-se que renova a declaração de amor de maneira infinitamente melhor que quaisquer palavras. Quer perceber sobre si seu olhar apaixonado e cheio de admiração quando usa um vestido novo e, ao mesmo tempo, sentir o roçar do tecido
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leve no bico dos seios. Sentir-se desejada quando caminha, e que aquele desejo é provocado pelo meneio sensual de seus quadris. Quer sentir o cheiro das roupas dele, de seu corpo viril, a onda excitante do perfume de mulher que se mistura ao dele, que é também mistura de emoções. Tudo isso acontece sob o registro da continuidade. Continuidade de ternura, carícias, palavras, penetração, sussurro. Imenso mar em que as sensações se sucedem como ondas, transformando-se umas nas outras. Continuidade nas metamorfoses. Continuidade dos corpos, das peles, dos músculos, dos odores, dos passos, das sombras ao crepúsculo, dos rostos. Continuidade do desejo, da atenção, da excitação, da ternura, da paixão, do cuidado. E, a seguir, desejo de estar junto, de conviver, de participar das mesmas experiências, de ver as mesmas coisas, a mesma lua, as mesmas nuvens, o mesmo mar, de respirar o mesmo ar, de ter a mesma vida.
4 1. O erotismo feminino tem uma segunda raiz, de que se fala menos, ou de má vontade. Uma raiz que não é pessoal, individual, mas coletiva. Nas publicações lidas principalmente pelas mulheres, ao lado dos romances cor-de-rosa e das seções de moda e beleza, estão as histórias dos artistas. Os homens não se interessam pela vida privada dos astros, não participam de seus casos de amor. A eles interessa o ator, o cantor, o seu desempenho como tal, mas não o que ele é na vida particular, terminado o espetáculo, em casa com a mulher ou com suas amantes. À mulher, ao contrário, é exatamente isso o que interessa. O fanatismo ou o culto pelos artistas é, portanto, um fenômeno feminino. Ele é o produto, por um lado, do espetáculo, por outro, dos jornais que falam da vida particular do ator ou do cantor. O astro é o objeto escolhido da fofoca, da intriga coletiva 21. As mulheres chegam a identificar-se com as personagens do espetáculo como se fossem seus conhecidos, seus vizinhos. 21
Francesco Alberoni: L’élite senza potere, Milão, Bompiani, 1973.
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Experimentam por elas sentimentos de amor, desejo, antipatias reais. Quando as adolescentes começam a interessar-se pela música e nelas explode o fanatismo por um cantor, trata-se de um verdadeiro amor, de uma verdadeira paixão. O fenômeno já aconteceu no passado, com o melodrama, o teatro. Tornou-se fenômeno de massa com Rodolfo Valentino e repetiu-se na nossa época por ocasião do sucesso de cantores como Elvis Presley 22. Milhares de adolescentes urravam, choravam, desmaiavam, imploravam para beijá-lo, queriam tocá-lo, ser tocadas, queriam ser possuídas por ele. A situação de entusiasmo coletivo orgiástico, sonoro, não esconde o fato de que cada uma das adolescentes desejava o cantor para si e de que, se tivesse podido, teria ido para a cama com ele, teria feito qualquer coisa por ele. Mas um comportamento análogo existe também fora da situação do espetáculo, longe da excitação coletiva. As fãs do astro continuam a amar e a desejar seu ídolo por anos e anos 23. Não há nada semelhante no mundo masculino. O rapaz pode adorar uma cantora, pode até se sentir excitado eroticamente por ela, desejá-la. Mas dificilmente perde a cabeça a ponto de desvalorizar todas as outras mulheres. A mulher fanatizada pelo artista, ao contrário, vê na sua frent e apenas ele, e os homens comuns parecem-lhe totalmente sem qualidades, insignificantes. O mesmo acontece com relação a personagens dotadas de poder, particularmente os líderes carismáticos. O homem adora o líder, mas seu amor é totalmente deserotizado. Na mulher, ao contrário, o relacionamento com o líder torna-se facilmente erótico. Em todos os movimentos coletivos, antigos e modernos, ao redor do líder sempre existiu uma corte de mulheres sexualmente disponíveis. As italianas desejavam Mussolini, as alemães, Hitler, as russas, Stálin e as americanas, Roosevelt ou John Kennedy. Em todos os cultos, em todas as seitas, em todas as religiões, o asceta, o sacerdote, o guru, o pregador, o profeta está sempre cercado por um grupo de mulheres desejosas de contato, de amor, de sexualidade. É de notar, por outro lado, que os homens da seita, neste caso, não são ciumentos, não 22
Albert Goldman: Elvis Presley, trad. ital., Milão, Mondadori, 1981. Sobre a atração amoroso-erótica dos artistas, ver Edgar Morin: I divi, trad. ital., Milão, Garzanti, 1977. 23
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se sentem diminuídos com a preferência das mulheres pelo eleito. Estamos diante de uma diferença fundamental entre o erotismo masculino e o feminino. O erotismo masculino é ativado pela forma do corpo, pela beleza física, pelo fascínio, pela capacidade de sedução. Não pela posição social, pelo reconhecimento social, pelo poder. Se um homem pendura na parede de seu quarto uma fotografia de Marilyn Monroe nua é porque ela é uma belíssima mulher nua, ou melhor, a mais bela do mundo. Não é a sua celebridade que o atrai, mas a sua beleza. Ao lado dela, por isso, pode pendurar fotografias de outras lindas mulheres nuas e, em certos casos, ficar ainda mais excitado com elas. Se um homem tem de escolher entre fazer amor com uma atriz famosa mas feia, e com uma deliciosa garota desconhecida, não terá dúvidas em escolher a segunda. Porque a sua escolha é baseada em critérios eróticos pessoais. Na mulher, é diferente. Escreve Milan Kundera: “As mulheres não procuram os homens bonitos. As mulheres procuram os homens que tiveram mulheres bonitas” 24. O erotismo feminino é profundamente influenciado pelo sucesso, pelo reconhecimento social, pelo aplauso, pela classificação no elenco da vida. O homem quer fazer amor com uma mulher bonita e sensual. A mulher, com um artista famoso, com um líder, com quem é amado pelas outras mulheres, com quem é respeitado pela sociedade. Essa diferença se transfere também para os comportamentos cotidianos. Nas revistas masculinas como Penthouse ou Playboy, as lindas mulheres apresentadas não são interessantes pelo seu status social, aliás isso nem ao menos é mencionado. Que aquele seio pertença à presidente da General Motors ou à sua secretária é um fato completamente irrelevante. Ao contrário, nas revistas femininas vem sempre mencionado o status da personagem apresentada. Em Vogue Homem, a mulher quer encontrar homens célebres, importantes, não homens comuns. da 24
Esse aspecto do erotismo feminino encaixa-se na tendência mulher à contiguidade-continuidade. No homem há
Milan Kundera: O livro do riso e do esquecimento, já traduzido no Brasil.
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separação entre Eros e política, entre sexualidade e poder. Na mulher, continuidade. A proximidade física, o relacionamento tátil, sensorial, erótico são uma maneira de participar da sociedade, do grupo, de estar em seu centro. As feministas explicam o fenômeno com o fato de que sempre foi o homem que mobilizou o poder. A mulher, dizem elas, no decorrer de milênios, aprendeu a erotizar a proteção do poderoso. Essa situação, entretanto, está fadada a desaparecer com a igualdade entre os sexos. É provável, mas não será um processo rápido. Porque estamos diante de algo tão antigo quanto a própria humanidade. Entre os mamíferos superiores, a fêmea se acopla com o macho, que se livra dos rivais e domina o território. Dessa forma, assegura-se o patrimônio cromossômico desejado. Na espécie humana, a fêmea, além disso, deve conservar a vida para si e para os filhos pequenos, enfrentando a fome, inimigos e dificuldades imprevisíveis. Por isso, após ter atraído o guerreiro, o chefe, para ter dele o sêmen, precisa conservá-lo, domesticá-lo. O guerreiro não deve partir, deve permanecer em defesa da casa e da comunidade. Deve, por conseguinte, ser capaz de amar, deve ter uma natureza social, comunitária. A síntese dessas diversas exigências é o herói: forte e apaixonado, aventureiro e leal, responsável diante dos compromissos assumidos, dos deveres da comunidade e carinhoso com a amada. Nessa situação primordial, conseguia-se o máximo de probabilidade de receber um patrimônio genético valioso e de poder conservá-lo, estando ao lado do chefe, no centro da comunidade. É somente quando a comunidade se reduz a um casal, como na família monogâmica moderna, que a mulher sente a necessidade exasperada de conservar ligado a si um homem comum.
2. O fato de o homem sonhar relacionar-se com muitas mulheres e a mulher ter um amor verdadeiro e definitivo, sendo absolutamente fiel a esse único homem, não torna o homem polígamo e a mulher monógama. Na realidade, as inumeráveis fantasias amorosas da mulher nos mostram claramente que ela está sempre em busca do
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eleito. Se fantasia, é porque o que possui não a satisfaz plenamente. As histórias amorosas que vive por procuração nos romances água-com-açúcar são outros tantos adultérios, como as masturbações solitárias do homem diante de fotografias pornográficas. O homem sonha com mulheres diversas, a mulher vive paixões com um homem absolutamente extraordinário. Se o homem ama a variedade e a mulher, ao contrário, pensa num amor eterno, a verdade é que naquele momento ambos buscam algo eroticamente excitante. O primeiro, num corpo sensual, a segunda, numa relação amorosa com o herói. Certamente a mulher é mais possessiva, persistente, fiel que o homem, e persegue uma relação mais duradoura. Mas também ele, de vez em quando, olha para seu interlocutor e se pergunta: “Este homem não é melhor do que eu?” Não apenas como corpo físico, peito, braços, quadris, pernas, mas como fascínio, como possuidor de qualidades masculinas. Às vezes, a mulher fala de masculinidade. Essa é uma sensação complexa em que entram a maneira de mover-se, os odores. Considera-se também um gesto, uma divisa, um par de botas. É uma sensação que a mulher pode ter até mesmo estendendo uma camisa. A masculinidade também é apreendida no fator riqueza, poder, supremacia sobre os outros e pelo fato de o homem ser desejado pelas outras mulheres. A masculinidade é um atributo físico e social, é um olhar e um gesto de comando, é um modo de falar e um carro esporte, é um odor e uma superioridade. Em sua forma benévola, suave, a masculinidade se apresenta no arquétipo do príncipe encantado. Em sua forma terrificante, é representada pela fera. Já vimos que nos romances cor-de-rosa o herói é frio, distante, tem um aspecto temível, o rosto duro. Enfim, é um guerreiro, um pirata, um aventureiro. São imagens e símbolos de uma masculinidade selvagem, terrível com os inimigos, mas que também significa proteção da comunidade, segurança, defesa. Na célebre fábula A bela e a fera escrita por Mme Le Prince de Beaumont 25, a fera é o homem, que possui apetites viciosos e desenfreados, que é 25
Ver também a análise feita por Bruno Bettelheim, II mondo incantato, trad. ital., Milão, Feltrinelli, 1977.
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violento e cruel. Que é terrível e perigoso, mas que pode, porém, ser amansado, transformado pelo amor. Então a fera deixa de ser ameaçadora e se torna doce, protetora. A literatura cor-de-rosa satisfaz também essa necessidade profunda, dá uma resposta ao medo suscitado pelo herói. Como exemplo tomarei um romance de Rebecca Flanders, Suddenly love. Nele a heroína é uma mulher já não muito jovem, uma farmacêutica. Não tem amigos, vive isolada. Não é bonita. Certo dia encontra um homem extraordinário. É um ator célebre, mas também um campeão do automobilismo. É milionário, solteiro, inteligente, gentil. É sincero e leal. Corteja-a, sem cessar, durante anos. Mas ela está assustada, diz “não”, defende-se. Quando, em Indianapolis, numa terrível corrida, ele se acidenta gravemente, com risco de perder a vida, ela foge, porque aquele tipo de vida a apavora. Porém, ele sobrevive, por milagre. Durante meses a fio escreve-lhe cartas apaixonadas. Manda-lhe todos os dias ramos de rosas vermelhas e imploralhe que se case com ele. Ela somente aceitará quando ele abandonar o cinema, as corridas, sua vida faustosa, para dedicar-se apenas a ela. Nesse livro aparece acentuado, deformado, levado ao seu limite máximo o medo da fera. A mulher quer ser adorada, mesmo que diga “não” continuamente, mesmo que nada conceda e pretenda tudo em troca. Permanece imóvel, passiva, e não descansa enquanto o herói não se tenha transformado, ele também, num homem comum. A fera deve tornar-se domesticada, o rei deve ser humilhado, o guerreiro transformado em manso cordeiro, para então, finalmente, ser aceito.
3. O que a mocinha sente pelo cantor, o que a mulher sente pelo ator famoso é enamoramento? É certamente uma paixão erótica que se assemelha às suas fases iniciais. É seguramente uma forma de amor, de adoração, de dedicação, que se assemelha àquela que encontramos no enamoramento. No entanto, existe uma profunda diferença que, em geral, passa despercebida. No enamoramento o valor da pessoa se revela independentemente dos valores sociais, do sucesso, da glória. É a revelação de que aquela pessoa comum, que não tem nada de excepcional, é para nós uma individualidade única e
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insubstituível, dotada de valor absoluto. Se o enamoramento dependesse das qualidades reconhecidamente sociais das pessoas, todos os homens se apaixonariam unicamente pelas mulheres belíssimas, e as mulheres unicamente pelos homens poderosos e famosos. Mas isso não acontece. Há portanto, aqui, uma oposição entre a atração erótica pelo líder e pelo artista famoso, que se dirige a um objeto coletivamente reconhecido, e o enamoramento, que escolhe a individualidade por si mesma. O enamoramento subverte os valores sociais, as hierarquias reconhecidas. Quando está apaixonada, a mulher ama até a pequenez, as dores, as fraquezas, os defeitos, a fragilidade do amado. Ama sua pobreza, sua falta de sorte. Ama-o como ele é, não levando em consideração a opinião do resto do mundo. Ao contrário, o amor pelo líder ou pelo artista famoso inclina-se diante da opinião coletiva. E, no entanto, coexistem na mulher esse dois tipos de amor e de erotismo. Toda mulher procura também encontrar o herói no homem amado.
4. Nos casos em que a mulher consegue penetrar na intimidade do astro famoso, chegando a viver com ele, em geral experimenta uma profunda desilusão. Porque julgava conhecê-lo e, em vez disso, conhecia apenas o seu comportamento em público, as fantasias coletivas orquestradas pelos seus agentes. Por outro lado, o homem famoso, o político poderoso, o artista adorado por milhões de mulheres torna-se desconfiado com esse tipo de amor. Na realidade, quem essa mulher ama? Seu sucesso, sua glória ou sua pessoa? Esse caso lembra um pouco o da rica herdeira ou do milionário que jamais sabem se são amados por si mesmos ou pelo seu dinheiro. Existe, portanto, nessas relações um elemento de ambiguidade. Nos romances cor-de-rosa, onde está em jogo o componente coletivo do erotismo feminino, a mulher se pergunta se o interesse do herói por ela é anônimo ou personalizado. Se ela é apenas mais uma mulher ou se é a eleita. Muitos dos comportamentos cruéis, cínicos, dos grandes astros podem ser interpretados como o resultado da frustração de uma necessidade individual de amor sincero e profundo. Porque as mulheres que o circundam e que brigam
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desesperadamente para tocá-los, apenas admitidas na intimidade do amor, passam a reprová-los por serem como são e iniciam uma luta selvagem contra as rivais.
5. O correspondente feminino do poder é a grande beleza. Também nela se oculta uma carga competitiva terrível. As mulheres já notaram, com estupor e inquietude, que frequentemente os homens parecem ter medo da beleza feminina. A mulher muito bonita desperta desejo, mas também desconfiança e temor. Muitos homens inteligentes, competentes, bonitos e, por todas essas qualidades, atraentes, com muita frequência se casam com mulheres feias ou apenas agradáveis. Em sua vida, muitas vezes depararam com a beleza, mas mantiveram-se à distância. Como se tivessem compreendido que não eram merecedores dela. Por fim o próprio gosto não mudou, mas aprenderam a desejar algo mais modesto, mais ao seu alcance. A observação objetiva e sem preconceitos da realidade nos mostra que existem apenas algumas categorias de homens que possuem mulheres belíssimas: os líderes carismáticos, os milionários, os astros famosos, os grandes atores, os grandes diretores e os gângsteres. A Beleza, a grande beleza é atraída inexoravelmente pelo poder, e o poder tende, inexoravelmente, a monopolizá-la. É esse liame profundo, ancestral, mas sempre vivo e renovado, que torna os homens comuns prudentes. No poema de Goethe, quando Fausto encontra a Beleza, Helena, é obrigado a conquistar Esparta e a derrotar Menelau numa guerra. E o coro o adverte dizendo-lhe que quem pretende a mais bela deve estar sempre disposto a defendê-la pelas armas.
5 1. A sedução feminina tende a produzir uma emoção erótica indelével. Mesmo quando sabe que se trata apenas de um encontro, de uma aventura, mesmo quando sabe que o homem é inatingível.
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A sedução feminina faz funcionar a excitação erótica no homem, provoca nele o desejo, acende-o como se acende uma Tocha. Porém, sua meta última não é o ato sexual. Quer produzir o enamoramento do homem, suscitar nele um desejo que se renova, como espasmo, nostalgia, para sempre. A sedução é um encantamento, deve despertar o desejo e fixá-lo sobre si. Eis por que o estímulo sexual deve ser, ao mesmo tempo, recusa, obstáculo. O estímulo apressado em consumar a satisfação sexual não é um encantamento. Porque aceita o fim, o esquecimento, o desinteresse. E obscena a proposta que diz “façamos amor e depois eu te esquecerei”. O encantamento, isto é, o erótico, é o contrário do obsceno. Para provocar o desejo sexual, é necessário bem pouco. Basta levantar a saia, deixar que se entreveja o seio, basta apertar-se contra o corpo do homem, tocar seu sexo, sussurrar-lhe que o deseja, e o homem se acende, está pronto para fazer amor. A sedução feminina não é tão simples, exige algo mais. Quer ser lembrada, fazer-se desejada. Age toda no presente, mas tem os olhos no futuro. Diz-se que a mulher, todas as mulheres, espera que o príncipe encantado venha despertá-la. É uma verdade e uma falsidade ao mesmo tempo. Seu verdadeiro propósito é que o príncipe encantado a veja e a deseje. É a sua estupenda beleza adormecida que o fascina, que o faz parar, que o distrai de seu caminho. A história conta que a bela desperta com o beijo do príncipe. Mas também o príncipe só começa a ver e a sentir na presença da bela. É ela que o espera para mostrar-lhe uma beleza que ele desconhecia e fazer com que ele experimente desejo e paixão.
2. O macho, quando pensa na conquista, tem em mente a relação sexual. A mulher, a emoção erótica que a faça recordar e desejar para sempre. Principalmente nas mulheres mais jovens, o desejo de deixar marcas no espírito do homem é acompanhado, depois, de um temor de serem envolvidas num relacionamento por demais comprometedor e não desejado. A
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mulher tende ao erotismo contínuo, mas não no sentido de querer transformar em relação contínua cada encontro. Quer deixar uma marca permanente, mas, ao mesmo tempo, subtrair-se. Algumas mulheres, então, fazem de tudo para seduzir o homem e, mal percebem tê-lo conseguido, dão meiavolta, chegando muitas vezes a fugir definitivamente. Porque não desejam uma relação amorosa concreta, mas suscitar um desejo, um amor. Saber que esse amor dura, não se acaba, saber que o homem pensa nelas e continuará a pensar por muitos anos. O excelente romance que melhor exprime esse desejo feminino de ser amada e recordada é A princesa de Clèves. de Mme de La Fayette, uma obra francesa do século XVIII. A jovem princesa, de apenas dezesseis anos, conhece o duque de Nemours. É um homem muito bonito, fascinante, o maior dom-juan da França, nenhuma mulher jamais lhe resistiu. Mas a princesa resiste, e exatamente por causa dessa resistência, ele acaba por apaixonar-se por ela. A essa altura, a jovem tem diante de si uma escolha dramática. Está apaixonada, deseja-o desesperadamente, mas sabe que se ceder, entregando-se a ele, será apenas a última de suas conquistas. Essa é a lei da sociedade da corte onde vive. Se quer continuar a ser amada por ele, amada para sempre, deve afastar-se definitivamente, para que ele jamais possa tê-la. E é isso o que a princesa faz, retirando-se para um convento.
3. O desejo de continuidade da mulher se manifesta de vários modos. A mulher aprecia os atos que significam a continuidade do interesse. Um telefonema, um elogio, flores. Em geral, a mulher ama também as palavras amorosas, as carícias, os abraços, o interromper e o recomeçar. Está sempre à procura da compreensão amorosa, íntima, tranquila, suave, do idílio. Não apenas esporadicamente, nos intervalos de tempo roubados a outras atividades, mas por longuíssimos períodos, como numa eterna lua-de-mel. Naturalmente a mulher envolvida numa atividade profissional, que se realiza no trabalho, que tem sempre pouquíssimo tempo livre e muitas coisas a fazer, acaba por assumir, com o correr do tempo, uma postura masculina. Porém, no mais profundo de seu íntimo, também ela deseja
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poder abandonar-se a uma doçura prolongada, em que não existam tempo nem horário. Como quando se deixa beijar pelo sol, estendida na praia. Porque lhe agrada ficar bronzeada e desejável, mas também porque o sol é como um amante que lhe dá prazer e ternura. Provavelmente, é por esse motivo que a maior parte das mulheres deseja, no homem, uma ereção prolongada. Porque significa que ele ficou excitado pela sua beleza, que a deseja de modo contínuo, duradouro. Porque o abraço amoroso e o êxtase da fusão dos corpos duram por um longo tempo, horas e horas, e não são lacerados imediatamente pela interrupção, pela descontinuidade. O homem acha que a mulher adora seu pênis ereto, o deus Priapo. Na verdade, o que ela deseja é a permanência do interesse amoroso, da ternura, do abandono, da paixão. São esses os alimentos que nutrem seu erotismo, seu prazer. A ejaculação precoce é irritante, não por si mesma, mas por representar um desinteresse masculino e pelo estado de agitação, de frustração e de apatia que esse distúrbio provoca no homem. Se a mulher não se sente amada, desejada, seu renovado esforço de sedução fica frustrado, e ela então experimenta uma sensação de vazio, de inutilidade, de desespero. Como se não existisse mais. E reage com raiva. Isso se verifica constantemente no casamento ou na convivência. A mulher imagina que vivendo junto com o homem amado realizará a continuidade do erotismo. Julga que a descontinuidade do comportamento masculino depende de fatores externos, de dificuldades materiais, de compromissos profissionais. Não consegue acreditar que seja um fator natural, próprio da masculinidade. Enfim, que seja a característica de seu desejo. Vivendo sempre juntos, pensa ela, esses impedimentos poderão ser removidos. Dormindo na mesma cama, fazendo juntos a primeira refeição matinal, comendo à mesma mesa, batendo papo à noite, haverá todo o tempo necessário para realizar a continuidade erótica. O tempo passado juntos é imaginado como um tempo erótico completo, compacto, um tempo amoroso. A realização, que no homem acontece através do esplendor do encontro, aqui é procurada no prolongamento do encontro, no preenchimento erótico de toda a duração. Na erotização da continuidade temporal.
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4. Na vertente masculina do erotismo, ao contrário, o que conta é a intensidade do encontro sexual. O encontro erótico é, para ele, um tempo luminoso, subtraído da vida comum. Tem, portanto, um princípio e um fim. Ele sabe que voltará à vida rotineira. O encontro luminoso é como uma área liberada e liberante, uma experiência regeneradora de que sai enriquecido, reforçado, feliz, realizado. Reingressa no mundo do dia-a-dia mais seguro, mais forte. Até mesmo no enamoramento a relação amorosa é uma sequência de encontros luminosos. Além disso, o homem experimenta com mais frequência que a mulher o instante de eternidade. Este não é um intervalo temporal. E um estado particularíssimo, exterior ao tempo. Quando o instante de eternidade desaparece, reaparece o tempo. Mas o valor desse instante é superior ao tempo. A sua lembrança (saudade) faz com que o tempo pareça apenas um obstáculo, uma falha, uma distração de nossa verdadeira natureza, que é viver no eterno. Exatamente como na experiência do místico, para o qual Deus se revela somente em gotas de eternidade. O homem enamorado experimenta, às vezes, um sentimento de profunda tristeza pensando que o divino momento que vive está destinado a desaparecer, a perder-se no tempo. Olha então para o céu azul, para as plantas ou pedras, sabendo que aquela perfeição representa o eterno. No máximo, lhe será concedido recordar aquela experiência divina. Mas será como uma imagem desbotada. Ao contrário do instante de eternidade, o encontro luminoso é um fragmento de tempo, uma ilha de experiência que pode ser recordada como um acontecimento, modificável pela fantasia.
5. Também o homem enamorado continuará, durante a separação, a pensar em sua amada. Às vezes, sentirá mesmo um desejo lancinante. Se imagina tê-la perdido, sentirá uma saudade dolorida. Em geral, porém, quando a cumprimenta, mesmo que esteja emocionado, sente-se cheio de vida. O encontro luminoso o torna mais audaz. Partindo, está certo de
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tornar a encontrá-la e procura somente merecer seu amor. A lembrança dela mora em seu coração, despertando-lhe arrojo, coragem. Enquanto trabalha, pensa nela. Se a sente sua, ela lhe faz companhia, lhe dá forças, alegra-o. No homem, a memória preenche a descontinuidade da presença. Se o homem não está enamorado, o desejo de rever aquela mulher dependerá da beleza do encontro. Se este foi luminoso, desejará encontrá-la outra vez. E, se o milagre se repete, desejará encontrá-la ainda mais uma vez. Se o encontro não acontece, se nele se insinuam problemas, rancores, a amargura do cotidiano, diminui seu desejo de rever a mulher. Porque, por mais profunda, luminosa e extasiante que tenha sido a experiência erótica, não é suficiente para construir uma relação permanente. Somente o toque maravilhoso do enamoramento cria o irreversível. A sedução feminina tende a isso, mas o enamoramento profundo é um acontecimento raro, improvável. Além do mais, a mulher custa a reconhecê-lo com segurança. Tende a confundir o apaixonamento com a continuidade temporal física, coisa válida para ela, mas não para o homem. Procura obtê-la então com súplicas, ou duplicando a sedução erótica. Mas, assim fazendo, é obrigada a repetir seu esforço e torna-se cada vez mais insegura. A sedução feminina deve renovar-se para exorcizar o descontínuo que existe no homem.
6. O encantamento tem sobre o homem, em geral, duração limitada, o que constitui, para as mulheres, perene fonte de desilusão e reprovação. Os homens que não ficam prisioneiros do amor, que não mergulham apaixonadamente na aventura, parecem-lhes frios, desumanos, cruéis. No mito masculino, entretanto, o herói resiste ao encantamento. Ulisses não obedece às sereias, abandona Circe, deixa tanto Calipso quanto Nausica. Rogério foge do castelo de Alcina. O encantamento, por isso mesmo, deve ser repetido. O homem se afasta. Afasta-se imediatamente após o ato sexual. Adormece, vai embora. Em seu vagar pode estar ao lado de outra mulher, cair em outro encantamento. Em Orlando furioso, isso acontece até ao mais apaixonado dos amantes, ao mais puro dos heróis. Existe sempre, em algum lugar, uma fonte do esquecimento ou do amor. A mulher, por isso, vigia o
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amado, seja ele marido ou amante. Não há nada de materno nisso. É uma reação primária, que pertence inteiramente à sedução e ao erotismo da sedução. Cada mulher cuida e procura manter vivo o amor, nela ou no próprio homem. Procura jamais romper aquele fio tênue que é a atração erótica. A mulher é artífice de uma contínua transfiguração de si mesma e da casa. Que haja sempre algo de novo, de agradável para si e para o amado. Algo que o faça exclamar: “Que lindo, muito bem, que maravilha!” Suscitar sempre novas emoções. Cada dia, cada dia do ano uma nova emoção. Revitalizar o desejo no mesmo homem. Aquele homem que gostaria de esquecer-se dela, ou se esquece. Quando a mulher inicia uma relação amorosa que lhe agrada muito, despende uma energia incrível preparando a casa, tornando-a atraente, confortável, acolhedora, de modo que seu homem ali encontre alegria e vida. Se não possui uma casa própria, pedirá uma a alguém emprestada, inventará outros recursos. A casa, o ninho, é, de qualquer maneira, uma de suas preocupações fundamentais. É verdadeiramente uma extensão de si mesma, de seu corpo. Como seus móveis, como o lençol florido da cama, como as cortinas e as janelas, as cores das paredes, as plantas e flores de que se cerca. O arranjo da casa faz parte integrante do ato de atração e sedução. As revistas de decoração possuem um conteúdo erótico tão grande quanto as de moda ou as dedicadas à beleza e à maquiagem. Do ponto de vista erótico, o ambiente apropriado (feminino) tem uma grande importância para o homem. Não devemos confundir as fantasias masculinas com seu comportamento real. Mesmo quando fantasia ou quando relembra, ele pensa principalmente no corpo; na realidade, fica excitado e fascinado pela maneira de vestir, pelo perfume, pela atmosfera da casa feminina. Diz-se que o homem pensa somente em tirar a roupa. Mas para tirá-la é preciso que ela exista, Até mesmo o strip-tease pressupõe as roupas e seu erotismo. Existem, enfim, certas vestimentas que não se podem tirar. O ninho, a casa ficam ali, em volta, e fazem parte do total. O corpo feminino nu é sempre colocado dentro de uma corola florida, sedutora, perfumada.
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O ninho não é feito apenas de objetos, tecidos, cores, atmosfera, luzes. É feito também de acolhimento. E também o saber acolher é uma revelação. As gueixas japonesas baseiam seu treinamento sobretudo na sensibilidade masculina ao acolhimento. O máximo de prazer e proporcionado sob esse aspecto, acolhendo, valorizando, interessando o homem, tornando-o parte essencial de uma estrutura poética. Também a cortesã ocidental possui uma bela casa e é mestra na arte de acolher. A prostituta de rua não possui absolutamente essa qualidade. Mas, por outro lado, seu objetivo não é segurar o homem: o da cortesã, sim. A cortesã quer renovar o encantamento que seduz o homem, mantê-lo ligado.
7. A fase negativa da sedução feminina é o temor de não possuir fascínio suficiente, de não poder causar a emoção profunda, indelével, de que já falamos. Sob esse aspecto, as mulheres são extremamente diversas. Algumas, desde muito jovens, estão certas da própria capacidade de seduzir, orgulhosas de seu poder erótico sobre o homem. Outras, ao contrário, são inseguras. Talvez porque se recusam a assumir o papel feminino, não querem tornar-se mulheres fatais. Não posso, aqui, entrar no problema da construção do papel feminino. Limito-me a observar que quando a mulher se sente insegura de si mesma, de sua capacidade sedutora, tende a acentuar ainda mais sua necessidade de continuidade. Ela permanecerá ligada a seu homem de modo quase obsessivo e temerá ainda mais perdê-lo. Por ele estará disposta a renunciar a todas as oportunidades da vida, à sua carreira, até mesmo a ter um filho. Existem mulheres de grande valor que, por esse motivo, permaneceram ligadas a homens medíocres, sacrificando-se por eles. E isso, apesar de suas convicções políticas e ideológicas. Aconteceu até a feministas convictas.
6 1. A mulher é atraída pelo homem capaz de proporcionar emoções violentas, amor apaixonado. É atraída pelo homem capaz de sentir e de querer, pelo homem que se atira numa
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aventura amorosa com decisão, com coragem. Esse desejo é o correspondente exato da fantasia de sedução. A mulher deseja causar uma emoção erótica indelével em cada homem, mesmo que se entregue somente a quem merecer, somente a quem for capaz de corresponder de modo adequado. Com muita frequência as mulheres têm a impressão de que os homens são incapazes de amar de modo apaixonado, de abandonar-se impulsivamente aos próprios desejos. Preocupados, absorvidos pela própria profissão, pelo fator econômico, assustados com a nova igualdade da mulher, atemorizados pela própria beleza feminina, estão pouco disponíveis para o que de heróico e arriscado existe no amor e no erotismo. Nos países de tradição hispânica há uma expressão, machismo, para indicar o homem que se vangloria das conquistas, despreza a mulher, gaba-se de uma incrível e imaginária potência sexual, mas que se preocupa principalmente com os outros homens, dos quais teme a concorrência, com os quais se confronta continuamente 26. Esse tipo de homem pratica atos perigosos a fim de demonstrar sua coragem física. Para ser admirado por todos. Na realidade, porém, não está interessado na mulher e, por isso, não é capaz de enfrentar com coragem a aventura do amor erótico e seus riscos. Envergonha-se de admitir que também tem necessidade de afeto, que teme a solidão, que a mulher lhe é necessária. No mais profundo de seu íntimo, tanto os homens como as mulheres têm uma necessidade desesperada do que é extraordinário. De tudo o que é superior à vida cotidiana, com sua banalidade, monotonia e falta de sentido. Os homens, no curso da história, buscaram contato com o Absoluto de várias maneiras. Na religião, na - guerra, no rito, na aventura. Por milênios e milênios, a mulher teve de viver no ambiente sagrado da família e da casa. E é nesse campo que se desenvolveu sua necessidade de transcendência e de utopia. Certo, ela participou apaixonadamente de novos cultos, fundou seitas religiosas. Em época mais recente, sua energia criativa transbordou no terreno artístico, científico, literário. Porém, a marca das relações familiares permaneceu. Daí a necessidade 26
Ver Joseph-Vincent Marquês: No és natural, Valência, Editorial Prometeo, 1980; ¿Que hace el poder en tu cama?, Barcelona, El Viejo Topo, 1981.
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desesperada de redimir o cotidiano, de abrir nele a porta que conduz a uma região diversa do ser, onde todas as coisas gritam sua alegria de viver. Onde tudo o que é vivo realiza integralmente sua natureza. Onde as emoções são luzes fulgurantes e o erotismo, um canto altíssimo, um contato duradouro com o ideal e a essência ultima das coisas. É por isso que a mulher deseja encontrar o homem que saiba corresponder à sua demanda de grandes emoções e sente-se atraída por personalidades fortes, magnéticas. Mesmo que depois venha a se desiludir, porque esses homens em geral são fascinados apenas pelo sucesso e pelo poder. Eles possuem inegavelmente uma enorme energia interior, mas muito pouco dela pode ser convertido em erotismo e em amor. A sedução feminina procura então evocar, liberar quanto for possível essa força aprisionada, sufocada, comprimida. O esforço que a mulher realiza para conseguir essa liberação é imenso para com o homem que escolheu, o eleito, aquele que ama. Ainda hoje, quando finalmente está livre do peso do cotidiano doméstico, da condição servil, o empenho da mulher para refazer tudo, para transfigurar o existente, volta-se acima de tudo para o seu homem. Antes de mudar, antes de procurar em outro lugar, antes de se render, ela procura fazer explodir a riqueza que sente estar aprisionada em quem ama. O protesto feminino dos anos 70 foi também uma tentativa de sacudir os homens, de revelar a eles a riqueza dos sentimentos amorosos.
2. As mulheres sabem, como os homens, e até melhor que eles, que o enamoramento possui qualquer coisa de inelutável em seu decurso. Quando existe, são poucas as forças que conseguem extingui-lo. Quando termina, nada é capaz de fazêlo ressurgir. Se um homem não está mais enamorado, nem mesmo as artimanhas mais sofisticadas da sedução podem reconquistar seu amor, fazê-lo germinar como no primeiro dia. E isso as mulheres sabem muito bem. Porém, embora sabendo, custam a admiti-lo e se comportam, ou falam, como se isso fosse possível. Isso depende também do fato de, habituadas a procurar em todas as coisas a continuidade, a negar as diferenças, serem levadas a confundir a enfatuação erótica, o grande desejo, com o enamoramento. O homem sabe distinguir
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perfeitamente se o que sente é um desejo sexual ou amor. Na mulher as duas experiências são mais difusas. Por isso, se consegue acender ainda uma vez em seu homem a paixão erótica, se consegue fazê-lo com interesse, se consegue mantêlo ao lado, procura convencer-se de que ele a ama. A necessidade de ser cortejada, amada, desejada, leva-a a aceitar como boa uma forma de amor que não é enamoramento. Ela sabe que não é enamoramento, mas prefere não pensar nisso, não analisar o fato, aceitá-lo assim. Não é também infrequente que as mulheres, entre o homem que amam e o homem que as ama, acabem por escolher aquele que as ama. Ao risco de amar preferem a certeza de ser amadas. Porém, também chamam a isso amor. Em uma conversa dirão que amam seu homem, que estão enamoradas dele e que o outro (o verdadeiro amor) era uma “ilusão”. Ou então se convencerão de que ele não as amava realmente, que não havia nada a fazer.
3. É difícil para uma mulher aceitar a ideia de não conseguir conquistar o homem que deseja, ou conservar o que tem. Porque a face da sedução feminina é dupla. Na mulher há também o aspecto coletivo do erotismo e este se apresenta como conquista, manipulação, domínio. Existem mesmo duas imagens arquetípicas da sedução feminina. A de Bela Adormecida, Branca de Neve, Cinderela, onde o homem é atraído pela beleza. Apaixona-se, e a mulher parte com ele. A segunda é a de feiticeira (Circe, Alcina) que prende o homem com um encanto. O mito nos diz que Branca de Neve ou a Bela Adormecida estão enamoradas do príncipe. Circe não está enamorada de Ulisses. Ela o quer, isso é certo, mas está disposta a mantê-lo prisioneiro contra a sua vontade. Alcina encanta Rogério para impedi-lo de combater contra os sarracenos, de quem é aliada 27. Esse tipo de sedução é relacionado ao filtro mágico, ao engano, à manipulação, ao poder. Seu objetivo não é o amor, mas o domínio. Quer manter o homem preso, fazer com ele o que quer. Para consegui-lo, usa indiferentemente todos os 27
Ludovico Ariosto: Orlando furioso, Milão, Garzanti, 1974, canto X.
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sentimentos: a excitação erótica, a adulação, a mentira, a chantagem. Para ter sucesso, esse tipo de sedução exige uma indiferença emotiva e uma frieza incompatíveis com um amor apaixonado. A mulher que age dessa maneira vencerá se o seu objetivo for o casamento, o dinheiro, o sucesso ou o prestígio social. Mas se seu objetivo é o amor, quando tiver vencido a batalha se dará conta de não saber se o homem a ama verdadeiramente. Tornar-se-á insegura. A psicóloga norueguesa Ellen Hartmann observa que as mulheres muito empreendedoras, ativas, que tomaram a iniciativa da conquista, sentem se, depois, incertas da relação. E o homem, por sua vez, sentese perturbado, inquieto. Se a manipulação continua e se torna chantagem emocional, então há definitivamente a impressão de aprisionamento. No mito, a feiticeira nunca está certa do amor do herói. E tem razão, pois o herói se rebela contra a prisão e consegue sempre fugir dela. Ulisses obriga Circe a libertar seus companheiros, a frota de Alcina acaba destruída. Essas duas faces da sedução feminina, tão diversas do ponto de vista emocional e lógico, na vida real se colocam lado a lado, se sobrepõem, se alternam, pelo menos em certos momentos. Uma relação começada como encantamento positivo pode prosseguir depois, no decorrer dos anos, por meio de um sutil jogo de manipulações e a sábia instrumentação das fraquezas e dos sentimentos de culpa do outro 28. Ao contrário das mulheres, os homens não confiam muito em sua capacidade de sedução. Pensemos, por exemplo, na Carmen de Mérimée. Dom José, apaixonado, pede a Carmen que volte para ele. Na realidade, não faz nada, limita-se a pedir-lhe, a suplicar-lhe. Expõe-lhe seu amor, lembra-lhe o passado. Mas não se veste de outra maneira, não se maquia, não se transforma, não cria um quadro de representação, não a “seduz”. Existem também histórias em que o herói, não amado, afasta-se, torna-se rico, poderoso e volta, transfigurado, para conquistar e humilhar a mulher. É o exemplo de O grande Gatsby 29. Mas são colocadas totalmente no descontínuo. O homem sofre uma metamorfose. Torna-se outro, e é por esse 28
Na literatura amorosa italiana, a personagem que vive o drama da feiticeira enamorada é Armida, inimiga dos cristãos e apaixonada por Rinaldo. Torquato Tasso; Jerusalém libertada. 29 Francis Scott Fitzgerald: O grande Gatsby, já publicado no Brasil. O mesmo tema aparece no livro de Emily Bronté: O morro dos ventos uivantes.
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outro que a mulher se enamora. Esse tipo de fantasia é masculina. A mulher comporta-se assim apenas por vingança.
4. A sedução não é apenas convite, é também recusa. Porque a mulher diz “não” ao pedido impessoal do homem. Quer que a sexualidade seja dirigida à sua pessoa. O não tend e a excluir o aspecto anônimo do erotismo masculino, para conduzi-lo em outra direção. Também nesse caso, seduzir, desencaminhar. O não, o limite, tem, porém, um outro significado. A mulher acendeu o desejo no homem, mas para isso teve de envolver-se, tornar-se presa, convidar o outro a ser caçador. Se consegue despertar sua paixão, se a sedução deu certo, então ela mesma fica excitada, ela mesma, muitas vezes, se deixa envolver no jogo da sedução. Nesse caso ela tem absoluta necessidade de saber se a paixão foi realmente despertada, a emoção, realmente provocada. Se o homem não insiste, se renuncia, então significa que a emoção não era forte. Ou então que o homem não sabe aceitá-la, não sabe querê-la, não é um corajoso. Tem o mesmo significado o comportamento feminino disposto a causar embaraço ao homem com perguntas impertinentes ou com olhares de compaixão. Ou então as frases ingênuas e ofensivas ao mesmo tempo: “Precisa de permissão para sair à noite?”, que colocam o homem numa posição infantil. Ou de desprezo: “Nunca imaginei que fosse tão fraco”. Ou então uma recusa brusca, total, logo seguida de um gesto conciliador de convite, o tom argentino da voz que renova a disponibilidade e acaricia. Convidar e retrair-se, elogiar e desdenhar, colocar em dificuldades, fazê-lo sentir-se infantil, como quando várias mulheres riem entre si. Os homens que comentam entre si sobre uma mulher que passa também a estão desvalorizando. Mas porque estão longe, porque não existe uma interação real. Frente a frente, durante a sedução, jamais o fariam. A mulher, sim. Mas o faz porque vê na inércia do homem qualquer coisa de estúpido, irrita-se com sua passividade, porque ele não corre para ela, não se oferece, entusiasmado, apaixonado, livre, totalmente disponível.
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A mulher tem necessidade de ser procurada pelo homem. A zombaria tem o intuito de fazer sobressair a dignidade do homem, seu orgulho. Impulsiona-o a agir sob o estímulo do desafio, para demonstrar que é corajoso. A zombaria é também uma prova. Porque se o homem não reage, ou então se retrai, ou se humilha, significa que não possui energia ou coragem, e a mulher sente desprezo por ele. Esse desprezo anula o interesse erótico pelo homem. A sedução fracassou porque o objetivo não merecia ser seduzido. Não valia a pena. 5. Existe na mulher uma estranha contradição. Quer um homem forte, fisicamente, e teme sua força no relacionamento erótico. Essa é uma das razões que leva a mulher a preferir, enquanto não possuiu seu corpo na totalidade, o homem vestido (o fascínio pelos uniformes). A roupa esconde a crueza física, mas deixa transparecer a força e, dessa forma, o sentimento de segurança que tal força suscita. O primeiro passo da mulher na direção do homem é o desejo irresistível de refugiar-se em seus braços. A queda das barreiras psicológicas e físicas levantadas pela mulher depende da maneira como o homem a abraça. Pelo abraço ela percebe se aceitará seu corpo nu a qualquer momento, não apenas durante o relacionamento sexual. Durante o relacionamento sexual é mais fácil aceitá-lo. O corpo do homem torna-se mais macio, torna-se forte e flexível, leve, modificado favoravelmente com as sensações, com as emoções. E possível comunicar-se com a psique através da pele. É penetrável pelo corpo feminino. É um paradoxo, porque a mulher tem medo dele e, ao mesmo tempo, quer penetrá-lo intensamente com as emoções. Como se ele se tivesse tornado um corpo fluido. Talvez a mulher, não podendo fazê-lo fisicamente, o faça mentalmente, com o calor da pele, com a vibração do corpo. Se o homem, porém, a agarra de modo possessivo, brutal, como se agarrasse um objeto, a mulher considera o fato como uma violência física e psíquica. Sente-se impotente. Tem medo. É a mesma sensação que chega ao limite máximo na violência sexual, no estupro. Um sentimento de sufocação, de afogamento. É essa sensação de aniquilamento, de destruiçãosufocação, que leva à morte algumas mulheres violentadas por muitos homens.
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A força física do homem atrai e aterroriza a mulher. Seu aspecto agressivo e imponente pode ser maravilhoso, mas também assustador. Por isso algumas mulheres preferem homens delicados, fisicamente frágeis. Para não ter medo de sua força, para poder tratá-lo como um menino no plano físico e psíquico. De modo geral, são aquelas mulheres que querem enganar o marido também em outros planos da existência. A aceitação do corpo do homem, a idealização também de seus aspectos rudes, é o primeiro sinal de amor. Como o desamor ou o não-amor a leva a rejeitá-lo, primeiramente de modo velado, sutil, ambíguo. Depois, abertamente. De fato, quando uma mulher já não ama um homem, põe em evidência todos os seus aspectos grosseiros, animalescos. Reclama do seu ronco quando dorme, do seu modo de andar quando se agita pela casa, quebra tudo, desarruma tudo. Irrita-a o seu ambiente-corpo. Seu cheiro torna-se acre, insuportável. Os lençóis já não ficam impregnados do perfume dos dois, mas do odor acre, animalesco, do homem-intruso. É difícil para uma mulher eliminar o aspecto animal. Tanto é verdade, que muitas mulheres, na praia, vêem os homens como se fossem macacos. Em geral, entre mulheres, ouve-se falar com expressão decepcionada: “Os homens nus não são bonitos, realmente não são uma paisagem das melhores”. Em parte é objetivamente verdade, mas em grande parte é a rudeza física que os faz parecer feios aos olhos de uma mulher. Acontece o contrário do que a mulher faz com os próprios filhos. Para as mães, os filhos são sempre bonitos, mesmo que sejam gordos e sem graça. Jamais admitirá que são feios e até mesmo se aborrecerá se alguém disser qualquer coisa nesse sentido. Geralmente se confunde esse comportamento com o “amor materno”. Na realidade, a mulher não admite ter parido uma criatura feia. Admitindo a feiúra do filho, teria de confessar que uma parte de si mesma é aberrante. Sabe disso, mas não o admite. Por isso faz o contrário do que faria com o próprio homem. Sufoca-o de cuidados, atenções possessivas, “excesso de afeto”, como se diz. Na verdade, gostaria de fazê lo voltar ao útero, escondê-lo. De alguma forma, matá-lo. A mulher supera esse aspecto inquietante do corpo do homem, transformando-o em positivo, quando ama
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profundamente. Porque, se ama o homem, ama também o corpo do homem como ama o seu próprio corpo, que jamais é repulsivo. Para qualquer mulher, o próprio corpo, mesmo quando a velhice já fez seus estragos, é agradável, quente, suave, sinuosamente acolhedor. Está dentro dele e nele se sente bem. A mulher, portanto, aceita o corpo do homem pouco a pouco, gradualmente, através do amor. O homem amado, então, não é mais o animal predador que penetrou em seu corpo, que se satisfez, que dorme saciado. É como um menino que se entregou ao sono como se entregou ao amor, por efeito do seu amor. Não é mais a vítima, mas a caçadora. Sente o orgulho de Diana que lançou sua flecha e agora olha sua vítima inerte, e sente-se recompensada. Então adormece ao lado daquele corpo relaxado, inocente, que deve proteger. O corpo do homem amado não está mais separado. Ela está deitada, reclinada em seus braços e aspira seu hálito. Seu hálito é como o ar, indispensável. Seus odores se fundem, constituem um único odor, um único perfume. Sente o perfume penetrar pelas narinas certa de estar em paz com a vida. Tocá-lo é, então, o mesmo que tocar uma zona maravilhosa, quieta. É a certeza do contínuo, do permanente. Da eternidade.
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O sonho do homem
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7 1. O grande sonho da sedução feminina é a continuidade do amor. No centro do erotismo masculino, ao contrário, vamos encontrar a descontinuidade do prazer sexual. Obviamente, também no erotismo feminino existe o prazer. Mas ele é o resultado do relacionamento amoroso. Encontra sua nobreza na generosidade do amor. O prazer do amor é intrinsecamente moral. O amor é doação, dedicação, altruísmo. Tende a produzir a fusão dos dois indivíduos. Cada um deles, portanto, transcende o seu eu empírico, a sua mesquinhez egoísta. Até mesmo o amor insensato possui sua própria dignidade social. O indivíduo loucamente apaixonado é como o convertido que deixa casa, filhos, tudo pela fé. Ou como o terrorista que mata, mas por razões idealistas 30. O prazer não possui essa dignidade ética. O erotismo masculino, assim como se apresenta nas fantasias que examinamos, é absolutamente o inverso da ética. Esta impõe que se considere o outro ser humano como fim e jamais como meio. O objeto do desejo erótico masculino, ao contrário, é meio, como o alimento, como a água, como a cama para quem tem sono. Tudo o que serve para satisfazer uma necessidade é meio. Até mesmo a reciprocidade, no erotismo masculino, é egoísta. O prazer da mulher é desejado em vista do próprio prazer. Somente o prazer do outro enquanto prazer dele próprio, antes de ser um meio para o meu prazer, entra no registro do amor e da virtude. O erotismo masculino não possui essa dignidade. Ela não lhe é concedida. O erotismo masculino é anseio egoístico de gozo. Se um homem casado sente atração erótica por uma mulher e faz amor com ela, não para construir um futuro, uma nova família, não para realizar um grande amor, mas única e exclusivamente porque lhe agrada fazer amor, não há atenuantes. O prazer é tolerado em quem não possui vínculos, compromissos, em quem não fez acordos. É sempre vivido fora das instituições, além da permanência e do 30
Nitlas Luhman mostrou que a aceitação social do amor-paixão somente aconteceu no século XIX. Ver Amore come passione, trad. ital. Bari, Laterza, 1985.
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contrato, como uma fraqueza, uma degradação, uma dissolução. É acompanhar a linha de menor resistência, a que ilude a escolha, que pega o que puder, sem refletir. E cair à mercê da atração, da sedução, do objeto 31. O sujeito se perde no objeto. É, portanto, loucura, dissociação, perda do centro que resiste ao objeto e a ele se impõe. O homem erótico é possuído por desejos, corre atrás de todas as coisas, como o macaco que não sabe propor-se um fim e ordenar os meios para atingir esse fim. Em linguagem popular, diz-se que cedeu às “fraquezas da carne”, que “se deixou levar”. É como a vertigem do jogo. De fato, esse erotismo é perigoso como o jogo de azar, como a corrida automobilística, tanto é verdade que mais cedo ou mais tarde, mas inevitavelmente, acontece a catástrofe. O jogador só pára de jogar quando perdeu tudo, quando está arruinado. A inconsistência moral do erotismo emerge violentamente das páginas de Henry Miller e do escritor italiano Vitaliano Brancati. Essa característica do erotismo não é exclusiva da tradição judeu-cristã. As recentes pesquisas de Michel Foucault mostraram que, na concepção grega, os afrodisíacos possuem na sua base uma energia que tende ao excesso. É preciso, porém, fazer dessas forças uso moderado, e isso somente é possível quando se é capaz de resistir-lhes. “O que constitui aos olhos dos gregos a negatividade por excelência... é o ser passivo diante dos prazeres. 32” É, porém, impressionante encontrar estreita correspondência entre as fantasias eróticas masculinas ocidentais e as de alguns textos orientais, como por exemplo, no famoso livro do chinês Li Yu, II tappeto da preghiera di carne 33. Também neste livro aparece o tema da irresistibilidade sexual do macho. As mulheres ficam fascinadas, subjugadas pela sua potência viril, tornam-se escravas de seu membro extraordinário, não podem passar sem ele. Isso acontece tanto no caso do jovem Sacerdote da Primeira Vigília como no do 31
Jean BaudriUard: Della seduzione, trad. ital., Bolonha, Capelli, 1980; Le strategie fatali, trad. ital., Milão, Feltrinelli, 1984. 32 Michel Foucault: L’uso dei piaceri, trad. ital., Milão, Feltrinelli, 1984. 33 Li Yu, trad. ital., Milão, Bompiani, 1973.
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virtuoso Ch’uan. Aquele com respeito à primeira mulher, consegue tornar-se irresistível porque é perito na arte erótica. Mas depois, quando quer competir com o virtuoso Ch’ uan pela posse de Aroma, descobre ser inferior do ponto de vista físico. Manda então fazer para si um enorme membro. E é com ele que seduz Aroma e torna inofensivas todas as outras mulheres ciumentas e invejosas. Quando está em perigo, seduz aquela que o ameaça. As mulheres não conseguem absolutamente resistir ao prazer que esses homens superdotados lhes proporcionam. Elas enlouquecem de desejo, tornam-se como que drogadas. A dependência à droga acontece imediatamente, à primeira experiência. Uma vez experimentado o extraordinário pênis masculino, não podem passar sem ele. A diferença da pornografia ocidental é que, nesta última, não é necessária nenhuma habilidade, nenhum dote. Não é necessário possuir um supermembro, nem um sofisticado conhecimento sexual. Qualquer um está em condições de excitar uma mulher ávida de sexo, em qualquer momento, porque ela já está drogada. Em ambos os casos, todavia, tudo se reduz ao sexo ou ao corpo. As pessoas não fazem outra coisa, não falam de outra coisa. É um longo discurso sobre o erotismo, sem interferências. Não existem nunca dores de amor; no máximo, sofrimentos de abstinência. O erotismo tem um aspecto imoral também nas publicações chinesas. No livro II tappeto da preghiera di carne, o protagonista descuida de seus deveres, leva à ruína e à morte as mulheres que o amam. Em Chin P’ing Mei é, definitivamente, um assassino. Os dois amantes, Hsi-Mei e Lótus de Ouro, buscam o prazer acima de tudo e sem olhar os meios. A mulher é má com todos, assassina de maneira cruel o marido. O desenfreamento do erotismo (não aparece nunca a palavra “enamoramento”) transborda, faz mal, até mesmo a Hsi-Mei, a quem, no final, quando já está doente, a mulher dá cantárida para excitá-lo sexualmente enquanto agoniza. Outra característica constante é o perigo. Quem cede aos prazeres sempre o faz correndo altos riscos. No livro de Li Yu, o perigo consiste em ser descoberto por qualquer marido e por qualquer outra mulher. No livro Chin P’ing Mei, de ser descoberto como homicida.
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2. Quanto a esse aspecto, a fantasia erótica masculina é oposta à feminina. Se esta procura a continuidade, a intimidade e a vida em comum, a outra esforça-se por excluir o amor, o compromisso, os deveres, a própria vida social. Também no livro antes citado de Li Yu, os filhos, os pais, os negócios, as cerimônias, todas as preocupações são mantidas afastadas da aventura erótica. As mulheres procuram manter preso seu homem, mas ele faz tudo para conservar sua caprichosa liberdade. Há algo nas fantasias eróticas masculinas, que é antagônico ao compromisso, à responsabilidade. As mulheres que representaram, nestes últimos anos, o ideal erótico masculino possuíam, como característica comum, o fato de não criar laços e responsabilidades. Marilyn Monroe não é uma heroína romântica. Parece dizer: “Eis-me aqui, simples, ingênua, frágil, excitável. Faça o que quiser. Não lhe peço nada, nem casamento, nem continuidade, nem compromisso, nem dinheiro. Nem percebo suas intenções, seu significado sexual”. No filme O pecado mora ao lado, Marilyn oferece-se continuamente, mas não se dá conta disso. A mulher que encarna a fantasia erótica desresponsabiliza o homem de seu desejo. Não pede ao prazer compensações éticas. “Se lhe agrado”, esta é a sua mensagem, “aqui estou, tome-me. Se quiser ir embora, de mim não terá nem aborrecimentos, nem queixas, nem súplicas, nem chantagens, nem lamentações. Não o terei preso a mim por causa de filhos, mãe, parentes, irmãos. Não preciso do seu dinheiro. Não sou ciumenta, não guardo rancor. E, finalmente, se quiser voltar, aqui estou às suas ordens.” Sophia Loren e Gina Lollobrigida não se inseriram nesse esquema. Por isso mesmo, embora sendo belíssimas, não se tornaram símbolos sexuais. O que não aconteceu com La Bardot. Nesse caso a imagem é a de uma adolescente sem inibições, sem freios. Nela o sinal da não periculosidade é um certo grau de desordem, de desleixo. Veste-se com displicência, e seus cabelos são apenas parcialmente pintados. Tudo isso indica uma categoria social inferior. É uma mocinha fácil, pode-se deixá-la sem maiores consequências.
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Falta de consequências, interrupção do relacionamento causa-efeito. O tempo como justaposição de instantes separados, sem ligações um com o outro, é o oposto do tempo da moral e da lei que recorda e não esquece. É a negação de um componente extremamente importante na mentalidade masculina: a responsabilidade. É a negação do impulso biológico que leva o macho a parar para cuidar da fêmea e dos filhos. No erotismo masculino existe um componente anárquico, anti-social, um anseio inquieto de liberdade que os próprios homens custam a admitir. O homem com frequência trai a esposa, amante, não porque esteja interessado em outra mulher, tampouco pelo gosto da conquista ou de aventura. Ele a trai para ser livre, para poder iludir sua vigilância, para sentir-se fora de sua possessividade amorosa, de seu controle. Também a mentira, a dissimulação devem ser vistas sob essa perspectiva, como proteção de uma área secreta e pessoal em que nem mesmo o maior amor tem o direito de entrar e de inquirir. O erotismo, nessa área protegida por amores e deveres, tem o sabor da liberdade caprichosa e desenfreada. Da irresponsabilidade.
3. A ética, como o amor, é vínculo, compromisso, continuidade. A liberdade do erotismo masculino pretende, ao contrário, recusar aquilo que é desagradável, que ofende, que irrita. Quer sempre ter o direito de poder escolher, elogiar, recompensar quem lhe dá prazer e de poder descartar, deixar de lado quem não lhe dá. Porém, se há alguma coisa naquela pessoa que lhe agrada, conserva-a. Mas isolada do resto. Daí a tentativa de separar o conjunto concreto da pessoa, com toda a sua complexidade e unidade, em tantas partes. Porque também uma pessoa má, perigosa, ignóbil pode ser sexualmente atraente. E então o homem deseja separar esse aspecto dos outros. Ficar apenas com a sexualidade. Colocar entre parêntesis, tanto quanto possível, seus aspectos odiosos e valorizar, elevar a primeiro plano, os positivos. Obviamente, a mulher age de maneira semelhante. Porém, mais no terreno do interesse social e econômico. Uma mulher pode resolver jantar com um homem porque ele é importante, pode também casar-se por dinheiro. Nesse caso, coloca entre
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parêntesis as qualidades negativas em troca de uma vantagem social. Mas quase nunca por uma vantagem erótica. É raro que procure num homem o desempenho sexual e deseje apenas isso. Erica Jong, no livro Pára-quedas e beijos, tenta comportar-se assim com seus amantes ocasionais, mas não consegue, e o que sente é raiva, ódio. Em geral, a mulher apenas fica excitada eroticamente se a pessoa lhe agrada de modo global. Mas, claro, às vezes pode sentir-se atraída por qualquer qualidade erótica extraordinária. Um célebre estadista francês tinha grande sucesso entre as senhoras de Paris por possuir um pênis superdotado. Mas o que atraía aquelas senhoras era muito mais a curiosidade, a competição com as outras mulheres, o fato de ele ser o presidente. Era, assim, uma apreciação ditada pelo social, não algo que a mulher escolhesse por conta própria. Por mais belo, musculoso ou viril que seja o corpo do homem, para a mulher são igualmente eróticos os gritos do público, o delírio do teatro e até mesmo um belíssimo iate.
4. Outra manifestação do erotismo descontínuo (masculino) é o refúgio, o castelo, a gruta de carne, por analogia com II tappeto da preghiera di carne, de Li Yu. Nos braços de sua amada O homem está longe de todos os tumultos do mundo. Consola-se das culpas esquecendo-as, cura suas feridas. O erotismo transforma-se na ilha que torna suportável uma vida que, de outra forma, não valeria a pena viver. Do ponto de vista masculino, a coisa é simplíssima. Basta que duas pessoas desejem fazê-lo. Não é preciso que haja nenhuma atração especial, somente boa disposição. Se estão de acordo, então pelo menos por poucas horas são capazes de criar um encantamento entre eles, sozinhos, e construir um jardim de rosas longe do mundo. Podem depois retornar a ele, ou não. Que nome dar a isso? Chamei de “encontro” aquele entre dois amigos 34. Mas é preciso ter uma expressão particular para indicar essa interrupção temporal erótica, esse encantamento limitado, essas férias do mundo, essa fusão momentânea que se realiza no abraço, no ato sexual. Ato é muito pouco, relação é muito. A unidade elementar desse erotismo é um intervalo, um intermezzo luminoso. 34
Francesco Alberoni: L’amicizia, Milão, Garzanti, 1983.
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O erotismo pressupõe a ausência de preocupações com a pessoa com quem se está tendo relações. Se existem problemas, envolvimentos externos desagradáveis, é preciso que haja um ato positivo de alheamento, de liberação. A área liberada e iluminada pode então ser preenchida pelo erotismo. Não é um espaço vazio, é um espaço esvaziado. Nele é possível concentrar-se exclusivamente no prazer erótico e sua perfeição. Como na meditação. A concentração meditativa, o erotismo como meditação (II tappeto da preghiera di carne) é tanto mais agradável quanto mais nos libera de uma frustração, de uma aridez e de uma tristeza que pode apossar-se de nós. É a essa dimensão que pertence o amante. O tempo passado com o amante deve ser um tempo livre de toda e qualquer preocupação, extraordinário. O tempo da felicidade, o tempo da paz. Um tempo separado, recortado do cotidiano. Com um princípio e um fim. Tudo o que é diferente deve ter um princípio e um fim. (Salvo o estado nascente, que é o princípio do totalmente novo e não tem fim. O enamoramento não quer ter fim.) A amante existe paralelamente a uma relação institucional. Constitui uma outra dimensão em que a pessoa se refugia e de onde se retorna ao cotidiano. A dimensão do cotidiano é aquilo de que se fala e que é notório. É o lugar dos deveres institucionais, onde se podem enumerar os detalhes, analisar as tarefas. A dimensão do amante é a separação, o duplo, o paralelo. Essa dimensão é mais serena, exatamente porque o seu tempo é limitado, a relação com o mundo é parcial. Tudo vai bem com o amante porque naquele tempo não há interferências, apenas perfeição erótica. O tempo limitado e separado é governável como uma festa, um espetáculo teatral, férias, um baile. É o único tempo em que é possível o idílio. Muita gente imagina o enamoramento como idílio. Mas não é verdade. O enamoramento é também inquietação, tormento. O idílio é possível somente por períodos limitados. No início, quando ainda não houve a revelação da paixão e o dilema. Ou então, em seguida, quando já se estabeleceu uma regra, um código para os relacionamentos internos e com o mundo. O idílio não é o produto natural da atração, mas o resultado de uma realização.
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Às vezes a figura do amante é escolhida por ambas as pessoas; outras apenas por uma. Às vezes os dois estão apaixonados, mas um quer conservar o papel de amante para evitar que o amor invada toda a existência e crie um novo cotidiano. Ou então para evitar ter de escolher. O rei Eduardo, da Inglaterra, inicialmente teria preferido manter escondido, ou parcialmente escondido, o seu romance com Wally Simpson. Da mesma opinião era certamente a corte inglesa. Estavam satisfeitos que a Simpson fosse casada, porque isso significava que não aspirava casar-se com o rei. Em vez disso, Wally Simpson pede o divórcio e quer ser hóspede do Castelo de Balmoral. Não aceitava ser relegada à posição de amante. Queria o casamento. Isso significava tornar-se rainha da Inglaterra. O mundo político e a opinião pública, porém, não admitiam essa hipótese. Colocado diante do dilema de casar com a mulher amada ou renunciar ao trono, Eduardo decide abdicar. Existem, porém, relações entre amantes, que podem durar anos e anos, até mesmo toda a vida. Principalmente quando ambos são casados. Os dois não se encontram com muita frequência, e durante o encontro não permitem a interferência de nenhum elemento cotidiano perturbador. São carinhosos, gentis, interessados apenas em dar-se prazer. Agem como dois cúmplices e cada um dá o melhor de si mesmo. O fato de essa relação estar confinada com o erotismo dá-lhe um caráter fútil, não compromissado. Mesmo que, com o tempo, se desenvolva um afeto sincero e profundo, talvez mesmo o amor. Não existe amante sem que haja limite. Limite de tempo, na oficialidade, na apresentação. Não existe amante sem que haja segredo. Quando uma relação é manifesta, pública, muda de natureza, torna-se casamento, mesmo que não tenha esse nome. O amante pertence à busca da relação não ambivalente, obtida por subtração, com recolhimento. Esse evitar, iludir, enganar o mundo, assemelha-se ao modo com que a seita hebraica Dönhmeh resistia e se contrapunha ao mundo muçulmano: dissimulando. Comportavam-se como muçulmanos, mas, em segredo, praticavam o culto hebraico.
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Possuíam os textos do Talmude escritos em livrinhos do tamanho de um dedal. Os Dönhmeh não faziam prosélitos, não queriam expandir-se. Apenas sobreviver 35. O erotismo de que falamos não se propõe ser um modelo, não se erige em norma moral. A sua liberdade é negativa, defendida de uma intrusão. Nessa situação, dissimular é mais apropriado que combater. O conflito é um esclarecimento. A escolha tende ao tudo, ao único. Esse erotismo, ao contrário, é sempre parte, delimitação. Sabe que é vulnerabilíssimo. É como o círculo mágico do exorcismo e do sacrifício. Uma simples linha no chão e que deve proteger do contato com tudo o que é impuro, contaminador, invasor, profano. Milan Kundera exprime muito bem esse sentimento atribuindo-o a uma personagem feminina, Sabina, no livro A insustentável leveza do ser. Seu amante Franz é obcecado pela necessidade de viver na verdade. Por esse motivo, certo dia, confessa à mulher Marie-Claude a sua relação com Sabina. “Para Sabina foi como se Franz tivesse forçado a porta de sua intimidade. Era como ver no vão da porta a cabeça de Marie-Claude, a cabeça de Marie-Anne, a cabeça de Alan, o pintor, a cabeça de todas as pessoas que ela conhecia em Genebra. Ela ia tornar-se, sem querer, a rival de uma mulher que lhe era totalmente indiferente. Franz ia se divorciar, e ele tomaria lugar a seu lado, num grande leito conjugal. De perto ou de longe, todo mundo estaria olhando; era preciso, de uma maneira ou de outra, representar uma comédia diante de todo mundo... O amor tornado público ganhava peso e tornava-se um fardo. Só de pensar nisso, curvava-se, por antecipação, sob o seu peso.” 36
5. O milagre da relação erótica masculina é o de uma total confiança e abandono endereçados somente ao prazer, sem qualquer dever, compromisso ou coerção. Nesse ponto, é exatamente como a amizade. Porém, a maneira de obter a paz erótica não é o aprofundamento intelectual, a confiança, a revelação, típicos da amizade. É, isso sim, o recolhimento, o silêncio, a moderação, a discrição. Só uma enorme discrição em 35
Ver Gershom Scholem: “The crypto-jewisb sect of the Dönhmeh”, in Messianic idea in Judaism, Nova York, Schcken Books, 1971, pp. 142-166. 36 Milan Kundera: A insustentável leveza do ser, publicado no Brasil.
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todos os outros campos consente o desenfreamento erótico, porque ali não há nada que possa corromper. É um erro pensar no erotismo masculino como revolta 37. Isso é próprio dos movimentos e, por isso, do enamoramento. O amor se sente perfeito, exemplar. Por isso tende a tornar-se manifesto, a gritar sua beleza, a exprimir-se em atos públicos, em relações sociais. Os namorados não se separam, não se escondem, mostram-se, dão-se as mãos. Também o homem, quando está enamorado, age dessa maneira. Mas em seu íntimo, tem plena consciência de que a sociabilidade, a exemplaridade, a mundanidade leva os indivíduos para fora de si mesmos. Coloca-os sobre o palco onde representam. E a representação é sempre serviço. É sempre feita para os outros, não para si mesmos. O erotismo feminino tende a abrir-se para o mundo, a caminhar sob o sol, entre as pessoas. A mulher sonha fazer amor sob o céu estrelado, à beira do mar, na floresta, onde a natureza é mais bela. Fica eroticamente excitada quando caminha de mãos dadas com o seu homem por uma praça, ou quando entra numa festa de braços dados com ele. Também o homem fica excitado se a mulher é bonita, ou quando está enamorado. Também o homem é orgulhoso. Pode gabar-se mais da mulher do que de uma conquista. Entretanto, em seu íntimo, seu erotismo se exprime mais completamente nos ambientes fechados. Há no homem um componente erótico muito forte que desdenha o externo e valoriza o interno. Nesse erotismo não se espera reconhecimento, triunfo social, glória, mas, ao contrário, autonomia, independência, autarquia: abro mão. A vitória está no abrir mão, no criar o microcosmo. Triunfei sobre o mundo porque a ele contrapus o meu mundo, de igual para igual, de soberano a soberano. Conquistei minha liberdade sobre a opressão, defendi minhas fronteiras. Ninguém pôde entrar, por isso venci. Não devo esperar reconhecimento algum, porque não dependo deles. Repeli todos os ataques, salvei a minha pátria e o meu reino.
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Como afirma Georges Bataille: L'erotismo, trad. ital., Milão, Mondadori, 1969.
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6. Entretanto, também o livro de Li Yu termina com o arrependimento, com o abandono do erotismo. A vida erótica acaba sendo considerada um período de erro. E sem qualquer influência judeu-cristã. Porque o erotismo masculino é apresentado, sempre, como exemplo de vida depravada que não deve ser imitada. É essa uma percepção hipócrita para enganar a censura ou existe algo de mais profundo? O significado é mais profundo. Sim, esse erotismo é parte importantíssima da vida, porém não a exaure, não pode ser tomado como essência da vida. O erotismo consente em fugir à contingência, em refugiarse na felicidade, em anular o tempo. Mas não em resgatar a contingência, dominar o tempo. O erotismo é um refúgio com relação ao mundo externo. É absolutamente perfeito esquecendo-o. Não tende a impor o seu projeto sobre a vida, dominando-a: a decidir o que foi, o que é, e o que será. Por isso, no fim da vida, o erotismo deve ceder lugar a quem domina o tempo: à sociedade, ao amor, a Deus, a Buda.
8 1. Seduzir, para o homem, não significa provocar uma emoção erótica indelével, significa ir para a cama, “fazer amor. Isso não quer dizer, porém, que ao homem não agrade o jogo da sedução por si mesmo, da sedução sem objetivo, como puro desejo de agradar e de despertar prazer. Aliás, é fortíssima no homem essa necessidade de cortejar e, se for inibido, cai, em geral, a sua capacidade de excitação erótica, desenvolvendo-se um penoso sentimento de frustração e depressão. Pode-se observar isso nos grupos de adolescentes masculinos: quando um deles faz a corte a uma moça, é ridicularizado pelos outros. Depois de algum tempo o rapaz torna-se inibido, tímido, até mesmo temeroso. Observa-se também, às vezes, nos relacionamentos matrimoniais, quando a mulher proíbe o marido de olhar para outras mulheres, agredindo-o se ele o faz. O homem sente-se completamente mutilado em sua liberdade, experimenta uma sensação de constrangimento, de aprisionamento. Algo parecido ao sentimento experimentado pela mulher quando lhe proíbem cuidar do próprio corpo,
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fazer-se bela para agradar. Como já dissemos, todo homem sente irresistivelmente dentro de si o direito de procurar a mulher, e a mulher, de ser procurada e de escolher; isso fora de uma finalidade sexual explícita. Porém, a finalidade última da corte masculina, a fantasia que se esconde atrás do jogo, é fazer amor. E quando a corte produz um encontro erótico, essa fantasia torna-se desejo. Conseguir fazer amor é para o homem o ponto de chegada, a conclusão. Se uma mulher aceita a relação erótica, mas lhe recusa a sexualidade, recusa-lhe o essencial. O afeto, a intimidade, as carícias não lhe bastam, não podem bastar-lhe. No mais profundo da alma masculina, em sua mentalidade está radicada a ideia de que se uma mulher lhe concede a sua sexualidade está lhe concedendo ela própria, inteiramente. Por isso o homem que fez amor com uma mulher diz que a conquistou. Por isso, nas gabolices entre rapazes destacam-se as conquistas realizadas. O número de mulheres que tiveram são como a quantidade de aviões abatidos, vitórias conquistadas. O mesmo não acontece para a mulher. Ela pode decidir entregar-se sexualmente, envolvendo-se com intensidades diversas. Pode envolver-se muito pouco, depois um pouco mais, às vezes muito ou então completamente. O caso limite á a prostituta que se entrega não dando nada e que simboliza o seu fechamento total jamais beijando o homem na boca. Aquilo que para o homem é um ato descontínuo: ou sim ou não, ou ato sexual ou nada, para a mulher é uma gradação de aberturas, como uma sequência de portas que ela abre somente ao homem que, aos seus olhos, o merece. Por isso a mulher sente-se profundamente ofendida quando o homem com quem se relaciona sexualmente a considera uma conquista, tratando-a como se ela se tivesse tornado propriedade sua.
2. Aos olhos masculinos, a mulher vestida está distante, protegida. A roupa e a maquiagem têm sempre um duplo significado: de convite e de obstáculo. Duas forças que podem ser diversamente dosadas. Em certos casos a mulher acentuará o convite, se aquele homem lhe agrada, se quer atraí -lo. Mas o homem sente grande dificuldade em decifrá-lo. Vimos que, bem
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no íntimo, a maior parte dos homens tem medo da beleza feminina. São atraídos por ela, mas ao mesmo tempo a temem. A mulher que se faz ainda mais bonita para agradar pode, por isso mesmo, dar ao homem a impressão de ser ainda mais inacessível. Além disso, na fantasia erótica masculina, as roupas, quanto mais elegantes, refinadas, finas e femininas, mais simbolizam uma diferença, uma distância, um obstáculo, um teste. Seduzir significa inverter essa situação. Seduzir significa que essa linda desconhecida, a secretária impecável atrás da escrivaninha, a grande senhora envolta em peles ou num vestido de noite, de um momento para outro torna-se uma amante apaixonada. No íntimo, o homem não acredita em sua capacidade de seduzir. A sedução, para ele, é sempre um milagre. Quando acontece, quando a mulher vestida se despe, é porque ela assim o decidiu e ele só pode sentir-se estupefato e feliz. Mesmo o dom-juan mais cínico fica emocionado quando uma mulher desconhecida entrega-se a uma intimidade inimaginável poucos minutos antes. Para o homem, a sedução nunca é motivo de triunfo, mas de encantamento. Jamais causa uma sensação de superioridade, mas de reconhecimento. Nada causa maior admiração e espanto a um homem do que a transformação da mulher que se entrega 38. De repente, quando menos espera, a desconhecida se comporta com ele como se tivesse amadurecido um longo relacionamento, uma profunda confiança íntima. Como se fosse sua amante há longo tempo, como se estivesse apaixonada. É esse o motivo pelo qual, principalmente no passado, os homens se julgavam verdadeiros “rouba-corações”. O homem não sabe que a mulher já o estudou, o pôs à prova, abriu lentamente sua guarda e mesmo agora, enquanto se entrega sexualmente, não se dá inteiramente. O homem, que ignora essa gradação silenciosa tipicamente feminina, é levado a acreditar numa grande paixão ao ver uma disponibilidade sem reservas, tamanha avidez pelo seu corpo, seu esperma, seus odores, um tal desenfreamento impudico. 38
Maria Pia Pozzato já havia observado isso estudando o romance cor-de-rosa, mas sem compreender que esse não é um ponto de vista feminino, mas masculino. A mulher quer provocar essa emoção e essa perturbação. Maria Pia Pozzato: II romanzo rosa.
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A experiência de transformações inesperadas e maravilhosas deixa no homem uma impressão intensa, uma lembrança indelével. Afinal, o dom-juan procura mesmo é essa emoção. Quer renová-la indefinidamente, sentir a cada vez o êxtase do inacreditável. Para conseguir isso, porém, tem de colocar-se em antagonismo com a paixão que suscitou. Tem de impedir que a onda erótica da mulher o envolva, o prenda, torne-se continuidade. Porque se se tornar continuidade o espanto maravilhoso da sedução se esvai. Mas também o homem deseja, no íntimo, suscitar uma emoção irresistível, ser amado, ser desejado totalmente. Também ele busca na mulher uma paixão erótica sem freios. Os símbolos da sedução feminina prometem esse delírio emotivo e sensual. O homem deseja a onda emocional da mulher, mas, ao mesmo tempo, existe nele uma necessidade de descontinuidade. A mulher deve então afastar-se para que possa novamente encontrá-la. Deve tornar a ser elegante, “vestida”, distante, para que ele possa reencontrar a desconhecida. A mulher sabe dessas coisas. Aliás, já vimos, falando da sedução feminina, que a mulher procura “fazer-se” continuamente diferente para conservar o interesse erótico de seu homem. Também dissemos, na ocasião, que a emoção provocada pela beleza feminina nunca é duradoura, que o homem se afasta, motivo pelo qual a mulher deve renovar seu encanto. De qualquer forma, portanto, a mulher é obrigada a usar sempre a arte da sedução, mesmo quando gostaria de ser apenas “ela mesma”, ser apenas a “bela adormecida”. E, muitas vezes, isso lhe pesa.
3. É muito difícil para o homem saber se a metamorfose amorosa da mulher é sincera ou simulada, se é produto do amor ou artifício da sedução. Também a prostituta, uma vez combinado o preço, simula interesse, admiração, excitação erótica. O fato de ela não beijá-lo na boca nada significa para o homem. Para ele a mulher está eroticamente excitada se elogia seu corpo, se grita de prazer, se dá a entender que nunca viu um membro tão excitante, se lhe beija o sexo. E isso, a grande prostituta, a cortesã de classe, sabe fazer muitíssimo bem. Como, então, distinguir essas atitudes do amor, da paixão?
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Por outro lado, o homem também deseja interromper o fluxo emocional, a continuidade erótica, e a cortesã consegue isso com perfeição. Porque conhece seus desejos. Sabe que ele não quer ser sufocado por afeto, atenções, que não quer ser “amarrado”. Daí resulta um paradoxo; o homem é sensível sobretudo ao fascínio da mulher que usa racionalmente as artes da sedução. A Bela Adormecida tem motivos para temer o poder da feiticeira. Os perigos e as angústias de que falam os romances cor-de-rosa são perfeitamente justificados. Outro fato paradoxal é que o homem, quando uma mulher se entrega a ele com muita facilidade e de modo desabrido, tem a impressão de que ela o faz por cálculo, ou por um motivo, isto é, que age como uma prostituta. A expressão pejorativa “é uma puta” quer dizer, afinal, que ela finge, que engana, que usa sua sexualidade com objetivos não eróticos. Não nos esqueçamos de que, para o macho, o prazer sexual é um fim por si mesmo. A ideia de que é usado com outra finalidade o perturba. A ideia de que a excitação erótica possa ser simulada o inquieta. Porque ele não pode fazer isso, porque nele a ereção é uma prova que não se pode falsificar. O homem também pode equivocar-se a respeito do desejo feminino de continuidade. A mulher deseja estar com o homem que ama ou que lhe agrada. Deseja viajar com ele, ver as mesmas coisas que ele vê. Deseja ser admirada ao lado dele nas festas, mostrar-se em público. Tudo isso faz parte de seu erotismo espontâneo. Enquanto o homem, quando a mulher lhe pede essas coisas, tem a impressão de que a ela não interessa o erotismo, mas o mundanismo. Também aqui volta-se à imagem da cortesã que dá o seu sexo porque quer algo em troca. Sua verdadeira intenção está em outro ponto. Essa dificuldade que o homem tem de compreender se a mulher age por amor ou por interesse suscita nele uma sensação de desconforto. 4. Em suas fantasias, o homem deseja todas as mulheres, gostaria de fazer amor com todas. Sente dentro de si um desejo sexual inexaurível, renascente. Deseja, como na pornografia e na prostituição, mulheres que se oferecem a ele continuamente. Em vez disso, na situação real, quando a mulher se oferece a ele com insistência, quando ela quer fazer amor com ele intensamente, continuamente, seu interesse
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decai e ele se retrai, sente-se impotente. Se a mulher, então, toma a iniciativa, se ela deseja mesmo uma sexualidade extraordinária, se ela se comporta verdadeiramente como ele a imagina na pornografia, então é ele que se fecha, que fica com medo. Habituado a pedir, o homem que construiu sua vida fantasiosa sobre o pedir não sabe dizer não quando o papel se inverte. Então é o seu organismo que se recusa. Não consegue mais ter ereção, ou então não consegue mais ejacular. Por Isso as mulheres dizem que o homem, na verdade, tem medo da sexualidade feminina e que tem necessidade de contínuas, patéticas reafirmações de sua virilidade. Com a sexualidade descontínua, a tendência a identificar o erotismo com o orgasmo ou pelo menos com a penetração, o homem não pode aderir pontualmente a um erotismo difuso, amoroso, cutâneo, olfativo, tátil, onde os orgasmos se sucedem de
modo
contínuo
e
o
abraço
erótico
parece
durar
indefinidamente. O homem sonha em fazer amor, não em estar num
contínuo
estado
orgástico.
Mesmo
que
depois,
na
realidade, passe dias inteiros abraçado à sua amada, mesmo que passe a noite fazendo amor com ela, para ele o tempo será constituído
de
vários
inícios.
Cada
vez
será
como
se
encontrasse a sua mulher pela primeira vez, como se a despisse pela primeira vez, como se a visse nua pela primeira vez, maravilhado com o milagre da sedução como da primeira vez. O descontínuo masculino vive dessa ilusão do início, da surpresa, do diferente, da descoberta. Por isso tem horror do que lhe aparece como repetição, hábito, gesto esperado. A exigência sexual feminina o assusta e destrói seu erotismo, porque lhe lembra o cotidiano, a repetição, o dever. A sedução feminina, como já vimos, é contínua criação do encantamento do novo. E é por isso que acende o desejo masculino. Se a mulher pede o sexo como continuidade e repetição, produz no homem um movimento inconsciente de desinteresse e de recusa, que se transforma em impotência. Como a frigidez feminina aparece quando falta sedução por parte do homem, assim também a impotência masculina é sintoma da falta de sedução por parte da mulher.
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9 1. Às vezes, de uma relação amorosa, o homem consegue recordar-se com grande nitidez de apenas alguns momentos eróticos. Para isso, anula, coloca entre parêntesis a história da relação, as emoções complexas, isola a parte erótica, elabora-a, faz dela um caso onde se insere fantasticamente. É como se de um filme de amor, em que existem algumas fortes cenas erótico-amorosas, tivessem sido cortadas apenas estas, e montadas depois fora do contexto. O isolamento permite colocar em evidência e relembrar somente a parte mais bela para ele, mais agradável, mais triunfal da experiência. Ele tende a esquecer completamente as etapas emotivas mais importantes do desenvolvimento da relação, para lembrar com intensidade impressionante alguns momentos, algumas particularidades eróticas, como se fossem o símbolo, o essencial da própria relação. O fenômeno é semelhante às “lembranças superficiais” descobertas pela psicanálise freudiana. A recordação erótica, porém, ao contrário destas, não é uma reelaboração imaginária. É perfeitamente real, mas é, ao mesmo tempo, supradeterminada no nível simbólico, possuindo uma extraordinária força evocativa. Quase sempre essas lembranças masculinas são visuais e, na maior parte das vezes, têm a ver com o início da relação erótica, o momento de entrega da mulher, o extraordinário momento da “metamorfose”. As lembranças da mulher, ao contrário, não se limitam apenas ao ato sexual, não são constituídas somente por um visual particular. Elas evocam, antes de tudo, uma emoção completa, um evento. No filme de Fellini, Cidade das mulheres, o sr. Cazzoni possui uma galeria de retratos de mulheres onde estão registrados seus gritos, estertores, suspiros, as frases entrecortadas de seus orgasmos amorosos. É uma galeria de troféus, onde a mulher é obrigada a se reconhecer, mesmo que não queira. Ele a constrange a admitir que ela é exatamente aquela que gritava “Meu amor, mete, mete”. Mesmo que agora queira esquecer tudo o que aconteceu, por sentir que foi uma fraqueza, uma rendição. Essa galeria faz com que a mulher recorde — através das frases durante o orgasmo — toda a sua
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história amorosa, o que não existe mais e que ela quer esquecer, se já não esqueceu. Por isso gostaria de recuperar aquele fragmento, como desejaria ter de volta suas fotografias, quando o amor já acabou. O sr. Cazzoni, ao contrário, só quer recordar aquilo e lhe impõe sua lei. Na cidade feminista a fantasia masculina tornou-se um pesadelo. Dissemos anteriormente que a personagem feminina mais erótica é aquela que não cria problemas, responsabilidades, a mulher burra que nem ao menos reconhece sua força sedutora e que tem memória fraca. Agora sabemos que o homem, exatamente quando faz essa fantasia, conhece o peso emocional do real. Assim como conhece a história real de sua vida, também dela se recorda com prazer somente de uma parte. Sabe que havia o obstáculo, a resistência e também o amor. Mas na elaboração fantasiosa trata-os como forças domadas sobre as quais triunfa a liberdade soberana do vencedor. É como o saque após a conquista de uma cidade. O guerreiro vitorioso profana tudo, invade todos os lugares sem encontrar mais qualquer resistência, nem interna, nem externa.
2. Essa experiência tem algo a ver com Sade e o sadismo? Georges Bataille, em seu livro O erotismo, deu muita importância a Sade, definindo o erotismo como a presença da vida dentro da morte e a presença da morte dentro da vida. Para Bataille, existem na natureza duas forças. Uma que tende ao individualismo, e o indivíduo quer sobreviver. Outra que tende à fusão e, dessa maneira, à decomposição do indivíduo, à sua morte. Esta segunda força é a violência. No erotismo as duas operam. O indivíduo quer permanecer ele mesmo e, todavia, fundir-se com outro. Mas no mais profundo do ser a fusão permanece como destruição, violência, morte. Sade não fez outra coisa — na opinião de Bataille — que exasperar esse pólo dialético do erotismo. O erotismo é sempre, portanto, transgressão, violência, profanação, vontade de anular-se e de anular. Essa posição de Bataille teve muita aceitação, mas não é sustentável. Não por ser truculenta, ou por ser expressão de uma concepção da sexualidade como pecado. Mas porque junta coisas heterogêneas, como, por exemplo, a excitação coletiva
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da multidão, da orgia, o orgasmo sexual, o transe hipnótico e, finalmente, o êxtase dos enamorados. Coisas demais. A fusão amorosa do enamoramento, por exemplo, não é uma anulação dos indivíduos do indistinto. É mais a aparição de algo completamente novo em que os dois indivíduos se transfiguraram. É um mutante que entra no mundo e procura realizar-se nele. O casal enamorado é uma formação social dotada de uma imensa energia que diz respeito criticamente a seu passado e projeta seu futuro. Gera valores últimos, fins últimos. Potencializa, não enfraquece a vontade. O estado nascente nada tem a ver com a decomposição da morte. É um renascimento. É o surgimento de uma nova forma de vida capaz de esperar e de querer. A embriaguez estática da orgia é algo completamente diverso. Durante a excitação coletiva, os indivíduos não se reconhecem mais, não conservam sua inconfundível unicidade. É o contrário do enamoramento. Por outro lado, terminada a orgia, cada um volta a ser como antes, um indivíduo isolado. Na excitação coletiva da multidão, os indivíduos são ainda mais anulados. Na orgia, procuram-se, encontram-se, procuram dar-se prazer. Na multidão estão apenas juntos, espremidos, gritando. Suas mentes estão alteradas, perderam a capacidade de julgamento e, na realidade, não pensam mais. São arrastados por emoções, por slogans. As criaturas assim regredidas marcham juntas, ritmicamente, e se transformam numa massa. Por que confundir esse estado idiota com a lúcida tensão do amor? Ainda mais diversa é a situação do transe hipnótico 39. Aqui as características da multidão tornam-se exaltadas. Dentro de um espaço definido e por um tempo determinado, os indivíduos perdem sua individualidade e se sentem possuídos por uma força ao mesmo tempo profundamente pessoal e transcendente, uma força divina. Porém, o grupo não possui a estupidez da multidão. A experiência extática tem um princípio e um fim, e cada um, ao final do culto, reencontra a sua personalidade, revigorada e enriquecida.
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Georges Lapassade: Saggio sulla trance, trad. ital., Milão, Feltrinelli, 1980.
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3. Sem a formação de uma coletividade e, portanto, sem os deveres, responsabilidades e vínculos que o amor comporta, o erotismo se dissolve completamente no ato porque é puro prazer. Inútil como o jogo, não leva a nada. Quem não está disposto a tomá-lo como fim em si mesmo enlouquece, pois jamais poderá justificá-lo. É como atirar pedras num lago e observar as ondas. Não é profundo, nem sublime. Não é heróico, não provém das coisas e não as domina. Justapõe-se a elas, coloca-se a seu lado. Pode ser um sorriso ou uma careta. A sua imoralidade deriva do choque com os deveres sociais, com as responsabilidades do trabalho. Sob esse aspecto Bataille tem razão, como também tem razão quando diz que esse erotismo profana, violenta a beleza. Mas não por maldade. Faz isso por indiferença, porque quer o seu prazer. Assim, choca-se frontalmente com a outra fonte do erotismo. Aquele que descrevemos como sendo mais típico da mulher. O erotismo que brota do amor, que tende ao contínuo, que se quer eterno, que produz um projeto de vida.
Não existe apenas uma raiz do erotismo, mas duas. Uma é mais profundamente presente nas mulheres e a outra, nos homens. A primeira tende a produzir uma comunidade de vida, unida pelo amor. A segunda, ao contrário, não tem projetos, vive de fragmentos. Não é justo estabelecer se uma é superior à outra ou se, no futuro, uma prevalecerá definitivamente sobre a outra. Ninguém pode sabê-lo. Muito importante, isso sim, é mantê-las logicamente distintas. O erotismo a que se refere Bataille pertence ao filão masculino. Sade leva ao extremo, até a loucura, a tendência à fragmentação, às irresponsabilidades típicas do pólo masculino do erotismo. Sade usa imagens cruéis de tortura, de morte, de profanação, de esquartejamento, como símbolos de um processo emotivo e mental de separação. Assim, tem-se a impressão de que as vítimas não sofrem realmente. Devemos ter presente que a agressividade causa prazer somente quando se dirige a um objeto odiado. Se fazemos mal a quem amamos, sofremos com isso. O princípio do prazer funciona somente com a premissa de que a descarga de amor ou de ódio deve
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atingir o objeto apropriado, não pode errar o alvo 40. Sade não é um guerreiro que exulta sobre o corpo do inimigo assassinado. Em seus livros não encontramos inimigos, não há tampouco ódio. O que existe é pura violência gratuita, física e moral, satisfeita consigo mesma e que não provoca sofrimento. Isso significa que o ato é puramente simbólico. Que o que é lacerado, violentado, não é na realidade um corpo, mas algo diferente. Tendo como base a análise feita, esse algo diferente é uma relação estruturada. É a relação amorosa e, em particular, a forma específica do erotismo feminino.
4. Quase todo mundo teve a impressão de que A história de O, de Pauline Réage, foi escrita por um homem. Porque é uma fantasia (o mito) tipicamente masculina, precipitação histórica de uma sociedade em que existe um abismo entre homens e mulheres. Até muito recentemente, os dois sexos mantiveramse separados. Cada um tinha suas próprias tarefas, problemas, dramas, fantasias diversas. Nessa sociedade os homens imaginavam e desejavam uma mulher que não tinha desejos sexuais, que não possuía seu próprio erotismo. Uma mulher que era psiquicamente assexuada, pudica, frágil e passiva. Somente o homem desejava o sexo. Desejava-o contínua e obsessivamente. A mulher dizia não, sempre e somente não. Para realizar seu desejo, o homem precisava obrigá-la a fazer algo que ela, por si mesma, jamais teria imaginado. Para chegar até aí, tinha dois caminhos a seguir. O primeiro era a sedução. Seduzir significa dobrar sua vontade reticente, forçando-a a dizer sim, a querer seu desejo. A força sedutora mais poderosa é o amor. A mulher ama com amor espiritual e, por amor, está disposta a fazer qualquer coisa. Como O, que aceita ir a Roissy, despir-se, ficar de quatro, abrir as pernas e depois deixar-se possuir por todos, seguidamente. O outro caminho é a violência, o estupro. Em A história de O aparecem ambas as coerções, passam-se continuamente de uma para outra.
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A exposição desse modelo teórico está no livro de Francesco Alberoni, Movimento e istituzione, Bolonha, II Mulino, 1981, cap. IV.
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Nesse tipo de fantasia, os homens são nobres, aristocratas, guerreiros, e as mulheres, presas de guerra, cujo orgulho e vontade própria foram totalmente pisoteados e apenas graças a isso podem tornar-se objetos eróticos. Antes de ser violentada, psíquica e fisicamente, a mulher não é, na realidade, um objeto erótico. É uma mãe, uma irmã, uma ama, uma noiva. Sempre vestida, sempre austera, sempre pudica, sempre casta. A liberação do desregramento erótico acontece profanando essas imagens, cancelando-as, fazendo emergir a animalidade. O erotismo somente aparece com a destruição dos outros papéis, outros liames sociais de que a mulher é portadora e símbolo. A violência do sadismo não é, portanto, dirigida contra as pessoas, contra os corpos, mas contra os símbolos, os papéis desempenhados. É por esse motivo que as mulheres, após terem sido chicoteadas, acorrentadas, humilhadas de todas as formas, continuam belas, bem dispostas, com a pele suave e intacta. O erotismo sádico não toca os corpos. Estes são apenas o símbolo de outra coisa: as instituições matrimoniais, familiares, os laços amorosos contínuos do erotismo feminino que o erotismo masculino devasta. O fato de esse livro agradar até os dias de hoje mostra que o erotismo ainda tem necessidade de rebelar-se para encontrar sua expressão, isto é, que ainda estamos numa época bárbara. Seria porém um erro imaginar que tudo isso esteja a ponto de desaparecer. Aquém e além dos símbolos institucionais e dessexualizados, continua intacto o choque do erotismo masculino e feminino, do erotismo como fragmento e do erotismo como continuidade amorosa. O componente sádico do erotismo nasce da violência de sua luta interna, da dialética entre suas duas polaridades.
10 1. Por que o estupro é tão traumatizante? Porque é nele que a sexualidade masculina, como desejo impessoal, descontínuo, irresponsável, se choca frontalmente com o
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desejo feminino. O homem não compreende a natureza do trauma. Em suas fantasias ele imagina que, se dez mulheres o possuíssem, o derrubassem no chão, o obrigassem a fazer o que quisessem, ele não se perturbaria nem um pouco. Na realidade, isso não seria verdadeiro, mas o é na imaginação. Para o homem, o estupro é uma fantasia erótica positiva; para a mulher, negativa. Acima de tudo, ele não compreende por que o estupro possa ser traumatizante para uma prostituta. Mas a verdade é que as prostitutas sentem-se igualmente ofendidas, lesadas pelo estupro. Também para elas é intolerável serem agarradas à força, contra sua vontade. A prostituta se entrega, faz qualquer coisa com qualquer um, mas é ela quem decide. Faz isso por necessidade econômica, pois cupidez, mas o ato de abrir as pernas é decisão sua. É um ato motivado, objetivando uma vantagem. No estupro, ao contrário, não há troca, não há vantagem. É realmente “a bolsa ou a vida”. Entregar-se sexualmente é, por- tanto, como entregar todo o seu dinheiro. Entregar-se é tão precioso como entregar a bolsa. É o mesmo que entregar uma riqueza. Entretanto, fisicamente, nada é perdido. O que é perdido então? O que é roubado da estuprada? Sua liberdade de decidir, de escolher. Se a obrigam a entregar-se é porque não quer fazê-lo. Em suas fantasias o homem se imagina passivo. Está sempre pronto a dar-se. A mulher, ao contrário, tem necessidade absoluta de escolher entre o sim e o não. O direito de não se entregar, de dizer sim ou não é a sua força. Esse direito tornou-se constitutivo de sua identidade social. É ela que, entregando-se (ou não), decide sobre si mesma, tem um poder de autodeterminação, é uma pessoa humana. A vagina é fechada, não se vê, deve abrir-se. Somente um ato de vontade é capaz de fazê-la abrir-se. O pênis, ao contrário, não exige vontade. A ereção é involuntária. Dar-se significa querer. Para o homem, ter uma ereção, desejar, não significa querer. Em linguagem popular e vulgar diz-se que a mulher “dá”. No entanto é a vagina que toma, do ponto de vista físico 41. Por que então diz-se que a mulher “dá”? É que esse “dá” significa a liberdade de dar ou não, de acordo com sua vontade, assim como se dá dinheiro, um beijo, algo nosso que 41
Elisabetta Leslie Leonelli: Al di la delle labbre, Milão. Rizolli, 1984.
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tem valor. Pode-se dar em troca, para obter qualquer coisa, ou como um presente. No estupro a mulher não é mais livre para dar ou não dar, é tomada à força. Somente a mulher pode dizer “Tome-me”. Se não o diz, se não se abre, pode somente ser dilacerada. O estupro é uma dilaceração da vontade. No homem, essa violação da vontade não pode acontecer com respeito ao sexo. Claro que se pode obrigar o homem a fazer também algo sexualmente desagradável. Por exemplo, obrigá-lo a deixar-se sodomizar. Mas também, nesse caso, ele sente apenas repugnância, nojo, dor, humilhação. A ereção no homem é involuntária. Não é possível obrigar um homem a ter uma ereção e um relacionamento sexual ativo com alguém (homem ou mulher) que não lhe agrade, que ele rejeita. A única situação equivalente à do estupro, no homem, é encontrada fora do campo erótico. Por exemplo, quando está em jogo uma crença, uma ideologia. Como obrigar um cristão a cuspir em uma cruz. Nesse caso, a pessoa é obrigada a recusar, desprezar, abjurar tudo aquilo que para ela é o valor máximo, a fonte de todo o valor. A querer aquilo que a vontade não deveria querer, sob pena da perdição de si mesmo, da danação. No ato sexual não existe nada de semelhante. A correspondência existe somente se examinamos, não o ato, mas a relação. Também no homem a vontade pode ser violentada. Mantendo-o sempre perto, aprisionando-o, não o deixando partir. Retendo-o, como se fosse um prisioneiro ou um menino. No homem, o desejo de poder andar com as mulheres que quer é o equivalente feminino da possibilidade de entregar-se somente ao homem que quer. O exercício da vontade é o mesmo. Apenas o ponto de partida é diferente: o homem deve pedir, à mulher é pedido. O homem deve ser livre para pedir; a mulher, para escolher.
2. Mas há um segundo motivo. O homem é fisicamente mais forte que a mulher. Possui músculos mais fortes, uma estrutura óssea mais robusta, em geral é mais alto. Durante milênios foi caçador e guerreiro. Por isso mesmo é mais agressivo. Ama a competição, a luta, os esportes violentos. Sem
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dúvida, a mulher é atraída pelo corpo do homem, pela sua força, mas, ao mesmo tempo, sente medo. Quando o homem a agarra com forca, com brutalidade, sente-se em seu poder. A mão é como uma garra que a machuca e à qual não se pode subtrair. O abraço lhe tira a respiração, a sufoca. A violência do homem evoca um temor antigo, primordial, radicado na parte mais profunda da alma feminina. Desencadeia um pânico biológico capaz de conduzir até a morte. Mas algo desse medo com relação à força e à violência do homem continua a existir em todos os momentos. É por isso que a gentileza tem tanta importância para a mulher. A gentileza dos gestos indica a da alma, significa que não tem nada a temer. Que aquela força, aquela violência não podem se voltar contra ela. Por isso a mulher precisa tanto de amor, porque somente o amor, principalmente aquele feito de ternura, afasta para sempre o espectro da violência. O grande e forte corpo viril não mais é perigoso e nele a mulher pode refugiar-se com segurança. A mulher deseja ser abraçada pelo homem, mas o abraço deve ser acolhedor, protetor, amoroso.
3. Quando procuramos entrar em contato com outra pessoa, isso constituiu sempre uma ruptura, uma perturbação. Escrevem Bruckner e Finkielkrault: “É preciso justificar e, se possível, cancelar a ilegalidade. Sou o vendedor de mim mesmo, e como um vendedor deve evitar que lhe batam com a porta na cara antes que tenha tido tempo de oferecer a mercadoria, assim também precisa usar filigranas de astúcia para transformar instantaneamente a careta do outro em sorriso, e o seu retraimento em curiosidade” 42. Isso acontece quando partimos do nosso desejo, queremos satisfazer uma necessidade nossa. Se, ao contrário, partimos do desejo do outro, se lhe apontamos, por exemplo, um perigo, não precisamos desculpar-nos. E nem mesmo se nos chama a atenção algo que, instintivamente, sentimos que deve interessar a ele, e lhe dizemos. Suponhamos que vemos um meteorito cair ou um deslumbrante disco luminoso cruzar o 42
Pascal Bruckner, Alain Finkielkrault: II nuovo disordine amoroso.
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céu. Não pedimos desculpas, nós o mostramos e basta. A desculpa serve porque, na realidade, temos um objetivo próprio, uma necessidade nossa. Porque queremos levar (seduzir) o outro a aceitar essa nossa necessidade, o brigá-lo a fazer aquilo que não é um desejo seu. Daí a desculpa. Desculpo-me porque introduzo o meu desejo e este não tem qualquer direito de ser introduzido se não consigo suscitar o desejo do outro. Quem inicia uma conversação deve, após desculpar-se, dizer imediatamente algo que a torne desejável, que torne interessante o que se segue. Algo que atinja ou evoque, imediatamente, o interesse do outro: uma curiosidade sua, uma necessidade sua. Que divirta o outro. Se não consegue fazê-lo, não pode continuar o relacionamento. Torna-se simplesmente um importuno. Isso vale em todas as relações, mesmo quando não está em jogo o erotismo. Mas se ele está em jogo, particularmente quando o homem aborda uma mulher, então ambos sabem o que este realmente quer. Entre ele e ela está o desejo sexual. Em todos os outros casos, uma necessidade, após as desculpas apropriadas, pode ser mostrada. Podemos pedir “por favor” para satisfazer um desejo nosso. Mas se um homem pede a uma mulher que “por favor” faça amor com ele, recebe um não. Para entregar-se, uma mulher deve ser atraída, sentir excitação. Pode também fazer isso por amizade, para tranquilizar o marido, o noivo. Pode fazê-lo também por dinheiro. Entregarse, porém, é sempre um ato de vontade e necessita uma justificação. A necessidade ou o desejo de um homem não são uma justificação. Até pelo contrário, um homem que pede “por favor” para fazer amor porque está com vontade, porque lhe agrada, causa apenas repugnância. A mulher se dá conta de que aquele homem poderia fazer o mesmo pedido a qualquer outra. Que ela foi escolhida como meio de detumescência, não como um fim. Repugna à mulher ser meio de detumescência. O homem se sentiria orgulhoso. Seu sonho é encontrar uma mulher que lhe diga “Por favor, faça amor comigo, estou cheia de vontade, uma vontade louca. Faz um mês que não faço amor”. O homem ficaria satisfeito, mesmo que a mulher não se dirigisse a ele pessoalmente, como indivíduo único, mas como aquele que lhe
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pode dar prazer, aliviar sua tensão. A mulher, ao contrário, sente repugnância. Se não é dirigido a ela individualmente, com amor, com admiração, e se não a excita com o mistério e o fascínio, o desejo do homem lhe causa nojo. Isso explica o exibicionismo masculino. O homem mostra o pênis intumescido para excitar, e a mulher grita. O grito não é somente repugnância, é também medo. Medo da violência. Se o homem insiste na necessidade, a repugnância se transforma em medo. Porque a necessidade justifica a violência. Preciso; portanto, dê-me! Preciso, estou necessitado; portanto a obrigo! No decorrer de milênios a mulher aprendeu a temer a necessidade masculina. Por esse motivo obriga o marido a controlar seu desejo, a preocupar-se com aquilo que interessa e agrada a ela, mulher. Se quer despertar interesse, o homem deve dissimular seu desejo sexual. Não pode exibi-lo. A mulher não o quer. Todos os homens sentem desejo sexual em relação a ela. Ela se preparou para estimulá-lo, para agradar. Tem isso como certo. O que espera é que o outro consiga disfarçá-lo, e seja capaz de tornar-se agradável, de fazer-se desejar. Aliás, já sabe que é isso que ele quer. Todos querem tornar-se agradáveis, parecem indivíduos
únicos,
inconfundíveis,
desejáveis
por
suas
qualidades individuais, pelas suas absolutas especificidades, as suas diferenças. Ela, como mulher, já o fez completamente. Fez-se interessante, desejável por meio de cuidados com o corpo, a maquiagem, as roupas, a maneira de cruzar as pernas, o olhar. Ao homem que a aborda está, portanto, reservada a tarefa de agradar naquele momento, de fazer a representação apropriada. A mulher já está em cena. Já despertou o desejo do homem. Agora é a vez dele. Um tipo de relação desse gênero também se estabelece entre a mulher e o homem quando este é uma personagem famosa, um artista de cinema ou teatro, um político, um cantor célebre. Nesse caso ele já está em cena, já se tornou desejável. Consequentemente, agora é a sua interlocutora que tem o encargo de parecer interessante, despertar seu interesse, tornar-se, aos seus olhos, uma pessoa diferente das outras.
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4. O erotismo feminino tem necessidade de momentos suaves, de mudanças graduais, quase invisíveis. O homem quer tudo e depressa. A mulher espera que as coisas se passem gradualmente. O desejo do homem, assim como se apresenta de "modo espontâneo, é sempre uma invasão, uma intrusão apressada, violenta. Após dez, vinte anos, a mulher enamorada continua a desejar de seu homem aquelas atenções, aqueles cuidados, aquela ternura que desejava no primeiro dia. A necessidade de gentileza, de graduação, o ritual de admissão, não pode, por essa razão, ser explicado somente com o medo. É uma exigência mais profunda, diretamente arraigada no erotismo feminino, em sua natureza contínua. O ritual de admissão, as carícias, o abraço carinhoso e forte, são maneiras de reduzir ao mínimo a descontinuidade. As regras do namoro que a mulher impôs ao homem pedemlhe que esconda, disfarce seu desejo. Que se desculpe pela intrusão. Que seja atencioso, divertido. Durante o namoro o homem demonstra não ser rude, mas cortês e emocionalmente disponível. Demonstra estar disposto a aceitar a opinião livre e expressa da mulher. A respeitar sua vontade. A utilizar apenas meios que seduzam a mulher, não a estuprem. Ela quer ser seduzida, excitada, mas segundo seu tempo, seu ritmo, de forma harmoniosa. Quer ser envolvida pelas emoções. E isso o que faz o grande sedutor. Instala-se no âmago do espírito feminino, adere a ele, funde-se com ele até desaparecer. O grande sedutor, aquele que “encanta” as mulheres e libera seu erotismo, fala com elas como se fosse uma mulher. Digo “fala” porque a chave consiste exatamente nas palavras e na maneira como são ditas. A mulher teme a violência do homem. O grande sedutor pode ter um aspecto forte, viril, mas age de maneira tranquilizante, persuasiva, segura. Possui a segurança do pai e a compreensão da mãe. Diz somente o que uma mulher diria. Fala do corpo feminino com a delicadeza da mulher 43. Evoca e 43
A exposição mais convincente é de Lillian B. Rubin. Como o primeiro objeto de amor da mulher é a mãe, ela experimenta sempre com relação ao macho um sentimento de estranheza que deve ser superado. Na mulher, diz Lillian Rubin, a negociação interna deve ser sempre triangular: ela mesma — uma mulher — o homem. Dessa forma o sedutor se comporta como uma mulher e estabelece uma ponte entre a feminilidade e a masculinidade. Ver Lillian B. Rubin: Intimate strangers.
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fala de sensações de que somente uma mulher é capaz de falar. O grande sedutor tem paciência, dá-lhe tempo de preparar-se, de fantasiar-se, de encantar-se, de excitar-se, de entregar-se. Jamais mostra desejo ou urgência. O grande sedutor sabe sempre bater em retirada, dar um passo atrás, sabe sempre adiar sua urgência. A cada instante faz à mulher a promessa que todas elas esperam: “Não lhe peço para mudar, não uso de violência para com você, não quero nada para mim”. Ele é, ao mesmo tempo, tranquilizador como os pais, alegre e impaciente como a amiga adolescente, cúmplice como o espelho. O grande sedutor faz com que a mulher se sinta como quando está diante do espelho, admirando-se, descobrindo-se, fantasiando. Faz com que ela caia de joelhos diante da própria beleza e do próprio fascínio. Dá voz às suas fantasias mais secretas e a ajuda a criar outras. O sedutor conhece e interiorizou as fantasias femininas (como a cortesã interiorizou as fantasias masculinas). Toca-a como a tocaria uma amiga. Faz-lhe carícias e a excita com a naturalidade com que ela própria o faria. Sua voz é persuasiva, hipnótica, regular. Pede-lhe que se relaxe e ouça. Que se abra aos elogios, às carícias, às palavras sussurradas. Sugere-lhe o que ela mesma gostaria de pensar para excitar-se. Faz com que sinta desejos impudicos contra os quais não se rebela por achar que partem exclusivamente dela. Quando se entrega nem mesmo sabe por que o fez, tal a naturalidade com que tudo aconteceu. O inexperiente, ao contrário, é tímido, desastrado, sem graça. A mulher o sente diferente, sente sua necessidade como uma ameaça e tem medo. A mulher tem medo do tímido. Porque o tímido é portador de uma urgência sem palavras, uma urgência explosiva, incapaz de tornar-se urgência do outro. A urgência do tímido é nua, violenta. No tímido, a mulher percebe também a violência que ele exerce contra si mesmo, contra o seu desejo, a violência da repressão. Percebe, dessa maneira, uma violência dupla, a do desejo e a da repressão. O gaguejar do tímido o revela. O grande sedutor situa-se no extremo oposto. Torna sua a necessidade da mulher, identificase com ela. Sua voz hipnótica dá voz a seu desejo, às suas fantasias, dissolve seus medos e a leva a realizar o que a fez fantasiar.
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O erotismo é uma fantasia de identificação com as partes eróticas do corpo. Precisa falar delas, ilustrá-las, desnudar o que está encoberto. A pornografia é obscena porque faz isso de maneira errada e no momento errado, como o mal-educado e o inábil. Também o galanteio erótico ocasional é geralmente obsceno. Mas o que então é considerado obscenidade, em outra situação é galanteio, elogio. A confidência erótica — estabelecida tão depressa quanto um ato de hipnotismo ou uma língua comum — consente que se transforme a obscenidade em convite. A obscenidade é um convite recusado. Se é aceito, o mesmo discurso consiste em representar a si mesmo e ao outro da maneira mais excitante. O erótico é, portanto, uma pornografia pessoal. É um texto cujos protagonistas somos nós mesmos e em que ambos nos reconhecemos. Pode-se considerar como grande sedutor somente aquele que sabe conduzir o jogo até o final. Mesmo abandonando a mulher, deve deixar sempre uma boa recordação de si mesmo. Mas muito poucos conseguem isso. Satisfeito seu desejo, a maior parte dos homens quebra o encanto, e a mulher desperta sozinha. E então tomada de cólera contra si mesma, porque se deixou levar, entregou-se a quem não a merecia. A mulher perdoa somente a quem não se comporta como um assaltante. De outra forma, sente-se espoliada. Consequentemente, a maior parte das vezes, enquanto o homem experimenta um sentimento de liberdade e de sucesso, a mulher vive uma experiência de perda, uma desilusão. Como se algo lhe fosse tirado, como se tivesse se deixado enganar. E experimenta, então, um sentimento de rancor para com ele e para consigo mesma. Os homens não compreendem, em geral, por que as mulheres se sentem tão atraídas pelos salafrários. Por que são tão intolerantes com eles e tão indulgentes com o grande sedutor.
11 1. Para o homem o relacionamento sexual é uma coisa importante, ele tem necessidade absoluta dele. Nenhuma forma de erotismo cutâneo, muscular, cinestésico, nenhum tipo de
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intimidade amorosa, nenhum carinho tipo maternal é capaz de substituí-lo e diminuir-lhe a urgência. Para o homem, renunciar ao sexo é tão difícil quanto renunciar a comer ou a beber. As dificuldades encontradas pelos ascetas e anacoretas cristãos não provinham da fome ou da sede, mas das fantasias eróticas contínuas, obsessivas. A castidade, mesmo temporária, é muito difícil para o homem, e por esse motivo foi imposta pelo bárbaro meio da castração. A mulher não tem esse tipo de necessidade. Se não encontra o homem que lhe agrada, prefere não ter relações sexuais, até mesmo por meses e anos. Como observou Kinsey 44, as mulheres se casam porque desejam uma relação afetiva duradoura e estável com uma única pessoa, porque querem uma casa, filhos, bens materiais e segurança. Também aos homens essas coisas interessam, mas poucos estariam dispostos a casar-se se não estivessem certos de poder fazer amor. Para o homem, o relacionamento sexual é uma necessidade cotidiana no casamento, na convivência, na vida. No homem a experiência sexual é importante, mesmo que se trate de um relacionamento ocasional; até mesmo com uma prostituta. Já vimos, no início, que a prostituta satisfaz certas fantasias eróticas masculinas. Não nos devemos admirar, portanto, que a experiência com ela possa ter um significado. Quase todas as pesquisas mostram que, mesmo nos países em que houve a revolução sexual, os homens casados continuam a procurar as prostitutas. Quase sempre o fato é justificado por alguma incapacidade ou defeito da mulher ou da amante. Na realidade, o encontro erótico puro, livre de responsabilidades, consequências, julgado por si mesmo, com uma mulher diferente, continua a ter um significado para o imaginário masculino. Ao dar-se, a mulher provoca nele uma forte emoção. Não é verdade que o sentimento dominante seja o orgulho por ter conseguido seduzi-la ou por ter conseguido humilhá-la, pagando-a. Claro, esses sentimentos existem, mas não têm a importância da emoção erótica de que estou falando. Com o tempo, na verdade, não se lembrará mais da corte. Não se lembrará mais do pagamento. Nem da história. Ele se lembrará somente do ato erótico. E incrível a capacidade de memória 44
. C. A. Kinsey: II comportamento sessuale dell’uomo, Milão, Bompiani, 1950.
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erótica do homem. Mas é certamente comparável à da mulher quando se trata de relações sentimentais. Com o passar de anos ou decênios, a lembrança erótica masculina se apresenta tão nítida como da primeira vez. Exatamente como se estivesse tendo a experiência naquele momento. O homem se masturba evocando e elaborando fragmentos de experiências eróticas do passado. Algumas feministas criticaram esse comportamento considerando-o negativo, depreciativo, agressivo 45. Ao contrário, essas fantasias masculinas não têm absolutamente nada de agressivo. É a mulher que as vive dessa maneira porque tem a impressão de que a mutilam, colocando entre parênteses uma parte dela. Porque são feitas sem a participação de sua vontade. Principalmente porque isolam um fragmento do tempo contínuo. Revivem um momento descontínuo, roubado à trama contínua do acontecimento. Para o homem, ao contrário, a fantasia é agra-, dável, amigável, serena. O encontro amoroso, quando alegre, emocionante, acompanhado da revelação da beleza feminina, produz nele um sentimento de simpatia, de reconhecimento. E é isso que é recordado, que realça na fantasia. A intimidade, a fusão, o alheamento, o momento em que ele viu nela a beleza, a fonte de sua alegria. Não a beleza do vestido em si, mas a beleza do corpo que o veste, o perfume, o gesto convidativo, o abraço, o estremecimento, o sorriso, a mão que busca. Tudo o que a mulher colocou em sua sedução se encontra intacto na lembrança masculina. Se não conseguiu produzir a emoção contínua do amor, certamente conseguiu produzir algo de indelével no descontínuo. A imaginação visual reativa cada detalhe do encontro em todo o seu esplendor, e o homem o reviverá até o orgasmo, mesmo dez anos depois. Mas, para emergirem, essas fantasias necessitam de um liame com a realidade, por mais tênue que seja. A fantasia é também, sempre, fantasia de cumplicidade. Por isso, se a mulher o rejeitou, o homem fica perturbado. Porque a rejeição aparece na fantasia e a interrompe. A mulher sabe disso, e se 45
Susan Griffin: Pornography and silence, Nova York, Harper Cólophon Books, 1982.
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quer ferir o homem, imprime-lhe sua rejeição na mente, diz-lhe o seu não com todo o desprezo. 2. O fim de uma paixão é expresso pelo homem como puro desinteresse. Na mulher expressa-se como rejeição. A mulher que se cansou de um homem não quer mais vê-lo em casa, não suporta sequer ouvir sua voz. O homem que se cansou de uma mulher limita-se a ignorá-la. Se ela não se intromete em sua vida, mantém com ela um relacionamento amigável. Se a mulher se apaixona por outro homem, não suporta mais o primeiro. Manda-o embora e, se fica com ele, é para fazê-lo sofrer, torturá-lo, porque, aos seus olhos, é culpado por tê-la desiludido. A mulher reprova o homem que não lhe agrada e quer anular sua presença. Procura destruir qualquer traço do passado, porque para ela é importante a continuidade da relação. Se, ao contrário, como acontece com o homem, o importante é o instante de prazer, a lembrança é conservada. O homem sabe que, mais dia menos dia, poderá renascer nele o desejo. Por isso as mulheres sentem ciúmes das ex-amantes ou das ex-mulheres do homem. Porque, ainda que somente na fantasia, estes ainda podem desejá-las. As mulheres se enganam, porém, ao imaginar que o homem se lembre da relação amorosa, do sofrimento do enamoramento. Nesse ponto o homem é exatamente como elas. Se recorda as emoções do namoro quer dizer que ainda está enamorado. Quem não está enamorado não se lembra mais da experiência amorosa, não consegue revivê-la. A memória masculina é a do encontro erótico e daquilo que, naquele momento, tinha a ver com o erotismo. Tudo mais é anulado. Sobretudo os sentimentos. Justamente porque se lembra do que é fragmento descontínuo, separado do tempo, o homem aceita seu passado erótico e mantém bons relacionamentos com as mulheres de sua vida. No filme Oito e meio, Fellini imagina que todas as mulheres que o atraíram eroticamente, ou que ele amou, se reúnem numa grande festa. Desde a ex-mulher até a prostituta que, em menino, vira dançar na praia; a mulher encontrada uma única vez e aquela com quem passou toda a vida. Dificilmente uma mulher poderia ter um sonho semelhante.
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Essa particularidade está ligada ao descontínuo. Da pessoa amada o homem tende a esquecer tudo o que foi sofrimento, conflito, vexame. Conserva apenas a lembrança de certos momentos eróticos. A mulher, quando não ama mais, ofende-se com essa fragmentação de sua pessoa. Repugna-lhe ser lembrada na maneira como fazia amor, como gritava de prazer, como se esfregava no sexo do homem, visto que agora aquele homem não lhe agrada mais, não a interessa e que não se deitaria com ele por nada deste mundo. Não quer lembrar-se dele e não se lembra. Encontramo-nos, pois, diante de um paradoxo. O homem se afasta mais facilmente, não deseja prolongar o abraço erótico, às vezes se cansa, quer ir embora. Entretanto, lembrase de forma indelével daquela experiência que parecia tão superficial. Poderá voltar-lhe à mente inúmeras vezes, fazendoo revivê-la com a mesma intensidade. A mulher, que tivera a impressão de ter sido largada como um simples objeto impessoal, não sabe que será lembrada nos menores detalhes e que por toda a vida aquele homem pensará nela com prazer, porque pode evocá-la no esplendor do momento erótico. Não são os seus sonhos, sentimentos, paixões, ânsias que são relembrados. Dela o homem se recorda do erotismo. Porém nele estão as suas perplexidades, o arrebatamento, o frêmito, a ingenuidade, a doçura, o pudor ou a impudicícia. É sempre ela que vive na recordação do homem, uma parte inconfundível e autêntica de sua personalidade. A mulher, ao contrário, deseja a continuidade. Não suporta bem a separação. Gostaria de um encontro sem fim, uma perenidade. Para obtê-lo pede uma convivência que imagina saturada
de
erotismo
amoroso.
Quando,
porém,
essa
convivência se torna vida cotidiana, desilude-se. É então tomada de irritação, de cólera. Evade-se nas fantasias. Ao mesmo tempo, vinga-se com gestos rotineiros que irritam o homem, deixam-no exasperado. Conhecendo seus gostos e desejos, atinge-o de modo contínuo, obsessivo. É um ritual de ódio, a que se dedica com o mesmo afinco que dedicava ao do amor.
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Quando chega a romper o relacionamento, a ruptura é total. Assim como antes queria a continuidade absoluta, agora quer a descontinuidade absoluta. Antes era a perenidade do positivo. Agora, a perenidade do negativo. O que antes era desejado é brutalmente apagado de sua vida, de sua memória. A partir daquele momento a mulher não mais será capaz de evocar os encontros eróticos em todo o seu esplendor, como faz o homem. Se o faz é porque ainda se sente atraída por aquele homem ou porque ainda está lutando para separar-se completamente. A recordação pode aparecer somente sob a forma de um desejo atormentado de recomeçar. Ou então como recusa, nojo, vingança. A mulher deseja um tempo erótico contínuo. Se o interrompe, cria uma descontinuidade radical. Não podendo realizar o tempo erótico contínuo, renuncia a ele, precipita-se no descontínuo, mas isso não tem mais nada de erótico. E se começa uma nova relação erótica, esta será caracterizada por um recomeço do tempo. É uma nova era. Um fenômeno semelhante acontece também com o homem, quando ele se enamora. Então, também para ele, o passado perde o valor e seu erotismo tende a tornar-se contínuo. Mas, na mulher, a ruptura com o passado ocorre também sem o enamoramento. Seu erotismo exige sempre a compacidade temporal. Paradoxalmente, essa compacidade pode ser realizada somente ao preço de uma descontinuidade mais radical. O esquema temporal da vida erótica, constituída de uma sucessão de relações monogâmicas intercaladas de fases promíscuas de procura, foi imposto sobretudo pela mulher. É o produto de sua emancipação. Nos Estados Unidos esse modelo foi antecipado pelo cinema hollywoodiano. Há decênios que as estrelas de Hollywood levam uma vida caracterizada pela sequência casamento-divórcio-novo casamento-novo divórcio, etc. O star system adotou-o para tornar moralmente aceitável ao público — particularmente ao público feminino — a anarquia erótica do mundo do espetáculo. É a capa sob a qual se esconde o que seria realmente uma situação de promiscuidade. Com a liberação sexual e a emancipação feminina, o mesmo esquema foi de grande valia para dominar as
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tendências promíscuas dos anos 60, e afirmou-se como modelo dominante após o feminismo.
12 1. O verdadeiro erotismo somente é possível quando cada sexo procura compreender o outro, consegue colocar-se em seu lugar, tornar suas as fantasias do outro. Por isso, no Ocidente, o erotismo somente agora está despontando. Salvo raras exceções, até os anos 60 os dois sexos desempenhavam papéis diversos e rígidos. A mudança ocorreu, antes, no plano econômico, material. Quando, com o desenvolvimento econômico, aumentou a conscientização feminina, diminuiu a natalidade, cresceu a automação doméstica. A revolta explodiu inicialmente entre os adolescentes, que derrubaram as divisões tradicionais dos papéis desempenhados pelo homem e pela mulher e as separações até mesmo físicas entre os dois sexos. Os adolescentes se reuniram em grandes movimentos e festas coletivas, encontrando ídolos e mitos comuns. Depois, com a evolução da transformação, apareceu o feminismo, colocando em discussão radical a ordem dos papéis masculinos e femininos em seu conjunto. A partir daquele momento, ambos os sexos começaram a estudar-se e a conhecer-se. Antes cada um procurava impor o seu modelo ao outro. As feministas, por exemplo, convidaram o homem a tornar-se como a mulher. Ao mesmo tempo, porém, elas próprias adotavam modelos masculinos. Essa é uma história longa e fascinante, da qual recordarei apenas alguns momentos literários. Um dos temas recorrentes da literatura feminina é o desejo de ter as mesmas reações eróticas do homem, separando sexualidade e amor. Em seu belíssimo livro Uma espiã na casa do amor, Anais Nin escreve: “Ela abriu os olhos para contemplar a alegria penetrante de sua liberação: era livre, livre como um homem, para gozar sem amor. Sem palpitações do coração, conseguira gozar com um estranho, como um homem. Então, veio-lhe à mente o que ouvira dos homens: ‘Depois eu quero ir embora’. Olhou para o estranho estendido a seu lado, nu, e viu-o como a uma estátua que não quisesse
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tocar de novo... e cresceu nela algo semelhante à raiva, ao arrependimento, quase o desejo de retomar a doação que havia feito de si, de apagar o mínimo traço do acontecido. De bani-lo de seu corpo. Queria afastar-se dele de forma clara e rápida, desembaraçar e separar aquilo que por um átimo estivera fundido, seus hálitos, peles, humores e perfumes do corpo” 46. Exatamente no momento em que Anais Nin nos diz que desfrutou a liberdade masculina do prazer sem amor, dá-nos uma descrição exclusiva, profunda e radicalmente feminina. A separação realizada pelo homem, como já vimos, é alegre, sem complicações. A mulher que teve um relacionamento sexual sem amor sente-se, ao contrário, fraudada, roubada, enganada, quer tomar de volta o que deu, experimenta o desejo de dissolver o que estivera unido de modo tão impróprio, tão ofensivo. Também Erica Jong em seus dois livros Medo de voar e Como salvar sua vida, fantasiou continuamente a “trepada inconsequente”, o ato sexual como o homem o realiza. No último, Pára-quedas e beijos, essa busca torna-se obsessiva. A protagonista do romance, Isadora, abandonada por seu jovem marido, lança-se numa série de aventuras sexuais, como convém a uma divorciada da Nova York de 1984. Mas, embora diga estar excitada, tem-se a impressão de que experimenta apenas raiva e cólera. “Corpos desconhecidos, caralhos estranhos. Isadora não consegue passar a noite toda com eles. Gostaria que o homem de plantão fosse removido da sua cama como por magia, lá pelas três da madrugada — e assim não permite que ninguém, absolutamente ninguém, permaneça com ela até a manhã. Chegou mesmo a pôr homens para fora da porta de casa em plena madrugada”... 47 “E o que aprendeu Isadora sobre os fusos mágicos, nesse período de sua vida? Aprendeu que pouquíssimos conseguem dar magia ou até mesmo esquecimento, a não ser por poucos segundos. Aprendeu que não apenas o príncipe muitas vezes não chega, mas que muitas vezes quando o faz não consegue ter ereção. Aprendeu que os passarinhos variam enormemente... Alguns são rosados, outros arroxeados, outros ainda amarelos, 46 47
Anais Nin: Uma espiã na casa do amor, já traduzido no Brasil. Erica Jong: Pára-quedas e beijos.
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marrons ou negros. Alguns são cheios de veias como mapas lunares, outros lisos como porquinhos rosados de marzipã; alguns gotejam antes de esguichar, outros se recusam definitivamente a esguichar. Mas, apesar de todas essas diversidades, uma coisa permanece invariável: não se pode amar um passarinho se não se ama também seu proprietário.” 48 O livro de Erica Jong transcorre todo nesse tom, como uma contínua orgia de sexo repugnante, de machos que causam nojo. Não há um único instante de verdadeiro erotismo. O livro é um grito constante de raiva na busca do homem ideal, jovem. belo, digno de amar e ser amado apaixonadamente. No final do livro a autora diz que Isadora o encontra. Mas não é absolutamente verdade. Nos livros de Erica Tong, enamoramento é uma coisa que não existe. Anais Nin brincava com o amor. Identificava-se em cada novo amante. No primeiro, um alemão belíssimo, revivia o fascínio de Wagner e de Siegfried. Em John, o guerreiro, a atração da guerra e da morte. Em Mambo, as ilhas tropicais, a música afro-americana. A cada vez uma nova encarnação, até viver uma miríade de vidas. Mas no final, após inúmeras identificações eróticas, percebe que está se desintegrando. Compreende isso olhando os quadros de Jai: “Duas figuras explodiam e se fragmentavam em constelações, como um quebra-cabeça espalhado, do qual cada peça tivesse caído tão longe que parecesse irrecuperável” 49. Na tentativa de ser como um homem, de conquistar a liberdade do homem, avança tanto que o seu eu se dissolve. Mas isso porque Anais Nin a cada vez deve identificar-se a fundo, deve pôr em jogo uma parte essencial de si mesma. E isso é feminino, não masculino. E, no entanto, Anais Nin compreende profundamente o homem, estudou-o intencionalmente para escrever suas histórias pornográficas. Foi amiga íntima de Henry Miller e de Lawrence Durrell e vizinha dos maiores escritores de sua época.
2. A única que conseguiu realmente descrever um erotismo ao mesmo tempo masculino e feminino foi Emmanuelle Arsan. 48 49
Ibidem. Anais Nin: Uma espiã na casa do amor.
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Nos trechos mais felizes de seus livros, em geral algumas dezenas de páginas, consegue realizar, do ponto de vista feminino, a obra-prima que Lawrence 50 realizou do ponto de vista masculino: sentir o mundo com a sensibilidade do outro sexo e, ao mesmo tempo, torná-lo compreensível ao seu mundo. No livro Emmanuelle, de Emmanuelle Arsan, a autora nos oferece uma série de emoções eróticas tipicamente femininas. Desde o início, ao entrar na luxuosa cabine de primeira classe, a mulher “sente um prazer quase físico ao simples pensamento de que todos os olhares se voltam para ela”. Quando seu companheiro de viagem entra, avalia-o detalhadamente, aprecia sua elegância e o cheiro agradável de sua pasta de couro. Como num clássico romance cor-de-rosa, Emmanuelle sente depois uma ponta de ciúmes quando vê a aeromoça roçar propositalmente num passageiro. Tudo nela é sedução. Os joelhos de Emmanuelle estão à mostra sob o foco dourado de luz que se projeta sobre eles. A saia os deixou descobertos, e os olhos do homem não os abandonam... sabe que perturbação são capazes de provocar... Logo as pálpebras se fecham, e Emmanuelle pode ver-se, não mais em parte, mas inteiramente nua, abandonada à tentação dessa contemplação diante da qual sabe que estará, mais uma vez, completamente indefesa 51. Emmanuelle oferece-se ao homem a seu lado sem que ele a corteje, sem uma única palavra. Não existe jamais um sentimento, uma emoção que vá além do imediato prazer presente. E no entanto aquele encontro casual é fonte de extraordinário prazer, e as experiências descritas em detalhes são de uma mulher. Agrada-lhe sentir na mão o pênis do homem. “Os dedos apertados de Emmanuelle subiam e desciam menos tímidos à medida que a carícia se prolongava ao longo do grosso pau intumescido... a glande, duplicando de volume, inflamava-se e a cada instante parecia prestes a explodir.” 52 O ritmo do homem é o seu ritmo. O prazer do homem, o seu prazer. “Emmanuelle recebeu com uma estranha exaltação ao longo dos braços, no ventre nu, nos seios, na boca, nos cabelos, os longos esguichos brancos e tipicamente odorosos 50
D. H. Lawrence: Filhos e amantes. Mulheres apaixonadas. O amante de Lady Chatterley. Emmanuelle Arsan: Emmanuelle. 52 Idem. 51
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que o membro enfim satisfeito jorrava.” 53 Ou então em seguida: “O homem se manteve o mais fundo possível em sua vagina, unido a ela, ao colo de seu útero, no centro de seu espasmo. Emmanuelle tinha imaginação suficiente para gozar ao pensamento do líquido cremoso aspirado pela abertura oblonga de seu útero, ativa e gulosa como uma boca.” 54 Fantasias indubitavelmente femininas, mas construídas sobre o corpo, sobre o sexo masculino, compassadas sob seu ritmo. Emmanuelle tem um erotismo promíscuo. Com o homem do avião, com Marie-Anne, com o marido. Está sempre total e incondicionalmente pronta a dar e receber prazer. Está sempre fascinada pela beleza dos homens, das mulheres, das crianças. Onde quer que descubra a beleza dos corpos, dos gestos, dos olhares. Isso faz lembrar o erotismo masculino, em que as mulheres são sempre imaginadas belíssimas, perfeitas. Masculina também é a sua total indiferença erótica ao status social, classe, prestígio, à fama dos homens que encontra. No mundo de Emmanuelle não existe a mínima hesitação em se tomar a iniciativa. Ninguém tem medo, timidez, ninguém se protege do contato com uma outra pessoa. E é sempre prontamente retribuído. Também isso é masculino. No entanto, Emmanuelle possui uma sensibilidade lésbica. Está enamorada de Marie-Anne, assim como está enamorada do marido. Quando surge a belíssima Bee, apaixona-se: “Parecia-lhe ter vindo àquela região, no fim do mundo, somente para encontrá-la. E a reconhecera imediatamente, ao primeiro olhar, como aquela que esperara desde sempre... Pela primeira vez, desde que era muito pequena, lágrimas verdadeiras, copiosas lágrimas escorrem pelo seu rosto 55. Em seu mundo também há espaço para os amores profundos, duradouros, para o marido e para aqueles que ela chama de maridos, para os amores superficiais, os amantes. Mas também para os amigos, os filhos, as crianças 56. Ninguém jamais tende ao exclusivismo sexual, nem à dominação. Não existe sentimento de culpa, não existem 53
Idem. Emmanuelle Arsan: Emmanuelle. 55 Idem. 56 Emmanuelle Arsan: I figli di Emmanuelle, trad. ital., Milão, Bompiani, 1980. 54
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inimigos. O erotismo corre em todas as veias, de jovens e velhos, homens e mulheres, adultos e crianças. Não existe nojo ou rejeição. Não existe cansaço. Não existe proximidade ou distância exageradas. No total, Arsan nos oferece uma fantasia bissexual em que o erotismo se entrelaça com qualquer outra forma de amor, e a promiscuidade convive, sem problemas, com os sentimentos profundos. Isto é, uma utopia.
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Promiscuidade
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13 1. No curso da história, muitas e muitas vezes foi discutido o tema da promiscuidade. Como promiscuidade original, anterior à organização social e familiar. Ou então como promiscuidade utópica, superação definitiva da exclusividade e da possessividade de cada pessoa. Nos anos 60, a promiscuidade foi o ideal mais ou menos manifesto da revolução sexual. Já vimos que, em suas fantasias, os homens desejam fazer amor com muitas mulheres e sem muitas complicações sentimentais. Segundo ideia corrente, a promiscuidade é um desenvolvimento, um excesso, um transbordamento desse tipo de desejo masculino. Na realidade, a promiscuidade é sempre um produto coletivo, a manifestação de uma prevalência da comunidade sobre o indivíduo e o casal. Percebe-se isso abertamente na orgia. Na orgia as ligações de amor e de exclusividade são temporariamente abolidas. Todos estão à disposição de todos. Cessa a possibilidade de exprimir uma preferência erótica, uma recusa. Se cada um pode obter o sim de todos, por outro lado deve também dizer sempre sim. Somente dessa maneira pode realizar-se o comunismo erótico: “Cada um dá de acordo com suas possibilidades e recebe de acordo com suas necessidades”. A orgia somente é possível porque todas as nossas idiossincrasias, as nossas preferências, os nossos afetos, os nossos ciúmes, as nossas repugnâncias são temporariamente suprimidos. No mundo do erotismo há também o negativo, a repugnância. A repugnância para com uma pessoa que vemos pela primeira vez, na rua, ou para com alguém que já conhecemos. O fim da atração erótica se apresenta como repugnância. Por outro lado, a repugnância é próxima da atração e se amplifica como ela. Não é absolutamente comparável à amizade-inimizade. Pode-se escrever um livro sobre a amizade sem falar na inimizade. Mas não se pode escrever um livro sobre o erotismo, sem falar, descrever a repugnância. Na orgia essa repugnância deve ser esquecida. A situação orgiástica não é um estado originário que a seguir é interrompido pelo processo de individualização e de escolha. É uma instituição estanque, uma forma específica de sociedade
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em que se realiza — em prazo determinado — o comunismo erótico. A orgia está estreitamente ligada à festa 57. Uma instituição em que se suprimem as regras da vida cotidiana e onde se realiza um estado de excitação coletiva. O todo, porém, com um início e um fim pré-organizados. Com um ritual de entrada e outro de saída. Também a orgia, de modo geral, se desenvolve dentro de uma festa. No passado, nas grandes festas rituais, das quais sobreviveram o carnaval do Rio de Janeiro e a Oktober Fest de Munique. Mas também nas festas particulares a orgia é, na maioria das vezes, prevista antecipadamente e tem um início e um fim. Porém, sempre houve na história movimentos religiosos ou políticos que conferiram um significado especial ao estado orgiástico. Nos movimentos e nos cultos dionisíacos 58 a orgia assumia o significado de fusão dos crentes com o deus. Situações de promiscuidade exaltada e orgiástica surgiram em muitos outros movimentos 59. Isso provavelmente pode explicar o fato de que todos os movimentos, em sua fase inicial, no estado nascente, geram um forte impulso para a fusão, a fraternidade, o comunismo. Quase sempre, nessa fase ocorre a comunhão dos bens materiais, essa anulação do indivíduo, com os seus limites e os seus egoísmos. Consequentemente, está presente, no início, uma tendência à promiscuidade em quase todos os movimentos, talvez de forma negativa, como a proibição de ter sentimentos eróticos privados, de apartar-se da comunidade sob forma de casal. 57
Quem teve o mérito de esclarecer esse ponto foi sobretudo a escola sociológica francesa, de René Bastide, Sogno, trance, follia, trad. ital., Milão, Jaca Book, 1974, a Georges Bataille, L'erotismo, Georges Lapassade, Saggio sulla trance, trad. ital., Milão, Feltrinelli, 1980. Particularmente Michel Maffesoli, em À sombra de Dioniso, Paris, Méridien Anthropos, 1982, procurou encontrar no estado de excitação orgiástico-dionisíaco a origem da criatividade social. O erro de todos esses autores é o de confundir um estado de exaltação e de fusão efêmera com o estado nascente do qual falaremos no capítulo 22 deste livro. 58 Ver H. Jeanmaire: Histoire du culte de Bacchus, Paris, Payot, 1951. Segundo a nossa interpretação, o movimento dionisíaco foi um verdadeiro novo culto religioso, de que participavam também as mulheres, e que conferiu certa importância à orgia sacra. Para ele confluíram, porém, fenômenos religioso-culturais mais antigos que explicam o caráter violento do sacrifício. 59 Ver os inúmeros exemplos dados por Norman Cohn: I fanatici dell’apocalipse, trad. ital., Milão, Comunità. Ver também Ronald A. Knox: Illuminati e carismatici, trad. ital., Bolonha, II Mulino, 1970. Sobre fenômenos de promiscuidade orgiástica no franquismo, ver Gershom Scholem: Sabbatai sevi the mystical Messiah, Princeton, Princeton University Press, 1975.
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2. O tema do amor livre era amplamente difundido nos círculos anárquicos europeus do século XIX. É principalmente Fourier, em sua Harmonia, que dá grande importância ao amor livre, sem impedimentos 60. Também a Harmonia de Fourier é uma hipóstase do estado nascente, a fantasia de perpetuar, sob forma de instituição, o amor extraordinário dos primórdios. Ele imagina coletividades de entusiastas, onde todos os sentimentos e todas as percepções são exaltados e não perdem o vigor com o passar do tempo. Na Harmonia será encorajada a prática do amor coletivo. Tara Fourier a relação entre um casal parece egoísta. O casamento, embora não seja proibido, se tornará, por isso, uma instituição secundária. Os filhos serão educados pela comunidade. Os casais poderão reunir-se de dois em dois, formando um quadrângulo erótico. Ou então de três em três, quatro em quatro, formando sextetos, octetos, aquilo que ele chama de orquestras passionais. A reunião de um número maior "dê homens e mulheres produzirá a orgia, forma própria e verdadeira de comunhão coletiva, de fusão amorosa. Fourier preocupa-se com que todos possam beneficiar-se da riqueza amorosa. As pessoas mais bonitas deverão dar seu amor às mais feias, as jovens, às mais velhas. Todos deveriam ser educados de. modo a desenvolver seu erotismo desde a infância. Harmonia é portanto, uma sociedade da voluptuosidade ilimitada para todos. Foram muitos os movimentos que pretendiam realizar o comunismo erótico, principalmente nos Estados Unidos. Em 1826, Francês Wright fundou Nashoba, uma comunidade agrícola nas cercanias de Memphis. Por volta de 1840 chegaram aos Estados Unidos forasteiros que deram origem a uma dezena de comunidades eróticas. A experiência mais duradoura foi a iniciada por John Humphrey Noyes, em Oneida, perto de Nova York, em 1849, e que durou cerca de trinta anos. Uma segunda onda de movimentos utópicos aconteceu neste século, nos anos 60, no âmbito de um processo mais geral de liberação sexual. Gay Talese ilustrou-o muito bem descrevendo o nascimento da revista Playboy, da pornografia 60
Ver Charles Fourier: Vers la liberte en amour, Paris, Gallimard, 1973.
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hard-core e das numerosas comunidades utópicas que praticavam a promiscuidade. Como exemplos temos as fundadas na Califórnia por Victor Branco, a comunidade agrícola de Lama, no Novo México, a comuna hippy, de Oz, a de Twin Oaks, a comuna anarquista de Red Clover e a reichiana de Bryn Athin. Também na Europa, no mesmo período, surgiram muitíssimas comunidades com diversos graus de promiscuidade erótica. Graças a Talese conseguimos uma documentação mais detalhada da ideologia e da prática da comunidade de Sandstone, fundada por John Williamson 61. Iniciada como promiscuidade entre casais de conhecidos, desenvolveu-se como comunidade terapêutica e utópica graças à chegada de intelectuais e sexólogos como Alex Comfort. Em Sandstone, todas as noites era praticada uma orgia com função liberalizante. Eis uma descrição: “Descendo a escada coberta por uma passadeira vermelha, os visitantes entravam num amplo local semi-escuro onde, sobre almofadas espalhadas pelo chão, iluminados pelo reflexo das chamas da lareira, distinguiam-se vultos na sombra, pernas e braços entrelaçados, seios generosos, mãos que agarravam, nádegas em movimento, costas suadas e ombros, mamilos, umbigos, longos cabelos louros esparramados sobre as almofadas, fortes braços negros que seguravam quadris macios e brancos, a cabeça de uma mulher que se movia para cima e para baixo sobre um falo ereto. Suspiros, gritos de êxtase, redemoinhos de carne unidos na cópula, risos, murmúrios, música transmitida por um aparelho estereofônico” 62. Quem frequentava Sandstone? Casais desejosos de escapar ao tédio do leito conjugal, mulheres divorciadas ainda não preparadas para um novo casamento, mulheres cheias de energia erótica e que não tinham coragem de abordar um homem na rua, feministas como Sally Binford e sexólogos como Alex Comfort.
3. A promiscuidade orgiástica deve ser considerada como uma manifestação das fantasias eróticas masculinas, a tentativa de realizar um excesso de sexo sem amor? Não. A 61 62
Gay Talese: A mulher do próximo, já traduzido no Brasil. Ibidem.
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tendência a entrar em estado nascente dos movimentos não tem nada a ver com masculinidade ou feminilidade. Mesmo os fenômenos coletivos mais superficiais, como o transe e a tendência à fusão de grupo são propriedades gerais do sistema nervoso central humano e não de um único sexo. A situação orgiástica é uma forma bastante particular de erotismo, comum a ambos os sexos, e que se realiza somente quando o grupo anula a separação dos indivíduos. É muito importante distinguir o estado nascente dos movimentos de fenômenos mais superficiais como a multidão, a festa e o transe. De modo geral, os sociólogos e psicólogos sociais os confundem 63. Isso porque nos movimentos históricos concretos eles aparecem misturados. O estado nascente é (como veremos num próximo capítulo) consequência de uma profunda mutação interior dos indivíduos. Estes sofrem uma conversão e confluem para um grupo social dotado de altíssima solidariedade. Todos os seus membros vivem uma experiência de fraternidade, de igualdade, de unanimidade. Eles se amam verdadeiramente. E é por isso que, em determinadas circunstâncias, dão pouca importância às ligações privilegiadas entre amigos ou amantes. Não que as desprezem; até, em geral, o estado nascente tem muito respeito pelas preferências e afetos de seus membros. Mas tende a dar mais importância aos objetivos do grupo. Existe no estado nascente uma expectativa ansiosa de acontecimentos extraordinários e, por isso, as paixões individuais são reabsorvi- das pela coletiva. Dois enamorados, absorvidos pelo estado nascente de grupo são vistos como uma unidade, agem como um indivíduo único. Quem, ao contrário, entra separado é dominado pelo erotismo difuso do grupo, por seu entusiasmo. Essa experiência de solidariedade, de amor, de fraternidade não se traduz, por si só, em atos eróticos. Mas eles podem acontecer sob certo impulso ideológico. As comunidades utópicas fourieristas, anarquistas, como muitas “comunas” saídas de 1968 64, são quase uma elaboração 63
Já declarei que essa confusão é comum aos sociólogos da escola francesa, como Roger Bastide, Georges Bataille, Georges Lapassade, Michel Maffesoli. Eles se deram conta de que há uma diferença entre a fase inicial dos movimentos, a grande mutação da mente e do coração, e o culto ritualizado, mas não identificam um processo especial como o estado nascente. 64 Ver Donata e Grazia Francescato: Famiglia aperta: le comune, Milão, Feltrinelli, 1974.
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ideológica do estado nascente no sentido pan-erótico. O comunismo, sempre presente, é impulsionado até o comunismo erótico, até a fusão físico-erótica. Com respeito ao estado nascente, a multidão, a festa, a orgia e o transe são muito mais superficiais 65. Para desencadeálas não é necessária uma mutação interior, uma escolha irreparável. Basta um grupo acolhedor, um ambiente propício, uma atmosfera social excitada e o exemplo. Qualquer pessoa, se inserida apropriadamente no grupo, tem uma probabilidade elevada de se deixar envolver pela excitação erótica coletiva. Exatamente como acontece nos fenômenos de contágio da multidão, numa manifestação esportiva. Muitos dos fenômenos descritos por Talese são dessa espécie. As pessoas entram para uma organização pelos motivos mais disparatados e depois deixam-se arrastar pela embriaguez coletiva erótica. Na maior parte das vezes, a orgia constitui uma experiência à parte, algo que se justapõe às outras experiências eróticas, mas que não pretende substituí-las. Entre os dois tipos de fenômeno, de um lado o estado nascente e, do outro, a multidão, a festa, a orgia e o transe, há uma relação sociológica precisa. É somente o primeiro que funda o movimento, põe-no a funcionar, cria a energia para constituir a comunidade utópica. O estado nascente, porém, é um fenômeno temporário. O movimento não permanece por muito tempo no estado fluido. A um certo ponto torna-se instituição, define suas regras, seus rituais. E eis que então são favorecidos os estados de excitação coletiva artificiais, as festas, os rituais, as danças, os estados de transe. Eles servem para atrair um público novo e conservar nos antigos fiéis a impressão de uma continuação do estado nascente, de uma perene revitalização do tempo divino das origens. Pouco a pouco, a chama revolucionaria e utópica do estado nascente se apaga, restando a prática do encontro erótico desprovido de 65
Também sobre a multidão e a psicologia da multidão, muito escreveu a escola francesa, colocando em evidência os comportamentos fanáticos e irracionais. Desde Gustave Le Bon: La psicologia delle folie, trad. ital., Milão, Longanesi, 1970, até o recente livro de Serge Moscovici, L’âge des foules, Paris, Fayard, 1984, que repete mais ou menos as observações de Le Bon. Angela Mucchi Faina publicou uma resenha desse filão sociológico, L’abraccio delia folia, Bolonha, II Mulino, 1984, sem compreender, porém, o problema proposto por Bastide, Bataille, Lapassade, Maffesoli e ignorando totalmente o aspecto criativo dos movimentos.
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qualquer energia criativa, reduzido a espetáculo ou, mais acertadamente, a prostituição.
14 1. Também as mulheres participam desses processos coletivos e em geral o fazem com um componente erótico mais acentuado. Já vimos que o erotismo feminino é do tipo contínuo e que tende a evitar as diferenciações qualitativas. Pouco importa que o movimento seja político, religioso ou cultural. Participar, para a mulher, significa também sentir, entrar em contato, amar, viver eroticamente. É por esse motivo que ainda hoje, nos movimentos coletivos, encontramos líderes carismáticos — políticos, beatos, gurus, intelectuais — cercados por um harém potencial de mulheres fascinadas e eroticamente disponíveis. Em alguns casos, o líder e seus sequazes diretos monopolizam todas as mulheres da comunidade. O fenômeno não se modificou no decorrer dos séculos. Existia no movimento do espírito livre na Boêmia 66, entre os franquistas 67, na comunidade de Oneida, e existe na empresa Playboy de Hugh Hefner, na seita de Ron Hubbard e na de Bhagwan Shree Rajneesh. No terceiro capítulo vimos que existem dois tipos de erotismo feminino. Um individual e outro coletivo. No primeiro caso, a mulher procura o amor de um único homem, é monógama e, em geral, possessiva e ciumenta. No outro cas o, ela se abandona ao grupo que a arrasta para o seu centro e, dessa forma, para a união física e mística com o líder. Nesse caso dispõe-se a fazer parte de um harém, a dividir o amor do líder com outras mulheres, contanto que possa estar próxima dele, que possa unir-se a ele. Nas situações coletivas, o homem continua a desejar muitas mulheres; a mulher, um único homem. Mesmo aceitando as outras mulheres do líder, sua tendência é a de aproximar-se dele o mais possível, até excluir as outras e 66 67
Sylvia L. Thrupp: Millenial dream in action, Nova York, Schocken Books, 1970. Gershom Scholem: “Redemption through sin”, in The Messianic idea in Judaism.
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tornar-se a única. Em qualquer harém há sempre uma forte competição entre as mulheres para monopolizar os favores do marido. Nada diferente do que ocorria nas cortes com relação ao rei. 2. O aspecto individual e o coletivo do erotismo feminino são tão diversos que dão a impressão de confusão. Falando do exclusivismo feminino, Simone de Beauvoir observa: “O homem apaixonado é autoritário, mas quando obtém o que deseja fica satisfeito, enquanto não existem limites à devoção cheia de exigências da mulher... Para ela, a ausência do amor é sempre uma tortura... no momento em que ele pousa os olhos em outra coisa que não seja ela, desilude-a; tudo o que ele olha o afasta dela. Sua tirania é insaciável... é o guarda do cárcere”. E continua: “Sente-se sempre em perigo. Não há grande distância entre a traição, a ausência e a infidelidade. No momento em que se sente mal-amada, torna-se ciumenta... Irrita-se se os olhos do amado se voltam, por um instante que seja, para uma estranha... O ciúme é para a mulher uma tortura insuportável porque é uma contestação radical do amor: se a traição é certa, é preciso ou renunciar a fazer do amor uma religião ou renunciar àquele amor” 68. É a mulher que tem a tendência a sempre pôr as coisas em termos de tudo ou nada. Na tradição americana, mesmo a mais leve infidelidade era razão suficiente para um divórcio. No livro Mariti e no 69, Jackie Collins nos apresenta uma mulher belíssima que surpreende o marido fazendo amor com outra. Fica indignada pelo fato em si, porém mais ainda porque o marido mentiu. A mentira significa que apesar das promessas ele continuará a ser mulherengo. Decide, portanto, divorciar -se e procura um outro homem. Encontra um famoso astro de televisão e vai viver com ele em Los Angeles. Mas também ele tem o vício do ex-marido. Abandona-o e é atraída por um escritor célebre e fascinante. Infelizmente, este só gosta de moças muito jovens. Pára então de acreditar no amor e se dedica ao feminismo militante. Em muitíssimos livros de autoras contemporâneas, homens e mulheres não se podem amar porque as mulheres buscam um ideal que nenhum homem 68 69
Simone de Beauvoir: O segundo sexo. Jackie Collins: Mariti e no, trad. ital., Milão, Sonzogno, 1984.
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consegue realizar. Aliás, é o mesmo tema dos filmes de Von Trotta ou de Fassbinder. Os homens não estão à altura dos valores femininos. A mulher é capaz de um amor sublime, nobilíssimo, total. O homem, não. Por isso a mulher é obrigada a ir deixando, um após outro, todos os homens que lhe agradam, porque não sabem amá-la da maneira que ela desejaria. Por que, num casal, a mulher é de tal forma possessiva? Por que, se seu amante ou marido faz amor com outra, ela perde a cabeça, se divorcia? Por que não o divide com a outra numa tranquila bigamia? Por que, finalmente, essa mesma mulher ciumentíssima aceita depois fazer parte de um harém e não sente mais nenhum ciúme, nada? A explicação pode ser encontrada somente tendo presente que a plena satisfação emotiva e erótica pode ser realizada tanto no nível do casal, quanto no nível coletivo. Casal e comunidade são duas comunidades auto-suficientes. O casal somente é completo se dele participam ambos os componentes. Se um se retira, desaparece. No casal nenhum indivíduo é substituível, ambos são indispensáveis. Essa é a razão da monogamia, da exclusividade. Nos grupos mais flexíveis e, em particular, nas comunidades utópicas, a identidade coletiva, ao contrário, não se perde com a saída de um membro ou de qualquer membro. O grupo, a comunidade, possui uma existência além do indivíduo. Quem conseguir identificar-se com ele não necessita mais de nenhum indivíduo em particular. Com uma única exceção: o líder. Porque o líder é um símbolo da comunidade, de sua unidade e de sua permanência. O líder é, ao mesmo tempo, individual e coletivo. Na união com ele qualquer outra relação se torna destituída de essência. No casal não há centro, não há líder. Os dois indivíduos estão totalmente submetidos à vontade um do outro. Se a mulher quer a unio mistica com a coletividade, quando faz parte do casal deve querê-la com aquele único homem e tem necessidade de sua presença contínua. A mulher quer ser parte de um todo e o todo; no casal, isso é feito com o outro indivíduo. Ponham em funcionamento, porém, um movimento, uma seita, uma crença, uma experiência coletiva qualquer,
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artística, teatral, religiosa, política, e logo a mulher quererá fundir-se com o centro, no caso o chefe, até mesmo fisicamente. E se no centro estiver uma mulher, sentirá atração erótica por ela, pelo seu corpo, genitais, seios e pele. Dioniso não é apenas macho. A mulher aceita a poligamia e a promiscuidade, contanto que isso aconteça numa comunidade onde haja elevado grau de fusão, de entusiasmo, de participação. A fusão com o centro fascina-a irresistivelmente. O líder é o centro, o herói é o centro, o ator é o centro. Todos os romances cor-de-rosa, quando se trata de um herói, apelam para essa dimensão coletiva do erotismo feminino. Se a coletividade se dissolve, se o centro desaparece, torna a emergir a dimensão rigorosamente individual. Na comunidade de Oneida, quando as coisas começaram a andar mal, por volta de 1870, as mulheres que antes pertenciam a todos e faziam filhos com todos (mas principalmente com o líder), começaram a querer se casar individualmente. O grupo já não lhes dava o abraço, o amor, a segurança econômica, a certeza do futuro, coisas que àquela altura já podiam ser conseguidas no casamento individual. Então, aquelas mesmas mulheres que tinham sido felizes no harém do guru tornaramse monógamas. No lugar da fusão com a totalidade social através de seu líder, procuraram a fusão com um único companheiro. Mas também o casal devia ser uma totalidade. Por isso devia excluir completamente aquela promiscuidade que antes era obrigatória. Fora do harém, longe do homemdeus, a mulher tornava-se exclusivista, ciumenta, não suportava a infidelidade. Dedicava-se inteiramente ao marido e exigia dele uma dedicação total. Não há portanto um esquema único, mas dois esquemas intercambiáveis: um individual, o outro coletivo. A mesma jovenzinha que, se pudesse, se atiraria na cama de seu artista preferido não suporta que seu namorado olhe para outra mulher. A história de Hugh Hefner com Barbi Benton em Los Angeles e Karen Christy em Chicago, como aparece no livro de Talese, A mulher do próximo, mostra-nos um caso em que a poligamia não é mais aceita quando foi prometido um
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relacionamento privilegiado de casal. Hefner teria podido deixar as duas mulheres junto com as outras no harém de Chicago. Ambas teriam aceitado e considerado uma honra serem chamadas a dividir o leito do grande chefe, o divino Hugh Hefner, de vez em quando. Mas este, antes com uma e depois com a outra, comportara-se como monógamo. Dissera a cada uma: “Você é a melhor, amo somente a você”. Esse estado, uma vez adquirido, foi considerado irrenunciável. Cada uma delas sentiu-se rainha, travando uma luta mortal contra a outra para ser a única mulher. A posição de concubina, de favorita, de esposa, dá status. Alguns desses status são partilháveis, outros, ao contrário, exclusivos. A essa categoria pertencem os papéis de rei, de rainha, de primeira mulher na poligamia e de mulher monogâmica no casal. Hefner havia criado um papel exclusivo. As duas mulheres não quiseram mais abandoná-lo. Ele só encontrou a paz deixando ambas e retornando ao antigo esquema poligâmico, sem fazer mais exceções.
3. E no âmbito dos fenômenos coletivos que podemos encontrar explicação para o fascínio de dom Juan, um homem a quem as mulheres não conseguem resistir. Não devemos porém confundir dom Juan com o Grande Sedutor. Este conhece a arte de conquistar as mulheres, sabe como seduzi-las. Dom Juan, ao contrário, conquista todas mesmo não fazendo nada, atraindoas somente com a sua presença. O mecanismo é tão elementar que resulta incompreensível, dando a impressão de magia. Colette nos comunica essa impressão: “(As mulheres) o apontavam: é tudo o que posso dizer. Quando se tratava dele, logo tomavam um ar de sonâmbulas e se teriam ferido contra ele como contra um móvel, a ponto de dar a impressão de que não o viam. Foram aquelas mulheres que o indicaram a mim e sem elas não lhe teria dado seu verdadeiro nome, ‘dom Juan’ 70... Entre Damien e as mulheres não havia o menor traço de diplomacia. Era quando muito uma questão de ‘palavra mágica’” 71. Começamos a compreender o que seja esta “palavra mágica” se recordamos que o mito e a figura de dom Juan pertencem aos séculos XVII e XVIII. São épocas aristocráticas, 70 71
Colette: II puro e l’impuro, trad. ital., Milão, Adelphi, 1980. Colette: II puro e l’impuro, trad. ital., Milão, Adelphi, 1980.
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dominadas pela vida da corte, pelas bisbilhotices e pela fama. A palavra mágica é a fama, que, naquele tempo, tanto podia ser militar quanto erótica. No mundo moderno o equivalente de dom Juan é o playboy, o homem rico, famoso, atraente, que passa seu tempo conquistando mulheres. E as mulheres são atraídas para ele como as mariposas para a luz. Hugh Hefner captou o segredo. Fez de si mesmo o perfeito playboy, o dom Juan absoluto. Na sua revista mostrou nuas, todos os meses, as mulheres que faziam amor com ele. Por isso milhões de americanos o invejaram, por isso milhões de mulheres se prontificaram a partilhar sua cama e aparecer em sua revista. Mas seria um erro pensar que tenham sido atraídas apenas por um possível sucesso cinematográfico. O segredo é o mesmo que funcionava no tempo da princesa de Clèves, do duque de Nemours 72, ou do visconde de Valmont 73: a fama, a irresistível atração do primeiro, do melhor, do vencedor que gera o vórtice coletivo. A fama é a “palavra mágica” que Colette procura. A fama que anuncia, que chama, que dá valor, que torna irresistível seu portador e que se transmite à mulher que se une a ele. Não em segredo, porém, mas em público, mesmo que isso seja perigoso. Mesmo que o risco, o escândalo possam ser mortais.
15 1. Existe um tipo de promiscuidade que não se realiza na orgia, na indistinção dos corpos, mas que consiste na recusa de um único objeto de amor, na facilidade de passar de um para outro, em ter relacionamentos sexuais com muitas pessoas. Esse tipo de promiscuidade sexual, ao contrário do primeiro, é mais ligado ao sexo masculino. De fato vamos encontrá-lo com muito mais frequência nos homossexuais masculinos. Nas lésbicas, ao contrário, os afetos são muito mais estáveis havendo possessividade e exclusividade muito maiores 74. 72
Mme de La Fayette, A princesa de Clèves, cit. Pierre de A. F. Choderlos de Laclos: As relações perigosas. 74 O fenômeno já fora constatado por Havelock Ellis e confirmado por pesquisas mais recentes. Jean Cavailhes, Pierre Dutey: Rapporto gay, Paris, Ed. Persona, 1984. 73
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Em uma recente entrevista Michel Foucault disse que a promiscuidade no homossexualismo masculino é o resultado da repressão do homossexualismo e, em particular, do namoro 75. Não foi possível desenvolver uma cultura do namoro — observa — porque havia a necessidade de esconder e a urgência de concluir. No entanto, entre as lésbicas, não existe essa promiscuidade. Elas não têm cinco ou seis relações sexuais com parceiras diversas por dia, com centenas de parceiras diferentes em um ano. Larry David Nachman observa, a propósito disso: “Há um bom motivo para se acreditar que o legendário número de conquistas de dom Juan, segundo o preciso catálogo de Leporello, tenha sido de fato conseguido junto a jovens rapazes homossexuais” 76. Tem-se a impressão de que, no homossexualismo, cada sexo leva ao extremo algumas das próprias fantasias eróticas mais específicas. Nos homens, o erotismo imediato, sem namoro, como na pornografia, como com a prostituta. Na mulher, o afeto persistente, a exclusividade monogâmica. No entanto, se a explicação dada por Foucault sobre a promiscuidade é inconsistente, a sua entrevista nos indica também um caminho mais promissor. A consciência homossexual — observa ele — inclui o conhecimento de saberse membro de um grupo social particular. Este assumiu a forma “de filiação a uma espécie de sociedade secreta, ou de participação de uma raça maldita, ou ainda de pertencer a um bloco da humanidade ao mesmo tempo privilegiado e perseguido”. Por outro lado, devemo-nos lembrar da célebre definição da homossexualidade dada por Roland Barthes: “Uma deusa, uma figura digna de ser invocada, um caminho de intercessão”. É uma imagem do mundo religioso e, em termos sociológicos, do coletivo. Talvez aqui deva ser buscado o significado da promiscuidade: como uma forma de fraternidade erótica dentro de uma comunidade dotada de valor. Talvez no passado não fosse assim. Mas nos tempos modernos os homossexuais masculinos constituem uma 75
"Scelta sessuale, atto sessuale”, entrevista de Michel Foucault a James 0’Higgins, em AA. W. Omosessualità, trad. ital., Milao, Peltrinelli, 1984. 76 L. D. Nachman: Genet: dandy di piü profondi abissi, em AA. W., Omosessualità.
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comunidade em que se entra por revelação e iniciação. No ensaio “Caro Paul”, de Paul Robinson 77, um professor leva um aluno a reconhecer a própria homossexualidade. O aluno lhe diz que se apaixonara pelo companheiro de quarto e sofrerá uma grave desilusão. O professor lhe explica que errou ao procurar imediatamente o amor. De fato, no mundo gay, o sexo vem antes do amor. A estrutura da vida gay exige que se ponha de lado o romantismo, que se frequentem determinados bares, que se façam experiências eróticas quase impessoais. O aluno, portanto, deve antes de mais nada reconhecer em si a vocação, o “chamado” homossexual. Depois, quando já estiver certo, deve ingressar na vida gay aceitando suas regras de promiscuidade. Somente depois de muito tempo poderá realizar também uma experiência de amor individual, romântico. Essas observações nos trazem à mente de forma preponderante os processos coletivos. O chamado, a acolhida, a distribuição dos bens em comum caracterizam qualquer comunidade utópica. Talvez a promiscuidade gay seja apenas uma das formas do comunismo utópico. Um comunismo requerido por uma comunidade sem hierarquias e sem qualquer outro objetivo além de dar e receber erotismo. É claro que nessa comunidade podem formar-se amizades exclusivas. Mas depois, e sem ferir demais as regras de fraternidade. E é também obviamente possível o enamoramento exclusivo, monogâmico. Mas nesse caso o casal deve defender-se do comunismo de grupo. George Steiner observa que os grandes matemáticos, os grandes metafísicos, os artífices do contraponto não foram, em geral, homossexuais. E lhe vem à mente a expressão “práticas solitárias”, para indicar suas atividades de pesquisa solitária. Ao contrário, os gays se encontram com frequência no mundo literário, intelectual 78. E este é também um mundo agitado por movimentos sociais, onde surgem comunidades culturais, grupos que se contrapõem à sociedade existente, julgada prosaica, banal. No seu ensaio sobre Whitman, Calvin Bedient sublinha a dimensão erótica difusa, coletiva, de sua poesia, e o 77 78
Paul Robinson: “Caro Paul”, em AA. W., Omosessualità. George Steiner: “Al posto de una prefazione”, em AA. W., Omosessualità.
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chamado para o amor, para uma vida passada inteiramente entre camaradas 79. Se a promiscuidade homossexual masculina é uma manifestação do erotismo coletivo, do comunismo utópico do movimento, compreende-se sua presença na koinè grega e nos exércitos. Diferentemente do que acontece nos relacionamentos heterossexuais, em primeiro lugar está a solidariedade coletiva com seus direitos e deveres, com seu comunismo erótico e então, somente então, delineiam-se as individualidades, as amizades profundas, até chegar ao exclusivismo amoroso do enamoramento. Quanto ao lesbianismo, sua natureza de movimento é tão forte como o que tratamos. Uma parte do feminismo tornou-se movimento lésbico tout court. Aqui, porém, o comunismo utópico não se realizou na promiscuidade sexual orgástica, de tipo masculino, porque o erotismo feminino é basicamente diferente e não põe à disposição de todos o que não deseja. A irmandade lésbica desenvolveu-se mais sob forma de intimidade amorosa de pequenos grupos e de valorização do seu próprio caráter extraordinário e exemplaridade. Falando de uma comunidade de Berlim, uma mulher observa: “A ternura, a atenção que cada uma dedica às outras pode perfeitamente substituir um relacionamento amoroso. Tem-se a impressão de que nossos sentimentos e sensações se fundem uns nos outros. Por isso é difícil traçar uma fronteira entre o que pertence à amizade e o que pertence ao sexo. Ou, mais exatamente, ao corpo. Temos, entre nós, uma ternura corporal... Essa ternura permitiu-me viver durante quatro anos sem ter uma relação de amor com uma mulher. E eu não sofria com isso. Era uma doçura continuamente presente” 80. No movimento lésbico, quando há uma figura dominante, uma líder indiscutível, não se consolida uma estrutura de harém, mas apenas um primado afetivo, materno, do chefe sobre as outras mulheres. O líder masculino sente prazer em ser o único a ter relações amorosas com muitas mulheres, mas, com a líder feminina, isso não acontece. O movimento se 79 80
Calvin Bedient: “Walt Whitman: sorvechiato”, em AA. W. Omosessualità. Evelyne Le Garrec: Des femmes qui s’aiment, Paris, Seuil, 1984.
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estrutura na forma de pequenas comunidades do tipo descrito ou de casais monogâmicos. Mas também no homossexualismo masculino a promiscuidade não produz o modelo harém. Não existe a tendência a procurar eroticamente o único, o líder, o centro. O desejo de variedade erótica conduz ao comunismo erótico, ao compromisso de oferecer-se a todos porque todos se oferecem a nós. O comunismo erótico, como vimos no capítulo precedente, foi tentado por numerosas formações coletivas. A revolução sexual dos anos 60-70 realizou-se através de um certo número de movimentos. A própria pornografia, a partir da Playboy, espalhou-se em nome da liberação sexual como promessa de uma humanidade mais tranquila, mais feliz. Muitíssimas comunidades, seitas ou escolas psicoterapêuticas contemporâneas são formações coletivas com grande permissividade erótica. Porém, quase todas essas comunidades ou escolas, tanto no passado como em época recente, tiveram vida breve. Duravam até que um líder masculino lhes dava uma estrutura de harém, depois se desintegravam. O que não deu certo nas comunidades utópicas heterossexuais funcionou nos movimentos homossexuais, sem necessidade nem mesmo de um grande aparato ideológico. Nos anos 60-70, nasceu um modo de vida gay, bairros gay, uma solidariedade gay como prática de vida, utopia operante. Essa forma de vida pareceu aos seus adeptos um ideal a ser proposto também aos outros. Hoje a comunidade gay está sofrendo uma ameaça. Esta não podia brotar de nenhum fator social. A nossa sociedade tende a reduzir a natalidade, as responsabilidades familiares, a facilitar todos os relacionamentos, torná-los mais velozes, a misturar erotismo e trabalho, erotismo e inteligência. Valores que são comuns aos que pertencem às comunidades gay. A ameaça surgiu com a difusão da AIDS , que se torna mais virulenta exatamente por intermédio dos relacionamentos promíscuos e que, dessa forma, põe em discussão o valor utópico-salvífico da promiscuidade. Enquanto não se encontrar um medicamento capaz de debelar a AIDS , ela será uma ameaça ao próprio cerne do comunismo erótico, ameaça que poderá
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fazer desmoronar todo o alicerce social sobre o qual ele foi construído.
2. Nas grandes cidades, principalmente americanas, formou-se nesses últimos anos uma outra modalidade de promiscuidade heterossexual constituída de “sozinhos” (singles), homens e mulheres que vivem sós, em geral, profissionais liberais, alguns com mais de um divórcio nas costas. Ele têm seus próprios locais de encontro, bares, discotecas, onde, como os gays, estão certos de encontrar outras pessoas livres como eles. Esse exemplo parece contradizer frontalmente nossa tese segundo a qual a promiscuidade só pode ocorrer dentro de uma comunidade onde haja uma forte ligação de solidariedade. Entre os gays esse liame formou-se na época em que eram discriminados e até mesmo perseguidos. Também como comunidade utópica, sempre tiveram de proteger-se de uma sociedade hostil. À primeira vista, o caso dos singles é totalmente diferente, mas não é assim. Até vinte anos atrás, a sociedade americana era uma sociedade de casais. O solteiro, o divorciado, a solteira, a desquitada eram indesejáveis. Aliás, eram até temidos, malvistos, não eram convidados para jantares ou festas. Sua própria existência constituía uma ameaça aos casais oficiais. Assim, a sociedade praticamente os obrigava a casar-se ou tornar a casar-se no menor prazo possível. Mas onde encontrar um novo cônjuge numa sociedade formada exclusivamente de casais? Só havia duas alternativas: tirar o marido ou a mulher de outra pessoa ou casar-se entre si. A sociedade americana sempre controlou suas tensões internas mediante o mecanismo do isolamento, isto é, classificando as pessoas por grupo étnico, profissão, status social e pedindo-lhes que se associassem. A cidade americana é dividida em áreas sociais segregadas: os bairros negros, porto riquenhos, italianos, a cidade universitária, os bairros gay, e assim por diante. Até os singles foram levados a juntar-se para se casarem entre si sem perturbar o sacrossanto lar dos outros. Com a revolução - sexual e a crise da família, cresceu o número de separados, divorciados, os que preferiam viver sozinhos para serem mais livres, sem obrigações. Com isso, hoje os
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“sozinhos” não são mais temidos como no passado. Há mesmo quem preveja que no futuro a sociedade será formada essencialmente de pessoas que, vivem sozinhas. Porém, a forma de sua organização traz ainda a marca da época em que eram discriminadas e obrigadas a formar um grupo entre si. Nas grandes cidades, elas constituem uma comunidade com códigos de comportamento próprios. Têm locais de encontro determinados onde sabem que serão abordados para um relacionamento erótico e sabem que devem comportar- se segundo determinadas regras de etiqueta. Nessa comunidade, as regras sexuais foram profundamente influenciadas pelo modelo da promiscuidade homossexual masculina. Nas cidades européias, e em particular na Itália, o mecanismo social da segregação jamais funcionou. Existem comunidades gay, mas não bairros gay, negros ou portoriquenhos. No passado, o número de separados e divorciados era irrelevante, enquanto os solteiros e solteiras jamais foram considerados um perigo para os casados e jamais foram discriminados. Tanto uns como outros sempre conviveram normalmente com as outras pessoas. Por esse motivo não desenvolveram um forte espírito de grupo. Também a ética erótico-sexual dos singles não se tornou tão permissiva como aconteceu nos Estados Unidos. Isso não significa que a moral européia seja mais rígida. Ela é certamente menos uniforme. Nos Estados Unidos, um solteiro é obrigado a adequar-se às normas permissivas do grupo a que pertence, deve aceitar o nível de promiscuidade. Na Europa, não. Ele pode decidir trocar de cama a cada noite ou ficar só até encontrar a pessoa que ama. Entre esses dois extremos existem todos os graus intermediários. Além disso, uma pessoa não casada, divorciada ou solteira pode mudar seu comportamento, agir um pouco de um modo e depois de outro. Não há pressão social alguma que a constranja a adaptar-se a um padrão. Também nas comunidades dos “sozinhos” a difusão da AIDS está provocando um pânico difuso e uma confusão cultural. Principalmente nos Estados Unidos. Sobretudo onde ser uma pessoa só, livre sexualmente em uma sociedade promíscua significa pertencer à elite que prefigura o amanhã. Significa mostrar o caminho aos outros, o caminho da felicidade e d a
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liberação. A doença que se propaga justamente através da promiscuidade mina nas próprias raízes essa crença ideológica, transforma num perigo o instrumento fundamental da redenção, destrói a solidariedade da comunidade. Cada novo recém-chegado não é mais um irmão a se conhecer sexualmente, a se iniciar nas alegrias da liberdade, é um perigo em potencial, um inimigo. E os lideres do grupo, o centro intelectual e erótico do movimento, correm o risco de aparecer como a fonte máxima de contágio, os empestados, aqueles a quem se deve evitar com horror.
16 A sociedade americana, com o passar dos anos, tornou-se cada vez mais voluntarista. O voluntarismo não é uma filosofia , é um modo de pensar, um princípio lógico que encontramos em quase todos os produtos da cultura americana. Ele parte do pressuposto de que as pessoas podem sempre definir claramente o que desejam, motivo pelo qual o problema se resume apenas à forma de obtenção de tal coisa. No voluntarismo, o fim não é um problema, somente o meio o é. A ideia central do voluntarismo provém da economia capitalista. No universo econômico o fim é claro: maximizar o lucro. Qualquer outro fim não pode nem ao menos ser levado em consideração, é irracional. Numa transação econômica todos devem procurar ganhar. Em qualquer lugar domina a regra do custo- benefício. Isso é possível porque existe uma medida comum do valor, o dinheiro. É o dinheiro que torna comparáveis objetos, serviços prestados, prazeres heterogêneos. Ao se pretender aplicar o princípio da maximização, o primeiro passo consiste em estabelecer o fim. Em economia o fim é determinado. A sociedade americana aplicou esse tipo de categorias econômicas a todos os âmbitos vitais. Até às relações interpessoais, ao erotismo, aos sentimentos. Por isso o imperativo categórico da sociedade americana, o que está por trás de cada ação, cada pensamento, cada opção, é: fixe o fim, estabeleça o que quer! Uma vez estabelecido o fim,
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predispõem-se os meios organizadores, técnicos e financeiros mais idôneos para atingi-lo. Apliquemos esse princípio aos homossexuais. O que desejam eles? Fazer amor com outros homossexuais. Muito bem. Então que se reúnam entre si! Que vivam no mesmo bairro, assim poderão fazer amor até cansar. O que desejam, em vez disso, os pares casados? Não ser ameaçados pelos solteiros, pelos divorciados. Então deixem-nos fora do seu ambiente, não os convidem para suas festas. O que desejam, finalmente, os não casados? Encontrar-se, procurar a alma gêmea ou então fazer amor. Então que se unam aos outros solteiros e façam todas essas coisas. Deve haver bares onde procurar companheira por uma noite, outros onde encontrar a alma gêmea. Como num grande, imenso supermercado. Basta saber o que se quer, vai-se à seção adequada e se procura a melhor marca ao preço mais conveniente.
Isso é voluntarismo: determinar sempre, desde o início, o que se quer. Quer ser gay, casado ou solteiro? Quer ter um romance ou uma experiência orgiástica? Quer ser monógamo ou polígamo? Uma vez determinado o que realmente quer, deverá procurar seu grupo, ler alguns livros apropriados 81 e esperar "pelo resultado. No oposto do voluntarismo americano está a concepção européia, segundo a qual nós jamais sabemos direito quais são os nossos fins. Porque temos desejos conflitantes, paixões divergentes. O verdadeiro problema surge, portanto, no início. Quer ser homossexual? Então vá viver numa comunidade gay, diz o voluntarismo. Mas uma pessoa pode sentir-se homossexual e, não obstante, não aceitar o modo de vida gay. Pode gostar do bairro em que vive, o ambiente humano e social tradicional, comportado e rico de sua cidade. Pode desejar a companhia de amigos casados, de mulheres, o estímulo da diferença, pode detestar a promiscuidade. Por que deve fecharse num gueto e aceitar as regras gay? Sim, ele se sente homossexual, mas viver como gay, estar obcecado pelo 81
Um típico manual desse gênero é o escrito por Marie Edwards e Eleonor Hoover: The challenge of being single. Nova York, New American Library, 1975.
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erotismo não é a única finalidade de sua vida. Existem outras, às quais não quer renunciar. O fim não é algo de pacífico, de óbvio. O fim é um problema 82. Não existem fins pré-moldados antes das ações. Eles se revelam durante as ações. Não são um a piori com respeito ao qual todo o resto é meio. Aparecem. Podemos partir em busca de uma aventura erótica sem nenhum envolvimento emocional, podemos até resolver, em determinado momento de nossa vida, que não queremos mais saber do amor. Mas depois percebermos, espantados, que a simples sexualidade, a repetição de encontros novos e superficiais nos desilude, deixando no coração um sentimento de vazio. E que temos necessidade de liames profundos, de sonho e de amor. Ou então, o contrário. Somos casados, amamos nosso marido ou nossa mulher, mas sentimos, no íntimo, uma inquietação que nos faz procurar em cada pessoa que encontramos aquele ou aquela que mudará a nossa vida. Ai de nós, porém, se procurarmos definir com um teste essa pessoa ideal. Ai de nós se nos decidirmos a encontrá-la dentro de um ano e desposá-la imediatamente/Ai de nós se aplicarmos toda a nossa vontade para realizar esse sonho extraordinário com um método racional. Porque aquilo era um sonho. A nossa razão não conhece as raízes dele, os misteriosos anseios do nosso coração. O teste não nos pode adiantar nada sobre quem procuramos. Seguindo-o, a vontade se condena a não encontrar nada. Segundo essa concepção da existência, os seres humanos não se conhecem, não sabem exatamente o que querem. Se decidem maximizar algo, devem fazer uma escolha arbitrária entre muitas coisas equivalentes. No mundo dos afetos, não se pode aplicar o cálculo dos custos-benefícios. Porque os benefícios não são mensuráveis e não podem ser confrontados. Não existe, portanto, uma técnica de relações afetivas. Não existe nem ao menos uma arte, mas no máximo um conhecimento, um saber que ajuda a compreender e a nos compreendermos, que ajuda a ouvir e a ouvir-nos. 82
Salvatore Veca escreve: “Os seres humanos parecem ser, no plano positivo, atores caracterizados sobretudo por poderem ter fins em geral, não por terem um fim determinado". Questione di giustizia, Parma Pratiche, 1985.
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A reflexão européia sobre o amor 83 tem por isso encontrado expressão através de paradoxos. O paradoxo explode quando se quer aplicar ao mundo das qualidades uma ordem lógica que lhe é estranha. Assim, dizemos que o amor é cego porque não enxergamos mais os defeitos da pessoa amada. Mas, ao mesmo tempo, vê mais que os outros, porque nota as qualidades e as belezas que eles não percebem. Assim, o amor é conquista, porém, ao mesmo tempo, submissão. É egoísmo, egoísmo desenfreado; no entanto, é também dedicação total. É respeito, mas não recusa diante do amado. É temor, mas também coragem, prisão e liberdade, doença e saúde, felicidade, mas também martírio. O amor é um contínuo pedir, mas é também ansiosa espera.
17 1. Todo o eu é dividido, é o resultado de muitas promessas, cada uma delas incompatível, em suas consequências, com as outras. Permanecer fiel a uma promessa com toda a intensidade do momento em que foi feita implica uma mutilação da existência, um consumo enorme de energias, uma vigilância contínua. Prometer é empenhar o futuro, subordiná-lo a uma exigência que deve ser reconstruída continuamente. Exige que se limite o futuro dentro do que foi decidido. Ter um filho é uma promessa. Toda a cadeira de consequências, de compromissos só se revela em seu crescimento. Também viver juntos é uma promessa porque leva a assumir as relações da outra pessoa como deveres. Eles se revelam aos poucos, assim como se revelam suas necessidades, seus desejos, tudo o que ela pouco a pouco vai se tornar e vai desejar. Os deveres de hoje são a sedimentação do que foi querido no passado, mas isso também acontece com boa parte dos pra zeres. Acabamos por extrair prazeres daquilo que fazemos. Como não é possível que tudo o que nos agradou continue a agradar-nos agora, significa que aprendemos a extrair prazer 83
A obra mais completa sobre esse tema é a já citada L’amore come passive, de Nitlas Luhmann.
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do que temos. Significa que aprendemos a dizer sim à sociedade que nos pergunta continuamente: “Por que não sente prazer se o desejou?” O homem contemporâneo procurou de todas as maneiras subtrair-se a esse controle. Mas a sociedade não esquece. Somente o anonimato consente no esquecimento, consente que o eu permaneça dividido. O eu reconhece sua laceração interna somente quando esta lhe é lembrada por outra pessoa. Todos nós poderíamos levar existências paralelas, não fosse esse contínuo recordar dos outros. A norma não existe para o indivíduo isolado 84, é produzida exclusivamente pela pressão social. É o recordar dos outros que nos impõe a síntese do nosso eu. É diante da lembrança dos outros que temos de exibir a nossa coerência. Sozinhos, esqueceremos as promessas como esquecemos nossas dívidas. Há no erotismo um elemento de revolta contra esse estado de coisas. Vimos isso mais amplamente no erotismo masculino, que tende a recusar os deveres, os compromissos e as próprias implicações, a longo termo, do amor. Mas também na mulher, também no desejo feminino de amor, está oculta a necessidade de que este amor seja continuamente livre, continuamente recriado e jamais se reduza a um dever de amar, lembrança de um compromisso de amar que existiu no passado e que não é mais sentido hoje. O amor é ligação e dependência recíproca, mas na liberdade. A promessa, a pura ética da promessa, ao contrário, não admite a liberdade de mudar. O que foi prometido deve continuar a valer para sempre. Se você se comprometeu a amar, tem de amar. Também o erotismo feminino, o erotismo do amor, não pode, por essa razão, aceitar a promessa como força vinculadora e tende a rebelar-se à memória social. O erotismo, mesmo o erotismo feminino, é novidade, revelação e mistério. Nada do que é observado, lembrado, exigido, pode ter qualquer mistério. O mistério é um possível incomensurável, é um avançar além de tudo o que é conhecido, tudo quanto é lembrado pelos outros. O cotidiano é social. É um pensamento 84
Salvatore Veca recorda a solução de Saul Kripka ao paradoxo de Wittgenstein: “Quando dizemos que alguém segue uma regra, referimo- nos a esse alguém como membro de uma comunidade em uma prática”. Do livro Ragioni e pratiche, a ser publicado.
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alheio que nos impomos dizendo-o nosso, porque foi desejado por nós ou é consequência do que foi desejado por nós. É a alienação de nós mesmos que nos vem restituída como naturalidade. Mas é sempre um comportamento alheio que nos penetra, monta nas nossas costas e nos faz caminhar com ele. O erotismo tem horror do cotidiano social. Tende a rebelar-se ou esquivar-se a ele. O erotismo possui dentro de si, em seu âmago, uma aspiração ao “aqui e agora”, mesmo se o pensamos como contínuo, como eterno. A liberdade é o direito de querer o eterno na hora. Quando é seguro de si, como no enamoramento rebelde e exemplar, desafia o cotidiano, recusa o passado, afasta as perguntas, proclama-se acima do bem e do mal. Quando não possui o vigor do enamoramento, busca a solidão, retrai-se, subtrai algo de si, como defesa. Procura os locais isolados como as celas dos monges. Afinal, por que os monges teriam necessidade de celas, senão para defender-se dos outros monges? Procura acima de tudo o silêncio, o segredo interior, a intimidade. Procura o esquecimento. O mundo moderno necessita desses silêncios, desses esquecimentos, dessas alusões. Necessita estar ausente para poder continuar vivo. Mas o que se subtrai? O que é necessário subtrair? A nossa necessidade de ser mais do que somos, daquilo que nos foi destinado. Isso não pode ser somente passado, promessa, porque é sempre também chegada, epifania, abertura, novidade, liberdade, revelação. O cotidiano é a chama dos homens, mas nós esperamos também a chamada dos deuses.
2. O que levava, em tempos passados, uma pessoa com marido, mulher ou filhos, a buscar uma relação fora de casa, quando o fato comportava um risco gravíssimo? O adultério era um pecado mortal, punido, sem atenuantes, com a morte. Antes do advento das sulfas e dos antibióticos, a sífilis e a gonorréia eram doenças terríveis. Hoje, com a AIDS , voltou o medo do contágio sexual. Por que, então, apesar de perigos tão graves, as pessoas, homens e mulheres, procuram encontros eróticos? O que as impele a correr um risco tão grande? Imaginamos que na base disso haja um motivo grave, uma
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profunda insatisfação no casamento, ou um grande amor apaixonado. Não é isso. Não é o amor louco ou heróico que provoca o desejo do encontro, o desespero, é um motivo mais fútil, um prazer mais leve, alguma coisa que poderia ser chamada de insignificante. É essa tenacidade irracional, esse princípio obscuro, esse impulso misterioso que tanto fascinou Freud, a ponto de fazê-lo colocar a sexualidade na base de todas as coisas. Porque lhe parecia a forma mais dificilmente disciplinável, canalizável, dominável de uma vez por todas. Não porque possua motivações elevadas, mas porque não tem motivações. É a sua esquivança que a torna indomável. E no entanto Freud não acertou no alvo. A sexualidade, no animal, é uma força previsível, cotidiana. Somente no ser humano, tomada erotismo, transforma-se em potência inquietante que desafia o risco. Só no ser humano torna-se desmedida, porque é alimentada por uma inexaurível fantasia. Todos nós desejamos uma vida intensa com grandes alegrias e grandes desejos. Todos nós desejamos novos encontros, ver novos países; enfim, esperamos sempre algo glorioso e maravilhoso. Queremos desejar mais intensamente e satisfazer os desejos mais intensos. O que nos caracteriza como seres humanos é a contínua tendência a transcender-nos. Os nossos fins não são determinados como os dos animais, eles vão se revelando. Conhecer é conhecer os nossos fins. A procura dos fins é a nossa mais profunda natureza. Não é a sexualidade a causa da inquietação da natureza humana. A sexualidade é apenas o terreno onde se manifesta essa inquietação transcendente. Irrompendo na sexualidade, o divino ou o demoníaco transformam-na em erotismo porque deixam entrever o maravilhoso, o extraordinário, o emocionante, o sublime. Ou então também o diferente, o desconhecido, o desafio.
3. A inquietude do erotismo é a inquietude do conhecer. A verdade é sempre o que não se sabe, o que não se havia notado, o não dito, o pouco usual, o insólito e, portanto, o mais altamente pessoal, nosso, unicamente nosso. É sempre uma personalíssima descoberta nossa.
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A verdade é pessoal. Eis por que não podemos aceitar o que os outros dizem por franqueza. Para chegarmos à verdade temos de resistir. Para se chegar à verdade há sempre um momento em que devemos rejeitar o que está sendo dito. Mesmo quando aprendemos e dizemos: “É isso, ele tinha razão, é verdade”, é a verdade somente porque fomos nós que a descobrimos, nós que a assimilamos, nós que a reconhecemos. O resto é o óbvio, o já dito, o já sabido, o repetido, o que não acrescenta nada e que subtrai. Isso é verdade principalmente no terreno dos sentimentos, do erotismo, do amor, da vontade. Se a verdade é pessoal, a vontade deve reconhecer sua meta. A meta é como um perfume. Deve ser sentido entre muitos. É como uma cor. Deve ser notada entre as mil cores do mundo.
4. Mas se a verdade é pessoal, se a revelação é como reconhecer um perfume entre mil outros, também o erotismo mais intenso deve ter uma ligação estreita com a pessoa. Muitos afirmam que o máximo do erotismo é a promiscuidade orgiástica. É uma ilusão. Claro, o erotismo é possível mesmo no relacionamento com diversas pessoas. Mas cem pessoas são menos concretas, menos vivas, menos intensas do que as diversas aparições de uma mesma pessoa. Há na vida dos indivíduos longas fases de busca constelada de encontros com pessoas diversas. Também os filmes a que assistimos, os livros que lemos são contatos eróticos múltiplos. Depois, em outra fase da vida, esse múltiplo procura sua unidade e só pode encontrá-la em uma pessoa. Então esta se torna todas as outras, sua síntese e sua transcendência. No enamoramento, isso acontece em seu grau máximo. Ele se alimenta do múltiplo. Porém, a própria experiência do múltiplo precisa de unidade. Na promiscuidade não poderia haver erotismo se não se tivesse tido, ao menos uma vez na vida, uma relação extraordinária individual. Somente a relação individual é capaz de produzir a identificação dos outros indivíduos, consegue fazer deles objetos eróticos. Só os vemos se nossos olhos tiverem aprendido a enxergar através da experiência, extraordinária e glorificante, alcançada com um indivíduo particular. Se nos falta essa experiência, falta- nos a capacidade de enxergar o
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individual, o extraordinário individual que existe em tudo. O objeto do interesse erótico é o indivíduo e somente o indivíduo. Também na promiscuidade somos atraídos por particularidades individuais, os olhos, os seios, as mãos, as costas. Desejamos tocar, ver, abraçar aquela pessoa e depois aquela outra, mas as duas não se confundem de modo algum. Queremos as duas justamente porque são diferentes. Nesse interesse erótico difuso apreendemos as particularidades, e são exatamente essas particularidades daquele indivíduo novo e inconfundível que nos agradam. Cada indivíduo é diferente do outro, e queremos essa diversidade. Se não há essa revelação da profundidade individual, os outros não passam de corpos amorfos, amontoados. Seus olhos não brilham, e as bocas não sorriem. Tudo se dissolve na multiplicidade indiferenciada.
5. Há e haverá sempre, no erotismo, uma dialética profunda entre pluralidade e unidade, entre promiscuidade e unicidade. Esta exige o múltiplo, tem necessidade do múltiplo para enriquecer-se. Se se torna repetição, hábito, dever, disciplina, o erotismo morre, transforma-se em tédio, nojo. Sem o múltiplo, sem o possível, sem a sedução, sem o extravasamento, não pode haver erotismo. Por isso as mulheres desejam agradar a todos os homens, têm necessidade de ser desejadas por todos, para poderem escolher o eleito. Por isso os homens se sentem fascinados pela beleza que descobrem em cada mulher e gostariam de ter todas as mulheres do mundo. Porém, essa mesma beleza se revela a eles somente com o tempo, no aprofundamento da relação com aquela única pessoa. O múltiplo é alimento, linfa, sangue do erotismo. Para ambos os sexos. Mas o triunfo do erotismo, sua expansão soberana, a erotização do mundo acontece somente quando essa infinidade de múltiplos se concentra numa só pessoa, como os mil estímulos visíveis no foco da retina. A pessoa torna-se então o uno e o múltiplo ao mesmo tempo. Esse é o milagre do amor erótico. No amor erótico, todo o universo se reduz a uma única pessoa e a transcende. Então, cada particularidade dessa pessoa nos comove e exalta. Tudo da pessoa amada é estupendo, o que foi e o que é. Tudo, um
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olhar, uma palavra, o movimento dos lábios, a curva das sobrancelhas, o olhar pensativo. Tudo se torna precioso para nós. Até mesmo a ausência, o lugar onde nosso amado esteve. Todas as qualidades de uma pessoa, todas as particularidades de seu corpo, todos os gestos, todas as palavras que possa dizer, todas as posições que possa assumir, todos os lugares onde possa estar, todas as recordações que possa evocar são tantas outras sequências infinitas que convergem. O amor é um perene viajar nessa infinitude, passando de maravilhamento a maravilhamento. Na pessoa amada estão concentradas todas as outras pessoas do mundo. Todas as lembranças, todas as impressões, mesmo as mais fugazes, do que desejamos no passado. O nosso amado é a síntese de todos os encontros, de todos os artistas famosos, de todas as fotografias, de todos os sonhos, de todos os amantes, de todos os desejos, de todas as mulheres e de todos os homens com que podemos nos identificar, com que podemos sonhar. Nada poderá jamais exaurir essa riqueza. Nenhuma multiplicidade concreta jamais poderá ser comparável a essa infinidade de possíveis, à plenitude dos amores.
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Objetos de amor
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18 Nas mulheres o erotismo funde-se com o amor. Desde a intenção da sedução até os movimentos coletivos, como o amor pelo artista ou pelo líder. No homem, ao contrário, pode haver excitação erótica sem que haja a necessidade de um envolvimento amoroso. O que significa tudo isso? Que é apenas a mulher que ama? Que somente ela se enamora e mantém o homem ligado sexualmente? Que na relação homem-mulher há sempre e unicamente uma troca de sexualidade por amor? Não. Sabemos que também os homens sabem amar. Sabemos, com certeza absoluta, que também os homens se enamoram. Nesse caso, eles desejam aquela proximidade, aquela ternura, aquela continuidade que descrevemos como tipicamente femininas. Também o homem tem necessidade de amor, de estabilidade afetiva. No homem, o desejo sexual consegue separar-se do amor somente com a condição de ter, nas outras esferas, uma grande segurança emocional. A imagem do homem duro, frio, absorvido pelo trabalho e insaciável sexualmente é uma simples fantasia, sem nenhum respaldo na realidade. Devemos então chegar à conclusão de que o homem se comporta ocasionalmente como as mulheres se comportam sempre? A mulher — segundo essa interpretação — seria capaz de um estado contínuo de enamoramento. O homem, ao contrá rio, poderia viver essa experiência apenas ocasionalmente, de vez em quando. Mas essa tese, ainda que sugestiva, tampouco é sustentável. A experiência demonstra que também a mulher se enamora somente de vez em quando. Não vive continuamente enamorada. Existem longos períodos em que isso não acontece 85. Pode viver com um homem a quem queira, mas que não a faz vibrar de paixão. A diferença entre o erotismo feminino e o masculino reside no fato de que a mulher somente sente prazer sexual se gosta do homem em sua totalidade e, sobretudo, se o ama com paixão. O que não significa que sinta 85
Dorothy Tennov escreve: "Os homens, já que são capazes de atingir o orgasmo sexual (fora de uma relação emocional), conseguem distinguir melhor o enamoramento da (simples) atração sexual. As mulheres, ao contrário, porém estar mais inclinadas a interpretar suas excitações eróticas como aspecto do enamoramento”, Love and limerence, já citado. A mesma Tennov, porém, afirma explicitamente que a experiência do enamoramento é idêntica para ambos os sexos. Ver o capítulo “Sex differences and sex roles”, no livro Love and limerence.
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verdadeiramente essa paixão. Por outro lado, também o homem se enamora e permanece enamorado por longos períodos. Nesse estado, sua maneira de sentir e sua experiência são muito semelhantes às da mulher enamorada. Mas não porque tomou a mulher como modelo, ou imitou e adquiriu sua capacidade de amar. Ambos, ao enamorar-se, tornam-se diferentes do que eram antes, e mais semelhantes entre si. Para sair desse labirinto de perguntas sem resposta, devemos deixar provisoriamente de lado o erotismo no seu senso estrito e colocar-nos um outro problema. Quais são os mecanismos pelos quais nos ligamos de maneira estável a outra pessoa? O que nos leva a sentir afeto, amor, a querer bem de modo duradouro a uma outra pessoa? Colocada a pergunta nesses termos, vê-se imediatamente que o enamoramento não é o único caminho que conduz ao amor. Se quisermos respeitar o significado das palavras, não podemos dizer que “estamos enamorados” de nosso pai ou de nossa mãe. Podemos dizer que “estamos enamorados” para sublinhar o aspecto passional do nosso amor. Mas é incorreto dizer que estamos enamorados deles. Não, o nosso amor já existia quando éramos bebês, quando éramos crianças, quando éramos adolescentes. Todas as vezes diferente, incrivelmente diferente. E, no entanto, também distinto do amor doloroso e resplandecente que sentimos, já adultos, quando nos enamoramos de alguém. Nós queremos bem, amamos os irmãos ou irmãs, mas jamais estamos enamorados deles. Mesmo a mãe jamais se enamorou do filho. Porque é como se o seu amor existisse antes de tudo e esperasse apenas uma voz que lhe dissesse: “Seu filho é aquele”, para dedicar-se toda a ele. Ao contrário, o enamoramento abre caminho a duras penas na nossa mente e no coração. Aparece e desaparece. É incerto. Pergunta contínua, obsessivamente: “Eu o amo? Ele me ama?” Também o amor da amizade é diferente. Vai se formando pouco a pouco, através de encontros durante os quais sentimos que o outro, com sua experiência vital, nos enriquece. Ajudanos a nos tornar nós mesmos. O amigo nos dá confiança. Porém, não temos necessidade de estar sempre com ele. Sabemos que existe, que está ao nosso lado, sempre pronto a ajudar-nos. O tempo e a distância não contam.
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Pai, mãe, irmãos, irmãs, filhos, marido, mulher, amante, todos estes são objetos estáveis de amor. Em termos psicanalíticos, são aqueles sobre os quais fizemos grandes investimentos afetivos. Mas os mecanismos que provocaram esse investimento não são os mesmos. Quais são eles, então? Nos próximos capítulos falaremos de três deles. O primeiro é fundamentado sobre a satisfação das nossas necessidades e desejos, sobre o prazer e o desprazer que o relacionamento com outra pessoa provoca em nós. Se alguém nos proporciona prazer, particularmente prazer erótico, a nossa tendência será a de voltar para ele, permanecer mais longamente com ele e retornar mais uma vez. O prazer reforça a ligação, a frustração a enfraquece. Esse mecanismo funciona na base dos reflexos condicionados da aprendizagem e corresponde à lei do efeito de Thorndike. Os psicólogos behavioristas e os utilitaristas recorrem a ele para explicar todos os relacionamentos emotivos. O segundo mecanismo foi muito menos estudado e é certamente menos conhecido. Consiste no fato de a importância das pessoas somente nos aparecer de quando em quando. Principalmente quando há uma ameaça externa, ou quando temos de escolher entre duas alternativas. Quando corremos o risco de uma perda. Para dar um exemplo simples e intuitivo, nós nos apercebemos da importância da saúde quando estamos doentes, da importância da nossa cidade, dos nossos amigos, quando temos de emigrar. Os nossos objetos de amor mais estáveis surgiram dessa maneira para nós e foram escolhidos, desejados e protegidos contra uma ameaça. O último mecanismo, aquele específico do enamoramento, é, ao contrário, o estado nascente. Não deve ser confundido com os dois primeiros, pois possui uma estrutura completamente diferente. Esses mecanismos estão presentes tanto nos homens como nas mulheres. Não existe uma modalidade feminina e outra masculina de aprendizagem, de perda ou de enamoramento. Esses mecanismos, porém, agem diversamente nos dois sexos, e veremos como isso acontece.
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19 1. Comecemos a nos ocupar do mecanismo baseado no prazer. É o intuitivamente mais fácil, mais lógico, mais racional. Resumindo, ele nos diz que — definitivamente — nós nos afeiçoamos a quem nos trata bem, a quem nos dá alegria, enquanto evitamos, ou mesmo odiamos, quem nos trata mal. O relacionamento primordial do bebê com sua mãe é desse tipo. Isso já antes do nascimento, porque recebe alimento e vida da placenta. Depois, porque é a mãe que interpreta suas necessidades e as satisfaz. A psicanálise, no seu complexo, tende a colocar a fixação da libido como um produto de sua satisfação. As grandes satisfações, os prazeres intensos nos ligam às pessoas que no los proporcionaram. Dessa maneira ocorre a transformação da libido narcisística em libido objetual. O eu é como uma ameba que expulsa seus pseudópodes e vai para onde encontra alimento e prazer. O prazer sexual, observa Freud, é o maior dos prazeres. Por isso está em condições de criar as mais fortes ligações. Se alguém nos proporciona um grande prazer erótico, procuraremos encontrá-lo de novo, depois mais e mais vezes. Cada experiência positiva, cada êxtase alcançado, reforça a nossa necessidade do outros. Se a experiência de prazer renovado é bilateral, entre as duas pessoas se estabelecerá uma ligação duradoura, capaz de resistir até mesmo a graves frustrações. Acrescentemos o fato de que o ser humano é racional. Por esse motivo é capaz de procurar ativamente alguém que lhe proporcione prazer e comportar-se de modo apropriado com ele. Se eu experimentei, ao lado de uma pessoa, um grande prazer, procurarei ser-lhe agradável, fazê-la feliz. Se essa pessoa, além disso, me agrada, tentarei evitar todas as situações desagradáveis, procurando, a cada vez, um encontro perfeito. Perfeito não somente para mim, mas também para ela, pois desejo que ela me deseje e queira voltar para mi m. Desse modo, duas pessoas que tiveram encontros agradáveis podem estabelecer entre si uma ligação cada vez mais forte.
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O relacionamento amoroso é visto nesse modelo como um desdobramento do relacionamento erótico, a sedimentação de todas as suas experiências positivas, o resíduo sólido do prazer que a pessoa experimentou. Graças à inteligência e à aprendizagem, o amor bilateral pode ser obtido através do erotismo e da satisfação recíproca. Dessa forma, a arte erótica coloca-se a serviço da arte de amar, constituindo um capítulo e um instrumento. O leitor reconhecerá facilmente, nesse modelo explicativo, o mínimo denominador comum da psicoterapia contemporânea que se propõe a melhorar nossas relações afetivas. Nele reconhecerá, além disso, o pressuposto implícito nos manuais americanos sobre “como fazer”, visto que essa é a vulgarização e a popularização da psicoterapia. O sujeito é convidado a aplicar, por si mesmo, as regras de ouro descobertas pelos psicólogos. Que afinal se reduzem a uma: realizar o prazer recíproco e, dessa forma, um amor estável. Não obstante a sua lógica, não obstante o crédito universal de que goza, essa teoria do amor é falsa. Não explica nada. Se aplicada a fundo, leva a conclusões absurdas. Por exemplo, leva à conclusão de que as pessoas mais inteligentes e cultas deveriam ter uma vida amorosa mais feliz do que as mais simples. Em vez disso, não há nenhuma relação entre cultura e felicidade amorosa, entre conhecimento psicológico e estabilidade do casal. Não há também relação entre grau de instrução e capacidade de amar. Não é somente entre os pobres e ignorantes que as famílias se esfacelam, os casais se separam, os relacionamentos entre os sexos são difíceis. Isso significa que as regras e receitas psicológicas não possuem nenhum poder sobre a situação. Elas fazem parte da situação.
2. Voltemos à afirmação de Freud segundo a qual o prazer erótico é o maior dos prazeres. É verdade. Vejamos agora a seguinte afirmação: a pessoa que encontra em outra um grande prazer erótico procurará encontrá-la de novo, depois mais e mais vezes. Cada experiência positiva, cada êxtase alcançado, reforça o relacionamento. Isso não é verdade. A pessoa pode se cansar. Isso acontece em ambos os sexos, mas nos homens o fenômeno é muitíssimo mais frequente. A vida cotidiana, a erotização do tempo que tanto agrada à mulher, exerce sobre o
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homem, geralmente, um efeito que deprime o erotismo. Todos os encontros eróticos foram felizes, belíssimos, mas, em vez de reforçar o relacionamento, produziram o hábito. Além disso, devemos ter presente que no homem há dissociação entre avaliação erótica e avaliação global da pessoa. Um homem pode desejar uma mulher desesperadamente, adorar seu corpo, e no entanto não querer viver com ela, ao passo que se sente bem com outra que, eroticamente, não lhe diz nada. Pode também sentir uma fortíssima atração erótica por uma mulher em que não confia, de quem se envergonha. No livro O complexo de Portnoy 86, de Philip Roth, o protagonista sente-se atraído por uma mulher belíssima, La Langur, que no entanto ele despreza. Essa mulher tem uma sexualidade transbordante, um corpo extraordinário, todos a olham, todos a desejam, todos o invejam. Porém, é ignorante, veste-se vulgarmente, e é provocante demais. Ela lhe é dedicada, gosta dele, mas ele não consegue de forma alguma afeiçoar-se a ela. Um homem pode ter um caso plenamente satisfatório do ponto de vista erótico, mas que acaba terminando diante do primeiro obstáculo, quase por descuido. Quando duas pessoas dizem que só se dão bem na cama, fazendo amor, é sinal de que possuem muito pouco em comum, ou que o seu relacionamento está para terminar. É impressionante observar, sob esse ponto de vista, a diferença que existe entre o erotismo (masculino) e a amizade. Também a amizade, como o erotismo, se estabelece através dos encontros, tem uma estrutura granular. Na amizade o encontro é sempre uma revelação, a descoberta de algo de si mesmo e do mundo através do outro. Cada encontro deixa um lastro de simpatia, de confiança, de afeto. No encontro seguinte temos a impressão de ter deixado o amigo pouco antes, de continuar a conversa interrompida. Cada grânulo de tempo se acrescenta aos outros, e quanto mais frequentes forem os encontros, mais a amizade é reforçada, os laços tornam-se mais sólidos, a confiança, mais profunda 87.
86 87
Philip Roth: O complexo de Portnoy, publicado no Brasil. Francesco Alberoni: L’amicizia, já citado.
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No erotismo (masculino) não acontece esse milagre. Cada novo encontro não é vivido como a continuação do precedente, mas como algo totalmente novo, uma nova experiência, uma nova tentativa. Cada encontro erótico pode ser ótimo ou péssimo, está sempre sob julgamento. Na amizade, não julgamos o encontro. Se nele alguma coisa não andou bem, houve alguma incompreensão, não damos a isso muita atenção, esquecemos. Haverá uma próxima vez. A amizade não quer julgar. É paciente. A intensidade da amizade não é o resultado da soma aritmética do julgamento de todas as vezes que os dois amigos se encontraram. É a soma dos encontros positivos. No erotismo (masculino), ao contrário, os encontros são julgados independentemente e avaliados sem levar em consideração o passado. Se já existe o amor, acontece como na amizade: as desilusões não contam. Mas se não existe amor, se ele deve nascer exatamente dos encontros eróticos, então tudo está sempre em discussão, porque algumas desilusões são suficientes para criar irritação e desagrado, o suficiente para interromper o relacionamento. Na amizade a alegria do passado conta de uma forma mais que proporcional, no erotismo (masculino), menos que proporcional.
3. Não há então nenhuma possibilidade de que, no homem, de uma relação erótica bem-sucedida nasça uma relação duradoura, uma ligação mais forte? A possibilidade existe, mas depende de que se realize um tipo de experiência particular. O homem se ligará à mulher somente se na relação entre ambos ele tiver a experiência de um erotismo crescente. O cão reage ao mesmo estímulo, à mesma carne. O homem, não. O mesmo estímulo, em determinado momento, leva ao hábito. Na espécie humana todos os estímulos funcionam como estímulos condicionados, necessitam de um reforço. O prazer não pode ser uma repetição do prazer passado. A repetição do passado é somente tédio. A vida tem horror à repetição. A ligação amorosa é impossível se não existir uma forma qualquer de futuro. O futuro mais simples, aquele que pode ser experimentado diretamente no presente, é o algo mais. Algo mais que ontem, algo mais do que imaginamos uma hora atrás.
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Algo mais que dizer avanço, movimento, crescimento. Então o encontro torna-se revelação de que aconteceu algo de inesperado e de melhor. À experiência vital toma uma direção. Vai do pior para o melhor, cresce, se enriquece, enriquece o outro. Também no erotismo masculino desaparece essa diferença positiva, desaparece a espera do melhor, desaparece qualquer possibilidade de futuro. A ligação erótica não permanece nem ao menos no presente, escorrega no “gostei muito”, como coisa acabada, morta. Os homens, então, para manter vivo o encontro, recorrem a fantasias eróticas. Imaginam estar fazendo amor com outra mulher, uma mulher do seu passado, da qual recordam um gesto, uma palavra, uma imagem. Ou então que seja a sua mulher a fazer amor com um homem do seu passado com o qual se identificam. A última etapa dessa prótese erótica é o filme pornográfico onde o homem busca excitação no que os outros fazem, os diferentes dele.
4. A mulher, ao contrário, dificilmente precisa ter numerosos encontros eróticos felizes com um homem para perceber, com clareza, que ele não lhe agrada mais. Na mulher, todo encontro está ligado ao passado. Ela leva em consideração a experiência passada. Se o relacionamento continua é porque cada encontro conseguiu integrar-se aos encontros passados, constituindo um crescimento harmônico. O homem concebe a experiência sexual como o salto do trampolim para mergulhar na piscina. Se a mulher se entrega a ele sexualmente, tem a impressão de que também ela “mergulhou”, abandonou-se totalmente a ele. Mas isso não é verdade. Á mulher jamais se entrega eroticamente de uma só vez. Sua entrega é sempre gradual. Já de longe examina o homem. Desde o primeiro olhar experimenta sensações favoráveis ou negativas. Deixa-se abordar somente quando o desconhecido lhe causou boa impressão, quando seu cheiro lhe agrada, enfim, quando a interessa. Mas não passa da primeira etapa. Mesmo no encontro sexual a mulher dá somente uma pequena parte de si, a parte mais exterior. O acesso ao seu íntimo, à sua alma, é sempre gradual.
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Se para o homem usamos a alegoria do mergulho, no caso da mulher será mais certo imaginar uma casa. A mulher está dentro, e o homem, fora. O homem se aproxima e, só pelo modo como o faz, seus gestos, a maneira como bate à porta, a mulher forma impressões, tem sensações, faz julgamentos sobre ele. E é a partir daqueles gestos, daquelas emoções que ela decidirá se abrirá ou não a porta. Mas mesmo que a abra, deixa-o na sala de espera. Observa então como pendura o casaco, observa suas mãos, os cabelos, sente-lhe o cheiro. São emoções corporais, mas também avaliações, julgamentos. Somente se passar nessas provas, se estiver à altura desses novos exames, a mulher abrirá para ele uma porta mais interna, admitindo-o na parte mais pessoal, mais íntima da sua casa. Ela se abrirá, se dará mais, para usar a expressão empregada anteriormente. Mas, no novo cômodo, continuará sua observação atenta, sua avaliação do que ele é, do que lhe pode oferecer, do que ambos são e podem ser juntos. O relacionamento da mulher com o homem é uma sucessão de impressões, emoções, avaliações e de contínuas aberturas de si mesma. Essa gradação está presente até mesmo na mulher enamorada. Gia Wilhelm Stekel havia demonstrado amplamente que quando uma mulher não se sente estimada, admirada, amada, fecha-se, torna-se frígida. Pesquisas mais recentes confirmaram totalmente esse ponto de vista. Para abrir-se, para abandonarse, para liberar seu erotismo mais profundo, a mulher precisa confiar 88. Em O amante de Lady Chatterley, a primeira vez que a mulher faz amor com o guarda-caça é quase em sonho, sem sentir nada. Ele está feliz, realizado; ela, não. Somente na segunda vez começa a abrir-se: “No seu íntimo sentiu palpitar algo de novo. Emergir como uma nova nudez. E quase sentiu medo. Teria preferido que ele não a tivesse acariciado assim ao penetrá-la... esperou ainda... queria manter-se isolada... Para uma mulher que se mantivesse estranha ao ato, aquele impulso das nádegas do homem era certamente uma coisa muito ridícula” 89. E é somente aos poucos, encontro após encontro, 88 89
Lillian B. Rubin: Intimate strangers. D. H. Lawrence: O amante de Lady Chatterley, já citado.
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que chega ao prazer total, à fusão amorosa com o homem que então já admira, estima e com quem quer viver. O que para o homem constituem apenas encontros eróticos descontínuos, que não têm nenhuma relação um com o outro, para a mulher são etapas, em cada uma das quais exigiu do homem a superação de uma prova. No homem o algo mais é aquilo que no encontro erótico lhe causa surpresa, um fato inesperado. Mas para a mulher aquele algo mais significa somente que ela entregou um pouco mais de si mesma. É uma outra porta aberta à sua interioridade, à sua intimidade. O que para ele é surpresa, para ela é escolha, é decisão. O algo mais que ele percebe hoje, nesse encontro, é o resultado do julgamento por que passou na vez precedente, do fragmento de amor surgido então e que se transformou em deliciosa acolhida. Quando o homem percebe que o encontro erótico não o satisfez, isso se deve ao fato de a mulher ter se fechado. Deve ter sentido uma insegurança, uma hesitação, a impressão — certa ou errada, não importa — de que o homem não tinha classe, era grosseiro. Ou egoísta, estúpido ou arrogante. Então ela parou para refletir, para estudar, por medo, por desinteresse. Dificilmente o homem consegue compreender e reconstruir o processo emocional da mulher. O que capta instantaneamente é a queda do nível erótico. Com frequência, após duas ou três dessas experiências decepcionantes, ele as esquece. Para ele não aconteceu o algo mais. Mas, se refletirmos bem, isso aconteceu também com a mulher. Antecipadamente. É como se, em vez de deixá-lo seguir adiante, o tivesse deixado na sala de espera uma, duas, três vezes. Porque não se sentia pronta, porque não o sentia pronto, porque não o julgava à altura, não o julgava digno. Foi ela que não o admitiu ao algo mais, e foi por isso que ele não a encontrou. Mulher e homem são, portanto, completamente diversos, mas a estrutura de suas experiências é complementar. O algo mais que o homem procura todas as vezes, e sem o qual a relação não se solidifica, geralmente é um abrir-se ulterior da mulher, uma ulterior revelação de si, uma etapa de seu erotismo.
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5. Essa lei vale também quando, de repente, da maneira mais inesperada, duas pessoas se dão conta — e se espantam com isso — de que se gostam, se sentem atraídas uma pela outra e se querem. As mãos se tocam, as pernas se roçam. Às vezes é suficiente um olhar, um intenso olhar retribuído, e os dois compreendem. É importante, porém, que não haja intenção de sedução. Se existem a intenção, o trabalho, a vontade de seduzir, apresentam-se também a manipulação, a maldade, e então a situação muda. Refiro-me à descoberta inesperada da desnecessidade de defesas, da repentina emergência de um entendimento, o nascer espontâneo de uma cumplicidade. E é preciso que haja também um obstáculo, qualquer coisa que impeça que essa atração se torne imediatamente um abraço sexual febril. A tensão deve permanecer elevada para que se tenha uma dilatação da mente e do coração, uma abertura para o extraordinário. O obstáculo pode ser interno ou externo, talvez uma timidez, uma hesitação, uma compreensão tardia. Isso permite manter suspenso tudo entre o possível e o existente. Pelo que se determina uma vibração, um arrepio. A alquimia usava essa expressão, “arrepio”, para indicar a atração dos elementos, o estado de excitação de um na presença do outro, de que se originava a reação. É o instante milagroso da revelação do desejo recíproco, quando não há necessidade de etiqueta, rituais, desculpas (ninguém deve desculpar-se por existir, ser, falar, desejar). Todo o aparato social que separa os dois sexos, na sua inteireza, é abolido, e os dois desejos recíprocos se manifestam um ao outro. Fora do mundo das proibições e do existente, de sua opacidade. Criam uma área liberada que os separa dos outros, torna-os cúmplices, do mesmo time. Nesse momento a mulher compartilha a imoralidade do erotismo masculino, porque seu desejo está fora do tempo, da continuidade. Deseja aquele homem, e ponto final. Não amanhã, não no futuro, mas agora, imediatamente, e nada mais lhe importa. Portanto, o tempo de encontro também é separado, desinserido da trama do que acontecia antes e acontecerá amanhã, é um instante, uma bolha de tempo. Depois será engolido, mas não poderá ser destruído.
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O que existe de específico nesse tipo de experiência é sua altíssima energia interna, que lhe permite permanecer na memória e pôr em movimento a ação. Por outro lado, embora sendo perfeito, é ao mesmo tempo incompleto. Porque é sempre um entrever, jamais um alcançar. Mesmo se os dois têm possibilidade de separar-se, mesmo se têm um relacionamento sexual, em ambos a tendência é de encontrar-se novamente. Dessa forma, ao encontro pode seguir-se um novo encontro, podendo até mesmo nascer uma relação erótica ou, em certos casos, um enamoramento. Ou também poderá não haver mais nenhum encontro. Ou, na vez seguinte, pode não acontecer mais nada. A complexa situação de desejo e de obstáculo — com aquelas emoções, a espera, a revelação — não se reproduz totalmente. Basta que falte um elemento e todo o conjunto se torna diferente. A pessoa que nos parecia fascinante parece-nos agora desajeitada e banal. Ela própria não é mais aquela de antes, falta-lhe a segurança de então. Sua mente foi atravessada por outros pensamentos. Sabe muito ou muito pouco. Estruturou desejos ou impôs-lhes limites grandes demais. O algo mais não se realizou.
6. A ligação amorosa nasce, portanto, em ambos os sexos, somente de um erotismo feito de revelação, desvendamento, descoberta, ativação de potencialidades latentes, adormecidas, não utilizadas. No homem, maravilha. O erotismo masculino grita que é belíssimo, grita que a experiência é extraordinária, grita de prazer. Louva, exalta a outra e a si mesmo. O feminino é mais impregnado de avaliações, de esperas, de preparação, de julgamento, de lenta aproximação, de conhecimento, de abertura, de descoberta. O algo mais pertence a essa dimensão da experiência e nos revela a profunda ligação do erotismo com o conhecer. O algo mais é conhecer aspectos e dimensões de nós mesmos e do outro que ignorávamos, é gnose. Cada encontro sucessivo com a mesma pessoa é, dessa forma, um avançar no caminho do conhecimento, é um aprofundamento. De nós mesmos, da nossa natureza, do que somos e podemos ser. Não é uma
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revelação feita logo no início, mas um percurso epifânico 90. O segundo encontro produz uma nova emoção, um novo maravilhamento. E assim o terceiro, o quarto, o centésimo. Somente o conhecimento, o conhecer tem essa possibilidade de crescer continuamente, sem repetir-se, sem exaurir-se.
20 1. O segundo mecanismo capaz de criar laços sólidos é o da perda 91. O primeiro mecanismo era fundamentado em numerosos encontros eróticos emocionantes, onde ocorre o arrepio e nos é revelado algo de nós mesmos e da outra pessoa, aquilo que chamamos de algo mais. Ao contrário do primeiro, o segundo mecanismo não nasce de uma experiência erótica e não é, por si mesmo, de modo algum erótico. Intervém no erotismo por ser um fator fundamental na edificação e na escolha dos nossos objetos de amor. Com muita frequência queremos coisas opostas, ou então nem ao menos sabemos bem o que queremos. Não sabemos o que nos interessa realmente, o que tem valor, o que é essencial. Há uma diferença entre desejar e sentir necessidade de alguma coisa. Entre ter necessidade e não poder passar sem ela. Existem momentos, porém, em que compreendemos — somos obrigados a compreender — que uma certa pessoa é essencial para nós. Porque sem ela, todas as outras coisas perdem o valor. Essencial é aquilo que dá valor às outras coisas. Essencial é o fim último, aquele a que todo o resto deve ser subordinado, deve tornar-se meio. Não podemos conhecer os nossos fins últimos, os objetos finais do nosso desejo e do nosso amor, fazendo uma soma aritmética do prazer e do desprazer que nos causaram. Fazemos esses balanços para justificar a nós mesmos o nosso apego a uma pessoa, ou para justificar a nossa decisão de 90
Rosa Giannetta Trevico: Tempo mitico e tempo cotidiano. IULM, pro manuscripto, 1985. Expus o mecanismo da perda no quadro da teoria geral dos movimentos e das instituições no livro Le ragioni dei bene e dei male, Milão, Gananti, 1981. 91
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deixá-la. A soma dos prazeres e dos sofrimentos nos diz o que é melhor ou o que é pior, comparativamente. O fim último, pelo contrário, é algo absoluto. Não se apresenta a nós como um descarte, mas como diferença abissal. Não é o resultado de uma reflexão intelectual. Revela-se a nós brutal e inesperadamente. Vamos dar um exemplo. A certa altura, durante um passeio pela montanha, percebemos ter perdido um menino. Onde estará ele? O que lhe aconteceu? De repente aquele menino torna-se mais importante que qualquer outro. Todo o resto será subordinado à sua busca. O menino, que antes existia ao lado de outras coisas, adquire um estatuto ontológico superior. E com ele, o mundo, que antes era algo previsto, um cenário para nossas ações, agora se torna algo que o esconde, um espaço desconhecido em que buscá-lo. Mas não sabemos onde. O mundo tornou-se ameaçador e está lá, terrível e real. A nossa busca tem um caráter desesperado, porque temos de arrancar o menino da potência do negativo. E é desesperada também porque a nossa vida já se tornou um meio. O objeto que procuramos tornou-se mais importante que nós. O que se desvenda na situação da perda é vivido como preexistente. É naquele momento que me dou conta de que o menino já me era essencial antes, que já o amava antes. E, portanto, revelação de algo que já era essencial em precedência, mas não estava presente ou consciente. Revelanos o que já deveríamos saber e que tínhamos esquecido. Nesse ponto é preciso fazer um esforço de imaginação. Pensemos na mãe antes que ela dê à luz o seu filho. Já o espera, já o deseja. Porém, ainda não o tem. Poderia não nascer, não ser. Se nascer, será porque ela o quis, arrebatou -o das forças negativas. Antes mesmo de seu nascimento, a mãe já salvou o filho inúmeras vezes do nada, querendo-o. Depois de nascido, o processo se repete à noite, quando olha para ele, ansiosa, e teme que não esteja respirando. Ou quando está com febre, passa mal e chora. Também nesses momentos ela luta contra a potência do negativo, colocando o filho como fim último, objeto estável e total de amor. Em outras palavras, o objeto que é reconhecido na perda como objeto de amor constituiu-se exatamente através do processo de perda.
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Amamos de maneira estável aquilo que subtraímos da perda colocando-o como fim último. Esse mecanismo é extremamente importante, embora não seja, em geral, reconhecido. A psicologia behaviorista acredita apenas no reforço provocado pelo prazer-desprazer. A psicanálise mantém uma atitude de desconfiança em relação ao mecanismo da perda porque vê nela um estado patológico. Na nossa perspectiva, pelo contrário, a ânsia não é patológica. É a reação vital de um organismo inteligente. É a modalidade com que nos colocamos fins últimos e, dessa forma, conhecemos o que realmente tem valor para nós. Somente aquilo que foi desejado desesperadamente, inúmeras vezes, torna-se um objeto de amor estável. Ele não é apenas o resultado de sua capacidade de nos dar prazer, mas da nossa vontade e da nossa paixão.
2. Tendo bem claro esse conceito em mente, voltemos agora às duas formas, feminina e masculina, do erotismo. De um lado, o desejo de continuidade, de proximidade, de intimidade, a necessidade de sentir-se continuamente procurada, amada, desejada. O prazer de estar abraçados, de viver juntos, de respirar o mesmo ar. Do outro, o descontínuo, que necessita de intervalos de tempo, de variedade. Que prefere imaginar-se não vinculado ao amor, livre para escolher os laços apenas feitos. O que acontece se uma pessoa do primeiro tipo encontra uma do segundo? Viverá a interrupção, a separação como perda, como ameaça de perda. Não é preciso imaginar que a pessoa esteja enamorada. Basta sua forma específica de desejo. Após o longo abraço sensual, após o delírio e o êxtase, o outro se levanta, se afasta. Isso já é o suficiente para provocar um sentimento de perda e a subsequente pergunta: “Devo retê-lo? Merece que eu o prenda?” Não há nenhum elemento para decidir. A mulher pode fazer o que quer. Mas, se decide pelo sim, por prendê-lo, então, ainda que por um instante, deve colocá-lo diante de si mesma como absolutamente desejável. Não se trata de enamoramento; o tipo de ligação criado com o mecanismo da perda é extremamente mais frágil. Isso todas as mulheres o sabem por intuição. Como a sua vida
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erótica está mais fundamentada nos mecanismos de perda (reagir por ciúme, provocar ciúme, etc.), desconfiam de sua eficácia no tempo. Porém, geralmente não conseguem subtrairse. Quando querem possuir um homem, estão dispostas a arriscar, a levar em conta a alternativa. Ou me ama ou não me ama; ou eu ou a outra. Produzindo a crise da perda, colocam-se na condição de desejar desesperadamente o homem, olham para ele como se fosse a última vez. Sentem um amor que se alimenta exatamente da gravidade e irreparabilidade da escolha. Mas, principalmente, desencadeiam no homem um idêntico processo, que, colocado diante da catástrofe da perda, descobre o valor do que está escapando e sente renascer um amor que acreditava terminado. Assim, atira-se nos braços da mulher, julga-se enamorado, decide viver com ela. Mas isso não é verdade. É o caso do marido cansado do casamento, que sonha com sua liberdade ou tem uma amante. Fantasia que sua mulher vá embora, aliás, sente que não a suporta mais. No entanto, no dia em que ela decide deixá-lo, percebe que na realidade era somente ela que lhe interessava, que a amava, que “ainda estava enamorado”. O mecanismo da perda age também espontaneamente quando o outro parte de fato. O exemplo mais típico é o da mulher que descobre amar o marido somente quando este lhe diz estar apaixonado por outra. Então, de repente, ele volta a ser a coisa mais importante, o centro de sua vida. E ela luta desesperadamente para não perdê-lo. É esse mecanismo que na maior parte das vezes mantém unidos marido e mulher pelo resto da vida. O enamoramento não tem nada a ver com isso. Esse cimento emocional é muitas vezes confundido com o hábito. Na realidade, na espécie humana, o hábito, isto é, o puro condicionamento, não é uma força que une. Além do condicionamento, há o temor da perda, o esforço para segurar o objeto que se torna dessa forma objeto de desejo. O mecanismo da perda está na base de muitos divórcios seguidos de um novo casamento. Diante da perspectiva de perder a amante, o sujeito tem a impressão de estar irremediavelmente apaixonado. Então rompe com o passado, divorcia-se e casa com a pessoa pela qual se “enamorou”. Mas é uma ilusão, não se trata de enamoramento. Após alguns meses
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de vida em comum, ambos descobrem, com horror, que nada têm em comum. A fusão do enamoramento não aconteceu, jamais acontecerá. Unidos, verão aumentar dia a dia a estranheza que sentem um pelo outro.
3. O temor da perda, ao contrário do que se pensa comumente, não revela um sentimento preexistente, mas faz surgir um sentimento novo. Seu aparecimento, pode ser tão repentino e tão intenso, que é capaz de dar a impressão de um verdadeiro enamoramento. Há, como no enamoramento, a experiência de ver as coisas com olhos totalmente novos, de saber com certeza o que vale a pena sem o perigo de confundilo com o que não vale. Porém, se observarmos atentamente, poderemos perceber que na perda o investimento da libido é sempre constituído pouco a pouco, através de crises sucessivas, atos sucessivos de desapropriação. A mulher percebe que o homem lhe interessa somente quando ele se afasta, quando olha para outra, quando o espera e ele se atrasa. O desejo aparece sob forma de ciúme, uma mordida de ciúme que depois desaparece, mas que deixa marcas. Também os homens sentem ciúme, mas acreditam não senti-lo. Em suas fantasias eróticas não necessitam dele, ao contrário das fantasias eróticas femininas em que ele está quase sempre presente. No romance cor-de-rosa, desde o início aparece a rival sedutora, sem preconceitos, temível. E o relacionamento entre as duas mulheres é de ciúme recíproco. Nessas fantasias femininas o ciúme desempenha o papel de estratagema crucial da sedução. A rival o usa, a mocinha também, com relação ao homem desejado. E o homem utiliza -o com as duas, O ciúme é um dispositivo essencial do desejo. Nesses romances, junto com o ciúme existe o mecanismo do abandono. Às vezes a mulher o faz premeditadamente “para enciumar”, mas na maior parte das vezes é um ato impulsivo, uma explosão de ira, uma crise em que as ideias ficam confusas e as palavras faltam. O resultado é uma ruptura que ela julga definitiva, irreparável, mas que possui — profundamente — o poder de aumentar o desejo. A descoberta do amor acontece assim, de crise em crise, com uniões e separações seguidas de novas aproximações, cada vez mais
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intensas, até a apoteose final, em que as dúvidas deixam de existir, substituídas pela certeza e a continuidade. Examinadas superficialmente, essas vicissitudes podem ser tomadas como típicas do enamoramento. Na verdade, no romance cor-de-rosa o amor nunca é revelado de improviso, não existe o amor recíproco à primeira vista. Nem ela nem ele são impelidos, contra a vontade, a olhar-se, a procurar-se. Não cometem loucuras. Não correm a noite inteira num carro para estarem, na manhã seguinte, diante da casa do amado. Não se embriagam, não gritam, não choram. Não escrevem poesias, não falam a linguagem dos mitos, não desejam que o tempo se acabe e o instante se torne eterno, como acontece com os enamorados na vida real. A revelação do enamoramento é como um clarão ofuscante que dobra a vontade e enche o coração de uma alegria infinita. Mesmo que não saiba como seu amor irá terminar, o enamorado é feliz. Não quer renunciar a esse estado extraordinário e divino. Mesmo chorando, mesmo não sabendo mais quem é e onde está.
21 1. A simples ausência não produz ciúme 92. Aliás, em ambos os sexos é extremamente importante o antegozo do encontro. Não a incerteza, a dúvida, mas o antegozo de tudo o que acontecerá com relativa certeza. É uma excitação feita de fantasias. É mesmo o caso de perguntar-se se estas não são, definitivamente, mais agradáveis que o próprio encontro. A vida erótica pode ser constituída amplamente de fantasias agradáveis. Antes do encontro. Às vezes, até por dias, semanas, meses. E após o encontro. Em certos casos, até logo depois dele, a noite ou a manhã seguinte. Revivê-lo e sentir prazer. Não há nenhuma outra experiência que sirva tanto a um antegozo desse tipo. Nem o sucesso ou o triunfo. Porque aqui a espera não pode ter o mesmo grau de certeza do encontro erótico. E principalmente depois que o sucesso é saboreado, enquanto o erotismo é saboreado com igual intensidade, mesmo antes. 92
Sobre esse assunto consulte Gordon Clanton, Lynn G. Smith: Gelosia, trad. ital., Roma, Savelli, 1978.
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No homem, o antegozo pode produzir um estado de excitação sonhadora contínua, que só termina com o orgasmo. Na mulher, o encontro erótico tende a inserir-se numa tensão contínua, da qual a espera é um laço, um momento. O erótico é inseparável de sua preparação e do que se segue. A existência do antegozo explica o prazer da espera e da preparação. Já foi frisado várias vezes que as mulheres esperam. É, diz-se, uma consequência de sua posição inferior, subalterna. São obrigadas a esperar o marido, o amante infiel, o homem que marca a hora do encontro, de acordo com suas conveniências. Por outro lado, a mulher se prepara. E uma preparação incrivelmente mais longa que a do homem, na escolha do vestido, da maquiagem. Às vezes, essa longa preparação é inútil, o homem não compreende. Daí o sentimento de frustração, de desapontamento. Mas quando se sente desejada, quando imagina que também ele esteja ansioso pela espera, preparar-se é excitante, emocionante. É um ato erótico, faz parte integrante do encontro erótico, e a mulher sabe extrair dele todo o prazer.
2. Se uma pessoa amada parte, emigra ou morre, sentimos dolorosamente a sua falta, pensamos o tempo todo nela, desesperamo-nos, choramos, mas isso não é ciúme. Para que o ciúme exista é necessária a presença de uma terceira pessoa, é preciso que haja a preferência, ainda que momentânea, do nosso amado por essa pessoa. O amor erótico é sempre uma eleição. É a escolha de nós como indivíduos, como criaturas únicas em meio à massa anônima dos outros. Também nos animais, o “namoro” é uma escolha, uma preferência, embora momentânea. A própria prostituta, ainda que se dê a todos, quando se dedica a um cliente lhe dá a impressão de estar interessada apenas nele. A necessidade de sermos escolhidos, preferidos, de sermos objetos de toda a atenção, ainda que seja por pouco tempo, não é típica do amor erótico. Nós a exigimos do médico, do advogado, do empregado que está atrás do balcão ou do guichê, do massagista ou do professor de ginástica. No amor erótico, além disso, queremos que esse interesse não seja profissional, não seja consequência de um dever. Mas nasça de
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uma escolha pessoal feita livremente, sem levar em consideração obrigações pessoais com relação a nós mesmos. Existe no mais profundo do ser humano, talvez em todos os seres, a necessidade de ser preferido. Percebe-se isso no ciúme tanto entre animais quanto em crianças. O filho mais velho aceita, revoltado, que a mãe cuide dos irmãozinhos menores, que os encha de mimos. Por isso é sempre preciso que de quando em quanto a mãe lhe dê atenção exclusivamente, tratando-o, por um momento, “como se” fosse filho único, dando-lhe a impressão de que ele é tão essencial a ela como ela o é para ele. Cada filho, no mais profundo do coração, acredita ou espera ser o predileto. Por outro lado, cada mãe ama de forma total cada filho, e cada um deles é igualmente importante para ela. Em cada um ama uma entidade individual específica, absolutamente única, inconfundível. Não existe, porém, simetria, porque a mãe necessita de todos os filhos, enquanto cada um deles necessita dela e poderia dispensar os outros. O ciúme infantil apresenta-se como agressividade contra os irmãos para expulsá-los, destruí-los. É um comportamento semelhante ao do animal que defende seu território. Dizemos, nesses casos, que o filho é “ciumento”, mas o ciúme não se dirige ao objeto de amor, e sim ao rival. O filho sente ciúmes dos irmãos, do pai. Não sente ciúmes da mãe. O ciúme faz seu aparecimento na vida como uma competição com outro para apossar-se do amor de alguém de modo exclusivo ou para não perder sua exclusividade. Estamos, portanto, no âmbito da situação de perda. O objeto de amor é subtraído de uma forma ameaçadora, que, no entanto, não é anônima, impessoal, mas pessoal. Por outro lado, o amor, o interesse não são coisas que se possam obter sem o consenso. O rival constitui uma ameaça somente se o nosso amado o aceita. A ameaça vem do exterior, sim, mas também da pessoa amada. No ciúme tememos que ela prefira o outro a nós. Não devemos apenas defender o nosso objeto de amor da força do negativo, porque ele próprio é cúmplice dessa força, é ele próprio essa força no momento em que escolhe o outro e não nos quer, subtrai-se ao nosso amor. No ciúme, portanto, a agressividade se dirige também contra a pessoa amada. Por isso dizemos que sentimos ciúme de quem amamos.
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O ciúme do rival (isto é, a agressividade com o rival) é a forma mais simples, mais primordial de ciúme. O ciúme da pessoa amada aparece mais tarde, quando queremos ser amados livremente, preferidos livremente. O ciúme, então, se torna ambivalência. O sofrimento do ciúme é o sofrimento típico da ambivalência.
3. No enamoramento bilateral e profundo há pouco espaço para o ciúme, porque há pouco espaço para a ambivalência. O enamoramento está baseado numa espécie de cisão da experiência. De um lado, o existente, as coisas como elas são, banais ou mesquinhas; do outro, o nosso amor, claro, perfeito. O ciúme não pode infiltrar-se nessa perfeição 93. Se aparece, é como um pesadelo, porque nos empurra para o mundo cotidiano, frio e sem esperança. Quando estamos profundamente enamorados, estamos convencidos também de que a outra pessoa é levada a nos amar porque assim é a sua natureza. Mesmo que negue, continuamos a acreditar que, se ela se conhecesse verdadeiramente, se seguisse sua profunda vocação, então não poderia deixar de nos amar. Se olha para outro, se nos diz que não nos ama, na realidade engana a si mesma e, mesmo sem o saber, condena-se. Necessitamos continuamente de reconhecimentos para alimentar a nossa auto-estima. Por isso necessitamos absolutamente do reconhecimento de quem amamos, de quem tem valor. O ciúme é uma desvalorização de si próprio. No enamoramento, porém, embora tendo absoluta necessidade do amado, estamos convencidos de ter intuído sua afinidade conosco. Por isso, se ele não nos quer ficamos desesperados, mas não destruídos moralmente. Porque sabemos que está enganado, que não sabe o que faz. Deixando-nos, condena a si mesmo, cava a própria ruína. 93
As pesquisas empíricas nesse campo não são convincentes, pois identificam enamoramento e amor romântico, enamoramento e dependência. De qualquer modo, Ellen Berscheid e Jack Frei observaram empiricamente que “aqueles que vivem com plenitude um tempo de a mor parecem experimentar um forte sentimento de dependência sem necessariamente sofrerem forte insegurança. Ver “L’amore romântico e la gelosia sessuale”, em Gordon Clanton, Lynn G. Smith: Gelosia.
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O ciúme, no enamoramento, só aparece quando essa certeza entra em crise, isto é, quando perdemos a confiança de compreender o outro e nós mesmos, quando despencamos da região dourada do amor radiante para o inferno da contingência, regido por outras leis e onde não existe mais uma ordem de justiça. No livro Lolita, de Nabokov, o protagonista ama Lolita desesperadamente, um amor sem retribuição porque ela é uma menina, gosta de revistinhas, de filmes, de outros rapazinhos. Nesse amor desesperado sente um ciúme louco, teme que todos possam levá-la. Até que acontece justamente o que temia, na pessoa de um comediante hollywoodiano, sujeito dissoluto, cercado por um verdadeiro harém. Contudo, também nesse caso, ele continua a pensar que Lolita tenha sido levada por um engano, por não saber o que estava fazendo. Matando o artista, o protagonista julga estar cometendo um ato de justiça, afirma as razões do amor autêntico contra a paixão e a cegueira despertadas por uma personalidade famosa.
4. Comumente o ciúme é confundido com a inveja. No entanto, a estrutura elementar da inveja é bem diferente. O autor que talvez melhor tenha compreendido a inveja foi René Girard 94. Girard observa que o ser humano é mimético, isto é, coloca-se no lugar do outro e deseja o que o outro deseja. As crianças, segundo esse autor, aprendem o que é desejável através da identificação com os pais e com as outras crianças de sua idade. O desejo somente aparece quando há uma outra pessoa que deseja alguma coisa. No célebre livro de Mark Twain, Tom Sawyer tem de pintar uma paliçada. Um companheiro passa por ali e põe-se a zombar dele. Mas Tom reage fingindo que o trabalho é divertidíssimo. Imediatamente o outro deseja pintar também. Tom concorda, mas faz com que o amigo lhe pague por isso. Um a um, todos os rapazes da cidade o enchem de presentes para que possam também experimentar o trabalho.
94
René Girard, Mensonge romantique et verité romanesque, Paris, Grasset, 1962. La violenza e il sacro, trad. ital., Milão, Adelphi, 1972.
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Aplicando esse mecanismo à situação erótica, Girard explica o complexo de Édipo da seguinte maneira: o filho identifica-se com o pai, mas como este quer ter a mãe para si, ele quer a mesma coisa. Não é preciso nenhuma frustração para explicar o conflito. O pai mais terno e carinhoso gera fora de si um outro si mesmo que quer exatamente as mesmas coisas que ele, sendo assim condenado a entrar em contato consigo próprio. A inveja mimética é tanto mais forte quanto maior for a identificação. O ciúme, segundo Girard, nada mais é que uma forma de inveja. Temos ciúme da pessoa que amamos porque para amá-la necessitamos que seja possuída por outra. Necessitamos que exista outra que a queira, que a possua. Somente assim se põe em movimento o nosso desejo, invejando o outro. Como consequência, temos de lutar contra ele, procurar destruí-lo. Porém, no exato momento em que o adversário desaparece ou desaparece o seu desejo, o nosso também se esvai, porque era apenas um reflexo do outro. Os mecanismos da inveja mimética não têm a importância que Girard lhes dá, mas desempenham um papel considerável nos relacionamentos eróticos. Certamente não podem explicar o enamoramento, mas elucidam algumas paixões eróticas violentas em situações competitivas. Explica por que nos agarramos e desejamos loucamente uma pessoa quando esta nos troca por outra. Nesse caso, não é somente a perda que intensifica o nosso desejo, mas a identificação com o outro, o desejo do outro que age em nós.
5. Nem sempre os mecanismos miméticos provocam o aparecimento do ciúme, às vezes fazem com que ele desapareça. Com certeza existem homens que se excitam somente à ideia de sua mulher ser possuída por outro. No livro Um amor, de Dino Buzzati, o protagonista se enamora de uma prostituta, e seu desejo por ela aumenta desvairadamente à medida que ela se relaciona com outros homens. Quando afinal a mulher espera um filho e fica somente com ele, seu amor acaba. Existe um número enorme de casos de homens que praticam a troca de casais, não tanto para ter relações com uma outra mulher, mas porque ficam excitados quando sua mulher
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se relaciona com um terceiro 95. Com muita frequência, durante o ato sexual o homem cria fantasias em que se identifica com outro qualquer. Muitas vezes com um ex-amante da mulher ou outro de quem ela lhe tenha falado. Ele imagina vê-los enquanto fazem amor e depois, insensivelmente, toma o lugar do homem. Isso acontece tanto com mulheres indiferentes como com a mulher por quem está enamorado. Pode-se com certeza adiantar a hipótese de que o ciúme aparece somente quando essa substituição não pode acontecer, isto é, quando na realidade o rival não pode ser expulso, mas é ele que prevalece. Esses comportamentos e fantasias são mais frequentes nos homens que nas mulheres. Provavelmente porque para eles o relacionamento sexual tenha uma carga menor de significado amoroso. A mulher não se excita imaginando seu homem a fazer amor com outra mulher, porque atribui ao sexo um interesse amoroso que faz detonar o alarme do ciúme. “Se faz amor assim”, pensa ela, “é porque não me ama, mas a ela. Não me quer, mas a ela.” Também a troca de casais geralmente é feita por iniciativa masculina 96. As mulheres adaptam-se a ela, mas têm de ser convencidas, pois, na maioria das vezes, não sentem prazer vendo seu homem fazer amor com outra mulher, mesmo que depois venham a ser desejadas intensamente.
6. Existem pessoas cujo erotismo se alimenta do ciúme. O fato de imaginar o amante ou a amante nos braços de outra ou outro os faz sofrer, mas, ao mesmo tempo, aumenta seu desejo e prazer. Existe um segundo tipo de pessoas que, ao contrário, coexistem com seu ciúme. São ciumentas, sofrem, mas conseguem suportar o sofrimento. Lamentam-se, brigam, porém o interesse pelo seu objeto de amor permanece. Existem, finalmente, as que não suportam o ciúme de maneira alguma e que, quando são atingidas por ele, pensam logo em abandonar quem as faz sofrer, e o fazem com a mais absoluta determinação.
95
Renata Pisù: Maschio è brutto, Milão, Bompiani, 1976. Ver Brian G. Gilmartin: "La gelosia fra gli swingers”; em Gordon Clanton, Lynn G. Smith: Gelosia, já citado. 96
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As pessoas consideradas ciumentas não pertencem jamais a esse último tipo (na realidade, ciumentíssimo), mas ao segundo. Abandonam-se ao ciúme, lutam com ele, desesperamse, porém, de uma forma ou outra, o suportam. Os outros, ao contrário, não parecem ciumentos porque cortam pela raiz qualquer relacionamento que possa fazer nascer neles esse sentimento. Ao conhecerem uma nova pessoa, avaliam em primeiro lugar, com extrema precisão, a sua credibilidade, baseando-se na história de sua vida, nos detalhes de comportamento, mesmo insignificantes, confrontando as versões do mesmo fato ocorridas em momentos diversos. Essa avaliação é, em geral, definitiva. Está armazenada em seu inconsciente e reaparece sob a forma de certeza absoluta quando acontece algo. Então, sem hesitar, cortam as relações porque, na verdade, jamais haviam acreditado em sua possibilidade de continuar. No caso de ser um amor à primeira vista, são ciumentíssimos no princípio, até terem elaborado a sua avaliação, após o que ou interrompem o relacionamento ou o continuam, confiantes, sem a menor sombra de ciúme, porque sabem que não precisam temer nada.
7. Na mulher o ciúme está ligado ao desejo do homem. Enquanto percebe que o desejo dele é intenso, exclusivo, não é ciumenta, pode ter apenas suspeitas. Pode pensar que o homem tenha até uma aventura sem maiores consequências. Mas quando intui, pelos gestos, pelo calor do abraço, pela intensidade do ato erótico, que o desejo não é o mesmo, então começa, em silêncio, a ser ciumenta. No íntimo, a mulher imagina que o homem tenha um desejo erótico constante, imutável. Ao sentir que esse desejo diminui, então, instintivamente, pensa que ele se dirigiu para outro objeto, que outra mulher entrou em cena. No imaginário feminino, o desejo do homem é como uma corda estendida sobre a qual caminham juntos. Basta que a tensão da corda afrouxe, mesmo que por breves instantes, e ela se sente em perigo, é tomada pelo pânico. Instintivamente reage, faz-se mais bonita, volta a ser gentil, sedutora. Se o perigo real aumenta, se o homem se afasta, seu ciúme, que é capaz de precipitar ambos no abismo, torna-se uma força, uma
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energia terrível. Nessa situação a mulher é capaz de lutar com selvageria. Está disposta a tudo, solta os freios de seu erotismo, sem pudor, renuncia até mesmo à sua dignidade. Tudo a fim de manter unida aquela corda tensa, agora já reduzida a um fio. Depois, ultrapassado determinado ponto, põem-se a funcionar dentro de si mecanismos mais profundos, destrutivos e autodes- trutivos, o desejo de vingança, até o cansaço, a renúncia. Então, em silêncio, bate em retirada, procura pôr-se a salvo e, lentamente, deixa escorregar a corda no abismo.
22 1. Para compreender o que é o enamoramento, temos de pensar nos processos criativos. Arthur Koestler em seu livro O ato da criação, escreve: “Quando a vida nos propõe um problema, nós o atacamos de acordo com um código de regras que no passado nos tornou possível resolver problemas análogos... Mas a novidade pode chegar a tal ponto, a tal nível de complexidade, que torna impossível a solução com as regras do jogo aplicadas às situações passadas. Quando isso acontece, dizemos que a situação está bloqueada... A situação bloqueada aumenta a tensão de um desejo frustrado... Uma vez exauridas todas as tentativas de resolver o problema com os métodos tradicionais, o pensamento gira em vão na matriz bloqueada como um ratinho na gaiola. Após o que a matriz parece romper-se em “pedaços, aparecendo então provas feitas ao acaso, acompanhadas de momentos de nervosismo e ataques de desespero... Até que o acaso, ou a intuição, fornecem uma ligação com uma matriz completamente diversa, e as duas matrizes se fundem numa só... O ato criativo... mistura, combina, sintetiza fatos, ideias, capacidades, técnicas já existentes” 97. O enamoramento é algo que acontece no indivíduo, é uma mudança de estado do indivíduo. O objeto amado pode não entrar em nada, não saber absolutamente nada do que está 97
Arthur Koestler: L’atto della creazione, trad. ital., Roma, Ebaldini, 1975.
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acontecendo. No enamoramento, a reciprocidade, no início, não existe e pode continuar a não existir depois. Podemos permanecer enamorados de uma pessoa que jamais nos dedicou um olhar. O enamoramento é a solução individual de um problema vital insolúvel. É a resposta criativa do indivíduo quando já faliu qualquer outra solução costumeira, tradicional. Devemos, portanto, duvidar daqueles que seguem uma ordem imutável. Primeiro briga, depois divorcia-se e depois, logo depois, enamora-se. Esse é um esquema social, uma regra. O enamoramento não é um fato criativo; uma vez subvertidas as regras, encontra a solução onde não teria jamais procurado. É sempre inesperado, aparece por revelação. Exatamente como a solução de um problema insolúvel e obsediante 98. Mas qual é o problema cuja solução é o enamoramento? Ele pode ser definido da seguinte maneira: nós, seres humanos, desde a infância temos necessidade de objetos absolutos e totais de amor. A mãe, Deus, a pátria, são entidades desse gênero. Existe em nós a tendência de unir-nos a algo que nos transcende totalmente. Dizem os psicanalistas que esse algo é a lembrança da experiência da vida no líquido amniótico. Os religiosos dizem que é o desejo de Deus. Os biólogos, que é o impulso da evolução. Não importa. É a tendência a transcender o existente e a buscar o paraíso, a terra prometida, Deus, o estado de graça beatificante. Todos os objetos concretos de amor, ao contrário, são limitados e com frequência tornam-se opressivos e frustrantes. Aliás, quanto mais importantes para nós, tanto maior a sua possibilidade de decepcionar-nos. Se algo pouco nos interessa, pouco mal pode nos causar. Se, ao contrário, é essencial para nós, até mesmo sua mínima desatenção nos magoa. Daí a ambivalência. Inevitavelmente acabamos por experimentar sentimentos agressivos para com a pessoa que mais amamos. A ambivalência é confusão, desordem. Procuramos diminuí-la idealizando nossos objetos de amor, tomando sobre nós a culpa do que acontece ou atribuindo-a a causas externas. O marido sente-se culpado se a mulher está triste. A mulher 98
Ver Francesco Alberoni: Enamoramento e amor, e o interessante livro de Dorotby Tennov: Love and limerence, já citado.
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procura justificar o mau humor do marido com o cansaço, o trabalho, as preocupações. Na psicanálise todos os mecanismos que nos fazem assumir a culpa do que não está bem no nosso objeto de amor são chamados depressivos. Todos aqueles por meio dos quais descarregamos a responsabilidade sobre qualquer causa externa são chamados persecutórios. Por isso mesmo, os nossos objetos de amor (marido, mulher, amante, filhos, partido, Igreja, enfim qualquer coisa com a qual nos identificamos e que amamos) são sempre uma construção ideal, o resultado de uma elaboração. São colocados num mito pessoal, continuamente reelaborado, remanejado para reduzir as tensões, para abaixar o nível de ambivalência. Mas esse trabalho contínuo de reparação, de ajustamento, de compromissos práticos e de revisões ideais em certos casos pode fracassar. Durante a vida nós mudamos, e então o que era bom passa a não ser mais. Novas experiências provocam o surgimento de novas necessidades. Após termos atingido uma meta, apresentam-se a nós todos os desejos a que tivemos de renunciar. E, num mundo em contínua transformação, modificam-se também as pessoas que amamos, tornam-se diferentes, querem outras coisas. Por esse motivo, as relações entre os casais se deterioram. Por isso as pessoas rompem com velhos amigos, divorciam-se, brigam com os filhos. Ou então continuam a fingir que tudo está como antes, enquanto na verdade tudo está profundamente mudado. Continuam a representar uma comédia onde não sabem mais o que é verdadeiro ou o que é falso. Nem ao menos sabem o que querem. É essa a situação de desordem, de entropia, onde tanto os mecanismos depressivos como os persecutórios falham, não conseguem mais idealizar os objetos de amor. Com os mecanismos tradicionais, o problema é insolúvel. Estes estão com sobrecarga. Surge então um sentimento de desespero, de fracasso. Os impulsos vitais não sabem para onde endereçar se. Vagam ao acaso, procuram novos caminhos. O indivíduo sofre a experiência de uma grande potencialidade vital desperdiçada. Tem a impressão de que somente os outros são felizes. Ele os vê rir, divertir-se, e sente uma inveja que o consome. Como se seus desejos mais profundos não pudessem
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mais revelar-se diretamente a si mesmo. Percebe-os nos outros. No deserto da ambivalência e da desordem, sente no mundo desejos e paixões desmesurados, felicidades que lhe são proibidas. É assim que, geralmente, se encontram os adolescentes. Cheios de vida, mas incapazes de dar a essa vida seus objetos e objetivos. A solução desse problema é sempre uma redefinição de si mesmo e do mundo. Pode ser uma conversão religiosa. De repente dá-se conta de que todas as coisas que o faziam sofrer não valem nada, que os caminhos que seguia eram errados. Na nova seita, na nova Igreja, tudo se torna simples e claro. Ou então pode acontecer uma conversão política. Também aqui ele encontra o que é essencial e subordina o resto ao que realmente vale mais. Pode ser, enfim, o enamoramento. Então a sua meta última torna-se uma pessoa porque é através dela que entrevê tudo o que é desejável e a perfeição do seu ser. O momento em que o velho mundo desordenado e ambivalente perde o valor e aparece a nova solução é o momento do estado nascente.
2. Para ilustrar em que consiste o estado nascente usaremos três figuras. Na primeira (na página seguinte) representamos o campo psíquico em condições de equilíbrio. S é o sujeito. Os sinais + indicam as cargas positivas (de amor) de que é investido, e os sinais —, as cargas negativas, isto é, a agressividade. Existe pois um importante objeto de amor A positivo. Do outro lado da figura, há um objeto persecutório B, completamente saturado de investimentos agressivos. Esta é a situação de equilíbrio porque continuamos a ter estima por nós mesmos, consideramos perfeitos os nossos objetos de amor e odiosos os nossos inimigos. Passemos agora à segunda figura. Nela está representada a situação de desordem, ou entropia. Há duas setas que indicam os mecanismos. A seta depressão mostra o mecanismo que pega a agressividade voltada para o objeto de amor e a traz para nós, transformando-a em sentimento de culpa. O outro mecanismo, que corresponde à seta projeção, projeta a
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agressividade no objeto persecutório. Os dois mecanismos já não conseguem controlar a ambivalência. Os objetos de amor são invadidos pela agressividade, e os persecutórios pelo erotismo. É isso a sobrecarga depressiva, a situação que precede o estado nascente. Este a elimina graças a uma solução criativa e extraordinária que consiste em recombinar os elementos do campo de uma maneira nova. Através dessa reestruturação surge um novo objeto de amor não ambivalente e com o qual o sujeito se sente fundido. O processo pode ser representado desta maneira:
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Como se vê, o novo objeto não ambivalente de amor destaca-se como uma figura sobre o fundo dos outros objetos de amor do passado. Não os apaga, tira o seu valor, torna-os contingentes. A experiência específica do estado nascente é caracterizada por um desdobramento entre dois planos, dois níveis. Um é o da realidade, do dever ser, do prazer, do amor, da fusão. O outro é o da existência, pobre, contraditória, infeliz, da divisão. No estado nascente, o objeto absoluto de amor não é um objeto entre outros. A pessoa amada, portanto, não é uma pessoa qualquer investida de qualidades extraordinárias, sublimes. Ela é uma pessoa empírica, mas também, e contemporaneamente, o caminho para a perfeição, o absoluto.
3. Até agora descrevemos o estado nascente como algo que acontece somente a uma pessoa. Essas três figuras representam o campo psíquico de um único indivíduo, daquele que se enamora. O outro, a pessoa amada, o objeto de amor, é amado independentemente de seu desejo, de sua resposta. Podemos agora compreender realmente o abismo que separa o processo de enamoramento daqueles descritos anteriormente e, principalmente, do primeiro.
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Como é possível, então, que, por sua vez, a pessoa amada nos ame? É preciso que um processo análogo ao descrito se realize também no outro e que os dois se reconheçam. O enamoramento recíproco ê o reconhecimento de duas pessoas que entram em estado nascente e que reestruturam o próprio campo a partir do outro. É preciso, portanto, que também o outro esteja numa condição de sobrecarga, de entropia, e possa entrar em estado nascente. Em geral, o processo de estado nascente se inicia num dos dois e o desencadeia no segundo, rompendo seu estado de equilíbrio instável. O estado nascente tem uma capacidade formidável de comunicar-se. É uma força de sedução extraordinária, que ataca seu objeto e o arrasta consigo. Escrevia Dante: “Amor ch’a nullo amato amar perdona”. O enamoramento recíproco, portanto, não é o reconhecimento de duas pessoas em condições normais, com suas qualidades definidas. Mas o reconhecimento de duas pessoas num estado extraordinário, o estado nascente. Duas pessoas que entrevêm, isto é, o fim da separação do sujeito do objeto, o êxtase absoluto, a perfeição. Elas são feitas, portanto, uma para a outra, de um lado criaturas de carne e osso, com nome, sobrenome, endereço, necessidades, fraquezas. Do outro, forças transcendentes através das quais passa a vida na sua inteireza. Pelo mesmo motivo são, ao mesmo tempo, vizinhas e infinitamente afastadas. Fundidas e separadas. Porque o amor existe em cada uma delas independente da existência empírica do outro. Cada um teve a revelação por conta própria. Cada um tem a pretensão de conhecer a essência do outro melhor do que ele próprio a conhece. Como diz Lou Salomè: “No fundo o amante não se interessa pela maneira como é amado... basta saber que o outro o faz milagrosamente feliz. De que modo, não o sabe. Os dois permanecem um mistério, um para o outro” 99. Mas porque no estado nascente eles são, ao mesmo tempo, seres empíricos e transcendentes, algo que existe e algo que se torna, fragmentos da força criativa da vida.
99
Lou Andreas Salomè: La materia erotica, trad. ital., Roma, Editor i Riuniti, 1985. Sobre o não conhecimento da pessoa amada, ver Roland Barthes: Fragmentos de um discurso amoroso. Alain Finkielkraut: La sagesse de 1’amour, Paris, Gallimard, 1984.
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4. O enamoramento constitui um poderoso impulso para a fusão dos dois indivíduos, mas não é pura fusão. As personalidades empíricas, como já vimos, não desaparecem. Além do mais, os dois enamorados não se conhecem, nem ao menos sabem se estão verdadeiramente enamorados. Cada um deles não sabe, sobretudo, se o outro o ama. No enamoramento a reciprocidade deve ser averiguada. O enamoramento é um processo no qual cada um é obrigado a mudar e em que cada um resiste à mudança. Não se deve absolutamente confundir o enamoramento com o idílio. O idílio é um momento de harmonia, de paz, que se verifica no enamoramento, mas que jamais dura por longo tempo. Pelo mesmo motivo, o enamoramento não é um estado permanente de êxtase. Ele é também dúvida, busca e tormento.
Neste livro não posso expor novamente, com detalhes, a passagem do estado nascente do amor, o enamoramento, ao amor estável entre duas pessoas que aprenderam a conhecer se, a respeitar-se, a viver juntas. Isto é, à instituição. Peço ao leitor que leia o que escrevi em Enamoramento e amor. Posso apenas colocá-lo em guarda contra a identificação do enamoramento com o mito do amor romântico 100 propagado pela cultura americana contemporânea. O amor romântico é descrito como um estado de contínua felicidade sem conflitos, uma espécie de fusão místico-amorosa monogâmica. A cultura de massa, e particularmente o cinema de Hollywood, satisfez com esse mito as fantasias femininas de fusão total e contínua com o amado. A mulher deseja o tempo erótico contínuo, difuso. Na realidade, porém, também ela apresenta uma fortíssima resistência a tornar-se como o homem a quer. Também a mulher, no enamoramento, luta para afirmar os desejos, as fantasias, as esperanças que alimentou no decurso de sua vida. E não há motivo algum para estas coincidirem com as do homem amado. As duas vontades podem não coincidir no 100
A literatura psicológica sobre o amor romântico nos Estados Unidos está e xterminada. Para uma atualização até 1969, ver Rubin Isaac Michael: The social psychology of romantic love, University Microfilm International, Ann Arbor, Michigan, EUA. Recentemente algumas feministas atacaram violentamente o estado amoroso justamente como reação à idealização que dele havia sido feita. Ver, por exemplo, Penelope Russianoff: Why do I think I am nothing without a man?, Nova York, Bantam Books, 1982. Sonya Friedman: O homem é a sobremesa, já editado no Brasil.
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que chamei de pontos de não-retorno 101. A imagem de uma mulher que ama totalmente, incondicionalmente, que é toda sensualidade, maravilha amorosa total, faz parte da idealização.
23 1. Como perceber que aquilo que sentimos é um enamoramento verdadeiro ou uma paixão passageira? Como perceber que o nosso desejo não é devido ao temor da perda? Que características possui, enfim, o erotismo do enamoramento, com relação às muitas outras formas de erotismo que descrevemos? No capítulo precedente dissemos que o enamoramento constitui a solução de uma solução bloqueada, a sobrecarga depressiva. Esta palavra pode suscitar ambiguidades. A expressão “depressiva” dá uma ideia de tristeza, depressão. Mas não é assim. Sobrecarga depressiva significa que os mecanismos depressivos não funcionam mais, estão, por isso mesmo, em sobrecarga. O enamoramento nasce de um grande impulso vital que não consegue realizar-se na situação dada e recusa a depressão. A recusa quando nós estamos mudados, enquanto o nosso ambiente permaneceu o mesmo. Então as nossas potencialidades vitais tendem a rebelar-se. Conscientemente procuramos conservar os nossos velhos relacionamentos, os nossos velhos objetos de amor, atribuímonos a responsabilidade do mal- estar que sentimos e que provocamos nos outros, até que não encontramos uma nova solução global. O enamoramento é uma dessas soluções. É portanto mais fácil nos enamorar quando estamos tendo sucesso, porque se abrem diante de nós novos caminhos. Mas podemos nos enamorar também quando sentimos possuir uma energia criativa que os outros não reconhecem. Ou então quando vamos trabalhar no exterior. Nesse caso, enamorandonos de uma pessoa no novo país, conseguimos integrar-nos nele com mais facilidade, desligando-nos do nosso passado. 101
Francesco Alberoni: Enamoramento e amor, já citado.
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Tudo isso, porém, não é um ato voluntário. Ninguém se enamora voluntariamente. É um processo inconsciente. Quando estamos para nos enamorar, não o percebemos. Sentimos uma grande energia vital dentro de nós, mas, ao mesmo tempo, um sentimento de desconforto, de impotência. Não percebemos o desejo em nós mesmos, vemo-lo nos outros. Damo-nos conta de que o mundo está cheio de gente viva, feliz, e sentimos inveja. Queremos ser como essa gente e não o somos, queremos ser felizes e não o somos. Tudo isso acontece porque estamos lutando contra os nossos desejos profundos e estamos à procura do que possa satisfazê-los. Ao contrário do que é sustentado por Proust e por Girard, a inveja não é a causa do enamoramento, mas um sintoma 102. Um outro sintoma é o aparecimento angustiante do desejo não sabemos de quê, ou a esperança de encontrar alguém por quem sempre esperamos e não sabemos quem é. As vezes entrando num trem, outras vezes caminhando pela rua, entrando num local cheio de gente, por uma infinitésima fração de tempo temos a impressão ou a esperança de que ali há alguém para nós. Geralmente nas fases que precedem o enamoramento, os sonhos são carregados de evocações e de presságios. E mesmo na vida cotidiana temos a impressão de que estão acontecendo coincidências insólitas, misteriosas. Por vezes, as nossas crenças mais sólidas parecem-nos sem sentido e nos sentimos próximos à rebeldia. Experimentamos uma súbita atração por quem arriscou a vida por um ideal ou por um valor. Às vezes, basta uma música para nos comover, nos fazer chorar. O choro, no homem, ê quase sempre o sintoma seguro de um amor que nasce.
2. Antes de nos enamorar da pessoa definitiva, fazemos muitas tentativas de enamoramento, muitas explorações. O estado nascente se inflama por um átimo, inicia uma reestruturação do campo. Mas a hora não é essa, a pessoa não é a adequada. Essas explorações se apresentam como paixões repentinas, até mesmo muito intensas. Algumas pessoas permanecem nesse estado por muito tempo, e então dizem que 102
René Girard: Mensonge romantique et verité romanesque, já citado.
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se enamoraram como uma continuação. Ou então têm a impressão de estar enamoradas, ao mesmo tempo, de diversas pessoas. Na verdade, o enamoramento ainda não existe. Quando aparece, o relacionamento com a pessoa torna-se exclusivo, total. A imagem amada, se for expulsa, retorna, impõe-se. E, ao mesmo tempo, manifestam-se todas as outras características inconfundíveis do estado nascente. Acima de tudo, um espanto, porque o mundo habitual se torna estranho. Às vezes, é uma experiência de alegria, de. liberação, um grito de revolta. Outras vezes, é quase um sentimento de tristeza, porque as coisas a que estávamos tão ligados nos parecem sem nenhum valor, frágeis, contingentes. O estado nascente é uma morte-renascimento, deixando-nos, assim, terrivelmente próximos da morte. O fato de a literatura amorosa falar com tanta frequência de morte não é uma brincadeira macabra ou um sinal de neurose, mas o sintoma de que no enamoramento o significado da vida é posto em discussão. Nós nos fazemos verdadeiramente a pergunta metafísica: quem somos? por que estamos aqui? que valor tem a nossa vida? Nossa existência não nos aparece mais como algo natural, que é assim porque assim é o mundo. Mas como uma aventura em que fomos envolvidos e que podemos escolher ou recusar. O nosso passado volta-nos à mente e de tudo fazemos um julgamento. O estado nascente é também o dia do juízo e de sua condenação; na maioria das vezes, é inapelável. Enquanto se desenvolve o nosso amor, sentimo-nos livres, mas ao mesmo tempo, é como se a nossa liberdade somente se pudesse realizar fazendo aquilo para o que fomos chamados, realizando o nosso destino. O estado nascente do amor aproxima com naturalidade categorias que a lógica abstrata considera incompatíveis. Como a liberdade e o destino, a plenitude de vida e a proximidade da morte, o total altruísmo e o total egoísmo, a força e a fraqueza, a alegria e a angústia, o tormento e o êxtase. Lentamente se estabelece na nossa consciência uma divisão entre o que é verdadeiramente importante e o que é supérfluo. Na vida cotidiana tudo nos parece essencial, mesmo as coisas mais tolas. Mas no estado nascente percebemos quão inúteis elas são e como são vãs muitas das nossas
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preocupações. Pelo menos se confrontadas com o que se está tornando para nós o máximo bem, o próprio sentido da vida. Do outro lado de uma porta, de uma barreira, a vida nos aparece intensa e extraordinária. Mesmo na pessoa mais cansada o amor é como um despertar. O mundo se revela maravilhoso. Quem experimentou esse estado não consegue mais voltar a viver na nebulosidade inerte do passado. A pessoa que descobrimos amar não é então somente bela e desejável. É a porta, a única porta para penetrar nesse mundo novo, para ter acesso a essa vida mais intensa. E através dela, na presença dela, graças a ela, que encontramos o ponto de contato com a fonte última das coisas, com a natureza, com o cosmos, com o absoluto. Então a nossa linguagem habitual torna-se inadequada para exprimir essa realidade interior. Espontaneamente descobrimos a linguagem do presságio, da poesia, do mito. O estado nascente não é jamais um chegar, é um entrever. Como no caso de Moisés, um dos maiores profetas, mas a quem foi concedido apenas ver a Terra Prometida, não alcançá-la. Também a pessoa amada nos está, por isso, infinitamente próxima, mas infinitamente distante. É a mais querida entre todas as pessoas. Ao mesmo tempo, porém, sua proximidade tem o poder de nos transtornar. Não apenas a nossa mente. A emoção do enamoramento toma conta do corpo, do estômago, dos músculos, da pele, de todo o organismo, até a última célula. Essa mesma pessoa é portadora de uma força extraordinária, que nos deixa maravilhados e que nos parece inacreditável. Como um sonho que se pode desvanecer. Uma vez que aconteça o enamoramento, o sistema se toma estabilíssimo. A única alternativa que nos é concedida é a de retornar, chorando, ao velho mundo. O enamoramento não pode ser acabado, não pode ser modificado, não pode ser transferido para outra pessoa. Dura muito tempo, mesmo que os dois enamorados não se queiram, não se compreendam, mesmo que se desencontrem, que se deixem. A força do estado nascente é uma força redentora que tudo transfigura. Da pessoa amada amamos até os defeitos, os erros, os órgãos internos, os rins, o fígado, o baço. A pessoa
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verdadeiramente enamorada gostaria de acariciá-los, beijá-los como o faz com os lábios, os seios, o sexo. É um erro falar de idealização. É uma transubstanciação, uma redenção do que habitualmente é considerado inferior. O que está escondido é levado à luz, no mesmo plano do que é nobre, socialmente desejado. Essa força redentora só se apaga com o tempo. Apaga-se somente quando algo resiste a ela de todas as maneiras, cotidianamente, continuamente. Não basta um ato pontual, é o tempo que leva, o cansaço da inutilidade, o desespero da indiferença, da inércia. O amor acaba através de uma desilusão prolongada, repetida, cotidiana, incessante. Precisa desse cotidiano para consumar-se.
3. Podemos agora esclarecer por que a paixão erótica por um artista não é enamoramento. Este, como vimos, é uma revelação, é a descoberta do valor daquele indivíduo único e inconfundível. Um valor que antes ninguém via e que se revela aos olhos enamorados. O artista famoso, ao contrário, já é admirado, já tem os olhos de todos voltados para ele. O milagre do enamoramento está exatamente nisso, em descobrir o valor de uma pessoa contra os valores socialmente reconhecidos. Por isso é uma força revolucionária. No livro Orlando furioso, Angélica ignora o rei e os príncipes que estão enamorados dela. Até mesmo Orlando, o mais famoso, o invencível. Angélica se enamora de Medoro, um simples soldado, sem valor algum. Do ponto de vista social, é um escândalo. Ao descobrir esse amor, Orlando não resiste à revelação e enlouquece. Mas há um motivo ainda mais sutil. Falando do aspecto coletivo do erotismo feminino, dissemos que a mulher é atraída pelo centro. O que a fascina eroticamente não é uma única pessoa concreta, mas a sua centralidade. A pessoa que amamos no enamoramento é única e inconfundível, não pode ser substituída por nenhuma outra. Ao contrário, na paixão erótica, a pessoa que nos agrada pode ser substituída por outra do mesmo tipo. Um homem pode estar eroticamente apaixonado por uma mulher. Não pode passar sem ela. Porém, se a experiência se restringe ao plano erótico, quando encontra outra tão bonita, atraente e desejável quanto aquela, abandonará a primeira e ficará com a segunda.
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Pessoas com o mesmo tipo erótico são intercambiáveis. Os artistas famosos também são intercambiáveis. A mulher que se apaixona por um artista famoso está sempre disposta a substituí-lo por outro do mesmo tipo ou de tipo erótico mais forte. No filme de Woody Allen, A rosa púrpura do Cairo, a dona-de-casa se “enamora” do explorador que aparece na tela do cinema. Quando, depois, chega o ator em carne e osso, “enamora-se” também dele. No momento em que tanto um como o outro se vão, a pobre mulher, desiludida, volta à sala de projeção onde aconteceu o milagre. No novo filme está Fred Astaire dançando com Ginger Rogers. A mulher fica logo fascinada e esquece os amores precedentes, em troca do novo. Esse exemplo nos mostra claramente que não se trata d e enamoramento, mas de paixão erótica. A mulher acredita estar enamorada de uma pessoa única e inconfundível, mas não, seus objetos eróticos são todos instantaneamente substituíveis por outro do mesmo tipo. Sob as aparências do amor, o erotismo feminino nos apresenta assim sua face frívola, inconstante, comparável à sexualidade masculina. Em seu livro Love and limerence, Dorothy Tennov confunde esse tipo de experiência com o verdadeiro enamoramento. Desde as primeiras páginas, falando do caso de Terry, escreve: “Terry estava sempre enamorada de alguém. No sexto ano teve uma paixonite aguda por Smith Adam, o rapaz mais popular da escola... A seguir vieram outros em rápida sucessão, tanto que a dor de um amor desaparecia com a chegada do novo” 103. Sublinhei a expressão “o rapaz mais popular da escola” porque significa que Smith Adam era o “gostosão” local, adorado por todas as moças. Mais típico ainda é o caso de Cynthia, enamorada de Paul McCartney, um ídolo do rock que jamais havia visto 104. Diferente é o caso de uma mulher que se converte a uma religião e graças a essa conversão se enamora do chefe (o guru, o profeta). Nesse caso, estamos diante de um estado nascente. O amor apaixonado, total, que a mulher dedica ao guru constitui um entrelaçamento com a sua conversão. Maria Madalena estava enamorada de Jesus Cristo? A definição dada 103 104
Dorothy Tettttov, Love and limerence. Ibidem.
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do enamoramento permite que se responda sim. Acrescentando, porém, que se trata de enamoramento unilateral. Nesse tipo de enamoramento há algo de desesperado e de heróico. Desesperado porque o enamoramento aspira à reciprocidade, quer tornar-se movimento coletivo a dois. No movimento, na seita, ao contrário, existem muitíssimos fiéis, muitíssimas mulheres. O líder tem um relacionamento assimétrico com os seguidores. Todos são substituíveis, intercambiáveis, menos ele. Porém, é também um amor heróico, porque o movimento exige uma dedicação total e sacrifícios que o simples indivíduo enamorado jamais teria a coragem de pedir. Por isso, com muita frequência as solicitações do grupo e do líder vão além dos pontos de nãoretorno, pedem que pratiquem ações que contrastam totalmente com as regras morais, os valores da pessoa. Nesse caso, o seguidor obedece, mas seu senso moral, sua capacidade de escolher entre o bem e o mal são destruídos. E a escravização moral 105, que transforma o seguidor num escravo e, potencialmente, num sicário. Nas pequenas seitas, em torno do guru verificam-se os mesmos fenômenos que, em escala incomparavelmente mais extensa, caracterizaram o stalinismo e o nazismo. As mulheres são as vítimas mais frequentes dessa fascinação amorosa e dessa escravidão.
4. No enamoramento, o erotismo é acompanhado de uma sensação inconfundível de ansiedade. O enamoramento consente o máximo do erotismo, mas, ao mesmo tempo, deixa entrever sua superação. O corpo, a beleza, o prazer sexual, os beijos, o contato da pele, o abraço, tudo o que no erotismo é realização, finalidade, prazer, no enamoramento são meios para se chegar a algo mais, para seguir mais adiante, para a essência da pessoa amada, para um valor indizível. Constituem um percurso, um caminho, um meio. Às vezes, uma relação começa como uma aventura, como uma experiência erótica intensa, excitante. Pode continuar 105
O fenômeno da escravização moral é baseado no uso de certos mecanismos que aparecem com freqüência notável nos movimentos sociais e que são usados sistematicamente na edificação do totalitarismo. Ver, com detalhes, Francesco Alberoni: Movimento e istituzione.
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assim até por muito tempo, porque os dois amantes encontram um no outro aquele algo mais que os atrai. Porém, se a certa altura um dos dois, ou ambos, se enamoram, ocorre uma mudança profunda. O gesto erótico seguro, triunfal, torna-se hesitante. O desejo sexual dá lugar a uma emoção total, ao estremecimento do corpo, à vontade de chorar, à comoção. A outra pessoa, que agora nos está mais próxima, tornou -se mais desejável e distante para nós. Olhamos para ela e parece que a vemos pela primeira vez. Cada vez como se fosse a primeira. Parece-nos ter conhecido dela somente o aspecto superficial. Acreditávamos ter visto tudo e em vez disso não tínhamos visto nada. Seu corpo, suas mãos, seus olhos nos falam de uma infinidade desconhecida. Enquanto estamos com ela, enquanto a mantemos apertada nos braços, enquanto fazemos amor juntos, superamos esse abismo. Mas apenas nos afastamos ou ela vai embora, apenas estamos longe um do outro, sentimos como se pudéssemos perder o caminho para reencontrá-la. Então temos necessidade de vê-la, de tocá-la, de lhe falar, de ouvi-la dizer-nos “te amo”. Tudo isso não é ciúme. É medo de perder a nós mesmos, o sentido da nossa vida, da vida em geral. O amor nos revela a infinita complexidade, a infinita riqueza da outra pessoa. Porque percebemos dela tudo o que era, nos menores detalhes, tudo o que é agora e tudo o que teria podido ser todas as vezes, o que poderá ser. O amor nos revela os infinitos possíveis de que é constituído o indivíduo, sua total improbabilidade e, desse modo, o milagre do nosso encontro. O espanto maravilhado no amor é consciência da total precariedade do ser, mas, ao mesmo tempo, consciência de que o ser é real e que o queremos. Daí o nosso desejo de segurá-lo, de agarrar-nos a ele, de permanecermos unidos, fundidos um no outro. Esse desejo espasmódico geralmente assume a forma de desejo de estar sempre juntos, de viver juntos, de casar, de morar na mesma casa. É a modalidade mais simples, institucional, social de tornar estável o improvável. Mas muitas vezes é também uma forma ilusória. Porque aquilo de que estamos enamorados não é na realidade uma pessoa empírica, mas uma força transcendente, uma porta para o absoluto. O
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desejo da pessoa amada é o desejo desse absoluto entrevisto, mas também inatingível. Fazendo amor procuramos preencher a distância, atingir e fundir-nos permanentemente com a totalidade. Os enamorados têm a claríssima impressão de que fazer amor é algo de sagrado, um gesto religioso 106, como se fosse a união do céu com a terra. A ideia do casamento como sacramento nada mais é que a transcrição ideológica, institucional dessa experiência profunda, primordial, dos amantes enamorados. No estado nascente do amor o indivíduo se sente fundido com o cosmos, com a natureza. E o microcosmos que realiza em si o macrocosmos. No enamoramento profundo, também os locais do amor e os dias da revelação do amor ficam carregados de um significado divino e os dois enamorados constroem por si mesmos uma geografia sacra do mundo, um calendário litúrgico que faz com que sejam lembrados e impõe a eles a lembrança dos momentos em que foram abençoados por entreverem a essência última, infinitamente precária, improvável e espantosa da vida.
24 1. Existe também uma forma de amor que brota pouco a pouco do erotismo e da amizade. Um amor que não se apresenta como explosão inicial única entre dois desconhecidos, mas no qual as pessoas se encontram, primeiro, no terreno delicado da estima e da confiança recíproca. Depois aparece o desejo erótico, como quase sempre acontece num encontro entre homens e mulheres. A princípio, o erotismo é apenas um acréscimo, ou um desejo de conhecer melhor o outro. Na verdade, somente a intimidade erótica é 106
A relação entre enamoramento, ou amor-paixão, e mística foi evidenciada por Denis de Rougemont em seu famoso L’amore e l’accidente, trad. ital., Milão, Rozzoli, 1973. O autor observou que a poesia de amor ocidental foi influenciada pela mística árabe. O verdadeiro objeto de amor então é Deus, inatingível para uma criatura terrena. O enamoramento é, portanto, uma ilusão e, ao mesmo tempo, algo de blasfemo. O católico De Rougemont sugere em seu lugar o ágape, amor comunitário. Na realidade, o amor místico por Deus é somente uma das formas em que se manifesta o estado nascente. Existem outras, e entre elas também o enamoramento.
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capaz de revelar aspectos desconhecidos e profundos da pessoa. A confiança gerada pela amizade permite um abandono tranquilo. Não há nenhuma encenação, nenhuma necessidade de seduzir, de aparecer. Estamos diante de um novo tipo de relacionamento, até agora excepcional. Homens e mulheres viviam separados. Seu encontro devia superar inumeráveis barreiras e por isso, na melhor das hipóteses, assumia a forma explosiva do enamoramento. A liberação das mulheres, sua independência econômica, elevou-as àquele nível de igualdade que torna possível a amizade. O erotismo que aparece através de uma relação de amizade é, por definição, bilateral. Cada um se esforça espontaneamente para dar ao outro o que julga poder dar-lhe prazer, respeitando sua liberdade. O erotismo, na amizade, se desenvolve com o tempo e é, no mesmo momento, revelação e inteligência. Não é simples impulso, simples sexualidade, nem simples fantasia. É atenção, preparação, aprendizagem. Os valores da amizade limpam a nossa alma de tudo o que é exclusivista, egoístico e mesquinho. Esse tipo de erotismo requer propriedade de sentimentos, atenção, saber, respeito. Requer o desejo de agradar e de dar prazer ao outro. É uma troca em que cada um compreende e torna suas as fantasias eróticas do outro, adequando-se a elas espontaneamente. Desse modo, ambos crescem em seu relacionamento, conhecem cada vez mais a si mesmos e ao outro. No enamoramento inicial, fulgurante, explosivo os enamorados não se conhecem. Suas realidades empíricas vão sendo reveladas aos poucos, como uma resistência da matéria, do existente, aos desejos do estado nascente. Apresentam -se sob a forma dramática dos pontos de não-retorno. Algo que não se deve pedir sob pena de ruína total. Ao contrário, no relacionamento amoroso que nasce da amizade, já existe uma afinidade eletiva e também aquele respeito pela liberdade do outro, o reconhecimento do limite que no amor explosivo se descobre com dor e tormento. A amizade deixa ao homem suas fantasias de liberdade, isto é, de poder interromper a relação a qualquer momento. Dá à mulher a segurança de uma continuidade de afetos, defende-a do medo da perda.
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O amor que nasce dessa forma não é, portanto, algo que irrompe com força no início para depois, ainda que lentamente, se degradar. É o processo inverso: a edificação, lenta ou rápida, sempre difícil, frequentemente precária, do que é melhor. Seu resultado é uma construção. É errado pensar num projeto e sua gradual realização. No mundo das relações, a relação boa (perfeita, melhor) vai se delineando durante o próprio processo. É reconhecida ao ser vivida. Pronto, é boa, estou satisfeito, estamos ambos contentes. Nem é necessário desejar uma perfeição. Basta distinguir o melhor do pior, saber o que agrada, valorizar, saber valorizar e dizer: “Pronto, eu quero isto, quero assim e não de outro modo”. A Gestalt, por isso mesmo, não aparece perfeita no início e nem é imaginada, como no projeto-meta do voluntarismo. É reconhecida em seu fazer-se. A perfeição é descoberta em seu realizar-se. É o percurso epifânico de que fala Rosa Giannetta Trevico 107. Não há uma situação perfeita, nem no início, nem no fim, mas o reconhecimento de uma temporalidade que cresce e é adquirida através da temperança (limite) e da prudência, isto é, a virtude. A amizade erótica é difícil. Porque a amizade possui uma estrutura granular. Não é necessário que o amigo esteja próximo, em contato com a pele. Não é exclusiva, e se preocupa essencialmente com o prazer do amigo, não importa quem ele procure. Inserir o erotismo na amizade é, por isso, mais fácil para o homem, pois o erotismo masculino é descontínuo e não quer ouvir falar do depois. A mulher deve tornar própria essa fantasia amorosa, aceitar a autonomia do erótico masculino. O resultado é que na amizade amorosa a mulher geralmente representa um papel diferente do homem. Ela representa o pólo estável, permanente, exclusivo, e o homem, o pólo descontínuo, aventureiro. Naturalmente os dois papéi s podem ser invertidos, mas a primeira situação é a mais frequente.
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Rosa Giannetta Trevico: Tempo mitico e tempo cotidiano, já citado.
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2. A amizade amorosa é possível também quando um dos dois está enamorado e o outro não. O primeiro, então, ama apaixonadamente, possui um erotismo sacro. O outro, ao contrário, sente-se, acima de tudo, amado, adorado. Num sistema voluntarístico onde ambos devem dizer “a verdade”, essa situação não poderia persistir. Posto o dilema “ou me ama ou não me ama”, a relação deveria terminar. O terreno da amizade, ao contrário, permite seu desenvolvimento. Ser amigo significa admitir a diversidade, tolerar uma separação entre os desejos recíprocos. Significa, acima de tudo, não colocar alternativas, dilemas, coações. A pessoa que não está enamorada, mas que se sente amada desse modo, não faz perguntas. Aceita o prazer do amor do outro, bem como sua adoração. O enamorado por sua vez não se sente constrangido a decidir. Sente a amizade do outro como um refugio seguro. Não está abandonado sem uma palavra. Sabe que o outro sente por ele um afeto sincero. Sabe que é leal. Abandona-se à própria paixão e fica feliz ao sentir que o outro experimenta prazer erótico, que enlouquece de desejo por ele. Esse tipo de amor assimétrico produz, em geral, um fortíssimo erotismo recíproco. Desde que a pessoa enamorada não coloque imposição, mas contente-se com o amor que lhe é dado e tome o erotismo como prova suficiente de amor. Se, ao contrário, quem ama quer a certeza do enamoramento do outro e a procura através de provas de amor, se quer o monopólio do tempo, quer transformar em cotidiano o que para o outro é erotismo extraordinário, inevitavelmente o equilíbrio se rompe. A palavra faz explodir o dilema e a laceração. Ao rompimento, em geral, não sobrevive nem mesmo a amizade que existia antes. A amizade erótica é, portanto, governada pelo registro da amizade, descontínua, extraordinária, livre. Só pode existir se o enamoramento se explica, ainda que resistindo-lhe docemente. Fornece a ele somente um quadro descontínuo de expressão, porém lhe assegura também algo de precioso: a duração. Porque mesmo a amizade é concedida para sempre. O desenfreamento erótico, a “bolha de tempo”, o “arrepio” podem encontrar nela seu nicho. Através desse tipo de erotismo, uma
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pessoa enamorada pode viver as emoções eróticas mais intensas ao lado do objeto de seu amor, mesmo que o outro não esteja tão enamorado como ela. O erotismo possui uma regra de perfeição que une os seres humanos através do desejo de encontrar uma felicidade ainda maior. À filigrana de encontros de amizade acrescenta-se a dos períodos esplendorosos, das revelações eróticas, e isso, por si só, tende a criar um relacionamento duradouro.
3. Pode-se facilmente intuir, porém, que num relacionamento como esse, o enamoramento de um se comunica quase seguramente com o outro. O estado nascente não surge do erotismo, nem da amizade. Mas, com o passar dos meses ou dos anos, cada homem e cada mulher é obrigado a renovar-se interiormente, a reestruturar seu campo vital e assim produzir um estado nascente. Numa relação desse gênero, em que um dos dois já está enamorado e o relacionamento erótico é feliz, reconhece-se o novo estado nascente no da pessoa que já está enamorada. O enamoramento permanece um fato imprevisto e imprevisível. Brota espontaneamente de necessidades interiores profundas. Ninguém seduziu ninguém. Mas uma relação de amizade amorosa, em que se busca o erotismo como uma perfeição, constitui o terreno propício para o reconhecimento. No dia do despertar, a pessoa que está para enamorar-se verá, antes de mais nada, os olhos da pessoa enamorada. O enamoramento que floresce de uma situação de profunda amizade é sempre revelação, e o amigo ou amiga aparecem, subitamente, envolvidos por aquele mistério que apenas o enamoramento é capaz de descobrir nos seres humanos. Esse enamoramento é absolutamente idêntico, em sua estrutura e nas propriedades da experiência, ao que aparece entre dois desconhecidos. E, no entanto, a amizade, a longa e tranquila amizade, lhe confere algo de precioso, tão precioso quanto o próprio estado nascente. Porque o enamoramento não é um ato, é um processo. É um suceder de revelações e de perguntas, um suceder de angústia e de provas. Para tornar- se amor, o enamoramento deve conhecer também o que outra pessoa é empiricamente. Nós podemos nos enamorar
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de alguém que depois não corresponde àquilo com que sonhávamos, que nos engana e nos desilude. Tudo isso se descobre com o tempo, através de experiências, através de provas. Como saber se o outro nos ama? Que o outro não mente? Fazemos perguntas, submetemo-lo a provas, e o outro age da mesma forma conosco. Somente assim o amor se torna verdadeira consciência e não sonho. Para durar, deve também se tornar confiança, estima, isto é, adquirir algumas das propriedades da amizade. O amor que nasce da amizade já percorreu uma etapa desse caminho. Nós conhecemos o amigo, seus limites, mas também suas virtudes. Acima de tudo, temos confiança nele, em sua lealdade. Se não fosse assim, não se teria tornado nosso amigo. A amizade possui uma essência moral. É com esses conhecimentos, com essas silenciosas seguranças morais que o amor nascente pode contar. O amor continua sendo inquietação, temor, emoção, choro, desejo incrível de ter o nosso amado em nós. Mas ao lado desses sentimentos, entrelaçada a eles, a amizade insere a confiança recíproca e o respeito à liberdade. O enamoramento que nasce através da amizade é, portanto, mais límpido e mais sereno.
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Contradições
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25 1. Recomenda-se a todo mundo: “Seduza, seja desejável eroticamente, seduza mais que todos, Seduza todos”. Ao mesmo tempo, também se ensina: “Seja fiel, deseje apenas aquele homem, somente aquela mulher”. Também o marido, assim como o amante, deseja que sua mulher seja sedutora, bonita, desejada por todos. Cada mulher quer que seu marido, seu amante, seja o mais bonito, o mais atraente. Quer que as mulheres o desejem. O desejo dos outros faz parte do nosso erotismo, alimenta-o. Mas depois, tanto o homem como a mulher querem ter o objeto amado somente para si. Assim agindo, são obrigados a lutar contra todos, porque todos foram convidados a desejar o que eles desejam. Para ser desejável é preciso desejar. A mulher não pode tornar-se sedutora se não quer seduzir, se não comunica seu desejo ao homem, mesmo em tom de brincadeira. O homem, convidado a ser sedutor, olhará e desejará outras mulheres. Por prazer ele deve realmente trair, pelo menos em fantasia. Um homem que não deseja outras mulheres, que não olha para elas, que não toma conhecimento de sua existência, não pode ser sedutor. As outras mulheres percebem imediatamente sua falta de disponibilidade erótica. Pode estar vestido da maneira mais refinada, ser rico e educado, mas não irradiará a menor centelha de verdadeiro erotismo. Porque suas palavras serão mortas, sem vibração alguma. Se a mulher quer o monopólio absoluto de um homem que agrada loucamente às outras mulheres, quer uma contradição. Consequentemente, poderá ter apenas ou um homem que agrada às outras mulheres, mas nesse caso ele olhará para elas, ou um homem obrigado a pensar obsessivamente somente nela, mas bem pouco interessante para as outras. A mulher permanecerá indefinidamente indecisa entre esses dois pólos, oscilando de um para outro. Ora incentivará seu homem a ser desejável, ora o prenderá, ciumenta, junto a si. O homem, por seu lado, incentivado a ser desejável e assim desejar outras mulheres, logo aprenderá que ou não deve fazêlo, ou então deve olhar para elas e mentir. Existem somente duas soluções: a renúncia ou a mentira.
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Por outro lado, também a mulher deve ser ao mesmo tempo desejável e fiel. Mas para ser desejável precisa evocar fantasias masculinas, deve dar aos outros homens a impressão de poder ser uma presa. Também ela, por isso, tem de enfrentar duas alternativas. Ou trai seu homem, ainda que em fantasia, ou acaba por se entorpecer, embrutecer. Sua alternativa não é, pois, radicalmente diferente. A contradição intrínseca do erotismo abre somente dois caminhos: o da renúncia e o da dissimulação. E de fato existem no mundo duas culturas eróticas totalmente diversas. A primeira é construída sobre a égide da verdade e da renúncia. A segunda, da imaginação e da dissimulação. Nas centenas de livros americanos sobre o amor, o enamoramento, o sexo, o erotismo, não há uma única página dedicada à mentira, à discrição, ao não-dizer, ao silêncio, à dissimulação. Em todos eles, sugere-se, recomenda-se, impõese que se diga a verdade, toda a verdade, sem nada esconder. A religião da verdade certamente não é nova. Nos países católicos o confessor tinha o dever de extrair da alma do penitente todos os pensamentos, mesmo os mais recônditos. Os exercícios espirituais ensinavam a tomar nota dos menores desejos sexuais para discuti-los com o orientador espiritual. Não havia um recanto da alma, por menor que fosse, que pudesse ser considerado privado, ao abrigo dos olhos indiscretos. Porque o olho do sacerdote era equiparado ao do próprio Deus. A psicanálise gerou uma outra religião da verdade fazendo coincidir a mentira com a doença. Como se forma, na verdade, o sintoma? Calando, não dizendo a si mesmo, aos outros, o que se pensa e quer. De tal forma, esse desejo se tornará inconsciente, e do inconsciente (como do inferno da religião) se insinuará na vida consciente, perturbando-a, destruindo-a. Não há então outro remédio senão recordar o que foi esquecido, dizer o que não foi dito, confessar o que não foi confessado. Como na religião, também na psicanálise a confissão deve ser feita a um indivíduo específico, o psicanalista. Dessa forma a confissão permanece particular, secreta. Nos países onde existe o sacramento da confissão, os sacerdotes são obrigados
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a manter um rigorosíssimo segredo psicanalistas, um segredo profissional.
confessional.
Os
Porém, com a popularização da psicanálise, a força terapêutica da verdade foi generalizada, estendida a todas as outras relações sociais. Os americanos, principalmente, fizeram dela uma arte de relação interpessoal. Convenceram-se de que as relações interpessoais serão tanto mais harmônicas quanto mais verdadeiras forem. Obviamente, esse postulado não foi estendido a todos os campos. Não ocorreu, por exemplo, aplicá-lo às transações econômicas e à política externa. A economia continua a ser um setor onde cada um tem o direito de manter reservados os próprios negócios. Uma empresa não deve espalhar seus projetos a torto e a direito, não pode distribuir suas patentes aos concorrentes. Está autorizada a manter o segredo em todos os níveis que julgar oportunos. Fora da esfera econômica, ao contrário, e particularmente nas relações eróticas e amorosas, introduziu-se a regra da verdade total. Pode-se mesmo falar de uma religião da verdade, que encontrou seu momento culminante na teoria da intimidade. Na formulação de Lillian B. Rubin, a intimidade é o desejo de conhecer cada fato particular da vida interior do outro e a capacidade de comunicar-lhe os seus 108. Essa capacidade, segundo a autora, seria muito difundida entre as mulheres e escassa entre os homens. A religião da intimidade e da verdade total é inconcebível sem uma concepção voluntarista da vida. Se todos revelam tudo, até mesmo os pensamentos mais fugazes, devem comunicar também as coisas mais desagradáveis, como o ódio, o desprezo, o desejo de matar. Isso é possível porque, numa cultura voluntarista, a cólera, a irritação, a agressividade, o mau humor, são considerados distúrbios passíveis de ser eliminados, sintomas perfeitamente corrigíveis. Quem os experimenta irá a um psicanalista, e este o convidará imediatamente a discuti-los para remover a causa. Para a cultura voluntarista, dado um sentimento qualqu er, existe sempre uma técnica capaz de modificá-lo no sentido 108
Lillian B. Rubin: Intimate strangers, já citado.
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desejado. Existe sempre uma técnica capaz de transformar o desprazer em prazer, o ódio em amor, a aversão em atração. Num sistema cultural voluntarista os sentimentos são objeto da vontade. Devem ser transformados em fins a serem alcançados com técnicas adequadas. Até mesmo a autenticidade do desejo é apresentada como fim. Numa cultura voluntarista vale o imperativo: “Aprenda a ser autêntico, a ser espontâneo” 109. Nesse tipo de cultura em que domina a religião da verdade, a contradição do erotismo encontra soluções somente através da renúncia. Se alguém quer continuar a seduzir deve divorciar-se, viver sozinho, e então a moral lhe permitirá ter relações sexuais com quem quiser. Aliás, por fazer parte da comunidade dos solteiros, será obrigado a fazê-lo continuadamente. Mas deve renunciar a uma ligação estável. Se quer, ao contrário, uma ligação estável, deve renunciar à vida de solteiro e, consequentemente, renunciar também à sedução. Uma sociedade voluntarista não pode ser uma sociedade com forte carga erótica. Porque é uma sociedade do tudo ou nada. Se o erotismo possui em si, estruturalmente, uma contradição, a sociedade que procura anulá-la, negá-la, fazê-la desaparecer é obrigada a criar duas morais, redobrando a repressão. A antiga sociedade puritana era coerente. Não dizia: “Seduza o maior número possível de homens e de mulheres”. Não precisava, portanto, impor a fidelidade a alguns e a promiscuidade a outros. Muito menos preocupar-se com a mentira.
2. Há um caso apenas, em meio a inumeráveis outros, em que o imperativo da sedução não é contraditório: o enamoramento. Nesse estado, a mulher enamorada vai querer ser bela, a mais bela do mundo, para agradar àquele que, aos seus olhos, é o mais belo do mundo. E o homem enamorado vai querer agradar a todos, a todas as outras mulheres para com isso homenagear a sua. Como um rei, que é amado por todas as mulheres de seu reino, que pode ter todas, mas renuncia a 109
Paul Waltzlawick, em Istruzioni per rendersi infelici, trad. ital., Milão, Feltrinelli, 1983, zomba cortesmente da mentalidade voluntarista sem dar-se conta, porém, de que ela forma a base de toda a cultura psiquiátrica e psicológica americana contemporânea.
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esse poder como presente à única que em si resume todas: a eleita. No estado nascente do amor, tanto os homens como as mulheres estão animados por uma energia extraordinária. O mundo lhes parece luminoso, cheio de vida. Sentem estar em contato com uma energia imensa, transbordante, uma fonte que os transcende. O amado ou a amada alcançam essa fonte, são essa fonte. Por isso não são comparáveis a nenhuma criatura existente. Eles incorporam a transcendência. Por isso a contradição é superada. Porque, quanto mais o homem deseja as outras mulheres, mais, na realidade, se aproxima somente da sua. E mesmo que olhe para as outras, mesmo que seus olhos brilhem de prazer e de desejo, é através delas que ele a vê. O homem, no estado nascente do amor, é sedutor. Dá às outras mulheres a impressão de estar fascinado. É vibrante, apaixonado, lânguido, passional. Nenhuma delas percebe que tudo isso não é para ela, mas que também é. O homem enamorado tem um olhar ardente. Detém-se realmente sobre o rosto, os seios; de fato, a mulher lhe causa um estremecimento. Porém, após tê-la tocado, vai em frente. Deteve-se nela por aquilo que em sua feminilidade lhe fazia lembrar a amada, encarnava algo dela. E toda mulher, enquanto mulher, tem algo da amada. Por isso o homem enamorado ama a todas. Quer todas porque quer somente ela. Como o poeta que canta e desperta os sentimentos de todos, mesmo que o seu canto seja dirigido a uma só pessoa, que talvez nem o ouça. Isso acontece também com a mulher no estado nascente do amor. Ela entra no mundo por prazer, esplendorosa. É como se quisesse seduzir o ar, a água, as plantas, o sol. Seduzir significa despertar todas as coisas para a alegria, fazê-las exultar pelo seu amor, torná-las acolhedoras para seu amado. Não há mais engano, fingimento, pois o canto é livre, solar. Então entre os dois não há segredo. Não há áreas protegidas para serem guardadas pelo ciúme. Ambos são tomados da necessidade de se dizerem tudo para entrelaçar sua vida passada, para fundir seus desejos. Para descobrir onde são diferentes e amar essa diferença, torná-la própria. No estado nascente as dificuldades insolúveis desaparecem. Quem
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ama está ao mesmo tempo livre e aprisionado. Quem ama é totalmente altruísta e egoísta porque quer o objeto de amor todo para si. Por isso seduz todos para seduzir somente o amado. No estado nascente do amor, o enamorado se identifica com o cosmos e, cantando sua beleza, canta a beleza do amado. Agradando ao cosmos, agrada ao outro. Mas a contradição somente desaparece no estado nascente. Quando este acaba, quando há a infiltração da escolha, isto é, a instituição, então só se pode ser de um modo ou de outro. E quanto mais nos afastamos do ardor do estado nascente, mais a relação se torna normal, cotidiana, regulada pelo útil, pela conveniência pessoal, pelos deveres sociais, mais as contradições se tornam incompatíveis. No regime voluntarista, as contradições explodem totalmente e não admitem mediações porque os sentimentos desejados são unicamente instituição. No regime voluntarista uma pessoa só é totalmente livre se puder amar o que decidiu amar. Mas isso é o contrário absoluto do enamoramento, em que quem ama se sente livre somente seguindo sua vocação, seu chamado, seu destino. Por isso, num sistema voluntarista, a ordem “vá e seduza” entra em contradição com outra ordem, “ame só a mim”. Porque são ordens dadas à vontade. E, no entanto, é exatamente a experiência exaltante do enamoramento que é chamada para justificar a religião da verdade. De fato — dizem os sacerdotes dessa religião —, aqueles que se amam verdadeiramente, as pessoas enamoradas, dizem- se a verdade. Se não o fazem, isso quer dizer que seu amor não é completo. Quem se ama, portanto, caso queira uma relação perfeita, verdadeira, deve dizer a verdade. Esse silogismo é um exemplo típico de transformação voluntarista dos sentimentos. A revelação da verdade, a confissão recíproca, é vivida como uma necessidade interior e um ato de liberdade soberano no estado nascente. Este não reconhece nenhum dever para com seu interior. Ou melhor, tudo é dever, porque tudo é prazer. Porque o dever coincide com o impulso, com a paixão. As pessoas dizem a verdade porque lhes agrada, porque se realizam com ela. Não porque seja um dever e um fim. O estado nascente não obedece a ninguém. Por essa razão, paradoxalmente, no estado nascente
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os enamorados poderiam muito bem mentir e nada mudaria. De fato, algumas vezes se mentem, mas depois confessam a mentira. Ou então se calam. E é a mesma coisa. O sistema voluntarista toma o enamoramento, identifica sua qualidade, torna-a rígida, faz dela uma virtude, e se a encontra em outra relação conclui então que nesta há enamoramento. Dois cônjuges, pelo simples fato de se dizerem a verdade, deveriam ser mais enamorados” do que dois que não a dizem.
3. Ao tentar realizar um perfeito estado de enamoramento, o sistema voluntarista acaba sempre por destruí-lo. Com o propósito de obter a verdade contínua, o sistema voluntarista produz constantemente mentira. Porque somente pode ensinar a fingir que existe o enamoramento, colocá-lo em cena. O enamoramento é um estado que, por sua natureza instável, tende a tornar-se instituição ou hábito. O momento entusiasta e criativo é limitado no tempo. O voluntarista se encontra agora diante deste dilema: o que fazer quando a paixão se extingue, quando o encantamento se toma cotidiano? Confessálo e divorciar-se porque percebeu que já não ama totalmente, apaixonadamente, loucamente? Ou ir a um psicanalista para curar- se, para reencontrar a paixão perdida? No primeiro caso os casais se desintegrariam imediatamente. E como o enamoramento é um acontecimento, a soma de tudo, excepcional, a sociedade acabaria por ser formada quase que exclusivamente de gente divorciada, por não ter conseguido realizar a felicidade do amor. Resta então o outro caminho: aprender a estar continuamente enamorado, obrigar-se a isso, fingir que se está. Percebendo que não se amam, ou que não se amam suficientemente, os casais aplicarão as técnicas adequadas para realizarem o enamoramento padrão, prescrito. Existem milhares de manuais terapêuticos que ensinam a amar de forma madura, profunda ou romântica. As pessoas os lêem e os aplicam até o momento em que não aguentam mais, até que sentem ganas de gritar de cansaço, de náusea. E então se divorciam. Porém, tendo bem claro na mente o fim: iniciar uma
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nova experiência amorosa perene e feliz. Mas como em geral esta também não dá certo, voltam de novo ao trabalho, ao árduo trabalho de estarem enamoradas. Admitindo que no início esses casais estiveram enamorados (coisa que realmente não aconteceu), o que é chamado de felicidade, ou amor, ou “estar enamorado”, numa sociedade voluntarista é o resultado do esforço voluntário. É encenação. A sociedade voluntarista quer toda a verdade, mas depois é obrigada a representar um estado de enamoramento que de fato não sente. Só tem sucesso quando consegue autoenganar-se completamente, isto é, quando consegue mentir a ponto de não saber mais que mente, até a cegueira total. A arte de amar é um curso de arte dramática em cujo término a pessoa não sabe mais o que está representando. O erotismo somente é possível quando se engana o imperativo totalitário. E deve fazê-lo até mesmo no estado extraordinário do enamoramento, recusando as regras, as imposições, os critérios, os testes, os julgamentos que vêm do exterior. O erotismo é feito de palavras e silêncios, de abertura e reserva, de energia e prostração. Como todo ser vivente tem seus ritmos próprios, como a respiração, e fenece sob o domínio frio do pensamento e o látego da vontade.
26 1. No erotismo há conflito entre espontaneidade e artifício, entre amor e sedução. Tanto as mulheres como os homens aprendem muito cedo, muitas vezes no fim da infância, que o amor puro, desinteressado, sincero não basta para despertar o interesse do amado. Os adolescentes descobrem que a mocinha pela qual estão apaixonados se aborrece completamente com seu amor, seus suspiros, suas hesitações. O enamoramento torna as pessoas tímidas, recatadas. Adoramos a pessoa amada, não temos nem aos menos coragem de tocá-la com a mão. Se nos diz não, ficamos paralisados, não conseguimos superar a resistência, transformar o não em sim. Por isso o rapaz enamorado verá com muita frequência sua namorada preferir outro mais brilhante, mais popular, capaz de fazê-la rir, de
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diverti-la. Alguém que tenha um carro do ano ou que seja um ídolo do esporte. Geralmente alguém que não a ama, mas conhece as técnicas da sedução. Depois desse tipo de experiência, o rapaz procurará aprender a tratar as mulheres apropriadamente. Não as irritará com sua timidez e seus pudores, não ficará hesitante diante de uma recusa. Aprenderá a decifrar a linguagem do convite feminino. Porém ficará com a impressão de que as mulheres não sabem apreciar o verdadeiro amor, enquanto são altamente sensíveis, desarmadas, diante do fascínio da riqueza e o cinismo do sedutor. As mulheres têm uma experiência do mesmo gênero, mas extremamente mais intensa. Para elas o amor, o amor sincero, puro, total, é muito mais importante. Faz parte integrante de suas fantasias eróticas. Não têm um desejo sexual que possam satisfazer com um homem qualquer, com um orgasmo qualquer. Mais ainda do que os homens, percebem quanto é importante a aparência, o fascínio, a capacidade de fazer-se notar, admirar, desejar. Percebem que os homens mais inteligentes, mais fortes, ficam na realidade desarmados diante de dengos, provocações, galanteios de mulheres medíocres e sem preconceitos. A moça enamorada descobre, estarrecida, que o homem que ama deseja uma prostituta vestida escandalosamente, ou se deixa iludir, enredar, manipular por uma mulher que não o ama nem um pouco, mas que o quer somente para divertir-se. E ele não se dá conta de como são elementares, infantis, os truques empregados pela mulher. São jogos que ela sabe fazer, que qualquer menina conhece, mas o homem, não. Por isso parece-lhe que ele é ao mesmo tempo forte e idiota, desprevenido, fraco, mas também ávido como um animal selvagem. No mais profundo da alma feminina está o temor lacerante de que o amor verdadeiro, sincero, simples, não valha a pena, já que o homem é sensível somente ao artifício, à manipulação feminina. Várias vezes, durante a sua vida, a mulher se encontrará diante do dilema: que caminho seguir? O caminho ingênuo, dos sentimentos sinceros, ou o outro, da manipulação? Esse dilema constitui o tema constante dos romances corde-rosa. A heroína está enamorada, ama, é sincera. A rival, não.
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A rival quer o seu homem por orgulho, por capricho, para casar-se, e usa todas as artes da sedução. Disso o homem não se dá conta. Ele toma o artifício por ação sincera, o resultado de um perfeito cálculo por espontaneidade improvisada. O problema colocado desde o inicio pelo romance cor-de-rosa é dramático. Quem sabe seduzir vence sempre, pois o homem não sabe distinguir entre sinceridade e engano. Não sabe escapar das manobras de uma mulher inteligente e sem escrúpulos. Tenhamos presente que o significado do encontro erótico é diferente nos dois sexos. A mulher custa a entender que o homem é atraído para o encontro sexual sem implicações emocionais. Na realidade, a rival que o rouba dela o leva somente para a cama. Mas ela vive essa experiência como uma perda total porque, no íntimo, ir para a cama e amar são a mesma coisa. Sabe que há uma diferença, mas percebe esse fato com a reflexão, com a inteligência, não com o instinto, com o sentimento. O sucesso erótico da rival é vivido como sucesso amoroso tout court. O romance cor-de-rosa respeita essa fantasia. O amado. O amado jamais fará amor com a rival. Jamais, nem ao menos uma vez.
2. A pessoa enamorada fica paralisada pelo seu próprio amor. É tímida, incapaz até de usar sua arte de sedução. O amor verdadeiro desarma. Por outro lado, naquele momento quer seduzir desesperadamente a pessoa amada. A mulher, em particular, sabe que uma rival esperta pode roubar-lhe o amado. Então age também com inteligência. Estuda seus gostos, os lugares que frequenta, dá um jeito de encontrar-se “casualmente” em seu caminho, vestida “casualmente” como acha que ele gostaria. Mas apesar desses cálculos, dessa encenação, se estiver de fato enamorada, estará altamente vulnerável. Se o vir falar com outra mulher, se o surpreender distraído, será tomada de uma crise de desconforto. Uma mulher enamorada usa de modo canhesto a arte da sedução. Se há alguma coisa que ela consegue fazer bem é ficar bonita, agradável, doce. Por outro lado, não se empenhará em fazer mais que isso, porque o amor verdadeiro exige que o outro escolha livremente. Das duas figuras arquetípicas, a Bela
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Adormecida e a Feiticeira, a mulher enamorada identifica-se com a primeira. Gostaria de esperar de olhos fechados, imóvel, que o amado a beijasse e a levasse com ele. Esse desejo de passividade, essa hesitação faz com que a mulher enamorada assista outras vezes, como já lhe aconteceu quando era mocinha, à perigosa aproximação da rival. Sem poder fazer nada, sem nem ao menos poder prevenir seu amado. Aliás, o que lhe dizer? “Cuidado com ela, com suas intrigas.” O homem não acreditaria, iria acusá-la de estar com ciúme. Uma antiga lenda, que inspirou o filme Sortilégio de amor, com James Stewart e Kim Novak, diz que a bruxa não pode se apaixonar. Se isso acontece, ela perde seus poderes. A feiticeira Circe e a feiticeira Alcina criam um encantamento infalível que aprisionará o herói. Mas podem fazer isso justamente porque não estão enamoradas.
3. Na mulher, o conflito entre o desejo de ser amada pelo que é e a necessidade de manipulação é muito violento por um segundo motivo. Vimos que seu erotismo se move ao longo de duas polaridades, uma individual e outra coletiva. Na polaridade coletiva a mulher é atraída pelo homem que se encontra no centro da coletividade. Sobretudo daquelas onde há interação direta, concreta: o ator de teatro, o cantor de rock, o guru, o líder carismático em qualquer de suas formas. Em todos esses casos ela não faz uma escolha pessoal, mas é arrastada pela tendência coletiva, deseja eroticamente o que é admirado, amado, adorado por todos, sobretudo pelas outras mulheres. Passividade e atividade correspondem em parte a essa polaridade individual-coletiva. O astro famoso, o líder, o herói é desejado por muitas. Para tê-lo é necessário emergir da multidão anônima, fazer-se notar, é preciso aproximar-se dele, atrair sua atenção. A Bela Adormecida, na situação coletiva, não tem a menor possibilidade de ser vista. O príncipe não passa a cavalo, está sentado em seu trono, tendo diante de si a massa de súditos que o acalmam./Quem quiser fazer-se notar, ser apreciado como indivíduo tem de criar uma diferença entre si e os outros. Deve fazer com que sua diferença se destaque como um valor.
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A situação é análoga à de homens diante de uma mulher de extraordinária beleza. Na disputa por sua atenção vence somente aquele que é capaz de afirmar sua diferença. Porque consegue falar-lhe, interessá-la, diverti-la, deixá-la curiosa, porque consegue comunicar-lhe seu status e seu poder. Quem fica pairado, sonhador, encantado, por mais virtudes que tenha, não tem a menor probabilidade de sucesso. A mulher bela o ignorará. Em ambos os casos é necessário inteligência, vivacidade, artifício. Existe uma estreita ligação entre a raiz coletiva do erotismo feminino e a sedução como manipulação e intriga. Tudo o que é coletivo é inextricavelmente ligado ao poder e à luta pelo poder. Nas cortes, nas sociedades aristocráticas como a França do século XVIII, a sedução era um meio poderoso de afirmação social, de prestígio, até de revolta. Uma das obras mais fascinantes sobre a sedução foi escrita nesse período por Pierre A. F. Choderlos de Laclos: As ligações perigosas. Os protagonistas são dois “libertinos”, uma mulher, a marquesa de Merteuil, e um homem, o visconde de Valmont. Eles dedicam todo o seu tempo manipulando os sentimentos dos outros para torná-los escravos ou levá-los à ruína. Sabem usar os mais sofisticados jogos psicológicos para que outros se enamorem deles, e desfrutam o poder do amor. Usam-nos para objetivos torpes, como vingar-se de alguém ou simplesmente porque fizeram uma aposta, e a corte poderá então rir nas costas do ingênuo, que se deixou cair na armadilha. Para atingir seus objetivos, o sedutor não pode ter sentimentos sinceros, precisa sempre fingir. Esse tipo de jogo é particularmente difícil para a mulher que tem de seduzir, mas ao mesmo tempo deve conservar sua reputação de senhora irrepreensível e virtuosa. Numa carta ao visconde de Valmont, a marquesa de Merteuil escreve: “Meu primeiro cuidado foi conquistar somente as atenções dos homens que não me agradavam. Serviam-me para obter as honras da resistência. Enquanto isso, abandonava-me sem medo ao amante preferido. Mas como a este, sob pretexto da minha fingida timidez, jamais permiti que me acompanhasse em sociedade, os olhos de todos estavam sempre fixos no infeliz amante”. Dos amantes afortunados, para que não se tornassem perigosos, procurava obter sempre algum segredo, para poder ameaçá-los e
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chantageá-los. A todos dava a impressão de ter sido seu único amor, e se mostrava escandalizada somente ao pensamento de que alguém pudesse duvidar dela. Tudo isso exigiu uma férrea disciplina interior: “Se sentia qualquer desagrado”, acrescenta, “procurava assumir uma atitude serena e alegre; levei meu zelo ao ponto de sentir dores voluntárias, para poder assumir nesse meio tempo a expressão do prazer. Empreguei os mesmos cuidados para reprimir os sintomas de uma alegria inesperada. Assim consegui ter absoluto domínio da minha expressão fisionômica, coisa que tanto vos surpreendeu...” E conclui orgulhosamente: “Se consegui, segundo meus gostos, de vez em quando prender ou afastar de mim esses tiranos desentronizados, tornados meus escravos... devereis forçosamente concluir que, nascida para vingar meu sexo e dominar o vosso, devo ter sabido inventar métodos antes desconhecidos!” 4. O mundo, aristocrático do século XVIII desapareceu. Nenhum homem perde a reputação se uma mulher o rejeita, nenhuma mulher se arruína socialmente se se entrega a um libertino. Porém, os mecanismos da sedução e da manipulação, o estudo frio dos sentimentos alheios para compreender suas ações e tirar partido deles ainda subsiste. Menos cínico, menos cruel, e até mais escondido. Mas um olho atento sabe reconhecê-lo no mexerico confidencial. Este, não obstante o feminismo e uma igualdade maior, continua a ser um instrumento de luta e de defesa feminina. Os homens ficam aturdidos quando ouvem as mulheres falar da vida particular de amigos e conhecidos comuns. Destes, em geral, eles conhecem apenas o comportamento profissional, enquanto as mulheres conhecem com detalhes o comportamento íntimo. Sabem que fulano tem uma amante, quando se encontraram, onde se encontraram, como lhe fez a corte, que vestido ela usava quando se viram pela primeira vez, onde costumavam comer, que gafes ele ou ela cometeram. Para o homem, esse é um conhecimento que o deixa espantado. Mas o que o deixa realmente estupefato é a descrição de todas essas relações em termos de artifícios: as intenções dele, as intenções dela, as manobras, os cálculos, os erros cometidos, correções.
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Há mulheres capazes de descrever dessa forma a vida amorosa de uma cidade. Algumas dessas especialistas em mexericos, como Elza Maxwell, tornaram-se famosas no mundo inteiro. Porém, são muitas as escritoras que em seus romances reconstroem os ambientes sociais de modo análogo. Como exemplo temos o romance de Jacke Collins, Luz! Câmera! Ação! Diante dessa análise implacável, todos os sentimentos mais nobres parecem ingênuos, todos os homens mais famosos se revelam miseráveis, inaptos e impotentes, sempre, entretanto, vítimas de mulheres espertas que calculadamente haviam preparado as armadilhas. No mexerico confidencial, todos são manipuladores ou manipulados. A vida erótica e sentimental desses seres humanos torna-se um museu dos horrores. O mexerico confidencial dá sempre a impressão de promiscuidade. Na verdade as mulheres que conhecem os amores e atividades sexuais de todos, que ouvem as confidências de todos, vivem definitivamente no interior de uma grande comunidade erótica promíscua. De uma promiscuidade velada e hipócrita que condenam, mas de que são, inexoravelmente, cúmplices.
5. O romance cor-de-rosa situa-se do lado oposto do mexerico confidencial. Nele a manipulação não recompensa. A rival — que seduz e manipula sem escrúpulos — pode vencer cem batalhas, mas no final perde a guerra. Como vimos, o romance cor-de-rosa não descreve um processo de enamoramento, mas as ânsias, os medos da mulher diante do amor. Seu desdobramento demonstra que esses medos são inexistentes, que podem ser vencidos. Num universo onde tudo é manipulação, a pessoa sinceramente enamorada, que quer a felicidade da pessoa amada, que não aceita mentir e não sabe fazê-lo, perde sempre. No romance cor-de-rosa, não. Aqui a mulher pode se identificar com a enamorada que não seduz, que não sabe seduzir, que não quer seduzir e que, por isso, está em poder da rival e da incompreensão do homem. Uma situação extremamente angustiante, paralisante. No romance cor-de-rosa, essa angústia aparece nas crises em que a mulher gostaria de falar, explicar -
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se, prevenir o homem, mas perde o controle, fica sem palavras, foge. Não luta, renuncia à competição. Dessa forma, o romance cor-de-rosa descreve uma situação amorosa competitiva em que a mulher renuncia à competição e mesmo assim vence. O amor consegue prevalecer por si mesmo, sem palavras, sem artifícios e pela sua força interior, derrotando a sedução e a intriga. O romance cor-de-rosa põe em cena o dilema da mulher, o dúplice e contraditório imperativo que a lacera: usar o artifício ou não usá-lo. No final, é o não-artifício que vence. Vence a boa fé, a simplicidade, o silêncio, o bem. Mas não é uma vi tória fácil. Durante todo o livro o artifício leva vantagem continuamente. A situação nunca deixa de ser perigosa. Escolhendo o caminho do não-artifício, a mulher se defronta continuamente com o abismo da perda. O romance cor-de-rosa dá, dessa forma, uma indicação moral. É preciso ser muito corajoso para ser sincero, resistir à tentação da manipulação, da chantagem, do poder. Mas para encontrar o verdadeiro amor é preciso possuir um coração puro. O perigo é gravíssimo, mas o prêmio, sublime.
27 1. No homem não existe o dilema da sedução que caracteriza a mulher. No homem há uma tensão entre amor e sexualidade, entre fidelidade e promiscuidade, entre responsabilidade e jogo. O homem sente uma profunda necessidade de amor, precisa de segurança emocional. Sem ela, é tomado de angústia, e seu desejo erótico desaparece. Apesar disso, é sempre muito difícil para ele canalizar todo o seu erotismo para uma única pessoa, mesmo quando gosta dela, quando precisa dela, até mesmo quando está profundamente apaixonado. A separação, sempre possível, entre sexualidade e amor, coloca-o frequentemente num beco sem saída. Darei um exemplo. A presença dos filhos em casa frequentemente mata, no homem, um certo tipo de erotismo
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louco, típico dos enamorados e dos amantes. Mata-o porque deve controlar-se, esconder-se, estabelecer horários, porque deve calar-se. Porque não pode explodir, não pode realizar no espaço doméstico o excesso dionisíaco, o paraíso de êxtases, a fusão total e exclusiva com a mulher, sem que haja nada nem ninguém entre eles. O erotismo masculino é descontínuo, mas no intervalo luminoso é total, não admite contaminações. A convivência cotidiana, a educação, a etiqueta, os olhos indiscretos, tudo isso destrói a área separada, o frenesi e o mistério. Destrói sobretudo a distância, a diferença, o que torna o erotismo para o homem erotismo, e não outra coisa. Na mulher essa exigência de separação, de especificidade, é muito menor. Afeto, ternura, emotividade e erotismo caminham juntos. Para muitas mulheres a gravidez é um enriquecimento do amor em relação ao marido. Esperam que ele admire sua nova beleza de gestante e sofrem se isso não acontece. Para muitas mulheres o nascimento do filho completa o amor dos dois. Algumas se sentem plenamente enamoradas somente quando se tornam mães 110. Tudo se desenvolve no nível do contínuo, do crescimento. Para demonstrar ao marido um amor maior, a mãe acha natural levar o filho para a cama, acariciá-lo, apertá-lo contra o peito. Depois espera que, ao acordar, o marido seja cavalheiresco, lembre-se de lhe enviar flores. Nem se dá conta de que o marido teria desejado um outro tipo de erotismo, dirigido exclusivamente a ele. Também o homem fica emocionado ao contato com o corpo macio do filho, mas essa emoção não tem nenhuma relação, nenhuma semelhança com o desejo que sente pelo corpo excitado da fêmea, pelos espasmos do ventre, da pelve. O relacionamento com a mulher, com o filho, aumenta-lhe uma outra forma de amor. É um amor compenetrado de dever, de responsabilidade. Algo que o macho da espécie humana aprendeu nos milhões de anos de sua humanização, quando, como caçador e guerreiro, tinha que defender o território e, com este, a mulher e os pequenos desarmados e fracos. 110
Há um conto divertido de Patricia Highsmith, "La fattrice”, no livro Piccole storie di misoginia, trad. ital., Milão, La Tartaruga, 1984, em que a mulher exprime toda a sua feminilidade fazendo filhos, até que o marido enlouquece.
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É um amor que se assemelha ao amor materno, mas não possui suas virtudes sensoriais, táteis, cinestésicas, e, sobretudo, não tem nada de erótico. É um amor vigilante, feito de cuidados, de atenções, mas dissimulado. É um amor que se manifesta em ações, não em carícias. É um amor que se exprime na defesa contra os perigos externos, cujo símbolo mais adequado é a sentinela que vigia, fora do campo, na noite. É um amor que não se importa com a distância, que não tem necessidade da proximidade física, do contato. Esse tipo de amor cresce continuamente com o passar dos anos d o casamento, cresce com o nascimento dos filhos, cresce com a vida em comum. É um amor cimentado por recordações compartilhadas, pelo fato de terem lutado juntos contra as adversidades. É entrelaçado de intimidade intelectual e espiritual, do hábito do diálogo. Desse modo, a mulher se torna para o homem a outra “metade”, como se dizia antigamente. No entanto, esse amor tão verdadeiro, tão profundo, pode não ter absolutamente nada de erótico. Assim, o homem pode encontrar-se amando profundamente uma pessoa, alguém que lhe é indispensável, mas com relação a quem não sente nenhuma atração erótica e, em muitos casos, sente até certa repugnância. Então pode fazer amor com todas as outras mulheres do mundo, menos com ela, ou então o faz por dever, por obrigação. Quando frequenta a sociedade, ou viaja, não pode evitar confrontos entre ela e as outras, e quanto mais olha para as outras, mais a sua lhe parece feia. Envergonha-se dela. Mas isso ocorre sem que estejam em jogo a estima, o reconhecimento, o afeto que sente por ela. Pode continuar a apreciar suas extraordinárias qualidades intelectuais e morais, a generosidade, o espírito de sacrifício, a coragem. Pode considerar preciosos seus conselhos, viajar de boa vontade com ela. Não gostaria, sobretudo, de lhe fazer qualquer mal, e sofre pela própria indiferença, sente-se culpado. Esse conjunto de sentimentos certamente pertence à área do amor. Aquele homem pode dizer que ama aquela mulher. Porém, ela lhe é eroticamente estranha, não pode mais satisfazer sua necessidade de erotismo. Uma necessidade que permanece intacta como a fome, a sede, e que o lacera.
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As mulheres não experimentam esse tipo de laceração. Para elas, erotismo e amor são gêmeos. Se perdem todo o interesse erótico pelo marido é porque não o amam mais. Então nem querem vê-lo. Se ao contrário, o amam, então continuam a esperar dele um gesto romântico, uma carícia, um abraço, uma atenção amorosa, que, para elas, é erotismo. O cavalheirismo não é erotismo, as flores não são erotismo, a gentileza não é erotismo, a carícia não é erotismo. O erotismo, para o homem, é uma região distinta, por si mesma, esplendorosa e atormentada, sempre desejada e sempre fugidia, que aparece e desaparece continuamente como uma miragem. O drama específico do homem é, portanto, o de amar uma pessoa desejando outra, e encarar esse sentimento como culpa. Culpa não expiável, pecado original que ele procura remediar aumentando suas responsabilidades, seus cuidados e deveres. Mas em vão, pois não é isso que lhe é pedido, mas a união de duas coisas que nele se dividem caprichosamente. É esse conflito a causa da autodisciplina que os homens sempre se impuseram desde a Antiguidade. Do governo de si mesmos, da repressão sexual que sempre consideraram meritória. Já tínhamos visto e tornamos a ver agora: na mulher, erotismo e moral concordam, no homem, não.
2. Wilhelm Steckel 111 demonstrou, desde o início do século, que a mulher se torna frígida quando não se sente amada, apreciada, objeto de atenção. Quando sente que não agrada ou é rejeitada. Também o homem tem necessidade de ser estimulado eroticamente, necessita do desejo, do apreço sexual da mulher. Porém, seu desejo diminui com a repetição e requer um alimento de diversidade. Essa é uma regra geral que todos os homens estão prontos a negar para agradar à mulher amada, mas que é verdadeira. Mesmo com a mulher de quem está enamorado, loucamente enamorado, o homem, uma vez ou outra, tem necessidade de ter fantasias eróticas em que comparecem outras mulheres ou a sua fazendo amor com outro. No enamoramento essas fantasias têm o significado de fazer convergir sobre a amada recordações, emoções 111
Wilhelm Steckel: La donna frigida, já citado.
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separadas, de concentrar nela uma energia erótica fixada noutro lugar. Desse modo, ela se torna todas as mulheres do mundo, e ao mesmo tempo, ele se torna todos os homens que ela já teve. Daí decorre uma consequência não indiferente. Se a mulher, no casamento ou na convivência amorosa, se sente amada de modo terno e gentil, se se sente cercada de atenções, está eroticamente satisfeita. Seu erotismo até aumenta. Mas esses mesmos estímulos não excitam o homem. Ao contrário, um mundo feito de ternura, de cuidados, de amorosa exclusividade, de tranquilidade habitual pode tornar-se para ele uma verdadeira prisão que liquida todo o seu erotismo, até a náusea, até a impotência. Se a causa mais frequente da frigidez feminina é a insensibilidade e a brutalidade do homem, uma causa frequente da impotência masculina é a possesividade amorosa da mulher.
3. O drama específico do homem se manifesta sob a forma de sentimento de culpa. Quando uma mulher resolve ter uma relação erótica com outro homem, de modo geral não experimenta remorsos. Pois se isso acontece, significa que se sente atraída emocionalmente, que sente ou começa a sentir um pouco de amor. Se a relação se transforma numa ligação erótico-amorosa mais profunda, então quer ter aquele homem todo para si, e não suporta mais as ligações precedentes. Se é casada, deseja divorciar-se, e após a separação procura reduzir ao mínimo os contatos com o ex-marido. Contudo, não experimenta remorsos. O homem, ao contrário, experimenta sentimento de culpa do começo ao fim. No começo porque, mesmo que para ele o encontro erótico seja confinado ao campo sexual e não tenha implicações emocionais, sabe que para a mulher não é assim. Sabe que para ela seu comportamento é uma traição amorosa. Mesmo que sua mulher não dê grande importância ao relacionamento sexual, tem necessidade principalmente de ternura, afeto, galanteria, carícias, abraços, e não quer que ele tenha relações sexuais com outras. Mesmo que o sexo não a interesse, quer ter dele exclusividade, monopólio. Por isso ele tem sempre a impressão de enganá-la, de fazê-la sofrer. Isso
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está em contraste total com sua vocação moral, que o leva a assumir a responsabilidade do bem-estar das pessoas que ama. Só que, nesse caso, o único modo de tranquilizar a mulher é não agir, não fazer nada, renunciar aos seus desejos. Se os satisfaz, experimenta sentimento de culpa. Ainda mais forte é o sentimento de culpa se sua relação se torna amorosa. Na mulher, o amor se autolegitima. Sua moral lhe diz: “Se ama alguém, vá com ele”. No homem, ao contrário, o erotismo pertence ao domínio do prazer. Sua moral lhe diz: “Seja fiel aos pactos, cuide daqueles que dependem de você, não faça sofrer os que o amam e que você ama”. Somente o enamoramento, no homem, produz parcial legitimação do amor. É como uma explosão que subverte as regras morais correntes. Interiormente ele sente ter o direito de seguir seu amor. Mas, mesmo nesse caso, a outra moral, a moral da responsabilidade, continua a agir. Portanto o homem, mesmo enamorado, não deixará de se preocupar com a pessoa que deixa, sente-se responsável pelo seu sofrimento. É sempre a mulher que o força a deixar a outra. É sempre ela que lhe explica que tem o direito de fazê-lo, que aliás tem o dever de fazê-lo, porque ficando com a outra sem amá-la só lhe poderá fazer mal. É errado ver nesse comportamento uma particular competitividade feminina com relação ao próprio sexo. A mulher simplesmente acha que quando se ama alguém deve-se amar somente a ele e que não existem outros compromissos éticos a respeitar. Partindo com quem ama, a mulher respeitou todos os seus compromissos morais. Em vez disso, o homem, por milhares e milhares de anos, aprendeu que seu primei ro dever é para com a comunidade, a família, a mulher, os filhos, e que o erotismo é algo a mais. Algo que pode obter com a mulher ou com as concubinas ou as escravas; que pode obter até com a guerra e o saque. Mas tudo isso não deve interferir em seus deveres primários, que não são eróticos. Quando as mulheres afirmam que os homens são mais hesitantes, incertos nas coisas do amor, dizem a verdade. Elas, pelo sim ou pelo não, não têm posições intermediárias. Mas, para o homem, esse modo de pensar foi por milênios profundamente imoral, irresponsável. Só recentemente, com o
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desaparecimento do patriarcado, com a independência feminina, com o controle da natalidade, com a assistência social, os pesos tradicionais da responsabilidade masculina foram se atenuando. O que resta é um hábito mental, uma espécie de sensibilidade moral que não tem mais uma justificação objetiva. Por isso mesmo o modelo feminino tende sempre a prevalecer, e o homem já está sentindo sua incerteza, sua indecisão, não como virtude, mas como uma fraqueza culpável. Ainda uma vez e, paradoxalmente, como sentimento de culpa. Por outro lado, também na mulher há uma inércia dos velhos comportamentos. A mulher é atraída eroticamente pelo homem forte, fidedigno, em cujos braços pode se refugiar. O herói é capaz de vencer os obstáculos interiores e exteriores, é senhor de suas emoções. Se ama, ama profundamente, toma sobre si a responsabilidade até o sacrifício, até o heroísmo. O “verdadeiro homem” não se enamora da primeira ninfeta que encontra, não foge com a primeira bailarina de pernas irresistíveis. A mulher espera que o homem, depois de tê-la escolhido, saiba resistir às paixões suscitadas pelas outras. Se cede, é fraco, irresponsável, imoral. Somente uma personagem não se enquadra nessa obsessão moral feminina: o astro famoso, o cantor, o ator célebre, idolatrado pela multidão, adorado por todas as mulheres que se aproximam dele. Porque, nesse caso, põe-se em ação o outro componente do erotismo feminino, o coletivo, que renuncia à exclusividade. O mundo do espetáculo é o grande templo desse tipo de erotismo e um modelo de referência para os homens das últimas gerações. Enquanto até os anos 50 os grandes astros de Hollywood se atinham, pelo menos formalmente, a um tipo de moralidade sexual convencional, hoje todos os nossos astros se apresentam como transgressores. Primeiro os Beatles, depois os Rolling Stones e depois, pouco a pouco, até o último cantor de rock, o novo ídolo, não se casa mais, vive cercado por um harém geralmente bissexual, usa drogas, recusa todos os deveres e responsabilidades do homem casado comum. Os novos ídolos representam uma fantasia de liberação das responsabilidades para todos os homens com eles identificados. Sobre as mulheres, eles exercem uma atração erótica direta. Sobre os homens, produzem um efeito euforizante, pois exibem uma modalidade erótica totalmente
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indiferente ao sentimento de culpa e, apesar disso, apreciada pelo outro sexo. Desse modo, um modelo ideal que muitos sonham poder realizar um dia. Poder chegar, graças ao sucesso, além do bem e do mal, à região do arbítrio absoluto.
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Convergências
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28 1. Existem pessoas dotadas de forte carga erótica. Pessoas em que o erotismo é um elemento essencial da vida, sem o que se extinguem, como se lhes faltasse o ar ou o alimento. Outras, ao contrário, parecem quase não possuí-lo. O que não significa que não tenham interesses; é como se não possuíssem esse tipo particular de sensibilidade vital. Na maior parte dos casos, entretanto, o erotismo não é constante, mas se apresenta com grandes variações. Não estou me referindo àquele interesse erótico que sempre pode ser despertado com estímulo suficiente. Refiro-me ao grande erotismo, ao erotismo como fato central da existência, que lhe dá sentido. Nessas pessoas, a riqueza erótica se manifesta somente em alguns momentos da vida. Em determinado período da adolescência, por exemplo, mas sobretudo quando se enamoram. São esses os tempos do erotismo extraordinário, as estações do amor. Depois, passado o grande amor, a paixão, toma seu lugar a vida cotidiana e o erotismo passa em surdina comparado a outros interesses e preocupações. Os resultados de todas as pesquisas sobre a sexualidade humana, a partir do famoso Relatório Kinsey, mostram que o tempo dedicado à atividade amorosa é extremamente curto. Todos os sexólogos confirmam que são bem poucas as pessoas que têm vontade, tempo, desejo de fazer amor por horas e horas com a pessoa que amam. São poucas aquelas que, após o ato sexual, não se sentem cansadas, aborrecidas ou tris tes, mas ao contrário se sentem felizes, renovadas, serenas. A maioria das pessoas está, em última análise, de acordo com o provérbio latino que diz (( Post coitum animo triste”. Michel Foucault demonstrou em suas últimas pesquisas que essa concepção deriva da medicina grega e romana, segundo as quais no relacionamento sexual ocorre uma perda de forças vitais. Uma ideia depois retomada pelo cristianismo e que sobreviveu até alguns decênios passados, quando, aos rapazes que se masturbavam, prognosticava-se as mais horríveis doenças. Essa concepção não existe na medicina oriental. Aliás, no taoísmo pensa-se que os relacionamentos sexuais longos e
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frequentes (melhor ainda se com parceiros diversos) aumentam as forças vitais e prolongam a vida. Isso porque o homem se enriquece com o princípio feminino yin e a mulher, com o princípio masculino yang. Porém, mesmo no taoísmo permanece o medo do empobrecimento. Cada um dos dois sexos deve procurar extrair do outro o mais possível do princípio complementar, dando o mínimo de si. Na prática taoísta o homem é instado a reduzir a ejaculação, e chegando a uma certa idade, suspendê-la definitivamente. A reviravolta completa dessa impostação conservadora, predatória, voraz só acontece quando aparece o enamoramento individual. Quando aquela pessoa se torna única e insubstituível. Então ambos se desejam, sentem necessidade de ver-se, tocar-se, abraçar-se, beijar-se, fazer amor, dar-se completamente. As pessoas enamoradas, homem ou mulher, não importa, quando estão longe um do outro, sentem diminuir em si a energia vital. É como se seu organismo, suas células, tivessem necessidade do contato físico com o outro. Aparecem os sintomas da depressão. Perdem o apetite, o sono. Acordam pela manhã, e a primeira coisa que sentem é a doloro sa falta do corpo amado. E não conseguem adormecer de novo se não imaginam vê-lo, abraçá-lo, segurar-lhe a mão. Quando finalmente o encontram de novo, quando finalmente se apertam contra ele, é como se seu organismo se recarregasse de energia vital. Como se do outro emanasse um fluido vivificador que lhes renovasse as forças. Fazendo amor longamente, desesperadamente, o corpo se carrega como uma bateria elétrica, torna-se cada vez mais vivo, mais forte. O que a pessoa amada nos dá, seus beijos, sua pele, seus humores, são nutrientes que nos robustecem a ponto de nos sentirmos de novo fortes, capazes de nos levantar, trabalhar, partir. Até de enfrentar uma separação. Depois, após um certo período, é como se a energia acumulada se descarregasse. Sentimos então um cansaço, uma sensação de peso, uma fraqueza dolorosa. Temos novamente necessidade daquela boca, daquela pele, daquele corpo, o único que nos pode transmitir a energia que se esvai, o único no mundo que a possui. Nessa situação, a ideia de que fazer amor enfraquece é um absurdo. É somente fazendo amor, dando-nos totalmente que
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encontramos de novo a nossa força. Nosso amado é nosso alimento, nossa bebida, nosso ar. E nós somos o mesmo para eles. O ato amoroso, a maneira pela qual, nutrindo-o, nos nutrimos. As pessoas dotadas de forte carga erótica vivem a sexualidade dessa maneira. Quanto mais dão, mais recebem. Se bem que, em geral, estreitamente ligado ao enamoramento e à paixão, esse erotismo generoso pode apresentar-se em certos casos também de forma leve, alegre, sensual. Não tem necessidade de fixar-se num objeto, excita-se sempre com novas formas, novos corpos, com a novidade. Está baseado numa grande excitabilidade de todos os sentidos: a visão, a audição, o olfato, mas também o tato, a sensibilidad e muscular, cutânea. Responde aos mais leves estímulos, aos sinais mais fracos. Adivinha o mais tênue convite de sedução, individualiza-o, mesmo se é velado, e a ele responde prontamente. Por isso faz desabrochar o erotismo à sua volta porque o reconhece, dá-lhe seu sorriso, seu entusiasmo, sua segurança, sua energia. As pessoas desse tipo amam a vida, amam o prazer em todas as suas manifestações. Se é homem, encontra algo de belo e excitante em todas as mulheres. Se é mulher, identifica imediatamente o homem que lhe agrada e fica feliz se consegue ser notada prontamente. O primeiro envolve a mulher com seu desejo até fazê-la vibrar. A mulher se abandona ao prazer da sedução e de ser seduzida. Porém, em geral, para revelar-se completamente, o erotismo tem necessidade de um objeto único onde descobrir todas as potencialidades. Não é necessário que no início exista enamoramento. Esse tipo de erotismo nem é necessariamente muito fiel. Porém, não está disponível para todos os estímulos. Não tem os sentidos sempre alerta e prontos a captar o mais leve sinal de sedução. Aliás, em geral, reage muito pouco, chegando mesmo a parecer obtuso. Sua força reside na concentração. Quando escolhe um objeto, quando o vê, quando o separa da massa dos outros, concentra-se nele. Somente então seus sentidos despertam. As sensações que o primeiro tipo de erotismo recolhia do mundo, esse erotismo encontra numa única pessoa, de quem descobre todos os aspectos, todas as nuances, os odores, os sabores, as infinitas formas
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possíveis, os brilhantismos, num turbilhão de fantasias que se concentram todas no mesmo ponto. Como os raios de sol através de uma lente, antes que a temperatura fique altíssima e as vibrações, os sentimentos, atinjam o calor branco da sensualidade e da fusão.
2. O erotismo é uma forma de interesse por outras pessoas. É generosidade intelectual e emocional, capacidade de dar- se, de dedicar-se, de abandonar-se. O grande erotismo é o oposto da avareza, da mesquinhez, da prudência. Naturalmente pode haver generosidade sem erotismo. Pensemos nas mulheres com forte componente maternal, capazes de dedicação total a uma outra pessoa, esquecendo-se de si mesmas. Entretanto, essa dedicação pode ter pouca ou mesmo nada de erótico. Encarrega-se de todas as necessidades do amado: da alimentação, roupas, divertimentos. Vela por seu sono, cuida dele e o guia como faria uma mãe. Chega mesmo a simular excitação erótica como no conto de Colette em que uma mulher enamorada — mas totalmente frígida — finge um orgasmo que não sente, e seu grito é como um canto agudíssimo que faz feliz seu jovem amante 112. Mas o verdadeiro erotismo implica também um envolvimento real de si mesmo, do próprio prazer. É, a um só tempo, altruísmo e egoísmo, síntese dos dois. Ainda mais afastado do erotismo é aquele amor pelos outros, todos os outros, que o cristianismo chama “caridade”. Na caridade o amor não se restringe ao filho ou ao amado, transborda. Os que são capazes desse altruísmo não sentem mais as próprias dores, as próprias preocupações, ou então as consideram de pouca importância. Participam das dores dos outros, sofrem com eles e se dedicam totalmente a eliminá-las. Nunca pensam no próprio prazer, e, assim, o erotismo está infinitamente longe de seus pensamentos. Entretanto, são mais semelhantes às pessoas capazes de forte erotismo do que as pessoas avaras, cobiçosas, frias, fechadas, egoístas. Existe uma ampla relação entre a grande mística ocidental, cristã e islâmica, e o amor apaixonado. A poesia de Ibn al-Dja112
Colette: Il puro e l’impuro, já citado.
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bari 113 é ao mesmo tempo religiosa e erótica. O grande poema de Rumi 114 é um edulcorado canto de amor e de esperança, de nostalgia e de fé. Também na poesia italiana de Dante e Petrarca há arrebatamento amoroso pela mulher e pela divindade. Nas origens da mística alemã está o movimento erótico-religioso das beguinas 115, e um forte componente amoroso se encontra também no relacionamento entre São Francisco e Santa Clara. Em muitos santos cristãos, de São Francisco a Santa Teresa d’Ávila encontramos dedicação altruística, amor divino e carga passional. Um dos mais belos cantos erótico-amorosos faz parte da Bíblia, no Antigo Testamento: O Cântico dos Cânticos. Esse impulso altruístico torna-se erótico quando passa através do corpo, o próprio e o da outra pessoa, e busca no corpo o prazer para si, para o outro, até transbordar, até buscar o prazer para os outros. A poesia amorosa e erótica está destinada a provocar amor e prazer erótico no exterior, no mundo. Isso vale para qualquer forma artística. No passado, isso foi muito bem expresso na pintura e na escultura. O artista, fascinado ou enamorado por sua mulher, transfiguravaa numa madona e a tornava bela, adorável para todos. Na época moderna esse processo transferiu-se para a fotografia e o cinema. Foi Von Sternberg que descobriu em Mar lene Dietrich um fascínio erótico que talvez nem mesmo ela soubesse possuir. Descobriu porque estava enamorado dela e conseguiu potencializá-lo, objetivá-lo, transmiti-lo a ponto de produzir nos outros, em todos os outros, aquela mesma paixão que sentia dentro de si. Um dos maiores mitos eróticos do nosso século, Brigitte Bardot, é o resultado do amor e da paixão de Roger Vadim. Vadim era um simples fotógrafo, assistente de Allegret e enamorado de Brigitte Bardot. Como fotógrafo, porém, estava habituado a ver, a identific ar a beleza. Tinha um contato estético com o corpo da mulher. Em Bardot viu a beleza e a transmitiu aos outros.
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Ver antologia de René Khawam: Propos d’amour des mystiques musul- mans, Paris, Édition de l’Orante, 1960. 114 Rumi (Mawlawi Jalal ad Din): Poesie mistiche, trad. ital., Milão, Rizzoli, 1983. 115 Herbert Grundman: Movimenti religiosi nel medioevo, trad. ital., Bolonha, II Mulino, 1974.
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Nesse ponto, ocorre um esclarecimento. Os homens são fascinados pela beleza feminina. Mas a vêem com o olho erótico, não com o estético. Não se importam em analisá-la. Ou têm uma visão global, ou então são atraídos por um detalhe do corpo. O olhar erótico é fetichista. Por isso, quando um homem vê uma mulher nua, parece-lhe ter visto tudo. “Eu a vi nua”, diz, e acha que nada mais tem a descobrir. A mulher, ao contrário, olha outra mulher somente com olho estético. Percebe que tem a ossatura perfeita, as costas largas, a cintura fina, os quadris redondos, as pernas perfeitas. Repara se os cílios são longos. Se o porte é ereto, se as nádegas são roliças e com covinhas. Se tem a pele sedosa, sem pêlos, cor de âmbar. Ou então, se possui cintura grossa, os quadris largos demais e as coxas desproporcionais. A mulher aprende muito cedo a entrever na adolescente a mulher madura. O homem, não. Quando está excitado eroticamente não enxerga os defeitos. Estes lhe aparecem confusamente depois, podendo provocar então uma certa repulsa e até a separação. Mais se está enamorado, valoriza sua mulher de ponta a ponta, porque transfigura a realidade.
Somente quem tem uma formação artística, como um fotógrafo, um diretor de cinema ou teatro, um pintor, sabe ver e analisar a beleza, que (pelo menos em certa época) é a mesma para todos. Vadim possuía essa capacidade. Viu que a mulher por quem estava apaixonado era bonita no sentido universal. Mas sua beleza era ainda matéria bruta. Tinha que ser animada pelo sonho. A pessoa enamorada tende a transformar a pessoa amada de modo que ela se torne ainda mais desejável. As mulheres compram roupas para seus homens, e os homens influenciam, com seu gosto exótico, a maneira de a mulher se vestir. Porque cada um quer agradar ao outro e está pronto a moldar-se ao seu gosto. Vadim projetou sobre a jovem mulher todos os seus sonhos, suas fantasias eróticas, seus delírios e levou-a a realizar-se. Disse-lhe como vestir, falar, olhar, movimentar-se, sentar-se, aceitar, recusar. A personagem que aparece em ... E Deus criou a mulher é o resultado desse sonho amoroso. No cinema, mostra a mulher da maneira como a imaginou para que fosse infinitamente desejável. Seu gênio o
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fez perceber o que as pessoas de seu tempo desejavam, o que esperavam. O filme realiza em carne e osso esse sonho coletivo. Daí nasce o mito 116.
3. Muitas vezes as mulheres queixam-se dos homens por não saberem captar seus sentimentos, adivinhar os mais tênues impulsos da alma, lidar com eles. Abraçando seu homem, é como se a mulher quisesse penetrá-lo, abraçar a essência íntima. A mulher procura essa “intimidade” também com palavras, que são usadas para descrever, descobrir, decifrar. O homem sente-se fascinado pela forma do corpo, pelo olhar, por um detalhe visual, a que dá o nome de beleza. A mulher sabe disso e aceita, tanto que se “faz bonita” para agradar, mas parece-lhe uma maneira mais fútil, superficial de encontrá-lo. Nem sempre, porém, isso é verdade. Há ocasiões em que a visão do homem é muito mais que um simples observar, porque tem o poder de transfigurar a realidade cotidiana ou de enxergar além. Então, o homem, fascinado, vê uma realidade estupenda. Muitos pesquisadores realizaram experimentos com diversos tipos de droga, mas quase todos chegaram à mesma conclusão: há um modo de enxergar a realidade completamente diferente. Gostaria de citar aqui uma passagem do livro de Aldous Huxley: “... Astgkeit: não era esta a palavra que Mestre Eckhart gostava de usar? Essência. O Ser da filosofia platônica, só que Platão cometera o erro de separar o ser do vir-a-ser. É... uma braçada de flores brilhantes de luz interior palpitando sob a pressão do significado de que estavam impregnadas. É... a transitoriedade que apesar de tudo era vida eterna, a perpétua deterioração que era, ao mesmo tempo, puro Ser... Palavras como Graça e Transfiguração vieram-me à mente” 117. Não é uma experiência descritível com palavras corriqueiras, mas somente através de símbolos e mitos, da mesma forma que Platão havia feito. 116
Ver Milena Gabanelli e Alessandra Mattirolo: Brigitte Bardot, Roma, Cremese Editore, 1983. Marco Giovannini e Vicenzo Mollica: Brigitte, Roma, Lato Side, 1983. E, particularmente; Rosa Giannetta Trevico: Regime ma non ancora un mito”, II Giorno, 6 de setembro de 1983. 117 Aldous Huxley: As portas da percepção, já editado no Brasil. Em sua experiência, Huxley usa mescalina. Mas outros obtiveram resultados análogos com drogas completamente diversas como o LSD. Ver, por exemplo, George Leonard: The end of sex, Nova York, Bantam Books, 1983.
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Essa experiência se apresenta com muita frequência no homem enamorado, ou quando é arrastado pelo encanto feminino. Já falei a propósito do instante da eternidade. A forma percebida pelo homem é, portanto, extraordinariamente aproximada daquela que a mulher chama de alma e que ela atinge através de outros estímulos, como odores, sons, sensações, palavras. Todavia, é forma, é beleza. Em ambos os casos atinge-se uma essência, ao mesmo tempo fonte de estupefação e meta.
29 1. O erotismo é uma forma de conhecimento, um conhecimento do corpo. Do nosso corpo, do corpo do outro, um conhecimento adquirido através do corpo. Nosso corpo torna-se um objeto erótico quando queremos agradar aos outros. É o desejo dos outros que põe em movimento o nosso conhecimento. As religiões ascéticas que combatem o erotismo escondem o corpo, impedem que as pessoas cuidem dele, não ligam para ele, não o lavam. Então todos os sentidos se embotam: o tato, a sensibilidade cinestésica, o olfato. Encontra-se sempre nas pessoas, nos ambientes, nos locais habitados por membros das religiões ascéticas, no vestuário, nos refeitórios, nos conventos algo de esquálido, de mau gosto, aliado ao mau cheiro. Na Europa foram os aristocratas, os mercadores e o grande clero que criaram um espaço para a beleza, o refinamento da vida, para a poesia, das roupas coloridas, dos perfumes, da curiosidade, do estudo da natureza e do corpo humano, da medicina. O Renascimento italiano, que deu origem ao mundo moderno, é uma descoberta do corpo, de sua harmonia, de sua beleza. Mas há também um conhecer através do corpo. Todos nós, quando entramos em contato com uma outra pessoa, somos profundamente influenciados por suas expressões corporais. Em primeiro lugar, percebemos a linguagem não verbal de seu corpo. Mas as mulheres são mais conscientes disso. O primeiro aspecto explorado pela mulher no corpo do homem, o primeiro que ela percebe é o cheiro. O cheiro é determinante. Quase
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sempre baseada no cheiro ela decide se continua a ver aquele homem ou se o evita. Evita-o porque ele é desagradável, porque lhe dá náuseas. Sente-lhe o cheiro à distância, basta ele estar sentado ao lado, no trem, no avião, no carro, no restaurante, numa sala ou no elevador. Mais determinante ainda é o hálito do homem, porque se o cheiro pode ser modificado por meio de desodorantes e perfumes, o hálito, não. A mulher, quase instintivamente, faz de tudo para senti-lo. Para descobrir, basta aproximar-se. Às vezes, ela o faz de propósito, aproximase o mais possível como quando, por exemplo, tenta ajustar-lhe a gravata. Os homens apreciam esse gesto, esse tipo de atenção. O cheiro do corpo e do hálito são uma condição sine qua non para o prosseguimento da relação. Se o cheiro é bom, ela pode continuar. A mulher experiente sabe também intuir, pelo cheiro do corpo e do hálito, o cheiro do sexo. O sexo do homem, mesmo após um banho, conserva sempre um cheiro particular, individual, ainda que sempre masculino. A relação entre corpos e odores é uma ciência cultivada pelos criadores de perfume. A arte de criar perfumes é uma arte erótica. Nasce da profunda consciência da psique feminina e das metamorfoses do odor natural do corpo da mulher misturado ao perfume. O mesmo perfume assume fragrâncias diversas em mulheres diferentes. Os perfumistas são grandes cultores do corpo feminino. O conhecimento sobre perfume masculino, ao contrário, ainda está incipiente. Talvez porque as mulheres ainda não se tenham empenhado em criar perfumes masculinos ou talvez porque muitas delas prefiram o natural. Explorado o cheiro, a mulher passa aos sabores. Esse ato cognitivo necessita de um início erótico, o beijo. No homem, ao contrário, é com o beijo que começa a exploração, porque antes não conseguia perceber o cheiro da mulher, mas apenas seu perfume artificial. Com o beijo, sente seu hálito e, às vezes, uma reação de desagrado. O homem, porém, não dá a essa sensação a mesma importância que a mulher. Se está excitado eroticamente, deixa de sentir o cheiro desagradável. No homem o hálito é apenas um obstáculo, jamais uma barreira. Para a mulher o sabor da boca é tão determinante quanto o cheiro, ou mais ainda. O beijo é uma maneira de começar a
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oferecer algo do próprio corpo e de tomar alguma coisa. É um iniciar a beber o corpo do homem. Pelo modo de beijar, a mulher experiente deduz o caráter do homem. Por particularidades insignificantes. Percebe, por exemplo, se no ato sexual é capaz de esperar longamente, de adiar o próprio orgasmo, ou então se tem ejaculação precoce. Se é generoso e capaz de dar-se ou se, ao contrário, é um ladrão de prazer. Num beijo a mulher descobre muitas outras características do homem, como por exemplo se é inteligente e sensível. A maneira como o faz, porém, guarda-a para si, não o diz. Não o dirá jamais, principalmente a quem não compreenderia. É um saber antigo, iniciático, que poderia ser julgado obsceno, que requer cumplicidade, reserva. Uma mulher não falará dessas coisas a uma jovem que jamais tenha estado profundamente enamorada. Assim como jamais falaria de erotismo com um rapaz. Se quiser transmitir-lhe algum saber, fará amor com ele. Pelo conhecimento do corpo do homem, uma mulher sabe também avaliar as outras mulheres. Ouvindo uma mulher falar, observando-lhe as mínimas atitudes, sabe se está enamorada ou não, sabe se aceitou o corpo do seu homem ou não. Sabe se o seu é um verdadeiro e grande amor ou apenas um sentimento de posse, de proteção ou de prevaricação. A outra etapa é o conhecimento do corpo do homem usando o próprio corpo. A mulher usa o próprio corpo, mais que a razão, para explorar o homem. Confia mais nas sensações que no raciocínio ou no que ele lhe diz. Para a mulher é sempre mais importante o que o homem faz por ela, as atitudes que toma, do que o que diz ou promete. Conta mais um abraço, sua vibração, o modo de suspirar, o calor da pele, a hesitação, o abandono, que a expressão “te amo”. É mais autêntico, a mulher confia mais em um “te amo” dito com o corpo num momento qualquer, do que no “te amo” vindo da mente e transmitido por palavras. As palavras são ambíguas e instrumentais, e ela sabe disso muito bem. As pulsações do corpo são autênticas. As palavras são controláveis, o corpo, não; transmite sempre algo do que sente, principalmente quando está cansado ou quando o homem está triste. Até a mulher mais ingênua, até aquela que é incapaz de amar e de dar-se possui, nesse campo, uma sabedoria natural
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superior à do homem. Nesse plano, a mulher mais simples supera o homem mais sensível e culto. Substancialmente, a mulher usa seu corpo para transcender o do homem, para atingir sua psique, geralmente aquela parte da psique que o próprio homem não conhece. Durante os milênios em que ficou confinada em casa e foi esmagada pelo poder masculino, a mulher aprendeu a usar esse saber com um objetivo: vencer o homem, dominá-lo, incitá-lo a fazer o que ela quer. Ainda hoje, nas relações profissionais, principalmente quando está em jogo algo essencial, a mulher não se limita a ceder seu corpo, o objeto maldito, só porque o homem o deseja. Usa-o para conhecer o outro. O homem fica, então, orgulhoso de sua conquista, mas ela, através daquele relacionamento, fica sabendo algo dele que ele próprio desconhece. Chega a iluminar uma parte obscura de seu caráter. Num relacionamento profissional com um superior, chega a compreender suas fraquezas, seus temores, suas reticências, as razões de sua agressividade, de comportamentos que antes lhe escapavam. Consegue compreender seus desejos, seus mecanismos de defesa e assim defender-se. Às vezes descobre também qualidades escondidas, virtudes que se revelam somente através do corpo. É esse tipo de conhecimento que as mulheres usam com respeito aos homens com quem vivem, mas dos quais não estão mais enamoradas ou que odeiam. Usam-no para controlar suas reações, para dominá-lo, para destruir a confiança que eles têm em si mesmos. Também isso a mulher faz mais com o corpo que através de palavras. Por exemplo, alternando o desejo e a recusa. Um dia aparece elegante, no outro desleixada; um dia mostra-se apaixonada, no outro indiferente. Um dia seu corpo está vibrante; no outro, frio como aço. Desse modo cria na mente do homem uma confusão que ele somente é capaz de criar através da palavra, prometendo e faltando ao compromisso, dizendo e não fazendo. Se o homem, porém, se comporta dessa maneira, é considerado imoral do ponto de vista social. Além disso, coloca em discussão seus valores éticos, que lhe impõem respeitar a palavra dada, ser coerente. Usando seu corpo e a volubilidade de seu corpo, a mulher se subtrai a qualquer crítica moral. O corpo não é razão — diz a si
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mesma e aos outros —, reage instintivamente. Por isso não pode ser acusada, não é culpada. Reencontramos assim a sobrecarga moral típica do homem dessa época e da qual já tratamos longamente. Nos dias de hoje, essa extraordinária importância do corpo feminino para julgar, conhecer, controlar, essa sua força, deixa-a vulnerável. Porque também os homens aprenderam, no decurso de milênios, um modo de frear esse poder. Não renunciando à mulher, ao ato sexual, porque é muito importante. Mas reduzindo o tempo de contato, a duração do encontro, readquirindo, logo depois, a própria autonomia. A descontinuidade do homem é sua maneira de não se deixar prender. A volubilidade do erotismo masculino é um subterfúgio, um artifício para subtrair-se ao julgamento. A mulher poderá controlar todas as suas reações com atenção minuciosa, mas ele não se deixará encontrar, como o menino que foge da escola para não ser interrogado.
2. O homem não possui o mesmo conhecimento de seu corpo e do corpo feminino. O grande sedutor sabe, por intuição, pela maneira como a mulher se aproxima, como olha para ele, como corresponde ao seu olhar, como se senta, cruza as pernas, se está disponível para ele. O grande sedutor conhece todos os pontos eróticos da psique e do corpo da mulher, e sabe como tocá-los, como provocar suas reações. Em geral, porém, não lhe interessa o mais profundo de sua alma. Interessa-lhe fazer amor com ela. Seu conhecimento visa esse fim. Para alcançar a capacidade feminina de conhecimento através do corpo, é preciso que haja uma necessidade antiga, ancestral de conhecer. Para realizar seus desejos, para defender-se do poder masculino, a mulher precisou observar por muito tempo cada gesto do homem padrão, cada movimento involuntário seu. Sem se trair na contínua vigilância. Somente os homossexuais revelaram capacidade análoga. Nos homossexuais, principalmente masculinos, o erotismo está mais estreitamente entrelaçado com a profissão, o sucesso, o poder. Entre eles ocorrem com muita frequência relacionamentos semelhantes aos da mulher com o homem
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poderoso que lhes pode assegurar um emprego, carreira ou mesmo riqueza. No mundo intelectual, o conhecimento do corpo e através do corpo torna-se também uma forma de conhecer intimamente o modo de pensar, a sensibilidade do outro, de apreender aspectos de sua personalidade de outra forma inacessíveis. Qualidades e nuances que o heterossexual está condenado a ignorar. Os homossexuais tendem a formar uma comunidade também por essa capacidade de conhecer-se, por essa intimidade exclusiva, por esse saber iniciático reservado aos adeptos.
3. A mulher conserva, em todos os instantes de sua relação amorosa, a capacidade de percepção e avaliação. O homem, não; quando está excitado eroticamente, perde ainda o pouco de perspicácia que possui. Fica dominado por uma única emoção e não está mais em condições de dizer se aquela mulher é feia ou bonita, gorda ou magra, se tem seios fartos ou apenas esboçados. As mulheres ficam espantadas e perturbadas quando ouvem dizer que seu homem teve relações com uma mulher que, a seu olhos, é muito feia, até mesmo repugnante. É que na excitação erótica o homem gosta de tudo, assim como se lhe apresenta. Porém, quando a excitação desaparece, desaparece também a impressão de beleza. Para alguns homens, é exatamente como o despertar de um sonho. Encontram-se ao lado de um corpo estranho, tão diferente do seu, incrivelmente pequeno, ou incrivelmente gordo, e ficam espantados. Quando o homem está enamorado e, levado por uma atração erótica momentânea, faz amor com outra mulher, logo depois se sente sujo e custa a livrar-se dessa impressão desagradável. Na mulher isso acontece com menos facilidade, pois ela faz uma avaliação prévia. Já sabe antes se aquele homem lhe agrada ou não. Se está enamorada, raramente se deixará envolver com qualquer outro homem. Não tem, por isso mesmo, necessidade de sentir nojo. O homem, ao contrário, não tinha avaliado nada, e agora está estupefato pela escolha feita. Mas a estupefação não lhe dá experiência. O estupor é filho do não-saber e do esquecimento. Da próxima vez, se comportará da mesma maneira.
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Quando a mulher erra na avaliação e se entrega a alguém que depois lhe causa repugnância, é, ao contrário do homem, tomada de cólera e nojo de si mesma. É seu corpo que reage. “A essa altura, uma terrível repugnância tomou conta de Tamina”, escreve Kundera. “Levantou-se da cadeira de um salto e correu para o banheiro. Estava com o estômago embrulhado; ajoelhou-se diante do vaso para vomitar, o corpo torcia-se como que sacudido por soluços, e diante dos olhos via o escroto, os colhões, o membro, os pêlos daquele indivíduo e sentia o hálito acre que vinha de sua boca, e lhe veio à mente que jamais conseguiria fazer sexo com seu marido (que amava), que a lembrança do nojo é mais forte que a da ternura (Ah! sim, meu Deus, a lembrança do nojo é mais forte que a lembrança da ternura!) e que em sua pobre cabeça nada mais restaria que aquele indivíduo de hálito fedorento, e vomitava, retorcia-se e vomitava” 118. Felizmente no homem, com relação à complementação dos sexos, o nojo nunca é mais forte que a ternura. Não é nem ao menos mais forte que o desejo. Porque o homem não possui memória duradoura do nojo, mas somente do prazer erótico. De qualquer experiência erótica, mesmo daquela em que se espantou por encontrar-se ao lado de uma mulher feia, mesmo daquela em que sentiu nojo e repugnância, sua memória, depois de muito tempo, consegue sempre destilar um aspecto excitante, um detalhe inquietante ou atraente, uma beleza capaz de provocar novamente o desejo.
30 1. No homem, o erotismo é profundamente ligado à beleza do corpo feminino. Isso não quer dizer que o homem somente se sinta excitado por mulheres bonitas, mas que, na mulher, em qualquer uma, ele conseguirá descobrir a beleza. O olho erótico extrairá beleza de seus gestos, da maneira como cruza as pernas, do sorriso, dos olhos, da curva dos quadris, das costas arredondadas, da cavidade das virilhas, do relevo do 118
Milan Kundera: O livro do riso e do esquecimento.
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monte de Vênus, da cor da pele, do brilho dos cabelos, das sombras, da variedade de tonalidades à noite e pela manhã. A beleza erótica do corpo da mulher é, para o homem, como a natureza, como o mundo, fonte de contínua maravilha. Deixa-o encantado, arrebatado. Por isso o homem gostaria de ter todas as mulheres. Por esse motivo, as capas das revistas estão cheias de mulheres nuas. Por isso, nos Estados Unidos, os homens pagam para ver as go-go girls dançarem sem parar diante deles. Por isso os espetáculos musicais de televisão estão sempre cheios de belíssimas bailarinas vestidas de strass e plumas, mas onde se imagina e se entrevê o corpo nu que aparece-desaparece. O homem tem necessidade de ver o corpo feminino, de beber-lhe a beleza, assim como a mulher precisa da atenção, da admiração, da corte do homem. Para o homem, o desenvolvimento de um relacionamento amoroso coincide com a progressiva, maravilhosa descoberta da beleza daquela mulher especial, da sua mulher. A beleza nunca aparece em sua totalidade, no início. Os homens ficam sensibilizados ao ver uma mulher, viram-se na rua para admirá-la. Mas isso também acontece com as mulheres. Aliás, elas sabem muito melhor avaliar o aspecto estético da beleza feminina, captam seu terrível poder de atração. Sentem orgulho de sua beleza e são mordidas pelo ciúme quando vêem outra mulher mais bela e elegante. A admiração do homem pela mulher bonita vista ocasionalmente é, em geral, efêmera. O olhar erótico é facilmente excitável, mas é também volúvel. Na maioria das vezes os homens não são profundamente atingidos pela particular beleza de uma mulher, não se deixam perturbar por ela. Claro que não poupam elogios, mas porque gosta daquele vestido, o penteado é original, porque a mulher é agradável. É no desenvolvimento da relação erótica que o homem descobre em sua mulher a perturbação provocada pela beleza. De repente vê, quando não havia visto antes. É uma comoção poética que lhe provoca um grito maravilhado e de reconhecimento. No amor o milagre se repete uma segunda vez, depois uma terceira, depois a cada encontro. Cada vez um detalhe, cada vez a desconcertante experiência da perfeição. Também a mulher sente essa emoção olhando seu homem, mas
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a experiência do homem é mais violenta. Assemelha-se à maravilha do reconhecimento de uma mãe, que, encantada, olha o filho de dois anos. E, de fato, a beleza da mulher amada sempre se assemelhou, aos olhos do homem, às das crianças, suscita a mesma ternura, até um sentimento de fusão.
2. Também a mulher necessita de tempo para conhecer seu homem, para dar-se a ele. No enamoramento, sente-se de repente atraída por determinado homem, quer estar com ele, mas, ao mesmo tempo, está assustada. Assustada com suas sensações. É como se aquele homem, arrombando a porta, tivesse entrado à força em sua casa, sem ser esperado, e todavia causasse uma agradável surpresa. É grata a ele, porém não o conduz de imediato aos inumeráveis cômodos de que são construídos seu corpo e sua alma. Fica com ele somente num deles, vive uma situação de encantamento, mas para levá-lo além, para revelar as potencialidades de seu corpo, necessita de tempo. Às vezes finge que em sua casa existem somente poucos cômodos, mesmo que desejasse levá-lo a conhecer todos, mesmo que nem ao menos saiba quantos cômodos possui. Para prosseguir nessa viagem a mulher pretende apreender cada pulsação do corpo do homem. Participa de todas as nuanças antes, durante e depois do ato sexual. O homem (como já vimos) está assustado com a metamorfose da mulher, antes vestida, distante, separada, depois abandonada a ele, nua, fremente. A mulher está assustada sobretudo com a metamorfose do sexo do homem. É pequeno, depois cresce até tornar-se enorme, até não evocar mais o estado inicial. E quando está pequeno ela jamais consegue firmar, na memória, sua forma de quando está ereto. Esse esquecimento, essa surpresa da metamorfose leva-a a acariciá-lo, a acariciá-lo de novo. Nunca se cansa — se ama seu homem — de conseguir realizar o milagre. O estupor provocado pela ereção torna-se uma sensação de desfalecimento, de afogagamento, quando o artífice da ereção é sua boca. Porque o sente crescer entre os lábios, sobre a língua. É o espanto da criação, porque é ela o artífice da metamorfose da matéria. Esse não sofre desgaste, pelo menos enquanto ela estiver enamorada.
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A mulher não fica somente assustada, admirada com o mistério da ereção, mas com o desejo de beijar o corpo do amado tanto exterior como interiormente. Gostaria de beijarlhe todos os órgãos, navegar nos líquidos, sentir-lhe o calor fluido, o cheiro. Esconder-se num canto de seu corpo. E a coisa milagrosa é que o corpo do amado se oferece, se coloca em seus braços, em suas mãos e não tende apenas a enfiar-se entre suas coxas e a penetrá-la com rapidez e com raiva, esmagandoa com seu peso, tirando-lhe a respiração, tão ansioso está por atingir o orgasmo. Porque nesse caso ela se torna o objeto a agarrar, o objeto maldito, a vagina, de onde ele extorque a possibilidade de arrancar prazer, para depois abandonar, tão logo atingido o objetivo. O homem não sabe o que agarrar com mais força; quanto mais se atira sobre ela com violência, quanto mais procura o objeto maldito, mais ela se enrijece. Seu corpo fica inteiramente teso, defendendo-se. A mente recua, a vagina se fecha, se contrai, e o sentimento que experimenta é de laceração. Então ela odeia o homem e sua força, seu arrancar para pegar, sua vontade de arrancar prazer sem saber dá-lo. Odeia aquele homem, mas também a si mesma, despreza-se por ter aceitado uma relação que não deseja. Às vezes, para superar a cólera e a náusea, obriga-se a não sentir repulsa e nojo pelo corpo detestável e o deixa continuar. Aceita passivamente, esperando que tudo termine logo. Para acelerar o coito está até mesmo disposta a fazer carícias, a dizer palavras excitantes. Contudo que ele termine logo e não queira recomeçar. Mas tudo é diferente, infinitamente diferente se ama e é amada. Então se realiza o que ela sempre busca: que os corpos se fundam de maneira harmônica. Quanto há harmonia o homem não agarra nem com força nem com raiva. Não a esmaga. Toma cuidado com sua fragilidade. Não a sufoca; entretanto, aperta-a contra si. Cuidadosamente se estende sobre ela, é como se seu corpo se tornasse macio, os gestos, flexíveis, e ela, uma flor delicada, generosa. Então, para ela, os braços do amado e seu corpo são constituídos de uma substância a um só tempo sólida e fluida. Essa fluidez do corpo do homem lhe permite relaxar-se, oferecer-se, fazer vibrar seu corpo, arraigando-se a ele sem constrangê-lo.
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Enquanto o corpo do homem passa de estados de grande energia a um profundo relaxamento após o orgasmo, o da mulher vibra entre duas polaridades diversas. A primeira, de enorme energia e força, até mesmo física. O segundo estado é, ao contrário, de infinita fraqueza e fragilidade, do qual ela sente medo e pelo qual, ao mesmo tempo, sente-se atraída. Porque sabe que então pode dar ao amado o máximo, seu dom mais belo. Quando se abandona é como se todo o seu sexo, que ela sente como que formado por três segmentos separados por divisores, se tornasse um longo corredor constituído não mais de substância flexível, mas de essências fluidas. É o correspondente da ejaculação masculina, quando também o homem se dissolve num fluido. Mas no homem isso dura um instante. Na mulher esse fluido parece soltar-se da psique, livre para fremir, num estado de contínuo orgasmo. E a mente não consegue dar a ordem, o impulso nervoso, porque os três corredores tornam a separar-se, as portas, a fechar-se. O que torna o corpo frágil e vulnerável é o estado de excitação, de vibração liquefeita em que escorrega. A mulher deseja que o amado a abrace porque se sente naufragar, mas os braços do amado têm de ser macios como a água. Tem a sensação de flutuar no ar com a psique: percebe o próprio corpo como que separado de si mesma e não mais tem controle sobre ele. Um corpo que jaz em substâncias líquidas, como se também fosse líquido. É uma emoção-desvanecimento, como estar numa corda bamba, como se a qualquer momento pudesse cair no abismo e deixar o próprio corpo sobre a corda. É sair de si, é o êxtase. Mas é também um modo de abraçar a alma do amado, de conhecê-lo em sua essência, porque naquele momento também ele está envolvido emocionalmente e de maneira tão profunda que não pode mentir. Nenhuma linguagem é mais sincera do que essa linguagem do corpo enamorado.
3. Existem momentos fundamentais no plano da experiência, do conhecimento e do relacionamento, em que o homem consegue compreender, entrever a natureza do erotismo feminino. Momentos em que apreende em sua mulher algo universal, uma essência que é diferente da sua, mas que se torna transparente. Invadido pelo erotismo feminino,
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consegue apreender a feminilidade em sua absoluta diversidade e especificidade. Não como ideia abstrata. Mas como corpo, como sentidos, como emoção. Apreende a natureza do abraço feminino, de seu amor, e fica surpreso e comovido. Então não usa mais, nem mesmo mentalmente, a palavra “mulher”, mas aquela mais específica, “fêmea”, porque sente seu valor. E esse valor é a diferença insubstituível, única, preciosa. Sente que em seus braços é a fêmea que o ama. Compreende o amor erótico na pele sedosa, lisa, vibrante que adere ao seu corpo, na maciez infinita do seio que roça sua pele, que o acaricia. Sente-o no abrir-se da vagina, como uma orquídea que se cobre de orvalho à sua entrada. Sente o útero ser impulsionado e abrir a boca para encontrar a da glande como num beijo, e quer acolhê-lo. Sente que a feminilidade é uma sucessão de portas que se abrem para ele. Que se abrem para acolhê-lo numa parte mais profunda, mais íntima, mais amorosa. Que aquele abrir-se dentro do abrir-se é uma acolhida de amor. Quanto mais avançado, mais total. Então vê e compreende o significado do rosto acalorado, dos lábios frios, daquele corpo que permanece num abraço de que jamais se cansa, daquela pele que estremece ao ser tocada, e sabe que essa é a forma corpórea do amor feminino por ele.
4. Existem momentos em que o homem, ao olhar o corpo de sua mulher, geralmente um detalhe, como os ombros, a curva dos seios, a forma da boca, ou os olhos, gostaria de fazer parar o tempo. Gostaria que aquela beleza divina, aquela perfeição não tivesse mais que desaparecer. Não há nenhum mito, nem no Oriente nem no Ocidente, que conte esse desejo de beleza e de eternidade. No Oriente, os místicos tendem a transcender o desejo e a própria beleza. No Ocidente, o único estado de graça beatificante sempre foi procurado em Deus. Goethe já havia sublinhado a necessidade contínua de transcendência do ser humano, motivo pelo qual não poderá jamais dizer “Instante, pára, és belo”. Muitos, como Lacan, escrevendo sobre o enamoramento e o amor, insistiram no fato de que o amor é sempre “ainda não”. Mas essa experiência existe e talvez constitua o auge da felicidade erótica. Porque não existe mais paixão. Porque não existe mais desejo de
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qualquer outra coisa, não existe mais espera. O objeto do nosso desejo está entre nossos braços ou diante de nossos olhos. Vemos e sentimos a perfeição do instante. Deveria haver um mito em que o ser humano pedisse a Zeus para satisfazer este desejo: “Zeus, faze com que tudo fique como está, sem mudar nada, eternamente. Que por toda a eternidade eu possa contemplar essa pungente beleza. Pungente porque precária, porque dentro de um instante se desvanecerá no tempo. Meu desejo é que não se desvaneça. Não quero ver nada além disso, experimentar outro sentimento além deste. Essa é a eternidade que te peço, essa, a beatitude que te imploro, dá-ma”. Também a mulher vive esse mesmo tipo de experiência. Não visual, como o homem. Não é um detalhe do corpo que a fascinará. Mas uma sensação tátil, um abraço, um cheiro, um som, um olhar de amor. Geralmente quando a mulher diz que não há necessidade de relacionamento sexual para viver o amor do modo mais intenso, refere-se a esse tipo de experiência, que é mais profunda que o mais profundo orgasmo, que enche o coração e a mente. “Gostaria que nunca fosse embora”, diz. “Gostaria de ficar abraçada a você para sempre.” São essas as frases femininas em que a necessidade de continuidade e de contiguidade da mulher se aproximam do desejo de parar o tempo do homem. Talvez realmente as duas experiências sejam a mesma coisa, e somente as palavras, diferentes. Tanto no homem como na mulher o erotismo, nesses instantes de eternidade, vai além do sexo. O sexo é sempre um fazer, está sempre no tempo. A aspiração última, o objetivo último do encontro erótico é a contemplação beatífica, fora do tempo.
31 Existe uma conclusão geral a que possamos chegar? O erotismo feminino por si só tende a uma estrutura contínua, cíclica, eternamente recorrente, como a música oriental, que tem um início e um fim. Ou então como o jazz, que é constituído de inúmeras variações, mas sem uma mutação brusca, radical, sem aparições de diversidade absoluta. O erotismo masculino tende, ao contrário, ao
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descontínuo, à revelação do diverso, do totalmente novo. Em cada mulher, o homem é atingido e fascinado pela diversidade. Na praia, as mil mulheres que desfilam diante dele em traje de banho, altas, baixas, magras ou gordas, com seios redondos ou pontudos, com a barriga rija ou flácida, todas podem suscitar seu interesse e seu desejo. Exatamente por aquela diferença que permite entrever um prazer diverso, não experimentado. Cada mulher, cada encontro é uma revelação para o homem. No íntimo ele espera que lhe seja revelado o totalmente novo. No entanto esses dois erotismos tão diversos podem encontrar-se. O verdadeiro, o grande erotismo aparece somente quando esse milagre acontece. Quando cada um faz exatamente o que lhe agrada e, não obstante, faz o que agrada ao outro. É um erro imaginar o erotismo como uma forma de troca onde cada um concede algo ao outro para receber dele o que lhe agrada. A arte erótica não é a arte de dar prazer para recebê-lo em troca. O erotismo sublime é a expansão do próprio erotismo e, ao mesmo tempo, identificação com o erotismo do outro, capacidade de prendê-lo a si. Qualquer uma dessas formas de erotismo, sozinha, é incompleta. Abandonada a si mesma, levada às últimas consequências, se empobrece até desaparecer. Se a mulher se abandona de modo completo ao indistinto, perde a capacidade de separar o erotismo sexual de outras formas de prazer totalmente diversas, e, assim, perde a capacidade erótica propriamente dita. Isso acontece também com o homem. O dom-juan, que busca de modo obsessivo a diversidade em cada mulher, não chega a saborear o prazer profundo. O verdadeiro, o grande erotismo é o que se realiza entre uma mulher e um homem no relacionamento erótico-amoroso individual. Cada um dá sua contribuição única e insubstituível. A mulher, a continuidade, a convivência, o contato, o tempo. O homem, a necessidade de diversidade, de novidade, de revelação. A mulher, a busca de uma perfeição na fusão; o homem, a busca de uma perfeição na descoberta, na diversificação. Se essas duas forças se unem o resultado é a continuidade, mas sempre marcada por pausas, interrupções. Para que exista a continuidade, deve ser retomada, reatados os fios, aceita a renovação. Resta ainda a diversidade, mas ela
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deve ser encontrada na própria pessoa graças à multiplicação das capacidades sensoriais, perceptivas, intelectuais. A mulher, então, não se abandona exclusivamente ao ritmo monótono e obsessivo da musicalidade erótica, mas identificase com o homem, compartilha com ele as exigências, comportase como ele. Olha o corpo do homem como ele olha o seu. Sem envergonhar-se mais, admira-o nos detalhes, como ele admira o seu, torna sua a admiração visual do homem. Mas o faz com o ritmo lento da mulher, repentinamente, com a riqueza da sensibilidade feminina pelos odores, sabores, cores, sons. A mulher que ama eroticamente pode ficar horas e horas aconchegada ao corpo de seu homem, ouvindo as batidas de seu coração, sua respiração, seu ressonar. Pode ficar horas e horas a olhá-lo, a acariciá-lo, a observar sua pele, a respirar seu cheiro. O despertar do homem, sua atividade, perturbam essa paz, mas, ao mesmo tempo, fazem com que retorne a ação. Eis que ele está novamente disponível, o membro se endurece entre seus dedos. Ela o acaricia, sente que cresce. E sabe que esse prodígio é obra sua, que a ereção do homem não é algo involuntário, mas algo provocado por ela. E quando o tem dentro de si e o acolhe do mesmo modo, mantendo-o intumescido de desejo, o prazer que experimenta é, então, o seu prazer de mulher preenchida pelo sexo de seu homem, mas também o prazer do seu homem porque ela é autora da ereção. E sabe, sente que ele gosta de estar com o membro grande, ereto. Então, essa ereção prolongada, interminável, não é senão seu erotismo contínuo que ela lhe transmitiu. Porque é o erotismo feminino, contínuo, o que leva homem a desejar um amor que não termine mais. Mas é o homem que a faz sobressaltar-se, espantada, quando de repente muda de posição, afasta-se, olha para ela, encantado, abre-lhe docemente os pequenos lábios e depois, sempre esperado e não esperado, invade-a e lhe impõe seu ritmo, e de súbito, ainda, a inunda. O grande erotismo é possível somente entre um único homem e uma única mulher que levam ao extremo o que é específico do próprio sexo e do sexo do outro. Tem-se então a sucessão contínua das revelações. Tem-se então a interminável aparição do novo. Aquilo que num capítulo precedente
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chamamos de algo mais. A mulher jamais encontraria o algo mais sozinha, mas apenas um êxtase contínuo, cíclico, recorrente. O homem não encontraria nunca o algo mais sozinho, mas apenas o diverso. O algo mais é a revelação do novo no contínuo, no que já é. O novo torna-se então um acréscimo, um enriquecimento. Só o que existe, o que tem duração e continuidade pode aumentar, tornar-se maior. Mas somente o que é descontínuo pode ser confrontado, comparado, recordado. É a união do contínuo com o descontínuo que cria a identidade e, assim, a possibilidade de crescimento, a tensão para o alto, em direção à perfeição.