1
Resumo:
Emmaline Dove sempre sonhou em difundir seus conhecimentos sobre etiqueta por toda Londres. Por isso, desde que começou a trabalhar como secretária para o mais importante editor da cidade, o Visconde V isconde de Marlowe, sempre tentou tentou que ele publicasse seus artigos. Quando Emma descobre que Marlowe jamais leu uma só linha de seus manuscritos, decide renunciar a seu posto na editora sem aviso prévio. Com sua saída, não só deixa o negócio de Harry Marlowe no mais absoluto caos, como também põe em dúvida a reputação reputação do Visconde. Emma merece uma lição e Harry está disposto a dar-lhe. Entretanto, um só beijo mostra a ele o fogo que arde atrás da aparente frieza de sua secretária. Obterá Harry que Emma salte as normas por uma vez?
2
Trabalhar para um homem atraente é como percorrer um caminho cheio de obstáculos. A todas todas as Senhoritas solteiras que estão em tal situação, recomendo-lhes recomendo-lhes um firme f irme caráter, caráter, um coração inquebrável e lenços, muitos lenços. Senhora BARTLEBY Conselhos para Senhoritas, 1893
— Por quê? — Exclamou entre soluços, a exótica mulher de cabeleira negra, embelezada com um traje de seda laranja — Por que ele fez isto?
A Senhorita Emmaline Dove não ousou responder a essa pergunta. Prática como sempre, economizou saliva e deu outro lenço para a mulher que estava na sua frente. Juliette Bordeaux, agora ex-amante do homem para o qual Emma trabalhava, o Visconde Marlowe, agarrou o lenço que foi oferecido. oferecido. — Passamos seis maravilhosos meses juntos e, quando o lacaio chegou com a caixinha,
fiquei muito contente. Mas quando li a carta que acompanhava o presente, a carta em que dá por terminado nosso amor... Mon Dieu! Acredita que com jóias poderá curar a ferida que impôs a meu coração. É muito cruel! — Abaixou a cabeça e continuou chorando teatralmente — Oh, Harry! Emma agitou-se incômoda em sua cadeira e olhou de esguelha para o relógio que estava sobre a mesa. Seis e meia. Lorde Marlowe estava a ponto de voltar e ela queria falar sobre seu novo manuscrito antes que ele fosse à festa de aniversário de sua irmã. Estava certa de que apareceria no escritório antes da comemoração. O presente que ela havia comprado para Lady Phoebe em nome dele continuava ali, embrulhado e esperando por ele. A não ser que o Visconde tivesse esquecido por completo da festa, coisa que era muito provável, ele teria que apanhar o presente antes de ir para casa. Essa era a melhor oportunidade para falar com ele, pois terminada a festa, ele passaria uma semana em sua casa em Berkshire. Como não havia nenhuma reunião à vista, tampouco nenhum compromisso a comparecer e com sua família na cidade, Lorde Marlowe descansaria em Marlowe Park. Emma confiava que a tranqüilidade do campo pudesse deixá-lo mais relaxado e o colocasse em melhor disposição para ler sua obra, diferente do que havia acontecido até então. Ao menos, valeria à pena tentar. tentar. Deslizou os olhos da máquina de escrever que descansava em cima da velha mesa até as páginas de seu manuscrito que estavam amontoados. Só faltavam oito dias para seu aniversário, aniversário, e que melhor presente seria que Marlowe decidisse por fim publicar seu livro. 3
De repente, uma vaga inquietação apoderou-se dela, tão distinto do delicioso sentimento de antecipação que sentia até então, que até ficou assustada. Era difícil descrever, mas era tão desagradável que a deixou preocupada. Tentou não dar importância. Talvez temesse outra negativa. Afinal, Lorde Marlowe havia recusado seus quatro manuscritos anteriores. Ele acreditava que os livros de etiqueta não davam lucros, mas ela sabia que isso se devia ao fato, de que a maior parte dos livros oferecia conselhos fora de moda, nada de acordo com os tempos modernos. Em vista disso, Emma esforçou-se para pesquisar novas tendências e criar uma obra única e contemporânea. Se pudesse explicar a Marlowe por que seu novo livro poderia atrair o público atual, talvez ele estivesse mais predisposto a publicá-lo, especialmente se pudesse lê-lo sem que o incomodassem, na tranqüilidade do campo. O problema era que a Senhorita Bordeaux não parecia ter intenção de ir embora. Emma estudou a mulher pensando em como faria para colocá-la para fora com educação. Se ela continuasse ali, quando Lorde Marlowe chegasse, com certeza teriam uma discussão e ficaria impossível a conversa que ela pensava em ter com seu chefe, o que a faria perder uma oportunidade de ouro. Com certeza muitos pensariam que ela era fria e insensível por não sentir nenhuma compaixão pela desdenhada amante. Mas não era assim. Nos cinco anos que trabalhava como secretária do Visconde, viu chegar e ir uma multidão de amantes e chegou à conclusão de que o amor não desempenhava nenhum papel naquelas relações. A Senhorita Bordeaux era uma bailarina de Music Hall, e aceitava dinheiro em troca de favores sexuais. Era evidente que o amor não tinha nada a ver com semelhante acordo. Mas talvez, pensou Emma, não estivesse sendo justa com com ela. Lorde Marlowe causava uma profunda impressão em muitas integrantes do sexo feminino. Parte de seu encanto se devia sem dúvida, a uma característica entre a nobreza britânica, ele possuía título e dinheiro. Mas era muito mais que isso. Cada vez que Harrison Robert Marlowe entrava em alguma sala onde houvesse mulheres, iniciava-se uma série de suspiros, adulações e retoque de cabelos. Emma descansou o cotovelo na mesa e apoiou o queixo na mão e enquanto a Senhorita Bordeaux continuava chorando com dramático ardor, analisou o Visconde com objetividade. Era atraente. Teria que ser cega para não perceber. Os olhos dele eram de um extraordinário azul profundo, que ficavam mais destacados, graças a seu cabelo castanho escuro. Era muito bem proporcionado, alto e de ombros largos. Além de ter senso de humor e uma espécie de encanto infantil, potencializado por um devastador sorriso. Agora, Emma podia pensar nesse sorriso sem que o pulso dela acelerasse, mas nem sempre foi imune. Houve uma época, quando começou a trabalhar para ele, em que só de olhar seus lábios, um agradável calafrio percorria suas costas. Naquele tempo inclusive, arrumou o cabelo em mais de uma ocasião e havia suspirado algumas vezes. vezes. Não demorou a perceber que nada de bom podia sair de semelhante ilusão. Além da diferença social, Lorde Marlowe era um libertino e em suas relações com as mulheres procurava uma única coisa. Como secretária dele, Emma sabia que o Visconde fizesse ou deixasse de fazer alguma coisa, 4
não era assunto dela, mas como mulher virtuosa, fazia já muito tempo que descartou toda idéia romântica a respeito dele. Qualquer pessoa sensata teria a mesma opinião. O Visconde Marlowe divorciou-se de sua esposa por adultério e abandono da parte dela. Durante cinco anos foi um processo muito divulgado e escandalizou a alta Sociedade. A família do Visconde continuava pagando até hoje as conseqüências. Fosse pela infidelidade de sua esposa ou porque já pensasse assim antes, Lorde Marlowe não ocultava sua má opinião a respeito da instituição do casamento e todos aqueles que lessem a revista semanal Guia para Solteiros podiam comprovar isso. Em suas colunas de opinião, Lorde Marlowe equiparava claramente o casamento à escravidão, e sustentava que o primeiro era só uma versão mais moderna da segunda. Tendo em conta seu comportamento e suas cínicas opiniões, as mulheres deveriam afastar-se dele, mas para total assombro e incompreensão de Emma, acontecia justamente o contrário. O juramento que o Visconde fez de não voltar a se casar, só proporcionava mais atração e a grande maioria do sexo feminino tomava isso como uma provocação irresistível. Mulheres de todas as classes sociais sonhavam em apanhar seu coração. Emma, entretanto, era muito sensata para incluir-se entre elas. Os sedutores nunca a atraíram. Ficou olhando à mulher que continuava chorando e pensou no tentador sorriso de Lorde Marlowe. Nem todas as mulheres possuíam bom senso. Talvez a bailarina fosse bastante ingênua por apaixonar-se pelo Visconde e confiar em que ele fizesse o mesmo. Talvez devesse ter pena dela. Emma não tinha experiência em assuntos do coração e o único episódio que viveu, aconteceu dez anos atrás e ainda podia recordar que doloroso fora o desengano. Abriu uma gaveta da mesa e tirou uma caixinha branca e rosa. — Estou certa que tudo isto está sendo muito difícil para você — disse levantando a tampa — Gostaria de um bombom? Confortam-me muito quando estou desanimada.
A mulher não pareceu apreciar seu oferecimento. Levantou a cabeça e olhou a caixinha com desdém. — Eu não como chocolate — respondeu e secou as faces com o lenço — Danificam o corpo — fez uma pausa e a olhou da cabeça aos pés — Mas você sim deveria comer mais, chérie, faz-lhe falta um pouco de recheio. Embora suponha que tanto faz — acrescentou de pronto — Uma
solteirona não se preocupa com essas coisas, não é? Emma ficou tensa. Solteirona. Isso foi cruel. A estranha sensação de antes retornou, mas desta vez com mais força, e então compreendeu, seu aniversário estava próximo. Apertou a caixa de bombons e tratou de agir com filosofia. Chegar aos trinta não era tão importante. Era só um número, algo sobre o qual não podia fazer nada. Certamente que trinta soava muitos anos, mas só era um mais. Não tinha por que se alterar tanto. E referente à sua figura, não tinha nada a ver com seu celibato. Dirigiu um ressentido olhar ao generoso e abundante busto da Senhorita Bordeaux e tratou 5
de recordar a si mesma que não importava a opinião de uma bailarina de cabaré. — Suponho que você seja a Senhorita Dove — prosseguiu a francesa — A secretária
dele. O tom em que foram pronunciadas essas palavras colocou Emma em guarda, e preparou-se para algum outro comentário mais ofensivo. — Sim, sou a Senhorita Dove.
A bailarina riu, mas ela pode notar a maldade subjacente nessa risada. — Típico de Marlowe, ter uma mulher como secretária. É tão próprio dele! Diga-me, que
tipo de pagamento ele oferece a você? Emma ficou furiosa. Não era a primeira vez que alguém insinuava algo assim. Trabalhava para um homem, em uma profissão em que homens estavam acostumados a trabalhar e a reputação de seu chefe com as mulheres era mais que conhecida. Mas isso não significava que tivesse que suportar comentários malévolos sobre sua virtude. — Engana-se. — Não importa — A Senhorita Bordeaux moveu a mão, não dando caso ao assunto — Agora
que a vi, compreendo que não representa nenhuma ameaça para mim. Marlowe não gosta de mulheres sem busto. Emma mordeu a língua. Queria dizer a ela o que pensava, mas sabia que não serviria para nada. Além disso, sempre haveria a possibilidade de que a bailarina e Lorde Marlowe se reconciliassem, e não poderia correr o risco de perder seu trabalho, por mais vontade que tivesse de por aquela harpia no lugar dela. De modo que, como havia feito muitas outras vezes ao longo de sua vida, não disse nada. A contra gosto, reconheceu que estava mais zangada com o fato de tê-la chamado de velha e despeitada, que por ter insinuado que era uma mantida. — Não — continuou a Senhorita Bordeaux, tirando Emma de seus pensamentos — Marlowe
não me deixaria por você. Inclinou-se para frente, entrecerrando seus olhos negros. — Quem é ela?
Fazendo um esforço para não inventar uma amante imaginária com peito, Emma respondeu: — Isso é assunto do Visconde, não meu. — Não importa, vou descobrir.
A Senhorita Bordeaux deixou o lenço de lado e a expressão que se desenhou no rosto dela a fez parecer mais velha uns dez anos no mínimo, pensou Emma. E ela não era das que criticavam. 6
— Senhorita Dove — disse então a bailarina — Sendo você a secretária de Lorde Marlowe, quero que transmita uma mensagem — Abriu a bolsa e tirou um colar de topázios amarelos e diamantes montados em ouro — Diga que seu patético presente é um insulto e que não penso aceitá-lo — Atirou a jóia em cima da mesa, como se desse asco — Uma bagatela como esta não
basta para me consolar! Emma havia passado a semana anterior praticamente nas compras, algo nada estranho tendo em conta em como Marlowe era péssimo para comprar presentes e recordar datas, de modo que essa tarefa sempre cabia a ela. A Senhorita Dove não só ficou encarregada de procurar o presente de aniversário de Lady Phoebe, mas também havia escolhido o colar que tanto ofendeu a Senhorita Bordeaux. Não a incomodava desempenhar essa tarefa para a família do Visconde, mas parecia de muito mau gosto ter que fazer isso para as muitas e variadas amantes que este possuía. Estava convencida de que não era apropriado. Se tia Lydia estivesse viva ficaria escandalizada, pois ela sempre esperava que sua sobrinha tivesse comportamento irrepreensível. Mas apesar de tudo, incomodou a Emma o comentário da bailarina. Esmerou-se muito nesse presente, e havia passado quase uma hora na joalheria da Bond Street, embora para ser sincera, grande parte dessa hora passou olhando embevecida as esmeraldas e sonhando com coisas impossíveis. Quando escolheu o colar, comprou-o convencida, era caro, mas não em excesso, afinal era um presente de despedida. Também era bastante grande e chamativo, para que pudessem vê-lo na ópera com binóculos e por último, era fácil de vender, no caso da mulher desejar. Emma considerou importante este último aspecto, pois imaginava bastante precário o ofício de cortesã. Ao que parecia, a Senhorita Bordeaux não era da mesma opinião. — Topázios! — Exclamou — Acaso não represento nada mais para ele? Este colar é uma
quinquilharia, uma bagatela, nada! Com aquela bagatela, Emma poderia sobreviver uns doze anos, mas era óbvio que a bailarina não devia ser tão austera em seus gastos. — Trata Juliette como se fosse um par de botas velhas e acredita que me mandando um colar de topázios com um mensageiro me apaziguará? Non! — A Senhorita Bordeaux ficou de pé com a respiração entrecortada e com lágrimas de fúria nos olhos, inclinou-se para Emma — Este
patético presente não significa nada para mim! A representação deixou Emma impassível. — Transmitirei sua mensagem ao V isconde — disse sem se alterar — e direi que devolveu o
presente. Pensando que a incômoda cena havia chegado a seu final, adiantou a mão para agarrar o colar, mas a Senhorita Bordeaux foi mais rápida e o apanhou antes que os dedos de Emma sequer o roçassem. — Devolvê-lo? Não! Nem pensar. Acaso eu disse isso? Não posso devolver um presente do
homem que amo, por menor que ele seja. Que foi meu companheiro durante tanto tempo, O homem que dei todo meu carinho — Apertou a jóia contra seu peito. 7
— Embora tenha partido meu coração, eu continuo o amando, mas não tenho opção, não
me resta nada mais que aceitar este presente e sofrer. Emma desejou com todas suas forças que a bailarina fosse embora sofrer em outra parte, mas em vez disso, a mulher voltou a sentar e voltou a chorar. — Abandonou-me — gemeu — Não me quer. Estou sozinha. Como você.
O ressentimento estalou no interior da Emma, mas não para a Senhorita Bordeaux, mas sim a Lorde Marlowe, por tê-la posto naquela situação. Uma secretária, embora fosse uma mulher, não teria por que suportar as inúmeras amantes de seu chefe. Esforçou-se para recordar que o Visconde pagava um salário mais que generoso e idêntico ao que pagaria a um homem. Era muito mais do que Emma havia esperado, ainda mais tendo em conta seu sexo. Deveria se sentir agradecida, mas nesse momento não era isso o que sentia. Estava furiosa. Mas o que estava acontecendo com ela nesse dia? Estava ressentida com Lorde Marlowe por ter amantes horríveis, com o mundo, por não poder se permitir a comprar aquelas esmeraldas, irritada pelo fato de que, embora comesse todo o chocolate do mundo, seus seios não aumentavam de tamanho, furiosa com o destino por já não ser jovem e por nunca ter sido bela. Tudo isso era absurdo. Aos trinta não se é velha. Dada sua situação, podia considerar-se muito afortunada. Naquela época de moral tão estrita, uma mulher tinha muito pouca saída. Diferente do trabalho das garotas pobres, empregadas como escravas nas fábricas de fósforos ou em lojas, sua profissão era toda uma provocação, e freqüentemente a permitia por a prova sua inteligência e desenvolver seu talento. Mas o mais importante era que ela queria ser escritora e trabalhar para um editor aumentava em muito as probabilidades para chegar a conseguir. Tal como diria seu personagem, a Senhora Bartleby, uma mulher educada suporta tudo o que a vida traz e o faz com elegância. Suspirou resignada e deu à Senhorita Bordeaux outro lenço.
Harry chegou tarde. Coisa estranha, e não porque ele fosse especialmente pontual. De fato, era conhecido por se tratar do homem mais avoado do mundo, e que estava acostumado a esquecer as datas e entrevistas com facilidade, mas também era sabido que sua secretária era a mais eficiente de toda Londres. Geralmente, a Senhorita Dove controlava o horário de Harry como o de uma ferrovia britânica, mas nesse dia, as coisas não aconteceram segundo o previsto. E não era culpa da jovem. Harry havia se encontrado com o Conde de Barringer ao sair do Lloyd's, e aproveitou para falar novamente sobre a compra de seu jornal, o Social Gazette. Marlowe sabia que o Conde estava passando por um momento delicado e que necessitava de dinheiro. Mas Barringer estava reticente em vender, porque considerava que seu jornal era muito superior ao de menor categoria de Harry, e também que ele estava muito acima do outro homem.
8
Barringer foi contra o processo de divórcio de Harry, e havia pronunciado intermináveis discursos sobre a santidade do matrimônio na Câmara. Apesar do evidente antagonismo entre eles, ambos demonstraram educação e passaram a tarde discutindo as condições de uma possível compra, embora no final não chegassem a nenhum acordo. Harry adorava fazer negócios e ganhar dinheiro. O mundo das finanças era como um jogo para ele, divertido e emocionante, além de muito mais gratificante do que seu título nobiliário e suas propriedades, que na atualidade não significavam nada para um nobre. A provocação de convencer Barringer para que vendesse o Gazette por menos do que as exorbitantes cem mil libras que exigia, o distraiu de outros assuntos. Se o Conde não tivesse dado por terminada a reunião dizendo que aquela noite teria que ir à ópera, talvez Harry tivesse se esquecido do aniversário de Phoebe, o que teria ocasionado um grande problema. Saltou da carruagem antes que ela tivesse parado, em frente à porta do escritório de Marlowe Publishing Limited. — Espere aqui — disse ao condutor, já correndo para a entrada do edifício.
Procurou a chave no bolso, abriu e entrou. Subiu rapidamente a escada mais próxima, e aproveitando-se do fato de que conhecia de sobra o caminho, pode fazê-lo às escuras, subindo os degraus de dois em dois. Ao chegar ao topo, pode ver que os abajures a gás de seu escritório continuavam acesos e ouviu o rápido repicar de uma máquina de escrever. A Senhorita Dove continuava ali, algo que não surpreendeu Harry. Há tempo havia chegado à conclusão de que sua secretária não possuía vida fora do trabalho. A jovem deixou de trabalhar e levantou a vista quando o viu entrar. Qualquer outro empregado teria ficado surpreso ao vê-lo aparecer por ali naquela hora, mas ao que parecia nada conseguia alterá-la. Nem sequer arqueou uma sobrancelha. — Milorde — saudou ao levantar-se. — Senhorita Dove — respondeu ele ao entrar — já chegaram os contratos de compra da
Halliday Paper? — Não, Senhor.
Como esperava uma resposta afirmativa, Harry parou ao lado da mesa de sua secretária. — Por que não? — Chamei os advogados do Senhor Hallyday, Ledbetter & Ghent, para perguntar. Parece que
houve uma confusão. — Uma confusão? — Levantou uma sobrancelha — Você se enganou em algo, Senhorita
Dove? Poderia ter falado comigo sobre isso. Ela olhou para ele ofendida. 9
— Não, Senhor. Deveria ter economizado as palavras.
A Senhorita Dove jamais se enganava. — É claro que não. Desculpe-me. O que ocorreu? — O Senhor Ledbetter não quis me dizer,
mas afirmou que os contratos chegarão dentro de uma semana. Eu os repassarei durante o fim de semana para me certificar de que não há nenhum engano, e assim você poderá assiná-los na segunda-feira. Neste dia terá que comparecer com sua família à festa do Conde de Rathbourne, mas poderia passar por aqui antes e assinar. Quer que anote em sua agenda, Milorde? — E, dizendo isso estendeu a palma da mão para cima. Harry tirou a caderneta de pele de seu bolso e a entregou. Ela anotou a entrevista e devolveu a caderneta. — Quando tiver assinado os contratos — continuou a jovem — um mensageiro da Ledbetter
& Ghent poderá vir apanhá-los, e assim você chegará a Adelphi a tempo de ver como batizam o novo iate de Lorde Rathbourne — Agarrou alguns papéis — Aqui estão algumas mensagens. — Você é a eficiência personificada, Senhorita Dove — murmurou ao pegar os papéis. — Obrigado Senhor — Respirou fundo e assinalou a pilha que havia perto da máquina de escrever — Tenho um novo manuscrito. Caso tenha um segundo... — Temo que não — respondeu, aliviado por ter uma desculpa. Encaminhou-se para sua sala, repassando os recados pelo caminho — Tenho que ir à ópera e já estou atrasado, como deve saber.
Serei repreendido pela minha avó caso percam por minha culpa o primeiro ato, especialmente sendo o aniversário de Phoebe. O que é isto? Deteve-se em frente à porta, com o olhar fixo em uma nota da pilha. — Juliette esteve aqui? Para que? Pode-se saber?
A secretária não respondeu, ao assumir, corretamente, que se tratava de uma pergunta retórica. — Ora — murmurou ele enquanto lia — então não gostou do presente? — Sinto muito, Senhor. Pensei que um colar de topázios e diamantes fosse adequado, mas
parece que a Senhorita não teve a mesma opinião. — Não tenho tempo para isto e não me importa nem um pouco se ela gostou ou não do presente — Amassou a nota e a jogou no chão.
A partir daquele momento, Juliette poderia colocar suas ambiciosas mãos nas jóias de outro. A única opinião feminina que importava para Harry eram as opiniões das mulheres de sua família. — Telefone para minha casa, Senhorita Dove, e diga para minha mãe que não poderei passar
para apanhá-las em Hanover Square. Diga que tomem uma carruagem e que me reunirei com elas em Covent Garden.
10
— Já telefonei Milorde.
Rodeou a mesa, recolheu o papel que ele havia atirado ao chão e o atirou no lixo antes de voltar a sentar. — Perguntei se você encontrava-se lá, pois como não havia passado por aqui para recolher o
presente de Lady Phoebe, pensei que já estivesse lá. Seu mordomo disse que sua mãe, avó e irmãs partiram para Covent Garden sem você. — Suponho que me consideram um caso perdido.
A sempre discreta Senhorita Dove não fez nenhum comentário. Voltou-se para a máquina de escrever e Harry entrou em seu escritório. Um lugar que há dois anos, sua secretária havia redecorado, e embora ele aprovasse o gosto dela, não passava ali o tempo suficiente para desfrutar do ambiente. Harry sabia perfeitamente que não conseguiria dinheiro caso permanecesse sentado em um escritório, por mais bonito que este fosse. Jogou as mensagens que ainda faltavam ler em cima da cadeira e dirigiu-se para a porta de comunicação de seu closet. A casa em que ele morava estava no outro extremo da cidade, tanto seu valete, quanto à Senhorita Dove, asseguravam-se que tivesse sempre alguns trajes e uma ampla seleção de camisas limpas no escritório. Jogou água em uma bacia e preparou o sabão e a navalha para se barbear. Quinze minutos mais tarde, barbeado e com o fraque posto, colocou as abotoaduras de prata e em seguida levantou-se e fez um nó napoleônico no lenço sob a gola da camisa. Colocou o relógio pendurando no colete, pegou um par de luvas brancas, a cartola e dirigiuse para a saída. A Senhorita Dove deixou de escrever e olhou para ele. — O presente de Phoebe? — Perguntou Harry. — Em seu bolso, Senhor.
Deixou o chapéu em cima da mesa e procurou nos bolsos do fraque. Ao notar um pequeno vulto em um deles, tirou-o e notou que era uma caixa pequena, envolta em papel amarelo, com um laço de seda cor lavanda. Um cartão, não maior que a caixa, pendurava-se acima. — Meu Deus, o que eu comprei? Um bombom? 1
— Uma caixinha de Limoges. Sei que sua irmã as coleciona. Esta é de 1740. Está decorada
com anjos, o que me parece muito apropriado, se me permite. Você chama sua irmã de “ carinha de anjo” , não é assim?
1
Em 1771 a argila de caulino, indispensável para a produção de porcelana foi descoberta em Saint-Yrieix-la-Perche, localidade perto de Limoges. Impulsionado pelo economista Turgot ocorreu o desenvolvimento da indústria cerâmica, e a porcelana de Limoges tornou-se famosa durante o século XIX.
11
Emmaline nunca deixava de surpreendê-lo, a quantidade de coisas que ela sabia. — Dentro da caixinha há um anel com uma safira — acrescentou ela.
Harry enrugou a testa. — Não estou acostumado a comprar pérolas? — Sua irmã já terminou de confeccionar seu colar de pérolas. Em todo caso, Lady Phoebe
está fazendo vinte e um anos, e já tem idade para receber outras jóias. Acredito que um anel com uma safira de meio quilate montado sobre platina seja o mais adequado. — Não tenho nenhuma dúvida.
A Senhorita Dove afundou a pluma no tinteiro e a ofereceu. — Posso sugerir que assine o cartão?
Ele olhou incrédulo o pequeno pedaço de cartolina. — Menos mal que meu nome tem só cinco letras.
Tirou a luva e assinou o melhor que pode no reduzido espaço. Devolveu a pluma à Senhorita Dove, soprou a tinta para secá-la e voltou a guardar o pacote no bolso. Colocou de novo a luva e já ia virar-se, quando a voz dela o deteve. — Milorde, seu lenço. — Maldição! — Teve que voltar a deixar o chapéu e levando as mãos ao pescoço, arrumou o
nó — Está bem? Ela sacudiu a cabeça. — Temo que ele continue torcido.
Resignado, puxou as extremidades e começou a refazer tudo novamente. — Milorde, a respeito de meu novo manuscrito — disse a Senhorita Dove enquanto ele batalhava com o lenço — Eu esperava que pudesse lê-lo e... — Lenço do demônio! — Harry deu-se por vencido, e pedindo a ela que se levantasse disse: — Senhorita Dove, caso não se importe...
Ela ergueu-se e rodeou a mesa. — Minha nova obra é diferente das anteriores — insistiu a jovem enquanto tentava arrumar
o desastre. Harry teve vontade de sair correndo. Inclusive a ópera era preferível aos livros de etiqueta da Senhorita Dove. Infelizmente, ela continuava segurando-o pelo lenço. 12
— Como diferente? — Perguntou ele, obrigando-se a permanecer quieto onde estava. — Continua sendo um manual sobre boas maneiras, mas se trata sobre mulheres como eu.
Quer dizer, sobre Senhoritas solteiras e trabalhadoras. Oh, Deus. Não era somente sobre boas maneiras, mas também estava dirigido às solteironas . Harry mordeu a língua para não dizer o que pensava. — Sim — prosseguiu ela, puxando para liberar o nó — É uma espécie de Guia para
Senhoritas Solteiras, semelhante ao seu Guia para Solteiros, mas só que para mulheres. Como procurar um lugar com um aluguel razoável, como comer bem por quatro guinéus ao mês. Esse tipo de coisas. Harry observou os braços da mulher que estava diante dele, e ao ver o quanto estava magra, pensou que não faria mal incrementar o orçamento de comida em ao menos um ou dois guinéus. Talvez devesse subir seu salário, para que assim pudesse gastar mais em bolos e doces. E, no que se referia ao manuscrito, bom, Harry preferiria ir ao dentista e, que este arrancasse todos os seus dentes, antes de ler um guia para solteironas que viviam em lugares respeitáveis. Não havia nenhuma dúvida de que o resto do mundo seria da mesma opinião. E esse era o problema. Ele publicava livros e jornais para ganhar dinheiro, não para ensinar às pessoas como se comportar. — Senhorita Dove, já falamos sobre isso antes — ele recordou — Os livros de etiqueta não
são rentáveis. Há muitos no mercado e é muito difícil ter destaque com eles. Ela assentiu. — Por isso mesmo dei um enfoque mais moderno. Dado o sucesso do Guia para Solteiros e
tendo em conta que você sempre defendeu que as mulheres deveriam ter acesso ao mundo trabalhista, acreditei que a idéia poderia interessá-lo. Há cada vez mais Senhoritas solteiras e trabalhadoras na Inglaterra. As estatísticas... Harry teve dor de cabeça ao ouvir a enxurrada de dados sobre garotas solteiras que soltou sua secretária. Não importavam as estatísticas, só se importava com seus instintos, e estes diziam que não importava o enfoque que a Senhorita Dove tivesse dado, ela jamais poderia escrever nada interessante, visto que era uma pessoa cinza e sem brilho. Seu próprio nome era aborrecido. Com aquele cabelo castanho, seus olhos castanhos e sua voz doce, a Senhorita Dove era a amabilidade personificada. Ele a contratou seguindo um impulso, com a intenção de demonstrar sua teoria de que uma mulher era perfeitamente capaz de ganhar a vida por seus próprios méritos, do mesmo modo que qualquer homem. A jovem havia superado com acréscimo todas as expectativas. Era uma trabalhadora exemplar, melhor que qualquer secretário que teve antes. Nunca chegava tarde, nunca ficava doente, além de muito eficiente. E o mais importante, a Senhorita Dove possuía uma qualidade que estava acostumada a associar-se com o sexo feminino, mas que a maioria das mulheres não tinha, era dócil. Nunca 13
questionava nada. Se Harry pedisse para que ela fosse de navio até o Quênia e trouxesse um saco de café, imediatamente sairia do escritório para comprar uma passagem naval na Thomas Cook & Son. Apesar de ser muito útil, a docilidade da Senhorita Dove fazia com que parecesse quase irreal e diferente de qualquer mulher de carne e osso que tivesse conhecido. A mãe de Harry era uma intrometida e sua avó era ainda mais intrometida além de três irmãs temíveis e muito, muito pouco obedientes. Sua debilidade por mulheres de caráter tempestuoso fazia com que acumulasse uma coleção de ex-amantes e uma ex-mulher digamos tudo, menos dóceis. Sua teoria era que o que fazia com que a Senhorita Dove fosse tão pouco complicada era sua falta de paixão, mais que seu físico pouco atraente. Uma secretária de curvas sensuais e caráter desafiante teria sido impossível de agüentar, mas sem dúvida muito mais gratificante em curto prazo. Não, quanto às secretárias, ficava com a Senhorita Dove e desde o começo jurou a si mesmo não manifestar tendências amorosas com respeito a ela. Por sorte, a moça sempre havia facilitado para que mantivesse sua promessa. — Aqui está — disse ela dando um passo para trás e afastando Harry de seus pensamentos. Percorreu-o com o olhar e logo assentiu — Confio que seja de seu agrado, Milorde.
Harry nem se incomodou em olhar para o espelho. Não havia dúvida de que o nó estava perfeito, e do tipo que estava mais em moda entre os cavalheiros. — Senhorita Dove, você é um tesouro — abaixou o pescoço, agarrou o chapéu e dirigiu-se para a porta — Não sei o que faria sem você. — Sobre meu novo livro — começou ela, fazendo com que ele caminhasse com mais velocidade para a saída — Vai lê-lo? — Mande-o para minha casa antes que eu viaje amanhã pela manhã — disse ele, impedindo qualquer outro comentário — Eu o lerei no campo. — Obrigado, Milorde.
Harry saiu dali aliviado. Era uma lástima que não pudesse escapar da ópera com a mesma facilidade.
14
As irmãs são o demônio em pessoa. Quando são pequenas, torturam e o atormentam. Quando crescem, ela tentam encontrar esposa para você, o que deve ser o mesmo. Lorde Marlowe Guia para Solteiros, 1893
— Lorde Dillmouth e suas filhas chegaram à cidade. Suas primas, as Abernathy, os
acompanhavam. Com essas palavras de sua irmã Diana, Harry soube o que vinha a seguir. Indicou ao garçom que passava por ali, que servisse mais vinho, pois estava precisando. — Que notícia interessante. Quer que a publique no jornal? — Mamãe e eu as vimos durante um passeio — Diana, a mais velha de três irmãs, seis anos
mais jovem que ele, era bonita e inteligente. E também muito obstinada. Sem deixar-se amedrontar por sua falta de entusiasmo, só deixou de falar do tema os segundos necessários para arrumar uma mecha de cabelo e beber um pouco de vinho — Elas estão muito bem, especialmente Lady Florence. É uma beldade reconhecida. — Com certeza que sim — concordou ele — Pena que seu cérebro não possa ser igualmente
admirado. — Juliette Bordeaux é um claro exemplo do quanto valoriza a inteligência em uma mulher —
contra atacou Diana. Harry decidiu não dizer que havia terminado com a bailarina. Só serviria para dar mais munição a elas. — É mais inteligente que Lady Florence — optou por dizer — Embora reconheça que isso
não queira dizer muito. A caçula da família interveio na conversa. — Por que sai com essa mulher? — Perguntou Phoebe, sua cara de querubim franzida com
genuíno assombro. Harry não respondeu os atrativos de uma voluptuosa bailarina não era assunto apropriado para um cavalheiro discutir com suas irmãs. Pelo menos, sua mãe estava de acordo.
15
— Deixe isso para lá Phoebe — disse Louisa, tentando parecer firme e autoritária, embora a
mulher fosse tão firme e dura quanto um pudim. O que explicava, Harry estava certo, do porque suas irmãs fossem tão impossíveis — Depois de tudo — acrescentou — estamos jantando no Savoy. Vivian, a irmã do meio, riu. — E isso o que tem a ver, mamãe? — Olhou ao seu redor e contemplou o luxuoso salão em que estavam — Estas paredes vermelhas, com os candelabros de cristal e os brocados dourados,
parecem mais que do adequadas para falar de uma bailarina. — Vivian! — Exclamou a avó Antônia olhando a todos na mesa — Não vamos continuar falando da tal Bordeaux — ordenou com uma voz muito mais impressionante do que a da filha —
Dá-me indigestão. Devido ao fato de que estava a ponto de completar oitenta anos, os comentários sobre a digestão da avó eram levados muito a sério. Para satisfação de Harry, o assunto Juliette deu-se por resolvido. Pena que o assunto seguinte que captou a atenção de suas irmãs fosse arranjar-lhe uma esposa. — Lady Florence é um pouco tola, Diana — disse Vivian, recuperando o assunto que havia
introduzido sua irmã e dando razão a Harry sobre a capacidade intelectual da caçula dos Dillmouth — Tenho certeza que podemos aspirar algo melhor. — Já sei que minha opinião sobre isso é dispensável — ele comentou sarcástico, adotando um ar de fingida humildade diante dos conselhos de suas irmãs — mas pensar em me casar com
Florence Dillmouth arrepiam meus cabelos. — Arrepiam seus cabelos só de pensar em se casar — espetou Diana — essa bailarina é o
problema. — Isso, Diana, não é nenhum problema. É uma bênção. Passe-me o presunto Phoebe.
A jovem aproximou a bandeja. —E o que me diz da irmã de Florence, Melanie? — Sugeriu sua irmã caçula enquanto Harry se servia — Melanie está bem. É simpática, sem ser muito tola. Eu gosto dela. — Excelente — respondeu ele com a boca cheia — Então, por que você não se casa com ela? — Mastigue antes de falar, Harrison — ordenou Antonia, como se ele fosse um menino de sete anos, em vez de um homem de trinta e seis — E meninas, deixem de procurar uma esposa para
seu irmão. Só conseguem que ele tenha menos vontade de se casar. E suponho que é lógico que esteja reticente — acrescentou a contra gosto — depois do que aconteceu com aquela insuportável americana. Aquela insuportável americana era como a avó dele chamava sua ex-esposa. Não que isso importasse, pois de fato ele também preferia não falar de Consuelo.
16
— Uma má experiência não deveria fazê-lo renegar para sempre o casamento — insistiu
Phoebe. — Disse a voz da experiência — replicou Harry, tentando mudar de assunto zombando dela. — Eu só quero a sua felicidade, irmão. — Sei, e eu adoro você por isso — inclinou-se para ela e deu-lhe um beijo no rosto — Mas
me casar novamente não me fará feliz, acredite. — É muito pouca consideração de sua parte dizer isso, Harry, eu me caso dentro de dez meses — riu Diana, intervindo de novo na conversa — Diferente de você, eu estou ansiosa para
voltar a me casar. Edmund é o homem mais maravilhoso que já conheci. Diana foi muito infeliz em seu primeiro casamento, e embora seu marido tenha causado muita dor com as descaradas infidelidades, fez a gentileza de morrer em um acidente ferroviário. Apesar de tudo o que ela havia passado Diana nunca perdeu a fé no amor, nem na instituição do casamento. Seis anos depois da morte de primeiro marido, ia repetir a experiência. Talvez desta vez sua fé fosse justificada. Harry esperava para seu bem, mas isso não significava que ele tivesse que seguir o exemplo dela. — Você é uma romântica, Diana. Sempre foi. — E o que me diz de meu noivo? Já sabe que a primeira experiência de Edmund com o
casamento foi idêntica à sua. Também se apaixonou por uma dessas americanas e se casou com ela. Seu divórcio foi tão difícil e doloroso quanto o seu, mas nem por isso virou um cínico. Cínico? Harry sentiu uma pontada de dor no peito, um fraco eco da terrível agonia que havia sentido na noite em que finalmente aceitou a verdade sobre sua esposa e o seu futuro. À noite em que ela o deixou ele abandonou qualquer idéia de amor eterno, tudo o que havia permitido seguir adiante durante os horríveis quatro anos de vida conjugal. — Não sou cínico — mentiu entre dentes — Só não tenho nenhum motivo para voltar a me
casar. — Nenhum motivo? — Perguntou a avó, levantando os olhos de seu prato para olhá-lo com desaprovação — E o que me diz do filho que deveria ter para que herdasse o título? — Já há um herdeiro para isso. O primo Gerald.
Antônia soprou exasperada. — Mas vovó, ele está encantado de ser o herdeiro, de fato está impaciente para se
encarregar de tudo. Cada vez que visita Marlowe Park, verifica o faqueiro de prata, pergunta como estão os encanamentos, e passa horas interrogando o administrador. Seria uma lástima estragar tanto talento. Antônia, adotando maneiras majestosas, deu a entender a pouca graça que achava do comentário. 17
— Deixe de dizer tolices, Harry. Sempre faz o mesmo quando não quer falar de algo. É
Visconde, e seu dever é se casar para ter filhos. A avó ficou um pouco ultrapassada. Negava-se a aceitar que a maioria dos aristocratas eram latifundiários arruinados. Fazia muito tempo que Harry percebeu que sopravam ventos de mudança. Na verdade, isso era a única coisa que podia agradecer ao pai de Consuelo, o Senhor Estravados. Foi ele quem disse que seriam os empresários e não os aristocratas, que liderariam o futuro. Harry seguiu seu conselho e aqueles quatorze anos deram razão a ele. Ter ou não filhos que pudessem herdar o título já não era tão importante como antes. Mas sua mãe devia dar sua opinião a respeito. — Harry, você tem que se casar e ter filhos. Deve fazer isso. Os anos passam, já tem trinta e
seis anos, e dentro de pouco tempo já será muito tarde. Chegará aos quarenta, e já sabemos o que acontece com os homens então, pobrezinhos. Harry engasgou com o vinho. — Tem que encontrar uma esposa em seguida — prosseguiu Louisa, não parecendo
perceber que seu filho quase se afogava. Disse a si mesmo que sua mãe não sabia o que estava falando. — E por que deveria procurá-la, acaso minhas irmãs não estão se esforçando em fazer isso? — O que acontece com os homens aos quarenta? — Perguntou Phoebe curiosa. — Nada — disse Diana, e antes que a jovem pudesse perguntar mais, voltou a puxar o assunto das garotas Dillmouth — Sabe Phoebe? Acredito que tem razão. Lady Melanie é a melhor
das irmãs. Suponho que há quem acredite que em seus vinte e oito anos, ela seja uma solteirona, e não seja tão bonita como Florence, mas tem o cabelo escuro e Harry sempre gostou das morenas. Além disso, Melanie é a mais inteligente das duas. — Inteligente? — Harry suspirou ofendido — Melanie Dillmouth é incapaz de manter uma
conversa. Nunca diz nada, como chegou a formar uma opinião sobre sua inteligência? — É tímida quando você está por perto — disse Diana — E é compreensível, tendo em conta
o que sente por você. Embora não tenho certeza de que esses sentimentos proporcionem uma boa esposa para você ou não. — Do que está falando?
A mais velha olhou para ele exasperada. — Oh, Harry! Olhe como você é lerdo. — Certo — respondeu ele — Afinal sou homem. Mas pode se saber por que Melanie
Dillmouth tem vergonha de falar comigo?
18
— Porque está apaixonada por você! — O que? — Harry estava atônito — Não diga tolices. — Sério — insistiu Diana — Sempre esteve. Desde que você salvou o gato dela.
Ele deixou de comer e olhou para todas. Por sua expressão, viram que ele não estava lembrando-se do incidente. Quatro resignados suspiros e um de exasperação, responderam à pergunta que formulavam seus olhos. Harry manteve-se calmo. Depois de vinte anos como único varão na família depois da morte de seu pai, aprendeu que era impossível estar à altura das expectativas das damas. — Está louca, Diana — disse, e voltou a comer — Eu jamais salvei um gato. Odeio esses
animais. — Não posso acreditar que não se lembre — exclamou ela — As garotas Dillmouth passaram
um verão em Marlowe Park. Você acabava de se graduar em Cambridge. O gato de Melanie ficou preso em uma ratoeira e você o soltou. A história começou a soar vagamente. — Por Deus santo, isso faz séculos. Quinze anos, no mínimo. — Ela nunca o esqueceu — disse Diana — Chorou quando você se casou com Consuelo. — Se soubesse o que me esperava, eu também teria chorado.
Ninguém riu de seu comentário. Harry se perguntou como podiam pensar que a imagem de Melanie chorando ia despertar nele algum interesse romântico. Tudo o que inspirava era lástima e vontade de sair correndo em direção contrária. — E o que me diz da Elizabeth Darbury? — Sugeriu Phoebe — Também é morena. — Uma família muito fértil — interveio Antônia dando sua aprovação — Os Darbury tem
pelo menos dois filhos homem a cada geração. — Lizzie Darbury não nos serve — soltou Vivian — Não entende as piadas dele. Sempre fica
olhando para Harry como se faltasse um parafuso na cabeça dele. — Isso é importante — opinou Louisa — Os homens odeiam que não os achemos
charmosos. Especialmente Harry. Isso o deixa de muito mau humor. — Não me deixa de mau humor. E não sei por que minhas irmãs estão tão empenhadas em
me escolher uma esposa. — Porque você não é bom em escolher — respondeu Vivian, apoiada em seguida pelas
outras mulheres da mesa. Incapaz de rebater esse argumento, e não querendo recordar a Diana que ela tampouco tinha se dado muito bem no assunto, Harry decidiu ficar calado, vendo se assim davam por 19
resolvido o assunto. Três segundos mais tarde viu que não. — E Mary Netherfield? Netherfield? — Sugeriu Vivian — Tem muito estilo. Sempre anda na última moda.
Vindo de Vivian, que adorava comprar roupa e tudo que era relacionado à moda, essas palavras eram um grande apoio. Phoebe descartou Lady Mary com um movimento de cabeça. — É muito insípida. Além disso, é loira e de olhos azuis, além de muito séria e estreita. — Sim, mas esse é exatamente o tipo de mulher que nosso irmão necessita — Vivian assinalou — Ele é tão inconstante que precisa de uma garota como essa. — Mas Harry odeia mulheres assim.
O que Harry odiava era que falassem dele como se ele não estivesse presente. — Esta conversa é absurda — disse ele zangado — Não voltarei a me casar. Quantas vezes
tenho que repetir isso? — Oh Harry — suspirou sua mãe decepcionada — Nas coisas importantes é um caso
perdido. Como se o dinheiro com que pagavam os luxuosos vestidos que usavam, o camarote na ópera e o salão particular para jantar no Savoy não fossem importantes. Mas sabia que seria inútil dizer isso a Louisa. Com sua mãe, utilizar a lógica era perder tempo, especialmente em assuntos de dinheiro. Uma vez, tentou explicar a ela como funcionava a Bolsa, e ambos terminaram com dor de cabeça. — Tem que se casar e ter filhos — insistiu ela — Hoje em dia é muito difícil encontrar uma
casa de campo em bom estado. Não entendeu o que tinha a ver uma coisa com outra, mas bem, Louisa era assim. Dizer coisas incoerentes era típico dela. Phoebe viu como ele ficou confuso e teve a gentileza de decifrar a mensagem. — Se você morrer e Gerald for o Visconde, não nos deixara viver em Marlowe Park — explicou — E como lhe pertenceria, teríamos que ir viver em outro lugar. — Ah!
Harry optou por não lhes dizer que o milhão de libras, mais os interesses que possuía em Lloyd's, garantiria que pudessem viver onde quisessem. Em vez disso, fingiu refletir sobre o assunto. — Suponho que, depois de minha morte, possam ir morar na América. Ali há muitas casas
de campo. De fato, há um povoado chamado Newport que é charmoso. Louise nunca percebia quando ele brincava. — Bem, se é assim como estão as coisas — disse com voz trêmula — o que faremos se você
morrer sem um herdeiro? 20
A Harry parecia muito mais grave o fato de morrer e não que o fizesse sem ter filhos, mas pelo visto era o único que via assim. Diana tossiu incômoda. — Como eu disse antes, as garotas Dillmouth viajam com suas primas, Nan e Felicity
Abernathy. E pensei... — Chega! — A paciência de Harry esgotou-se. Soltou bruscamente os talheres sobre o prato — Querem parar já? Não há nenhuma mulher sobre a face da terra que possa me fazer casar. Nunca
voltarei a fazer isso. Nunca mais! Está claro? Diante de sua explosão de fúria, as cinco mulheres que amava mais que tudo no mundo, olharam para ele com olhos arregalados. Odiava que fizessem isso. Afastou o prato e como todas haviam acabado de comer, indicou ao garçom que limpasse a mesa. — Não sei nem por que estamos falando disto — disse Harry em seguida — Hoje é o aniversário de Phoebe. Acredito que tenha chegado o momento dos presentes. Vejamos —
procurou em seus bolsos e tirou o pacote. A seguir entregou para sua irmã caçula com uma reverência — Aqui está “carinha de anjo ”. Feliz aniversário. aniversário. Ela levantou os olhos cheios de lágrimas. — É uma caixinha de Limoges, não é? Tem que ser. É tão pequeno, não pode ser nada mais.
Tenho razão? — Abra e veja.
A jovem desfez o laço e rasgou o papel. Quando abriu a caixinha e viu o que continha, ela riu. — É ou não uma caixinha de Limoges? — Vivian V ivian esticou o pescoço para para poder vê-la. — É. Olhe — Phoebe a tirou para que todas pudessem vê-la.
Harry recordou o que havia dito a Senhorita Dove, e aproximou-se de sua irmã. — Estas caixinhas se abrem, não? — perguntou, fingindo ignorância.
Phoebe mordeu o anzol. —Sim, claro — respondeu, e levantou a tampa para demonstrar — Olhe. Oh, Meu Deus!
Com dedos trêmulos, ela agarrou o anel e o depositou na palma da mão. — Uma safira! Olhem! Uma safira — Deixou de lado a caixinha de Limoges e levantou o anel
um segundo, para que todas pudessem vê-lo, antes de colocar no dedo anular de sua mão direita. Era exatamente de seu tamanho. A Senhorita Dove fez tudo com perfeição. — Agora já tem vinte e um anos — disse — e já pode usar safiras. Combinam com seus
olhos. Você gosta? — Gostar? — Phoebe rodeou o pescoço dele com os braços — Eu adorei — ela exclamou,
21
dando um beijo na face — É perfeito! E a caixinha de Limoges também. Seus presentes sempre são os melhores! Sua mãe, sua avó e Vivian aproximaram-se de Phoebe para admirar a jóia, mas Diana não as seguiu. Em vez disso, aproximou-se de Harry. — A Senhorita Dove é impressionante — sussurrou — sempre dá o presente perfeito. — Não sei do que está falando. — Não fique preocupado, maninho. Sou a única que descobriu seu segredo e não vou dizer a
ninguém. — Você é um doce, Diana. — Bem, vamos ver se continua com a mesma opinião depois de que eu contar o que fiz.
Seu irmão a olhou nos olhos. Ela contou. — O quê?
O irritado grito ressonou na sala, e as outras quatro mulheres olharam assustadas para eles. Diana retrocedeu ao ver a expressão do rosto de Harry. — Deixei-me levar pela compaixão — explicou ela, mordendo o lábio inferior e tentando
parecer arrependida. — Que compaixão! — Deus santo — disse sua mãe — o que está acontecendo?
Foi Diana que respondeu. — Contei-lhe sobre o convite. — Bem — Louisa franziu o cenho e ficou olhando para seu filho — Não tem nada de mais,
não é? — Como você pensou que eu poderia gostar da idéia? — Exigiu saber ele levantando a voz. — Bem, agora parece — concluiu Diana.
O semblante de Louisa ficou iluminado. — Sim, sua irmã fez o correto. — O correto? — Harry, querido, não grite. Essas pobres garotas estão sozinhas em Londres, exceto pelo
velho Senhor Dillmouth. Verdadeiramente, é imperdoável que as tenha trazido para a cidade sem uma companhia. No que estavam pensando? 22
—Não — Harry sacudiu a cabeça — Me nego.
Mas falar com sua mãe era como falar com uma parede. — Sua única defesa é que perder sua amada esposa deve tê-lo deixado definitivamente louco — prosseguiu Louisa como se nada fosse — Por Deus santo! Essas pobres garotas não podem ir a lugar nenhum. Estão entediadas! E o desafiou com o olhar — Eu acredito que Diana fez o que
deveria ter feito. Harry estava de cabelos em pé só de pensar em ter mais quatro mulheres vivendo em sua casa durante seis semanas, mulheres que suas irmãs consideravam como candidatas a se tornarem sua segunda esposa. Então se lembrou de Lady Melanie chorando por ele, e sentiu-se pior. — Agarrem uma pistola e me matem — balbuciou — Mas deixem de me torturar. — Do que estão falando? — perguntou Antônia — Diana, explique. — Mamãe e eu encontramos Dillmouth com suas filhas e as duas garotas Abernathy na
ópera, durante o intervalo. Foram sem acompanhante, exceto pelo ancião, claro. E quando me dei conta da situação, eu as convidei para passar as seis semanas que vão permanecer em Londres para ficar em casa conosco. Não imaginei que Harry fosse se importar. — Pois me importa! — Gritou ele. — Já fiz, estão convidadas — respondeu sua irmã, serena — e elas aceitaram. Agora não
posso voltar atrás. — Claro que não! — Antônia estremeceu só de pensar — Isso seria muita falta de educação.
Harry gemeu e percebeu que estava encurralado. Apesar de Dillmouth estar arruinado, continuava sendo Marquês, título muito superior ao de Harry, e tinha muito poder na Câmara dos Lordes. Por outro lado, ele não era daqueles que esqueciam uma desfeita. A vida social de suas irmãs, que já havia sido muito afetada pelo seu divórcio, não sobreviveria à inimizade de alguém como ele. Não sabia se estrangulava Diana ou batia a cabeça na parede. — Já está tudo decidido. Chegarão dentro de uma semana, bem quando você retornar de Berkshire — Diana sorriu — Harry, conhece Lady Felicity? É uma dama encantadora.
Ele olhou para a irmã e, pelo leve sorriso que se desenhava nos lábios dela, soube que Lady Felicity era quem tinha em mente todo o tempo. — É encantadora, não? — Interveio Vivian — Se não me falha a memória, é morena. E tem
os olhos escuros. E um tom de pele que ressalta as jóias. — Entretanto tem um caráter péssimo — disse Phoebe, mas inclusive de perfil, Harry pode ver que fazia um esforço para não sorrir — Dizem que vem da parte latina da família.
Suas irmãs eram o diabo em pessoa. Conheciam todas suas debilidades. Harry começou a 23
considerar viver em uma casa na América.
Durante a semana seguinte, Emma não pensou muito em seu iminente aniversário, mas justamente na noite anterior, sonhou com seda. Com um belo tafetá de suave seda surgindo em um luxuoso vestido, que ondeava em cada um de seus movimentos. E com aquelas mangas bufantes que tanto sucesso faziam ultimamente. Era de seda verde, com um estampado de lágrimas azuis e turquesa que brilhavam com a luz dos candelabros. Candelabros? Sim, estava em um baile e os músicos tocavam uma valsa. Ela dançava com um homem. Que estranho que não pudesse ver seu rosto, estava impreciso, mas ele a fazia rir, e era isso que Emma gostava. De repente, viu que na mão segurava um leque, um leque lindo, feito de plumas de pavão. Abriu-o e por trás dele olhou para o homem de um modo muito sedutor, deleitando-se ao sentir as plumas acariciando o nariz. Então despertou, e viu que era o focinho do Senhor Pardal que estava a poucos centímetros de seu rosto, e que eram os bigodes do gato que roçavam seu nariz. O animal miou para dar bom dia. Diante de uma mudança tão abrupta de cenário, Emma voltou a fechar os olhos, mas ao abrilos segundos mais tarde viu sem dúvida nenhuma o listrado felino aconchegado em seu travesseiro. Estava sonhando. E agora parecia um sonho absurdo. O tafetá de seda era muito caro! E como diabos foi capaz de dançar uma valsa e abanar-se ao mesmo tempo? Mas apesar de tudo, sentiu uma pontada de pesar ao perceber que nem o lindo vestido nem o homem existiam de verdade. Outro ponto era o leque. Com suas largas plumas, as varinhas de marfim e sua borla de seda azul. Maravilhoso! Viu um parecido em uma loja na Regent Street. A mesma loja em que havia comprado a caixinha de Limoges para Lady Phoebe. Um desses lugares onde se podem encontrar pedras falsas de lapis-lázuli2, ao lado de valiosas cigarreiras estilo Carlos I, e leques como os do sonho. Recordou para si mesma, que era um objeto que custava dois guinéus. Um preço muito alto para um capricho. Emma caiu de costas olhando para o teto e com o olhar percorreu as quatro paredes de cor amarelo pálido que constituíam seu pequeno apartamento da Russell Street. Pensou nas histórias das mil e uma noites, e em locais como Ceilão e Caxemira 3, lugares em que o ar exalava fragrância de especiarias e as cimitarras não deixavam de brandir, com negociadores cheios de tapetes persas e coloridas sedas chinesas. Ver aquele leque, embora fosse através do poeirento cristal da caixa em que estava guardado, a fez sentir por um instante tão exótica quanto Scherezade. Suspirou. Senhor Pardal lambeu a orelha dela, ronronou e Emma decidiu deixar de lado as fantasias e acariciar o gato. Gostou de sentir o toque da pele dele contra a face. Logo, tirou a colcha e levantouse. Ao ver que sua ama saía da cama, o felino miou. — Sei, sei — disse ela — mas tenho que ir trabalhar — Olhou-o por cima do ombro e descalça, atravessou o quarto — A diferença de outros, eu não posso ficar todo o dia em casa
dormindo. 2
Lápis-lazúli , conhecido também como lápis, é uma rocha metamórfica de cor azul utilizada como gema ou como rocha ornamental desde antes de 7000 a.C.
3
Ceilão - atual Sri Lanka. Caxemira - região entre a Indía e o Paquistão.
24
O gato não se deu por achado e com um bocejo voltou a se acomodar no travesseiro. Como de costume, Emma permitiu enquanto ela prosseguia com sua rotina matutina. Deixaria a cama para o final. Pôs água na bacia de mármore branco que havia na penteadeira e procurou seu sabão de pêra. Depois de se lavar, vestiu-se com uma blusa branca engomada e uma saia azul escuro além de suas habituais botas negras, de laços. Abriu as cortinas, sentou-se à penteadeira e depois de desfazer a longa trança que usava para dormir, escovou o cabelo. No espelho, observou o reflexo da escova deslizando ao longo de seu cabelo, que chegava à cintura. Ver o utensílio de madrepérola trouxe tristes lembranças de sua tia. Cem escovadas para fazer com que o cabelo brilhasse, repetia a tia Lydia diariamente, desde que Emma completou quinze anos. Caso seu pai estivesse vivo e tivesse ouvido o conselho de sua cunhada, teria chamado de frivolidade e teria dito que passar esse tempo em frente ao espelho era um ato de vaidade. Emma gostava de cuidar do cabelo. Normalmente, parecia que era de um castanho, semelhante à cor do pão de centeio. Mas com a cabeleira solta, um pouco ondulada pela trança e com a luz que entrava pela janela, parecia avermelhado, como o cobre e muito menos insípido. O vestido de seda verde, pensou, teria ficado lindo. Bem, o que ia fazer? Prendeu o cabelo em um coque no alto da cabeça e o prendeu com dois pentes até assegurar-se de que agüentariam todo o dia. Satisfeita, levantou e, ao lembrar-se de algo, deteve-se em seco. Era seu aniversário. Voltou a sentar de repente, com o olhar fixo em seu reflexo. Estava com trinta anos. Disse para si mesma que não aparentava esta idade, porque as sardas que apareciam no nariz e nas maçãs do rosto e que não conseguia eliminar, por mais limões que esfregasse, faziam-na parecer mais jovem. Olhos nada excepcionais em um rosto ovalado devolveram o olhar, olhos rodeados por cílios espessos e por rugas que não estavam ali no ano anterior. Levantou a mão e, com o nó dos dedos, alisou as três linhas de sua fronte. Aquele horroroso sentimento de insatisfação voltou a invadi-la e então apertou as mãos. Se continuasse a se lamentar, chegaria tarde. Ficou de pé e saiu do quarto. Passava das oito, de modo que não poderia tomar o café da manhã com os outros inquilinos na sala do andar de baixo. Fechou as cortinas de sua pequena sala de estar, esquentou um pouco de água no pequeno fogão que possuía ali e, enquanto esperava que fervesse, mordiscou uma bolacha. Jogou o chá na água, e ao fazê-lo, captou o aroma do jasmim e a casca de laranja. Ceilão, Caxemira. Seda verde. Scherezade. Que tolice, brigou consigo mesma. Pagar dois guinéus por um leque, embora fosse seu aniversário. Gastar mais que o salário de meia semana em algo que jamais poderia utilizar? Ridículo. Mas não pode deixar de pensar nas plumas de pavão durante todo o caminho para o trabalho.
25
Uma verdadeira dama sempre é comedida. É alegre, compreensiva e serena. Não manifesta suas emoções, nunca perde a calma nem monta uma cena. Conselho da Senhorita LYDIA WORTHINGTON A sua sobrinha, 1880
Os jornais não eram a única fonte de renda de Harry, mas sim serviam para muitas outras coisas, como, por exemplo, ocultar-se atrás deles. Coisa que essa manhã era mais do que útil. Sabia que era indelicado colocar o jornal como um muro entre ele e suas convidadas, mas não se importava. Todo homem tinha seu limite, e quatro mulheres a mais, sentadas a sua mesa de café da manhã, mulheres que suas irmãs estudavam como futuras cunhadas era muito mais do que podia suportar. Nessa manhã, justamente depois de chegar de Berkshire, Harry havia escolhido o Social Gazette de Barringer para se ocultar. Por sorte, o café da manhã em sua casa era informal, e consistia em uma série de pratos quentes, que os criados deixavam preparados em um aparador, para que todos servissem do que lhes apetecesse e quando quisessem. Há anos era assim, e sua mãe já havia renunciado que naquela casa se cumprissem os horários normais. Neste momento, essa maneira de funcionar permitia que Harry trabalhasse e de passagem ignorasse suas convidadas. Não admirava que o Gazette e seu proprietário estivessem passando por dificuldades econômicas, pensou enquanto comia um pouco de presunto. Era tão aborrecido e enfadonho como ler The Time. Uma voz feminina se destacou por cima das demais. — E o que opina você, Lorde Marlowe?
Fez-se silêncio na sala, e Harry abaixou o periódico o suficiente para ver os olhos negros de Lady Felicity. Não havia dúvida de que era muito bela, mas claro, Diana conhecia de sobra seus gostos. Se Felicity não fosse uma dama, talvez conseguisse despertar um pouco de interesse, entretanto, as jovens como ela eram criaturas muito perigosas: Queriam se casar. Sorriu com educação. — Desculpe-me, mas não estava escutando — Sacudiu o periódico — Estou ocupado com
coisa mais importante. — Um pouco mais importante? — Perguntou Lady Felicity assinalando o jornal — Ler o
periódico é tão importante? — Para Harry sim — respondeu Vivian — Sempre lê tudo o que publica a concorrência. — Sim, mas não está acostumado a fazer isso na hora do café da manhã — assinalou a avó,
26
deixando claro o que pensava, embora o neto decidisse ignorá-la. Harry voltou a olhar para Felicity por cima do Gazette. — Verá, Lady Felicity — explicou — ler os jornais da concorrência é crucial para minha
empresa. Permite-me levar vantagem e esse tipo de coisas. Sou um homem de negócios e eu gosto muito de ser um homem de negócios. — Gosta? — A jovem riu — Está brincando, Lorde Marlowe. — Justamente o contrário. Eu gosto muito mais do que me ocupar do imóvel. Esperar que
pagassem as rendas é muito aborrecido. E pouco rentável. Prefiro fazer negócios. A garota sabia que tinha metido os pés pelas mãos, e tentou solucionar o obstáculo. — Prefere fazer negócios a ocupar-se de seu imóvel? Isso é muito... dramática — muito moderno.
— fez uma pausa
Harry viu que Diana franzia o cenho e contente, voltou a levantar o jornal. Como poderiam pensar que Lady Felicity seria adequada para ele? Teria um tempo maravilhoso esfregando seu rosto. — Sim, bom, eu sou assim, um tipo muito moderno — murmurou despreocupado.
Ignorando o suspiro de exasperação de sua avó, olhou o relógio e fingiu se surpreender. — Já são nove e meia? — Dobrou o jornal antes de se levantar e tratou de parecer compungido — Desculpem-me, Senhoritas, mas devo ganhar a vida. — Não chegue tarde esta noite, querido — pediu sua mãe enquanto ele recolhia os inúmeros jornais que o mordomo havia deixado ao lado de seu prato — Escutaremos um pouco de
música depois de jantar. Nan vai cantar umas peças somente para nós. Dedicou-lhe um sorriso a musical Lady Nan. — Estupendo mamãe. Farei o que puder, mas temo que não possa prometer que nada me
retenha. Fez uma inclinação e encaminhou-se para a porta antes que Louisa pudesse dizer outra coisa. Suspirando aliviado, abandonou a sala de refeições e caminhou para o vestíbulo. — Minha carruagem, Jackson — ordenou — e avise-me quando estiver preparada. Estarei
em meu escritório. — Muito bem, Milorde.
O mordomo fez um gesto a um lacaio enquanto Harry caminhava para seu refúgio. Uma vez ali, lançou o exemplar do Social Gazette no cesto de papéis. Tinha lido tantos artigos presunçosos quanto seu estômago podia resistir em uma manhã. A primeira coisa que faria quando o jornal fosse seu, seria aliviar um pouco o tom. E estava decidido a comprá-lo. Estava convencido de que se o 27
modernizasse um pouco, podia ser rentável. Sua localização, um edifício de tijolo bem em frente aos escritórios de Harry, era perfeito para a expansão do negócio. Claro que derrotar Barringer era uma satisfação. Cedo ou tarde, o Conde teria que vender. Era só questão de tempo. Abriu sua maleta com a intenção de guardar o resto dos exemplares da concorrência, para lê-los a caminho do trabalho, mas se deteve ao ver o manuscrito embalado com corda. O novo livro da Senhorita Dove. Prometeu a ela que o leria enquanto estivesse em Berkshire, mas ao chegar ali se esqueceu dele por completo, pescar era muito mais divertido que ler o que quer fosse que aquela garota tenha escrito. O cocheiro demoraria ainda uns dez minutos para chegar com a carruagem, e pela experiência que tinha de seus manuscritos anteriores, ainda sobrariam nove minutos e meio para fazer honra a sua promessa e verificar o que já sabia. Tirou o original da maleta, sentou-se em frente à mesa e desatou a corda. Deslizou os dedos por entre as páginas para abrir uma ao azar.
“ O
piso de baixo, sem um só raio de sol que o ilumine, pode se transformar em um lar acolhedor com pouco dinheiro se sua proprietária utilizar o bom senso e o entusiasmo próprios de uma garota jovem e profissional. E, claro, se souber onde comprar ” .
Harry fechou o manuscrito. Aborrecido até dizer chega, tal como suspeitava. A pobre Senhorita Dove parecia incapaz de compreender que ninguém queria ler semelhantes tolices. Voltou a atar a corda e devolveu o original à maleta. A seguir tirou sua agenda, cheia de notas feitas por sua eficiente secretária, e que foi enviada para sua casa no dia anterior para que, por ocasião de sua volta, soubesse tudo o que teria que fazer. Fez uma careta de contrariedade ao ver a primeira entrevista. Tinha uma reunião com seus editores. Essa entrevista mensal era sempre tediosa e Harry pensou em desmarcá-la, afinal ele era o chefe. Mas se não comparecesse, não poderia mantê-los na linha, ou seja, o que lhes ocorreria publicar. Quando Jackson anunciou que a carruagem já estava preparada, Harry pegou o chapéu e resignou-se ao inevitável. Graças a sua pronta fuga do café da manhã, chegou aos escritórios da Bouverie Street antes do previsto. A Senhorita Dove ficou de pé ao vê-lo entrar. — Bom dia, Milorde — ela o saudou — Chegou cedo. — Surpreendente, eu sei — disse — Problemas domésticos, Senhorita Dove. — Lamento ouvir isso. Se sua governanta ou mordomo precisam encontrar alguém, há um
par de boas agências. Eu posso indicar. — Não é esse tipo de problemas. Este, eu temo que não possa ser resolvido por nenhuma
agência, a não ser que conheça uma, que possa encontrar maridos para minhas irmãs e assim poder tirá-las de minha casa — Fez uma pausa, como se estivesse pensando no assunto — E também um para minha mãe, pensado bem. Sim, ela também poderia tornar a se casar. Se dependesse de mim, 28
a casaria com um nobre escocês que tivesse um Castelo longe daqui, em um local desses que necessitam no mínimo dois dias de trem para chegar. — Um, se pegar o expresso.
A Senhorita Dove sempre acreditava em tudo o que ele dizia, e logo respondia em consonância, de modo que Harry havia chegado à conclusão de que ela carecia de senso de humor. — Acredito que existem uma ou duas agências dedicadas a formar casais — prosseguiu ela um pouco insegura — mas não acredito que suas irmãs necessitem de seus serviços. A mais velha
delas não está noiva de Lorde Rathbourne? — Estou brincando, Senhorita Dove — disse ele com um sorriso, inclinando-se para ela por
cima da mesa. — Oh! —Sua expressão não mudou — Entendo — acrescentou, em um tom que deixava
claro que não era assim. Harry se deu por vencido. Era inútil brincar com sua secretária, ela nunca o pilhava. Mas não importava, ele só falou aquilo para tentar suavizar a má notícia que ia dar. Respirou fundo e deixou a maleta em cima da mesa da moça. Afrouxou a fivela e a abriu. — Dei uma olhada em seu novo texto — disse tirando o manuscrito — mas acredito que ele
tenha o mesmo problema que os anteriores. Para que um livro de etiqueta seja rentável, tem que dizer alguma coisa nova e diferente, tem que se destacar. — Sim, Milorde — Apertou os lábios com força e inclinou a cabeça para que ele não pudesse ver seu rosto — Entendo, no entanto senti certa esperança. — Eu sei — Ele a interrompeu, desejando dar por encerrada a conversa o mais breve possível. Ofereceu o monte de papéis preso pela corda — Sinto muito.
Ela ficou olhando sua obra durante um segundo, logo a pegou e a guardou na gaveta de sua mesa. — Quer tomar agora seu café, Milorde? — Sim, obrigado.
O serviu tal como gostava, forte, quente, sem leite e sem açúcar. Depois disso, Harry ditou um par de cartas até que os editores chegaram para a reunião. Três horas depois, acompanhou os homens à porta tratando de ser cordial, e sem entender por que não eram capazes de compreender os aspectos financeiros do negócio. Eles preferiam o brilhantismo literário ao sucesso de vendas, o que deixava Harry atônito. Se um livro não fosse atraente ao público, não importava que preciosas fossem suas metáforas, ou a sutileza de suas alusões literárias, ou o profundo que fosse o assunto de que tratava, não ia publicá-lo. Retornou ao seu escritório e viu que sua secretária estava pondo o chapéu.
29
— Está saindo, Senhorita Dove? — Sim, Milorde.
Inclinou a cabeça para olhá-la nos olhos. — Não está zangada pelo manuscrito, espero? — Perguntou ele. — É claro que não — respondeu a jovem, esforçando para se mostrar amável — Entendo os
motivos pelos quais o recusou, mas isso não me deterá. Harry não conseguiu dizer d izer que não continuasse tentando. — Esse é o espírito. O trabalho duro sempre é recompensado, ou assim dizem. — Considero apenas como um obstáculo a mais no caminho para o sucesso — disse ela enquanto punha as luvas — Como diz a Senhora Bartleby, depois de muitos “ nãos nãos” sempre sempre há um “ sim sim” .
— Quem?
Ela parou e olhou para ele surpresa. — A Senhora Bartleby — repetiu, e pelo tom, ficou claro que ele devia saber de quem se
tratava. Harry franziu o cenho, tentando lembrar se ouvira esse nome alguma vez, finalmente, sacudiu a cabeça. — Sinto muito, Senhorita Dove, mas não sei de quem se trata. — Mas...
Calou-se e ficou olhando para ele, com seus olhos amendoados fixos em seu rosto e os lábios entreabertos. A surpresa passando a incredulidade. O que se via no rosto da garota era tão distinto da costumeira inexpressividade que estava acostumado, que ficou assustado. — Encontra-se bem, Senhorita Dove? — Não sabe quem é a Senhora Bartleby... — disse de um modo muito estranho, como
tratando de aceitar algo impossível. Harry começou a se sentir incomodado. — Deveria saber? — Sorriu — Refresque minha memória, não recordo ter ouvido o nome
dessa pessoa. Algum de meus competidores competidores publicou um livro dela? — Não.
A Senhorita Dove engoliu em seco e olhou para ele fixamente, quieta como uma estátua. 30
O desconforto de Harry se transformou em preocupação. Sua secretária ia chorar? Não podia imaginar a Senhorita Dove fazendo tal coisa, mas sempre havia uma primeira vez para tudo. — Está branca como o papel. Está doente? — Não.
Sacudiu a cabeça, e saiu daquele estado de transe. Pareceu recuperar a compostura e ele perguntou para si mesmo se talvez tivesse imaginado tudo. — Obrigado por me dar sua opinião o pinião sobre meu manuscrito — disse — E como hoje é sábado
e como já é mais de meio dia, irei se não precisar de mais nada. Não esperou que respondesse e dirigiu-se para a porta. — Senhorita Dove? — Chamou Harry.
Ela estacou. Inclinou a cabeça, mas não o olhou. — Sim, Milorde? — Quem é a Senhora Bartleby?
A jovem demorou vários segundos para responder. — Ninguém importante — respondeu por fim, e saiu, fechando a porta atrás dela.
Ele franziu o cenho, ainda incomodado, seguiu com o olhar fixo na saída. Estava claro que ela estava decepcionada, mas Harry não podia nem imaginar o que tinha a ver com tudo aquilo a tal Bartleby. Sacudiu a cabeça e esqueceu o assunto. Cada vez que rejeitava um de seus manuscritos feria os sentimentos da Senhorita Dove, mas ela superaria. Sempre superava.
Ele nunca leu nenhum de seus livros, repetia Emma uma e outra vez, enquanto caminhava pela Chancery Lane, incapaz de acreditar. Não lera nem sequer um de seus manuscritos. Pensou que talvez estivesse enganada, mas no preciso instante em que ocorreu essa idéia soube que não era assim. Se Marlowe tivesse lido algum dos textos, saberia que a Senhora Bartleby era o pseudônimo que utilizava para assinar todos seus textos. Deus santo! santo! O nome da mulher aparecia na capa. Como podia não tê-lo visto? E com o passar do texto era mencionado em muitas ocasiões. Não, não estava cometendo nenhum erro. Todo esse tempo, todo o trabalho duro, toda sua lealdade e ele nem sequer se incomodou em ler o título? 31
A surpresa deu lugar à raiva, e esta começou a arder em seu estômago. Jamais havia ficado tão furiosa com alguém. Em todo aquele tempo, todos aqueles anos, ele só fingiu se interessar por sua obra. Era tudo mentira. Queria bater nele. Deveria tê-lo feito, mas quando percebeu o que acontecia ficou aniquilada. Ali, de pé, em frente a sua mesa, olhando-o, compreendendo pela primeira vez o que estava acontecendo, foi incapaz de se mover. Agora, já fora do edifício, a névoa do atordoamento havia se dissipado, mas já era muito tarde. Não, não era. Deteve-se na esquina da High Holborn, deu meia volta, e retornou à Bouverie Street. Ela o enfrentaria com suas mentiras, e diria o que pensava de sua hipocrisia. No momento em que imaginou a cena, Emma percebeu que era uma estupidez. Ele a despediria. Qualquer um faria isso diante de tal rabugice. Não valia a pena. Deteve-se, e desta vez um jovem que caminhava protestou indignado ao se chocar com ela. Desalentada, ficou ali na calçada, enquanto o jovem se esquivava, pensando que não podia enfrentar Marlowe. Não importava o quão satisfatório isso pudesse ser, ela não podia permitir o luxo de perder seu emprego. Zangada consigo mesma, Emma deu um murro no ar para desafogar sua frustração. Estava muito zangada, e precisava expressar seus sentimentos. Queria gritar, chorar, atirar coisas contra a parede, mas não podia fazer nada disso. Estava na rua, rodeada de gente e uma dama jamais manifestava suas emoções frente a outros. Retornaria a seu apartamento. Deu meia volta e acelerou os passos. Em seu quarto poderia atirar coisas, chorar e gritar até que o coração dissesse basta. Claro que caso quebrasse algo que gostasse depois lamentaria. E além do que, sua caseira poderia pensar que ela fosse uma lunática. Talvez inclusive chamasse à polícia. Que horror. Vendo que não havia nenhuma maneira de desafogar-se, respirou fundo e continuou caminhando. Percorreu a High Holborn, com seus saltos ressonando sobre o piso ao ritmo furioso de seus passos. Decidiu que o melhor a fazer era se demitir. Na segunda-feira pela manhã, na primeira hora renunciaria formalmente, dando-lhe os quinze dias de prazo, e conteria a ira o suficiente para pedir uma carta de recomendação. Sim, isso seria o mais sensato. Não, não é, disse uma voz em sua cabeça. Demitir-se não era o mais sensato. Ganhava mais de sete libras ao mês. Onde diabos ia conseguir essa quantidade de dinheiro? Homens como Marlowe, que acreditavam que uma mulher devia ter o mesmo salário que um homem, são tão difíceis de encontrar como os unicórnios. Ela possuía um pequeno e confortável apartamento em um bairro respeitável, a estabilidade de um posto de trabalho fixo, e uma caderneta de economias no banco que pagava um interesse anual do três por cento, sua proteção contra a pobreza quando fosse muito velha para trabalhar. Emma voltou a se deter e se apoiou no corrimão de metal que rodeava o Royal Music Hall. Suspirou. Havia ocasiões, como aquela, nas quais ser sensata era uma maldição. Ficou ali durante alguns minutos sem saber o que fazer, vacilando de um modo que deixaria furioso seu decidido pai. Não deveria agir com discrição o tempo todo. Algumas vezes teria que deixar levar-se pelo impulso e agir sem pensar, mas Emma não podia recordar de nenhuma ocasião em que tivesse feito isso. Quanto desejaria ser capaz disso. Separou-se do corrimão e se aproximou da esquina, disposta a pegar o primeiro ônibus que passasse. Pela primeira vez em sua vida o bom senso não ganharia. Ia a Mayfair e se daria de 32
presente o leque de plumas de pavão sem importar o preço. Tinha direito a se sentir bela e exótica no dia de seu aniversário. Ao entrar na loja de antiguidades e curiosidades Dobbs, levou um susto com a campainha, mas o Senhor Dobbs nem a notou. Estava ocupadíssimo atendendo um grupo de jovens damas que estavam diante do mostrador principal. Emma ficou paralisada. Uma das moças, pequena, loira e com um vestido de seda rosa, estava segurando o leque. Seu leque. Ela mostrou o leque para suas amigas. — Acham que ficará bem para o baile de Wallingford? — Perguntou, fazendo uma
reverência. Emma estava a ponto de gritar. Deu um passo para frente, e parou em seguida. A não ser que arrancasse o leque da mão da jovem, não podia fazer nada, além de esperar. Como um grupo de preciosas mariposas, as garotas deslizaram pela loja, com seus bonitos vestidos, tocando um e outro o leque, enquanto ela permanecia de pé junto à porta, com os dedos cruzados às costas e rezando para que o deixassem. Ela as ouviu falar do baile em que participariam seus pretendentes, dos cheios que estariam seus cadernos de dança. — Bem, devo levar ou não? —Perguntou a loira levantando a voz para que suas amigas
pudessem ouvi-la por cima de seu bate-papo. Todas concordaram em que as plumas de peru real combinavam à perfeição com o vestido de seda turquesa que ia estrear no baile. Com uma horrível sensação no estômago, Emma viu a garota comprar o leque. Sabia que sua reação era exagerada, e tratou de se tranqüilizar. Era só um leque, disse para si mesma, e tinha mais sentido se aquela jovem dama ficasse com ele do que ela. Se o tivesse comprado, não saberia o que fazer com ele. Pendurá-lo na parede, provavelmente, onde somente acumularia pó. Esta garota está vivendo sua temporada, disse Emma a si mesmo. Um momento de sua vida em que um leque de plumas é algo vital, uma época cheia de festas, danças e romances, de esperanças, sonhos e de planos para o futuro. Um futuro cheio de alegrias e possibilidades. Sua temporada ao contrário, já havia passado há muito tempo, se é que alguma vez chegou a existir. A mente de Emma retrocedeu doze anos. Lembrou-se de quando tinha dezoito, dezenove, vinte, de como estava apaixonada pelo Senhor Parker e como ficou ansiosa ao descobrir que ele sentia a mesma coisa. Lembrou-se do quanto havia desejado que ele se declarasse, e de que ele nunca o fez. E recordou-se de que o viu se casar com outra. Tia Lydia havia ficado doente nesta época. Emma recordou os cinco anos que passou cuidando, rezando para que ela melhorasse, para no final vê-la morrer e enterrá-la. 33
E agora estava com Lorde Marlowe, que nunca teve a menor intenção de publicar nenhum de seus livros, que nem sequer os havia lido. Cinco anos cheios de esperança e duro esforço, teclando como uma louca a cada noite, e tudo para nada. Aquela era a tônica de sua vida. Passou a juventude esperando e desejando coisas que nunca aconteceriam. Agora estava com trinta anos. O grupo de jovens damas encaminhou-se para a porta. Emma ficou de um lado, olhou como aquele absurdo e extravagante leque saía com sua nova proprietária, e algo se quebrou dentro dela. Muito tarde, pensou. Tinha perdido muitos anos pondo de lado o que queria e agora já era muito tarde. Com esse pensamento, todas as emoções que esteve tentando controlar desde que saiu da editora a sacudiram como um vendaval. Levou uma mão enluvada à boca para tentar manter a compostura, mas foi em vão. Como uma represa ao romper-se, toda a raiva e a tristeza a alagaram. E então, Emma começou a chorar.
34
Os homens sempre se perguntam por que as mulheres não se comportam de um modo racional. O que na realidade não entendem é que sim o fazemos. Senhora BARTLEBY Ensaio sobre o casamento, 1892
No que se referia a sua família, Harry considerava-se bastante tolerante, mas por Deus Santo, tudo tinha um limite. Suas irmãs se esmeraram nos últimos quatro dias, aproveitando qualquer ocasião, por menor que fosse para fazer campanha sobre os encantos de suas convidadas. E já não agüentava mais. Não podia suportar nenhum olhar mais de adoração de Melanie, nem o medíocre talento musical de Nan, nem a atitude “caça-maridos” de Felicity, e a estúpida conversa de Florence, não só ameaçava fazendo perder o senso de humor, mas também a prudência. Na segunda-feira pela manhã, quando informaram que as convidadas iam à festa de inauguração do iate de Rathbourne, ele compreendeu que estaria preso a elas em um lugar fechado, sem possibilidades de fuga, e soube que havia chegado o momento de fazer algo. Mas não sabia o quê. Não podia mandá-las de volta a Dillmouth. Isso faria sua mãe chorar, uma perspectiva espantosa. Quanto a suas irmãs, limitariam a procurar novas candidatas, que talvez fossem até piores. A vida social de sua família voltaria a cair em desgraça, já que Dillmouth não perdoaria quem desprezasse suas filhas e sobrinhas. Em resumo, tudo parecia uma confusão, e Harry sempre tentava evitar confusão por todos os meios. Infelizmente, as confusões nem sempre evitavam Harry. Fez uma parada no escritório para assinar os contratos Halliday, antes de seguir seu caminho para a festa de Rathbourne. Então seus planos se evaporaram e o seu dia converteu em um inferno. Harry descobriu o que era, de verdade, estar metido em um problema. Tudo começou com o Senhor Tremayne, o encarregado do periódico. Um homem de rosto corado, capaz de solucionar qualquer crise sem se alterar. Nesse dia não foi assim. Quando Harry chegou, ele estava esperando em frente às portas do edifício e pela sua expressão já viu que algo estava péssimo. — Por Deus Santo, Tremayne, o que aconteceu? Parece que morreu alguém. — Não tenho a planilha de tarefas diárias que a Senhorita Dove sempre prepara. — Ainda não a mandou? — perguntou ele surpreso enquanto atravessava o vestíbulo e as
salas onde os datilógrafos teclavam a toda velocidade. O outro homem seguia seus passos. — A Senhorita Dove não está. — O quê? — Harry parou na metade da escada e procurou seu relógio — É impossível. São
35
dez e meia. A Senhorita Dove tem que estar em algum lugar. Procurem-na. — O Senhor Marsden, da recepção — e ele apontou para o extremo oposto do vestíbulo —
ele disse que a Senhorita Dove ainda não apareceu hoje. — O mais provável é que não a tenha visto entrar — Despreocupado, guardou de novo o
relógio no bolso e continuou subindo. — Sim, Milorde — respondeu Tremayne, seguindo-o até o terceiro piso — Eu também
acreditei nisso. Mandei meu secretário investigar, mas quando Carter subiu, viu que nem o chapéu nem o casaco da Senhorita Dove estavam no prego que há fora de seu escritório. Procuramos pelo edifício, mas não está em nenhum lugar. Talvez esteja doente. — A Senhorita Dove nunca fica doente. Isso é um fato empírico, Tremayne, tão certo como
as leis da gravidade e que o Sol sai e põe-se cada dia. Os dois homens entraram no escritório de Harry e pararam junto a mesa da Senhorita Dove. O Visconde viu que não havia nada em cima, exceto um tinteiro, bem no centro da superfície. A máquina de escrever ainda estava com a capa e o prego estava vazio. — Vê Milorde? — O Senhor Tremayne abriu os braços — É como se nunca tivesse estado
aqui. — De acordo, diga a Marsden que a chame e descubra por que não veio. — Não acredito que a Senhorita Dove tenha telefone — respondeu o homem indeciso — E, embora tivesse, duvido que Marsden saiba o número — Fez uma pausa e pigarreou — Milorde, o que faço? Preciso dessa planilha — Antes que Harry pudesse dar uma resposta, a porta se abriu e o
Senhor Finch, o encarregado da divisão de livros, entrou na sala. — Milorde, Senhor Tremayne — Saudou a ambos, e logo olhou para o escritório vazio — A
Senhorita Dove deixou algum recado? — Minha secretária não chegou ainda, Senhor Finch — informou Harry.
O homem ficou surpreso, reação que Harry compartilhava completamente. — Milorde, a Senhorita Dove é sempre a primeira a chegar. — Não hoje, ao que parece. Deduzo que você também precisa de alguma coisa. — Sim. Preciso do catálogo de livros para o próximo ano. A Senhorita Dove o atualiza cada
mês. É a melhor, assegurando de que todos os autores cumpram com as datas de entrega, sabe? — De verdade necessita...?
A porta voltou a abrir-se, interrompendo assim a pergunta de Lorde Marlowe, e entrou o Senhor Marsden. — Há um mensageiro do Ledbetter & Ghent, Milorde. Diz que veio
recolher alguns 36
contratos assinados. — Maldição!
Harry voltou a olhar a mesa de sua no momento desaparecida secretária, mas ali não havia nenhum papel. Talvez a Senhorita Dove fosse ler os contratos durante o fim de semana, para que ele pudesse assiná-los na segunda-feira pela manhã. — Aguardem aqui — disse aos homens antes de entrar no escritório.
Como supôs, em cima de sua mesa havia um impecável monte de papéis. E sobre eles, um com seu nome escrito de punho e letra da Senhorita Dove. Aliviado por ter encontrado os importantes contratos, Harry passou os documentos em busca dos espaços onde deveria assinar. Fez, e logo retornou ao escritório que precedia o seu. Deixou uma cópia em cima da escrivaninha da Senhorita Dove para que logo ela a repassasse e arquivasse, e entregou a outra a Marsden. — Dê isto ao mensageiro de Ledbetter — disse, e voltou a centrar sua atenção nos outros
dois. O Senhor Tremayne foi o primeiro a falar. — Milorde, antes das três tenho que deixar as listas para imprimir as cinco edições da noite.
Não posso fazer isso sem essa planilha. Harry esfregou o rosto com as mãos, tentando encontrar uma solução. — Talvez esteja na mesa dela. Procure pelas gavetas e veja se a encontra. — E o que me diz de meu catálogo? — Perguntou Finch — Se algum autor está atrasando,
coisa mais que provável, preciso saber com tempo. — Sim, entendo, mas realmente precisa saber agora? Não pode esperar?
Finch procedeu a explicar com todo luxo de detalhes os motivos pelos quais não podia esperar. Na metade do discurso, a porta voltou a abrir-se, e entrou Lady Diana. — Há uma eternidade que o esperamos, Harry. Pode-se saber o que está fazendo? — Não está aqui — disse o Senhor Tremayne, fechando a última gaveta da mesa — procurei
em todos os lugares. — Milorde — interrompeu Finch — supõe-se que terei que me reunir com meus editores
dentro de quinze minutos. — Harry — insistiu — o iate de Edmund zarpará às onze. Se não se apressar, vamos perder a
festa. — Chega! — gritou ele por cima de todos, e procedeu a concentrar-se primeiro em
37
Tremayne — Houve uma época em que tirávamos a tempo as edições sem ajuda da Senhorita Dove. Estou certo de que pode seguir fazendo sem ela. Volte e encontre o modo de organizar essas edições. Não me importa como diabos o faça, mas faça — Logo se dirigiu ao outro — Senhor Finch, não vai precisar ter o catálogo atualizado hoje, assim retorne ao seu escritório e proponha a reunião. E que um de vocês faça o favor de localizar a Senhorita Dove. Quando os dois saíram, sua irmã entrou em ação. — Perdeu a Senhorita Dove? — É o que parece. — Que estranho. Não é nada típico dela. Espero que não tenha ocorrido nada grave.
Desapareceu sem dizer nenhuma palavra? — Não. Ao menos nada que... — Harry calou-se ao recordar a carta que havia em seu escritório — Um momento, talvez tenha dito algo.
Entrou em seu escritório e pegou a carta em cima da mesa. A mensagem era clara, concisa e completamente impossível de acreditar. — Que diabos?
Harry releu a missiva, mas não havia confusão possível naquelas cinco linhas datilografadas. A assinatura era manuscrita e estava abaixo do parágrafo. — O que aconteceu? — Harry levantou a vista e viu que sua irmã estava em pé na soleira da
porta. — Ela se demitiu — respondeu ele, incapaz de acreditar no que estava dizendo, apesar de seus lábios estarem pronunciando as palavras — A Senhorita Dove foi embora. — Sério? Deixe-me ver — Diana atravessou a sala, agarrou a carta das mãos dele e a leu. Depois olhou para ele e sorriu e isso irritou Harry — Parece surpreso, irmãozinho. — É claro que estou surpreso. Não deveria estar? — Bem, Harry, não é que queira criticá-lo, mas eu não gostaria nada trabalhar para você. — A Senhorita Dove jamais se queixou. — Pelo visto sentia-se bastante infeliz para se demitir. — E o que tem a ver a felicidade com tudo isto? Não pago para que seja feliz —Recuperou a carta de um tapa — Quando veio aqui pela primeira vez foi solicitar um posto de datilógrafa. Fiz-lhe
um favor ao convertê-la em minha secretária. Contratei uma mulher, uma mulher sem experiência, como secretária pessoal. Pago um salário muito maior do que conseguiria em outro lugar. Pode ser feliz em seus momentos livres. — Contratou-a para demonstrar na Câmara que tinha razão — Recordou Diana — Ou não se
38
lembra? Segundo sua radical idéia, o problema do excesso de mulheres como carga passiva da Sociedade poderia ser solucionado se minhas companheiras de sexo tivessem acesso aos mesmos trabalhos que os homens, e assim vocês não teriam que nos casar e nos manter. Uma idéia absurda. — Não é absurda. É uma idéia completamente lógica. — E sabe por que o fez? — prosseguiu sua irmã como se ele não tivesse aberto a boca —
Porque é um cínico e não acredita no casamento. — Não sou um cínico! — replicou antes de recordar que jurou não falar com Diana sobre isso. Voltou para o assunto que os ocupava — O que importa agora é que dei à Senhorita Dove uma
oportunidade única. Escolhi-a ao azar entre uma multidão de candidatos. E, depois de cinco anos de satisfatória relação profissional, ela se demite — Harry começou a ficar nervoso — Como pode me fazer isto depois de tudo o que fiz por ela? Onde está o sentido de lealdade? — A verdade é que não vejo onde está o problema. Encontre outra secretária. Tenho certeza
que será muito fácil. Chame uma agência ou algo do estilo. — Não tenho intenção de contratar outra secretária ou secretário. Estou muito satisfeito
com a que tenho. — Tinha — Corrigiu o sua irmã — Ela se demitiu. — Nego-me a aceitar sua demissão, e direi quando a encontrar. Não vou permitir que ela me
abandone. — Vai obrigá-la a ficar? Com essa atitude tenho certeza que a convence.
Harry olhou para Diana, que seguia sorrindo. — Ocorre algo melhor? — Dado que sou incapaz de imaginar o porquê de uma mulher querer trabalhar para você,
não, não me ocorre nada. Mas talvez deva começar a se perguntar por que ela foi embora. Tem que ter algum motivo para que o tenha feito sem avisar. — Motivo? — Isso o fez pensar. Calou-se por alguns segundos e pensou um pouco —
Recusei seu último manuscrito. — Mas já fez isso antes, não é assim? — Sim, mas desta vez me pareceu pior. Esperarei alguns dias e irei vê-la. Assim dará tempo
que passe o aborrecimento. — Se é que ela tenha se demitido por esse motivo.
Harry não fez caso e seguiu com seu raciocínio.
39
— É uma mulher muito sensata — disse, golpeando a carta com a mão enquanto falava —
Incapaz de fazer algo tão irracional ou impetuoso como isto. Dois dias bastarão para que perceba que cometeu um engano. Com certeza ficará feliz se eu voltar a oferecer-lhe o posto. Agradecerá por me permitir remendar seu erro. — Agradecerá? — Direi a ela que não guardo rancor e darei um aumento de salário, e tudo ficará esquecido.
Diana soltou uma gargalhada. Deu meia volta e encaminhou-se para a saída. — O que é tão engraçado? — Prometa-me que me contará como terminará tudo isto — Agarrou o trinco — Deduzo que não vem à festa de Edmund — Sem esperar uma resposta, Diana o deixou e saiu fechando a porta.
Emma obrigou-se a ficar calma. Colocou as mãos por cima do manuscrito da Senhora Bartleby que descansava em seu colo, para assim não tocar o cabelo. Tratou de não pensar que todo seu futuro dependia do que acontecesse naquela entrevista. Não podia dizer que fosse a decisão mais conservadora. Nem tampouco a mais sensata. Mas estava farta de ser conservadora e sensata. Dois dias atrás desmoronou na loja da Rua Regent. E depois de passar a noite de seu trigésimo aniversário chorando, abraçada ao Senhor Pardal, resolveu mudar de vida. No domingo pela manhã colocou mãos à obra. Depois da missa e de várias preces pedindo ajuda ao Altíssimo, decidiu seguir até a editora para escrever uma carta de demissão e deixá-la em cima da mesa de Marlowe. Sabia que ficava mal não avisá-lo com antecedência, mas os quinze dias regulamentares que deveria passar no escritório dariam muito tempo para questionar sobre sua decisão e que tivesse tentações de mudar de opinião, Marlowe acabaria conseguindo que ficasse. Agora, por fim era segunda-feira, ele já teria lido sua carta e ela não podia voltar atrás. Era o amanhecer de um novo dia e de uma nova Emma Dove. Jamais voltaria a ficar sentada vendo a vida passar ao seu redor. A partir desse momento, perseguiria seus sonhos e não permitiria que eles escapassem de suas mãos. Jamais esteve tão assustada. — Senhorita Dove?
Levantou a vista. O secretário estava diante dela. — Siga-me, por favor.
Emma ficou em pé e tratou de controlar as borboletas que sentia no estômago. Com uma mão segurando os manuscritos, seguiu-o pela escada até o primeiro andar, onde um secretário, a 40
esperava atrás de uma mesa. Apontou uma porta que havia a suas costas. — Pode entrar Senhorita.
Ela ficou olhando a entrada um instante, e depois inspirou fundo e passou ao lado do secretário para entrar em um escritório com móveis tão caros como os de Marlowe, mas diferentes dos dele, não parecia ser um autêntico lugar de trabalho. — Senhorita Dove? — Um homem muito alto e muito, muito atraente levantou-se e saiu detrás da mesa com um sorriso nos lábios — É um prazer poder conhecê-la por fim. — Por fim, Milorde? — Observou aturdida em como ele inclinava a cabeça e beijava a mão. — Toda a Fleet Street ouviu falar da excepcional secretária de Marlowe. Sei muitas coisas sobre você, Senhorita Dove — acrescentou sem soltá-la — e tudo coisas boas.
O assombro de Emma crescia cada vez mais. — Gostaria que pudesse dizer o mesmo, Milorde — murmurou — Também ouvi falar muito
de você por Lorde Marlowe, mas de maneira não muito aduladora. Lorde Barringer jogou a cabeça para trás e riu. — Tenho certeza disto.
41
No que corresponde às mulheres, um Cavalheiro tem que aprender a esperar o inesperado. Pois é o que está acostumado a ocorrer. Lorde Marlowe, Guia para Solteiros, 1893
O apartamento da Senhorita Dove ficava no bairro do Holborn, onde uma série de edifícios configurava um bairro muito respeitável, ao longo da Little Russell Street. Harry parou em frente ao número 32, uma construção de tijolo avermelhado com cortinas de rendas. Um pequeno letreiro pintado à mão anunciava em uma das janelas que havia um apartamento livre para alugar, mas só disponível para “mulheres de boa reputação ”. Um par de vasos com gerânios flanqueavam a porta verde, cujo trinco resplandecia sob a luz do sol ao entardecer. Justamente o tipo de casa onde viveria um modelo de virtude como a Senhorita Dove, pensou Harry ao entrar. O vestíbulo era um pouco escuro comparado com a tarde tão luminosa, mas o agradável aroma limão falava de limpeza. Quando seus olhos ficaram adaptados à escuridão, pode distinguir um salão a sua esquerda e a sua direita o começo de uma escada com um corrimão metálico, que conduzia a uma espécie de patamar onde havia uma enorme mesa de carvalho. Atrás, na parede, uns cubículos numerados continham mensagens para os inquilinos. Nem a caseira, e nenhum membro do serviço da casa pareciam rondar por ali, mas Harry não precisava de ajuda. Procurou o número do apartamento da Senhorita Dove no fichário, e em seguida subiu até o quarto andar, onde os apartamentos 11 e 12 estavam frente a frente, e havia um lance a mais de escada que conduzia ao piso superior. Atrás da porta número 12, pode ouvir o teclar de uma máquina de escrever. Quando bateu na porta, o som foi interrompido, e segundo mais tarde Emma abriu. — Lorde Marlowe!
Parecia surpresa ao vê-lo, embora ele não entendesse por que. Tinha certeza que sabia das conseqüências de seu repentino abandono. E se ela não compreendesse o alcance dos problemas que a sua ausência causou, ele certamente compreendia. Com o passar do dia, o desfile de membros de sua planilha em seu escritório foi constante, reclamando informe, guias, horários e todo tipo de coisas que a Senhorita Dove estava acostumada a fazer e que Harry nem sequer sabia que existiam, mas isso significava que eram imprescindíveis para que tudo pudesse funcionar. A princípio, teve a intenção de aguardar alguns dias antes de ir vê-la, mas depois de oito horas sem ela, percebeu que não podia esperar tanto. Precisava que ela voltasse ao seu posto de trabalho no dia seguinte, na primeira hora, ou haveria um motim no periódico. 42
Tirou o chapéu e a cumprimentou. — Senhorita Dove. — O que está fazendo aqui? — Olhou o relógio que levava pendurando na camisa branca —
São seis e meia. A que horas terminou a festa de Lorde Rathbourne? — Eu não fui — Levantou a carta de demissão dela — Minha secretária se demitiu. E por sua
culpa meu escritório parece um caos, as edições da noite ficarão atrasadas, e perdi o navio. — Lamento ouvir isso.
Mas não parecia se lamentar. Parecia até, maldição, que estava contente. Uma curvatura do lábio que se levantou alguns milímetros, como estivesse gostando de ver que havia problemas. Harry pensou no dia horrível que viveram, tanto ele como seus empregados e não percebeu a graça. — Vejo que desfruta vendo o sofrimento que passamos com sua ausência, Senhorita Dove. — Nem um pouco — respondeu ela de maneira automática e mentindo de novo.
Parecia claramente contente. — Pois deveria ficar alegre — disse ele enquanto guardava a carta no bolso do casaco —
Todos os meus diretores passaram o dia correndo como coelhos assustados ao ver que você não estava. — Mas sem nenhuma dúvida, você não. — Eu estava muito atônito para ficar assustado. Sua demissão foi inesperada. — Sério? — O brilho de satisfação desapareceu de seu olhar e foi substituído por uma
espécie de dura determinação. — Sim — Assinalou para o interior de seu apartamento — Posso entrar para discutir o
assunto com você um momento? — É uma demissão, sem mais. O que quer discutir? — Depois de cinco anos, não mereço sequer a cortesia de poder conversar com você?
Ela pensou um instante. Aquela falta de entusiasmo não era nada bom. Talvez tenha sido impetuoso em procurá-la, talvez devesse ter dado mais tempo para que ela pensasse nas conseqüências do que havia feito, mas agora já não poderia voltar atrás. — Viram você entrar? — Perguntou a jovem, olhando atrás dele — Minha caseira? Algum
criado? — Não.
Harry recordou o letreiro da janela e entendeu por que a pergunta, mas estava mais preocupado em recuperar sua secretária se pudesse, e muito menos com uma caseira histérica ou 43
alguns criados fofoqueiros. — Ninguém me viu Senhorita Dove. Mas se ficarmos no corredor, alguém acabará nos
vendo. Emma abriu a porta para que ele pudesse entrar. — Está bem. Entre, mas só um momento, e quando for embora, assegure-se de que
ninguém o veja. Não quero que pensem... Pensem coisas. O apartamento dela o surpreendeu, pois era diferente de qualquer outro que tivesse visto. Era pouco convencional e com detalhes muito exóticos. Havia potes dourados cheios de incenso em cima da mesa, uma caldeira de cobre com carvão, uma cesta redonda repleta de almofadões e um tapete turco sobre o chão. Havia também dois sofás de veludo creme em torno de um pufe de couro que aparentemente servia de mesinha de chá, já que em cima dele havia uma bule de esmalte. Cortinas de brocado na cor bronze flanqueavam duas janelas pelas quais entrava a luz do entardecer. Entre ambas as janelas havia uma estante, com muitos livros arrumados, e uma escrivaninha marrom, com uma infinidade de compartimentos secretos. No outro extremo do quarto, uma pesada porta de carvalho maciço conduzia a outro aposento do apartamento. Junto a ela, abria-se o balcão que ficava ao lado da escada de incêndios, e uma mesinha onde estava a máquina de escrever. Os dois espaços do pequeno salão estavam divididos por um biombo de madeira grafite. Embora fosse um apartamento pequeno, dava a sensação de estar rodeado de um suntuoso conforto, e não era absolutamente o tipo de casa que imaginou que sua nada excêntrica Senhorita Dove teria. Algo roçou sua perna e ao abaixar a vista, viu um enorme gato aos seus pés. Estava muito gordo para poder passar entre seus tornozelos, assim deu a volta ao redor dele e esfregou-se contra suas pernas. A calça de lã cinza que vestia, ficaria cheia de pelo laranja. Harry olhou resignado para o gato. — Tem um gato. — Senhor Pardal — Sentou-se em uma poltrona e indicou que fizesse o mesmo.
Harry o fez e quando deixou o chapéu a um lado, o enorme gato saltou sobre seus joelhos. Surpreso que um animal tão obeso pudesse saltar, observou atônito como ronronava em seu colo. — Ele gostou de você — comentou a Senhorita Dove surpresa. — Sim — respondeu ele com pesar.
Embora ele os detestasse, fazia tempo que havia assumido que os gatos o adoravam. O motivo era claro, Deus tinha mesmo péssimo senso de humor. Quando o animal cravou as garras para esfregar-se com abandono, apertou a mandíbula e suportou com dignidade. 44
— Senhor Pardal? Não me admira que o chame assim, Senhorita Dove. Deste modo, ambos
têm nome de pássaro. — Sim, mas não foi por isso que o batizei com esse nome. Fiz porque ele gosta de perseguir
os pardais que há no telhado. Sempre fez isso, desde que era um gatinho. Quando caça um, desce pela escada de incêndios e me traz. — Que coisa — Que criaturas sanguinárias eram realmente os gatos. Tratou de relaxar — A
julgar por seu aspecto, diria que come muitos desses pássaros. — Está insinuando que meu gato está gordo? — Absolutamente — mentiu ele, e decidiu que tinha chegado o momento de mudar de assunto — Senhorita Dove — começou, empurrando o terror dos telhados para o chão — Vim
oferecer-lhe uma oferta de paz. Sei que está zangada porque recusei seu manuscrito, mas você sabe que um editor deve confiar em seus instintos. — É claro. — Não posso publicar algo que acredito não dará benefícios — Sorriu com amabilidade —
Seria um péssimo homem de negócios se tomasse decisões tão pouco acertadas. — Sem dúvida.
Fez-se um grande silêncio e Harry teve a sensação de que estava empurrando uma carga muito pesada ladeira acima, mas continuou. — Posso entender que esteja magoada e talvez inclusive um pouco desanimada, mas com
certeza, isso não justifica que tenha deixado seu trabalho. — É impressionante o quão bem compreende meus sentimentos.
Harry decidiu mudar de tática. — O que vai fazer agora? Aonde irá? Os trabalhos respeitáveis, em especial para mulheres, não são tão fáceis de encontrar — Assinalou ao seu redor — Estou convencido de que em Londres
ninguém pagará o bastante para poder continuar vivendo aqui. — Milorde... — Mas inclusive no caso de que consiga outro trabalho com um salário similar, o que acontecerá quando perceber que não gosta? Ou quando seu chefe não a tratar bem? — Fingiu preocupação — O mundo pode ser um lugar muito perigoso para uma mulher sozinha, Senhorita
Dove. O que acontecerá a você? Sem mim, seu futuro é incerto, e sabe disso. — É muito amável de sua parte preocupar-se tanto com meu futuro — O tom sarcástico da
voz dela acentuou-se por momentos. — Se não retornar, o que me preocupa será o futuro de ambos — respondeu ele — E
também o de meus empregados. Eles precisam tanto de você como eu. 45
Emma sorriu. — Não será necessário que você e nem ninguém na Marlowe Publishing fiquem
preocupados comigo ou com meu futuro. Já encontrei um novo trabalho. Surpreso, ergueu-se de repente no sofá. — O quê? Tão cedo? — Sim. Vou trabalhar para Lorde Barringer. — Barringer? — Harry não estava acreditando no que estava ouvindo — Esse pomposo e
egocêntrico hipócrita? O sorriso da moça alargou-se até tornar-se viva imagem da satisfação. — O mesmo.
Ele sacudiu a cabeça, convencido de que o que ela estava dizendo era impossível. —Barringer contratou uma mulher como secretária? Não acredito. — Não só me contratou como secretária. Vai publicar meus escritos.
Harry começou a rir. Não pode evitar, a idéia era completamente absurda. Como era de esperar, não pareceu tão engraçado. Deixou de sorrir, entrecerrou os olhos e ficou sério de repente. — Desculpe. Temo que tenha me interpretado mal o meu sorriso, Senhorita Dove. Eu ri pela
ironia da situação. — Ironia? — Sim. Devo contar-lhe a verdade sobre Barringer. Embora seja Conde, e demonstre ser um
cavalheiro, na realidade não o é. E embora pareça muito distinto e muito correto, em sua vida privada é justamente o contrário. Que Barringer publique um livro de etiqueta é como se o diabo falasse sobre moral. Nenhum sorriso, nem a mínima apreciação da ironia apareceram no rosto da jovem, que disse muito séria. — E como sua vida privada é um exemplo, estou certa que não seria irônico que você fosse publicar livros de etiqueta — Não deu a ele a oportunidade para responder. — De qualquer forma, Lorde Barringer não vai publicar meu livro. Escreverei para ele uma
coluna semanal, que será publicada no Social Gazette. E, claro que a etiqueta terá um peso importante, não é o único assunto do qual vou falar. Antes que pudesse terminar, Harry já havia deduzido o que Barringer pretendia. 46
— Contratou-a para esfregar na minha cara, e nada mais. Odeia-me e como sabe quanto
dependo de você, desfruta com a idéia de roubar minha secretária. Uma coluna semanal dará a possibilidade de reviver essa sensação de triunfo a cada sete dias. — Não ocorreu pensar que talvez isto não tenha nada que ver com você? Que talvez tenha
decidido publicar meus artigos porque acredita que são bons? — Barringer não reconheceria um bom escritor nem se mordesse o traseiro. Estudou em
Oxford. Isso tampouco a fez sorrir. — Não me surpreende que goze da capacidade de Barringer para distinguir um bom escritor.
Mas o que não entendo é por que ataca meus livros quando nem sequer os leu! Harry tinha a sensação que afundava cada vez mais, mas não ia mentir a respeito de seus textos para sair com a sua. — Li o suficiente para saber que não estava interessado em publicá-los.
Ela ficou em pé, dando por terminada a conversa. — Então, não se importará se Lorde Barringer o fizer. — Isso não é o que me preocupa — Ele também ficou em pé — O que me preocupa é perder
a minha secretária, uma secretária que não tinha experiência, nem referências, nem sequer uma carta de recomendação quando a contratei, mas a quem dei uma oportunidade. Ela suspirou indignada. — Que generoso de sua parte. — É claro que fui generoso! Quem mais a teria contratado? Quem pagaria o mesmo salário
de um homem? Quem teria dado um pagamento extra no Natal e as tardes dos sábados livres? Ninguém. Barringer não, disso pode estar certa. — E em troca de sua generosidade, eu cumpri com meu dever com acréscimo durante cinco
anos! Não pode queixar-se de nada. — De nada? Demitiu-se sem sequer me dar uma oportunidade, sem nem comentar que não
estava satisfeita com seu posto, sem me dizer nada sobre seu mal estar. Aceitou uma oferta do meu maior competidor, um homem que me odeia e que morre de vontade de surrupiar informações confidenciais sobre mim. — Ninguém vai surrupiar nada, posso garantir. — E — prosseguiu ele, ignorando o que ela dizia — você cometeu este ato de deslealdade,
sem observar as mínimas normas de etiqueta, que ditam que, no mínimo, teria que me avisar com 47
antecedência. Pela primeira vez, a Senhorita Dove pareceu envergonhada. E com motivo. — Lamento não tê-lo avisado antes — deu meia volta e se afastou dele — Tudo o que posso dizer — acrescentou de costas e olhando pela janela — é que tomei a decisão com a absoluta
convicção, de que não teria nenhum problema em encontrar em substituto. — Um substituto para você? Será que ainda não entendeu por que vim? Não deixei bastante
claro? Não quero substituí-la. Quero que você abandone para sempre todas essas tolices sobre escrever livros de etiqueta e que volte a trabalhar para mim, que é onde tem que estar. — Escrever livros de etiqueta não é nenhuma tolice! — Voltou-se com o queixo levantado. O sol refletia nos cabelos dela — E, devido ao fato de que você está sendo tão sincero, eu farei o
mesmo. O que escrevo é importante e útil, e não permitirei que continue me ofendendo. No que se refere a dizer que tenho que voltar com você, deixe que diga que estou farta! Comportei-me como uma trabalhadora leal e de confiança, fiz tudo o que se esperava de mim e muito mais, e tudo o que recebi foi mais trabalho. — E um salário muito generoso — contra atacou ele.
Ela o ignorou. — Você me encarregava de trabalho após trabalho, e nunca podia dedicar nem um minuto
para falar comigo sob meus escritos, aproveitou-se de mim tanto como pode. Inclusive me mandava comprar os presentes para suas amantes! — Pedi, jamais exigi. E se isso a incomodava tanto, deveria ter dito antes. — Jamais me valorizou, nem a mim, nem nada do que fiz pela Marlowe Publishing — continuou como se ele não tivesse dito nada — Sempre acreditou que estava seguro comigo. Pois
bem, já estou farta! A frustração de Harry desapareceu dando lugar à surpresa à medida que escutava as críticas dela. Jamais a viu tão zangada, nem exteriorizando nenhuma outra emoção. Aquela não era a Senhorita Dove que ele conhecia. Não era a complacente secretária que ficou na frente dele, uma dúzia de vezes cada dia durante os últimos cinco anos, disposta a seguir suas instruções e a obedecer a suas ordens com um sorriso e sem pestanejar. Aquela não era a Senhorita Dove que sempre se comportava com eficiência, exatidão e decoro. Era outra pessoa, alguém que não conhecia. Ficou olhando para ela, e algo no modo em como ela permanecia ali quieta, em como os raios do sol banhavam sua figura, chamou a atenção dele. — Senhorita Dove — disse surpreso — você é ruiva. — O quê? — Piscou — O que disse? — Você é ruiva. Jamais percebi. Sempre acreditei que tivesse cabelo castanho, mas não é
assim. Contra a luz do sol percebe-se claramente que é ruiva. 48
Ela franziu o cenho e o fulminou com o olhar. — Já sei de que cor é meu cabelo, obrigada. E que diabos isso tem a ver com o assunto?
Ele conseguiu fazê-la zangar-se ainda mais. — Calma, não há razão para tanto — tentou acalmá-la — Algumas mulheres não gostam de
ser ruiva, mas não se preocupe. Seu tom não é muito avermelhado, mas bem parece marrom, mas quando está sob a luz do sol, torna-se como cobre fundido. É como... — Estacou. Tinha a sensação de ter descoberto algo extraordinário — É bonito. Ela não gostou do elogio. De fato, foi como se a tivesse insultado. — Oh! — Exclamou, apertando os punhos dos lados — Você é o homem mais manipulador
que já conheci! E o mais falso. — Falso! Não acredita em mim? — É claro que não! É muita coincidência que precisamente hoje me faça um elogio. Além disso, você gosta de morenas — Viu a surpresa dele e sorriu satisfeita — Vê? Lorde Marlowe, eu o
conheço bem. Os cinco anos que passei trabalhando para você fizeram com que o conhecesse como a palma de minha mão. Assim é inútil tentar me elogiar com galanteios absurdos. Faz isso para me conquistar, para conseguir o que quer, ou para sair-se bem de uma situação desagradável, jamais entendi como ninguém, em especial as mulheres, podem ter sucumbido a essa tática, mas eu não sou tão tola. É ruiva e, além disso, tem caráter — pensou surpreso — Não sabia que ela possuía nenhuma das duas coisas. — Jamais acreditei que fosse tola. — Você é um tesouro, Senhorita Dove — o imitou ela — Não sei o que faria sem você,
Senhorita Dove. De verdade acreditava que esses comentários vazios fossem fazer com que me sentisse valorizada ou importante? Pois não — Prosseguiu ela, respondendo a si mesma, antes que ele pudesse falar — Mas agora quer que eu volte, e recorre aos elogios, como se algo tão absurdo como elogiar a cor de meus cabelos fosse servir de alguma coisa! Não tinha passado pela cabeça de Harry a idéia de convencê-la com adulações. Tinha razão ao dizer que ele estava acostumado a gostar das morenas, mas isso não implicava que tivesse mentido ao elogiar a cor dos cabelos dela. O incomodou que ela acreditasse nisso. Abriu a boca para deixar as coisas claras, mas a jovem não deixou, mas sim respirou fundo e continuou falando. — Além disso, já mentiu antes, assim por que deveria acreditar no que está dizendo?
Harry parou ao ouvir essas palavras. Ele não era nenhum mentiroso, e ninguém jamais o havia acusado disto. — Eu não sou mentiroso, Senhorita Dove. Apesar de tudo o que você possa pensar sobre
mim e meus motivos, eu nunca minto. Reconheço que sou um manipulador, duvido que eu possa ter sucesso nos negócios sem essa qualidade, mas não sou um mentiroso. 49
— Pois digamos que é extremamente avoado. Gosta mais assim? Nem sequer sabia que “Senhora Bartleby ” é meu pseudônimo e isso aparece em todas as capas de cada um dos
manuscritos que dei! — Era disso que se tratava? — Por fim descobriu quem era a bendita Bartleby, embora, nesse momento, ter satisfeito sua curiosidade era o que menos importava — Deus santo, jamais
olho as capas de seus manuscritos. Já sei que os escreveu. — Deixando de lado essas tolices, se tivesse lido minha obra saberia quem é. Fez-me
acreditar que havia lido meus textos, quando na realidade não foi assim! Aquilo começava a ser ridículo. — Li o suficiente para formar uma opinião. É o que faz um editor. A não ser que algo especial
atraia minha atenção, nunca leio um manuscrito inteiro. Se lêssemos tudo o que recebemos, jamais publicaríamos nada. E depois de passar cinco anos trabalhando para mim, abrindo as cartas e vendo a quantidade de manuscritos que recebo diariamente, deveria saber. — O que sei é que jamais publicará nada que eu tenha escrito porque é incapaz de analisá-lo
com objetividade. Você é muito curto de idéias. — Eu não sou curto de idéias! — Finalmente, resignei-me a aceitar esse seu defeito — continuou ela — e decidi levar meus
originais a outra parte, a alguém que respeite meu trabalho. A alguém que me respeite. — Respeito? — Essa insinuação de que não a respeitava era um insulto de tal calibre que Harry começou a se zangar de verdade — Se acredita que Barringer terá o menor respeito por você
ou por seu trabalho, está muito enganada. Vou ser franco, você não é de sua classe, e Barringer é desses pomposos asnos que tanto abundam neste mundo, que marcam sempre as distâncias. É um esnobe e um hipócrita. — Ele disse algo parecido sobre você. — Com certeza que sim. — E ao longo destes últimos anos, tive provas suficientes que demonstram que o que ele me
disse é verdade. — Que provas? Você diz que me conhece, mas se fosse assim não teria acreditado em nada
do que disse o inapresentável Barringer. Acredita que sabe algo de mim? É óbvio que não me conhece, Senhorita Dove. — E se você acha que vou voltar para meu antigo trabalho só para tolerar que siga
desprezando meus escritos, dizendo que são tolices, é você que não me conhece, Milorde! Harry ficou olhando para ela. Seu cabelo avermelhado e brilhante emoldurava seu rosto de faces rosadas, e tinha os punhos apertados em ambos os lados do corpo e então a ira dele se desvaneceu de repente. 50
Ela havia trabalhado para ele durante cinco anos, durante os quais ambos toleraram certas facetas do caráter um do outro. Ela acreditava que ele era falso e mentiroso, e só Deus sabia quantas coisas mais. Ele estava convencido de que era fria, desapaixonada, dócil, e sendo sincero consigo mesmo, quase desumana. Parecia que ambos estavam enganados. — Quero que vá embora.
Essas palavras fizeram com que ele saísse de seus pensamentos. — Desculpe?
Ela chegou mais perto e com o queixo levantado olhou bem nos olhos dele. — Disse que quero que vá embora.
Que outras coisa não sabia sobre ela? Que mais tinha passado por cima? Observou o rosto da garota, mas não como havia feito cada dia, mas sim como se a estivesse vendo pela primeira vez. Aqueles olhos amendoados, isso já sabia, mas o que não sabia era que tinha uma íris de bordas douradas que cintilavam quando estava zangada. Até então, nunca havia fixado nas sardas que tinha no nariz e nas maçãs do rosto, como pó de fadas, nem em uma pequena cicatriz em forma de estrela que via em sua face. Até esse instante, não havia percebido de que seus cílios brilhavam nas pontas, como se estivessem salpicados de ouro. — Você está surdo? — Levantou as mãos e o empurrou com todas as forças. Ao ver que ele continuava imóvel, voltou a empurrar — Disse que vá embora!
Harry devia pesar no mínimo cinqüenta ou sessenta quilos a mais que ela, assim não moveu nem um milímetro. Ele continuava olhando-a sob aquela nova perspectiva, como se nunca a tivesse visto antes. E, para sua surpresa, descobriu que gostava do que via. Não era uma mulher bonita, mas ali, com as faces rosadas e os olhos soltando faíscas, era irresistível. A Senhorita Dove era na realidade muito humana. Vendo que não servia de nada que o empurrasse, Emma se deteve. — Vá embora agora mesmo, Lorde Marlowe — exigiu — Se não sair, chamarei à polícia. Há
uma delegacia na esquina. Sabendo que nada poderia convencê-la, Harry tentou pela parte econômica. — Subirei seu salário. O que parecem dez libras ao mês? — Não! — Voltou a empurrá-lo, mas desta vez ele permitiu, sabendo que, do contrário, não
obteria nada. — Vinte — disse ele.
Era um salário exorbitante para uma secretária, mas podia permitir-se. — Não.
51
—Trinta. E terá folga todos os sábados, não só pela tarde. — Não, não, não! — Com cada negativa, aproximava-o um pouco mais da porta — Não se
trata de dinheiro, nem de dias de folga. — Então, do que se trata? — Perguntou ele enquanto ela parou ao lado do sofá para agarrar o chapéu dele — Que feri seus sentimentos? — Não — Com uma mão colocou-lhe o chapéu e com a outra seguiu puxando a dele —
Quero ser escritora, e não quero continuar trabalhando para você. — Não aceito sua demissão. — Tem que aceitar.
Harry tirou o chapéu e o levou ao coração. — O que tenho que fazer para conseguir que volte?
Entre dentes, ela suspirou exasperada. — Alguma vez se dará por vencido? — Não, quando quero algo de verdade. Sou obstinado. E, como diz me conhece tão bem, já
deveria saber. — Então temos algo em comum, Milorde, porque eu também sou muito obstinada. Eu teria
que contar a verdade sobre Barringer. Isso é justo. — Suplico que seja razoável. Como minha secretária, tem o futuro assegurado, enquanto
que com o Barringer as coisas não vão sair bem. Verá, ele tem... — Não quero ter o futuro assegurado — ela o interrompeu — e não vou mudar de opinião!
Passei a vida sendo razoável. E, além disso, acredito que vou ter sucesso. Há muita gente que se interessa por boas maneiras, embora seja óbvio que você não é uma delas. — Desconhece as circunstâncias financeiras de Barringer. Não me surpreende que não tenha
contado, mas você deveria saber. — Ele não é você. Isso é tudo o preciso saber — Distanciou-se dele e abriu a porta.
Depois de olhar para ambos os lados, voltou a olhá-lo e esperou. Ao ver que não se movia, suspirou esgotada e voltou colocar-se diante do Visconde. Apoiou as palmas das mãos em seu torso, amassando de passagem o chapéu, e começou a empurrá-lo para o corredor. — Conseguirei tornar-me uma escritora. É o que sempre quis ser. Barringer ficará rico graças a mim, e esfregará seu sucesso na sua cara, coisa que, segundo você, é tudo o que pretende — deteve-se sob o marco da porta, com a respiração entrecortada pelo esforço — Mas o melhor de
52
tudo, é que nunca mais terei que comprar presentes para suas amantes! — Já ia a fechar a porta quando acrescentou — E o Senhor Pardal não está gordo! — E após essas palavras, bateu a porta. Harry ficou ali de pé, incapaz de acreditar no que acabava de acontecer. Ele apareceu ali como um chefe benevolente, disposto a oferecer uma segunda oportunidade para sua confusa secretária. Imaginava que, então, ela pensaria melhor nas coisas e que depois encontraria a razão e pela manhã estaria de volta a sua mesa. Em vez disso, ela bateu literalmente, com a porta na sua cara, e sua dócil e eficiente secretária trabalharia para o imbecil do Lorde Barringer. Harry passou a mão pelo rosto e perguntou para si mesmo, se assim como Alice, teria passado para o outro lado do espelho e teria ido parar em um mundo no qual todos estavam loucos e nada, nem ninguém era o que parecia. Mas uma coisa estava clara, a Senhorita Dove não estava consciente da difícil situação financeira de Barringer, e não fazia nem idéia de que o destino iria convertê-la novamente em empregada de Harry em pouco tempo. Barringer sabia muito bem fingir que possuía dinheiro, mas ele sabia que os credores espreitavam o Conde em cada esquina. Rapidamente Barringer, seria obrigado a vender o Gazette, e quando ele comprasse, a primeira coisa que faria seria eliminar a coluna sobre etiqueta. Ele bem que tentou explicar, mas ela se negou a escutar, interrompendo todas suas tentativas de contar a verdade e também insultando suas maneiras. O acusou de não respeitá-la, chamando-o de mentiroso. Com certeza esse comportamento, maldição, não era próprio de nenhum manual de etiqueta. Decidiu que não voltaria a ajudá-la. Cedo ou tarde, ela descobriria a verdade sobre este novo emprego e, quando o fizesse, Harry estaria ali, disposto a aceitá-la de volta e pronto a esquecer do acontecido. Arrumou como pode seu chapéu e desceu a escada. Talvez tudo aquilo tivesse servido para alguma coisa. Talvez a Senhorita Dove por fim, poderia perceber que livros de etiqueta não eram publicáveis. As pessoas não queriam ler sobre normas de conduta. Queriam ler sobre a péssima maneira de como se comportavam os outros. Ela ainda não sabia, mas dali a poucas semanas, voltaria a ocupar a mesa em seu escritório. Tudo o que Harry teria que fazer era contratar um substituto e ter um pouco de paciência. Não parecia tão difícil, não é?
53
Não importa se o preço é justo. O que importa é o que alguém esteja disposto a pagar. Senhora BARTLEBY Londres para Senhoritas Social Gazette, 1893
Se Harry possuía alguma dúvida sobre o pouco que ia durar a carreira literária da Senhorita Dove, a edição do sábado seguinte do Social Gazette respondeu todas. Passou o periódico dobrado da mão direita à esquerda e continuou lendo sua coluna enquanto seu valete, Cummings o ajudava a colocar o casaco. Satisfeita sua curiosidade com tão somente dois parágrafos, deixou o exemplar sobre a bandeja de prata que o mordomo segurava. — Obrigado, Jackson. Pode levá-lo para baixo e deixá-lo na sala de jantar com o resto dos
jornais. Descerei em seguida. — Muito bem, Milorde.
Quando o homem saiu, Harry virou-se, elevando o queixo para que Cummings pudesse fazer o nó do lenço. Imaginava que a Senhorita Dove escreveria sobre algo tão pouco útil como Como preparar um almoço de etiqueta e estava convencido de que esse tipo de artigo não ia contribuir para a melhoria da situação econômica de Lorde Barringer. Ele e o Conde não demorariam a chegar a um acordo sobre o preço de seu periódico. Quinze dias, pensou enquanto descia a escada. No máximo um mês. — No bairro de Chelsea vendem toalhas? — Ouviu sua mãe perguntar quando entrou na sala de jantar — Não sabia. Bom dia, querido. — Bom dia, mamãe — Beijou Louisa no rosto — Bom dia, Senhoritas — Fez uma reverência
a todas e ficou surpreso ao ver que Lady Felicity tinha desenvolvido interesse pelos jornais, pois segurava um entre as mãos. — Hoje está de bom humor, Harry — comentou Diana enquanto ele se aproximava do
aparador. — E por que não deveria estar? — Respondeu, servindo-se de feijões, presunto e torradas. — Faz dias que está de mau humor — respondeu ela — Mas ao que parece já se resignou
com a perda de sua secretária. Sua avó falou antes que ele pudesse responder.
54
— Não posso acreditar que a Senhorita Dove tenha deixado o emprego, Harrison — Sacudiu resignada a cabeça — Agora nunca mais chegará na hora para nada. — Não se preocupe, vovó. Não perdi a Senhorita Dove — sentou-se à cabeceira da mesa —
Ela ficará fora apenas alguns dias. — Bem típico de você definir a demissão da garota como “ só estará fora alguns dias ” — disse Vivian, rindo — Sempre foi muito otimista, Harry. — Por que o bairro de Chelsea? — Perguntou Louisa, retomando o assunto que estavam falando antes que ele entrasse na sala de jantar — Menciona alguma loja em especial?
Felicity levantou o periódico dobrado com uma mão e, depois de percorrê-lo com o olhar, assentiu. Pigarreou e começou a ler em voz alta para suas companheiras de mesa. — Caso precise de toalhas, a loja Maxwell, em Chelsea, é o lugar ideal para comprá-las. O fio
irlandês é de excelente qualidade e as que precisem de valores mais justos poderão comprovar que seus preços são muito razoáveis. — Deixe-me ver — Louisa colocou os óculos de armação dourada na ponta do nariz e agarrou o jornal que Felicity oferecia — Vejamos, diz que para decorar uma mesa para um almoço,
são tão apropriadas as toalhas de linho branco como as rosadas. Harry deixou de comer. — Estão lendo o Social Gazette? — Sim, querido — respondeu Louise sem olhá-lo — A coluna de uma mulher chamada
Bartleby. Felicity queria ver o que era o que tanto havia chamado sua atenção, de maneira que pediu a Jackson que levasse pela manhã, mas jamais teria acreditado que você tivesse interesse em como organizar um almoço ou saber onde comprar toalhas. Humm, também recomenda por centros de orquídeas, pois ficam delicados e não deixam mau cheiro, claro e dobrar os cartões em forma de flamingos de papel rosa? Que idéia original. Original , não era a palavra que Harry usaria. Absurda, isso sim. — Diz que se chama origami — continuou sua mãe — uma tradição do Japão o origami —
Citou Louisa — É a arte de dobrar o papel até conseguir imitar as formas de animais e flores e ainda oferece a uma anfitriã infinitas possibilidades de decoração para qualquer festa e no final do evento, a dama em questão pode agradar seus convidados com as figurinhas de papel. — É uma idéia excelente — comentou Vivian — e muito inteligente.
O comentário foi seguido por várias exclamações de aprovação pelo restante das damas, e deu a Harry um nó no estômago. — Estão falando sério? —perguntou. — Organizar um almoço, ou qualquer tipo de festa, é algo muito sério, querido — Sua mãe desdobrou o jornal e voltou a página para ler o final da coluna da Senhorita Dove — Uma festa bem
55
organizada pode converter à anfitriã na estrela da temporada. — Duvido que alguns flamingos de papel possam fazer algo para melhorar o status social de alguém — disse Harry. — Oh, engana-se! Coisas como essas são muito importantes, Lorde Marlowe — informou Lady Felicity — Devido ao meu pai ser viúvo, eu tenho que fazer o papel de anfitriã, e posso
assegurar que organizar uma festa requer muito tempo e esforço. Tenho certeza que Melanie, que está nas mesmas circunstâncias, estará de acordo comigo. As sugestões da Senhora Bartleby podem ser úteis, para que nossas festas tenham sucesso. Melanie, que parecia incapaz de falar sempre que ele estava na mesma sala, limitou-se a assentir com a cabeça. — Escutem isto garotas — Louisa inclinou-se para frente, impaciente por compartilhar a última pérola de sabedoria da Senhora Bartleby — Diz que há uma papelaria em frente à loja das
toalhas de Chelsea onde vendem papéis de cores ideais para origami. E que também ensinam a fazer os flamingos, ou o que quiserem, mediante encomenda. — De verdade? — Antônia bebeu um pouco de chá — E quem é essa Senhora Bartleby, para
que sua recomendação signifique tanto? Harry poderia dizer a elas exatamente quem era, mas não tinha intenção de fazê-lo. Se suas irmãs descobrissem que era a Senhorita Dove, o arrasariam por tê-la deixado escapar e mandá-la diretamente às garras de Barringer. Apesar de ser só uma situação temporária, jamais deixariam que esquecesse. De modo que, sabiamente, manteve a boca fechada. — Quem a conhece? — prosseguiu Antônia — Quem é sua família? Não sei de nenhuma
família inglesa de berço que se chame Bartleby. — Talvez seja americana — sugeriu Phoebe. — Oh, americana — repetiu Antônia, sublinhando a palavra com desdém e deixando muito
claro o que pensava, tanto dos oriundos desse país como da fictícia Senhora Bartleby. — É impossível que seja americana — disse Vivian, assinalando o jornal com uma torrada —
Se fosse, ela não saberia quais são as melhores lojas de Londres para comprar toalhas e objetos de papelaria, não? — Seja quem for ela, uma coisa está clara — interveio Diana — Hoje mesmo vamos fazer
uma excursão a Chelsea. — Vai a Chelsea? — Harry a olhou preocupado — Só porque uma mulher, a quem nem
sequer conhece disse para ir? — Não —respondeu Diana imediatamente — Iremos a Chelsea para comprar toalhas. — E para aprender a fazer flamingos de papel! — Acrescentou Lady Florence com um
sorriso. 56
Olhou para Harry —Nos acompanhará Lorde Marlowe?
Antes preferiria saltar em um precipício. — Sinto muito, Lady Florence — desculpou-se como estivesse sentindo muito — mas não
posso. Tenho assuntos importantes para me ocupar. E dito isso, levantou-se, agarrou os vários jornais e a correspondência, e, depois de fazer uma inclinação, despediu-se. Mas todas elas estavam tão entusiasmadas falando sobre flamingos de papel rosa, organizando sua partida a Chelsea e especulando sobre a identidade da Senhora Bartleby, que nem sequer perceberam a saída dele.
Ao longo dos dois meses seguintes, o desconforto de Harry durante os cafés da manhã mostrou o quanto se enganou com os escritos da Senhorita Dove. Depois de sessenta dias, todos comentavam o quanto era inteligente a Senhora Bartleby e como as idéias dela eram engenhosas. Ele sempre soube que a Senhorita Dove era uma mulher inteligente, mas havia escapado até que ponto. Pelo visto, era a Enciclopédia Britânica com pernas. A Senhora Bartleby parecia saber absolutamente tudo. Como tirar as manchas de tinta da seda, o melhor modo de recusar uma proposta de casamento de um viúvo, que restaurantes eram os mais respeitáveis para uma garota jantar fora acompanhada e depois do teatro, e que confeitarias serviam os melhores doces. Em sua coluna, assegurava às Senhoritas trabalhadoras que era permitido passear com um jovem a tarde e sem acompanhante, desde que sua amizade remontasse de vários anos, que o dito passeio tivesse lugar ao sair do trabalho e que o jovem em questão fosse respeitável e tivesse boa reputação. As damas da alta Sociedade eram um assunto a parte, pois estas gozavam de menos liberdade que as garotas que ganhavam a vida trabalhando e deviam ir acompanhadas de suas acompanhantes até completar trinta anos. A Senhora Bartleby não se esquecia, tampouco, do sexo masculino em sua coluna semanal. Sabia desde onde comprar as botas de cavalheiro mais confortáveis, até que charutaria tinha o melhor estoque de charutos havana, charuto que deveria ser fumado ao ar livre, é claro. Era uma ferrenha defensora dos colarinhos das camisas bem engomados e dos punhos, que recomendava a todos os jovens trabalhadores, e em troca desdenhava das viseiras e as luvas, e os desaconselhava inclusive para o trabalho de contador. As palavras “ A Senhora Bartleby diz” eram repetidas em tantas conversas, que Harry acreditava que se as escutasse mais uma vez, ficaria louco. Após este imprevisto e incrível sucesso, Harry tinha que acrescentar que ainda não havia encontrado substituto para a Senhorita Dove. No dia seguinte a briga no apartamento dela, havia 57
chamado à agência, e, depois disso, desfilaram por seu escritório uma multidão de secretárias e secretários. Todas às vezes asseguravam que mandariam alguém com experiência, mas sempre algo saia mal. Ou eram muito lentos, ou incapazes de lembrar que Harry gostava de café e não de chá e que o tomava sem leite nem açúcar, outros esqueciam suas entrevistas. O último dia foi o pior que os outros, porque não bastasse tudo, Harry perdeu sua agenda. Se a Senhorita Dove estivesse ali, isso não seria nenhum problema, já que ela sempre sabia onde ele deveria estar e a que hora, mas seus sucessores agiram como uns incompetentes. O mais recente, um jovem chamado Quinn, pareceu a Harry o pior do lote. Tinha o irritante hábito de abaixar a cabeça como um filhote espancado cada vez que dizia que havia se enganado. Mas ter que repetir as mesmas explicações dia após dia, a diferentes pessoas era exaustivo, tanto para ele como para os membros de sua equipe, de modo que, finalmente, havia se resignado a ficar com Quinn de maneira provisória. Mas à medida que passavam os dias e que a popularidade da Senhora Bartleby ia aumentando, começou a temer que tivesse que ficar com Quinn, ou com alguém igualmente incompetente, durante muito tempo. E como se já não bastasse isso, as damas de sua família voltaram encantadas de sua expedição ao bairro de Chelsea e, depois disso, seguiam com convicção os conselhos da coluna semanal da Senhora Bartleby, que liam em voz alta todos os sábados pela amanhã. Organizavam sua vida ao redor da informação que ditava o álter ego da Senhorita Dove, e gastavam o dinheiro de Harry em qualquer tolice que ela recomendasse. — Diana, a coluna de hoje parece escrita para você — Louisa dobrou o jornal que tinha nas mãos — A Senhora Bartleby fala de como organizar almoços de casamento.
A notícia foi recebida com exclamações entusiasmadas por parte de todas as damas. Harry, que estava tentado a proibir a leitura do periódicos durante o café da manhã com a desculpa de que era falta de educação, ficou olhando o prato de ovos com bacon e perguntou para si mesmo se por acaso em seu clube serviriam cafés da manhã. — Este ano, pode-se tanto organizar almoços com os convidados sentados como com convidados em pé — leu a mãe dele — claro que cada ato requer um cardápio distinto. Vejamos, se
os convidados não estão sentados, não se podem servir entradas quentes, é evidente. Canapés de caranguejo e patês podem ser uma boa opção, e sopa fria de tomate servida em uma taça. Assim os convidados podem bebê-la sem colher enquanto passeiam pela festa, conversando uns com os outros. Que grande idéia! E que inteligente! Harry não pode evitar revirar os olhos, embora nenhuma delas tenha percebido. — Além dos habituais frios — prosseguiu sua mãe — uma salada sempre é bem vinda. De
frango, por exemplo, com amêndoas e maionese, é deliciosa, e pode servir em cima de pequenos croissants ou pequenos sanduíches. A sugestão recebeu aplausos e elogios, apesar de que Harry seguia sem entender o que era tão fascinante. Jackson aproximou-se dele com a correspondência e Harry afastou o prato para poder classificá-la, detendo-se de repente ao ver um envelope com o escudo de Lorde Barringer. Abriu-o, e 58
a informação que continha o deixou tão atônito que teve que ler duas vezes para assegurar-se de que não estava sonhando. — O
Social Gazette duplicou sua tiragem nos últimos meses — dizia Barringer com orgulho.
E como resultado, os ganhos com publicidade aumentaram gradualmente também, assim, o Conde decidiu subir o preço da venda do jornal para cento e cinqüenta mil libras. Barringer precisava do dinheiro com urgência, pensou Harry, o que deveria obrigá-lo a abaixar o preço. Mas não, o estava subindo. E por quê? Por culpa de bichinhos de papel e de sopa servida em taças. — Querido, não ranja os dentes — brigou Louisa, e logo olhou para sua filha mais velha por cima dos óculos — Diana, o cardápio que propõe a Senhora Bartleby é excelente, não? Seria muito
apropriado para seu casamento. Harry não suportou mais. — Nem pensar! — Exclamou ficando em pé — Eu não vou beber sopa servida em uma taça,
mamãe, nem sequer por Diana! Depois de deixar clara sua opinião, atirou o guardanapo ao lado do prato, guardou a carta de Barringer no bolso e saiu dali, deixando as nove mulheres boquiabertas. Como não fazia idéia de quais eram seus compromissos para o dia, e ao que parece, seu secretário também não, decidiu ir ao clube. Aquele lugar sagrado, o último reduto onde os homens podiam se refugiar, sem que se importasse como deveria ser um cardápio de casamento, nem como poderiam passear ou não com uma moça em plena tarde. Ao chegar ao Brook's, viu dois conhecidos, sentados em uma mesa no canto. Cruzou o salão para aproximar-se deles. Lorde Weston foi o primeiro a vê-lo. — Isto sim que é estupendo — exclamou, ficando de pé para dar uma palmada no ombro —
Alegro-me de que esteja aqui, Marlowe. Estamos tendo uma discussão, e chegou bem a tempo para esclarecer coisas. — Ah, sim?
Harry saudou o outro homem, Sir Philip Knighton, e puxou uma cadeira para sentar. — Sobre o que estão discutindo desta vez? — Eu digo que o nó diplomático continua na moda, mas Sir Philip diz que não, que agora a
moda é usar o comme il faut 4 — Não sou eu quem diz isso, Weston — protestou Sir Philip — A tal Bartleby deixou muito
claro em sua coluna desta semana. O nó diplomático está morto. 4
Expressão para corretamente
59
— Isto é o cúmulo! — Harry levantou-se tão depressa que até derrubou a cadeira —
maldição, nem sequer no clube posso ficar tranqüilo? Todos os cavalheiros que havia ao seu redor, inclusive seus amigos, olharam atônitos para ele. Harry respirou fundo. — Desculpem-me — disse com uma inclinação de cabeça — mas tenho que ir. Lembrei agora
que tenho uma entrevista muito importante. Saiu dali e pediu que trouxessem a carruagem, mas quando esta chegou, disse ao cocheiro que fosse sem ele e foi caminhando. Repassou mentalmente tudo o que pode recordar dos escritos da Senhorita Dove, que não era muito, já que não lera quase nada. E como o pouco que leu não conseguira captar seu interesse, logo nada pode se lembrar. Algo sobre como decorar um piso e pouco mais, como organizar uma festa em casa, o modo mais adequado de sair para cavalgar, o aborrecia só de pensar. Por que estava tendo tanto sucesso? Era incapaz de entender. E esse era precisamente o problema. Porque, apesar dos escritos da Senhorita Dove não o interessar, era evidente que para outras pessoas sim. Em apenas dois meses, o personagem da Senhora Bartleby havia causado sensação. Como era possível que tenha se enganado tanto com o gosto dos leitores? Recordar a acusação de sua ex-secretária, foi como receber uma bofetada. Você é muito curto de idéias. Seria verdade? Harry sempre se orgulhou de ter uma mentalidade aberta. Convertera-se em alguém conservador sem perceber? Pensou em seus editores, em todos os manuscritos que recomendaram ao longo dos anos e que ele havia recusado. Quantas Senhoras Bartleby mais haveria entre eles? Agora jamais saberia. Ele sempre foi tão confiante em seu instinto, e nunca havia falhado. Seu sucesso como homem de negócios dependia de sua capacidade de se antecipar às necessidades dos leitores e de satisfazê-las no momento adequado. Estava desaparecendo essa capacidade? Seus instintos estavam falhando? Harry não estava acostumado a duvidar de si mesmo, e era uma sensação muito estranha. Estava perdendo as qualidades que o converteram no editor com maior sucesso de toda GrãBretanha? Ao chegar ao Hyde Park, parou em frente a um menino com boina que vendia periódicos. Possuía três exemplares dos que ele editava mais o London Time e o Social Gazette. Comprou um exemplar do último, procurou um banco vazio e sentou ali. Leu até a última vírgula da coluna de “ Londres para Senhoritas ”, escrita pela Senhora Honória Bartleby e, ao terminar, embora tivesse sido informado sobre o almoço perfeito para casamento, continuava sem saber o que agradava tanto as pessoas. Embora, por outro lado, o que ele pudesse pensar dos escritos da Senhorita Dove já não importava mais. 60
Harry se recostou no banco e tentou analisar a situação com objetividade. O negócio de editor era muito arriscado, sempre mudando e muito competitivo. Não podia ficar para trás. Nos últimos anos, seus investimentos mais rentáveis foram fruto de seu instinto visionário e de sua capacidade para saber tirar proveito de qualquer situação. Talvez houvesse chegado o momento de fazer o mesmo com o assunto da Senhorita Dove. Ocorreu-lhe uma idéia, e sentiu o otimismo renascer em seu interior. Uma hora mais tarde, levantou-se sabendo exatamente o que deveria fazer. Iria ver Barringer e aceitaria suas condições da venda. Faria isso agora. Do jeito que estavam às coisas, acabaria perdendo tempo, e o sucesso da Senhora Bartleby custaria ao bolso dele outras cinqüenta mil libras mais.
Emma adorava esta nova vida. Passava a tarde percorrendo as lojas de Londres em busca de informação para transmitir as suas leitoras, dar rédea solta a sua inteligência, a sua criatividade e encontrar um modo que, inclusive as matronas mais miseráveis pudessem organizar um jantar bem sucedido, até os melhores conselhos para que uma Senhorita trabalhadora pudesse decorar seu apartamento. Gostava muito de escrever e ler seus artigos publicados, também gostava do sucesso da personagem da Senhora Bartleby, pois cada vez que ficava a cada manhã na máquina de escrever e redigia os conselhos como seu álter ego, podia ouvir de novo a voz de tia Lydia. Era quase como se ela estivesse sentada ao seu lado, ajudando-a, compartilhando o sucesso com ela. Porque era um sucesso, por mais incrível que parecesse. Apesar das contínuas recusas de seu antigo chefe, Emma sempre teve certeza de que seus conselhos ajudariam às pessoas. Mas espantou-se ao ver o impacto que teve seu personagem e a rapidez com que ficou tão popular. Em um mês, converteu-se no tema das conversas das manhãs dos sábados, e quando pediu a Barringer que aumentasse seu salário, este aceitou encantado, com o que pode deixar de recorrer a suas economias e manter-se só com seu salário de escritora. No final de dois meses, havia recebido montes de cartas, tantas, que não podia responder no prazo que ditavam as normas de educação. Às vezes, enquanto esperava o ônibus na esquina, ou fazia compras no açougue, ouvia as pessoas falando da Senhora Bartleby. Essa popularidade causava um ligeiro comichão no estômago, mas caso recebesse uma crítica negativa ou ouvisse alguém falar mal dela, deprimia-se durante horas e acabava comendo muito chocolate. Apesar das ocasionais críticas e de suas correspondentes dores de estômago, Emma jamais foi tão feliz. O que estava fazendo era muito mais útil que assegurar-se de que aquele homem nada apresentável e desmemoriado chegasse a tempo para suas reuniões. E muito mais gratificante que comprar presentes em nome dele. Mas reconhecia que seu novo trabalho não era nada fácil. Teve que se acostumar a trabalhar com datas de entrega, e isso era duro. Tinha que ser escrupulosa para documentar e judiciosa ao dar conselho. Por outro lado, Lorde Barringer pediu que ela mantivesse a identidade da Senhora Bartleby em segredo, e isso era o mais difícil de tudo, pois ela sempre foi extremamente honesta. De 61
qualquer modo, tal como havia dito Lorde Barringer, o mistério havia servido para ressaltar ainda mais a curiosidade do público. E, o que era mais importante, supunha-se que os conselhos de uma mulher mais velha, certamente perderia credibilidade caso descobrissem e mostrasse que na realidade tratava-se de uma garota solteira. Afinal, ninguém queria receber conselhos de uma solteirona, e isso era precisamente o motivo por Emma decidir escrever com pseudônimo. Embora entendesse os motivos de seguir recorrendo a tal subterfúgio, não via maneira de mantê-lo. Lorde Marlowe sabia a verdade, e tinha motivos de sobra para expor esse motivo, mas quando disse para Lorde Barringer, o Conde sorriu de modo misterioso, e disse que Marlowe era o último interessado a falar. Estranhava que Lorde Barringer confiasse tanto na discrição de Marlowe, mas aceitou manter a boca fechada, e depois todo mundo soube que, depois de despedir-se de seu antigo trabalho, Emma havia começado a trabalhar como secretária da agora tão famosa Senhora Bartleby. Sentia-se culpada por mentir, mas assim que pensava no que Lorde Marlowe havia dito sobre as “ tolices” que escrevia, a dita culpa desaparecia no ato. Conforme as semanas passavam, mais fácil ficava para Emma desempenhar seu papel. Um domingo à tarde, enquanto tomava o chá com as outras jovens que viviam em seu edifício, conseguiu responder a todas suas perguntas sem dizer nenhuma mentira, coisa que continha mérito. Sentada na sala de jantar da Senhora Morris, rodeada pelo pálido papel de parede e entre aqueles móveis de mogno, Emma pode escutar como suas amigas comentavam sua última coluna, e comprovar de primeira mão o alcance de sua influência. Foi uma tarde das mais gratificantes. — O Senhor Jones me pediu em casamento.
Ouviu-se o barulho de cinco xícaras ao baterem em seus respectivos pires, seguido por cinco exclamações de assombro procedentes das moças, que já levantavam a cabeça para a Senhorita Beatrice Penetre, sempre a última a chegar e que acabava de entrar na sala. — Oh, querida Beatrice! — A Senhora Morris deixou a xícara em cima da mesa e olhou para a jovem — Que dia tão feliz.
Beatrice sentou-se na gasta poltrona que estava acostumada a ocupar. Ela estava com o rosto resplandecente de satisfação, sem dúvida alguma devido ao amor, mas também em parte pela sensação de triunfo por ter conseguido algo tão difícil, encontrar um jovem respeitável e com futuro. — E pensar que devo tudo à Senhora Bartleby — Beatrice retirou as luvas para poder mostrar a todas elas o anel de compromisso, uma delicada filigrana de prata — Se não fosse por
ela, certamente teria morrido virgem. Tanto a Senhorita Prudence Bosworth como a Senhorita Maria Martingale ficaram sem fala quando ouviram o maldoso comentário, mas de qualquer forma a felicitaram, pelo afeto que sentiam por ela, e também para ocultar a inveja. A Senhora Morris e a Senhora Inkberry deixaram de lado as respectivas xícaras de chá e elogiaram o anel sem remorso. Diferente de suas companheiras ainda solteiras, elas não tinham nada a temer por seu futuro. A Senhora Morris era viúva, e havia herdado uma fortuna de seu falecido marido. O marido 62
da Senhora Inkberry era o proprietário de uma próspera livraria na Fleet Street, e embora o casal vivesse no pequeno apartamento que possuíam em cima do estabelecimento, seu lar era confortável, a loja ia bem e, além disso, conseguiram educar as quatro filhas. Da sua parte, Emma apesar de seus trinta anos já havia superado a idade de ter noivos desistiu de casar, mas não era imune ao monstro de olhos verdes. Mas a inveja que sentiu ao saber que Beatrice se casaria não era comparável à satisfação, ao saber do papel tão importante que desempenhou na felicidade de sua amiga. — Beatrice, você tem que nos contar tudo — pediu a Senhora Inkberry, bebendo um pouco de chá — Por que diz que seu compromisso é mérito da Senhora Bartleby? — Claro, você estava em Yorkshire, assim não sabe tudo o que aconteceu — A jovem aceitou uma xícara de chá da anfitriã e apanhou um pedaço de bolo — Ouviu falar da Senhora Bartleby.
A mulher assentiu. — É claro! Leio sua coluna sempre que posso, embora em Yorkshire seja difícil conseguir o
Social Gazette. — Pois bem — continuou Beatrice — o Senhor Jones levou meses pedindo permissão para
percorrer comigo o caminho de volta ao sair da loja, mas a Senhora Morris dizia que sendo os dois Solteiros não seria apropriado. Assim que eu sempre recusava a companhia dele. — Fez bem, Abigail, querida, em recomendar que fosse prevenida — disse a Senhora Inkberry a sua amiga — Uma mulher sem família nunca é bastante prevenida no que se refere aos
homens. Tem que proteger com esmero a reputação. — É isso mesmo Josephine — respondeu a Senhora Morris — mas estava enganada. A
Senhora Bartleby escreveu em sua coluna que é perfeitamente aceitável que uma garota como Beatrice ande pela rua com um jovem. — Sério? — O assombro da Senhora Inkberry mostrava-se evidente.
Olhou para as outras mulheres da sala e as cinco assentiram em uníssono. — Na coluna não falava especificamente de mim, claro — disse Beatrice, referindo-se ao que
Emma havia escrito seis semanas atrás. — Então, tudo saiu bem. Já faz quatro anos que conheço o Senhor Jones. Vemo-nos
diariamente, as seis eu fecho a loja da Senhorita Wilson, e ele sempre sai do escritório de advogados na mesma hora, e durante anos percorremos as mesmas ruas sem dizer nada um para o outro. E no que se refere a sua reputação, não há dúvida de que o Senhor Jones é irrepreensível, é só ver onde trabalha. E em mais de uma ocasião, enquanto fazíamos fila na cafeteria para comprar o almoço, eu o vi comprar duas refeições e dar uma a uma indigente que ronda pelo bairro. Com certeza isso fala muita bem dele, não? Emma estava completamente de acordo. Seu único objetivo ao escrever essa coluna era mitigar um pouco essa estrita regra de 63
conduta, e para que a pobre Beatrice pudesse caminhar até em casa com seu jovem pretendente. A Senhora Morris tinha bom coração, mas para falar a verdade, não era muito culta e estava acostumada a tomar tudo ao pé da letra. Inclusive a tia Lydia, que havia sido sua amiga durante anos, acreditava que era um pouco lerda. — Bem — disse a Senhora Inkberry — se a Senhora Bartleby disse que estava bem, Beatrice,
não tenho nenhuma dúvida de está certa. — Fiquei tão contente quando li o artigo — prosseguiu a jovem — Foi como se me tirassem
um peso de cima. Então fui correndo ver o Senhor Jones, e disse a ele que se a Senhora Bartleby dizia que passear juntos era correto, então podíamos ficar tranqüilos. A partir de então, cada dia saíamos juntos do trabalho e caminhamos até aqui Senhora Inkberry. E no domingo na parte da tarde, vamos passear no parque, e foi ali que ele se declarou, há menos de uma hora — Olhou o anel e moveu a mão até que a prata cintilou sob os raios do sol que entravam pela janela — Nos casaremos antes do Natal. Emma sorriu e bebeu um pouco de chá. Sim, sua nova vida era muito satisfatória.
Na quinta-feira pela tarde, quando o menino dos recados do Social Gazette foi recolher a nova coluna de Emma, ainda estava muito contente, apesar de passar quatro dias sentindo o que se denomina “ bloqueio de escritor ”. Quando o jovem Senhor Hobbs bateu a sua porta, Emma estava datilografando freneticamente o último parágrafo. — Um momento, Hobbs — disse sem abrir, enquanto tirava a folha da máquina de escrever — Só um momento.
Dobrou todos os papéis e colocou-os em um envelope, lacrando-o com um pouco de cera e com a pressa, manchou a mesa. Correu para a porta, e depois de abrir entregou o envelope ao menino com um suspiro de alívio. — Aqui está Senhor Hobbs.
Diante sua surpresa, ele não pegou o envelope, mas sim sacudiu a cabeça. — Disseram-me que você tem que entregar pessoalmente no Gazette. Só vim avisá-la. — Mas — Emma franziu o cenho com preocupação.
Aquilo sim era estranho, mas Hobbs não parecia saber nada mais. Ela pegou o chapéu, colocou as luvas, guardou o envelope no bolso da saia e seguiu o jovem até os escritórios do Social Gazette, na Bouverie Street. Quando chegaram, o porteiro dispensou o mensageiro e com cara de preocupação, acompanhou-a até o escritório de Lorde Barringer. O desconcerto de Emma aumentou ao ver o Senhor Ashe, o secretário do Conde, 64
empacotando suas coisas. — Boa tarde, Senhor Ashe — saudou — O que está fazendo?
O homem deixou o tinteiro de prata na escrivaninha de madeira antes de responder. — Lorde Barringer vendeu o periódico — explicou — O novo proprietário me ofereceu o
posto, mas após tantos anos com Lorde Barringer preferi continuar com ele, assim, como pode ver, estou recolhendo minhas coisas. — Ele vendeu o Social Gazette? A quem? — A mim, Senhorita Dove.
A voz que ouviu às suas costas era tremendamente familiar. Fechou os olhos durante um instante, rezando para estar enganada, mas quando os abriu e virou-se, viu que não. Na porta, com um ombro apoiado no batente e os braços cruzados sobre o peito, estava seu antigo chefe. Emma ficou olhando para Lorde Marlowe, e um nó formou-se no estômago ao ver como sua nova e maravilhosa vida estava virando pó.
65
É perfeitamente possível cercar uma relação satisfatória e agradável com uma mulher. Mas somente se você não passar com ela pela Igreja. Lorde Marlowe, Guia para Solteiros, 1893
— Lorde Barringer vendeu o Gazette? Para você? Isto é — Emma tentou recuperar a compostura — inesperado. — Barringer e eu estávamos a meses discutindo uma possível venda. Na semana passada chegamos a um acordo e ontem assinamos os papéis — afastou-se da porta e apontou a escrivaninha que havia atrás dele — Eu gostaria de discutir algumas coisas com você.
Ela entrou no que havia sido o escritório de Barringer. Apesar dos móveis continuarem ali, todos os objetos pessoais do proprietário anterior haviam desaparecido. As estantes estavam vazias, o elegante escritório vazio, os quadros ausentes e tampouco havia tapete. Lorde Marlowe fechou a porta. Apontou a cadeira adiante dele. — Sente-se, por favor.
Emma não queria. Queria acabar com aquilo o quanto antes e sair dali. Tirou o envelope do bolso da saia. A coluna para a próxima edição. Estendeu o envelope ao Visconde, apesar de achar que ele recusaria. Olhou-o nos olhos, desafiando-o a dizer que sua estúpida coluna desapareceria da publicação e que ela ficaria sem emprego. Até que isso não parecia má idéia. Não escreveria para Marlowe, nem que fosse o último editor sobre a face da terra. Além disso, nos últimos meses conseguiu fazer um nome, e com certeza, algum outro editor estaria disposto a publicar suas notas. Reconfortada diante de tal perspectiva, conseguiu manter a calma. — Não a quer? Oh, mas o que eu estou pensando? É claro que não. Só fala de como por a
mesa. Com que colheres servir, talheres de peixe e esse tipo de ocorrências. Coisas aborrecidas. Quem gostaria de ler isso? Já começava a guardar o envelope no bolso quando, para sua surpresa, Marlowe estendeu a mão. Deu-lhe o envelope e ele o deixou de lado para voltar a pedir que sentasse. — Senhorita Dove, eu gostaria de ficar confortável enquanto conversamos, mas como eu sou
cavalheiro, não posso me sentar até que você o faça. Já sabe, normas de etiqueta. Ela arqueou uma sobrancelha cética, descartando que ele soubesse do que estava falando. 66
— Sei algo sobre boas maneiras — disse o Visconde, e sorriu, mas, as comissuras de seus olhos de um azul profundo se enrugaram com o gesto — Embora, recentemente, alguém me disse
que não a coloco em prática. Emma recordou a si mesma que ser encantador era um dos maiores talentos de Lorde Marlowe, e que com esse ardil havia conseguido manipulá-la durante anos e pensando nisso conseguiu não devolver o sorriso. Em vez disso, respirou fundo e decidiu que não ficaria ali esperando que ele cortasse a cabeça dela. Sentou-se e tomou a palavra. — Milorde, eu sei qual sua opinião sobre as escolhas editoriais de Lorde Barringer. Já me
deixou isso claro na última vez que falamos. Em vista disso, estou segura de que irá levar o Social Gazette em outra direção. — Isso é verdade, mas... — E — prosseguiu ela — é óbvio que as “ tolices” que eu escrevo não fazem parte de seus
planos. — Ao contrário. — Se tiver intenção de publicar a coluna que dei, agradeceria que pagasse por ela. Depois,
não terá que voltar a ler nada do que escrevo, e tampouco terá me suportar criticando sua falta de maneiras — Começou a levantar-se, mas a risada que ouviu nas palavras do Visconde a deteve. — Senhorita Dove, acabo de reconhecer que nem sempre tenho boas maneiras, mas sei
algumas normas básicas de cortesia. Por exemplo, acredito que interromper alguém enquanto fala é de muito má educação, não é assim? Emma sentiu que ruborizava e tratou de manter a compostura. — Não estava consciente do que estava fazendo — disse — Desculpe-me. — Desculpas aceitas — respondeu, levantando a comissura do lábio de um modo muito suspeito. Ela moveu-se incômoda na cadeira e ele percebeu, porque de repente ficou sério — Não estava rindo de você. Bem, talvez sim — reconheceu — mas só um pouco. É que sempre toma tão a
sério tudo sobre as normas de educação. — E ambos sabemos que você não. — A única coisa que eu levo a sério são os negócios, bem, senão não valeria a pena — Tirou
uma cópia do Social Gazette de uma gaveta o abriu em cima da mesa. Foi à página três, onde estava a coluna dela e seguiu falando — Admiro sua perspicácia ao antecipar minhas finalidades. Tem razão ao dizer que tenho a intenção de fazer mudanças. De fato, mudanças muito drásticas. Emma queria acabar com aquilo o quanto antes. — Se for eliminar minha coluna, diga-me, por favor. — Não tenho intenção de fazer isso.
67
— Vai continuar publicando-a? — julgava que uma dama jamais devesse expressar surpresa, mas Emma não pode ocultar seu assombro. Talvez não tivesse ouvido bem — Mas você odeia o que
escrevo! — Talvez “ odiar ” seja uma palavra muito drástica. — Disse que eram somente tolices — cruzou os braços e olhou para ele — Disse que não era
bom. — Isso não é exatamente o que eu disse. — Não vamos ficar com rodeios. Isso é o que você acredita.
Ele não a corrigiu, mas ficou olhando para ela de um modo muito estranho. — Importa tanto em que acredito? — Quando trabalhava para você, sim, importava-me muito. Respeitava seu critério. Confiei a
você meus escritos, coisa muito pessoal, com a esperança de que você os achasse dignos de publicar. E, para minha surpresa, você nem sequer teve o trabalho de ler esses escritos, por não falar de analisá-los com objetividade. — Li alguma coisa, mas não vou voltar a me justificar. Assim como tampouco voltarei a dar minha opinião sobre eles — Fez uma pausa e a olhou nos olhos antes de continuar — Senhorita Dove — disse, inclinando-se para frente — recusei seus escritos porque, de verdade, não acreditava
que pudessem interessar a alguém. Mas é óbvio que me enganei. Fui incapaz de analisar sua obra com objetividade. — O fato de você não gostar, não quer dizer que todos tenham a mesma opinião. — Tem razão. Você me chamou de curto de idéias, e percebi que em relação a seu trabalho,
é uma acusação acertada. Ouvir isso, de certa forma a reconfortou. — E agora quer publicar? — Sim — Levantou as mãos com as palmas para ela — Reconheço que não entendo o que há de tão fascinante na decoração de um apartamento ou em planejar um cardápio para casamento — Abaixou as mãos e se encostou ao respaldo da cadeira — Entretanto, dado o sucesso que obteve,
seria tolice de minha parte não admitir que essa fascinação existe, e perder esta oportunidade. Você satisfaz uma necessidade, Senhorita Dove, uma necessidade que eu fui incapaz de perceber. E sempre que há uma necessidade, significa possibilidades de fazer dinheiro. Não tenho que gostar de sua obra para publicá-la. — O que quer dizer é que agora que demonstrei que posso gerar lucros, não se importa em publicar algo que rejeitou e ridicularizou — Emma levantou-se — Não. Levarei minha coluna a outro
editor, a um que respeite e aprecie o que faço. Esperava que ele risse dela, mas não o fez. 68
— É livre de levar seus escritos onde quiser, é claro — disse Lorde Marlowe ao levantar — Se isso é o que quer, eu não posso impedi-la, embora seja uma lástima — acrescentou ao ver que ela se virava para sair — Caso vá embora, não poderei converter sua coluna em toda uma seção.
Emma parou de repente, e pouco a pouco ficou cara a cara com ele. — O que disse? — Pensei em dedicar uma seção inteira do Social Gazette aos temas de etiqueta e moda — Negou com a cabeça — Teria sido um sucesso. É uma pena.
Ela franziu o cenho para observá-lo com atenção em busca de algum sinal que estivesse mentindo, mas não encontrou. — Fala a sério? — Já disse a você, sempre falo a sério quando se trata de negócios.
Emma engoliu em seco e voltou a sentar. — O que exatamente tem em mente? — Poderá escrever sobre tudo o que goste. Normas de etiqueta, onde comprar as coisas,
receitas, sugestões como a desses flamingos rosa e coisas do gênero. Será sua decisão, pois o conteúdo estará sob sua responsabilidade. Poderá fazer entrevistas, dar conselhos, responder as cartas dos leitores, compartilhar receitas. A única coisa que peço é que mantenha o interesse do público. Ela sentiu uma emoção tão grande que mal podia respirar. — Sei que Lorde Barringer manteve em segredo sua identidade — prosseguiu ele — e apesar
de odiar ter que dar razão em alguma coisa, neste caso eu estou de acordo com ele. Sua credibilidade sofrerá caso sua identidade seja declarada. Além disso, o mistério a faz ainda mais interessante. Emma não respondeu. Estavam ocorrendo tantas idéias que foi incapaz de falar. — Mais uma coisa, Senhorita Dove, advirto que tenho intenção de me envolver
pessoalmente neste projeto, do mesmo modo que faço com todos os meus investimentos. Vou fazer muitas mudanças no Social Gazette para adequá-lo aos tempos atuais, e dado que paguei uma fortuna a Barringer para me vender esta publicação, vou fiscalizar todos os detalhes, incluindo a sua seção. Prestará contas diretamente a mim e eu mesmo editarei e corrigirei seus textos. A excitação de Emma diminuiu um pouco ao ouvir essas últimas palavras. — Isso jamais funcionará — disse. — Por que não? — perguntou ele. — Porque eu não gosto de você — mas assim que falou essas palavras, levou as mãos aos
69
lábios, horrorizada diante de sua falta de tato. A tia Lydia teria ficado horrorizada. Mas para sua surpresa, Marlowe riu. — Assusta-me pensar o quanto pobre eu seria, caso só fizesse negócios com gente de quem
eu gostasse Senhorita Dove. Ela abaixou a mão. — Foi falta de educação da minha parte. Desculpe-me, não deveria ter dito tal coisa. — Mas é no que você acredita — Deixou de sorrir e inclinou a cabeça para estudá-la.
Ficou pensativo. Sob seu escrutínio, Emma tocou o cabelo. Não sabia o que dizer. Provavelmente já tivesse dito muito. — Apesar de nossa última discussão, eu sempre acreditei que trabalhávamos muito bem — murmurou ele — Estava errado?
A jovem suspirou, sabendo que o dano já estava feito. — Não — respondeu — Mas nos dávamos bem porque eu nunca questionava suas ordens.
Meus deveres não tinham nada a ver com o que eu pensasse sobre você ou sua vida. Se tivesse dado minha opinião, teria sido uma impertinência imperdoável. — Mas ao que parece, agora já não tem nenhum cuidado em fazer — Voltou a rir, mas desta vez a risada não parecia sincera — Sei que vários dos homens com quem faço negócios não gostam
muito de mim, mas nunca me ocorreu que você também não gostasse. Nem ela, até que aquelas palavras saíram de sua boca. — Não é que eu não goste, é só que não temos nada em comum — explicou, tentando
justificar algo que nem sequer ela mesma entendia. — Não fique reprimida, continue. — Não estou me reprimindo. Acredito que você e eu somos muito diferentes, e que vemos
as coisas de diferentes maneiras. Você acredita que o que eu escrevo é uma tolice e que não serve para nada, mas isso em parte se deve a sua posição social. Os nobres podem ser mal educados e ninguém dá importância. Eles podem “ interpretar ” as normas a maneira deles, e inclusive rompê-las se assim almejam. Os de minha classe, não podem fazer nada parecido. — E muito menos as mulheres. Meu pai era muito rígido. Era um militar na reserva e quando eu era criança eu tive... — Se deteve, sentindo um nó na garganta. — Você teve o quê? —perguntou ele imediatamente.
Era muito difícil falar de assuntos pessoais, especialmente os relacionados com seu pai, mas 70
devia à Lorde Marlowe uma explicação. Era justo. Obrigou-se a continuar. — Tive uma infância que sem dúvida você qualificaria de rígida. Ninguém fazia brincadeiras
porque na casa de meu pai não podíamos brincar. Em conseqüência, seu comportamento me parece frívolo, zombador e falso. Para você tudo é um jogo e é difícil saber quando está brincando e quando diz alguma coisa a sério. Não se importa com os outros, nunca compra pessoalmente seus presentes, nunca é pontual e todas essas coisas. E em sua vida afetiva, não posso evitar pensar que tem um comportamento dissoluto. Seu desprezo pelo casamento, suas aventuras com bailarinas e outras mulheres de má reputação. Ele voltou a rir. — Bem, digamos que ter uma aventura com uma mulher de boa reputação não teria graça.
Emma supôs que fosse uma piada. O sorriso do Visconde desapareceu e pigarreou um pouco. — Sim, compreendo do que não gosta. Além de ser um mentiroso manipulador, sou frívolo,
brincalhão, desconsiderado, impontual e um libertino. Esqueci alguma coisa? Dito desse modo soava bastante ruim. Emma não teve a intenção de julgá-lo tão duramente, mas não tinha prática em criticá-lo. — Não se pode dizer que você tenha tampouco boa opinião sobre mim — ela apressou-se a dizer incômoda — Sei que pensa que sou fria, insípida e que não tenho senso de humor. — Bem, não pode me culpar disso. Você nunca ri de minhas piadas.
Isso a fez sorrir. — Talvez seja porque elas não tenham graça? — Sim, sim, tudo bem.
Voltou a ficar séria. — A questão é que não posso voltar a ter a mesma relação desigual que tínhamos antes.
Para o tipo de trabalho que você está propondo, eu teria que me sentir livre e expressar minha opinião como escritora, e você teria que aprender a respeitá-la. A cada palavra, Emma ficava cada vez mais deprimida. — Nós dois teríamos que ver o outro sob outra perspectiva. Não como chefe e secretária,
nem como Lorde ou a filha de um Sargento aposentado, mas sim como duas pessoas com idéias e opiniões de igual importância e de idêntico valor. Deveríamos nos tratar com respeito e consideração.
71
— E não acredita que isso seja possível?
Emma pensou em todas as vezes que ele a ignorou. Em todas as vezes que não disse o que pensava, por sentir-se muito intimidada. — Não.
Houve uma longa pausa e logo ele assentiu. — Tem razão, suponho. Você não gosta de como sou e eu não gosto do que você escreve, assim suponho que não tem solução — Apontou à porta — Eu a acompanharei até a saída.
Nenhum dos dois falou enquanto ele a guiava para o vestíbulo. Pararam em frente às portas. — Eu vou andando para o meu escritório — disse Lorde Marlowe — mas pedirei uma
carruagem para que a leve a sua casa. — Não precisa. Estou convencida que o Social Gazette terá muito sucesso sob sua direção. Boa sorte — acrescentou — e falo isso a sério. — Obrigado. Eu estou certo de que você não vai demorar a encontrar outro editor que publique sua coluna — Abriu uma das portas e saiu atrás dela — providenciarei para que paguem pelo artigo que me entregou hoje. Desejo-lhe muito sucesso, Senhorita Dove — Fez uma inclinação
e partiu dali. Emma observou os largos ombros de Marlowe ao dar meia volta e sentiu uma pontada no peito. Disse a si mesma que tomara a decisão correta. Se concordasse em trabalhar para ele, se permitisse que ele colocasse as mãos em seus artigos, tudo terminaria, pois eles eram como a água e o azeite. Jamais concordavam. Foi muito sensata ao recusar a oferta dele. Essa palavra. Essa maldita palavra havia tornado a aparecer. Sensata. — Espere! — Gritou Emma, e correu atrás dele.
Harry parou na esquina, esperando para que ela se aproximasse dele. — Se chegássemos a um acordo, quanto me pagaria?
Ele levantou uma sobrancelha diante da súbita mudança de atitude, mas não disse nada a respeito. — Receberá dez por cento dos anúncios que apareçam em sua seção — respondeu.
Ela se lembrou de todas as vezes que tinha regateado com lojistas até conseguir um preço razoável, e percebeu que a situação era exatamente a mesma. Decidiu que já era hora de obter o que se merecia. — Cinqüenta por cento seria mais justo.
72
— Não estamos falando de justiça, mas sim de risco, e sou eu quem arriscará. — Ouvi dizer muitas vezes que quanto mais alta é a provocação, mais elevados são os
possíveis benefícios. E você adora correr riscos. Gosta dos riscos. Além disso, a popularidade do Gazette aumentou muitíssimo graças aos meus artigos, e mereço que me recompense por isso. — Acredite, já paguei um preço muito alto por essa popularidade, que pode não durar. Agora
está na moda, reconheço, mas pode ser algo passageiro, hoje está aqui e amanhã ninguém se lembrará de você. Caso isso aconteça, a única pessoa que perderá milhares de libras serei eu. Eu pagarei vinte por cento. — Quarenta — contra atacou ela — Acredito que posso manter o interesse do público por muito tempo. E já que estamos negociando — prosseguiu ela — quero que fique claro que, apesar
da diferença social entre você e eu, e de nossa relação profissional anterior, a partir de agora me tratará como igual. Não prepararei café e não comprarei presentes que você pessoalmente deveria se ocupar, e tampouco me responsabilizarei por você chegar tarde ou não em suas reuniões, nem comigo nem com ninguém. E quando tivermos que corrigir os artigos, terá que confiar em meu instinto e não no seu. — Prometo que tentarei manter a mente aberta, mas se acreditar que se vai pelos ares
falando de como colocar bem uma mesa, ou sobre a decoração perfeita de um salão, me verei na obrigação de dizer-lhe, jamais critiquei seu trabalho como o faria um editor, mas a partir deste momento, serei absolutamente honesto. Você acredita que não seja sincero, mas posso ser brutal quando necessário, assim prepare-se, Senhorita Dove. Se for capaz de agüentar, darei vinte e cinco por cento, de acordo? Ela abaixou a vista para a mão que ele estendia, grande, com dedos fortes. Talvez Marlowe não gostasse muito, nem aprovasse o modo em que vivia e pensasse que a metade do que saía de sua boca eram tolices, mas de uma coisa estava certa, quando oferecia sua palavra, a mantinha. Aceitou a mão dele, e ao fazer isso, Emma soube que ia tornar-se realidade um sonho muito maior de quanto podia ter imaginado. — De acordo.
Havia algo tranqüilizador no modo em que ele apertou-lhe os dedos, mas estava confusa. Aconteceu tudo tão rápido que era difícil assimilar. Ele a soltou. — Seguiremos publicando os artigos na edição de sábado. Precisarei de quatro páginas de
conteúdo a cada semana. Poderá fazer isso? — Poderei fazer — Com essas palavras, todo o mal-estar que havia sentido ao escutar pela primeira vez sua oferta, desapareceu — O que não sei é se poderei me convencer de que tudo isto
está acontecendo de verdade. — Acredite em mim, Senhorita Dove. Quero publicar o primeiro exemplar do novo Social
Gazette dentro de três sábados. Dado que seu último artigo está pronto para ser publicado e que acaba de me entregar um para a próxima edição, precisarei de outro para a semana seguinte. 73
Quando ela assentiu, continuou. — Também precisarei de um resumo sobre o que pretende escrever na nova seção. Na
segunda-feira deverá estar sobre minha mesa. Assim que der minha aprovação, terá uma semana para escrever cada um dos textos. Eu necessitarei de alguns dias para corrigi-los, e poderemos nos reunir na quarta-feira para discutir tudo. Na quinta-feira você entregará a nova versão ao meu secretário, eu darei o visto final no dia seguinte e os mandarei imprimir. Todas as segundas-feiras você me entregará o artigo da semana. Parece-lhe bem? Ela assentiu. — Perfeito — disse Marlowe — Então, a partir de agora nos reuniremos em todas as segundas-feiras para que possa me
entregar seus escritos juntamente com as novas propostas e as quartas-feiras para discutir minhas correções. Confio em que este cronograma seja conveniente — Sem esperar que ela respondesse, prosseguiu — na quarta-feira da semana que vem revisaremos as primeiras correções. De momento, não tenho reuniões e nenhuma outra entrevista — Ele franziu a testa — Pelo menos acredito. Com o secretário que tenho agora, nunca estou certo de nada. — A que hora quer que nos reunamos e onde? — Às nove da manhã. Em meu escritório — Não chegue tarde — disse ela — Desde que você saiu, sempre chego tarde a todos os lugares — Olhou para ambos os lados da rua para ver se podia atravessar — Mas me esforçarei para ser pontual, nem que seja só
para melhorar a opinião que tem de mim. Emma deu meia volta. Tinha dado meia dúzia de passos quando a voz dele a deteve. — Senhorita Dove.
Girou a cabeça e viu que ele estava sorrindo. — Se tivesse mantido firmeza — disse — eu teria dado os cinqüenta. — Se você tivesse mantido firmeza — respondeu ela — eu teria ficado com os dez.
Harry soltou uma gargalhada. Santo Deus, a Senhorita Dove tinha senso de humor. Quem imaginaria? Ficou olhando para ela enquanto atravessava a rua, e percebeu que havia muitas coisas que não sabia sobre aquela mulher. Enganou-se sobre o que pensava dela. Imaginou que fosse fria e insípida, mas a julgar pelo sorriso que viu em seu rosto enquanto falava, Harry soube que também havia se enganado quanto a isso. Igual aos seus escritos. De fato, enganou-se em muitas coisas. Sempre acreditou que era uma mulher sem graça, pelo menos até o dia em que ela saiu de seu escritório e descobriu que o cabelo dela era ruivo e com brilhos dourados nos olhos. 74
Pensou em seu aspecto feliz, há apenas alguns instantes, enquanto pedia para que ele não se atrasasse, e percebeu que antes nunca a tinha visto rir. Uma pena, porque quando sorria, a Senhorita Dove não era absolutamente uma mulher sem graça. Uma coisa estava clara. Ela não gostava dele. E isso preocupava Harry, pois estava acostumado a agradar às mulheres. Não que fosse presunçoso, mas isso era um fato. Embora a Senhorita Dove o estivesse fazendo duvidar de todas as coisas que acreditava. Era óbvio que ao longo dos anos que haviam trabalhado juntos, ela formou uma opinião sobre o caráter dele. E sem que ele suspeitasse confeccionou uma lista de todos os seus defeitos. Não gostava, mas mesmo assim tinha trabalhado para ele durante cinco anos. Por quê? Intrigado, Harry estudou a delicada silhueta enquanto ela se afastava dali e percebeu que nessa nova relação como iguais, ele estava em desvantagem. Ela sabia muito mais coisas dele que ele dela. Teria que fazer alguma coisa para equiparar as coisas e decidiu que devia começar a investigar o quanto antes. Jogou um olhar especulativo aos quadris da moça. Tudo em nome da igualdade, claro.
75
O cavalheirismo é indispensável em um homem. Claro que também oferece algumas agradáveis recompensas. Lorde Marlowe, Guia para Solteiros, 1893
A Senhorita Dove sempre havia sido muito eficiente, assim Harry não ficou surpreso ao receber três dias antes do previsto seus primeiros artigos. Depois de ler, percebeu duas coisas. A primeira, que ela realmente sabia escrever. E a segunda, não importava quanto fossem excelentes suas descrições ardentes e próxima da sua prosa, ele jamais, jamais entenderia o que havia de interessante em confeccionar guardanapos com ramos de lavanda ou saber que as jovens damas podiam ir a lanches e jantares, sempre que estas fossem reuniões literárias. Apesar de tudo, e devido a que seu sucesso estava mais do que demonstrado, tratou de ser o menos duro possível na hora de corrigir o trabalho dela, e procurou manter a mente aberta sobre seu conteúdo. Como queria comentar umas coisas, e falar também de certas mudanças, decidiu que o melhor seria devolver os artigos o quanto antes. Poderia pedir que um mensageiro levasse, mas decidiu que, devido ao novo espírito de colaboração que se instaurou entre os dois, seria melhor fazê-lo em pessoa, e assim poder debater pessoalmente suas sugestões. Entretanto, no sábado durante a tarde, quando entrou no pequeno apartamento da Senhorita Dove, pensou que seria impossível falar de assuntos profissionais. Ela estava redecorando o lugar. A porta do apartamento estava aberta, e o aroma de pintura invadia o ambiente. Deteve-se na porta, e viu que as paredes eram agora de uma cor azul clara e as molduras bege e que um novo tapete dourado, com desenhos púrpura e verde azulado, cobria o chão de madeira. Ela afastara um dos sofás e havia colocado os móveis de uma maneira diferente para fazer separação com a mesa de cerejeira, cuja cor combinava com o de seu cabelo. Junto a essa nova mesa de trabalho, havia uma pequena mesa de laca, cujas patas tinham forma de elefante, e sobre ela, a Senhorita Dove, com seu gosto pelo exótico, havia colocado um enorme vaso cheio de plumas de pavão. A jovem estava suspensa em uma escada, em frente à janela aberta, pendurando cortinas de seda azulada na guia de madeira. Na outra janela, que estava no outro extremo da parede, havia uma cortina idêntica, que balançava com a suave brisa de junho. Sem perceber a presença dele, suspirou exasperada, e Harry observou como ficava nas pontas dos pés e levantava os braços. Segurando-se na guia com uma mão para manter o equilíbrio, tentou pegar com a outra o tecido que se soltou. Mas seus esforços foram em vão. Harry deixou sua maleta no chão e caminhou para onde ela estava com intenção de ajudá-la, mas parou em seco no meio caminho. Ali, de costas para ele em frente à janela, com os braços por cima da cabeça e com o sol da tarde brilhando atrás dela, a silhueta de seu corpo se desenhava com perfeição sob sua blusa branca de linho. 76
Harry podia ver as linhas de seu torso até a estreita cintura e quando ela deu meia volta e levantou ainda mais um braço, pode contemplar o bonito perfil, e distinguir a inconfundível forma de seus pequenos seios. De repente, sentiu que não podia se mover. Era como estivesse preso ao chão, a única coisa que podia fazer era olhá-la e sentir como o desejo começava a inflamar seu corpo. Antes de notar o que estava acontecendo, sua mente começou a conjurar imagens da Senhorita Dove muito mais específicas que a que estava vendo ali, frente à janela. Sempre gostou de mulheres voluptuosas, mas ao que parecia e para sua surpresa, as discretas curvas da Senhorita Dove haviam despertado sua luxúria. Tratou de recuperar a compostura. Recordou-se a quem estava olhando. Tratava-se da Senhorita Dove, aquela rígida moça que sempre seguia as normas ao pé da letra. Aquela que não gostava dele, que desaprovava seu modo de vida e que o considerava um libertino. Claro que, nesse instante, essa descrição chegava muito perto da realidade, pois os pensamentos que desfilavam por sua mente eram tudo, menos recatados. Deslizou o olhar pela saia marrom escuro, e em seguida caminhou de volta bem devagar. Com certeza ela possuía as pernas bonitas. E se precisava de tanto tecido para cobri-las, sem dúvida eram sensuais. Quando começou a trabalhar para ele, havia especulado um par de vezes sobre essa parte de seu corpo, mas jamais se permitiu ir mais à frente. Começou a imaginar umas coxas bem torneadas e joelhos perfeitos. Ela agitou-se no alto da escada para tentar libertar uma vez mais a cortina e a saia balançou ao mesmo tempo em que Harry se aproximava e estudava o traseiro da moça de um modo muito pouco cavalheiresco. Com todas as anáguas que as mulheres levavam sob a roupa naqueles tempos, era difícil de assegurar, mas Harry juraria que as sensuais curvas da Senhorita Dove eram todas naturais. — Oh, maldição! Por todos os demônios!
A exclamação de frustração foi tão inesperada que afastou Harry das fantasias que sua mente estava elaborando e, ao ouvir esse impropério tão impróprio de sua secretária, riu. Emma virou-se surpresa, e a escada cambaleou perigosamente. — Cuidado, Senhorita Dove — advertiu ele, aproximando-se.
Segurou a escada com uma das mãos para equilibrá-la. — A cortina ficou enganchada — explicou ela, enquanto voltava a ficar de costas e
continuava movendo o tecido para ver se o soltava. — Não — disse ele — Desça e deixe que eu faça isso.
Mas antes que ela pudesse fazê-lo, Harry rodeou a cintura dela com as mãos, e, em um gesto de cavalheirismo, levantou-a para que descesse até o chão. Mas logo que a tocou, esqueceu-se de toda cortesia e seus pensamentos seguiram caminhos muito menos nobres. Ao roçar seus quadris com os antebraços, outra onda de desejo percorreu seu corpo. Tinha acertado. 77
Quase não usava anáguas, uma ou duas, talvez e espartilho, mas nada mais. Baixou as mãos alguns centímetros, e, com os polegares roçou o princípio das nádegas. Talvez a Senhorita Dove fosse pequena, mas tudo em seu corpo era autêntico. Apertou um pouco as mãos, e chegou bem perto dela, inspirando profundamente o aroma de talco e roupa limpa, jamais teria acreditado que a essência de uma moça inocente pudesse excitá-lo tanto. Se aproximasse um milímetro mais, poderia beijá-la. — Milorde?
Deus santo, o que estava fazendo? Harry afastou aqueles luxuriosos pensamentos de beijar o traseiro da Senhorita Dove e recordou a si mesmo que era um cavalheiro. Desceu-a da escada, depositou-a no chão, e depois, muito a contra gosto, soltou-a. Ela deu meia volta, e não olhou nos olhos dele, mas sim manteve o olhar fixo em seu queixo. Tinha as faces rosadas e as sobrancelhas franzidas. Com certeza morria de vontade de esbofeteá-lo por tê-la pego nos braços como se ele fosse um marinheiro e ela uma garçonete de East End. Sabia que o castigo seria bem aplicado, mas não lamentava tê-lo feito. Harry a estudou de novo, passando de seu cabelo cor mogno até os pés calçados naquelas horríveis botas e fazendo logo o caminho inverso para terminar na ponta de seu nariz salpicado de sardas. Não, não se arrependia o mínimo. De fato, desejou poder abraçá-la e tocá-la de novo, coisa que era uma autêntica estupidez. Durante cinco anos, teve aquela mulher como secretária, e sempre pode dominar os pensamentos luxuriosos que, em alguma ocasião teve sobre ela. A verdade era que não havia custado grande esforço, mas nesse instante estava sendo muito mais difícil. Não podia explicar, era como se algo tivesse mudado entre os dois. Teria que tirar da cabeça esses pensamentos sobre a Senhorita Dove e recuperar a dignidade. Ela já não era sua secretária, iriam iniciar uma relação profissional muito proveitosa, e ele não tinha intenção de colocar tudo a perder. Respirou fundo e apontou para a escada. — Solucionarei o problema, depois que você se afastar.
Ela por fim o olhou nos olhos. — O quê?
Em vez de repetir Harry a segurou pelos braços com ambas as mãos e a afastou de seu caminho, depois subiu à escada e soltou a cortina do prego onde havia se enganchado. Quando voltou a descer, a jovem seguia com o cenho franzido e pensou que recorrer ao humor relaxaria um pouco a tensão. — Por todos os demônios? — Zombou ele, baixando a cabeça para poder olhar nos olhos
dela. — Desculpe? — Por todos os demônios. Foi o que você disse.
78
Envergonhada, encolheu os ombros e as sobrancelhas se uniram ainda mais. Cerrou os punhos, igual a uma professora tratando de parecer séria. — Não seja ridículo. Eu não disse tal coisa. — Sim, disse. Pude ouvir perfeitamente — Negou com a cabeça e estalou a língua — Essa
linguagem não é própria da mulher mais educada de Londres. O que dirão suas leitoras? — É que não sabia que você estava aí de pé. — Assim só pragueja quando está sozinha? — Eu não praguejo — A evidente mentira o fez sorrir, e ela continuou falando — Nunca
praguejo ou quase nunca. — Não fique preocupada, seu segredo está a salvo comigo — assegurou — Não contarei a
ninguém que a ouvi praguejar como um marinheiro de Blackpool. — É que a cortina estava enganchada, e não soltava, e me sentia tão frustrada e então... então... Oh, deixe para lá — levou três dedos à testa, e parecia muito desgostosa consigo mesma — Foi muito ruim da minha parte — acrescentou com um suspiro — muito ruim.
Harry pensou até que ponto devia estar desgostosa consigo mesma que o mero fato de negar causava tal preocupação. — Deixe para lá, Senhorita Dove. Leva as coisas muito a sério, sabe? Deveria rir mais
freqüentemente. E para essa única finalidade, vou contar algumas piadas. Mas não agora, pois isso não serviria de nada — acrescentou, segurando a risada — Minhas piadas não são engraçadas. Ou isso me disseram recentemente. Ela o olhou de esguelha, mas levantou a comissura do lábio no que parecia um sorriso. Animado pelo gesto, Harry voltou a tentar. — Que tal se você me contasse uma? — inclinou-se para ela, como quisesse dizer um segredo — Sabe alguma picante?
Emma afastou o olhar e mordeu os lábios para não sorrir, antes de voltar a enfrentar Lorde Marlowe. — Você já riu de mim o suficiente — disse com aquele tom de voz que era tão familiar —
talvez devesse me dizer por que veio. — Li seu artigo, e queria discutir com você algumas coisas. — Ah — Ela apoiou-se primeiro num pé e depois no outro, como se estivesse incômoda —
Imaginei que íamos nos reunir as quartas-feiras para isso. Em seu escritório. — É verdade. Mas sentia tanta curiosidade que não pude esperar. — Curiosidade?
79
— Sim. Tenho que saber por que às jovens damas só tem permissão para comer asas de
frango em um jantar. — Em uma festa — corrigiu Emma.
Ele fingiu compreender. — Ah, claro, isso explica tudo. Agora sim entendo.
Ela mordeu os lábios e olhou insegura para ele. — Está brincando comigo? — Não, asseguro. Estive queimando os miolos tentando achar uma explicação, mas no final
me dei por vencido. — Veio até aqui para que eu explique por que as jovens damas podem comer asinhas de
frango? — E para discutir sobre as mudanças que quero sugerir, são muitas e extensas. Não que tenha destroçado seu artigo — Acrescentou, e sua expressão de incerteza passava a ser de preocupação — Mas acreditei que poderia querer um pouco mais de tempo para revisar minhas
sugestões. — Entendo — Olhou atrás dele, e depois se aproximou da porta para fechá-la, recordando
que sua caseira era uma mulher muito fofoqueira. — Ninguém me viu subir — disse antes que ela pudesse perguntar. — Melhor — deu meia volta e apoiou as costas na porta — Este edifício só aluga apartamentos para Senhoritas. Não deveria estar aqui — riu incômoda — Sou muito tola, sabe? E as
mulheres ainda mais. Mexericam, e dizem coisas que não são verdade. Eu não gostaria que ninguém o visse e pensasse que você e eu... Você e eu... — Afastou-se da porta e levantou o queixo para olhá-lo nos olhos — Não gostaria que ninguém acreditasse que trago homens aqui. Não sou desse tipo de mulher. Nesse instante, Harry desejou que fosse, mas acreditou que seria melhor não dizer. — Você fica preocupada com que os outros pensam? — É claro —Olhou-o atônita — Você não? — Não. Por que deveria me preocupar? E, o que é mais importante, por que preocupa a
você? Agora mesmo acaba de dizer que as pessoas são tolas e que o povo está acostumado a mexericar sobre coisas que não são certas. Por que perde o tempo preocupando-se com o que outros pensem de você? — Por que...Bem...Por que... Ah, é só que me importa, isso é tudo. Pensarão que
estamos...Que estamos tendo uma aventura!
80
Ao ver a preocupação dela, Harry não teve a coragem de dizer que meia Londres estava convencida, há muito tempo, que o Visconde Marlowe tinha uma aventura com sua secretária. — Se essa intriga chegasse aos ouvidos de sua caseira, a expulsaria daqui?
A Senhorita Dove ficou pensativa uns segundos. — Não, mas teria uma longa conversa comigo. — Vejo que ela se preocupa com você. — A Senhora Morris é um pouco maníaca e muito protetora, mas era uma boa amiga de
minha tia. Além disso faz anos que me conhece. Importa-me o que ela pensa a meu respeito. — Mas se faz anos que a conhece, ela já deveria saber que você nunca faria isso. E se for
assim, o pior que poderia acontecer a você seria perder uma amiga que na realidade nunca foi. E que teria que procurar outro apartamento, claro. — Como se isso fosse pouco — respondeu com uma nota de humor na voz — Sabe quanto é
difícil hoje em dia encontrar um apartamento em Londres? — Você e eu vamos ganhar tanto dinheiro, que essas coisas logo não importarão.
Ela inclinou a cabeça e olhou perplexa para Harry. — E se não ganharmos nada?
Ele a desarmou com um sorriso. — Faremos e muito. Confie em mim. — Por que está tão seguro? — Antes que ele pudesse responder, continuou — Já errou
antes. — Não digo que nunca me enganei, mas não acredito que desta vez seja uma delas. — Você nunca acredita. Isso é o que estou tentando dizer. E quando perde dinheiro, não dá importância ao assunto — Assinalou-o com a mão — Já o vi perder milhares de libras em uma tarde
e se comportar como se não importasse. Você sempre pensa que encontrará um modo de compensar a perda. — E sempre encontro, não é assim? — Sim, mas isso não serve para mim. — Você se preocupa muito — aproximou-se dela e a segurou pelos braços.
— Não tem sentido que perca horas de sonho pensando no que pode sair errado. Tudo nesta
vida tem seu risco. 81
— Não, nem todos temos tanta segurança em nós mesmos como você. Eu não tenho. — Não diga tolices, claro que tem. Sim, você tem — insistiu quando ela negou com a cabeça — Você deixou um trabalho seguro para se dedicar a escrever. Se isso não é ter confiança em si
mesma, não sei que outra coisa pode ser. O amplo e sincero sorriso que se desenhou nos lábios da Senhorita Dove foi inesperado. — Isso não foi confiança. Foi raiva. Estava furiosa com você por não saber quem era a
Senhora Bartleby. Ele nunca a viu sorrir tão abertamente, e gostou. — Ok, isto sim é uma mudança para melhor — murmurou — Deveria sorrir mais
freqüentemente, Senhorita Dove, fica muito bonita quando sorri. A recompensa que recebeu pelo elogio foi que ela repentinamente ficou séria, e então se lembrou de que ela o havia acusado de ser um mentiroso e um hipócrita. De repente ficou inseguro, e não gostou. Não estava acostumado a isso. A jovem havia sugerido que era um inconsciente e em certos aspectos talvez fosse, mas não estava acostumado a colocar os pés pelas mãos, ainda menos com uma mulher. Mas pelo visto, com ela, nunca conseguia acertar. A moça ficou tensa e ele a soltou. — Não fique à defensiva — disse — Não tentava lisonjeá-la nem de enrolá-la, nem nada do
estilo. É só que gostei de vê-la sorrir. — Eu não...Não me pus à defensiva. É que... — Colocou a mecha de cabelo que estava solto, atrás da orelha — É que não estou acostumada que me façam elogios. Não sei como reagir. — Acredito que o mais habitual seria dizer obrigado .
Isso a fez rir. — Tratarei de recordar. Obrigada. — De nada. Não posso acreditar que eu esteja dando lições de etiqueta. Quem iria imaginar? — Depois de tanto tempo, você com certeza deveria absorver algo, não? — Sem dúvida — ele abaixou para pegar a maleta que havia deixado no chão junto à porta — Na próxima vez que tenha que vê-la, eu mandarei meu cartão e nos reuniremos no salão. Confio
que assim cumpriremos com a normas de decoro. — De fato. E em vista deste novo espírito de cooperação que parece reinar entre nós dois,
tentarei aceitar seus elogios. — E sorrirá com mais freqüência. — Sim, sim, de acordo, isso também! Já está satisfeito?
82
— Satisfeito? — Abaixou a vista até os lábios dela e pela primeira vez, percebeu que pareciam muito suaves e sensuais — Não, não estou absolutamente satisfeito.
Comentários como esse eram completamente inúteis com ela, que olhou desconcertada, claramente não entendendo a que se referia. Sem dúvida era melhor assim. Beijá-la seria uma idéia muito ruim. Voltou a se excitar. Péssima idéia. — Vamos comentar as mudanças que você fez? — Perguntou ela. — Mudanças? — Não é por isso que veio aqui? — Assinalou a maleta que ele segurava. — É claro. Sim — Harry teve que fazer um esforço para recordar o motivo de sua visita —
Tem razão. — Muito bem, de acordo. Então desça ao salão, eu irei em seguida. — Poderíamos ficar aqui — Ele sugeriu com um sorriso, meio de brincadeira — Assim
daríamos um pouco de emoção à vida de seus vizinhos, e eles teriam algo do que falar durante semanas. Ela não viu graça no comentário. — Se querem falar de algo, asseguro que não será sobre mim — replicou abrindo a porta — Vá — insistiu ao ver que ele não saia do lugar — E verifique de que ninguém esteja olhando.
Harry a olhou com fingida tristeza. — Não tem nenhum pingo de espírito aventureiro, Senhorita Dove — murmurou, sacudindo a cabeça enquanto saía — Nenhum pingo.
Desceu à escada bem rente a parede, tentando se ocultar dos olhares curiosos. Pensou que parecia um vilão de ópera. Não cruzou com ninguém, aquele lugar era como uma tumba. Chegou ao salão e acomodou-se em um sofá um tanto incômodo, mas não teve que esperar muito. A Senhorita Dove apareceu alguns minutos mais tarde. — Que mudanças tinha pensado fazer? — Perguntou, sentando-se ao lado dele.
Deu os rascunhos que fora entregue a ele alguns dias antes, que agora estavam cheios de comentários nas margens. Emma começou a ler e em seguida voltou a desviar o olhar para ele. — Falou sério — disse, assinalando uma nota da primeira página — Não era nenhuma
brincadeira. — Bem, reconheço que não sei muito sobre o mundo das jovens damas, mas por que
asinhas de frango? Por que não podem comer outras partes do frango? — Porque as asinhas são as únicas partes do animal que não têm equivalência nos humanos.
83
— O quê? —Harry demorou alguns segundos em compreender o que dizia — Está brincando Senhorita Dove? — perguntou — Uma dama não pode comer peito ou coxa de frango porque
equivaleria aos seus peitos ou suas pernas? Ela ficou ruborizada ao escutar as palavras do Visconde. — Sei que parece exagerado, mas... — Exagerado? —ele riu — É absurdo. — Estou certa que acredita nisso — respondeu ela, olhando-o com desaprovação — Mas é
questão de sensibilidade. Ele assinalou o resto dos papéis que a moça segurava na mão. — Se esse for o motivo, então, por que não podem comer codorna? Então quer dizer que a
asa de codorna é bastante delicada para qualquer dama, com ela poderiam alimentar-se quando muito duas formigas. — Exatamente, por isso servem as codornas inteiras. E devido ao fato de que uma dama não
pode comer...Não pode comer... — Peitos — a ajudou ele, desfrutando enormemente.
A Senhorita Dove cruzou os braços. — O que quero dizer é que, devido ao fato de que as codornas são servidas inteiras, uma
jovem dama não pode comer ave em uma festa. — Tampouco podem comer muito, isso eu pude comprovar — deslizou pelo sofá para
aproximar-se mais dela e poder assim ler o que havia anotado na margem do rascunho que segurava — Nem pombo, nem faisão. Nem alcachofras, nem massas salgadas, nem queijo — Fez uma pausa para respirar e continuou — Nada muito picante, nem tampouco temperado. E nunca devem beber mais de uma taça de vinho. Esqueci algo? Ela suspirou. — Eu gostaria que levasse a sério meus escritos. — Eu o faço — assegurou Harry — Depois de ler isto, por fim entendo por que vocês
mulheres têm cinturas tão estreitas e desmaiam a toda hora. Acreditava que era pelos espartilhos, mas não, é que estão mortas de fome. A Senhorita Dove mordeu os lábios, mas isso não evitou que ele visse que tentava dissimular um sorriso. — Eu jamais desmaiei. — Talvez não, mas tem que reconhecer que tenho razão. A vida é muito curta para passar
com fome. 84
— Estas normas só se aplicam as festas, e unicamente para as damas em idade de casar. — O que explica por que todas andem desesperadas para se casar — respondeu ele imediatamente — Se tivesse que sobreviver a base de pudim e asinhas de frango, inclusive eu
gostaria imensamente de me casar. Com isso ele conseguiu, Emma riu as gargalhadas. — Sério, Milorde — disse ela recuperando o recato — Não sei por que ficou surpreso. Você
já foi a milhares de festas. Com certeza teve que trinchar um frango para servir, e pediram que colocasse as asinhas em um prato para as damas. — As pessoas que me conhecem sabem que sou incapaz de trinchar um frango para servir.
Sou muito desajeitado para isso. As porções sempre saem enormes. — Estou convencida de que faz isso para que as damas tenham um pouco mais de comida no
prato e não desmaiem antes das sobremesas. — Certo, Senhorita Dove, acredito que acaba de fazer uma piada. — Ao que parece, não fui muito bem, ou você teria rido. — Foi horrível — admitiu ele — mas isso demonstra uma coisa. Você estava errada e eu
tinha razão. — Do que está falando? — Disse que nunca poderíamos trabalhar juntos. Que não seríamos capazes de nos entender. Esta conversa demonstra que estava enganada. Acredito... — fez uma pausa e chegou mais perto olhando para os lábios dela — acredito que nos entendemos muito bem, Senhorita
Dove. Ela abriu a boca e abaixou os cílios e ele pensou que talvez em poucos segundos tudo ficaria ainda melhor. Mas então ela se afastou, e todos os sonhos de Harry viraram fumaça. A Senhorita Dove ordenou os papéis que tinha na mão e pigarreou. — Bem, e agora que atendi sua curiosidade a respeito das asinhas de frango, quer
continuar? Harry tentou se concentrar no que estavam fazendo. Explicou algumas das coisas que havia detectado em seu modo de escrever e que acreditava que devia mudar, especialmente a tendência de explicar-se com muito detalhes. Comentaram parágrafo a parágrafo todas as correções e ela aceitou muitas e se queixou do excesso de outras. Apesar de tudo, parecia aceitar as críticas muito bem, talvez porque graças a conversas sobre as jovens damas e as asinhas de frango tivessem quebrado o gelo entre ambos. Terminaram chegando a um acordo sobre as mudanças e a Senhorita Dove concordou em incluir um artigo semanal sobre cavalheiros em cada edição. Assegurou a ele que o teria escrito para sua próxima reunião da quarta-feira, que era o dia em que originalmente tinham ficado. 85
Logo, começou a contar algumas das idéias que teve para os números seguintes. Harry tratou de se concentrar no que ela estava dizendo, realmente tentou, mas sua mente começou a imaginar coisas muito mais interessantes que almoços campestres e exposições de quadros. Enquanto ela seguia falando sobre os mantimentos adequados para organizar um piquenique, ele não parava de olhar para os lábios dela, imaginando como seria beijá-la. Quando a jovem deixou de falar, já contava vinte e sete maneiras distintas de fazer isso. Foi o silêncio que o afastou de seus pensamentos luxuriosos e sentindo-se culpado, viu que ela estava olhando para seu rosto e esperando que ele respondesse. —Tem toda a razão — assegurou, apesar de não ter escutado nenhuma só palavra do que Emma havia dito — Estou de acordo com você.
Ela sorriu, de modo que supôs que havia acertado a resposta, mas sabia que não podia continuar se distraindo desse modo. O que era válido somente quando ela era sua secretária. Se fossem manter uma relação profissional, não podia continuar tendo pensamentos luxuriosos sobre ela. Mas ao recordar o calor do corpo dela sob suas mãos ao abaixá-la da escada e o aroma de talco e roupa limpa, perguntou-se por que não havia percebido antes de quanto ela era bonita quando sorria. Teve a sensação de que deixar de sonhar estar beijando a Senhorita Dove seria comparável a tentar voltar a fechar a caixa de Pandora. Difícil, muito difícil.
Emma pensou que a conversa dessa tarde foi muito proveitosa. Incrível, tendo em conta o modo em que havia começado. Estava deitada na cama, olhando o teto de seu quarto e, por culpa do som do tráfego da cidade que penetrava pela janela aberta, quase não podia ouvir o ronronar de Senhor Pardal. Além disso, seus pensamentos estavam ocupados com Lorde Marlowe e os acontecimentos do dia. Com certeza a intenção inicial dele foi se comportar como um cavalheiro ao ajudá-la a descer da escada, mas depois, não foi isso que havia feito. Ele rodeou a cintura com as mãos e em seguida deslizou por seus quadris segurando-o. As múltiplas advertências da tia Lydia sobre os cavalheiros e seus instintos animais voltaram a atormentá-la. Emma sabia que deveria ter afastado as mãos dele, que deveria ter deixado claro o que pensava de um comportamento tão pouco cavalheiresco. Mas em vez disso, deixou que as mãos dele permanecessem em seus quadris e sentindo-o acariciar o final das costas com os polegares, muito aturdida para se mover e com uma estranha sensação nascendo em seu interior, uma sensação que não nunca havia sentido antes. Nenhum homem a havia tocado até então, ao menos não da maneira que Lorde Marlowe havia feito. Pensou no Senhor Parker, o único com quem teve uma relação um pouco mais íntima. As conversas que compartilharam na pequena casa da tia Lydia, sempre ocorriam com ele sentado em uma cadeira e ela em outra a mais de um metro de distância. Haviam passeado pelo parque, em Ride Lion Square, enquanto ele contava para ela que ia tornar-se procurador. Eles roçaram as mãos em algumas ocasiões. As valsas que haviam dançado juntos estavam acima de qualquer recriminação, com seus corpos separados, tal como ditavam as normas. 86
E, além disso, tia Lydia sempre estava presente, cuidando da virtude e reputação de sua sobrinha, disposta a intervir caso o Senhor Parker fizesse algo inapropriado. Mas ele nunca o fez. Pegou nas mãos dela, beijou os nódulos, segurou-a pela cintura ao dançar a valsa. Mas nada mais. Nada incorreto. Nunca deslizou as mãos pelos seus quadris. Nunca acariciou o começo do traseiro com os polegares, desenhando pequenos círculos e fazendo-a arder de um modo desconhecido. Nunca fez nada disso. Fechou os olhos e com as mãos, tocou no lugar onde as mãos de Marlowe estiveram. Antes que pudesse parar, deslizou os dedos assim como ele tinha feito e voltou a sentir aquela cálida sensação em todo seu corpo. Tirou as mãos de repente. Ela já fora advertida por tia Lydia sobre aquelas coisas que Lorde Marlowe fez. Coisas que uma jovem dama jamais devia permitir e que aconselhavam a manter distância de seu atraente chefe. Tia Lydia sempre dizia que, devido ao fato de que os cavalheiros não podiam fugir de sua natureza, correspondia às damas manter as barreiras do decoro e da educação. Mas ele tocou-me. E ela não tinha feito bem ao permitir essa intimidade, porém quando desceram, as coisas voltaram à normalidade e Marlowe permaneceu comportado o resto da tarde. Emma sentou na cama, dobrou as pernas e as rodeou com os braços escondendo os pés sob a camisola. Sentia-se culpada e envergonhada, mas também curiosa e excitada. Agora sabia o que as mulheres sentiam quando eram acariciadas por um homem, por mais breve e indecorosa que tivesse sido essa carícia. Não permitiria que voltasse a acontecer. Voltou a deitar com um suspiro. Talvez sua preocupação fosse em vão. Decidiu seguir essa linha de pensamento e ser positiva. Possivelmente Lorde Marlowe estivesse pensando o mesmo que ela e procuraria se comportar de um modo mais apropriado no futuro. No final, uma vez no salão, as coisas voltaram a ficar normais, e durante o resto da tarde o Lorde se comportou como um perfeito cavalheiro. Apesar das advertências do próprio Visconde, Emma não achou que as críticas ao seu trabalho fossem tão desumanas. E havia escutado todas as sugestões com mais atenção que jamais havia dado. E quando eles discutiram sobre contar como organizar um piquenique, ele não efetuou nenhuma queixa, nem deu mostras de aborrecimento. Exceto alguns murmúrios e alguns ligeiros assentimentos, manteve-se calado e acolheu a todo seu relato com educação. Talvez tenha sido muito dura ao julgá-lo. Talvez não fosse tão falso nem tão dissoluto como havia acreditado. Mas seguia sendo um homem e por isso tinha que assegurar de que o incidente da escada não voltasse a acontecer.
87
Pandora é uma criatura nada cooperativa. De sexo feminino, claro. Lorde Marlowe, Guia para Solteiros, 1893
Quando chegou quarta-feira, dia marcado para a reunião, a Senhorita Dove já estava com seu ar de eficiência e fria resolução que Harry já estava acostumado. Sem dúvida, era o melhor, mas não pode evitar se sentir decepcionado. Queria voltar a ver a outra Senhorita Dove, a que tinha um sorriso capaz de iluminar um quarto e que amaldiçoava quando estava a sós. A que não o tinha esbofeteado quando acariciou seus quadris. Na tarde anterior, um mensageiro havia levado os artigos corrigidos, e ele os aprovou. A coluna para cavalheiros, que ela escreveu a pedido dele, precisou de muitas correções, estava claro que a Senhorita Dove jamais teve ajuda de um valete, mas ela não pôs nenhuma objeção as suas mudanças. Apesar do comportamento atual da jovem ser mais parecido ao da Senhorita Dove de sempre, havia algo diferente nela, pensou Harry. A mulher que foi sua secretária jamais poderia têlo colocado para fora de seu apartamento. Nem o teria criticado e tampouco negociado com ele sobre porcentagens por sua colaboração. Houve uma mudança nela, e embora não soubesse quando esta mudança ocorreu, sabia que agora ela o intrigava como nunca. Poderia ser pelo seu sucesso como escritora, que deu uma confiança em si mesma o qual não possuía antes. Ou talvez porque exigiu que ele a tratasse com igualdade. Deslizou a vista para a parte frontal da camisa rosa que ela vestia. Ou possivelmente, acrescentou para si mesmo, fosse porque não podia deixar de imaginá-la nua. — Amanhã estará tudo preparado para impressão — prometeu ela, interrompendo seus
pensamentos. — Como sabe tantas coisas sobre baixelas, toalhas e boas maneiras? E de onde tira essas idéias tão criativas? — Perguntou ele com curiosidade. — Minha tia Lydia foi preceptora antes de casar, e era muito cuidadosa com tudo
relacionado a esse assunto. Foi assim que aprendi sobre boas maneiras e todas essas coisas que tanto o impressionam. Vivi com ela a partir dos quinze anos. — E sua mãe? — Morreu quando eu tinha oito anos. Mal me lembro dela — A Senhorita Dove olhou além dele, com o olhar perdido no infinito — Sempre me dizia para não brincar no barro — murmurou —
Disso eu me lembro. 88
— Não a deixavam brincar no barro? E por que, posso saber? — Meu pai não gostava que eu me sujasse. Já disse que era muito severo.
Harry compreendia perfeitamente. Começava a ter uma idéia muito clara de como foi a infância da Senhorita Dove, e era enormemente desalentadora. — Assim, você foi viver com sua tia quando fez quinze anos. Ainda estava casada? — Já era viúva e morava em Londres, a poucas quadras daqui para falar a verdade. Quando
meu pai morreu, fui viver com ela. — Sua tia não foi morar com você e seu pai antes dele morrer? — Perguntou ele surpreso.
Sua antiga secretária adotou uma expressão estranha e distante, como uma máscara. E, ao olhá-la, Harry sentiu algo que foi incapaz de explicar. — Não — Respondeu ela depois de alguns instantes — Meu pai... Meu pai não gostava da
minha tia. Era irmã da minha mãe. A mulher tampouco devia gostar do cunhado, deduziu Harry. Havia algo muito estranho em tudo aquilo. Podia sentir e não gostava nada disso. — Mas depois de sua mãe morrer, o melhor para você teria sido viver com sua tia, não? — Não. Ao menos — acrescentou com um sorriso que parecia forçado e frágil — meu pai
não achava. E, como já disse os dois não se entendiam. Mas voltando a sua pergunta sobre baixelas, jogos de mesa e todas essas coisas... — Fez uma pausa para pensar, e logo acrescentou — Não sei de onde tiro as idéias. Simplesmente me ocorrem. Leio muito. Também dou longos passeios, observo o que vejo e escrevo sobre o que mais me chamou a atenção. Deste modo falo com muita gente, governantas, comerciantes, artesãos...E, claro, eu adoro visitar lojas. Hoje, sem ir mais longe, tenho intenção de explorar a zona do Covent Garden. Aliás — acrescentou olhando o relógio que estava pendurado na jaqueta — se já terminamos, devo sair. São quase onze horas — Guardou os artigos corrigidos em sua pasta e se levantou. Harry também ficou em pé. — Eu gostaria de acompanhá-la — ele ouviu-se dizer inesperadamente.
Ela estacou e olhou para ele em dúvida. — Quer me acompanhar? Você?
Ele riu. — Sei que parece incrível. — Eu que o diga. Sei que odeia ir às compras. — E você adora. Por isso pedia que comprasse meus presentes. Tem um talento especial
89
para encontrar o presente mais adequado para cada pessoa. — Obrigada, Milorde. Eu gosto de muito saber que acertei com minhas escolhas. — Dado que gosta tanto, por que não volta a encarregar-se disso? — Nem pensar — respondeu imediatamente.
Harry suspirou. — Você é uma mulher sem coração. Pense nas minhas pobres irmãs.
O comentário não a impressionou em nada. — Não sei escolher presentes, Senhorita Dove — prosseguiu ele enquanto caminhava para a porta — Não tem nem idéia do quanto é frustrante é quando só faltam dois dias para o Natal e
ainda não sei o que comprar. — Merece o castigo, por deixar tudo para a última hora. — Talvez, mas tremo só em pensar que neste Natal você não estará ali para me ajudar. — Não seja exagerado. A única coisa que tem de fazer é prestar atenção ao que suas irmãs
dizem. E ir às compras, claro. Ele gemeu de terror. Isso sim a fez rir. — Tome a saída de hoje como um ensaio. — Tudo bem, eu a observarei com atenção para ver se aprendo alguma coisa.
E com esse comentário, ambos foram para Covent Garden, e durante as duas horas seguintes, ele começou a conhecê-la melhor. Descobriu que ela era muito boa em escutar os outros, e que possuía uma habilidade inata para falar com as pessoas e surrupiar informação. A mulher do açougueiro a informou onde comprar as melhores mostardas, um mascate explicou como preparar os melhores bolos de carne, um policial que estava de serviço na esquina entre Maiden Lane e a Bedford Street a informou quais eram os bairros mais seguros da cidade. A Senhorita Dove estava disposta a aprender tudo, e prestava atenção a tudo que contavam, tomando notas em sua pequena caderneta. Sabia tirar proveito de uma verdade universal sobre a natureza humana, algumas pessoas adoram se sentir importantes. Harry permaneceu em segundo plano, mas em alguns momentos, ela estava tão concentrada escutando seu interlocutor que até esquecia de que ele também estava ali. Aproveitou essas ocasiões para observá-la sem que ela percebesse, embora soubesse que não havia possibilidade de voltar a ver a silhueta dela sob a luz do sol. Pelo menos, não durante essa 90
manhã. Usava um traje de linho bege, com a jaqueta fechada até o pescoço, deixando a mostra só a gola de sua camisa rosa e um laço de cor verde. As mangas justas do casaco exageravam as dimensões de seus ombros e o corte reto do mesmo não permitia notar seus quadris, por outro lado, o chapéu de palha com laços verdes e plumas creme o impedia de ver suas mechas avermelhadas. E a aba era tão larga que, a não ser que se agachasse, não podia ver os olhos dela. Apesar de tudo, e enquanto passeavam por entre as bancas de frutas e verduras do mercado, consolou-se desfrutando do que podia ver, a pálida pele da orelha dela, sua face, a delicada forma de seu nariz e aquelas preciosas sardas. Perguntou para si mesmo, quantas mais teria nas partes de seu corpo que não aparecia, e quanto demoraria em beijá-las todas. Cada vez que esse tipo de pensamento aparecia na sua cabeça, Harry se esforçava por pensar em temas mais impessoais, mas tal como havia comprovado no outro dia, era muito difícil. Não podia deixar de recordar aquela tarde, o perfil da silhueta de Emma, a curva de seus seios ou a delicadeza de sua cintura. Continuou pensando naquelas longas pernas e imaginava a si mesmo cobrindo-a de quentes e sensuais beijos. Dito de outro modo, a caixa de Pandora era impossível de fechar. Decidiu que havia chegado o momento em que devia se distrair com outra coisa. — Senhorita Dove, acredito que já sei de onde provém a sua sabedoria — disse ele enquanto percorriam o mercado, fugindo das cestas de frutas — age muito bem escutando as pessoas e elas
gostam de falar com você. Ela o recompensou com um sorriso. — Obrigada. Embora fosse mais fácil caso pudesse dizer que sou a Senhora Bartleby. Assim
seriam inclusive mais diligentes nos comentários. Mas devido ao fato de que decidimos manter a identidade dela em segredo, suponho que terei que me conformar sendo a secretária dela. — Sim, já vi que se expõe desse modo. Suponho que à Senhora Bartleby não adularia tanto
os interlocutores como você faz. — Eu não adulo ninguém — replicou ela ofendida. — Oh, sim faz. Adula todo mundo. Bem — acrescentou seco — exceto a mim.
De repente, ela se deteve, obrigando-o a fazer o mesmo. — Lamento muito tudo o que disse naquele dia, de verdade — disse, dando a volta para olhá-lo nos olhos — Não sei o que me passou pela cabeça para que falasse daquela forma. — Realmente tem motivos para se lamentar — respondeu ele, fingindo estar zangado — Foi
a descrição menos edificante do mundo. Você é uma mulher muito difícil de impressionar, Senhorita Dove. — Sério? — Agarrou uma ameixa da cesta que estava diante dela — E por que isso importa? Você disse que não importava o que os outros pensassem — ela recordou enquanto voltava a deixar
91
a fruta e escolhia outra — Se isso for assim, por que quer me impressionar? Surpreso pela pergunta, ele olhou fixamente para ela sem que ocorresse nenhuma resposta inteligente. — Não é tão simples, Milorde? — Murmurou ela, com um sorriso nos lábios enquanto pegava outra ameixa e a inspecionava — Às vezes, sim, importa o que os outros pensam, embora
não haja nenhum motivo para isso. Por isso mesmo as jovens damas comem somente asinhas de frango, e por isso me importa o que pense minha caseira. Observar uma conduta apropriada é importante. E por isso que as pessoas lêem à Senhora Bartleby. — É muito próprio de você voltar contra mim meu próprio comentário. — O que quero dizer — continuou ela olhando-o de novo — é que, em algum momento, nos
importa a opinião dos outros. — A mim não — insistiu Harry — Ou, melhor dizendo, não me importa o que as pessoas
geralmente pensam. Mas você e eu somos...amigos. Isso era mentira. Ele não queria ser seu amigo. O que queria era beijá-la e por isso achava importante o que ela pensasse dele. Se gostasse dele, ele teria mais possibilidades de conseguir o que desejava. — Então agora somos amigos? — repetiu a Senhorita Dove, como se a idéia fosse engraçada. — Excetuando o pequeno detalhe de que não gosta de mim — assinalou Harry, e observou como o comentário a fazia sorrir — Mas decidi ignorar essa questão.
Ela riu abertamente. — Em benefício de nossa amizade? — É claro.
Emma deixou a ameixa na cesta, pegou outra, suspirou indignada e a devolveu também ao cesto. — Estas ameixas estão horríveis e muito caras!
Harry olhou para a placa com o preço. — Uma dúzia por seis peniques me parece razoável. — É um disparate. Em plena temporada, três ameixas deveriam custar um penique. — Você é uma miserável, Senhorita Dove.
Ela não gostou do adjetivo e franziu a testa. — Sou econômica — Ela o corrigiu.
92
— Se é o que diz. — Além disso, eu não gosto muito de ameixas. Têm a pele muito amarga. Quem dera estivéssemos em agosto! Então seria temporada de pêssegos, e eu os adoro, você não? — Levantou o rosto, fechou os olhos e sem querer lambeu os lábios — Amadurecidos, doces, suculentos.
Imagens eróticas da Senhorita Dove nua rodeada de pêssegos encheram a mente de Harry. A luxúria tomou posse de seu corpo, e antes que pudesse evitar, excitou-se por completo. — Milorde, você está bem? — O quê? — Sacudiu a cabeça, desesperado para recuperar o controle, enquanto a
protagonista de suas fantasias olhava preocupada para ele. — Tem uma expressão muito estranha. Você está doente? — Doente? Justamente o contrário — mentiu — Eu estou muito bem.
A jovem aceitou a resposta e voltou a estudar a fruta que estava diante de si. Harry alongou o pescoço da camisa, zangado consigo mesmo. O que estava pensando? Por Deus santo, já não era um garoto de quinze anos, incapaz de controlar sua libido. Nem tampouco era o tipo de homem que se preocupasse com o que uma mulher pensasse dele, e muito menos era dos que permitiam que fantasias eróticas interferissem em sua rotina diária. Demônios, nunca gostou de mulheres respeitáveis. Essa repentina atração pela Senhorita Dove não fazia sentido, além de ser muito inconveniente. Embora a relação deles tivesse mudado, ela continuava trabalhando para ele. Os motivos que cimentavam o muro de separação entre ambos seguiam ali. Harry deveria assegurar de que se manteriam assim. Ele era um cavalheiro, e um cavalheiro não se aproveita de suas empregadas, especialmente se estas eram virgens solteiras e de certa idade. Precisava deixar de imaginar a Senhorita Dove rodeada de erotismo. Tinha que fazer. E ponto. Enquanto ela continuava olhando a banca de fruta, ele ficou para trás, lutando para eliminar de sua mente qualquer fantasia a respeito deles dois e uma banca de fruta, como por exemplo, uma em que ambos estivessem nus e daria de comer pedacinhos de pêssego com os dedos. Quando sentiu que por fim havia recuperado o controle de seus instintos mais básicos e que voltava a ser ele mesmo, aproximou-se da jovem. — Já terminou?
Ela sacudiu a cabeça e levantou uma pequena cesta. — Acho que vou comprar algumas frutas.
Harry suspirou e se deu por vencido. Afinal, disse a si mesmo, não havia nada de mau que pensasse aquelas coisas. Tudo o devia fazer era recordar que não podia colocá-las em prática.
93
Lorde Marlowe comportava-se de um modo muito estranho, pensou Emma, enquanto estavam sentados, em frente um do outro, na grama dos jardins do Vitória Embankment, desfrutando de um piquenique improvisado a base de pão, manteiga, frios e morangos. Ele disse que era difícil para impressionar uma mulher, mas ela nunca havia imaginado que ele quisesse. Embora tivesse que reconhecer que nessa manhã não parecia o mesmo de sempre. Olhou-a de um modo muito estranho quando falou o quanto gostava de pêssegos. Com o olhar perdido, como se estivesse pensando em outra coisa. E não parava de olhar seus lábios. Como por exemplo nesse preciso instante. Emma se deteve, com o morango a meio caminho da boca. — Por que faz isso? — O quê? — Olhar-me. É muito desconcertante. — É?
Não afastou o olhar. Em vez disso, tornou-se um pouco para trás e se apoiou nos antebraços sem levantar a vista. Logo sorriu. — Faz-me sentir como se tivesse algo no rosto — insistiu ela — E por que sorri desse modo?
Disse alguma coisa engraçado? Harry deslizou o olhar de seus lábios até seus olhos. — Não tem nada no rosto, e não tinha intenção de olhá-la tão fixamente, desculpe. É só que
tento conhecê-la melhor e pensei que assim poderia fazê-lo. Já sabe, em benefício de nossa nova relação como iguais. Apesar de não ter deixado de sorrir, parecia sincero. Satisfeita, Emma decidiu que ela também deveria fazer algum gesto para demonstrar que já não estava zangada. Afinal, trabalhavam juntos. — Apesar do que pensa, há coisas em você que admiro. — Ora, continue, continue — insistiu Harry quando a Senhorita Dove parou de falar — Não
me deixe assim. Tem que me dizer quais são minhas qualidades mais admiráveis. — Para começar, tem um grande faro para os negócios.
Ele endireitou o corpo, pegou um morango, e a olhou de esguelha enquanto o comia. — Nem tanto, e muito menos em relação a uma certa Senhora Bartleby. — Todo mundo comete enganos. Além disso, já assumi que o que eu escrevo não é de seu
estilo, para dizer de algum jeito. E tinha razão ao dizer que minha popularidade pode ser transitória. 94
Você, em troca, tem um currículo cheio de sucessos e isso é admirável. Respeito muito sua visão para os negócios — Dito isso, comeu o morango que estava na mão e pegou outro. Mas Marlowe olhava para ela espectador. — Isso é tudo? — Perguntou ele — Que respeita minha visão para os negócios?
Emma olhou surpresa para ele. — E o que queria que dissesse? — Não sei, mas não isso — respondeu ele com ênfase — Por mais gratificante que possa ser
saber que me respeita, digamos que não é o comentário mais lisonjeiro que um homem possa receber de uma mulher. Ela olhou para Marlowe insegura enquanto comia outro morango, sem saber se ele estava brincando. — Você está me dizendo que quer elogios?
Harry ficou rígido, como se tivesse que pensar na resposta, e em seguida assentiu decidido. — Sim, é isso o que quero — admitiu com um sorriso — Depois de sua enxurrada de
insultos, meu orgulho está ferido. E preciso com urgência que me elogiem. Quando ele queria podia ser atrevido. — Eu me recuso — respondeu Emma, cruzando os braços tentando não rir — Se o elogiar,
você ficará ainda mais presunçoso. — Não, se você continuar a meu lado e certificar-se de não abandonar o caminho da humildade — Ele se arrastou pela grama e chegou perto dela — Eu sei que você disse que não
gostava de mim, mas me recuso a acreditar que só tem uma má opinião. Tem que ter algo mais, além de meu faro para os negócios, que você goste, Emmaline. — Não dei permissão para me chamar pelo nome! Além disso — acrescentou com uma careta — Odeio o nome Emmaline. Chamar-me assim não ajudará na sua causa. — Tudo bem. Então, prefere que a chame de Emma? É assim como a chamam seus amigos? — Sim, se quer saber. Mas não sei por que insiste que somos amigos. Isso é impossível. — Por quê?
Ela ficou tensa. — Um cavalheiro, como diria minha tia Lydia, não pode nunca ser amigo de uma dama —
Harry riu. — Uma mulher muito inteligente, sua tia.
95
Ele esticou as pernas, até que ficaram paralelas às da Senhorita Dove, tão perto que quase se tocavam. Muito mais perto do que ditavam as normas. Emma abriu a boca para recordar-lhe isso. — Ainda não me disse do que você gosta de mim — murmurou ele, inclinando-se para ela.
Aproximou-se tanto, que Emma pode cheirar o masculino aroma de seu sabão de sândalo e distinguir os anéis azul escuro que rodeavam sua íris. Harry deslizou uma mão entre as pernas de ambos descansando a palma na grama, entre os dois, para se apoiar. Com o nós dos dedos roçou a coxa da jovem. — Vamos, Emma — ele suplicou — Elogie-me.
Uma cálida sensação a percorreu inteira como uma maré que fez com que se ruborizasse da cabeça aos pés. Era ela quem estava sendo lisonjeada, Lorde Marlowe a olhava de uma forma que fazia com que se derretesse como manteiga sob o sol. Moveu-se, acalorada, inquieta, consciente de que o braço dele descansava perto de sua perna. Por alguma razão, ele alargou o sorriso. Com certeza se deu conta que estava nervosa, mas não saiu de perto, e Emma sabia que não faria isso até obter o que desejava. Nesse instante invejou a capacidade do Visconde para ser tão atrevido. Engoliu em seco, e olhou diretamente para seus olhos azuis, tão brilhantes. Ao ver o sorriso dele, ficou sem fôlego, acelerou o pulso e, pela primeira vez, entendeu por que tantas mulheres haviam perdido a cabeça por ele. — Você é um homem muito atraente.
Lorde Marlowe se afastou um pouco e a olhou com receio, como se não estivesse certo de que estava falando dele. Decidido a confirmar para ver se falava dele, olhou-a nos olhos com expressão cética. — Você me acha atraente? Você? — Sim — admitiu a jovem — É encantador, quando quer.
Harry voltou a aproximar-se até que sua testa ficou a poucos milímetros da aba do chapéu que ela usava. — Eu gostaria muito de beijar você — Entrecerrou os olhos — Deus! Se estivéssemos num
outro lugar, eu o faria. O coração de Emma golpeou com força contra suas costelas. — É presunçoso! — Disse envergonhada que sua voz soasse impaciente em vez de ofendida — E quem disse que eu deixaria?
Ele não parecia intimidado pela reprimenda, o atrevido. Voltou a sorrir, e desta vez ela viu a viva imagem de um garoto travesso. — Está me desafiando, Emma? Está me desafiando a beijá-la?
96
Um estremecimento a percorreu inteira ao ouvir essas palavras, e demorou alguns segundos para recuperar a compostura. — Mas que tolices — respondeu e logo pegou a pasta e ficou em pé — Agora que já o
elogiei, coisa que não pode ser boa para nenhum homem, é melhor eu ir. Tenho que escrever um monte de coisas para o número da próxima semana — Afastou-se dele, colocando a distância apropriada entre ambos. Mas enquanto sacudia as migalhas da saia, ouviu-o murmurar: — Emma, eu jamais recuso uma provocação.
Sabia que deveria esclarecer que não o havia desafiado para que a beijasse, e que, sob nenhuma circunstância, o permitiria fazer. Mas abandonaram os jardins sem que Emma dissesse nada a respeito. A tia Lydia ficaria muito desgostosa.
97
Se não levar uma acompanhante, uma jovem solteira tem que ser muito cuidadosa com seu comportamento, para evitar assim que nenhum cavalheiro faça avanços inapropriados. Senhora BARTLEBY Conselhos para Senhoritas, 1893
Sentada em frente à sua máquina, Emma teclou uma palavra, logo outra, e em seguida duas mais. Uma vaga sensação apossou-se dela e soube que alguma coisa não estava bem, assim deixou de escrever. Olhou o papel que estava em sua frente, e leu em voz alta o que havia escrito. Assim, quando uma dama precisa de beijos. Gemeu exasperada e se inclinou para frente até descansar a testa na máquina de escrever. Imaginava que estava escrevendo sobre luvas, não sobre beijos. Era a quinta vez que teclava a palavra errada. Que diabos estava acontecendo com ela? No mesmo instante em que se fez a pergunta, Emma soube a resposta. Olhou através da janela, e se imaginou sentada na grama dos jardins do Vitória Embankment, com o olhar perdido nos olhos azuis do Visconde. Eu gostaria muito de beijá-la. Pensar nesse homem a tinha feito perder dois dias de trabalho. E por mais que tentasse, não podia tirá-lo da cabeça. Isso a exasperava. Recordou a si mesma que deveria cumprir o prazo da data de entrega, e que não podia perder tempo sonhando. Sentou-se ereta, puxou o papel e o deixou a lado, junto com as demais páginas cheias de erros. Ia pegar outra folha quando, quase sem perceber, apoiou o cotovelo na mesa com o queixo na mão, e fechou os olhos. Vamos, Emma. Elogie-me. E aquela maravilhosa sensação voltou a percorrer seu corpo como aconteceu há dois dias antes. Em sua mente, ainda podia vê-lo, olhando-a como se não acreditasse no que ela havia dito, como se suas palavras lisonjeiras fossem para ele inesperadas, apesar dele ser um homem perfeitamente consciente de seu poderoso encanto. Como faz? Perguntou-se Emma, antes de voltar a erguer-se. Como faz para conseguir que as palavras mais inócuas soem tão sedutoras? Sem dúvida era um dom muito perigoso para qualquer mulher com bom senso. Especialmente para ela. Está me desafiando, Emma? Está me desafiando a beijá-la? Ele era um descarado. Dizer que queria que a beijasse! Se ela nem sequer gostava dele. Depois de recordar a si mesma todos os motivos disso, Emma levou os dedos aos lábios e perguntou para si mesma o que sentiria caso o Visconde a beijasse. O relógio da mesinha soou, tirando-a de seus pensamentos e afundando-a na mais absoluta culpa. 98
Olhou a hora e ficou surpresa ao ver que eram mais de duas e meia. Aonde foi parar a manhã? Tinha uma entrevista em trinta minutos. Ficou de pé de um salto e correu para o quarto, tropeçando no pobre Senhor Pardal que a fulminou com o olhar. — Sinto muito, Pardal — disse entrando em seu quarto.
Trocou de camisa a toda velocidade, mas foi inútil, pois teve que acabar desabotoando-a de novo para que dessa vez colocasse cada botão em sua correspondente casa. Pegou o casaco verde de passeio, um simples chapéu de palha, prendeu o cabelo com uma presilha, e colocou a caderneta e lápis na bolsa. Com na mão, correu para a porta, pegando as luvas antes de sair e fechando-as enquanto descia a escada. Sem fôlego, saiu do edifício e caminhou rua abaixo na velocidade máxima que era permitido a uma dama alcançar. Odiava chegar tarde. — Emma?
Ao ouvir seu nome, olhou para ambos os lados da rua. Saltando de uma carruagem com o periódico na mão, viu o culpado de sua pressa, o homem que levava dois dias obcecando-a. Consciente de que não podia fingir não tê-lo visto, deteve-se e esperou que ele chegasse mais perto, mas logo que parou em sua frente disse: — Boa tarde, Milorde. Desculpe-me, mas não posso parar. Tenho uma entrevista dentro de alguns minutos — E voltou a andar. — Trouxe-lhe uma coisa — disse Lorde Marlowe, que começou a andar junto com ela, seguindo seu ritmo sem problemas. Sem se deter levantou o periódico que levava consigo — É a
edição de amanhã. Emma parou em seco e esqueceu por completo de sua reunião. — Já? — A tinta ainda não está seca — disse ele — mas aqui está. O primeiro exemplar. Quer vê-lo?
Ela o tirou das mãos, abriu-o em sua seção, e exclamou encantada ao ver seu pseudônimo com letras de imprensa. Começou a passar páginas, percorrendo com o olhar todos os artigos que havia escrito. Cada vez que via algo seu publicado, se sentia como uma menina que havia recebido o presente perfeito no Natal. — É maravilhoso — exclamou sem poder deixar de rir — Simplesmente maravilhoso! — Emma, sua coluna apareceu nos periódicos cada semana nos últimos dois meses — recordou ele — Sempre se emociona tanto? — Sim — respondeu a jovem, e parou um segundo para olhá-lo, sem deixar de rir. — Sempre.
Harry devolveu o sorriso.
99
— Se seus artigos publicados conseguem fazer você sorrir assim, toda sexta-feira a tarde trarei o primeiro exemplar — Antes que ela pudesse responder, o relógio da igreja deu a hora. — Oh, Deus, são três horas? — Perguntou preocupada — Céu santo, agora sim que chegarei
tarde! — Vai a outra excursão jornalística? — Sim —Dobrou o periódico e o devolveu — Obrigado por me mostrar.
Ele balançou a cabeça e não o pegou. — É seu. — Mas se é o primeiro exemplar. Não quer ficar com você? — Não. Quero que a Senhora Bartleby o tenha — Apontou para à carruagem que estava atrás dela — Vim com minha carruagem. Se quiser posso levá-la. — Obrigada, mas não é apropriado que eu entre em sua carruagem. E de qualquer maneira, não é necessário. Vou ao Au Chocolat — acrescentou ao voltar a caminhar — fica na rua do lado. — Tem uma entrevista em uma confeitaria? — Sim. Com o proprietário, Henri Bourget. Ele acredita que vai ser entrevistado pela
secretária da Senhora Bartleby. — Isso me faz lembrar uma coisa que queria perguntar a você. Se você se passa por outra pessoa não é o mesmo que mentir? — zombou ele — Ou, no mínimo, é má educação, não é? — Não sou eu quem insistiu em manter minha identidade em segredo. Além disso, é um pequeno engano, e o faço para preservar a integridade jornalística — respondeu ela — Para poder
investigar melhor. Ele riu. — Agora se chama “ investigar ” ir a uma confeitaria? — Claro que sim! Estou pensando em escrever um especial sobre doces para daqui a três
semanas. Sobremesas, confeitos, esse tipo de coisas. É uma das idéias que comentei na sábado. Não se lembra? — Hum, claro. É gulosa, Emma? — Sim. Eu adoro os doces. Em especial chocolate — mordeu o lábio inferior e olhou para ele arrependida antes de se deter na esquina — Receio que agora conhece meu ponto fraco. Faria
qualquer coisa em troca de um chocolate. — Verdade? — Murmurou ele e a olhou de esguelha — Importa se eu a acompanhar? — Perguntou ele após um instante — Eu gostaria de comprar bombons para minhas irmãs. Tal como
100
disse, tenho que começar a comprar meus próprios presentes, e sei que todas gostam de chocolate — Tirou o periódico das mãos — Deixe que eu o leve. — Obrigada. Suas irmãs também gostam de chocolate? — Adoram. Não entendo, mas é assim. — Você não gosta?
Quando Marlowe negou com a cabeça, ela olhou para ele como se estivesse duvidando de sua saúde mental. — Como é possível? — Eu gosto mais de salgado. Para ser sincero, sou viciado em sardinhas. — Está brincando — disse — Ao contrário, digo muito a sério. — Nunca sei quando está brincando. — Eu sei, e precisamente por isso eu gosto tanto de brincadeiras. Na verdade, acredito que
farei mais freqüentemente. — Perfeito — respondeu ela resignada. Agora sim que não poderia voltar a escrever uma linha — Isso é simplesmente perfeito.
Diante da confissão de que ela faria qualquer coisa em troca de chocolate, um homem honorável se negaria a especular sobre todas as possibilidades que suportavam essas palavras. Mas todos diziam que Harry era um libertino, que levava uma vida imoral, então, enquanto o proprietário do Au Chocolat mostrava a loja, seus pensamentos exploraram todas e cada uma dessas possibilidades. A visita terminou em uma espécie de vestíbulo, onde a esperava uma garrafa de champanhe, ladeada por duas taças de cristal, e uma seleção de trufas em uma bandeja de prata. Na mesa, havia também uma caixa embrulhada com papel de seda rosa e com um laço branco. — Talvez Sua Senhoria e à secretária de Madame Bartleby gostariam de provar nossas trufas
e saborear um pouco de champanhe? Emma olhou os bombons e acreditou estar no céu. — Que consideração de sua parte, Monsieur.
O homem assinalou a caixinha. — Por favor, entregue esta lembrança à Senhora Bartleby de nossa parte. Estamos
convencidos que as nossas são as melhores trufas de menta com licor de toda Londres, e confiamos que isso deva aparecer em sua coluna. 101
— Vou assegurar-me de que receba os bombons — respondeu Emma séria — mas não posso
garantir qual será sua opinião. Afinal, eu sou apenas sua secretária. O homem não teve a oportunidade de responder, pois nesse instante outro cavalheiro entrou na sala com atitude preocupada. Aproximou-se da mesa e disse algo a Bourget em voz baixa. Seguiu uma rápida troca de palavras em francês, das quais Harry entendeu só a metade, pois falavam muito rápido e ele nunca havia dominado por completo essa língua, mas ao que parecia havia algum problema no processo de fundição de um chocolate. Bourget voltou a dirigir a palavra a seus convidados com as mãos levantadas e um sorriso de desculpa nos lábios. — Parece que não podem fazer nada sem mim. Senhorita Dove, Visconde Marlowe, terei que abandoná-los por um momento. Se me desculparem... — Quando ambos assentiram, assinalou a mesa — Desfrutem das trufas.
Em seguida saiu com uma reverência, junto com o outro francês deixando Emma e Harry na sala. Ele se virou para ela, deixando de lado o periódico, para poder servir o champanhe. — O que acha de desfrutarmos da amabilidade de Monsieur Bourget? — perguntou,
enchendo as taças. Emma guardou a caderneta e o lápis na bolsa, e deixou em cima da mesa. Retirou as luvas, deixando também ali. Bebeu um pouco de champanhe, e durante alguns segundos, estudou a bandeja de trufas, até escolher uma de chocolate negro com um laço de açúcar rosa em cima. Harry a observou enquanto mordia, e sorriu ao ver a expressão de êxtase que iluminou seu semblante, embora isso fizesse com que sua imaginação desbocasse sem remédio. Quando viu a gota de licor deslizando-se pelo lábio inferior de Emma até cair em seu queixo, não deixou escapar a oportunidade. Ela deixou a taça de champanhe, e ia pegar um dos guardanapos de linho dobrados em cima da mesa, quando ele levantou a mão e, com o polegar, capturou a gota de licor, que depois levou aos lábios. Emma abriu os olhos surpresa ao ver que ele lambia o dedo. — Avelã — murmurou Harry, e abaixou o olhar — Delicioso, mas ainda não provei o
chocolate. Antes que a moça adivinhasse quais eram a intenções dele e tentasse detê-lo alegando alguma estúpida norma de etiqueta, Harry pegou seu pulso, levantou a mão e abriu a boca. Rodeou o dedos dela com os lábios e engoliu a metade da trufa que ela segurava. O coração de Emma deu um salto, e embora tenha tentado soltar-se, ele não permitiu. Harry a viu olhar para a porta e devolver o olhar para ele, observando perplexa como, devagar, lambia o chocolate que havia ficado nos dedos dela. Ele viu como os lábios dela tremiam e soube que a respiração de Emma estava acelerada. Era consciente de tudo o que a jovem estava experimentando, do descobrimento da paixão que havia permanecido presa pela modéstia. De sua inocência e então o corpo de Harry começou a arder.
102
Emma ficou ruborizada. Desesperada, olhou de novo para a porta e tentou uma vez mais soltar a mão, mas ele impediu. — Ainda não — murmurou sem soltá-la — Não acabei.
Engoliu a trufa, e depois percorreu o dedo indicador dela com a boca. A moça gemeu desconcertada, tanto pelo que Harry estava fazendo como pela reação de seu próprio corpo. Sob o polegar da mão que segurava seu pulso, podia sentir o ofegar acelerado, enquanto ele continuava lambendo os restos de chocolate com deliberada lentidão. A resistência de Emma começou a rachar ao mesmo ritmo que o cacau desaparecia de seus dedos. Deixou de tentar se soltar. Seus cílios salpicados de ouro desceram e ela fechou os olhos. Quando ele virou a mão dela para beijar a palma, ela suspirou de prazer. Harry acariciou o rosto, e com as pontas dos dedos úmidas, tocou as faces de Emma, fazendo que o desejo se apoderasse de cada poro da pele dele. Percorreu a palma com a língua, e pode sentir como ela estremecia. Levantou a cabeça e a observou enquanto se afastava da mão para aproximar-se mais dela. A jovem deve ter percebido quais eram suas intenções, porque ergueu o queixo, abrindo os olhos e separando os lábios ao mesmo tempo. Era uma reação instintiva, pensou Harry, pois duvidava muito que fosse consciente do que ele queria. Se soubesse, certamente já o teria detido, mas naquele momento o corpo dela só sabia uma coisa, que fora despertado para a paixão. E era uma das coisas mais eróticas que Harry tinha visto em toda sua vida. Entretanto, não teve tempo de aproveitar. O som de passos procedentes do corredor os advertiu que alguém estava se aproximando, e, depois de depositar um rápido beijo nos nódulos dos dedos de Emma, soltou sua mão. Quando Bourget entrou na sala, a expressão sonhadora da jovem havia desaparecido, e Harry estava no outro extremo da mesa, observando a bandeja com os chocolates e tentando clarear sua mente. — De novo peço-lhes desculpas — disse o confeiteiro ao se aproximar. — Não se preocupe, Monsieur — respondeu Harry pegando uma trufa. Olhou para Emma e acrescentou — Foi muito rápido.
Uma leve exclamação de surpresa escapou dos lábios dela que ficou vermelha como nunca. Sorrindo ele mordeu a trufa. A moça se apoiou na mesa e chegou mais perto dele. — Pensei que não gostasse de chocolate — disse, com os olhos entrecerrados e observando
enquanto ele comia o doce. Harry esboçou seu sorriso mais inocente. — De onde tirou essa idéia, Senhorita Dove?
103
Foi meu dever, querida Emma, guiá-la para a idade adulta. Ensiná-la a se comportar como uma dama, orientando-a nos momentos difíceis de sua juventude, protegendo-a das maldades deste mundo. Tentei incultar o que significa de verdade ser uma dama e ao vê-la agora, sei que consegui. Estou orgulhosa de você, querida. Muito orgulhosa. Últimas palavras da Senhora LYDIA WORTHINGTON para sua sobrinha, 1888
Emma supôs que sua tia não ficasse tão orgulhosa naquele momento. Ela e Lorde Marlowe saíram do Au Chocolat e empreenderam o caminho de volta para Little Russell sem dizer uma palavra. Coisa que agradeceu, pois estava muito confusa para falar. Sabia que certas coisas estavam erradas. Assim foi ensinada. Consentir que um homem lambesse seus dedos era uma delas. Assim como permitir que um homem sentasse na grama tão perto que sua perna roçasse com a dele. Se tia Lydia estivesse com eles durante esses incidentes, não teria permitido que Lorde Marlowe tomasse tais liberdades. E se com sua mera presença não tivesse bastado, a tia teria tossido ou teria golpeado com a ponta da sombrinha para adverti-lo. Deixando à parte o caso de Beatrice e o excelente Senhor Jones, para os que Emma se atreveu a reinterpretar as regras de conduta, em seus escritos ela sempre aconselhava às jovens damas que mantivessem as distâncias. Caso a Senhora Bartleby estivesse em uma situação como a daquela tarde, teria detido Lorde Marlowe e o teria esbofeteado. Emma estava preocupada por não ter sido feita da mesma massa que seu personagem de ficção. Quando ele havia lambido o chocolate dos seus dedos e acariciado sua mão com a língua, ficou tão aturdida, que nem ocorreu sequer resistir. Bastou sentir a boca de Marlowe em sua pele para que todas as normas de conduta, junto com seus princípios, desvanecessem de sua mente. Era horrível descobrir que suas convicções tinham tão pouco fundamento. Olhou para ele de esguelha enquanto caminhava ao seu lado. Antes, ele jamais havia se comportado assim. Em alguma ocasião brincou, isso sim, embora, ocasionalmente, não tinha passado de uma piada. Mas agora todos os comentários que fazia eram pessoais, como se flertasse. Ela nunca havia flertado com um homem antes. Nenhum tentou fazer nada inapropriado, e Emma não conseguia entender porque Lorde Marlowe o fizesse precisamente. Ele podia se comportar desse modo com qualquer mulher, e certamente que fez muitíssimas vezes. Por que ela? Por que então? Eu gostaria muito de beijá-la. 104
Quando era mais jovem, Emma imaginou algumas vezes, que o Senhor Parker a beijasse. Agora não mais e fazia muito tempo que havia enterrado esses sonhos, junto com suas esperanças e seu coração partido. Nesse momento sentia que aqueles sonhos secretos e tão românticos voltavam a renascer, mas com outro homem, um muito menos apropriado e muito mais presunçoso que o Senhor Parker. Um homem que queria beijá-la e que não escondia seu desejo, que a fazia perguntar-se, do mesmo modo de quando era ainda quase uma menina, o que sentiria quando alguém a beijasse. Voltou a olhá-lo e um calafrio de antecipação percorreu suas costas. Queria que a beijasse. Não era certo que um homem beijasse uma mulher sem estar casados ou no mínimo noivo, recordou-se e todos sabiam que Lorde Marlowe não queria voltar a casar. Ele era um homem do mundo, dos que têm aventuras ilícitas com bailarinas. E certamente, ela tampouco queria se casar com ele. Detiveram-se em uma esquina e, sem deixar de olhá-lo, Emma levou aos lábios os dedos que ele tinha beijado. Lorde Marlowe virou a cabeça, olhou-a por sua vez e sorriu. Ela ficou sem fôlego e seu coração deu um salto, causando dor e prazer de uma só vez. Era um sentimento muito forte. Desviou o olhar e abaixou a mão com brutalidade. Ela era uma pessoa séria, disse para si mesma enquanto cruzavam a rua. Não gostava de fazer coisas proibidas. Já não era uma jovenzinha. E certamente, não era uma provocadora. — O que acontece, Emma?
A voz de Lorde Marlowe interrompeu seus pensamentos. — Depois do que aconteceu, não entendo que me faça essa pergunta, Milorde.
Ele riu. — Depois do que aconteceu, acredito que deveria me chamar de Harry.
Emma suspirou exasperada. — Eu diria que não, Milorde.
Ele encolheu os ombros e trocou de mão a edição do Social Gazette e a caixa de bombons que tinha comprado para suas irmãs. — Só beijei sua mão. — Parece que foi tão inocente! — Percebeu que tinha levantado a voz, e olhou ao redor para
se assegurar de que ninguém a ouvira, mas o tráfego de Londres era tão ruidoso que os outros transeuntes não podiam escutar sua conversa — Talvez não saiba...tanto quanto você sobre estes assuntos — prosseguiu, olhando-o nos olhos — mas até mesmo eu sei que não foi “ só um beijo” ! Você...você estava... — Sua mão tremeu, uma onda de calor percorreu todo seu corpo e ficou sem fala. Afastou o olhar, e com as mãos enluvadas metidas nos bolsos da saia, acelerou o passo, mas Marlowe a apanhou em seguida e caminhou ao seu lado. 105
— Emma — disse ao chegar à rua onde ela vivia — não aconteceu nada — A ternura que havia na voz dele só conseguiu piorar as coisas — Foi algo inocente. — Não foi inocente. Se tivesse entrado alguém e nos tivesse visto... — Não entrou ninguém. — Mas poderia ter entrado! E seria minha reputação, e não a sua, que pagaria as
conseqüências. Pela primeira vez, uma sombra de culpa apareceu no rosto do Visconde e Emma desviou o olhar. — Você não me deteve. — Você não quis soltar minha mão — Você não tentou muito.
Contra isso não podia dizer nada, porque era verdade. — Eu fiz mal! Oh, como pude permitir que me fizesse algo tão perverso? — De verdade acredita que o que aconteceu entre nós dois foi algo perverso? Emma, você
não vai para inferno pelo que aconteceu, sabe? Ninguém vai mandá-la para a cama sem jantar, nem vai levar seus presentes de Natal. Isso a deixou furiosa e contribuiu para alterar ainda mais suas emoções. — Não ria de mim! — Gritou ela, detendo-se no meio da rua, a poucos metros da porta de
entrada. Harry ficou sério de repente e também parou. — Não estou rindo. Mas está me parecendo que se preocupa muito pelo que foi um flerte
inocente, e não entendo por quê. Por tudo o que você me fez sentir. Queria gritar essas palavras ali, em plena rua. Mas em vez disso, inspirou fundo e deu meia volta encaminhando-se para a porta de entrada do edifício. — Coisas como essa nunca são inocentes — murmurou em voz baixa, tratando de recordar as advertências que sua tia repetia sempre quando menina — Coisas como essa podem chegar a... — Se deteve, com a mão no trinco.
Atrás dela, escutou uma suave risada gutural. — Em uma confeitaria? Acredite em mim, se tivesse querido que isso chegasse a ser algo
mais, a teria levado a um lugar muito mais íntimo e romântico antes de beijar sua mão. 106
— Mas que alívio! — Respondeu sarcástica, e começou a abrir a porta, mas ele apoiou a mão
e impediu que pudesse escapar. — Do que realmente se trata tudo isso? — Perguntou Harry. — Deixe que eu me vá — Quando viu que ele não permitiria, voltou-se e o fulminou com o olhar — Pergunto-me o que pensará as pessoas se virem um homem acossando uma mulher desta
maneira. — Que pessoas? Sua caseira? Parece-me que se move pelo que pensam os outros — É importante levar em conta a opinião da pessoas que rodeiam. — Não, não é. A resposta do que está bem e o que está mal não está nas opiniões dos outros. Nem tampouco nos livros de etiqueta. Só há uma maneira de saber — Inclinou-se para ela
sem avisar e a tocou justo no esterno 5 Emma ficou sem respiração.
— Tem que procurar aqui — disse, com a palma apoiada no colo da moça e os dedos estendidos entre seus seios — Aqui é onde sempre encontrará a verdade.
Angustiosamente consciente de que estavam no meio da rua e que todos seus vizinhos poderiam vê-la, Emma olhou para ambos os lados, mas por sorte era a hora do jantar, não havia ninguém pelo bairro. — Refere-se ao coração, suponho. — Não. Refiro a seu instinto, ele sempre dirá a verdade. O coração pode mentir. A intuição, o
instinto, não. — E você sempre segue seus conselhos? — Sempre — Fez uma pausa e afastou a mão — Quase sempre.
Não era assunto dela, mas teve que perguntar. — E o que aconteceu da última vez que escutou seu coração e não seu instinto? — Casei-me. — Entendo — Hesitou por uns instantes, mas não pode evitar continuar — E o que foi que o
impulsionou a se divorciar, seu coração ou seu instinto? Ele fez uma careta de desdém. — Suponho que você, como o resto da Sociedade, condena-me pelo meu divorcio. Apesar de
eu ser a parte ofendida.
5
Anatomia - Osso ímpar situado na parte anterior do peito, e em que se articulam as costelas e as clavículas
107
— Educaram-me na crença de que o casamento é para toda a vida, que é um voto sagrado
que se realiza diante de Deus e que não deve se romper, se isso for o que se refere. — Que fácil é para alguém como você dizer tudo isso — O fato de ser solteira não implica que não possa ter uma opinião formada sobre o casamento e o divórcio! —replicou ferida. — E não deveria saber o que minha mulher fez, antes de julgar se eu tinha ou não motivos
suficientes para me divorciar dela? — Não me corresponde julgar isso. — Que não a corresponde? — riu, mas foi uma risada dura e sem humor — A Senhora
Bartleby passa a maior parte do tempo dando conselhos aos outros sobre normas de etiqueta, assim, qual é o protocolo em uma situação como a minha? — Abaixou a voz, que vibrava com uma ira e uma raiva que Emma não jamais ouvira — O que deveria fazer um homem quando sua esposa passa dias e dias o insultando e desejando estar com outro? Deve ser educado e cavalheiro e fingir que não percebe e que não está acontecendo nada de mais? Tem que se comportar como um santo ou um mártir e não dizer nada? Aproximou-se dela, e, à luz noturna, Emma viu brilhar algo em seus olhos, algo frio e duro como o gelo. — E quando ela foi para a América com seu amante — prosseguiu o Visconde —humilhando
publicamente tanto seu marido como a família dele, o que ele deve fazer? Fingir que não tem importância? Começar o processo de separação? Passar o resto de sua vida celibatário? Buscar uma amante? Ela ficou atônita ao ver a dor refletida em seu rosto — Era apaixonado por sua esposa — disse, compreendendo-o pela primeira vez. — É claro! — Ele desviou o olhar, e respirou fundo — Caso contrário não teria me casado
com ela. — Eu não sabia. Imaginei que... — Se deteve antes de continuar — Sempre imaginei que se
a tivesse amado, teria ido atrás dela. — Refere-se ao fato de tê-la seguido até Nova Iorque? Arrancá-la dos braços de seu amante
e transformar o resto de minha vida em um inferno? Teria sido mais apropriado que fizesse essa barbaridade ao invés de me divorciar dela? Emma olhou para o Visconde sem saber o que dizer. Para ela, o divórcio era tão impensável, como sair de casa sem espartilho ou não ir para a missa. Mas por outro lado, o que sabia das relações entre homens e mulheres? Quase nada. — Apaixonei-me por Consuelo a primeira vez que a vi — prosseguiu Harry, apoiando as
costas na parede do edifício. 108
— Não sabia nada dela, nem de sua personalidade, nem de seu caráter, mas não me
importou. Bastou olhá-la para me apaixonar. Tinha os olhos escuros e tristes, como nunca tinha visto. Comecei a organizar o casamento imediatamente após sua apresentação. Foi assim rápido. Emma ficou olhando-o, atônita, e recordando um dia, tempo atrás, no salão da casa de sua tia, quando outro homem havia contado algo similar. — Eu também me apaixonei uma vez — confessou. — Sério?
Ela assentiu e apoiou as costas contra a porta, olhando às pessoas que passavam pela rua, mas com a imagem da casa de Ride Lion Square, seis blocos mais à frente, em sua mente. — Chamava-se Jonathan Parker, e era um amigo da família de minha mãe. Conhecia-o desde
criança. Quando minha mãe morreu, meu pai rompeu com a família dele e suas amizades, e não voltei a vê-lo até que mudei para Londres com minha tia. O Senhor Parker e eu nos tornamos amigos. Muito bons amigos. — Noivos?
Emma respirou fundo. — Era no que eu acreditava. — O que aconteceu? — Ele vinha me visitar na casa de minha tia quase todos os dias. Jantava conosco, duas ou
três vezes por semana. Tínhamos uma grande quantidade de coisas em comum, e pensávamos de forma parecida a respeito de muitas coisas. Nas festas, caso houvesse música, dançávamos um com o outro. Íamos juntos a todos os lugares e todo mundo pensava que um dia nos casaríamos. — E? —insistiu-a Harry quando ela ficou calada. — E então, uma noite foi a uma festa. Eu tinha que ir também, mas estava muito resfriada e
não pude assistir. Minha tia ficou em casa para me fazer companhia, e na manhã seguinte soube que o Senhor Parker tinha dançado com uma garota de cabelo loiro. Chamava-se Anne Moncreiffe, e era de Yorkshire — Ao falar sobre isso, Emma percebeu que essa lembrança já não doía — Três dias mais tarde, quando já havia me recuperado do resfriado, o Senhor Parker veio me ver para contar as boas notícias, apaixonou-se por Anne. Ela era a garota mais bonita, mais vivaz, mais encantadora que ele havia conhecido, e iriam se casar — Ela fez uma pausa e balançou a cabeça, como se ainda não conseguisse compreender — Acabara de conhecê-la e já queria se casar com ela. Os seis anos que ele e eu tínhamos compartilhado não eram nada comparados com os três dias que passou com Anne. — Lamento que ele tenha partido seu coração. — Não foi só o coração. Neste dia também perdi meu melhor amigo. A traição dói muito. — Sim — Harry reconheceu — Muito.
109
— Como é possível? — perguntou curiosa, confiando que Marlowe pudesse explicar o que nunca conseguiu entender — Como pode alguém se apaixonar em um instante? — Não sei. Mas em meu caso posso dizer que foi uma espécie de loucura. — E já se recuperou? — Sim. Se tiver sorte, supera-se isso antes de cometer o erro de se casar. Eu não tive, mas o
que me diz de seu Senhor Parker? Está feliz casado? — As últimas notícias que soube dele foi que estava muito feliz. Claro que... — acrescentou com maldade — ele vive em Londres e sua mulher em Yorkshire.
Lorde Marlowe riu. — Certamente esse é o segredo de um bom casamento. — Certamente — assentiu ela.
De repente, sentia-se relaxada, como se houvessem tirado um grande peso de cima. Virou o rosto e olhou para ele. — É estranho, é a primeira pessoa a quem conto isso. Minha tia sabia o que havia
acontecido, é claro e também nossas amizades, mas ninguém nunca falava do assunto, nem eu tampouco. Às damas não é permitido que desmoronem em frente a ninguém, nem perguntar outras coisas que podem ser indiscretas. Nunca me senti capaz de dizer a alguém como estava me sentindo mal. — É muito doloroso descobrir que o amor não é correspondido. — Sua esposa alguma vez o amou? — Nunca. E o pior de tudo é que eu sabia — colocou o punho no mesmo lugar onde momentos atrás quase a tocou — Aqui dentro, meu instinto sabia. Mas não me importei. Em vez
disso, escutei meu coração. Se tivesse ouvido meu instinto teria economizado, tanto a Consuelo como a mim, anos de sofrimento — Meneou a cabeça e fez o gesto de partir — Está escurecendo, é melhor ir. — Sim, claro. Boa noite — deu meia volta para abrir a porta, mas a voz dele fez com que ela
parasse. — Emma?
Inclinou a cabeça e o olhou. Estava de pé na calçada, observando-a. — Se de verdade acreditava que o que estava fazendo era errado, por que não me deteve?
Harry deu meia volta sem esperar que ela respondesse, e caminhou para sua carruagem. 110
Até que Emma não viu a carruagem afastar não reconheceu a verdade. Porque embora soubesse que estava errado, dentro de mim senti que estava bem. E isso me assusta. Olhou como a carruagem desaparecia ao dobrar a esquina. Ela podia recitar de cor todas as normas de educação do mundo, mas não podia deixar de perguntar se essas normas serviam para distinguir o que era certo e o que era errado. E o pior de tudo era que começava a perceber que, embora fosse uma mulher amadurecida de trinta anos, não sabia nada da vida.
111
A virtude pode ser uma recompensa em si mesmo, mas em minha opinião, isso não é nenhum incentivo. Lorde Marlowe Guia para Solteiros, 1893
Por mais que odiasse reconhecer, Harry sabia que Emma estava com a razão. O que tinha feito no Au Chocolat teria arruinado a reputação da moça se alguém tivesse visto. Apesar de sua insistência que foi algo inocente, sabia perfeitamente que não era assim. A virtude de uma dama era algo muito frágil. Não importava o que as pessoas pensassem de seu comportamento, afinal era um homem, e sabia bem que, para uma mulher, as conseqüências eram muito mais graves. Propôs-se que sua relação com Emma Dove voltaria a ser impessoal como antes. Em vez de reunir-se com ela, deu a desculpa de que tinha uma reunião de negócios e anulou a entrevista. Mandou as correções com um mensageiro e pediu que respondesse através de Quinn. Mas, infelizmente, a distância não foi o ponto que necessitava. As imagens daquela tarde no Au Chocolat reapareciam em sua mente uma e outra vez, e não podia deixar de reviver o despertar da paixão nos olhos de Emma. Jamais tinha visto algo igual. Até esse instante, não teria sonhado que alguém tão discreto como a Senhorita Dove, pudesse conter semelhante fogo em seu interior. Agora sabia a verdade, mas não servia de nada. Ela não era do tipo de mulher que tem aventuras ilícitas, fato muito lamentável, de modo que sua única opção era redobrar os esforços para ficar longe. Uma coisa positiva era que sua vida doméstica tinha melhorado um pouco. Ao que parecia, Diana resignou-se a que nenhuma das garotas Dillmouth ou Abernathy pudessem levá-la ao altar. Quando a estadia das moças chegou ao fim, retornaram para a casa de Lorde Dillmouth e a vida na Mansão Marlowe voltou a normalidade, pelo menos em sua maior parte. Os cafés da manhã seguiam sendo o momento escolhido para elogiar à maravilhosa Senhora Bartleby. Agora que trabalhava para ele, Harry não ficava incomodado que falassem dela, como quando era empregada de Barringer, o problema era que suas irmãs estavam decididas a descobrir sua identidade. Logo que souberam que ele havia comprado o Social Gazette, e à Senhora Bartleby com ele, desdobraram todo seu arsenal para surrupiar o nome dela e todos os detalhes sobre sua vida. Mas Harry não era tolo. Embora soubesse que suas irmãs eram perfeitamente capazes de guardar segredo, tinha sérias dúvidas a respeito das outras duas fêmeas de sua família. Embora pretendesse ser reservada e distante, sua avó era uma terrível fofoqueira. E sua encantadora mãe não poderia guardar um segredo, nem que sua vida dependesse disso. Então, Harry mantinha os lábios selados. — Como pode ser tão obstinado? — Louisa olhou zangada para ele — Ela escreve para você,
112
não é? Não entendo por que não nos diz quem é. — É vital que preservemos seu anonimato — respondeu Harry enquanto passava manteiga
na torrada. — Nós não vamos contar a ninguém — replicou sua mãe, ofendida — Acredito que sabemos
ser discretas, por todos os Santos. — Você é a discrição em pessoa, mamãe — Respondeu ele mordendo os lábios para não rir — mas tenho que respeitar a vida privada da Senhora Bartleby.
Todas as mulheres da casa aceitaram essa desculpa, mas Harry não gostou nada do modo que Diana o estava observando. Quando se levantou da mesa e pediu que trouxessem a carruagem, ela foi atrás dele com o pretexto de pedir a Jackson que pedisse também uma para ela, pois sairia mais tarde. — Tem notícias da Senhorita Dove? — Perguntou ela enquanto ambos esperavam no vestíbulo — Sabe se já encontrou outro trabalho?
Harry deu a volta e olhou bem nos olhos dela, mas Diana não devolveu o olhar. Parecia absorta colocando as luvas. — Com certeza que sim — respondeu ele. — Talvez esteja escrevendo livros de etiqueta, quem sabe? — Talvez. Embora duvide que eu soubesse. — É o que pensa? — Diana o olhou então e um irônico sorriso apareceu nos lábios dela, mas antes que seu irmão pudesse dizer algo, continuou — Pergunto-me se a Senhorita Dove poderia me
dar alguns conselhos sobre o casamento. É tão eficiente, e estou certa de que tem um gosto impecável. Nem a Senhora Bartleby poderia fazer melhor, não acredita? — Diana... — começou ele, mas ela o deteve. — Não se preocupe, Harry — Seu sorriso ficou mais amplo — Não direi a ninguém. — Nunca consegui entender como descobre as coisas — balbuciou o Visconde. — Simples dedução, irmãozinho. Já sabe o quanto gosto de Sherlock Holmes — Ficou séria — A verdade é que preciso de ajuda com o casamento, Harry e eu adoraria poder contar com as
geniais idéias da Senhora Bartleby. Acredita que poderia pedir à Senhorita Dove que me desse uma mãozinha? — Poderia impedir? — perguntou ele com voz firme. — É claro. Se me dissesse que não, teria que aceitar. Mas você nunca me nega nada. Na
realidade, mima a todas nós. Para você, nada nem ninguém é bastante bom para nós. Harry a olhou com vontade de explicar o porquê. Queria dizer o quanto às amava. Ele era o 113
chefe da família e era sua obrigação cuidar delas, mas arrancaria o coração se algo de ruim acontecesse a elas. Queria dizer que nada parecia o suficientemente bom para elas que estiveram ao seu lado durante os horríveis cinco anos, que demorou para obter o divórcio. Diante dos olhos da Sociedade, as mulheres da sua família estavam tão marcadas como ele, mas nenhuma delas se queixou de nada, nunca questionaram a decisão dele e ele sabia que nunca poderia compensá-las por isso. Harry a olhou nos olhos, querendo dizer todas essas coisas. — Diana, eu...
Deteve-se com as palavras entupidas na garganta. Que ironia. Tão enganador e era difícil dizer o que de verdade importava. Pigarreou e afastou a olhar. — Bem, logo você será responsabilidade de Rathbourne — disse em brincadeira — Pobre
coitado. Sorte, que o dinheiro sai pelas orelhas dele. Mimar você custa muito caro. Ela deu-lhe uma cotovelada no estômago. — Sua carruagem, Milorde — disse Jackson, dirigindo-se para abrir a porta.
Harry pôs-se a andar, mas sua irmã o chamou. — Harry?
Deteve-se e virou a cabeça para olhá-la. — O quê? — Nós também o amamos muito.
Ele arrumou bem o nó do lenço e sentiu um quente sentimento no peito. — Peça todos os conselhos que quiser à Senhora Bartleby — disse — Só peço que seja
discreta. De repente, Diana entendeu tudo. — Diz isso porque a Senhorita Dove não tem experiência e a posição social que todo o mundo supõe? — Quando ele assentiu, continuou — Como as pessoas podem ser tão tolas? — Não estou preocupado com a tolice — respondeu seu irmão encaminhando-se para a porta — As pessoas também podem ser cruéis. Por isso é importante manter a identidade de Emma
em segredo. Não quero que ninguém zombe dela. Emma? Diana ficou boquiaberta olhando como Jackson fechava a porta atrás dele. Harry havia chamado à Senhorita Dove por seu nome. Por menos convencional que seu irmão pudesse ser, havia coisas que nunca fazia e se referir a uma mulher por seu nome era uma delas. A não ser... 114
— Oh, Meu Deus — murmurou Diana, o mordomo a olhou curioso.
Ela negou com a cabeça, mas não disse nada, pois estava tentando digerir tudo o que estava pensando. Um homem não chamava uma mulher por seu nome a não ser que tivessem uma relação íntima. Tratou de recordar a antiga secretária de Harry, e as dúvidas começaram a assaltá-la. Sempre circularam rumores a respeito de seu irmão e da Senhorita Dove, mas ela nunca acreditou nisso. Se a memória não falhava, a jovem tinha o cabelo de uma cor entre castanho e ruivo. Não era feia, mas tampouco possuía uma beleza exótica. E, sem dúvida, não era temperamental. Não era absolutamente o tipo de mulher que atraía Harry e certamente que ele seria o primeiro a reconhecer isso. Mas apesar de tudo, Diana já havia apresentado a ele um monte de morenas temperamentais, desde os cinco anos em que se divorciou de Consuelo, mas nenhuma delas conseguiu prendê-lo durante muito tempo. Talvez o tipo de mulher que convinha a Harry não fosse o que ela acreditava, nem o que acreditava o próprio Harry. Sorriu. Conseguir a ajuda da Senhorita Dove podia ser mais proveitoso do que havia pensado a princípio.
Emma estava decidida a se concentrar no trabalho e não sonharia acordada nem um segundo mais e ainda cumpriria com seu horário. Não ficaria decepcionada quando o Visconde voltasse a enviar as correções com o mensageiro em vez de trazer pessoalmente. Não sentiria falta de suas brincadeiras, nem de suas risadas, nem da companhia dele. E tampouco voltaria a recordar como havia lambido o chocolate dos seus dedos. Há muitos anos já havia decidido que ele não era o tipo de homem que uma mulher como ela, com bom senso, poderia combinar. Qualquer mulher sensata fugiria de alguém como ele como o diabo foge da cruz. Um homem capaz de deixar uma amante por carta, tão propenso a se apaixonar, um homem que não duvidava em por em perigo a reputação de uma dama, e, se por acaso fosse pouco, divorciado e decidido a não se casar novamente jamais. E, apesar de todos seus esforços para mudar e ser mais atrevida, Emma sabia que, no fundo, ela era uma mulher sensata. O melhor seria que mantivessem as distâncias, assim como no passado. Era óbvio que Marlowe raciocinava de igual forma, pois assim demonstravam as duas semanas que levava evitando-a. Ficou olhando a página em branco que estava em sua frente e perguntou para si mesma por que se sentia tão incômoda. O que estava errado com ela? Vivia o sonho que havia perseguido durante tantos anos e não estava aproveitando. As duas últimas seções ampliadas da Senhora Bartleby foi um sucesso. Morava em um apartamento muito confortável, tinha amigas íntimas e uma vida confortável. Que mais podia pedir? Batidas na porta a tiraram de seus pensamentos e ficou de pé de um salto. Atravessou a quarto e abriu para encontrar-se à Senhora Morris com um cartão na mão. — Lady Eversleigh veio ver você, Emma — informou a caseira muito impressionada.
Lady Eversleigh era a irmã de Lorde Marlowe, e apesar de que para a alta Sociedade a família 115
do Visconde era de segunda categoria, as pessoas da classe média continuavam impressionando-se ao conhecer um nobre. A mulher entregou o cartão. — Está esperando no salão.
Emma ficou atônita olhando o pedaço de papel. Não ocorria nenhum motivo pelo qual a Baronesa pudesse ter ido visitá-la. — Por favor, diga a ela que desço em seguida.
A Senhora Morris se foi, e ela tratou de por em ordem os pensamentos. Fosse qual fosse o motivo daquela visita inesperada, não seria nada conveniente que continuasse sonhando com os beijos de Lorde Marlowe tendo sua irmã sentada em frente. Minutos mais tarde, desceu a escada e encontrou à Baronesa conversando amigavelmente com a Senhora Morris. Emma tinha visto a irmã de Harry apenas uma vez, quatro anos atrás, mas só agora percebeu o quanto ela se parecia com Lorde Marlowe. O mesmo cabelo escuro e idênticos olhos azuis. Lady Eversleigh aproximou se de Emma estendendo as mãos para saudá-la. — Senhorita Dove, como vai? Conhecemo-nos faz alguns anos, embora suponha que não se
lembre. — Sim me lembro. Fui a Hanover Square, à casa de seu irmão, para deixar uns contratos para
que ele assinasse. Eu estava de pé no vestíbulo, esperando, e você saía para ir a alguma parte. Perguntou-me quem eu era e logo insistiu em que não esperasse ali e acompanhou-me até o salão. Como pode acreditar que tenha esquecido um gesto tão amável? — Amável? Tolices. Foi simples educação. Que Jackson a tivesse deixado ali de pé no
vestíbulo era imperdoável. Emma estava consciente de que as normas de educação não ditavam que uma Lady acompanhasse uma simples secretária até o salão de um Lorde. O mordomo de Marlowe era bem treinado, e sabia que ela não era uma açougueira, que tivesse que utilizar a porta de serviço, mas tampouco era uma amiga da família, e digna, portanto de esperar no salão. Era óbvio que para Lady Eversleigh as normas sociais importavam tão pouco quanto para seu irmão. — Além disso — acrescentou a jovem antes de voltar a sentar — depois da gratidão que
sentia por você, era o mínimo que podia fazer. — Gratidão? — Perguntou Emma ao tomar também assento. — Sim. Graças a você, Harry começou a se lembrar dos aniversários e de seus compromissos — Olhou à Senhora Morris — Minha família está em dívida com a Senhorita Dove. — Ora — disse a caseira, satisfeita com sua inquilina.
A Baronesa voltou a atenção para Emma, e seu gesto malicioso foi idêntico ao de seu irmão.
116
— E tenho de confessar que você escolhe os melhores presentes. Só Deus sabe o que nos
dará de presente agora que você já não é sua secretária. Emma sorriu. — Supõe-se que esse segredo jamais tenha que sair à luz. — Sim, bem, meu irmão já deve ter contado o quanto gosto de resolver mistérios e descobrir segredos — Hesitou alguns segundos — De fato, os segredos são parte da razão porque vim hoje
aqui. — Ah, sim? — O assombro de Emma aumentava a cada segundo. — Sim — A Baronesa olhou de esguelha à Senhora Morris — Gostaria de falar com você
sobre um assunto muito importante e delicado... Com essa deliberada pausa, a caseira captou a indireta. — Deus santo — disse ao levantar — Com todas as coisas que tenho para fazer e estou aqui perdendo tempo. Tenho que deixá-las. Aproveite sua visita, querida Emma — acrescentou, tratando
de ocultar a decepção que sentia de não poder ficar. Saiu e fechou a porta atrás dela, deixando as duas mulheres sozinhas. — No que posso servi-la, Lady Eversleigh? — Perguntou Emma.
Diana sorriu com tristeza. — Odeio que as pessoas me chamem por meu título. Esse nome me traz... — fez uma pausa e fechou os olhos — traz-me más lembranças — Abriu os olhos e se inclinou para ela — Gostaria
que pudéssemos utilizar sempre nossos nomes sem mais. Tudo seria muito mais fácil. Dar tanta importância aos títulos nobiliários e marcar tanto as distâncias é em certas ocasiões, muito aborrecido. Embora suponha que você, sendo como a famosa Senhora Bartleby, a porta-bandeira das boas maneiras e o decoro, não estará de acordo comigo. Ela não pode ocultar a surpresa. — Sabe quem sou? — Já disse que gosto de resolver mistérios. Mas prometi a Harry que não diria a ninguém, e
ele sabe que pode confiar em mim. O segredo da identidade da Senhora Bartleby está a salvo comigo. Agora, no que se refere ao motivo de minha visita, suponho que saberá que em janeiro me caso com o Conde de Rathbourne. — Sim, e, por favor, aceite minha mais sincera felicitação pelo compromisso. Mas sinto
curiosidade, Baronesa, o que tem a ver seu casamento comigo? — Minhas irmãs, minha mãe, minha avó e eu lemos todas as semanas seus artigos. Nós
adoramos a Senhora Bartleby.
117
Ao escutar essas amáveis palavras, Emma sentiu que a alagava um enorme prazer. — Fico feliz! Espero não decepcioná-las. — Não se preocupe, não decepcionará. Vim vê-la porque, depois de descobrir sua
identidade, quero pedir um favor. Sei que é muito atrevido de minha parte, mas preciso que me ajude. Veja... — A Baronesa fez uma pausa movimentando-se incômoda no sofá — Suponho que sabe que o divórcio de Harry foi muito desagradável. Sobretudo para ele, mas também para nós. — Sim — Emma a olhou com compreensão — Eu sei. — Muitas de nossas amizades condenaram meu irmão por seu comportamento. Nos
periódicos de comportamento nos criticaram sem piedade, tanto a ele como a nós. Disseram um monte de coisas horríveis. E que a Rainha fizesse uma declaração pública condenando o divórcio e censurando a todos aqueles que se atreviam a romper os laços matrimoniais, não nos ajudou muito. Embora a crítica tenha sido geral, todo mundo soube a quem se dirigia, e isso significou nossa morte social. Emma mordeu o lábio, arrependida e envergonhada por ter opinado como todo mundo a princípio. Nesse instante, o olhar estreito da Sociedade a incomodou como nunca antes. — Em minha opinião, não é justo que toda uma família tenha que pagar pelo
comportamento de um de seus membros. E no que se refere ao divórcio de seu irmão, ele e eu falamos do assunto não faz muito e entendo que foi uma decisão muito difícil. Sei que não tomou esta decisão de maneira leviana. — Harry contou sobre seu divórcio? — Diana olhou atônita para Emma — Falou com você
dessa época? — Sim, um pouco. Parece surpresa, Baronesa. — Eu estou. Harry nunca fala sobre coisas que o magoaram. Nunca — ela riu — Bem, ao que
parece o dia de hoje está cheio de surpresas. — Lamento muito que sua posição social tivesse ficado tão prejudicada por tudo isso. Se
quiser que a Senhora Bartleby escreva um artigo condenando tal comportamento, farei isso encantada. — Não, não. Não é por isso que vim vê-la. E, em todo caso, Harry agora é o proprietário do
Social Gazette e as pessoas acreditarão que ele a obrigou a fazer isso. — É verdade. Não havia pensado nisso. Então, o que é que precisa da Senhora Bartleby? — Quero que me ajude a organizar meu casamento. — Seu casamento? — Emma estava atônita — Mas com certeza sua mãe, sua avó e seus
irmãs... — Amo muito minha mãe, Senhorita Dove, mas, para ser sincera, é um pouco cabeça de
vento. Minha avó está atrelada as tradições antigas e ainda acredita que um casamento não é um 118
casamento sem arroz e sapatos usados, e nós duas sabemos que hoje em dia isso já não é assim. Minhas irmãs estão ajudando tanto como podem, é claro. Vivian desenhou meu vestido, adora costurar roupas. E na verdade é muito boa. — E Phoebe está ocupada com os convites e organização das mesas. Mas a quem de verdade
preciso é à Senhora Bartleby. Quero que tudo saia perfeito. E não só por mim e por minha família, mas também por Edmund. Meu noivo também leva o estigma do divórcio. Se nosso casamento for impecável, ninguém poderá nos jogar nada na cara. Inclusive irei mais longe, quero que nosso casamento seja o acontecimento social do ano e para conseguir isso preciso das inteligentes idéias da Senhora Bartleby. Quero que me ajude a escolher as flores, o cardápio, a decoração... tudo — Fez uma pausa e sorriu de um modo que Emma voltou a recordar o Visconde — Disse que meu pedido era um pouco exagerado. — Absolutamente! Estou muito lisonjeada que tenha pensado em mim, Baronesa. — Tenho que adverti-la de que, se as pessoas souberem que me ajudou talvez sua reputação
possa ser prejudicada. Ela pensou um instante. — Imagino que sim, mas tal como disse, não me parece bom julgar ninguém pelo que os outros fazem — Inspirou fundo, consciente de que era uma decisão arriscada, mas sabendo que sua consciência não permitiria fazer o contrário — Se alguém me criticar por tê-la ajudado a organizar
seu casamento, significa que esse alguém tem uma opinião que não merece ser levada em consideração. — Acredito que podemos evitar problemas se mantivermos sua participação em segredo.
Não podemos dizer nem a minha mãe nem a minha avó, porque diriam a todo mundo, mas minhas irmãs sabem ser discretas. — Ficarei encantada de ajudá-la em tudo o que possa.
Diana agarrou as mãos dela em um gesto de agradecimento. — Obrigada, Senhorita Dove. — Estou muito animada, realmente. Quando você quer começar a organização? — Deixe que eu pense. Minha família ficará em Torquay durante todo o mês de agosto.
Emma assentiu. Toda a alta Sociedade ia a Torquay em agosto. — Harry só ficará uma semana, diz que tem muito trabalho aqui em Londres —prosseguiu a Baronesa — Parece que a única coisa que faz é trabalhar. Às vezes me preocupa que trabalhe tanto. — É sua idéia de diversão — disse Emma sem pensar.
Diana a olhou com surpresa. — Sim, tem razão — disse devagar, estudando a jovem de outro ponto de vista — E esse é
119
outro dos motivos pelos quais muitos esnobes o condenam. Dizem que um cavalheiro não deveria trabalhar para ganhar a vida. Aparentemente, teria que estar por cima desse tipo de coisas. — Então, não estranho então que a maioria dos nobres esteja arruinada.
Essa resposta fez Lady Eversleigh rir. — Uma observação muito perspicaz, Senhorita Dove, e muito certa. Em todo caso, quando
voltarmos de Torquay, iremos diretamente à Mansão de meu noivo, em Derbyshire, para passar ali algumas semanas. Depois iremos para Berkshire no fim de setembro, onde passaremos o outono em Marlowe Park. Proponho que vá nos visitar ali na primeira semana de outubro. Embora tenha que adverti-la que tanto minha mãe quanto minha avó não a deixarão em paz tentando descobrir a identidade da Senhora Bartleby. — Já estou acostumada — a tranqüilizou — E aceito encantada seu convite. Certamente
organizaremos as melhores núpcias do ano. — Oh, me alegro tanto por ter vindo visitá-la! — Agarrou as mãos de Emma com carinho —
Obrigada por concordar em me ajudar. Depois que Lady Eversleigh saiu, ela retornou para seu quarto. Sentou-se à escrivaninha, ainda incapaz de assimilar tudo o que havia ocorrido. Que a Baronesa pedisse sua ajuda para organizar seu casamento era uma grande honra. Haveria quem deixaria de ler seus artigos se soubesse disso, mas mesmo que Lady Eversleigh não tivesse oferecido manter segredo, Emma teria aceitado de qualquer maneira. Pela primeira vez em sua vida não importava o que as pessoas pudessem pensar, e isso sim que era na verdade surpreendente.
120
Há homens que se sentem atraídos pelas mulheres virtuosas. Se algum de vocês descobrirem que se encontra em tal circunstância, contem com toda minha simpatia. Lorde Marlowe Guia para Solteiros, 1893
Harry nunca havia se dado bem, enganando a si mesmo. Era precisamente por isso que sempre prestava atenção ao seu instinto, este estava acostumado a dizer a verdade, pressupondo claro, que ele estivesse disposto a escutá-lo. Mas ultimamente, não podia confiar nele, pois, enquanto seu instinto comercial dizia que permanecesse afastado de Emma Dove, seu instinto masculino o aconselhava algo completamente diferente. Desejava-a e evitá-la não fez com que esse desejo desaparecesse, essa era a pura e inegável verdade. Harry se apoiou contra a escrivaninha e apertou os dedos contra a mesa de madeira. À suas costas, podia escutar como Quinn relia o que ele havia ditado, mas não estava prestando atenção. Em vez disso, olhou através da janela do escritório e tratou de afastar Emma de seu pensamento. Emma. Que nome tão inocente. Embora ultimamente seus pensamentos não fossem nada inocentes. Na realidade, eram bastante tórridos e a cada dia que passava ficavam piores. Fechou os olhos e recordou-se das curvas do corpo dela, uma a uma, esboçou cada linha, cada curva de suas longas pernas, de seus pequenos seios e daquela longa cabeleira castanha que ficava ruiva sob o sol do entardecer. — E portanto, vejo-me obrigado a recusar sua oferta... — A voz de seu secretário flutuou até
ele. Emma. Um nome lindo. Respirou fundo, imaginando o aroma de limpeza e de talco, o aroma de Emma. Pela enésima vez, imaginou-se beijando seus lábios e o resto de seu precioso corpo. Imaginou despindo-a, desabotoando a camisa e fazendo um monte de coisas impróprias. — Se estivessem dispostos a reconsiderar as condições que a princípio os propus...
Que ele era atraente, ela havia dito aquele dia nos jardins do V itória Embankment e tão séria como se estivesse recitando uma lição de catequese. Com seus olhos amendoados arregalados e sem um ápice de flerte ou estudada sedução. Olhos inocentes. Harry não queria que ela fosse inocente. Qualquer homem solteiro e que desejasse continuar assim, teria que se manter afastado das 121
virgens inocentes. Ele só esteve com uma em toda sua vida, em sua noite de núpcias e ainda recordava de quanto tudo foi ruim. Foi um desastre, o prelúdio do que ia ser o resto de sua vida matrimonial. Em sua mente, retrocedeu quatorze anos. Parecia outra vida. Todo o drama de Consuelo começou quando ele foi à Nova Iorque para fazer negócios com o pai dela. Quando o Senhor Estravados o convidou para passar um mês em Newport, onde ele e sua família veraneavam, Harry aceitou encantado. E assim foi como, durante uma calorosa e úmida tarde de agosto em Rhode Island, com apenas vinte e dois anos, olhou por cima da rede da quadra de tênis na que estava jogando e viu um par de olhos escuros, atormentados e inocentes...E toda sua vida virou do avesso. Inclinou a cabeça, fixou o olhar no tapete e recordou de Consuelo tal como a tinha visto pela última vez, de joelhos e com as mãos unidas, chorando. Suplicando, por Deus que se divorciasse dela. — Deixe-me ir, Harry. Por favor, deixe-me ir.
— saudações cordiais, etc. etecetera. Quer mudar alguma coisa, Milorde?
Foi o silêncio o que o trouxe de volta ao presente. — O que?
Olhou para trás e viu Quinn olhando-o sem se alterar. — Quer mudar algo da carta, Milorde, ou já posso enviá-la?
Não havia escutado nenhuma palavra do que o jovem havia dito. — Está perfeita — respondeu — Mande-a.
Quinn saiu de seu escritório, e Harry passou as mãos pelo rosto. Maldição, se pensar em Consuelo não conseguia fazê-lo voltar à razão, nada faria. O que estava acontecendo? Ultimamente parecia incapaz de controlar seus pensamentos. Talvez necessitasse de uma nova amante. Certamente que iria ajudá-lo a se concentrar. Ou possivelmente, fosse um alívio mais imediato. Apanhou seu chapéu e saiu do escritório imediatamente. Ao passar ao lado da mesa de seu secretário, disse: — Estarei fora o resto do dia. — Mas Senhor, acredito...é que, acredito...
Harry parou junto à porta. — Sim, sim, diga — espetou com impaciência — o que é que houve?
O jovem olhou inseguro para o Visconde. — Anotei que tem uma reunião em seu escritório dentro de alguns minutos — Olhou para a
122
sala do Visconde e com o dedo assinalou o calendário. — O Senhor William Sheffield, encarregado da produção do Social Gazette, virá às duas. Acredito que queira discutir com ele sobre novos procedimentos. Embora talvez esteja enganado —
E o olhou com aquela expressão ansiosa que tanto incomodava Harry. Para você tudo é um jogo. Não se importa com os outros...E não posso evitar pensar que leva uma vida dissoluta... Seu desprezo pelo casamento, suas aventuras com bailarinas e outras mulheres de má reputação. Ao recordar essas palavras, Harry perdeu a vontade de ir ao bordel, passar a tarde nos braços de uma cortesã já não parecia uma idéia tão atraente. Apertou os olhos com as palmas das mãos e suspirou resignado. Supunha-se que deixaria de pensar em Emma Dove. Imaginá-la nua já era uma coisa ruim, mas tinha também de recordar os sermões que ela passou? Harry levantou o olhar. — Não, Senhor Quinn, não está enganado — Puxou o relógio pendurado de seu bolso e viu que ainda faltava um quarto de hora para sua reunião — Irei eu mesmo ao outro edifício para reunir-me ali com Sheffield — disse, confiando em que o curto passeio o ajudasse a limpar a mente. Voltou para guardar o relógio e, antes de sair, deteve-se um instante — Quinn? — Sim, Senhor? — Obrigado por recordar quais são minhas responsabilidades. Faz parte de seu dever
assegurar-se de que chego a tempo em minhas reuniões. Continue fazendo isso. Deixando um atônito Senhor Quinn, Harry saiu dali. Quando chegou ao escritório de Sheffield alguns minutos mais tarde, decidiu que se concentraria apenas nos negócios e, durante as duas horas que durou a reunião, conseguiu não voltar a pensar naquela preciosa e inocente mulher que morria de vontade de beijar. Nenhuma só vez pensou em desabotoar os botões de sua camisa, nem em levantar a recatada saia de lã. Enquanto escrevia o editorial do Guia para Solteiros, não voltou a rememorar o aroma de talco, nem a sonhar com o toque de seu pé. Nenhuma só vez. Então ela apareceu e todo seu esforço foi pelo ralo. Harry despediu-se do Senhor Quinn e já ia saindo do escritório quando a mulher que estava tentando esquecer chocou-se com ele e fez com que ambos parassem em seco na metade do corredor. Em um ato reflexo, segurou-a pelos braços para evitar que caísse. — Oh, sinto muito — disse Emma e levantou a vista dos papéis que levava nas mãos.
A colisão entre ambos fez com que uma corrente elétrica carregada de desejo percorresse Harry da cabeça aos pés e bastou ver aquele rosto sardento e aqueles lábios rosados, para que suas duas horas de árduo autocontrole desvanecessem em um instante. — Lorde Marlowe — disse ela surpresa — O que está fazendo aqui?
Harry percebeu que ainda a segurava nos braços. Soltou-a, deu um passo atrás e se obrigou a dizer alguma coisa. 123
— Bem, afinal sou o proprietário — respondeu, numa tentativa de falar com ligeireza —
Além disso, este é meu escritório. De vez em quando estou acostumado a vir por aqui. — Sim, claro — disse ela, levando uma mão à cabeça — Foi uma pergunta tola, não? É que eu estava pensando... — Fez uma pausa e assinalou os papéis que levava na outra mão — Quero
dizer, que estava lendo e não olhei por onde andava. Está bem? Não pisei no seu pé? — Não — Respondeu ele, mas na realidade queria era gritar que não, maldição, que não
estava bem e que tudo era culpa dela. Nesse instante, todas as partes de seu corpo que se chocou contra o corpo dela ainda ardiam. Desesperado, tratou de pensar em algo para dizer. — O que estava lendo que a deixou tão distraída?
Ela moveu os papéis. — Rascunhos para a próxima edição. — Ia deixá-los em seu escritório antes de sair. Vou a Inkberry.
Corajoso, Harry tratou de seguir com a conversa. — À famosa livraria? — Quando ela assentiu, continuou — Acreditava que a reportagem
desta semana abordaria sobre doces. Mudou de opinião? — Não, não — Assegurou ela — A idéia ainda segue sendo essa, como poderá comprovar pelos rascunhos — Entregou-lhe os papéis datilografados — Vou à livraria porque quero ver se o Senhor Inkberry recebeu algum livro sobre a história de... — Pigarreou — Sobre a história do
comércio do chocolate. Emma meteu a mão enluvada no bolso da saia, a mesma mão que ele havia beijado duas semanas antes, e um delicado rubor cobriu-lhe as faces. Harry percebeu que ele não era o único que não pode deixar de pensar no que aconteceu naquele dia e com o mal estar que passou ultimamente, alegrou-se de que fosse assim. — Sua irmã, Lady Eversleigh, veio me ver esta tarde — Olhou ao seu redor e acrescentou sussurrando — descobriu que sou a Senhora Bartleby e veio pedir minha ajuda para organizar seu
casamento. — Sim, eu sei. Diana tem um talento inato para descobrir os segredos dos outros. Mas me
jurou que não dirá nada. — Sim, me disse isso — fez-se um longo silencio, e então Emma olhou o relógio — Já são
mais de quatro. Devo ir. — Espere um momento, eu a acompanharei até lá embaixo — disse ele, as palavras
escapando dos lábios antes que pudesse evitar.
124
Já não podia voltar atrás, e o pior de tudo era que não queria. Entrou em seu escritório, deixou os papéis que em cima da mesa e retornou ao corredor. Apontou para a escada, e ambos se encaminharam para ela. — É Inkberry a melhor livraria de Londres segundo a Senhora Bartleby? — É claro. Mas embora não fosse assim, não me atreveria a dizer — acrescentou — Os
Inkberry ficariam muito magoados que os traísse e recomendasse outro estabelecimento. — Deduzo que conhece os proprietários. — Sim, conheci o Senhor e à Senhora Inkberry quando resolvi viver em Londres. Ela era a melhor amiga de minha tia — Sorriu — E o Senhor Inkberry é um encanto. Sempre que recebe um
novo livro sobre etiqueta, guarda para mim. Eu gosto de ver o que os outros autores escrevem. — Ah, assim agora espia a concorrência? É uma grande idéia — deteve-se para abrir a porta — Pelo que sei, é uma grande livraria — prosseguiu Harry, caminhando junto à Emma pela calçada — e diz que dispõe de uma ampla coleção de volumes antigos. É verdade? — Alguma vez esteve ali? — perguntou ela — Não, não tive o prazer. — Quer... — Fez uma pausa e pigarreou — Se não tiver nada a fazer, talvez pudesse... Quer
dizer, Inkberry é na verdade a melhor livraria de Londres. Há outras igualmente famosas. Hatchards, por exemplo, mas Inkberry é muito superior, pelo menos para mim. E...e além disso, você tem que vê-la. Quero dizer, sendo editor, e...e todas essas coisas... — Ficou calada tentando deixar de balbuciar, e respirou fundo — Gostaria de me acompanhar? Não deveria. Mas ia fazê-lo. Sabia inclusive antes dela perguntar, porque Harry nunca tinha se dado muito bem fazer o que devia. — Será um prazer.
A campainha tilintou quando Lorde Marlowe abriu a porta da Inkberry para que ela passasse. Emma entrou e ele a seguiu. Um ancião que estava atrás do mostrador sorriu ao vê-la. — Emma! — Saudou-a carinhoso, saindo de onde estava. — Bom dia, Senhor Inkberry. Encontra-se bem? — Mais ou menos — Assinalou-a com um dedo — Josephine a vê cada domingo na hora do
chá, mas eu não tenho tanta sorte. Fazia muito tempo que não aparecia por aqui, querida. — Eu sei, e sinto muito. De verdade. Mas prometo que no futuro não voltará a acontecer.
Como está à Senhora Inkberry? — Muito bem. Está lá em cima, tem que subir para vê-la antes de sair. Ficará para tomar o chá conosco? — Olhou o homem que a acompanhava.
125
— Oh, Senhor Inkberry, ele é o Visconde Marlowe. Já sabe que durante uma época trabalhei
para a Marlowe Publishing. Milorde apresento-lhe o Senhor Inkberry. — Como vai? — Harry inclinou a cabeça — Ouvi dizer que sua livraria é a melhor de Londres. — E eu não tenho nenhuma dúvida de quem disse — respondeu o ancião com um sorriso e olhando a jovem com carinho — Acredito que chegaram alguns livros novos sobre etiqueta, e também alguns de cozinha — Apontou uma porta que conduzia ao piso superior — Eu os deixei no
lugar de sempre. Emma cruzou a porta, e caminhou para cima. Marlowe ficou para trás, conversando com o Senhor Inkberry e as vozes dos dois homens foram se apagando a medida que ela entrava nos aposentos de trás. As janelas permitiam que a luz do sol penetrasse pelas estantes superiores, mas o interior era quente comparado com o frio que fazia no exterior. O peculiar aroma de pó impregnava o ar. Dirigiu-se para a parede do final, em que o Senhor Inkberry guardava os livros para seus melhores clientes. As caixas que continham os volumes estavam debaixo do vão da escada que conduzia à moradia particular dos proprietários. Emma puxou para poder vê-la e inspecionar seu conteúdo, mas não havia nada interessante. Alguns livros de cozinha da Senhora Beeton, que já tinha lido e alguns manuais de etiqueta da Senhora Humphrey, que não mostravam nada de extraordinário. Também um exemplar do Livro de conduta para todos, de M. C, e o excelente manual Normas e Conselhos para a boa Sociedade, escrito por “ um membro da alta aristocracia ” . Devido ao fato de que havia lido todos, voltou a empurrar a caixa para seu lugar e decidiu investigar os outros livros que havia por ali, pois aquela sala era a que mais gostava de toda a livraria. Ali estavam os livros mais exóticos, os guias de viagem de Baedeker e Cook, os livros de história de outros países e montes de mapas. Se o Senhor Inkberry tivesse algo sobre a história do comércio do chocolate, certamente estaria ali. Percorreu as estantes, e se divertiu vendo que havia inclusive alguns exemplares sobre poesia árabe. Foi lendo os títulos das lombadas, movendo a cabeça para cima e para baixo até que alguns exemplares perfeitamente encadernados em pele avermelhada captaram sua atenção. Ficou nas pontas dos pés e esticou o pescoço para ler melhor os títulos. Quando percebeu do que se tratavam, uma exclamação de surpresa e deleite escapou de seus lábios. O Senhor Inkberry nunca falou deles. É claro que não. Começou a contá-los e sua alegria foi ainda maior ao comprovar que a coleção estava completa e os dez volumes em perfeito estado. Não poderia comprá-los, mas... Bem, não aconteceria nada se olhasse um pouquinho. Estirou os braços e ergueu a mão, mas nem sequer nas pontas dos pés conseguiu alcançá-los. Abaixou o braço e com um suspiro de resignação, voltou a apoiar-se no chão. — Deixe que eu faça isso — disse uma voz profunda atrás dela.
Emma ficou gelada ao ouvir Marlowe atrás de suas costas. Ficou surpresa com sua proximidade, pois não o percebeu quando ele entrou. Quando Harry levantou um braço para alcançar um dos livros que ela queria, roçou-lhe o ombro com o torso e ela pode cheirar seu aroma de sândalo. 126
Agarrou o volume, mas quando Emma deu meia volta e estendeu a mão para apanhá-lo, ele não o deu, mas sim, para maior vergonha dela, leu o título. — As mil e uma noites — disse — por Sir Richard Burton. Décimo volume — Olhou-a divertido — E durante todo este tempo esteve falando de normas de etiqueta?
Pega em flagrante, a jovem levantou o queixo e tratou de aparentar tanta dignidade quanto foi possível. — Não sei a que se refere — disse.
Harry golpeou a palma da mão com o livro. — Pergunto-me — murmurou — acredita que à Senhora Bartleby dirá que é um livro
adequado para uma jovenzinha tão educada como você? — Absolutamente.
Tratava-se da versão ampliada dos contos árabes e se dizia que eram muito explícitos. Emma tratou de mudar o tema da conversa. — Talvez seja educada, Milorde, mas já não sou nenhuma jovenzinha. — Não? Pois aparenta uns dezenove — Levantou a mão que estava livre e acariciou sua face — Por causa das sardas.
Ela sentiu um estranho comichão no estômago, e a sensação foi maior quando ele percorreu o maçã do rosto com os dedos. Harry afastou a mão antes que a moça pudesse dizer que não a tocasse desse modo e deu um passo atrás para entregar o livro com uma reverência. Emma não o pegou. Do que serviria? Jamais poderia comprá-lo e tudo o que queria era dar um olhar furtivo. Agora nem sequer poderia fazer isso, não com ele ali observando-a, olhando-a como fazia. Sacudiu a cabeça. — Volte a colocá-lo com outros, por favor.
Em vez de obedecer, o Visconde abriu o livro para olhar o interior e logo levantou a vista para o resto da coleção. — São da primeira edição de 1850 — disse, olhando-a de novo nos olhos — Hoje em dia é
muito difícil encontrar os dez volumes. Não os quer? Emma estava morrendo de vontade de tê-los. — Não — mentiu — Tal como disse, a versão de Burton não é apropriada para alguém como
eu. — E dai? Compre-os de qualquer forma. Não direi a ninguém que os livros são picantes — Não são picantes — protestou ela.
127
— Já os leu? — Não a versão de Burton! Mas li a de Galland — Engoliu em seco — Só queria vê-los
para...para poder compará-los. — É só para isso, sem dúvida.
A curva que ficou desenhada em seus lábios deixou claro que não acreditava absolutamente, mas por sorte, voltou a colocar o livro em seu lugar sem mais comentários. — E você gostou da versão de Galland? — Sim, muito. Mas acredito que se eu estivesse no lugar de Scherezade não teria
sobrevivido. — Por que diz isso? — Não acredito que meus sermões sobre normas de etiqueta tivessem conseguido
impressionar o Sultão até o ponto da indulgência. Para um homem, os contos sobre gênios mágicos e tapetes voadores são muito mais emocionantes que aprender a por a mesa. — Temo que nisso pense como o Sultão, mas no que se refere à sorte que teria deslocado... — Fez uma pausa e a percorreu com o olhar — Subestima seus encantos, Emma.
Ao escutar essas palavras um prazeroso calor tomou conta de seu corpo, mas quando o olhar de Lorde Marlowe parou em seus lábios, ela imaginou que estivesse dentro de um forno e optou por dar as costas ao homem. De volta às estantes, percorreu as lombadas dos livros com os dedos, como se lesse os títulos, embora não pensava absolutamente em poesia persa. Eu gostaria muito de beijá-la. Ficou enjoada só de pensar nisso. Com o Visconde bem atrás, ela fechou os olhos e novamente imaginou os lábios dele em sua pele. O que sentiria se ele a beijasse? Ouviu um som e abriu os olhos. Olhou por cima de seu ombro e viu que ele continuava ali, inspecionando as estantes justamente por cima dela. Emma tratou de recuperar o controle e optou por iniciar uma conversa. — Que tipo de livros gosta de ler?
Ele pegou um, olhou-o e voltou a guardá-lo. — A verdade é que eu não gosto de ler. — Não lê? Mas se dedica a publicar livros. — Por isso mesmo. Quando eu era um menino, adorava ler, mas ultimamente ando lendo
todo o tempo por obrigação e isso deixou de ser algo prazeroso. Quando tenho tempo livre, a última coisa que quero é pegar um livro.
128
— É lógico, suponho. No entanto para mim, ler é toda uma aventura. Com um livro posso
viajar por todo mundo e visitar lugares que nunca estive nem poderei estar. — E se pudesse viajar de verdade? — Ele agachou-se até ficar colado na orelha dela, e quase sussurrou — Se tivesse um tapete mágico e pudesse ir a qualquer parte, aonde iria?
Estava tão perto, que Emma podia sentir o calor que emanava de seu corpo, atrás dela, nas escuras sombras da livraria, enquanto ambos seguiam ali ocultos. Ele levantou os braços justo por cima dela, prendendo-a entre eles, mas sem tocá-la. Primeiro estremeceu, mas depois ficou quieta, olhando as mãos e os longos dedos que apertavam com força a estante. Sua respiração acelerou. — Aonde iria? — Repetiu ele, roçando a orelha com seu hálito quente e fazendo-a tremer —
Ao harém do Sultão? — É claro que não! — respondeu ela recatada, escolhendo um livro ao azar e fingindo que
lia. Era O Rubaiyat. Isso não deteve Lorde Marlowe, que, por cima do ombro dela, viu o título impresso na cabeceira da página. — Assim que seu destino seriam os jardins persas de Ornar Khayyám? — riu com uma risada profunda e gutural — Acredito que debaixo da armadura de maneiras e normas de etiqueta que
Emma Dove tem, oculta-se o coração de uma hedonista 6 — O quê? — exclamou ela fechando o livro de repente, e depois de devolvê-lo ao seu lugar, deu meia volta, furiosa pelo qualificativo — Eu não sou tal coisa! — Ao dar-se conta de que tinha gritado, olhou ao seu redor, por sorte, continuavam sozinhos — Por favor, procure não me insultar. — Não queria insultá-la. Ao contrário. Esta face oculta de sua personalidade me fascina. — O que tem de fascinante em algo tão atroz? — Não é atroz. E me fascina porque faz cinco anos que a conheço e nunca imaginei que
pudesse ser assim. Quanto mais tempo passo ao seu lado, mais consegue me surpreender. Inclinou-se para ela, que o empurrou para sair daquela prisão que mais parecia um abraço, mas ele não se moveu. Depois dessa fuga frustrada, a jovem jogou a cabeça para trás e franzindo a testa, olhou-o nos olhos. — Não tem direito a me dizer tal coisa. Hedonista! Ora que tolice!
6
O hedonismo (do grego hedonê, "prazer", "vontade") é uma teoria ou doutrina filosófico -moral que afirma ser o prazer o supremo bem da vida humana. O significado do termo em linguagem comum, bastante diverso do significado original, surgiu no iluminismo e designa uma atitude de vida voltada para a busca egoísta de prazeres materiais. Com esse sentido, "hedonismo" é usado de maneira pejorativa, visto normalmente como sinal de decadência.
129
— Não há nada de pejorativo em desfrutar os prazeres da vida. Deus sabe que a todos nós
acontecem muitas coisas ruim ao longo dela. E tem que saber que cheguei a essa conclusão depois de conhecer seus gostos. — Meus gostos? Não tenho nem idéia do que está falando. — Trufas cheias de licor, pêssegos amadurecidos. Os contos de Scherezade e os poemas
persas de Khayyám. Parece-me que é uma pessoa com gostos muito terrestres. — Não sou! — negou com um furioso sussurro — Faz com que minha paixão pelo chocolate
e fruta pareça algo decadente. Algo...carnal. — A comida pode ser muito carnal, acredite — Entrecerrou os olhos — Atribua a meu
caráter dissoluto. Estava se comportando como no outro dia. Emma esteve a ponto de levar os dedos aos lábios, mas se deteve e deixou a mão cair. Lorde Marlowe sorriu como se soubesse o que ela estava pensando. Como se também ele estivesse pensando o mesmo. Olhava para seus lábios como se estivesse pensando em beijá-la e em fazer muitas outras coisas, coisas carnais. Emma não tinha mais que uma vaga idéia do que isso podia significar, mas antes que pudesse evitar, um delicioso calafrio de emoção percorreu todo o corpo. — E, além disso, está enganada — acrescentou ele.
Ela tratou de pensar, mas sua proximidade, junto com suas palavras, tornava impossível. — Sobre o quê? — Se tivesse enfrentado o Sultão com uma caixa de bombons sob o braço, asseguro que
teria sobrevivido. A lembrança do que aconteceu duas semanas atrás no “Au Chocolat ” aumentou a emoção que sentia e envergonhada, desviou o rosto. Era lógico que ele a considerasse uma hedonista. O que outra coisa podia pensar um cavalheiro se uma mulher permitia que roçasse sua perna com a dele no meio do parque? Ou que lambesse o chocolate que tinha nos dedos? Ou se deixava que a abraçasse em uma livraria? A rígida educação de Emma condenava tais comportamentos, apesar de que algo no fundo de sua alma ansiava com desespero para voltar a sentir todas essas coisas. Com desespero olhou nos olhos de Lorde Marlowe e contra atacou. — Sou uma mulher virtuosa, Milorde — espetou — E não absolutamente decadente ou
carnal! Eu não sou uma mulher...apaixonada! — Ah, não? — Harry levantou uma mão e com os nódulos dos dedos acariciou seu queixo.
Jogou-lhe a cabeça para trás e continuando, roçou seus lábios com as pontas dos dedos. Ela estremeceu, e o pânico retrocedeu, junto com as forças para continuar resistindo. Não. Não me toque. Não faça essas coisas. Tratou de falar, mas não pode expressar nenhum desses protestos. 130
Tudo o que podia fazer era continuar ali de pé enquanto ele continuava olhando os lábios entreabertos dela e desenhando-os com os dedos. Uma e outra vez, fazendo com que seu tremor se intensificasse, até que sentiu como se um milhão de mariposas revoassem em seu interior. O Visconde deslizou a mão para sua face e ela suspirou assustada. — O que está fazendo? — Sussurrou.
Ele inclinou a cabeça e seus lábios se detiveram poucos milímetros dos dela. — Criando uma norma de etiqueta — murmurou.
E então ele a beijou. No momento em que sua boca tocou a dela, Emma esqueceu onde estavam, esqueceu o que era ou não era apropriado, de tudo o que ensinaram sobre o que era certo e o que era errado. Ali, a meia luz e entre livros cobertos de pó, esqueceu de que só os noivos podiam se beijar e que ela era uma solteirona de trinta anos. Com a cálida mão de Harry acariciando sua face e seus lábios dele cobrindo os seus, ela compreendeu o que era a felicidade, a bela e dolorosa felicidade. Não podia comparar a nada que houvesse sentido antes. Não podia comparar a nada que tivesse imaginado. Era como a primavera. Fechou os olhos e seus outros sentidos adquiriram uma clareza que não possuíam antes. Percebeu o aroma masculino que emanava de Harry, a rugosidade da palma da mão dele contra sua face, o sabor de sua boca ao separar seus lábios com os dele. O som de seu próprio coração, pulsando como as asas de um colibri em busca do céu. Seus lábios pareciam extremamente sensíveis, pois os sentia conectados a cada poro de seu próprio corpo, que tremia, vibrava, estremecia. A pele ao redor da boca ardia um pouco ao roçar a dele, mais áspera e percebeu de que era devido a sua barba incipiente. Que diferença havia entre homem e mulher e que maravilhoso. Tão estranho e de uma vez tão próximo. Ela levantou as mãos para poder tocar o torso dele. Sentiu a suavidade da seda do colete debaixo de sua mão e debaixo deste os músculos, duros e fortes. Emma deslizou as mãos por seu peito até alcançar os ombros, saboreando pela primeira vez a força que desprendia um homem, consciente de que, ao menos por um instante, toda essa força pertencia e podia fazer com ela o que quisesse. Ela enlaçou seu pescoço com os braços e se apertou contra o corpo do Visconde, desejando que essa sensação a envolvesse. Esse movimento pareceu fazer explodir algo dentro de Harry, pois um som profundo saiu de seu interior e com a mão que estava livre, enlaçou a cintura dela. Levantou-a do chão e a colou contra ele por completo. Afastou a outra mão de sua face e segurou com ela a nuca, beijando-a com maior profundidade, deslizando a língua entre seus lábios. Emma gemeu surpresa, mas então ele acariciou sua língua com a dela e uma onda de gozo percorreu o seu corpo. Pela primeira vez entendeu verdadeiramente o que era o prazer carnal. Abraçou-se a ele, apertando ainda mais o corpo contra o dele, com um atrevimento que deveria tê-la escandalizado, mas o que sentia era tão poderoso e tão extraordinário, que Emma não deu importância. 131
Era consciente de que o corpo de Harry era muito maior que o seu, muito mais forte e por mais que tentasse, ela não conseguia tê-lo tão perto como queria. Desejava ainda mais proximidade, algo mais, algo que não sabia como explicar. Estremeceu e ondulou os quadris contra os dele. Gemeu do mais fundo de seu ser. E então tudo terminou. O Visconde agarrou os braços dela com as mãos e a afastou, interrompendo assim o beijo. Tinha a respiração entrecortada, igual a ela e os fôlegos de ambos se misturavam. Os olhos dele pareciam de um azul tão profundo como o céu. Com as mãos percorreu os braços dela até alcançar seu rosto. — Nunca foi beijada antes, não é? — sussurrou ele.
Sem dizer nada, a jovem negou com a cabeça. Ele sorriu levemente e Emma, de repente ficou tensa. Ele estava rindo dela? Fez algo de errado? De repente se sentiu estranha e desconfortável e muito, muito assustada. — Não deveria ter feito isso — respondeu, também sussurrando. — Suponho que não — Abraçou-a e voltou a beijá-la, com paixão e rapidez — Mas não
costumo fazer o que devo. Eu sou assim. E com essas palavras a soltou, virou-se e desapareceu atrás de uma estante. Ela escutou como seus passos desapareciam da sala, mas não o seguiu. Não podia, ainda não. Em vez disso, ficou ali, com o casaco amassado, o chapéu inclinado, muito aturdida para reagir. Levou os dedos aos lábios. Estavam inchados, e ardiam um pouco devido ao roçar da barba dele. Agora sabia o que se sentia ao beijar alguém. Agora sabia, e já não voltaria a ser igual. Emma teve vontade de chorar, mas não porque estivesse sentindo culpa ou arrependimento, que era como uma mulher respeitável deveria sentir-se, mas sim porque aquele beijo era a coisa mais maravilhosa que havia acontecido e sentia os olhos cheios de lágrimas de felicidade.
132
A virtude de uma mulher é algo muito frágil e terá que cuidá-la com o maior zelo. E, minhas queridas amigas, não esperem que os cavalheiros as ajudem nesse propósito. Justamente o contrário, freqüentemente é deles de quem mais terá que protegê-la. Senhora BARTLEBY Conselhos para Senhoritas, 1893
O ranger de um degrau tirou Emma de seu eufórico estado de transe. Olhou para a escada e viu a Senhora Inkberry ali de pé, com sua cara redonda iluminada por um raio de luz que entrava através da janela do patamar. Tinha visto tudo. Emma soube imediatamente. O cenho franzido da agradável anciã dizia bem claro. Sua felicidade se esfumou. A Senhora Inkberry olhou para a porta pela qual havia desaparecido Lorde Marlowe e em seguida voltou a olhar para a moça. Enrugou ainda mais o cenho. — Venha, Emma e tome uma xícara de chá comigo.
Não esperou que respondesse, mas sim deu meia volta e começou a subir a escada. Nem passou pela cabeça se negar. Recusar um convite da Senhora Inkberry seria como rejeitar um de sua própria tia. A consternação que sentia ia aumentando com cada degrau, mas mesmo assim, seguiu à mulher até a sala de estar. A Senhora Inkberry pediu que lhes trouxessem o chá, e logo foi se sentar. Deu uns golpezinhos na almofada que estava ao seu lado, para que Emma ocupasse esse lugar, mas não falou até que a criada apareceu com a bandeja. Annie fez uma reverência e saudou a jovem — Bom dia, Senhorita Emma.
Ela respondeu com um sorriso. As xícaras tilintaram quando a moça depositou a bandeja em frente à Senhora da casa. — O Senhor não sobe? — Ainda não. Annie, na loja há um cavalheiro de cabelo escuro, muito bem vestido, com um
traje negro e calças escuras. Vá e diga que quero que saia de nosso estabelecimento agora mesmo. A vergonha de Emma crescia a cada palavra da anciã, e abaixou a cabeça. 133
Ainda sentia o beijo de Marlowe em seus lábios, como uma marca a fogo e tinha a sensação que todo o mundo a seu redor podia ver. — Depois — prosseguiu a mulher — diga ao Senhor Inkberry que o chá estará pronto dentro
de meia hora. Assegure-se de que a cozinheira tenha uma bule preparado para então. Feche a porta ao sair. — Muito bem, Senhora.
Emma ouviu o sussurro do vestido da criada, com seu impecável avental branco, quando saiu e o som da porta ao fechar-se, mas não levantou a cabeça. Ficou com o olhar fixo em seu colo, esperando que a Senhora Inkberry servisse o chá. Até entregar sua xícara, a mulher não falou. — Emma, minha querida menina.
Justo o que haveria dito sua tia, palavras afetuosas, mas pronunciadas com preocupação e com um pouco de decepção. É claro que a mulher sentia-se decepcionada. Qualquer pessoa que gostasse dela se sentiria assim. Permitiu que um homem a insultasse e não fez nada para impedir. Pior ainda, bastou que a tocasse para que jogasse pela janela tudo o que havia aprendido sobre moral ao longo de sua vida. Fez muito mais que aceitar o beijo, havia gostado. Inclusive agora, a mera lembrança bastava para que esquecesse o arrependimento e voltasse a sentir felicidade. As seguintes palavras da Senhora Inkberry conseguiram que levantasse a cabeça. — Emma, sua tia a educou com princípios muito severos a respeito do que estava certo e o
que estava errado. Mas agora eu percebo que você está perdendo seu guia, e que freqüentemente pode se sentir... — fez uma pausa muito sutil — confusa. Isso descrevia muito bem seus caóticos pensamentos e o inexplicável comportamento dos últimos dias. Assentiu com a cabeça. — Agora que Lydia já não está entre nós — continuou a anciã — não há ninguém que possa
aconselhá-la. Ninguém exceto eu, claro. Conheço-a desde seus quinze anos, e eu gosto de pensar que, no caso de você se afastar dos bons princípios, minha amiga Lydia gostaria que eu a reconduzisse de novo para eles. Dou-me conta de que já não é uma menina, mas uma mulher amadurecida... Se sou uma mulher amadurecida, não me trate como uma menina e deixe de me fazer sermão. Essas palavras surgiram do nada, ressentidas e desafiantes. Mas Emma mordeu a língua para não pronunciá-las. — Por ser solteira — prosseguiu a Senhora Inkberry — ainda não é consciente de tudo o que
são capazes de fazer os homens. De ordinários que podem chegar a ser caso não se comportem como cavalheiros. — Nunca antes havia me acontecido nada igual! — exclamou ela — Ele jamais... — Estacou,
134
ao recordar a tarde no Au Chocolat. Não podia mentir para aquela mulher — Ele jamais saiu da linha comigo. — Alegra-me saber que o que vi hoje é o único ato descortês que cometeu — disse a anciã, conseguindo com que Emma fizesse uma careta de dor — Mas mesmo assim, querida, corresponde
a minha pessoa ocupar o lugar de Lydia e adverti-la. Os homens, apesar das aparências, conseguem levar uma mulher para o mau caminho. Como podia estar errado algo tão maravilhoso como aquele beijo? O desafio voltou a avivarse, com muita mais força que antes. — Parece tão terrível que um homem possa beijar uma mulher? — Pode ser sim — respondeu a mulher com voz mais amável — Se esse homem não for seu
marido, ou no mínimo, seu noivo. Ele a pediu em casamento? Emma desviou o olhar para suas mãos, que seguiam apertadas em seu colo. — Não... — Imagina então que ele queira cortejá-la do modo apropriado e casar-se com você?
Pensou no sem fim de mulheres, com quem tinha visto Lorde Marlowe ao longo dos anos em que havia trabalhado para ele. Mulheres que não tinham importado o mínimo, e nas que o Visconde nunca havia tornado a pensar assim que elas haviam desaparecido de sua vida. — Não. — Um homem que persegue uma mulher em uma livraria e tenta fazer amor, e que não seja
bastante honorável para cortejá-la como é devido, conhecer seus amigos e sua família e pedi-la em casamento, não é um cavalheiro. E você sabe tão bem como eu, Emma. Você foi educada para que pudesse distinguir o que está certo do que está errado. — Aquele beijo não foi maldoso — insistiu ela.
A Senhora Inkberry suspirou. — Lydia sempre disse que se parecia muito com sua mãe.
Surpresa, Emma abriu os olhos e compungida, olhou à anciã. — Minha tia contou a você sobre meus pais? — Que foram forçados a se casarem? Sim, contou.
Seu rosto deve ter refletido a preocupação sentida, porque a velha levantou a mão e deu alguns tapinhas carinhosos no braço para utilizá-la.
— Vamos, vamos — murmurou — Ao menos seu pai se casou com sua mãe e se comportou
135
como devia, assim não tem do que ficar envergonhada. — Mas minha tia contou porque meus pais tiveram que casar-se. Se não o tivessem feito, eu seria...Eu seria...Ilegítima — estremeceu ainda mais — A quem mais contou? A Senhora Morris
sabe? — Ninguém mais sabe Emma, nem sequer o Senhor Inkberry. Faz já muitos anos que guardo
esse segredo. Lydia era responsável por você e essa era uma carga muito pesada para os ombros dela, então quando tinha vontade de conversar com alguém, aparecia para me ver e me pedir conselhos. Já sabe que ela e o Senhor Worthington não tiveram filhos e eu em troca tinha criado quatro garotas. Por favor, não se preocupe por isso. Emma sacudiu a cabeça, preocupava muito mais o que sua tia havia dito sobre ela que o fato de que a Senhora Inkberry soubesse as circunstâncias que rodearam seu nascimento. — Minha tia sempre me dizia que corresponde às mulheres manter as distâncias, porque os
homens são incapazes de fazer isso. Você acredita que seja verdade? — Sim, são claro, as mulheres são as que têm que estabelecer os limites. Os homens são
incapazes de se conter. Eles têm um instinto animal que nós não possuímos. Emma começava a acreditar que ela era a exceção a essa regra universal, pois quando foi colocada a prova, havia falhado miseravelmente. Enquanto beijava Lorde Marlowe, a última coisa que pensou foi em manter a distância. — Minha mãe se deitou com meu pai antes de se casar. E tia Lydia acreditava que eu era
igual a sua irmã? Era por isso que ao recordar-se do que havia acontecido com o Visconde estava errado? Porque no fundo de seu coração era uma mulher imoral tratando de comportar-se como era devido? — Eu não sou uma hedonista! — Exclamou de repente — E não sou imoral. Acaso minha tia
acreditava que eu fosse? Diante sua surpresa, a Senhora Inkberry sorriu. — Acredito que o que queria dizer com isso era que tinha tendência a sonhar acordada, a ser
uma romântica e que sentia muita curiosidade e um caráter aventureiro. E devido ao fato de que possuía essas qualidades, era normal que de vez em quando se rebelasse. Emma tocou a pequena cicatriz em forma de estrela que tinha na face. Toda rebelião acarretava conseqüências, e estas às vezes eram muito dolorosas. Ela não queria ser uma rebelde. Abaixou a mão e bebeu um pouco de chá. — Mas por culpa dessas mesmas qualidades, sua mãe cometeu um grave erro, um que
poderia ter sido fatal caso seu pai não tivesse feito o correto. Odiaria que você repetisse esse fato. Se Lydia estivesse viva, opinaria o mesmo. Emma respirou fundo, e seu bom senso retomou o controle. Olhou os compassivos olhos 136
castanhos da mulher que estava ao seu lado. — Eu não quero desonrar a memória de minha tia com nenhuma de minhas ações — disse,
e se perguntou como era possível que quando pronunciava essas palavras a fizesse sentir um enorme peso no peito, que a pressionava até que quase não poder respirar. Olhe aqui dentro. É onde sempre encontrará a verdade . Este peso estava justamente onde Harry colocou a mão ao dizer essas palavras. Ignorou a sensação e se obrigou a continuar. — Não quero desonrar a mim mesma.
O rosto da anciã se iluminou de alívio e satisfação. — Muito sensato de sua parte, Emma. É uma decisão muito sábia e muito acertada —
repetiu — Sim — disse resignada — Eu sei. — Há um movimento, querida, ao que uma mulher pode recorrer para se defender se um
homem ultrapassa com ela. Só tem que levantar o joelho. Ensinei a minhas filhas. Quer que a ensine isso? — Obrigada, Senhora Inkberry, mas não será necessário — respondeu, terminando o chá
que restava. Não era necessário porque não tinha intenção de permitir que Marlowe voltasse a aproximar-se, apesar do que a fazia sentir.
Enquanto sua carruagem se afastava dali, Harry ficou de pé em uma calçada da Rua Little Russell, escondido entre as sombras e com um monte de livros atados com uma corda pendurando de seus dedos. Olhava fixamente o edifício onde vivia Emma, mas não cruzou a rua para entrar. Através da janela iluminada podia ver várias damas no salão do andar de baixo e embora a jovem não estivesse entre elas, não podia entrar no edifício sem que o vissem. Levantou a vista para o apartamento de Emma e a viu em uma das janelas, em seguida voltou a olhar o salão, tratando de encontrar um modo de poder entrar. Se alguns meses atrás, alguém tivesse dito que estaria escondido fora do apartamento da Senhorita Emmaline Dove, preso em luxúria, diria que essa pessoa estava louca. Mas naquele tempo não sabia o quanto sedutora podia chegar a ser aquela pequena ruiva com sardas. Não sabia quanto fogo estava oculto sob o aspecto moderado de sua antiga secretária e o aditivo que podia ser feito caso despertasse à paixão. Agora sabia que era uma tortura. Uma doce e dolorosa tortura. Deixou os livros que havia comprado no chão e se apoiou contra a parede do edifício que havia na frente dele. Pela enésima vez nas últimas horas, voltou a pensar naquele beijo. Recordou cada detalhe, a suavidade e embriagadora ansiedade de seus lábios, a sensação de seus braços rodeando o pescoço e aproximando-o mais para ela, o calor que emanava de seu 137
pequeno corpo movendo-se contra o dele com a falta de jeito própria da inexperiência e delatando que nunca havia sido beijada antes. Mas o que melhor recordava Harry era seu rosto ao terminar. Apesar da jovem não ter sorrido, seu rosto expressava tanto prazer que o deixou sem respiração. Nunca em toda sua vida tinha visto uma mulher resplandecer desse modo. Necessitou até a última grama de autocontrole para soltá-la e afastar-se dali. Esteve esperando por ela em meio dos volumes de Byron, Shelley e outros poetas mortos, durante o que pareceu uma eternidade. Mas em vez de Emma, uma criada foi buscá-lo, para dizer que a Senhora da casa queria que ele saísse imediatamente. Nesse preciso instante compreendeu o motivo, é claro. A mulher os tinha visto. Lembrou-se do que Emma havia dito a respeito da Senhora Inkberry ser a melhor amiga de sua tia e podia imaginar perfeitamente o sermão que teria dado depois que ele saiu. Olhou de novo para a janela. Conhecendo a moça, certamente que agora estava cheia de recriminações. Jamais tinha conhecido uma mulher tão submetida às normas. Suspeitava que a culpa fosse do pai dela como de sua tia. E quanto a ele, claro, as regras pouco importavam. Queria voltar a beijá-la outra vez, e outra, e outra. O sabor de seus lábios era como o ópio e agora ansiava seus beijos como um viciado. Por isso estava ali, com intenções desonestas, tratando de encontrar o modo de entrar no apartamento dela. Contava que, uma vez ali, ela deixaria de lado todas essas normas e permitiria que a beijasse e fizesse muitas outras coisas. Quando estivesse no apartamento de Emma, pensou, encontraria um modo de fazê-la mudar de opinião. Ela utilizava as normas de educação como uma couraça, mas debaixo era tão suave como o algodão. A jovem o desejava, e Harry sabia que podia utilizar esse desejo, recorrer a sua vasta experiência para derrotar sua inocência e agradar a ambos. Primeiro a conquistaria com seus beijos. Depois, deitaria com ela naquele exótico tapete turco e tiraria de sua cabeça todas essas idéias absurdas, sobre o que os homens e as mulheres podem fazer ou deixar de fazer. Duas velhas passaram diante dele, e com o olhar, estudaram cada detalhe de seu caro traje. Ele olhou ao redor e viu que um grupo de meninos que estava jogando bolinha de gude em uma esquina, também parou para observá-lo com curiosidade. Não podia ficar ali quieto, olhando as janelas daquela casa respeitável sem chamar a atenção. Ao diabo tudo — pensou — A quem importa o que os outros pensam? Separou-se da parede, agarrou os livros, e começou a cruzar a rua para se aproximar da porta da casa de Emma, mas parou no meio do caminho sem motivo aparente. Soltou uma maldição, mudou de direção e chegou perto dos meninos que estavam na esquina. Uns minutos mais tarde, um deles ganhou do Visconde seis peniques. Emma já possuía a coleção completa das mil e uma noites, escrita por Burton e Harry retornava para sua casa, perguntando-se como poderia ter ficado tão louco.
138
Dê-me um beijo, e começa a contar, depois me dê vinte, e depois mais cem . Robert HEKRICK, 1648.
Tia Lydia teria devolvido os livros. Seu pai os teria queimado. Emma ficou com eles. Nem sequer teve que pensar e isso a surpreendeu. Mas o que mais estranhou foi que decidiu colocar a escandalosa coleção na estante que estava no salão, onde podia vê-los da mesa, de fato, podia olhá-los até se fartar enquanto escrevia sobre o decoro. Talvez fosse uma hipócrita, mas cada vez que levantava a vista e via aquelas lombadas de pele avermelhada, sorria e a envolvia uma maravilhosa sensação que saboreava sem remorsos. Pelo visto, sim era uma rebelde. Soltava maldições quando estava sozinha e ficava zangada, comia muito chocolate quando estava triste, e com aqueles livros, rebelava-se um pouco contra a rígida educação que havia recebido. Mas o beijo de Marlowe, já era outra coisa. Permitir que a beijasse foi muito mais perigoso que soltar um par de maldições ou ter uma coleção de livros proibidos. A Senhora Inkberry fez bem em recordar a fragilidade da virtude de uma mulher e as conseqüências que acarretava quando esta desaparecia. Mas quando pensava em Harry e no que aconteceu na livraria, Emma notava um calorzinho na alma, um prazer que se permitia em segredo, mas que sabia que não podia saborear. Cada vez que a lembrança emergia, ela tratava de contê-la recordando que nada de bom podia sair dali e que tinha que abandonar qualquer idéia romântica em relação aquele homem, que não queria nunca mais que nenhuma mulher levasse seu sobrenome. Eles mantinham correspondência comentando assuntos sobre o trabalho, mediante nota que eram enviadas por mensageiros e quando Emma recebeu uma do Visconde pedindo que fosse vê-lo em pessoa, acreditou que havia passado tempo suficiente para se sentir capaz de resistir. Fazia quase duas semanas que aconteceu o beijo na livraria dos Inkberry, e estava segura de ter recuperado a compostura e de poder controlar os instintos carnais que estavam aninhados em seu interior. Mas na quarta-feira pela tarde assim que entrou na sala dele, Emma soube que estava enganada. Quando o secretário de Marlowe anunciou sua chegada, Harry saiu da janela e a olhou, e seu sorriso chegou ao coração, fazendo recordar o doloroso e doce prazer que sentiu ao beijá-lo. Seus olhares se encontraram e nos olhos de Harry viu o mesmo desejo que aparecia nos olhos dela e então soube que todos seus esforços para esquecer foram em vão. Aquele beijo havia criado uma intimidade entre os dois que existiria para sempre. Podiam passar vinte anos e não 139
importaria. No instante em que voltasse a vê-lo, sentiria de novo a mesma pontada de felicidade. Emma diminuiu o passo e parou em frente à mesa, segurando com força a maleta que levava em uma mão, incapaz de mover-se, de dar outro passo. — Olá — disse Emma.
O Visconde sorriu encantado, e o prazer que isso produziu em Emma foi quase insuportável. Abaixou a vista, mas isso tampouco serviu de alguma coisa, pois descobriu que do bolso do escuro casaco dele, sobressaía o cartão rosado que Emma enviou para agradecer pelos livros. Mordeu o lábio inferior. — É tudo, Senhor?
O som da voz de seu secretário, tão banal, rompeu o feitiço. Lorde Marlowe olhou por cima da jovem. — Sim, obrigado, Quinn — respondeu.
O jovem saiu, e Emma percorreu os centímetros que a separavam da mesa de Harry. Sentouse, deixou a maleta ao lado de seus pés, e tratou de recordar o motivo daquela visita. — Quer que repassemos as correções, Milorde? — perguntou, tratando de manter uma
distância profissional, consciente de que a porta estava aberta e que do lado de fora havia um homem que podia escutar a conversa — São muitas? — Não. Por que pergunta?
Ela não disse que o perguntava por que enquanto escrevia esses artigos esteve embevecida olhando a estante e os livros de pele avermelhada e tratando de esquecer o beijo que deram. — Acreditei que por isso pediu que viesse.
Ele olhou para a porta aberta, e em seguida se inclinou para frente e sussurrou. — Queria que viesse porque sentia vontade de ver você.
Emma experimentou tal prazer que não pode evitar sorrir. — Oh.
Harry ordenou alguns papéis que estavam diante dele. — Mas agora que pergunta, sim quero comentar algumas coisas — Começou a procurar entre as páginas — Seu artigo sobre a história do chocolate parece um pouco sem graça. Terá que
animá-la um pouco. Se precisar de ajuda, eu estaria disposto. Ela ficou sem fôlego e ele fez uma pausa olhando-a desconcertado. 140
— Algo errado? — Não — Pigarreou — Nada. E o que mais?
Ele voltou a olhar os papéis. — Acredito que isso seja tudo. Exceto na lista de ingredientes do molho de caramelo, não
colocou açúcar. — Sério?
Harry assentiu, sorrindo. — Teve problemas para se concentrar?
Emma não admitiria algo assim por nada do mundo. Estendeu a mão. — Deixe-me ver.
Ele deu os artigos e ela viu que realmente havia se esquecido de mencionar o ingrediente mais importante do molho, e apesar de Marlowe ter dito que não havia muitas correções, viu que esse engano era apenas mais um. As páginas estavam transbordando de comentários de seu editor. Céu santo! Pensou preocupada. Se as coisas continuassem assim, sua carreira como escritora perigava. Alguém tossiu atrás dela e ambos levantaram o olhar para a porta e viram Quinn ali de pé. — Terminei com meus deveres, Senhor e já são mais de seis — disse o jovem — precisa de
algo mais antes que eu saia? — Não, Quinn, pode ir. — Muito bem, Senhor. Se isso for tudo, passe uma boa noite.
O secretário fez uma reverência e abandonou a sala e segundos mais tarde, Emma ouviu como ele fechava a porta. Estavam sozinhos. — Eu farei as correções hoje á noite — disse com rapidez, agachando-se para guardar os papéis na maleta — Você já leu as minhas propostas para as próximas semanas? — Sim — Ele agarrou outro monte de folhas — Parecem-me corretas, mas queria perguntar uma coisa — Procurou entre as páginas — Dê-me um segundo, com certeza encontrarei.
Ela o estudou por debaixo da aba do chapéu de palha que usava. Viu como uma mecha de cabelo negro caía pela testa, e como ele o afastava sem perceber, só para que voltasse a cair segundos mais tarde. Emma morria de vontade de tocá-lo, de acariciá-lo com os dedos. Queria beijá-lo. Queria... — Aqui está — disse Harry, assinalando uma linha de texto com um dedo — O que é a
linguagem do leque? Emma inspirou fundo, tratando de afastar as imagens de beijos de sua mente. 141
— Ah, é algo que minha tia me contou quando era pequena. E dado que decidi escrever um
artigo sobre leques, pensei que seria um detalhe interessante. Ele levantou os olhos. — No que consiste? — Parece que, anos atrás as damas utilizavam os leques para mandar mensagens aos
homens nos quais estavam interessadas. Se uma mulher queria que um homem a convidasse para dançar, ou queria conhecê-lo, realizava determinados movimentos com o leque. Finja que estamos em um baile e... — Movimentos? Não sei a que se refere — ficou de pé e rodeou a mesa para colocar-se ao lado dela — Pode me mostrar? — Agora? — Sim. Tem um leque? — É claro — Colocou a mão no bolso e tirou o de marfim e seda verde que utilizava no verão — Sempre levo um quando faz calor. — Excelente — Harry indicou que se levantasse — Não entendo nada dessa linguagem,
então quero ver esses movimentos por mim mesmo. Emma ficou de pé, depois de pensar um momento, pediu que fosse para o outro extremo do escritório. — Fique ali e fique junto à porta — disse. Quando ele o fez, continuou — Finja que estamos
em um baile. — Não posso — a interrompeu — Não posso fingir que estamos em um baile se usar esse
chapéu horroroso. — Não é horroroso! — Exclamou Emma, levando as mãos à cabeça — O que tem de mais? — Tudo. Não entendo por que as mulheres de hoje em dia se empenham em levar essas
coisas cheias de plumas. É como se pusessem uma avestruz na cabeça. Além disso, a aba é tão larga que não posso ver seu rosto e eu gosto de ver seu rosto. Tire isso. Emma perdoou a crítica sobre seu chapéu, que tinha requerido um xelim em plumas para colocá-lo na moda, ao ir acompanhada pela confissão de que gostava de olhá-la. Colocou o leque no bolso e, com as duas mãos, puxou a agulha que segurava o chapéu, tirando-o e deixando tudo sobre a mesa e em seguida voltou a pegar o leque. — Vejamos, como ia dizendo, finja que estamos em um baile. Você acaba de entrar e
embora não nos conhecemos, eu o vi antes e gostei. — Isso não tem que fingir — respondeu ele com um sorriso de satisfação que era impossível
142
de descrever com palavras — Disse-me que me achava atraente, lembra-se? Ela franziu a testa e fingiu estar com raiva. — Preste atenção — e abriu o leque — Veja como o seguro na mão esquerda, diante do
rosto e olhando-o por cima dele? Isto significa que quero conhecê-lo. Harry inclinou a cabeça, estudando-a do outro extremo do escritório. — Se o segurasse na mão direita, quereria dizer algo diferente? — Sim, isso significaria que quero que me siga. Então, sairia da sala e você viria atrás de
mim. Ele a olhou incrédulo. — As pessoas realmente faziam estas coisas? Não está inventando isso?
Emma riu. — Eu disse o mesmo a minha tia. Disse-lhe que se alguém quisesse mandar uma mensagem
secreta a outra pessoa, utilizar os leques era uma tolice, posto que qualquer um que visse, saberia o que ela pretendia. Mas insistiu em que tanto ela como suas amigas recorriam a esta linguagem em todas as festas e bailes que participavam. Harry balançou a cabeça. — Não acredito. Os homens jamais fariam tal coisa. É muito complicado, muito sutil. Como
podem saber se uma mulher está tentando lhes dizer algo ou simplesmente se abanando? Nós os homens, estamos acostumados a ser mais diretos, enviar mensagens concretas. — Sim, mas às mulheres não é permitido ser diretas. Se eu quisesse conhecê-lo, não poderia
me aproximar de você e me apresentar sem mais nem menos. — O que é uma lástima. E acredito que falo em nome de todos, quando digo que ficaríamos
encantados se as mulheres fizessem exatamente isso. — Certamente, mas assim não é como funcionam as coisas. E você sabe tão bem como eu. O
que eu poderia fazer, seria perguntar para minhas amizades se alguém o conhecia, e então pedir que nos apresentassem, mas talvez isso tampouco seria uma opção. Às pessoas gostam de fofocar. — Que Deus nos livre se alguma vez esta Sociedade permitir que as mulheres fossem diretas.
Tudo bem, vamos supor que eu tenha interpretado corretamente sua mensagem e sei que quer me conhecer — aproximou-se dela — E dado que me fascinam as mulheres ruivas, eu também morro de vontade de conhecê-la. Emma ficou atônita e segurou o leque com força. — Você gosta das morenas.
143
Ele parou diante dela e colocou uma das mãos perto de seu rosto. Olhou-a nos olhos, uma vez que uma mecha enroscava entre seus dedos. — Mudei de opinião.
Com os nódulos dos dedos, acariciou a face de Emma, e colocou a mecha atrás da orelha. Essa carícia, ligeira como uma pluma, bastou para provocar nela um formigamento por todo o corpo. — E você, Emma, mudou de opinião?
Ele havia perguntado alguma coisa. Piscou. — O quê? — Disse que não gostava de mim — recordou, roçando a orelha com as pontas dos dedos e fazendo-a estremecer — Disse que era um inapresentável. — E é.
O problema era que agora isso já não parecia importar muito para os sentidos dela. Fechou os olhos e tratou de recordar o que havia dito a Senhora Inkberry, mas pensar em sua virtude tampouco a ajudou naquele momento. Ele segurou a nuca de Emma com a mão e ela podia sentir o calor que emanava de sua palma. Com o polegar Harry acariciava seu queixo. — Mas continuo fazendo com que você não goste de mim. — Não é verdade.
O som de incredulidade que escapou dos lábios de Harry a fez abrir os olhos. — Já sei que disse isso e quando falei, pensava que era verdade, mas não era.
Absolutamente. Desaprovava seu modo de vida, isso sim é verdade, e estava ressentida porque acreditava que não havia dado a meus escritos a oportunidade que mereciam. E, além disso, não me negará que me explorava como secretária. Odiava que fizesse isso, pois é algo que não voltarei a permitir. Mas por mais que me esforçava em detestá-lo, nunca consegui — Engoliu em seco — Todas as vezes que ficava zangada com você, logo fazia com que esquecesse. Tinha um gesto que me abrandava, ou dizia algo que me fazia rir. — Talvez por que, apesar de todos meus defeitos, sou um tipo encantador — disse ele com um sorriso — Elegante, sofisticado, modesto...
Emma riu. Não pode evitar. Na verdade era encantador, e ela sempre soube, embora nunca o tivesse apreciado. Mas isso não implicava que iria permitir que se aproveitasse. Quando a mão de Harry esticou em sua nuca, e ele se inclinou para frente, ela levantou o leque e o colocou entre os dois, justamente diante de seus lábios, para que não pudesse tocá-la com os dele. Ele se afastou e a soltou. 144
— Esse movimento tem algum significado?
Emma assentiu e abaixou o leque para poder responder. — Significa que não confio em você. — Emma! — Olhou-a fingindo estar ofendido, colocando a mão em sua cintura — Não confia
em mim? Afastou a mão. — Absolutamente. — Na verdade você gosta de fazer isso difícil, não é assim? — Reconheço que tem suas vantagens, sim — respondeu ela com um sorriso. — Pois desfruta enquanto possa, porque terminarei por me vingar. Vejamos, onde estávamos? — Franziu o cenho para pensar — Ah, sim, interpretei corretamente sua mensagem de
que quer me conhecer. Suponhamos que uns bons amigos, carregados de boas intenções, nos apresentem. Então, o seguinte passo está claro — Fez uma reverência — Senhorita Dove, me permite esta dança? — Não podemos dançar. Não há música. — Este é nosso momento mágico, não o danifique com trivialidades — Sujeitou a mão enluvada dela com a sua e colocou a outra em sua cintura — Podemos cantarolar. — Eu não sei cantar — confessou ela enquanto guardava o leque no bolso para poder colocar a mão esquerda sobre o ombro de Harry — Quando era pequena, ouvi o vigário dizer a meu
pai que não poderia afinar nem que minha vida dependesse disso. A partir desse dia, meu pai disse que me mantivesse calada nos sermões — Fez uma pausa, surpresa de que essa lembrança ainda doesse. Tratou de afastar da memória com um sorriso — Com certeza todos os outros paroquianos o agradeceram. Marlowe não devolveu o sorriso e estando sério, pareceu inclusive mais atraente que antes. — Canta tão alto quanto queira Emma. Não me importarei caso desafine.
De repente, teve vontade de chorar e piscou para manter as lágrimas não fugissem ao controle. Afastou o olhar, mas não pode evitar sentir uma pontada no peito. — Obrigado, mas acredito que será melhor que você cante. — De acordo — Harry balançou para trás e para frente, levando-a com ele enquanto contava — E dois e três e quatro — Com isso, começaram a dançar enquanto com sua voz de barítono, começou a cantar uma das absurdas baladas de Gilbert — Toca o clarinete com melancolia, acaricia
o harpa como ninguém... Ela começou a rir, interrompendo a canção, mas Harry não deixou de dançar. 145
— A história do príncipe Agib? — perguntou enquanto ele continuava conduzindo-a a ritmo
da valsa por todo o escritório. — Sim, bem, como você gosta tanto do livro das mil e uma noites, pensei que seria
apropriado. Cantarolou alguns compassos mais e continuaram dançando, mas então, de repente, ambos pararam. Emma olhou para o rosto dele e com esse repentino silêncio, o resto do mundo desapareceu ao redor. Tudo exceto ele. Harry soltou a mão dela e voltou a segurá-la pela nuca. — Não acredito que isso da linguagem do leque seja verdade — murmurou — Um homem
poderia interpretar mal com muita facilidade. Por exemplo, quando colocasse isso diante da boca, disse que significava que não confia em mim, mas eu acredito que queira dizer outra coisa. — Ah, sim?
Ele assentiu e começou a acariciar a nuca, justamente por cima da gola da camisa e a afundar os dedos em seu cabelo. — Eu acredito que significa que quer que a beije. — Isso não é verdade! — moveu-se entre seus braços, mas na realidade não queria soltar-se.
Marlowe percebeu, porque decidiu ignorar. Com os dedos foi descrevendo devagar uma série de círculos na nuca de Emma e ondas de calor começaram a encharcar seu corpo, sentiu que seu dever era lamentar. — Não estava pedindo que me beijasse. — E como pode um homem ter certeza? É a isso que me refiro. As mulheres não são capazes
de ter pena de nós, pobres e indefesos homens e nos dizer claramente Quero que me beije. Isso não. Deixou de acariciar o pescoço e afundou de novo os dedos nos cabelos dela. Jogou-lhe a cabeça para trás, mas em vez de beijá-la, se deteve a escassos centímetros de sua boca. — Uma dama jamais poderia dizer algo assim, não? — Não — Emma umedeceu os lábios — Não poderia.
Com a outra mão em suas costas, atraiu-a para ele enquanto ela ficava sem fôlego ao sentir cada parte do duro corpo masculino junto ao dela. — Não quero interpretar mal as coisas, Emmaline Dove, porque então me esbofeteará e dirá
que sou um canalha. Então, na linguagem dos leques, como uma dama diz para um cavalheiro que pode beijá-la? — Não sei — sussurrou — Minha tia nunca me disse isso. — Há! — Entrecerrou os olhos e em seguida voltou a abri-los — Então suponho que terei
146
que me arriscar. E ato seguido a beijou. Ao sentir os lábios contra os dele, Emma notou que sua convicção juntamente com os conselhos da Senhora Inkberry, despedaçavam-se e então, rodeou o pescoço de Harry com os braços. A paixão que sentiu na livraria voltou a despertar, mas desta vez mais rápido, com mais força. Quando ele a acariciou com a língua, ela fez o mesmo. Foi uma reação instintiva, inconsciente, que a surpreendeu por ver que era tão atrevida, tão lasciva ao sentir quanto gostava de acariciar a língua daquele homem com a sua. Harry tinha um sabor quente e ácido, parecido com os morangos que comeram naquela tarde nos jardins de Vitória Embankment, e perguntou para si mesma se a teria tomado esse dia de sobremesa. Segurou o rosto dele com as mãos, para mantê-lo quieto e ele deixou que ela explorasse aquele território desconhecido. Percorreu-o com a língua, seguiu a linha de seus dentes, acariciou o interior das faces. Deteve-se somente o necessário para respirar, e em seguida desenhou os lábios dele com os dela. O superior e o inferior, detectando que tinha a pele mais suave que a última vez, percebendo que ele havia se barbeado há pouco tempo. Capturou o lábio inferior de Harry entre os dentes e o sugou com delicadeza. Ele gemeu contra sua boca e um estremecimento sacudiu seu corpo. Emma soube que ela era a culpada. Ambos sentiam o mesmo. Era emocionante! Que ela, uma mulher de trinta anos sem experiência, pudesse fazer com que um homem como ele sentisse tudo aquilo, era o afrodisíaco mais potente e glorioso do mundo. Mas ele não a deixou continuar, mas sim abriu os lábios com os seus e com o peso do corpo obrigou Emma a dar alguns passos para trás. A parte traseira das coxas dela chocou-se contra a mesa. Harry deslizou as mãos até suas nádegas e Emma abriu os olhos surpresa. Marlowe também abriu os olhos e durante alguns segundos, ambos ficaram ali de pé, olhando-se, com a respiração entrecortada. Depois, ela sentiu que as mãos dele a levantaram para sentá-la na beira da mesa. — Falou-me de todas essas normas — começou Harry, tentando recuperar o fôlego — Mas são normas de mulheres — Tirou as mãos debaixo dela e levou-as para os botões da camisa de
Emma, sem deixar de olhar em seus olhos. Ela segurou as mãos dele enquanto Harry continuava olhando-a, esperando, com os olhos de um azul profundo como o céu, a boca séria e maravilhosa, enquanto que com os dedos brincava com um botão e com a virtude de Emma. — E... — disse ela, excitada, apesar de que parte dela sussurrava que fosse com cuidado. Mas já não podia parar, estava desesperada, necessitava que ele a tocasse — E, quais são as normas
dos homens? — Quando me pedir para parar, eu pararei — Respirou fundo — Juro que pararei.
O tom urgente da voz dele a desarmou. Emma soltou as mãos dele e assentindo com a 147
cabeça, apresentou sua capitulação, envergonhada pela rapidez que a fez agir daquela forma. Ele fechou os olhos e desabotoou o primeiro botão da camisa, logo outro, e outro, eliminando uma a uma as barreiras que os separavam. Afastou o tecido de linho e beijou o pescoço, lambendo sua pele nua com a língua. Ela se arqueou com um gemido, jogando a cabeça para trás, ansiosa por inteiro. Harry soltou o quente fôlego em cima de sua pele e com os dedos tirou os colchetes, para afastar as distintas capas de tecido, seda e renda que cobriam o decote. Emma tremeu nervosa e com os dedos apertou os ombros dele enquanto Harry beijava a parte superior de um seio e deslizava uma mão por debaixo da roupa interior que ainda vestia. Sabia que deveria pedir que parasse, mas quando os dedos dele rodearam um seio, sentiu tanta ternura e paixão que seu corpo estremeceu como resposta. Gritou, mas não pediu que parasse. Ele levantou a cabeça e capturou os lábios dela com os seus, silenciando a voz que não deixava de repetir seu nome. Continuou acariciando o seio, gemendo por sua vez enquanto a beijava com ardor. Com os dedos, percorreu os mamilos dela dos limites de sua roupa interior, e Emma estremeceu mais uma vez. Era como se não pudesse controlar as reações do próprio corpo, e as carícias de Harry a faziam mover-se de um modo completamente desconhecido, procurando algo que não sabia onde encontrar. Podia ouvir seus próprios gemidos junto com os dele, mais primitivos e amortecidos pelos lábios de ambos. Sentiu que afundava em uma bruma de sensualidade. O que Harry estava fazendo, provocava sensações que nunca havia experimentado e que queria continuar sentindo durante toda a eternidade. De repente, sem avisar, ele deixou de beijá-la e tirando a mão do espartilho, se afastou dela. Amaldiçoou em voz baixa, e começou a abotoar os botões. Enjoada, Emma tratou de recuperar a calma. Abriu os olhos e olhou para ele. Harry não retribuiu o olhar, mas sim manteve os olhos fixos no que estava fazendo. A luz do entardecer iluminava a quarto com suavidade, mas no rosto de Harry não havia nada suave. Parecia devastado. — Não pedi que parasse — balbuciou ela assustando-se quando comprovou que isso era
verdade. — Sei — riu sem vontade — Deus santo, eu sei.
As mãos dele paralisaram-se enquanto fechava os punhos com força sobre o tecido. A seguir a soltou com brutalidade e deu meia volta. — Está escurecendo — disse de costas — Será melhor que a leve para casa. Iremos com
minha carruagem, e não me importa se for ou não o apropriado. Emma não discutiu. Depois do que acabou de acontecer, parecia-lhe ridículo preocupar-se com normas de conduta, especialmente quando o desejo que sentia estava ansioso para voltar a arder sob as carícias de Harry. Ele voltaria a acariciá-la. E ela já não enganaria a si mesma dizendo que não permitiria.
148
Pare, pensou com inconsciência. Uma palavra com apenas duas sílabas que foi incapaz de pronunciar.
Quando se está em boa companhia, não há nada melhor que uma boa conversa. Senhora BARTLEBY Social Gazette, 1893
Não fazer amor com Emma havia sido a coisa mais difícil que Harry fez em toda sua vida. E começava a pensar que também a mais estúpida. Mudou de postura no assento da carruagem, tratando de aliviar a pressão de suas calças, mas tudo foi em vão, já que a causa de tal desconforto estava sentada em frente a ele, deliciosamente desarrumada e com os lábios ainda inchados devido aos seus beijos. Ela não olhava para ele, graças a Deus, mas estava com o olhar fixo naquele horrível chapéu que segurava em seu colo, e provavelmente estaria perguntando se iria para o inferno. A carruagem deu um salto, Harry fez uma careta de dor e voltou a sentar. Fechou os olhos e, com a cabeça recostada no respaldo do assento, amaldiçoou às virgens, as normas de conduta e o inexplicável cavalheirismo que parecia tê-lo invadido ultimamente. Me diga que pare e pararei. Em que diabos ele estava pensando ao dizer tal idiotice? Para piorar as coisas, ela nem sequer tinha-lhe pedido que parasse. Ele parou por si mesmo. E por que? Porque estava consciente de onde estavam, por isso. E porque não queria que a primeira vez de Emma fosse por cima de uma mesa. Harry queria sair da carruagem e soltar um dos cavalos para que desse um bom coice na cabeça. Talvez então deixasse de pensar. A carruagem estacionou, e então ele respirou aliviado. O condutor abriu a porta e estava colocando os degraus quando Harry saltou e estendeu a mão para ajudá-la. Acompanhou-a até a entrada do edifício. — Boa noite, Emma — disse com uma inclinação e deu meia volta para partir.
149
— Você gostaria de...? — Ela fez uma pausa e pigarreou, assinalando a porta com o chapéu — Você gostaria de entrar?
Ele sentiu um pouquinho de esperança, e lutou para conseguir esquecer com quem estava falando. — Por quê? — perguntou sem rodeios — Está me convidando para subir ao seu quarto?
Ela ficou rubra de repente. — Não. É claro que não. É que pensei...que talvez...Gostaria de tomar um chá — Olhou-o nos olhos — No salão. No piso debaixo.
Só quer tomar o chá? Fulminou-a com o olhar. — Chá?
Ela assentiu. — Acredito que a ambos iria bem nos refrescar um pouco.
Às vezes ele perguntava para si mesmo se aquela garota era real. Olhou-a e começou a pensar que talvez um espírito travesso entrou no corpo de Emma com o único propósito de converter sua vida em um inferno. Com certeza ele esqueceu de deixar uma vela acesa em alguma das covas de Torquay no verão, e agora as fadas queriam se vingar. — Talvez se tivesse uísque aceitasse o convite. Deus sabe como gosto de uma taça. Mas
como não é assim, irei para minha casa. Se tivesse ficado com um pouco de bom senso ele iria para um bordel. — Possivelmente a Senhora Morris tenha uma garrafa em algum canto.
Harry a contemplou durante alguns segundos e, canalha como era, começou a calcular as possibilidades que tinha de correr com ela para o quarto, onde podiam fazer amor em uma cama. Fazer sobre a escrivaninha podia ficar para mais tarde. — Então aceito — disse ele, seguindo-a para o interior.
A caseira fofoqueira de Emma, a Senhora Morris, estava no salão e ficou encantada de conhecer o antigo chefe de sua inquilina, apesar de que ficou nervosa ao receber tão nobre visita sem aviso. A moça deveria tê-la avisado de que ele a acompanharia. Embora, bem, a Senhora Morris estava acostumada a receber pessoas de categoria, como por exemplo, a tia de Emma, da qual tinha sido grande amiga e que havia casado com o terceiro filho de um Barão. Uma xícara de chá? É claro que para Emma, preparar chá não era nenhum problema, a não ser que sua Senhoria preferisse uísque? Não, insistiu a mulher, tampouco era nenhuma moléstia preparar alguns sanduíches. Era sabido que os cavalheiros precisavam alimentar-se. É claro que ela mesma se encarregaria de prepará-los, confirmou entusiasmada e saiu correndo para a cozinha para ver o que podia oferecer ao V isconde. 150
Emma sentou-se no horrível sofá e começou a desabotoar as luvas. — Pobre mulher, ter que preparar um lanche às sete da tarde. — Tenho fome — justificou o Visconde sentando-se ao lado de Emma e inclinando-se para beijá-la na comissura dos lábios — Muita. — Olhe que é pesado — Essas palavras eram uma crítica, mas o tom com que as pronunciou
fez que Harry concebesse esperanças. — É um dos privilégios de ser nobre. Posso ser pesado — Inclinou a cabeça e procurou seus
lábios. Ela esquivou-se. — Imaginei que necessitasse de uma dose de whisky.
Harry descansou o braço no respaldo de madeira que havia atrás dela. — Mudei de idéia. Caso sua caseira esteja lá em baixo certificando-se de que em sua cozinha
se prepara o lanche perfeito, tenho mais tempo para estar a sós com você. Ela olhou preocupada para a porta. — Não estamos sozinhos. Qualquer um poderia entrar a qualquer momento. Aqui vivem
mais inquilinos. — Correremos o risco — Desta vez sim teve sucesso ao capturar seus lábios e a beijou como era devido — Serei valente. — Eu não corro riscos. — Sim — respondeu ele com pesar — eu sei.
Estudou o perfil dela, a delicada linha de sua mandíbula e o queixo. Só a luz do anoitecer iluminava o salão, mas podia ver as pontas de suas pestanas douradas, a cicatriz em forma de estrela que tinha na face e a sarda que adornava a parte dianteira da orelha. A beijou. — Harry — sussurrou ela, levantando o ombro para dar um tapinha carinhoso no queixo,
mas ele decidiu interpretá-lo como um gesto de carinho. — Tenho um olho fixo na porta — Disse, acariciando o rosto de Emma com os lábios —
Suponho que não contempla a possibilidade de fechá-la, não? — Por Deus santo, não!
Parecia tão horrorizada que, a não ser porque toda a situação não tinha nenhuma graça, Harry teria rido. — Dado que não posso fechar a maldita porta e seduzi-la como eu gostaria — murmurou —
terei que me conformar conversando com você. 151
Ela deitou o corpo no sofá, mas ao notar o braço dele nas suas costas voltou a levantar-se. — Emma, relaxe — disse ele com suavidade, apartando o braço da poltrona — Recoste e
feche os olhos. A moça obedeceu e Harry fez o mesmo. — Vejamos — disse ele — do que podemos falar? Do tempo? Da saúde da Rainha? De como
está me deixando louco? — Por que parou? —sussurrou Emma.
Harry virou a cabeça, mas ela não estava olhando para ele. Tinha o olhar fixo no teto. Ele se aproximou e respondeu em voz baixa ao ouvido. — Ocorreu-me a estúpida idéia de que não devia tirar sua virgindade em cima de uma mesa.
As faces de Emma ficaram rubras, mas continuou sem olhar para ele. — Não teria me detido. Não teria a força necessária.
Isso o fez retroceder. — Por Deus, Emma, jamais a teria forçado. — Não queria dizer isso. Durante um momento, só um momento, pensei que devia pedir que parasse, quando você estava...Hum... — Fez uma pausa e pigarreou — Mas depois já não pude fazê-lo — Havia uma nota de surpresa oculta nessa confissão — Não podia pronunciar as palavras
que o teriam detido. — Porque você estava gostando muito?
Houve um longo silêncio antes que ela respondesse. — Sim.
Harry acariciou a face com os nódulos. Ela era tão suave, como veludo. — Poderia fazer tantas coisas que você gostaria... — murmurou, pensando em voz alta, e sentindo como o desejo tomava o controle de seu corpo — Ultimamente, meu passatempo
preferido é pensar nas diversas maneiras em que eu gostaria de fazer amor com você Emma. Ela afundou-se nas almofadas como se quisesse que elas a engolissem. Sendo como era, um otimista nato, Harry interpretou esse gesto ao seu favor. Finalmente, ela estava livre para levantarse e sair dali, mas até o momento não fez isso. — Em minha imaginação, a primeira coisa que farei é soltar seu cabelo e deixar que ele
deslize por minhas mãos. Essa preciosa cabeleira avermelhada. Em seguida eu desabotoarei a camisa e a faço cair por seus ombros. Depois tiro sua saia — secou a garganta e teve que parar um segundo — vê? — disse depois de um instante — Imaginei tudo passo a passo. 152
Emma suspirou surpresa e Harry supôs que ela estava ficando nervosa ao saber que ele havia tido fantasias a tendo como protagonista. — O espartilho e a regata seriam os seguintes — continuou ele. — O que me recorda que...Pelo pouco que vi antes, tenho que dizer-lhe que veste uma
roupa de baixo muito simples, Emma. Eu gostaria de vê-la com sensuais camisolas de seda cheias de botões de madrepérola. Em no fundo, faço isso por mim, já sabe, eu gosto dos botões de madrepérola porque são muito fáceis de desabotoar. — Deixe de falar de minha roupa intima — sussurrou ela, à medida que o rubor se estendia por todo o decote do vestido — Não é... — umedeceu os lábios — não é decoroso. — Decoroso? — riu — Emma, quando um homem está despindo uma mulher, ele não se
preocupa o mínimo com o decoro. E tampouco ela, se ele o está fazendo bem. Além disso, unicamente estamos falando, conversando — Acariciou a orelha dela com o nariz — Fazendo vida social, para chamar isso corretamente. Ela se engasgou. — Eu passaria toda a minha vida beijando. Seus lábios, seu pescoço, seus ombros nus. — Pare! — disse em voz tão baixa que ele mal pode ouvi-la — Pare, por favor. — Porquê? — Por que sinto vergonha. — Do que? — tornou-se para trás e com a mão apontou para a porta — Se não quiser me
escutar, saia. — A Senhora Morris foi preparar o lanche — disse sem se mover — Seria de má educação
sair. — Mas assim não ouviria a próxima coisa que quero dizer — Percorreu a mandíbula dela com o polegar e viu como tremia. Tocou-lhe a boca — Quer saber o que seria a próxima coisa que
eu faria, não é assim? Ela negou sem convicção, mas continuou sem se mover. Juntou os lábios sob a carícia dele e ficou quieta. — Acredito que deixaria de despi-la e começaria a tocá-la — Estimulou a nuca de Emma com a mão, e ela saltou como se tivesse recebido uma descarga elétrica — Deslizaria as mãos por seus ombros e desceria por seus braços — prosseguiu, sentindo como a luxúria apoderava tomava conta de seu corpo a cada palavra — Tocaria os seios, o umbigo, os quadris, por cima da regata...
Ela emitiu um som inarticulado. — É isso o que está vestindo? — Harry beijou o pescoço.
153
— Ou talvez esteja vestindo uma combinação? Imaginei você mesma tirando ambas as
peças, é claro. Mas o que está vestindo? Não respondeu, e então ele mordeu os tendões do pescoço dela, absorvendo os tremores que a sacudiram como resposta. — Emma, Emma, diga-me isso — suplicou contra a pele — para que possa imaginar quando
eu não estiver com você. Uma regata? Ela não se moveu. — Uma combinação?
Assentiu com um ligeiro e tenso movimento de cabeça, e ele continuou: — Pois no momento eu deixaria vestida com isso. — Ah, sim? — logo que essas palavras saíram de sua boca, mordeu o lábio, e continuou sem
olhar para ele. — Teria que fazer isso — explicou — Não poderia tirar isso sem antes tirar os sapatos. — Oh — Foi só um sussurro. — Dado que hoje calça uns simples sapatos para caminhar, e não as horríveis botas altas...
Ela ficou indignada e o interrompeu. — Não são horríveis!
Como todos os sapatos dela eram horríveis, Harry decidiu ignorar o comentário. — Agora só me preocupo em despir, assim não discutirei isso, mas asseguro que, na primeira
oportunidade, comprarei uns bonitos sapatos, Senhorita Dove. Dúzias deles, frívolas meias de renda. Onde eu estava mesmo? Ah, sim, e não volte a me interromper, por favor. Interromper alguém é muita falta de educação, sabe? Vejamos, já tirei os seus sapatos, então agora vou tiraras as meias... Desta vez não foi Emma quem o interrompeu, e sim o som de passos na escada. Harry gemeu e se afastou. Ela, por sua parte, afastou-se tanto como pode embora sem abandonar o sofá no qual ambos estavam sentados. Ele respirou fundo várias vezes, e tratou de controlar que excitado estava. A Senhora Morris entrou com uma bandeja com o chá. Uma criada com vestido rosa e touca vinha atrás dela com outra bandeja repleta de comida. — Deixe-a ali, Dorcas — ordenou a caseira depositando sua carga na mesinha que havia em
frente ao sofá, para em seguida sentar-se em uma cadeira que havia ao lado. A criada deixou a bandeja com sanduíches e bolos em outra mesa que estava diante de 154
Emma e Harry e fez uma reverência antes de sair. — Atrevo-me a dizer — disse ele, aproximando-se da bandeja e observando-a como se realmente tivesse fome e não ganas de fazer amor — que é o melhor chá que já vi . E o preparou em
um abrir e fechar de olhos. Seus inquilinos são afortunados em tê-la. A Senhora Morris ficou rubra de prazer e começou a servir o chá. — Nem todos os meus inquilinos comem em casa, Milorde, mas eu gosto de acreditar que
os que o fazem são bem atendidos. Olhou para Emma, mas ela estava com o olhar perdido, sem prestar atenção a nenhum dos dois. Já não estava acalorada e a pele dela havia recuperado a palidez habitual. — A Senhorita Dove faz suas refeições em casa? — perguntou Harry, concentrando-se de
novo na anfitriã. — Antes não estava acostumada a fazer isso Milorde, quando trabalhava para você sempre
chegava muito tarde. — Mas agora que sou a secretária da maravilhosa Senhora Bartleby e passo o dia
datilografando seus escritos, quase todos os dias faço minhas refeições aqui. Harry se inclinou para frente e agarrou uma bolacha da bandeja. Enquanto a degustava, tratou de pensar em alguma desculpa, o que fosse, para conseguir que aquela mulher saísse dali. — Açúcar? — perguntou a Senhora Morris enquanto servia uma xícara — Leite? — Nada, obrigado, mas talvez... — Fez uma pausa, enrugou o cenho e esquadrinhou a
bandeja como se procurasse algo. — Sim, Milorde? — A caseira, ansiosa por agradá-lo, quase se levantou da cadeira — Quer
algo em especial? Harry sorriu levemente, como se desculpando. — Não, não, não queria incomodá-la mais do que o necessário. — Não é nenhum trabalho — disse ela — Absolutamente nenhum incômodo...
Pensava se talvez tivesse um pouquinho de limão. — Limão? — A mulher olhou a bandeja, e em seguida voltou a olhar para o Visconde com um incômodo sorriso — Que estupidez de Hoskins! Não colocou o limão! Vou pegar. — Muito amável da sua parte — Dedicou o melhor de seus sorrisos — É muita consideração.
Atrás dele, Emma suspirou exasperada. A Senhora Morris não percebeu e como se fosse uma debutante, tocou o cabelo antes de se levantar. 155
— Volto em seguida — disse, e saiu da sala deixando-os a sós novamente.
Harry deslizou até ficar ao lado de Emma. — Vejamos, onde estávamos? — Não tem limão, se tivesse o teria posto na bandeja. Agora mandará Hoskins comprar. — Confio em que ela vá pessoalmente. Assim terei mais tempo para despi-la — Silenciou suas queixa com um beijo — Acredito que estava tirando as meias. E como tem as pernas longas e
bonitas, penso que demorarei muito em fazê-lo. Eu as tirarei uma atrás da outra, devagar, muito devagar. Despirei seus preciosos pés, e acariciarei os tornozelos e a parte de atrás dos joelhos. Deus, eu adoro acariciar seus joelhos. Só de imaginar Harry sentiu-se cheio de desejo, e soube que não podia continuar com aquilo. Levantou a vista. Emma estava olhando para ele com os olhos arregalados e os lábios entreabertos. Harry decidiu que podia tentar suportar um pouquinho mais. Inclinou a cabeça e a beijou na orelha. — Acredito que tenha chegado o momento de que eu tire a combinação que você veste — murmurou — Quero ver seus seios.
Ela fez um som de protesto. — Não poderia... — Se deteve, e depois voltou a tentar — Estaríamos no escuro! — Fazer amor com você no escuro? Isso seria um pecado, Emma. Não! Quero ter luz para poder vê-la bem — Essas palavras, sussurradas junto a sua orelha, fizeram-na estremecer — Para
poder olhar você enquanto a toco, para poder ver minhas mãos sobre seu corpo. Embora tortuosa, a estratégia de Harry estava funcionando, pois podia ouvir como a respiração dela estava acelerada. A sua tampouco era muito pausada. — Imaginei seus seios centenas de vezes, Emma — Voltou a fechar os olhos e marcou cada palavra com um beijo, sentindo prender o fogo em seu próprio corpo — Milhares — Quebrou a voz
e soube que estava perdendo o controle. Lutou para continuar seduzindo-a um pouco mais. — Eu os acariciaria uma e outra vez e os beijaria — Sugou-lhe o lóbulo da orelha entre os lábios, roçando a pele com os dentes — Os saborearia.
A jovem inspirou fundo, ofegante, e antes que ele pudesse reagir, separou-se dele e ficou de pé. Mas não correu para a porta. Em vez disso, aproximou-se da janela, abriu-a e respirou o ar. Ele ia fazer o mesmo, mas naquele instante ouviu pela segunda vez os passos da Senhora Morris na escada. Maldição! Esqueceu-se da condenada mulher. Voltou a sentar, seu corpo preso em agonia. Rápido como um raio, desabotoou a jaqueta, tirando-a e a colocando descuidadamente sobre os joelhos. Ia pegar outro sanduíche quando a caseira entrou no salão.
156
— Aqui tem — disse orgulhosa — Minhas desculpas, Milorde, mas meu cozinheiro demorou
muito em encontrar os limões. Estavam ocultos na despensa. Desviou o olhar de Harry, que comia um sanduíche de pepino em uma tentativa de parecer amável, para a Emma, de pé junto à janela, tratando de respirar e abanar-se ao mesmo tempo. — Emma, você está bem? — perguntou preocupada. — Perfeitamente — respondeu ela com voz entrecortada se abanando ainda mais rápido —
É só... é que faz muito calor aqui. — Um pouco — reconheceu à caseira enquanto sentava no sofá — Teve uma boa idéia ao abrir a janela, querida — Deixou na bandeja o prato com as rodelas de limão e olhou para Harry sorrindo — Emma sempre tem boas idéias. É uma jovem muito doce e sensata. Sua tia Lydia era
uma amiga minha... Harry estava convencido de que nesse instante Emma não definiria a si mesmo como doce nem sensata. E no que a ele se referia, parecia uma confusão. Todas e cada uma das células de seu corpo estavam excitadas, o coração pulsava em seu peito como um trem descarrilado, e era dolorosamente consciente, pela segunda vez em uma mesma tarde, de sua enorme ereção. Observou como à Senhora Morris servia uma xícara de chá, mas embora sua vida dependesse disso, viu-se incapaz de seguir conversando sobre frivolidades. — Senhora Morris, desculpe — interrompeu a enxurrada de adulações da mulher sobre a
querida e inestimável tia Lydia, e olhou para Emma, que ainda estava de pé junto à janela, abanando-se — Temo que a Senhorita Dove esteja um pouco acalorada. Não acredito que o chá, sendo como é uma bebida quente, seja o mais adequado para ela. Talvez pudesse trazer um copo de água? — Não quero um copo de água — disse Emma do outro extremo da quarto. — Realmente parece um pouco alterada, querida — concordou a Senhora Morris — Talvez
um pouco de água fosse bom. Harry assentiu com ênfase, e quando a caseira encaminhava-se para a porta, ele foi atrás dela. Ambos pararam na entrada, e Harry sussurrou algo ao ouvido. A mulher abriu a boca com estupefação, mas fez o que pedia, e saiu dali fechando a porta. Emma enrugou o cenho ao ver que Harry chegava perto dela... Olhou atrás dele e, ao ver a porta fechada, voltou a olhá-lo. — O que disse para ela? — quis saber. — Não sou um homem paciente, Emma, e a pouca paciência que tinha esfumou-se por
completo. Disse-lhe que queria ficar as sós com você um momento, e pedi que nos desse um pouco de intimidade. Emma gemeu e ocultou o rosto entre as mãos. 157
— Só existe um motivo honrável para que um homem e uma mulher que não estejam casados fiquem a sós, e é para declarar-se — balbuciou. Levantou a cabeça o fulminou com o olhar — E ambos sabemos — acrescentou, sussurrando furiosa — que a única intenção que você tem é
me propor algo indecoroso. — Não temos muito tempo — Agarrou-a pelos braços e jogou sua última cartada — Leve me ao andar de cima — pediu a ela, e encheu seu rosto de beijos — Façamos amor e vamos terminar
com esta tortura. — Não podemos! — gemeu ela — A Senhora Morris nos veria. Saberia o que íamos fazer. — Eu direi que vá dar um recado. Subirei pela escada de incêndios — Estava ficando sem opções, o desejo e o desespero estavam fazendo estragos em sua capacidade de raciocinar —
Pagarei por seu silêncio. Logo que essas palavras saíram de sua boca, soube que havia cometido um engano. — O dinheiro pode comprar tudo, não é assim? — escapou dos braços dele — A Senhora
Morris é uma mulher respeitável. Não aceitaria seu dinheiro. Não poderia fingir que não sabe e olhar para o outro lado. E, embora o fizesse, não importaria. Eu teria que continuar olhando para ela quando tudo terminasse. — E o que importa isso? Não costurarão uma letra escarlate no peito, se for isso o que
preocupa. — Não entende? Ela era amiga de minha tia. Conhece-me. Teria que vê-la diariamente, e ambas saberíamos o que eu fiz. Saberíamos que eu... Que eu... — a voz dela despedaçou — Que
eu teria deixado de ser casta. — Por Deus santo, Emma, nem sequer é sua amiga, e sim a amiga de sua tia. E não teria que
continuar vendo-a se não quisesse. Pode sair daqui. Eu conseguirei um apartamento novo. Melhor ainda, uma casa. — Igual a Juliette Bordeaux? — Olhou-o com desdém — E dentro de uns meses também
receberei um colar de topázios e diamantes comprado por seu secretário, junto com uma carta de despedida? Foi como se o tivesse esbofeteado — Não é a mesma coisa. — Ah, não? E o que é diferente? — perguntou ela, cruzando os braços — Eu não sou uma
bailarina de boate. Mereço que me cortejem como é devido. Harry deveria ter sabido que acabariam chegando a esse ponto. — Quer que me case com você, é isso?
Emma olhou para ele tão horrorizada que, se não fosse pelo alívio que sentiu, deveria ter ficado insultado. 158
— Casar-me com você? — exclamou ela — Não, Por Deus santo! — E olhou para Harry com uma cara de desaprovação digna de sua tia — Nenhuma mulher com bom senso gostaria de se
casar com você. É o pior marido que poderia imaginar. — Tem razão. Alegro-me de que tenhamos esclarecido o tema. — E, além disso, maldição, tampouco eu quero me casar. Por que deveria querer? Tenho
uma brilhante carreira profissional. Sou a Senhora Bartleby. — Você não é a Senhora Bartleby — Disse ele antes de poder evitar — Sua tia Lydia é a
Senhora Bartleby. — Não é verdade! As idéias que aparecem nos artigos são minhas. — Algumas delas talvez sim, eu reconheço como o, por exemplo, o origami ou os
guardanapos, mas geralmente as idéias do texto não são suas. Publiquei o suficiente para saber disso! Você não é a Senhora Bartleby, você não é uma matrona de meia idade que se preocupa com tolices e normas estúpidas — Recorreu aos seus artigos para demonstrar que tinha razão — Você não acredita que as garotas solteiras só possam comer asinhas de frango, que não devam comer codorna, nem queijo e que tenham que escolher os pratos mais insípidos do cardápio. — As normas de conduta são importantes, especialmente para as jovens damas! — Não, se essas normas forem estúpidas! E fazer que umas pobres garotas morram de fome,
obrigá-las a sobreviver a base de asinhas de frango e pudim é uma soberana tolice! Vai contra todo sentido comum. E sendo como é uma mulher sensata, Emma, você sabe tão bem como eu. Por que escreve sobre normas que na verdade não acredita? Ela entrecerrou os olhos, e ele viu minguar as possibilidades que tinha de que fazerem amor, mas estava tão frustrado que quase não importava. — Você não é a Senhora Bartleby — prosseguiu — Nem é a tia Lydia. Você é Emma —disse
sacudindo-a pelos ombros com suavidade, para ver se assim deixava de um lado sua tolice e enxergasse a razão — Você gosta de amaldiçoar e ler livros picantes. É uma mulher quente e apaixonada e tem os lábios mais doces que já provei. E não acredita que agi mal em me divorciar de minha mulher, nem tampouco me desaprova, tanto como diz. Se o fizesse, jamais teria concordado em escrever para mim. — E, maldição Emma! Sei que não acredita que me beijar seja alguma coisa ruim. — Soará mal caso essas duas pessoas não sejam marido e mulher ou estejam comprometidos! — Tentou soltar-se, mas ele não permitiu. — Por que? Porque disseram que deve ser assim? Você não sente que seja ruim. E sei desde
o dia em que a beijei na livraria, porque olhei seu rosto ao nos separar. Deus, Emma, estava radiante, era como uma luz brilhasse em seu interior, igual ao amanhecer. Foi a coisa mais preciosa que jamais vi. E esta noite não imaginei que fosse tão ruim que a tocasse, ou teria me detido. Ao invés de ter dito todas essas coisas, poderia ter dito para que eu fosse embora. Poderia ter me dado uma bofetada, mas não fez nada. Você queria que eu dissesse. Queria escutar. Você sabe que é 159
assim, Emma, você sabe. — Agi errado escutando essas coisas — Ela tampou as orelhas com as mãos — Mas não
continuarei ouvindo-o. — Ouvirá, é claro que ouvirá — Agarrou-lhe os braços e separou suas mãos, segurando-a com força — A mulher que beijei naquela livraria e hoje em meu escritório não estava pensando em
nenhuma norma de educação. Estava sentindo, absorvendo os sentimentos como se fosse oxigênio. Essa mulher beija como se supõe que uma mulher deve beijar um homem. — E você beijou suficientes mulheres para saber.
Ele ignorou esse comentário. — Por que não é honesta e diz o que pensa e sente de verdade? Onde está Emma? O que
aconteceu? O que aconteceu com essa menina que gostava de brincar no barro e cantar, apesar de desafinar? Seu rosto desmoronou e escapou um soluço. Harry sabia que estava fazendo mal, mas tinha que falar, já não podia agüentar mais. — Eu mesmo direi o que aconteceu. Passou a vida presa e asfixiada por um monte de gente
e pelas opiniões dos outros. — Quem é você para criticar minha família? Não os conheceu e não sabe nada sobre eles! — Sei tudo o que preciso saber, como sei também que não conseguiram fazer desaparecer a
autêntica Emma. Em ocasiões, ela consegue escapar e sair à luz e quando faz isso, Deus, é tão preciosa que morro por possuí-la. Ela abateu-se, incapaz de brigar. — Vai embora — disse — Saia, por favor. — Disse que eu era um hipócrita, Emma, mas é você quem mente. Recorde a você mesma.
Deixe de lado o que quer de verdade e se dedica somente ao que supõe que tem que fazer. Faça caso omisso do que de verdade pensa e faz o que disseram que devia pensar. — É desonesta com seu próprio coração, e essa é a pior desonestidade que existe. Maldição!
Preocupa-se muito em ser uma dama, e não entendo por que não se permite simplesmente ser uma mulher. Soltou os braços, mas antes que ela pudesse dar meia volta, tocou o rosto com a mão, com a outra rodeou a cintura dela e a beijou. Emma não devolveu o beijo, mas ficou imóvel entre os braços dele, sem se opor, mas também sem responder. Algo dentro dele se quebrou, justo no centro de seu coração e sentiu que desmoronaria. Beijou-a com mais força, impulsionado pela luxúria, pela raiva e pela frustração. Uma lágrima deslizou por seus dedos, queimando-o como fosse ácido. 160
— Deus!
Separou-se dela e tratou de controlar a indignação que sentia. Passou semanas pensando nela como se fosse um adolescente e para que? Para que ela o fizesse sentir como um mendigo ou um animal? Tinha que deixar de vê-la. Já. Para sempre. Passou as mãos pelo cabelo, alisou a roupa e tratou de falar com um tom civilizado, quando o que na realidade queria era quebrar algo. — Não voltarei a tocar em você — disse, aproximando-se do sofá para pegar a jaqueta —
Jamais. Voltaremos a levantar o muro da educação entre nós e nos trataremos como se fôssemos meros conhecidos — Assim que disse isso, soube que era uma estupidez. Respirou fundo. — Pensando melhor — falou— acredito que seja melhor não voltarmos a nos ver. A partir de agora, nos comunicaremos somente por carta e através de mensageiros, como antes — Deu meia volta e caminhou para a saída — Assim, sua preciosa virtude seguirá intacta — acrescentou sem olhar para ela — e eu recuperarei minha prudência.
Abriu a porta e não ficou surpreso ao encontrar a Senhora Morris do outro lado da porta. Morta de vergonha, a mulher se afastou para que ele pudesse passar. Harry fez uma inclinação de cabeça e saiu dizer nenhuma palavra, perguntando-se por que diabos importava a Emma o que pensasse aquela velha fofoqueira. De fato, havia muitíssimas coisas que importavam para ela e que ele não conseguia compreender. Saiu do edifício e ao sair fechou a porta com tanta força que fez tremer todas as janelas da casa. As mulheres virtuosas eram uma autêntica dor de dente.
161
Comportar-se sempre bem não sai à conta. Senhorita Emma DOVE, 1893
Estava começando a chover. De sua cadeira do escritório, Emma olhou através do balcão que dava para a saída de incêndio, e observou como a brisa da tormenta balançava as cortinas. Não fazia idéia de quanto tempo ele havia saído, mas era como se tivesse transcorrido toda uma vida. Sua vida. À medida que o relógio ia demorando minutos e marcando as horas, as lembranças foram acontecendo, uma após a outra, em sua mente. Vestidos brancos, talheres de prata e a voz de sua mãe inventando desculpas para acalmar seu pai, explicando por que o vestido dos domingos estava sujo de barro novamente. Ofícios religiosos passados em silêncio, sem cantar, para assim não ofender os ouvidos de Deus. Que cortassem seu cabelo...O aroma de um livro queimado...Papai sentado na cabeceira da mesa sem falar durante um mês. Tocou a face, e sentiu como sua garganta se fechava e não podia nem respirar. Por pura força de vontade, obrigou-se a deixar de pensar em seu pai e a se concentrar em sua tia. Isso a fazia se sentir melhor. Recuperou o fôlego. Tia Lydia tinha sido capaz de demonstrar afeto, e nunca ficou vários dias sem falar com ela. Sua tia e isso ela sabia, sem dúvida nenhuma, gostava dela. Mas também recordava ter ficado sentada com ela durante horas, com as costas erguidas e ouvindo sermões sobre como usar luvas, sobre não poder correr nem se emocionar, e que teria que ser sempre amável e ainda valsar a mais de meio metro de distância. Garfos em cima do prato. Lenços sem engomar. Cavalheiros de instintos animalescos. As pessoas não beijavam a não ser que estivessem casados ou comprometidos. As palavras de Harry ressurgiram. Palavras que fizeram mal a ela porque eram certas. Você não é a Senhora Bartleby. É sua tia Lydia. Onde está Emma? O que aconteceu com ela? O que aconteceu com essa menina que gostava de jogar barro e cantar, embora desafinasse? Ela sabia o que tinha passado. Com tal de receber amostras de carinho e aprovação, perdeuse a si mesma, pouco a pouco, em milhares de pequenos pedaços que havia sacrificado ao longo dos anos, até se converter em uma mulher reprimida, apagada, apenas com vida. E então Harry a beijou e tudo mudou. Nesse instante despertou, como se o fizesse depois de um longo inverno. Assustada sim, mas também ansiosa e vital, uma vitalidade que se estendia a cada poro do seu corpo, a cada célula de 162
seu cérebro e a cada curva de sua alma. E nessa noite jogou tudo a perder em troca de não perder a familiar e vazia aprovação de quem a rodeava. Fechou os olhos e respirou fundo, pensando em tudo o que fez em seu escritório, e nas coisas tão escandalosas que ele disse que queria fazer. Só de pensar nisso, seu corpo esticava de vergonha e excitação. Leve-me para cima. Teria feito isso, que Deus a ajudasse. Uma vida repleta de virtude teria se esfumado sob as eróticas e ilícitas promessas daquele homem, se ela não soubesse que a caseira estava escutando atrás da porta, com a esperança de ouvir como a sobrinha de sua querida Lydia recebia uma ilustre proposta de matrimônio. De repente, Emma teve vontade de rir. Que surpresa teria levado a Senhora Morris ao descobrir a verdade, que o Visconde estava propondo algo muito diferente, e que impressão descobrir que a sobrinha da Santa Lydia era na realidade uma mulher de carne e osso, uma hedonista que amou cada uma das palavras do Visconde. Inclusive as que ele disse já estando zangado, pois eram brutais, honestas, e certas. Onde está Emma? O que aconteceu com ela? Uma maré de ressentimento a invadiu ao recordar todas as coisas que foram negadas ao longo de sua vida. Ressentimento pelas pessoas que havia gostado e cuja aprovação ansiou desesperadamente. Ressentimento por ela mesma por ter demorado tanto em descobrir que a vida era maravilhosa, e que correr riscos era incrível, assim como era fascinante beijar um homem e que ele a acariciasse. Ressentimento por ter perdido tantas coisas só por medo. Agora já era muito tarde. Emma girou a cabeça e estudou o vaso com plumas de peru real que enfeitava o escritório, seu presente de aniversário de consolação. Uma vez mais, havia esperado muito e chegara tarde. Comportar-se sempre bem não era muito bom. Emma ficou de pé comum salto e agarrou a bolsa que estava em cima da mesa, abriu-a e verificou se tinha dinheiro suficiente para apanhar uma carruagem. Apagou a vela, mas quando fechou o balcão, não trancou de propósito. Saiu pela porta principal, fechou atrás dela e colocou a chave na bolsa. Aproximou-se da escada de incêndios sem que ninguém a visse, chegou ao beco, e saiu sob a chuva. Com a pressa, esqueceu o capuz, o guarda-chuva e inclusive o chapéu, mas não era importante. Não ia voltar por isso. Correu para a esquina, onde parou. Passou a mão pelo rosto molhado e olhou para a rua escura e deserta. Era noite e não havia nenhuma carruagem à vista. Perto do hotel Holborn sempre havia carruagens, então, dirigiu-se para ali acelerando o passo. Esquivando-se do tráfego, percorreu cinco ruas sem parar, e estava quase sem fôlego quando parou ao lado do primeiro cabriolé que viu. — Número quatorze de Hanover Square — Disse ofegante ao cocheiro — E darei uma coroa
extra se chegar ali em menos de meia hora. Saltou dentro e o veículo começou a andar. Emma brincou com os dedos sobre seus joelhos, moveu os pés e trocou de postura mil vezes à medida que passavam os minutos.
163
Era como se a carruagem não fosse chegar nunca a Mayfair, e tal como temia, as dúvidas começaram a assaltá-la. Nem sequer sabia se Harry estaria em casa. Certamente teria ido ao seu clube. Ou com alguma bailarina. O que pensariam dela os criados quando a vissem chegar e perguntar por ele? E o que aconteceria se ele tivesse mudado de opinião? E se estava cometendo o maior erro de sua vida? Colocou de um lado as dúvidas e incertezas. Essa noite tinha intenção de se converter em uma mulher. Emma levou a mão ao lugar onde, segundo Harry, estava seu instinto. Não sentia que estivesse errada. Não se sentia malvada. Sentia-se...Atrevida, selvagem. Pela primeira vez, era ela mesma. Seu estomago estava encolhido de nervos e medo. Todo seu corpo desejava estar com Harry. O trajeto parecia eterno. Abriu a janela e colocou a cabeça para fora, piscando sob a chuva que molhava o semblante. Estavam já perto da Regent Street. Hanover Square não estava longe. Mas mesmo assim, teve a sensação de que passaram muitas horas até que a carruagem estacionou em frente ao número quatorze. Não comprovou quanto havia demorado, e deu ao condutor, meia coroa extra pelo mero feito de que gostava de fazê-lo. Em seguida saltou do veículo e correu para a casa, rezando para que, por uma vez em sua vida, não chegasse tarde. Agarrou o trinco e o sacudiu com força. Algumas campainhas tilintaram dentro da casa, e momentos mais tarde um lacaio apareceu na entrada. Ficou atônito olhando-a. — Sim, Senhorita? — Vim ver Lorde Marlowe — disse, entrando como se visitar Visconde fosse a coisa mais normal do mundo — Sua Senhoria está em casa?
O criado a olhou de cima abaixo com receio. — Não...Não estou seguro, Senhorita. Vou perguntar. Qual e o nome da pessoa que veio
visitá-lo? — Diga... — pensou um momento, perguntando-se qual seria o protocolo para essas situações. Era óbvio que não podia utilizar seu nome, nem tampouco seu pseudônimo — Diga que
Scherezade gostaria de vê-lo. O homem franziu o cenho como se pensasse que estava mal da cabeça, mas saiu e a deixou de pé no vestíbulo. Havia um espelho de corpo inteiro na parede oposta, colocado ali com o propósito de refletir a luz que entrava pelas janelas, e Emma se aproximou, rindo em tom baixo. Deus! Parecia um desastre. Não era para menos que o lacaio tivesse olhado para ela com receio. A saia havia grudado nos quadris, e sua camisa estava tão empapada que aparecia a roupa interior. Tinha o cabelo solto, e com certeza a correria para encontrar uma carruagem fez com que perdesse todos os grampos. Nem sequer havia percebido. As mechas de seu cabelo estavam grudadas no rosto e o resto do cabelo caía solto pelas costas. Jorrava água por toda parte e estava deixando o chão alagado. 164
Esboçou um divertido sorriso. Era evidente que não estava muito bem para seduzir. Qualquer mulher com mais talento para o tema, teria se arrumado antes de chegar ali, e muito mais tendo em conta que o homem em questão havia jurado não voltar a vê-la. Levou a mão ao cabelo e tentou penteá-lo com os dedos, tratando de desenredá-lo, mas foi inútil. — Emma?
Ao ouvir sua voz, procurou seus olhos no espelho. Já não pode voltar atrás, pensou ela e jogou os ombros para trás antes de se voltar para a escada que estava a direita. Harry estava de pé no patamar, com uma mão no corrimão de ferro forjado, e só ao vê-lo ficou mais nervosa, não contava encontrá-lo meio nu. Só usava umas calças escuras e roupão bordô. Nem sequer vestia uma camisa, e podia ver perfeitamente o “ V ” de seu torso pelo decote da bata. Seu coração bateu acelerado. Ele a olhou sem se alterar, seu precioso rosto não demonstrava nada do que sentia. Nenhum sorriso, nem um comentário engraçado. — Acreditei que tínhamos decidido a não nos ver mais. — Não decidimos. Você decidiu. Eu decidi... algo diferente — segurou a empapada saia e caminhou para ele — Harry, tenho que falar com você.
Enquanto ela se aproximava, ele percorreu o corpo dela com os olhos. — Deus santo! Você está molhada até os ossos. — Tive que percorrer cinco ruas para encontrar uma carruagem. Depois que você saiu,
pensei no que disse. Em tudo o que disse. Ele virou o rosto e olhou a mão, que abria e fechava em cima da marca que havia no início do corrimão. Então a olhou. — Não deveria estar aqui, Emma. Meu valete, um lacaio e eu somos as únicas pessoas da
casa. Quase todos estão em Marlowe Park, e o resto foi com minha família a Torquay. Agora que decidiu desprender-se de sua castidade, queria seguir adiante, mas não sabia muito bem como fazer. — Sim, sei, mas é importante — Olhou para o lacaio que continuava ali perto — Há algum
lugar onde possamos falar em particular? Ele passou a mão pelo rosto. — Deus! Seria muito pedir que as coisas fossem um pouco mais fáceis? — Suspirou, deu meia volta, e apontou para a esquerda — Vamos.
Acompanhou-a ao salão. Quando entraram, agarrou a campainha. — Direi a Garret que acenda a lareira. — Não, não. Não precisa. Não tenho frio. Estamos em agosto. Além disso, depois de tudo o
165
que me disse, como quer que tenha frio? Tenho a sensação de que estou ardendo. Ele olhou para ela durante alguns instantes, depois fechou a porta, recostou-se contra ela e cruzou os braços sobre o peito. — Do que quer falar? Acreditei que esta tarde nos dois falamos tudo o que tínhamos que
falar. Ou deixamos algo para trás? — Quero contar uma história para você.
Ele se moveu incômodo, sem ocultar a impaciência. Abaixou os braços. — Apareceu aqui a estas horas e ainda com chuva, porque quer me contar uma história?
Ela assentiu e começou a rir. — Sim. É uma loucura, quer ouvir? — Emma... — Tudo começou com um leque de plumas de pavão. Um leque enorme e muito
extravagante. Era muito caro e pouco prático, mas era precioso e exótico, e eu morria de vontade de tê-lo. Pensei nele durante dias, e fui à loja um monte de vezes, mas nunca decidia a comprá-lo. Custavam dois guinéus, Harry. Dois! E já sabe como sou. Isso quase o fez sorrir. Quase. — Miserável. — Econômica. — É o que você diz. — Que seja! O dia que me disse que iria publicar meu manuscrito era meu aniversário, e... — Seu aniversário? Não sabia. Deveria ter me dito. — Jamais esperei que se lembrasse de algo assim. Sei como é para essas coisas. E, além
disso, nenhum chefe sabe o aniversário de sua secretária. Enfim, estava tão zangada com você por não saber quem era a Senhora Bartleby e porque acreditava que não tinha lido meu livro, que decidi que pediria a conta, mas no caminho de casa me convenci de que não devia fazer isso. Eu estou acostumada a fazer essas coisas, falar comigo mesma para me convencer de que não faça nada frívolo, pouco prático ou pouco apropriado. — Sim, a não ser que tenha perdido completamente a cabeça, esta tarde acredito que
discutimos precisamente por isso. Emma continuou sem fazer caso. — Decidi que ia comprar esse leque como presente de aniversário, então fui à loja, mas
quando cheguei ali, alguém o estava comprando. Era uma garota jovem, quase uma menina, que 166
estava vivendo sua primeira temporada, e o comprava para assistir a um baile. Havia esperado muito, entende? Tinha perdido minha oportunidade. E ali, no meio daquela loja, toda minha vida passou diante dos meus olhos, recordando-me de que sempre tomara as decisões mais sensatas, mais seguras, mais respeitáveis. — Esperei que o Senhor Parker se declarasse, esperei para comprar esse leque, esperei que
você publicasse meus livros, quando meu instinto me disse uma e outra vez que você continuaria recusando-os. Deu um passo para ele, e depois outro. — O que quero dizer — prosseguiu — é que durante todos os anos me mantive à espera,
nunca lutei pelo que queria de verdade, e sempre me conformei com menos. E enquanto isso, a vida seguia passando ao meu redor sem que eu chegasse nunca a tomar parte dela. Por isso deixei meu trabalho. Deteve-se diante dele. — Veja, quando vi aquela garota sair da loja com meu leque de plumas, pensei que merecia
bem o castigo. Afinal, ela estava na primavera de sua vida, e a minha já tinha passado. Deixei-a escapar. Permiti que muitíssimas coisas maravilhosas me escorressem entre os dedos porque tinha medo. E não quero que isto que há entre nós seja uma delas. Tocou-o e segurou o rosto dele entre as mãos. — Quero recuperar o tempo perdido, Harry. Quero minha primavera.
Ele levantou os braços, agarrou os punhos e afastou as mãos dela, segurando com força. — Vamos deixar as coisas claras. O que exatamente está me dizendo? — Quero fazer amor com você. Fui bastante clara?
Harry não ficou alegre. Inclusive parecia que estava zangado. — Já sabe que nunca voltarei a me casar. — Não pedi que se casasse comigo. — Isso significa que vamos ter uma aventura clandestina. Está certa de que isso é o que
quer? Emma respirou profundamente e mandou ao traste trinta anos de boa garota. — Sim, Harry. Isso é o que quero.
167
Muita gente me disse que não estou bem da cabeça. Em certas ocasiões acredito que têm razão. Lorde Marlowe Guia para Solteiros, 1893
Harry pensou que estivesse ficando louco. E parecia isso porque Emma Dove estava de pé no meio de seu salão, insinuando-se. Apenas algumas horas antes, isso teria sido tão provável quanto os porcos voassem ou que os liberais ganhassem as eleições. Tinha que ser uma alucinação. Mas não, Emma continuava ali, em frente a ele, tentadora e desarrumada, com o cabelo solto e a roupa molhada grudada ao seu corpo. Havia escutado como dizia que queria ter uma aventura com ele. Na realidade não importava se tudo aquilo era um sonho fruto da loucura. Ia levá-la para acima e despi-la antes de despertar. — Vamos, então — disse, agarrando sua mão.
Levou Emma até seu quarto. Uma vez lá dentro, fechou a porta e deixou o abajur na mesinha de cabeceira, para em seguida abrir a gaveta e tirar um pequeno objeto vermelho que guardava ali. Podia sentir o olhar de Emma em cima dele enquanto o deixava sobre o travesseiro. Quando deu meia volta viu que ela estava olhando aquilo com curiosidade. — O que é isso? — perguntou.
Não era o momento para falar desse tipo de precauções. — Depois eu conto.
Ela assentiu, com a confiança iluminando seu doce rosto cheio de sardas, e de repente, Harry teve dúvidas. — Tem certeza? — perguntou, amaldiçoando-se por ter desenvolvido uma consciência —
Não quer mudar de opinião? Quando tiver feito, não haverá como voltar atrás, Emma. — Sei — Agarrou as mãos dele — Lembra-se de todas essas coisas que me disse o que queria me fazer? — Quando ele assentiu, continuou — Me alegro, porque quero que faça todas elas, Harry.
Todas e cada uma delas. Levantou as mãos dele e as colocou em cima de seus seios, e com esse gesto, soube que 168
estava perdido. Abriu as palmas, percorrendo sua forma por cima das capas de tecido. O desejo se estendeu por seu corpo como lava ardente. Afastou o cabelo molhado dos ombros e começou a desabotoar a camisa, como havia imaginado tantas vezes, mas a realidade estava demonstrando ser diferente do que conjurou sua imaginação e Harry não pode evitar sorrir. — Do que está rindo? — Em todas as vezes que me imaginei fazendo isto, jamais pensei que seus botões fossem
tão difíceis de desabotoar. Estão ensopados. Agora sim que vou comprar camisas com botões de madrepérola para você. Ela também riu, mas soou nervosa. — Posso tirar eu, se... — Nem sonhe. Eu gosto, e não permito que me impeça. Você desabotoa os punhos.
Ela fez isso, e quando ambos terminaram, Harry pode por fim tirar a camisa dela. Tirou o tecido que ficava sob a cintura da saia e lançou a camisa ao chão, depois se concentrou no primeiro botão do corselete, e começou de novo. Quando terminou e pode libertá-la do segundo objeto, soube que, embora tivesse que desabotoar mil botões, valeria a pena. Tinha os ombros cheios de sardas douradas que morria de vontade de beijar. E, à medida que abaixava a vista, estas foram perdendo intensidade, até que, à altura do decote a pele era branca como a neve. Com dedos trêmulos percorreu os ombros, as clavículas, os braços. Sua textura era como a seda. Harry queria continuar tocando-a, mas o desejo que sentia era tão assustador que ameaçava arrebatar o controle, e soube que teria que deixar toda essa ternura para mais tarde. Antes tinha que se desfazer de toda a roupa. Desabotoou os botões da saia, e a pesada e ensopada lã caiu ao chão, amontoada junto aos tornozelos de Emma. — Vem aqui — disse e ela assim o fez, enquanto ele levantava as mãos para alcançar o
primeiro colchete do espartilho. Abriu-os um a um, acompanhando cada gesto com um beijo no ombro. As mechas da cabeleira de Emma faziam cócegas no rosto enquanto inundava o pescoço dela de beijos. Sob seus lábios, pode sentir como o pulso dela estava acelerado. Só faltam alguns botões — pensou aliviado quando tirou o espartilho e ela ficou só com a combinação — Logo poderei tocar sua pele. Emma, como já vinha sendo costume ultimamente voltou a surpreendê-lo. Afastou as mãos dele, detendo-o. Ele levantou a cabeça e a olhou. — Não é justo — disse a garota — Quero dizer... — Se deteve, franziu a testa, e afastou a vista — Eu não...? — Voltou a se deter.
169
Harry tinha uma idéia bastante clara do que ela ia perguntar, mas queria ouvi-la dizer. — Você não o que? — pressionou-a.
Ela tirou o cinto do roupão que ele vestia. — Eu não posso despi-lo? — sussurrou. — Quer fazer isso?
Assentiu, com o olhar cravado em seu corpo. — Sim. Sim, quero.
Harry abriu os braços. — Adiante. Esta noite faremos tudo o que você queira — Sorriu — Mais tarde a ensinarei
tudo o que eu quero. Emma soltou o nó do cinturão e depois segurou o roupão pelas lapelas. Deslizou a pesada seda pelos ombros de Harry e deixou que caísse ao chão. Deu um passo para trás e observou o peito dele, mas passados uns segundos ele já não pode suportar mais. — Toque-me, Emma — suplicou com voz rouca — Toque-me.
Ela colocou as mãos sobre os peitorais. — Jamais tinha visto o corpo de um homem — disse estendendo os dedos — Além das
estátuas, quero dizer. Harry respirou fundo e jogou a cabeça para trás enquanto ela iniciava sua expedição. Percorreu o torso com as mãos, subiu até os ombros e logo desceu pelos braços refazendo o caminho. Acariciou as costelas e se deteve no abdômen. Sem deixar de tocá-lo, inclinou-se para frente e beijou a clavícula. Riu com suavidade e seu fôlego quente roçou a pele de Harry. — É perfeito.
Ele sentiu que algo doce e quente oprimia seu peito, algo que não tinha nada a ver com o desejo que dominava seu corpo. A inocência que se escondia na voz de Emma o afetou profundamente e o fez sentir como se fosse o Rei do universo. Ela ficou nas pontas dos pés e o beijou, seus lábios suaves e sensuais pressionaram os dele, e quando o roçou com a língua, como ele havia ensinado, a carícia o fez estremecer de prazer. Devido à inexperiência de Emma, Harry tinha havia tomado a iniciativa nas outras vezes que se beijaram, mas agora era ela quem marcava o ritmo, e a combinação de inocência e sedução resultou incrivelmente erótica. Muito erótica. Quando a viu deslizar as mãos por debaixo da cintura de suas calças para continuar explorando, Harry soube que deveria recuperar o controle. Se permitisse que ela seguisse adiante, tudo terminaria muito cedo. Uma copulação rápida tinha seus atrativos, mas isso deixaria para 170
muito mais adiante. Essa noite sua intenção não era que acontecesse nada do gênero. O que Harry mais queria no mundo era que a primeira vez da Emma fosse preciosa, tão preciosa como ele fosse capaz de conseguir. — Basta — disse ele agarrando as mãos dela. — Não disse que podia fazer tudo o que quisesse — Ela ficou tão contrariada que Harry
sentiu vontade de rir. — Sim — Soltou as mãos e se agachou.
Ajoelhado em frente a ela, levantou um pé para tirar o sapato. — E você queria que eu fizesse tudo o que ensinei recorda? Pois ainda me faltam umas
quantas coisas. Para não mencionar todas as que eu não tive tempo de contar. Então, não discuta. Deixou o sapato de um lado e procedeu a fazer o mesmo com o outro. Em seguida tirou as meias dela tão devagar como havia prometido. Viu que gostava das carícias na parte posterior dos joelhos, porque quando a tocou neste ponto, ela estremeceu de prazer. — Oh, Harry. É incrível. — Um destes dias — murmurou ele — Percorrerei suas pernas com beijos até chegar às nádegas, mas agora mesmo... — Fez uma pausa e começou a desabotoar a última peça de roupa que restava — Agora mesmo tenho outros planos.
Ainda de joelhos, desabotoou os botões da combinação da roupa íntima e o deslizou pelos ombros dela, deixando a descoberto seus seios nus. A moça levantou os braços com intenção de se cobrir, mas ele não permitiu. — Eu disse que ansiava ver os seus seios — Recordou — Deixe-me olhar para eles. — São muito pequenos — sussurrou ela enquanto estendia os braços.
Eram lindos. Tal como havia imaginado. — Deus, Emma, são perfeitos. Sim são pequenos, mas também redondos, suaves, brancos e com estes incríveis mamilos rosados... — Sua garganta ficou seca e não pode dizer nada mais.
Soltou as mãos dela e tocou-os acariciando, desenhando-os com os dedos. Brincou com os mamilos percorrendo-os com os polegares uma e outra vez, capturando-os entre eles. Emma começou a gemer, e ele pode sentir os tremores que percorreram seu corpo. Inclinouse para frente, acariciando um seio com uma mão, enquanto abria os lábios para rodear o outro com a boca. Ela gritou de prazer e seus joelhos ficaram frouxos. Harry rodeou a cintura com um braço para mantê-la em pé e continuou saboreando-a. — Você gosta?
171
— Ah... Ah...
Ele riu, e com ternura mordeu o seio. — Isso é um sim?
Ela assentiu, tratando de articular algo que soou sem dúvida como uma afirmação. Afundou as mãos no cabelo dele, aproximando sua cabeça como se quisesse que ficasse ainda mais próximo do que estava. O braço de Harry a segurou com mais força pelos quadris, e seguiu lambendo-a, justo do modo que havia dito que faria. Os dedos de Emma se moveram convulsivos entre os cabelos dele, e ela começou a gemer. Agitada, ondulou-se entre os braços dele, movendo os quadris de um modo instintivo, mas Harry não a soltou, apertando-a contra seu corpo para mantê-la quieta, procurando aumentar assim a tensão. — Harry — suspirou ela — Oh!
Ele acariciou o seio um pouco mais, e depois parou. Tornou-se para trás, deslizando a combinação até os tornozelos de Emma, que levantou um pé para tirar a peça. Harry colocou as mãos nos quadris dela e a empurrou com suavidade para o leito. — Segure-se nos pés da cama — pediu a ela.
Com dedos trêmulos, apertou o ferro forjado que estava atrás. Devagar, foi cobrindo o estômago de beijos ardentes até alcançar os cachos que cobriam o meio de suas pernas. A garota ficou sem fôlego e, entre surpresa e assustada, apertou as coxas. Negou com a cabeça, mas Harry não permitiu que negasse esse incrível prazer a nenhum dos dois. Apesar de Emmaline Dove ser a mulher com mais sentimento de culpa que havia conhecido em sua vida, de que todo o corpo dele estava ardendo de desejo e de que sua ereção tremia pelo esforço que estava fazendo para se conter, não pularia essa parte. — Emma, tenho que fazer isso. Tenho que tocá-la. — Harry, nem sequer eu me toco aí! — confessou ela, fazendo-o sorrir apesar da tensão que estava suportando — Bem, exceto quando tomo banho. Não faça isso!
Estremeceu ao sentir que ele suspirava em cima de seus cachos. — Deixe que eu faça. Eu quero fazer isso Emma. Necessito. Preciso tocá-la e beijá-la aqui.
Deixe-me fazer isso. — De acordo — consentiu ela em voz tão baixa que quase não a ouviu.
Separou um pouco as pernas e ele deslizou a mão entre suas coxas. Tudo havia valido a pena, embora só fosse pelo prazer de acariciá-la desse modo. Era como tocar o céu, e Harry gemeu de puro prazer. Era tão suave, tão sedosa, e sua essência o estava deixando louco. Acariciou o sexo com os nódulos dos dedos e todo o corpo da jovem respondeu por instinto. Quando ele roçou o clitóris com a língua, gemeu extasiada. 172
Soltou os pés da cama e cobriu a boca com as mãos para não gritar. Ele voltou a colocar os braços dela onde estavam deixando presas suas mãos para impedir que as movesse. Não queria que ela escondesse o que estava sentindo. Se só podia ensinar uma coisa, seria que desfrutasse do prazer sem que nenhuma das tolices que ficou acostumada a dar valor. — Emma, Emma, fique tranqüila — sussurrou ele colocando seus lábios sobre sua púbis —
Limite-se a sentir, e deixe que esta sensação tão maravilhosa a envolva. Beijou-a e a lambeu, e depois de um ou dois segundos, ela suspirou e se acalmou um pouco. Começou a mover os quadris. Harry interpretou esse gesto como um convite, e se dispôs a dar o prazer que reclamava seu corpo de mulher, depressa, cada vez mais depressa, até que toda ela tremeu e se arqueou contra ele, até que a sentiu estremecer em pequenas sacudidas, e uns gemidos inarticulados saíram de seus lábios. Até que o longo e lânguido grito de êxtase feminino a tivesse atravessado e então ela caiu em cima dele. Harry se levantou e a pegou pelos braços antes que caísse ao chão, enquanto Emma o abraçou com força, com a respiração entrecortada e suspirando contra seu torso. Levou-a até a cama deitando-a em cima, e então começou a tirar os sapatos. Ela ficou olhando para ele, sem dizer nada. Ninguém havia explicado nada a respeito da relação entre homens e mulheres, mas agora entendia os motivos de tal reticência. Como podia explicar aquilo? Não havia palavras para descrever o que Harry tinha feito. Aquela doçura que aumentava com cada carícia, passo a passo, segundo a segundo, até estalar e converter-se em fogo em seu interior e saciar por fim o desejo que a consumia. Mas pelo modo em que Harry a olhava, supôs que aquilo não havia terminado, pois seus intensos olhos continuavam ardentes olhando para ela. Viu-o desabotoar as calças, e, quando as tirou, Emma abaixou a vista e ficou atônita. — Deus santo — exclamou e começou a entender, mais ou menos, o que aconteceria. Sentiu um pouco de pânico — Harry?
Ele deixou as calças de um lado, e o colchão se afundou sob o peso dele quando se deitou ao lado de Emma. Abriu a caixa que havia deixado antes no travesseiro e tirou algo, em seguida jogou o pacote avermelhado ao chão e se posicionou em cima dela. Emma sentiu a dureza do que antes só tinha visto, notou que ele pressionava sua coxa, e sua boca ficou seca tentando controlar os nervos. — Harry? — disse de novo, ansiando que a tranqüilizasse.
Ele apoiou seu peso em um braço, suspenso em cima dela, e Emma sentiu como deslizava a outra mão entre suas pernas. Uma mecha do cabelo de Harry caiu sobre a testa, e ela viu que tinha os lábios fortemente apertados. Ele estava bonito como um arcanjo, coisa que não a tranqüilizou muito. Tocou-a justamente, onde a esteve acariciando antes com a boca, o mais leve roçar para abrir essa parte tão íntima, e flexionou logo um pouco os braços para aproximar seu corpo ao dela. — Emma, me escute.
173
Sua voz soava estranha e estrangulada, sua respiração estava entrecortada, e ela ficou ainda mais nervosa. Mas então, com a mão que estava livre, acariciou o rosto e o pânico retrocedeu. Emma virou a cabeça e beijou a palma. — Vai doer um pouco, pequena — Enquanto dizia começou a mover devagar os quadris e a respiração dele acelerou ainda mais — Não há nenhum modo de evitar.
Enquanto ele se movia, ela podia sentir como aquela parte dura do corpo masculino acariciava o meio de suas pernas, e voltou a sentir aquele delicioso e estranho prazer. Arqueou-se contra ele como minutos antes e o prazer foi a mais, intensificou-se. Gemeu. — Emma, não posso esperar — disse ele, apertando os dentes — Não posso me controlar
mais. Não posso. Moveu-se até apoiar todo o peso de seu corpo nos antebraços, enterrou o rosto no pescoço da moça, e adiantou os quadris. Introduziu seu sexo dentro dela. Emma estremeceu embaixo dele, mas não de prazer. Um som profundo e desesperado saiu do mais fundo da garganta de Harry, que virou a cabeça para beijá-la. A beijou com paixão, de repente, voltou a empurrar para se afundar completamente em seu corpo. Embora a tivesse advertido, ela ficou surpresa ao sentir tal dor quando antes só havia sentido prazer. Gritou contra os lábios dele e o abraçou com todas suas forças, desconcertada e com o corpo paralisado. E então Harry começou a beijá-la, o cabelo, o pescoço, as faces, os lábios. Podia sentir seu quente fôlego contra a pele. — Emma, Emma, tudo sairá bem — disse, movendo-se, afundando-se em seu interior ao mesmo ritmo com que ela se arqueava contra ele — Eu prometo isso.
A dor estava desvanecendo. — Estou bem, Harry — sussurrou ela, movendo-se debaixo, tratando de se acostumar aquela
estranha sensação. Então ele acelerou o ritmo, suas investidas se fizeram mais profundas. Estava muito concentrado, com os olhos fechados e os lábios entreabertos. Emma olhou seu rosto e sorriu, pois estava claro que ela estava dando tanto prazer como ele a ela. Levantou os quadris para ele e Harry gemeu e deslizou os braços sob suas costas para aproximá-la mais e ela voltou a sorrir, gostava daquilo cada vez mais. A dor havia desaparecido, e só restava uma ligeira ardência, mas nada comparável ao de antes. Voltou a arquear-se, compassando seus movimentos aos dele, como se estivessem dançando. A respiração de Harry era irregular, soprava junto a seu cabelo. Com seu corpo a tinha presa contra o colchão e à medida que as fortes e rápidas investidas dele se intensificavam, voltou a sentir como aquele prazer maravilhoso que havia sentido antes 174
voltava a nascer, devagar, cada vez mais intenso, mais demolidor, em seu interior. Então, de repente, ele estremeceu e gemeu extasiado. Empurrou uma última vez e logo se deteve, cobrindo-a com todo seu corpo, com o rosto afundado no pescoço dela. Emma acariciou os duros, mas suaves músculos das costas, e afastou as sedosas mechas de cabelo de sua testa. Quando Harry beijou o cabelo e sussurrou seu nome, ela sentiu uma ternura como nunca havia sentido por ninguém em toda sua vida. Percebeu que já era uma mulher sem reputação, mas não sentiu nenhum remorso, nem tampouco vergonha. Só uma incrível e maravilhosa felicidade que se estendeu por todo seu ser e a fez abrir-se, igual uma flor ao sol. Aquilo era o que estava procurando ao chegar ali. Aquele sentimento de vibrante beleza e de vitalidade. Sim, agora era uma mulher sem reputação. Emma começou a rir. Era maravilhoso.
175
O amor é algo inexplicável. Faz-nos ter vontade de rir sem motivo. Em minha opinião, isso não é mau. Senhora BARTLEBY Social Gazette, 1893 — Emma?
Harry levantou a cabeça para ouvir o som da risada dela, que era a última coisa que esperava. À medida que as últimas sacudidas do orgasmo começavam a minguar, a realidade foi reaparecendo pouco a pouco. Ainda em cima dela, sentiu-se um pouco desconcertado. Apoiando-se em sua única experiência prévia com uma virgem, esperava prantos, recriminações, ou, no mínimo, remorso. A reação tão contraditória da jovem foi uma surpresa. Apoiou-se sobre os cotovelos, e estudou seu rosto ruborizado e radiante. — Do que está rindo? — Não sei. É que me sinto feliz.
E parecia, ali sorridente, como se tivesse entregado o mundo em uma bandeja de prata. Uma maravilhosa sensação de alívio o inundou, junto com uma assustadora satisfação. Emma voltou a rir. — Parece o pirata de uma opereta — disse elas — Tem cara de ter abordado um navio e ter
conseguido um grande espólio. — Que descrição tão acertada — Sorriu, agradado com a comparação — Eu adoro.
Beijou-a, e se afastou. — Oh! — exclamou Emma, e foi óbvio que a surpreendeu que ele saísse de seu corpo.
Harry virou-se de costas e ela se sentou. Embora ele tenha tentado se desfazer da camisinha com rapidez, a jovem viu o que estava fazendo. — O que é isso? — perguntou.
Ele ocultou a borracha enrugada em sua mão, convencido de que não era uma boa idéia ver um preservativo usado, especialmente se este estava manchado de seu sangue virginal. Mas compreendeu sua curiosidade e apalpou pelo chão até dar com a caixinha de veludo vermelho. 176
Entregou a caixinha para ela. Emma abriu a caixinha, tirou um dos preservativos dobrados e ficou olhando. — Para que serve? — Para evitar gravidez. Chama-se camisinha. — Oh! — Então entendeu — Ohhhh!
Ruborizada, voltou a guardar. Devolveu a caixinha, abaixou a cabeça, e, com o cenho franzido, começou a desenhar com o dedo as dobras da colcha. Ele deixou a caixinha no chão. — Sua tia alguma vez contou como se fazem os bebes?
Quando Emma negou com a cabeça, Harry ficou furioso. — Deus, por que as pessoas não explicam essas coisas para os filhos? — murmurou, e saltou
na cama olhando para o teto. — Seu pai sim contou isso a você? — perguntou ela — Oh, claro. Suponho que na sua lua de
mel — acrescentou em seguida sem esperar sua resposta. — Em minha lua de mel? Por Deus, não! Meu pai me contou as coisas básicas da vida
quando eu tinha onze anos. Só o básico relacionado com os aspectos físicos, por desgraça. Tomara que me tivesse contado mais sobre as mulheres. — Minha tia não me disse nada de nada. Com certeza acreditava que falar deste tema não
era apropriado. Suponho que parece uma tolice para você. — É pior que uma tolice. É perigoso. A ignorância pode fazer muito dano, inclusive destruir
as pessoas. Pensou em Consuelo, recordando seu medo, seu terror e sua repulsão. Ele jamais esqueceria aquela noite. Como poderia esquecer? Sua esposa havia jogado em sua cara infinidade de vezes. — Harry, o que aconteceu?
Afastou esses pensamentos de sua mente. — Nada. É que acredito que todos deveriam nos dizer a verdade, em vez de todas essas
tolices sobre cabaças mágicas ou cegonhas que vêm Deus sabe onde. Se as pessoas estivessem bem informadas, economizaríamos muitos desgostos. — Estou de acordo com você.
Esse inesperado comentário fez com que ele fitasse os olhos dela. — De verdade?
177
— Sim. Eu gostaria de acreditar que minha tia teria me contado isso antes de minha noite de lua de mel, se tivesse chegado a me casar — acrescentou em voz baixa — Mas não estou segura de
que o tivesse feito. — Eu tampouco. A mãe de minha esposa nunca contou. E isso foi motivo de situações muito
desagradáveis entre nós. De repente, tirou as pernas da cama e ficou de pé. Atravessou o quarto e foi até o closet. Ali, envolveu a camisinha em uma parte de papel e atirou no cesto de papel, depois jogou água na terrina da penteadeira e lavou as mãos. Apanhou uma toalha limpa, molhou, escorreu-a, e a levou com ele de volta ao quarto. Emma ainda estava sentada na cama, rodeando os joelhos com os braços. Olhou-o se aproximar. Harry acariciou o queixo. —Deite-se — pediu — e estique as pernas.
Ela obedeceu, apoiando-se nos cotovelos. Ele separou as coxas dela com doçura. Não tinha muito sangue, só poucas manchas em cada perna, mas o bastante para recordar a magnitude do que havia acontecido. Harry as limpou, e enquanto o fazia, não pode evitar perguntar. — Doeu? — Um pouco. — Sinto muito — Parou um momento e a olhou — Não voltarei a machucar você, Emma — E ao perceber o ardor e a dureza em sua voz tratou de temperá-la — Se alguma vez eu fizer mal, tem
que me dizer isso em seguida. Não queria fazer mal a você por nada do mundo. — Claro que não, Harry.
A convicção da moça chegou à alma, especialmente tendo em conta que acabava de fazer precisamente isso. Inclinou-se e deu um beijo no estômago, depois levou a toalha de volta ao closet. Enquanto se aproximava do leito, Emma não deixou de olhar o sexo dele até que ele chegou a beirada da cama, e em seguida olhou os olhos dele. — Tinha visto estátuas de homens nos museus — disse — lembro-me de uma em especial. Tinha uma folha de figueira em seu... Em seu... — Se interrompeu e assinalou aquela parte da
anatomia masculina. — Pênis — ajudou ele, revelando a ela a palavra adequada enquanto deitava ao lado dela. — Sim, obrigado. Tinha uma folha de figueira aí, tal como disse, mas não a tinham posto
muito bem, porque de um lado podíamos ver a parte do que escondia e, como eu era uma menina muito curiosa, perguntei para mim mesmo o que seria. Então tratei de vê-lo melhor.
178
— E? — Minha tia me pegou com as mãos na massa — respondeu, recordando a frustração que havia sentido nesse instante. Sacudiu a cabeça indignada e viu como Harry sorria — Ela tirou-me de
lá sem que chegasse a ver bem. O sorriso dele ficou mais amplo. Cruzou as mãos por trás da cabeça e disse: — Olhe quanto queira.
Emma ficou de joelhos, jogou a cabeleira para trás e se sentou sobre os calcanhares para estudar fascinada o corpo nu de Harry. Moveu a cabeça de um lado a outro, como se seu pênis fosse algum tipo de mistério que ela não compreendesse. Fazendo um esforço por permanecer sério, ele disse: — Não tem um mecanismo muito complicado, Emma.
Ela alongou a mão, mas logo pensou melhor e a afastou. — Adiante — a animou, e quando ela o tocou, o desejo de Harry se reavivou.
Fechou os olhos, deleitando-se com suas carícias, naqueles dedos que o roçavam e exploravam com ternura. Seu membro começou a se esticar e Emma afastou a mão imediatamente, mas ele voltou a agarrá-la e colocou seus dedos ao redor da ereção, guiando-a, ensinando como tocá-lo — Não pare. Abriu os olhos e observou como o rosto dela mudava de expressão à medida que suas carícias o excitavam. — Quando vi essa estátua antes, jamais imaginei... — Afastou a mão e ficou fascinada olhando a ereção — Jamais imaginei que pudesse crescer até este ponto.
Harry riu com vontade. — E também sabe saudar — disse.
Com o joelho, a jovem deu um carinhoso golpe no quadril. — Isso não é verdade! — Mas mordeu o lábio inferior e o olhou insegura nos olhos — Não?
Ele voltou a rir sem poder evitar. Emma era a mais doce pessoa que tinha visto em toda sua vida. Agarrou outra camisinha do pacote que estava no chão, e ficou de lado, tombando-se também com ela, posicionando suas costas contra seu torso. Com a camisinha ainda na mão, deslizou o pênis entre suas coxas sem chegar a penetrá-la e começou a mover os quadris, balançando-se para frente e para trás, perto do sexo feminino, preparando-a para voltar a fazer amor. Beijou a orelha e acariciou os seios com a mão que estava livre. Quando deslizou a mão por seu umbigo até suas coxas, A respiração de Emma já estava entrecortada e sua feminilidade deliciosamente úmida. Harry estendeu essa umidade por todo seu sexo, desenhando lentos círculos com os dedos, 179
até que as carícias ficaram mais atrevidas e então, colocou a camisinha com a outra mão. Por trás, deslizou a ponta do pênis dentro dela, e depois afastou-se um pouco. Repetiu o movimento várias vezes, enquanto seguia acariciando-a pela frente, atormentando a ambos, até que Emma ficou tão excitada que seus quadris se moviam desesperadamente em busca do clímax. Estava já muito perto. Então, Harry a penetrou por completo e empurrou com toda a alma. Ao mesmo tempo, tocou-lhe o clitóris, e a moça estalou de prazer imediatamente, gritando seu nome, e envolvendo-o estreitamente com todo seu ser, fazendo que ele tivesse o maior orgasmo de toda sua vida. Depois, Harry sentiu como a letargia começava a se apoderar dele e desejou com todas suas forças poder ficar assim dormindo, dentro dela. Mas não podia, pois não restava muito tempo. Moveu-se e afastou-se devagar. Beijando a face, disse: — Emma, temos que nos levantar. Tenho que levá-la para casa antes que amanheça.
Ela assentiu e enquanto ele se levantava, fez o mesmo. Vestiram-se em silêncio, mas Harry sabia que, antes de se despedir, tinham muito do que falar. Ele esteve preparado antes, e enquanto Emma terminava, foi a procura de seu valete. Cummings, que possuía grande experiência além de tato e discrição, respeitou a intimidade de seu patrão durante toda a noite, e não tinha dormido em seu quarto, situado ao lado do closet de Harry, mas sim estava descansando em uma das salas que os serviçais tinham no piso inferior. Harry o despertou e pediu que procurasse uma carruagem. Quando retornou ao quarto, Emma já estava arrumada e sentada na beirada da cama. Levantou-se ao vê-lo. — Já está na hora? — Quase.
Agarrou um impermeável do closet. — Ainda está chovendo — disse, entregando para ela o escorregadio objeto. — Vamos sair em sua carruagem? — Meu valete está procurando uma de aluguel. Acredito que seja melhor. Não quero que
ninguém veja meu brasão. — A estas horas é pouco provável. São três da madrugada. — Não quero correr o risco. O que de verdade me preocupa é como vamos fazer para que
entre em seu apartamento sem que ninguém se inteire. — Não tem problema... — A porta principal está fechada, não? — Sim. A Senhora Morris sempre fecha as onze, por fora e por dentro, a não ser que algum
180
de seus inquilinos diga a ela que deverá retornar tarde do teatro ou algo parecido. Nesse caso, deixa a porta sem correr o ferrolho e uma criada espera acordada até que essa pessoa chegue. Mas... — Suponho que não você não vá dizer nada. Inventou alguma desculpa para dizer a ela que
chegaria tarde? — Não, Harry mas... — Bem, pois temos que encontrar alguma desculpa que justifique que tenha ficado fora até
tão tarde. Às garotas solteiras talvez seja permitido passear com um cavalheiro às três da tarde, mas duvido que essa norma se aplique também às três da madrugada. — Há algum tempo que tento dizer que não tem por que se preocupar. Escute, deixei aberta uma janela do meu quarto. A do balcão — esclareceu enquanto ele continuava olhando para ela sem entender nada — Essa janela dá para a escada de incêndios. Ora — acrescentou, sacudindo a cabeça sem deixar de olhá-lo — é uma sorte que ao menos um dos dois tenha o suficiente bom
senso para pensar nestas coisas, caso contrário não teríamos um grave problema. Olhou a capa de chuva e começou a desdobrá-la. — Acredito que vai ser muito bom isto de ter uma aventura, não acha? — concluiu.
Harry tomou conta de tudo. Alugou uma pequena casa de campo para os dois em Kent, um povoado que estava a só duas horas de Londres de trem, e onde Emma assegurou que não conhecia ninguém. Para manter longe as intrigas, Harry disse aos habitantes que eram o Senhor e a Senhora Williams, um matrimônio muito reservado. Eles ficariam ali cada sexta-feira e retornariam as segundas-feiras, explicou a Emma durante sua última reunião em seu escritório, sussurrando esta informação para que seu secretário não pudesse ouvir nada através da porta aberta. Foi contando os detalhes entre comentários sobre as correções dos futuros artigos. Viajariam para lá em trens separados e partiriam do mesmo modo. Ele se ocuparia que na casa tivesse de tudo e contrataria alguém para que limpasse durante a semana, enquanto eles estavam em Londres. Enquanto estivessem ali, na moradia não haveria nenhum criado, pois deduziu que a Senhora Bartleby, que escrevia tão maravilhosas receitas, saberia cozinhar. E, se não, ele podia fazer torradas com queijo na lareira. Quando Harry conseguiu ter tudo organizado, duas semanas já haviam passado. No transcurso destas, Emma descobriu algo maravilhoso, o prazer da antecipação. No momento em que o trem parou no pequeno povoado de Cricket Somersby, estava tão nervosa e excitada que quase não podia se conter. Ele estava esperando por ela na plataforma, e sorriu, assim que a viu, e ela sentiu um salto no coração. Queria correr para os braços dele, mas nem sequer ali, longe de todo mundo, podiam dar rédea solta aos seus sentimentos. Harry segurou a mala dela, caminharam juntos para uma carruagem que os estava esperando. Deu a bagagem ao condutor e ajudou Emma a entrar. Quando já estavam sentados, o condutor subiu à boleia e empreenderam a marcha. A casa era uma pequena construção de pedra de dois pisos, com o teto de palha, águas furtadas e uma 181
enorme porta de cor vermelha. Estava rodeada de árvores e muito perto havia uma clareira. Havia um pequeno jardim na parte de trás, disse Harry enquanto a acompanhava para dentro, e estava completamente mobiliada. Emma parou no pequeno vestíbulo, mas só deu tempo de ver que a sua direita estava a sala de jantar antes de ouvir como sua mala caía no chão com um golpe surdo. Deu meia volta e viu que Harry fechava a porta. Sua cara de determinação fez que sua respiração ficasse acelerada. Quando ele a pegou entre os braços, jogou a cabeça dela para trás e a beijou, Emma levou uma mão ao chapéu e rezou para que houvesse uma cama bem perto. Havia sim, uma cama enorme, com um antigo dossel de madeira. O colchão era alto e fofo, e estava junto com lençóis recém-lavados e muitos travesseiros. A Senhora Bartleby, disse Emma para Harry, adoraria aquele leito, mas não acrescentou com malicia, o que fariam com ele. Harry preferia não falar do tema da Senhora Bartleby, e Emma tampouco. Depois da conversa que a Senhora Morris havia escutado às escondidas naquele dia, sabia que ela não era a secretária da Senhora Bartleby, e sim a muito famosa autora em pessoa. Sua caseira sabia também que Harry não havia proposto matrimônio à sobrinha de sua querida amiga Lydia. E, embora fosse óbvio que a mulher estava encantada com a fama de sua inquilina, e disposto a manter o segredo, Emma sabia deste modo que não acreditava absolutamente, que esse fim de semana tivesse ido documentar um artigo. Por sorte, a Senhora Morris não perguntou nada nem passou nenhum sermão, e ela fez um esforço para ignorar a expressão de desaprovação e preocupação que via no rosto da mulher cada vez que se cruzavam pelo corredor. Mas Emma não se arrependia da decisão que havia tomado, e não havia tempo para preocupar-se. Quando estava com Harry, sentia-se muito feliz desfrutando do que faziam, e quando estavam separados, recordava-se dele. Durante as quatro semanas seguintes, todos os momentos que passou com ele naquela casinha de campo estavam repletos de descobrimentos fascinantes e de aventuras maravilhosas. Adorava ver como se barbeava. Ele não conseguia compreender que não se aborrecesse ao vê-lo repetir esse ritual matutino tão cotidiano. — É que é tão...Não sei, tão masculino — Ela explicou, obtendo gargalhadas como
recompensa. — Eu assim espero — respondeu Harry sério, quando deixou de rir — Se algum dia fizer algo
feminino, mate-me, por favor. — Falo sério. — Eu também — replicou ele, deixando a navalha de lado para apanhar a toalha. — Ver como se barbeia é...
Fez uma pausa, e apoiou-se contra a parede que havia ao lado do lavatório, observando como ele tirava a espuma do rosto. Percorreu o torso nu com o olhar, contemplou os poderosos músculos de seus braços e ombros tratando de lembrar a palavra adequada.
182
— Excitante — disse por fim — Excita-me. — De verdade?
Ele ficou quieto e levantou o olhar para o espelho e através deste, olhá-la nos olhos, com aqueles olhos ardentes, de um azul tão sensual que estavam ficando tão familiares. Emma adorava esse olhar. Quase sempre faziam amor quando terminava de se barbear. Harry a ensinou a pescar, e isso a encantou. Gostava de ficar descalça no meio do arroio, com a saia até os joelhos, e ver recompensada sua paciência ao pescar o que mais tarde se tornaria no jantar deles. Olhava suas pernas nuas na água, e dizia que pescar se havia convertido em seu segundo passatempo favorito. Ela sabia de sobra qual era o primeiro. Harry contou coisas que ninguém contou antes, como por exemplo, por que sangrava cada mês e como funcionavam e se chamavam certas partes do corpo, tanto do corpo dela como do dele. Aprendeu a cuspir, um costume do mais desagradável e a fazer um nó de lenço como Deus manda e também a acariciar a pele que havia na ponta do pênis fazendo com que ele ficasse completamente louco. Harry a introduziu em um mundo de prazer que nunca imaginou sonhar, ensinou como era maravilhoso fazer amor ao ar livre, e a noite, sobre a grama, que romântico podia ser se a penteasse, quanto íntimo era ter as escovas de dente juntos no mesmo copo, que incrível era cozinhar ovos com bacon, nessa pequena cozinha um junto ao outro, e o agradável e relaxante que era deitar-se juntos na rede para dormir uma sesta no meio da tarde. Os quentes dias de agosto foram passando. Juntos deram longos passeios e exploraram a campina, onde freqüentemente viam um casal com a mesma afeição. Deviam ter uns setenta anos e sempre que Emma e Harry cruzavam com eles, estavam segurando a mão um do outro como se fossem jovens apaixonados. Ele a levou ao rio. Emma não sabia nadar, mas apesar de sua queixa alugou um bote e disse que não tivesse medo, pois a água apenas chegaria ao pescoço e assegurou que algum dia a ensinaria a nadar. Ela respondeu que isso não aconteceria jamais, e discutiram sobre o tema. Harry levava muito a sério as opiniões de Emma, e estavam acostumados a discutir apaixonadamente sobre muitas coisas. Como por exemplo, política, normas de conduta, a importância da instituição do matrimônio na Sociedade, ou se Blake era melhor poeta que Tennyson. Ele a fazia rir no mínimo doze vezes ao dia, e ela descobriu que também era capaz de fazê-lo rir, especialmente quando não esperava. Mas não importava. Gostava do som da risada de Harry. Ele a ensinou a jogar pôquer e Emma descobriu uma coisa mais sobre si mesma tão escandalosa quanto as anteriores, gostava de apostar. Mas quando disse para Harry que jamais seria capaz de apostar dinheiro de verdade, ganhou outro comentário a respeito do miserável que era. Eles decidiram utilizar fósforos em vez de moedas, um fósforo equivalia a um guinéu, e Emma ficou satisfeita com isso, pois o que de verdade gostava era de competir com ele. E, se por acaso isso fosse pouco, teve a sorte de principiante. — Fiquei sem banca — disse ele quando ela subiu a aposta outros dez fósforos.
183
— Sinto muito — respondeu, sorriu do outro extremo da mesa e sem dissimular que na realidade não lamentava absolutamente ter ficado com todos os fósforos dele — Temo que tenha
que abandonar o jogo. — Não necessariamente — disse ele, e fez uma pausa — Há outras coisas com as que
apostar, além de dinheiro. Algo em sua voz fez com que um calafrio a percorresse inteira. Desviou o olhar por volta dos quatro reis que segurava entre os dedos, e depois olhou para ele com fingida inocência. — Tem algo que possa me interessar? — Um monte de coisas. A questão é, o que é que você mais gostaria que eu desse?
Seu coração bateu acelerado de emoção, mas não demonstrou. Em vez disso, tratou de parecer indiferente. — Vejamos. Recordo-me que me disse que um dia você me beijaria as pernas até chegar às
nádegas. — É verdade. É isso o que quer? — Muito mais que isso, Harry. Quero que me beije todo o corpo — sorriu — Durante uma
hora. — Uma hora? — gemeu ele — Jamais serei capaz de agüentar tanto sem fazer amor. — Uma hora. Todo o corpo. E só beijos. — E deixará que também a toque?
Ela inclinou a cabeça, fingindo pensar. — Sim, deixarei que me toque. Mas nada mais, e tem que durar uma hora. — De acordo, de acordo, se insistir... — mostrou suas cartas.
Emma desfrutou durante uma hora inteira dos beijos e das carícias mais maravilhosas do mundo, e embora Harry não tenha deixado de balbuciar que aquelas preliminares tão longas era uma tortura insuportável para qualquer homem, a partir desse dia nunca mais jogaram com fósforos. O melhor de tudo foi que, durante aquele primeiro mês daquela aventura, Emma aprendeu algo muito importante, admitiu o que de verdade queria e a lutar para conseguir.
184
Ultimamente tenho me afeiçoado muito ao campo. Lorde Marlowe Guia para Solteiros, 1893
No fim de semana seguinte, Harry ensinou finalmente Emma a nadar. Embora tenha custado muitíssimo convencê-la. A princípio tratou de persuadi-la dizendo que era algo que todo mundo deveria aprender, embora só fosse por motivo de segurança. Mas que se preocupasse com seu bem estar não pareceu impressioná-la muito. — É muito carinhoso de sua parte, Harry — disse movendo-se na rede para poder apoiar a face em seu ombro — mas não é necessário, não penso me aproximar nunca a nenhum lugar com
bastante água para me cobrir a cabeça. Ele não estava disposto a se dar por vencido. — Isto não é próprio de você que adora aprender coisas novas. Além disso, é uma mulher
muito sensata e se negar a aprender a nadar é uma insensatez. — Sensata — Levantou a cabeça e fez uma careta — Que palavra tão horrível. — Não é horrível — Beijou o nariz — Eu gosto que minha Emma seja sensata.
Ela negou com a cabeça, e ele a olhou intrigado. — Qual é o verdadeiro motivo de tanta reticência? Diga-me. Será que não confia em mim? — É claro que confio em você. É que... — Suspirou exasperada e Harry continuou olhando
para ela, esperando uma resposta. — De acordo, se está tão interessado direi isso. É que não me sentiria cômoda, tirando a
roupa em plena luz do dia e fora da casa. — Pois vista algo, uma combinação ou qualquer outra coisa. — Quando eu estiver molhada será como se estivesse nua. — Sim.
185
Ele a olhou como o vilão de novela. — Sim... — repetiu. — Harry. Estou falando sério.
Soube que dizia a verdade e deixou de brincar. — Você tem tanta vergonha? — Sempre fui tímida. Recatada, quero dizer. Já sabe. — Deus, Emma, não vai me dizer que continua sentindo vergonha comigo? Eu já vi você nua
à luz do sol e digo que cada dia eu dou graças a Deus por isso. Cada dia. — Não me importa que você me veja, mas poderia alguém mais ver. Então morreria de
vergonha. — E por isso não quer aprender a nadar? — Quando ela assentiu, ele riu e a beijou — Carinho, por que não me disse isso antes? Eu a ensinarei a noite — Voltou a beijá-la — Nua. Que
grande idéia! Não entendo porque não me ocorreu isso antes. Nessa noite, Harry fez realidade seu desejo e Emma recebeu sua primeira aula de natação. E enquanto estava flutuando na água, com a luz da lua iluminando seu corpo nu, seus lábios esboçaram um sorriso de felicidade tal e olhou para Harry com tanta confiança, que este agradeceu ao destino que ninguém tivesse ensinado a nadar à Senhorita Emma Dove.
— Os cães são melhores. — Não é verdade — Emma pegou uma amora do cesto que descansava entre eles sobre o
toalha e a comeu. — Sim são — Harry procurou o pão na cesta de lanche e cortou uma parte — Os cães são
leais e carinhosos. — E os gatos também.
Ele fez uma careta de desprezo e untou fatias com manteiga para os dois. — Senhor Pardal sempre foi muito carinhoso com você — Emma recordou — Como pode
dizer que não é leal? Sempre me traz pássaros. — Pássaros mortos. — É uma amostra de lealdade felina.
186
— Emma, expulsa bolas de cabelo pela boca. É asqueroso. Como pode querer um animal
que cospe cabelo?
— Como pode querer um animal que baba? — contra atacou ela, e deu uma dentada no pão com manteiga — Acredito que na próxima vez trarei o Senhor Pardal para que o conheça melhor. — Nem pensar. — Ele adora você, não se lembra? — Carinho, eu adoraria dizer que o sentimento é mútuo, mas não é assim. Não tenho nada
contra Senhor Pardal, mas odeio gatos. Emma não respondeu, pois algo ao longe havia chamado a atenção. — Aí estão outra vez — murmurou, assinalando o casal de anciões, os mesmos que viam
cada fim de semana. De mãos dadas, estavam cruzando a pradaria, a uns cinqüenta metros de distância — Sempre estão agarrados. — Ah, sim? — Harry tirou o queijo e o pote de mostarda da cesta — Não reparei. — É muito romântico — Emma fez uma pausa, aturdida pelo que acabava de pensar — Você
e eu caminhamos muito tempo, Harry e nunca você segurou minha mão. — Ah, não? — disse ele sem prestar atenção. — Muito britânico de nossa parte.
O comentário o desagradou. Emma sabia, mas não entendia o motivo. Decidiu insistir mais no tema, perguntar por que nunca tinha dado a mão, mas algo no rosto dele a fez desistir, então ficou calada, terminou o pão, agarrou outra amora e deitou de costas para olhar o céu. — Consuelo e eu éramos acostumados a caminhar de mãos dadas. Era o único gesto
remotamente romântico que nos permitia fazer. Emma ficou quieta, com a amora a meio caminho de seus lábios. Era a segunda vez em todos os anos que conhecia Harry que este mencionava o nome de sua esposa anterior. Comeu a amora, esperando que continuasse, mas quando viu que, passados uns segundos, não o fazia, foi ela quem falou. — Que estranho — disse, tratando de fazer a voz soar a mais neutra possível. Deitou-se sobre o estômago — Os americanos afirmam ser mais relaxados que nós. — O pai de Consuelo era meio cubano. E também muito severo, criado à moda antiga, como sua mãe — Harry começou a cortar porções pequenas de queijo sem olhar para ela — Nunca nos
permitiram estar a sós. Todas as nossas conversas foram diante de outras pessoas, a não ser que estivéssemos dançando. Tudo foi muito respeitável, muito apropriado. A única vez que pude falar com ela sem testemunhas, antes de nosso comprometimento foi quando a pedi que se casasse 187
comigo. E estou seguro que, inclusive então, a mãe dela estava colada na porta, espiando pela fechadura. Emma detectou o desprezo que escondiam essas palavras, e não soube o que dizer. — Uma vez comprometidos — continuou — podíamos nos dar a mão e caminhar uns metros
adiantados dos outros se queríamos falar a sós. Mas quanto íntimas podem ser as conversas, quando se está rodeado de gente que pode escutar tudo o que está dizendo? E no que corresponde a coisas tão simples como beijos, isso já era completamente impossível — Ele calou-se alguns segundos e a olhou — A primeira vez que pude beijar Consuelo, foi no dia de nosso casamento. Riu sem vontade. — Não estranho que nosso matrimônio estivesse condenado de antemão. Eu estava
completamente apaixonado por uma mulher, por uma menina, que não sabia nada e que não tive oportunidade de conhecer. Se tivesse essa oportunidade, talvez percebesse a verdade. Mas então era muito jovem e muito estúpido. Tinha a sensação de que algo estava errado, mas tinha vinte e dois anos, e me encontrava em um país estrangeiro. Não queria ofender a família dela. E tampouco ajudava muito que todos os dias, nos perseguisse a imprensa americana. Seguiam-nos em todos os lugares, quase todos acreditavam que me casava com ela por dinheiro e que ela o fazia para conseguir um título nobiliário. E tinham razão. Deixou de cortar. O queijo estava destroçado. Olhou para Emma. — Consuelo nunca me amou. Era uma menina de dezessete anos a quem obrigaram,
pressionaram, ameaçaram, chame como você mais gostar, até que ela aceitou se casar comigo. Acredito que Estravados quis que me convertesse em seu genro desde que me conheceu. Eu não sabia que Consuelo estava apaixonada por outro, de um homem que sua família considerava inapropriado para ela. Emma assentiu. — Sim, o Senhor Rutherford Mills. Sei. — Ela tentou fugir com ele sem sucesso, por isso nos vigiavam tanto. Pensavam que ia tentar
escapar outra vez. Nessa época, eu não era muito melhor que Mills, mas ao Estravados caía bem. E o que era mais importante, tinha um título nobiliário, propriedades, e amigos importantes que podiam ser úteis para fazer negócios na Inglaterra. Para ele, eu era a melhor opção que Mills, que não tinha nada a oferecer. Harry serviu-se de um copo de vinho e o bebeu de uma vez só. — Então, depois de um namoro muito curto e muito planejado, um noivado ainda mais
curto, e um casamento relâmpago, o Senhor Estravados possuía um genro britânico, Visconde nada menos, conseguiu se introduzir nas mais altas esferas sociais e evitou que sua filha fugisse com um pretendente de pouca ascensão social. E ficaram todos contentes. Todos, com exceção de Consuelo, que passou os quatro anos seguintes se sentindo enormemente desgraçada e culpando a si mesma do acontecido, isso quando deixava de me culpar, claro. Tentei fazê-la feliz. Deus sabe como tentei...
188
De repente calou-se e ficou em pé. Afastou-se um pouco, apoiou o ombro em uma árvore e deixou vagar o olhar pelo prado, de perfil para Emma. — Mas não se pode obrigar a ninguém a ser feliz. Nem que se apaixone. E a frustração
começa a fazer dano e ressentimento. E a dor de descobrir que o que você sente não é recíproco, o faz sentir-se como um canalha por querer fazer amor com sua própria esposa, ao perceber que mentiram — Voltou o rosto e a olhou — Consuelo e eu passamos quatro anos fazendo nossa vida impossível. Ela se comportava como uma criança, e passava o dia me culpando de tudo. Eu decidi evitá-la, ignorá-la e a ironia se converteu em minha aliada. Chegamos a um ponto em que nem sequer podíamos falar de um modo civilizado. Ela fechava com chave a porta de seu dormitório e para dizer a verdade, eu logo deixei de ter vontade de tentar abri-la. Foi um verdadeiro inferno. — Entendo — Murmurou Emma, compreendendo a solidão que ele sentiu, apanhado em
um matrimônio como aquele. A solidão era algo que ela entendia muito bem, e doeu o coração ao pensar que Harry também teve que suportá-la. — Não sabia que ela tinha começado a se corresponder em segredo com Mills. Ela escreveu
milhares de cartas contando que estava vivendo infeliz na Inglaterra comigo, dando-lhe a certeza de que sempre o amou e suplicando que fosse resgatá-la — Fez uma pausa — Suplicar era a tática preferida de Consuelo. Também suplicou que me divorciasse dela. Mas eu me neguei. Ela assentiu. — Por suas irmãs. — Inclusive agora, dez anos depois que solicitei o divórcio, elas continuam sendo excluídas.
Minhas irmãs, minha mãe, inclusive minha avó sofreram o desprezo da Sociedade, e isso fez muito mal a elas — Desafiou-a com o olhar — Entende por que não posso suportar as normas de etiqueta? Que são estúpidas e inúteis? Ela negou com a cabeça. — É totalmente compreensível.
Harry encolheu os ombros, e sua fúria se desvaneceu tão rápido como havia aparecido. — Enfim, como estão acostumados a dizer, é história. Consuelo fugiu com Mills para a
América, e fez isso de forma tão pública quanto foi possível, me dando argumentos de sobra para me divorciar dela alegando adultério e demandando também a Mills. Estravados a deserdou e os dois abandonaram o país. A última coisa que soube deles foi que estavam na Argentina. — E por que demônios ela não contou a verdade antes que se casassem? — perguntou Emma desconcertada — Com certeza ela poderia ter feito isso. Por que mentiu e disse que o queria
se não era verdade? — É óbvio que não conhece os pais dela. Estravados era um homem terrível, assim como a
189
esposa dele. Consuelo não era uma rival digna deles. — Ela caiu sob a pressão e se resignou a fazer o que esperavam dela, para então não
decepcionar sua família. Harry olhou Emma nos olhos e Emma viu neles algo que a feriu, que arranhou a alma. — Consuelo só queria ser uma boa garota, ganhar a aprovação de sua família. Mentiu para
mim, e mentiu para si mesma. Ela ficou sem fôlego. Doeu muito que a equiparasse com sua esposa, especialmente recordando que em muitas ocasiões ela também mentiu para si mesma. Levantou-se, chegou perto dele e rodeou a cintura com os braços. — Eu nunca menti para você, Harry, e nunca farei isso — disse — E nunca mais voltarei a
mentir a mim mesma, nem sequer para ser uma boa garota. — Promete-me isso? — Prometo-lhe isso.
— Sou horrível nisso — advertiu Harry agarrando a faca de trinchar e o garfo — Já disse que sempre destroço o frango — acrescentou, olhando a ave na sua frente.
Emma posicionou-se ao lado dele na mesa e apontou onde devia cortar a coxa. — Se inclinar a faca assim — indicou, fazendo o gesto com a mão — poderá seccionar a
carne e evitar o osso. Harry seguiu as instruções. — Vê? — disse ela ao ver como a faca deslizava com suavidade — É fácil. A única coisa que
precisa saber é onde cortar. — Talvez esta parte não tenha ficado tão mal, mas o que faço com as asas? — Sorriu —
Afinal, é a única parte que você pode comer. — No que se refere ao frango, cheguei à conclusão de que você tem razão. — De verdade? — Sim. Comer só as asinhas é uma soberana tolice. Além disso, eu gosto mais da carne
escura. — As coxas, Emma — disse ele, rindo-se — É incapaz de falar isso, não? — As coxas — repetiu ela, rindo com ele — Eu gosto das coxas.
190
— Muito bem — Voltou a concentrar-se no que estava fazendo. — Entretanto, eu prefiro o peito.
Fazia pouco mais de um mês que eram amantes, e ela nem sempre sabia quando ele estava brincando, mas o que sabia era quando estava se insinuando. O tom de voz de Harry ficava mais sedutor e provocador. Aproximou-se, roçando o braço dele com o peito com toda a intenção. — Então acredita que os peitos têm a carne mais saborosa? — perguntou com voz
insinuante. — Muito bem, Emma Dove — murmurou ele, deixando a faca e o garfo a um lado — está
tentando me seduzir? Quando a olhou com aquele olhar tão especial, o corpo de Emma começou a arder. — Sim — Levantou as mãos e começou a brincar com os botões da camisa dele — Vamos
fazer amor. — Excelente idéia — Beijou-a — Depois nós vamos poder comer.
Ela olhou a comida que estava sobre a mesa, e depois olhou para ele, surpresa pelo que acabava de ocorrer. — Por que não fazemos as duas coisas de uma vez?
Harry riu com sensualidade, uma risada rouca e profunda. — Emma, Emma, que atrevida você se tornou. — E tudo por sua culpa — Pegou uma uva da cesta de fruta e a colocou entre os lábios dele — Foi você quem disse que a comida era um prazer muito terrestre. — É verdade — Mordeu a uva e a engoliu.
Ela começou a desabotoar a camisa, mas diante de sua surpresa, Harry a deteve. Ela olhou ao seu redor. Estavam na cozinha. — Não quer levar a comida para o quarto? — Muito complicado. E tampouco quero ter que subir correndo apanhar a camisinha.
Danificaria a magia do momento. Além disso, quando começamos a nos beijar, sempre perco a cabeça e talvez me esqueça. Uma estranha sensação a invadiu ao ouvir essas palavras, e não soube explicar por que. Tomar precauções era a coisa mais sensata, caso não fizessem isso, as conseqüências podiam ser muito graves.Subiu ao quarto e pegou a caixinha vermelha, tratando de afastar aquela estranha sensação de sua mente. Quando retornou à cozinha, viu que Harry vestia só as calças e que estava colocando diferentes tipos de comida em uma bandeja. 191
Observou-o cortar pequenos pedaços de pão, um prato com partes de frango e queijos e uma seleção de uvas, pêssegos cortados e ainda dois pequenos potes, um de mostarda e um de mel. — Mel? — perguntou ela com reservas. — Mel, Emma — Sorriu com malicia e tirou a colher que havia no pote.
Ambos olharam como caía o mel, num longo fio dourado sob a luz do entardecer. — Harry — suspirou, entendendo o que pretendia.
Estava tão surpresa, tão excitada, que mal podia respirar. Lambeu os lábios. — Não pretenderá...? — É melhor você começar a tirar a roupa — aconselhou ele enquanto repetia o gesto.
Ela estava como hipnotizada olhando a mão dele quando de repente a alagou a luxúria, uma luxúria quente e doce, igual ao mel que escorregava daquela colher. — Mas o mel...vai me deixar pegajosa — objetou, mas ao mesmo tempo começou a
desabotoar a blusa. Harry riu. — Essa é a intenção, meu carinho, que fique pegajosa. Por isso é melhor você tirar a roupa
antes de começar. Só faltava tirar a combinação quando percebeu que ele não parecia ter intenção de tirar as calças. Continuava brincando com o mel e com o olhar cravado nela. — E você não tem que se despir? — perguntou enquanto afrouxava as fitas da roupa intima. — Se um homem não tira totalmente as roupas ele pode agüentar mais, e eu quero que este
jantar seja muito longo. Pretendo tirar minha roupa mais tarde. — Oh, não, nem pensar — Atirou a combinação ao chão, juntamente com o resto de sua roupa, e tirou a colher das mãos dele —Tire as calças, Harry — ordenou — Agora. — Está ficando muito mandona, não? — Sim — riu, e pensou que era verdade.
Surpresa de si mesma por ser capaz de estar nua no meio de uma cozinha com seu amante. Emma imaginou um monte de coisas para fazer com aquele pote de mel e aquela bandeja de comida. — Eu gosto de dar ordens. — Bem, agora sim que estou perdido — respondeu ele, desabotoando calças — Já descobriu
192
que pode fazer comigo o que quiser e jamais voltarei a ser como era antes. — Depressa — Apoiou o quadril na mesa e levou a colher aos lábios — Estou com fome.
Lambeu o mel da colher com um atrevimento e sensualidade que nunca antes havia mostrado ao fazer amor, e que pareceu surpreender a ele tanto como a ela, pois viu como as pupilas de Harry ficaram dilatadas. Limpou a colher com a língua. Ele gemeu e as calças caíram de sua cintura. — Queria que desfrutasse de um jantar de cinco garfos, mas agora será impossível. — A única coisa que me interessa é a sobremesa. Já sabe que sou muito gulosa.
Deixou a colher e agarrou a bandeja que havia na mesa. Nus, ajoelharam-se no chão de madeira. Emma depositou a comida perto deles, sem saber muito bem o que fazer a seguir. Ele ensinou. Pegou um pedaço de pão, afundou-o no mel e o aproximou aos lábios dela. Emma mordeu. Então, recordou o que Harry fez aquele dia no Au Chocolat, lambeu o mel de seus dedos. — O que aconteceu com a minha recatada e tímida Emmaline? — perguntou, afastando os
dedos para apanhar uma parte de pêssego, que também empapou de mel. — Eu já disse. Com você não me sinto tímida. Já não.
Aproximou a fruta aos lábios, e os percorreu com o mel. — E o que sente? — Bonita.
Ia morder o pêssego, mas ele o afastou e a beijou, sugando o lábio inferior como se fosse um doce. Ela apoiou as palmas em seu peito musculoso, saboreando a sensação daqueles duros músculos pulsando sob suas mãos. Adorava a força que o corpo dele desprendia. Ele voltou a se afastar. — Deite-se.
Quando Emma se deitou, Harry a seguiu, inclinando-se. Muito devagar foi deslizando o pedaço de fruta pelo pescoço de Emma, e à medida que a luxúria se estendia por dentro de seu corpo, igual ao que o mel fazia por fora, a pele dela começou a queimar. Estremeceu ao sentir que o chão de madeira em suas costas intensificava o erotismo. — Lembra-se do dia em que acompanhei você ao mercado de Covent Garden? —perguntou
ele — Não pare — respondeu ela com os olhos fechados. — Estávamos em frente a uma banca de frutas, e você disse que adorava pêssegos.
193
Amadurecidos, doces, suculentos — Acariciou um seio com a fruta, e ela ficou sem fôlego — Comentou que eu tinha uma expressão muito estranha. Lembra-se disso, Emma? — Sim — Ela ofegou quando ele começou a passar seu mel em seu mamilo — Sim, lembro-
me. — Estava imaginando isto.
Surpresa, ela abriu os olhos e fixou o rosto dele. — Estava pensando em fazer isto? Comigo?
Ele assentiu e colocou nos lábios o pedaço de pêssego, depois pegou outro, afundou-o no mel, e deslizou a fruta pelo outro seio. Emma gostava da textura do mel, acariciava sua pele de um modo incrivelmente erótico. Estremeceu de novo, o desejo era cada vez mais intenso e mais ardente. Quando ele soltou a fruta e se abaixou para comê-la em cima de seu seio, ela arqueou as costas, desesperada para conseguir um de seus apaixonados beijos. — Harry — gemeu — Oh, Deus, isto é tão atrevido.
Ele riu e comeu a fruta e ao terminar, levantou a cabeça. Pensava em aproximar-se de novo à bandeja, mas ela segurou seu pulso. — Não, não. Já disse, tenho muita fome.
Emma procurou sentar e colocou a mão no ombro de Harry para fazer com que ele se deitasse. Em seguida pegou a bandeja. — Você gosta mais de salgado, não? — disse ao pegar uma parte de queijo.
Passou-o pela mostarda e o deu para que o comesse, depois fez o mesmo com um pouco de frango. Quando chegou a vez do pêssego, o embebeu de mel e segurando-o entre os dentes, inclinou-se para frente e também o ofereceu. — Humm — murmurou ele, mordendo a fruta com cuidado e ficando com a metade — Você
faz isso ficar muito bom. Ela engoliu o pedaço de pêssego e fingiu não estar convencida. — Não sei Harry. Acredito que preciso continuar praticando.
Pegou outra parte de pêssego, afundou-o no mel e, imitando o que ele havia feito antes, percorreu todo o peito dele com a fruta. Harry pronunciou o nome dela entre gemidos e Emma sorriu. Ficava encantada como soava seu nome quando ele dizia desse modo. Deixou o pêssego em cima de seu peito e o devorou ali mesmo, rodeando o pênis com os dedos ao mesmo tempo. Acariciou-o do modo que ele havia ensinado. A respiração de Harry começou a ficar acelerada e mais profunda. Emma soube então, que o resto da comida teria que esperar.
194
Com a mão que estava livre, acariciou o testículo com suavidade. Ele levantou os quadris, e afundou os dedos em sua cabeleira. — Leve para me dentro de você.
Ela estava adorando a sensação de dar prazer, saboreando-a ao máximo e não queria deixar de fazer isso. Percorreu a parte inferior do pênis com o polegar. — Mas eu continuo faminta. — Pois está me matando — gemeu Harry, abrindo e fechando a mão que segurava o cabelo
dela — Matando. Nunca se sentiu tão atrevida, nem tão segura de si mesma como naquele instante. — De verdade quer estar dentro de mim? — Deus, sim. Vamos, por favor, vamos.
Ela não deu atenção, mas sim continuou acariciando-o, aumentando assim sua própria excitação. — Emma, Por Deus santo...
Quando se quer algo — murmurou ela, deleitando-se com seu poder — é de boa educação dizer, por favor. — Por favor — respondeu imediatamente — Maldição, por favor.
Ela riu. Colocou-se escarranchada em cima dele, e deslizou o pênis para seu interior, saboreando por fim a dureza e o calor que desprendia aquela ereção. Com a cabeça para trás, começou a mover-se. Seu cabelo estava solto e a cabeleira balançou ao redor dele. Movia-se devagar, com movimentos lentos, torturando-o. Mas ela não era a única capaz de recorrer a essas táticas. Sentiu que a mão de Harry deslizava até seu umbigo e a tocava no lugar mais doce de todo seu corpo. Emma gemeu de prazer. — Você gosta? — perguntou acariciando o clitóris dela com o polegar uma e outra vez —
Você gosta? — Sim — suspirou tremendo — Sim.
E com cada uma dessas carícias, seu prazer foi aumentando e começou a mover-se mais rápido. — Nunca tive um jantar tão curto — balbuciou ele, levantando os quadris para ajustar o
ritmo ao dela e sem deixar de acariciá-la com o polegar. Incapaz de falar, desesperada, só pode assentir. Moveu os quadris ainda com mais rapidez e Harry fez o mesmo até que ambos alcançaram o 195
clímax. Ela desmoronou antes, gritando o nome dele de uma vez que a envolvia um prazer que ia além das palavras. Harry a seguiu e com uma última e decidida investida, alcançou o clímax. Emma desabou sobre o corpo de Harry com um gemido de pura satisfação. Sentiu que ele beijava seu cabelo e sorriu. Ele sempre fazia isso ao terminar. Permaneceram ali tombados durante vários minutos, com ele ainda dentro dela, que estava com o rosto apoiado em seu ombro. Gostava daqueles momentos quase tanto como de fazer amor. Às vezes inclusive mais, pela doçura que continham, e por aquele algo indescritível e precioso que levavam intrínseco. Algo fugaz. Tremeu de repente, como se a brisa outonal tivesse penetrado no quarto. Harry a rodeou com os braços. — Tem frio? — perguntou esfregando as costas dela com as mãos e afastando o cabelo. — Não — sentou-se. Ainda estava escarranchada em seu peito, então acariciou o rosto dele
e ele sorriu. — Você estava com razão.
Beijou a palma. — De que seria um jantar rápido? — Nisso também, mas me referia a outra coisa.
Inclinou-se para frente, e os seus cabelos cobriram os dois. Beijou-o, deleitando-se com o sabor dos pêssegos com mel que ainda permanecia nos lábios dele. — Sou uma hedonista.
196
O santo matrimônio...É um honorável vínculo, criado Por Deus...Destinado a ser bento por filhos...Um remédio contra o pecado, para evitar a fornicação...Para o bem da Sociedade, e para que cada um de seus membros cuide do bem estar um do outro... Celebração do matrimônio Livro das preces, 1689
Os calorosos dias de agosto deram lugar aos de setembro muito mais frios. Emma e Harry estabeleceram uma espécie de rotina. Cada quarta-feira a noite eles se reuniam para comentar os artigos e as sextas-feiras na parte da tarde viajavam de Londres para Cricket Somersby retornando dali as segundas-feiras pela manhã. O frenesi e a euforia do primeiro mês se converteram em algo muito mais pausado e confortável, algo que, para Emma, era mais profundo e enriquecedor. Durante a semana, quando estava sozinha em seu apartamento, nem o ronronar de seu querido gato podia encher o vazio de não ter Harry dormindo ao seu lado. De fato, seu apartamento já não parecia seu lar. Era um lugar desconhecido. Seu lar era agora a casa de campo. Tentava evitar à Senhora Morris por todos os meios, pois cada vez que a via, tinha a sensação de que a mulher sabia tudo o que estava fazendo. A seu favor, Emma tinha que reconhecer que a mulher nunca perguntava nada, mas era cada vez mais difícil manter aquela relação em segredo. As coisas pioraram, quando uma tarde, em meados de setembro ela foi visitar a loja dos Inkberry. Foi ali com a intenção de procurar algum livro que desse algumas idéias sobre casamentos, pois julgava que teria que reunir-se com Lady Eversleigh em menos de quinze dias e ainda não havia ocorrido nada. O Senhor Inkberry brigou pelo fato dela não tê-los visitado durante tanto tempo, e insistiu para que tomasse chá com eles. — Querida, Josephine ficaria furiosa comigo se permitisse que fosse embora sem vê-la —
disse ele, enquanto colocava o pôster na cristaleira. Assim Emma foi sentar-se no salão dos Inkberry, assim como tinha feito em outras ocasiões, mas desta vez tudo foi diferente. Ela estava diferente. — Espero que esteja contente com sua nova vida, Emma, querida.
Assustou-se ao ouvir essas palavras. Inclinou a cabeça e quando viu a Senhora Inkberry, ruborizou-se. — Nova vida? — Trabalhar para a Senhora Bartleby — Fez uma pausa e olhou diretamente nos olhos dela
197
— É muito melhor que trabalhar para esse divorciado e crápula do Visconde Marlowe.
Emma olhou para a anciã, e recordou que havia apresentado Harry ao Senhor Inkberry. Com certeza este havia dito a sua esposa o nome de seu acompanhante. Devido aos falatórios sobre Lorde Marlowe, mais sua reputação e que a tinha beijado em um lugar público, não estranhava que a Senhora Inkberry a olhasse desse modo. Se soubesse quantos beijos mais ela ganhou dele depois... O rubor ficou mais forte, mas lutou para manter a compostura. — Sim, eu gosto muito de minha nova vida. Deus! Faz muito calor, sendo ainda setembro,
não parece? Sua nova vida era uma mentira. Várias, para ser exata. Não só era uma mulher solteira que estava tendo uma aventura, mas também não era a secretária da Senhora Bartleby, e continuava trabalhando para o V isconde Marlowe. Uma horrível e repentina melancolia se apoderou dela, e ali, sentada no salão do Senhor e da Senhora Inkberry, bebendo chá e esquivando-se de perguntas, Emma percebeu que não tinha a ninguém com quem falar de como estava vivendo. Enganar não era só muito complicado, mas também muito solitário. Como todas as sextas-feiras, Harry a estava esperando na plataforma de Cricket Somersby. Ele estava acostumado a chegar antes, pois sempre apanhava o trem anterior para que ninguém os visse juntos na estação Vitória. Segurou a mala e, justamente quando se dirigiam para a carruagem, uma voz masculina chamou Harry. — Marlowe, que grata surpresa!
Ambos pararam e Emma viu de relance um homem loiro, mais ou menos da idade de Harry, aproximando-se deles para saudá-los. — Espere aqui — disse ele em voz baixa, e deixando a mala no chão aproximou-se do outro homem — Weston alegro-me por vê-lo. Que diabos está fazendo neste povoado? Acaba de descer
do trem? Emma observou pela extremidade do olho, e não passou despercebido que Harry mantinha o tal Weston afastado, sem dúvida para evitar ter que apresentar-lhe. Também viu que o homem em questão a estudava com dissimulação. Deu-lhe as costas e fingiu estar fascinada com a paisagem, tentando não imaginar sobre o que estariam falando. Teve a sensação de que Harry demorava uma eternidade para retornar. — Vamos? — perguntou ele, pegando de novo a mala.
Emma não se virou para verificar se homem continuava olhando para ela, mas sem se alterar, caminhou em direção à carruagem. — Quem era esse homem? — O Barão Weston. Conhecemo-nos em Harrow — Deu a mala ao cocheiro, ajudou Emma a
198
entrar, e a seguir sentou-se ao lado dela. — São bons amigos? — perguntou e quando ele assentiu, abaixou o tom de voz para que o condutor não pudesse ouvi-la — O suficiente para saber que não sou sua irmã ou uma prima? — Sim —Levantou a vista para ter certeza de que o cocheiro já estava na boleia — pode seguir — indicou. — Perguntou quem sou? — Não, Emma — Ao ver o olhar cético da moça, prosseguiu com a explicação — Não me
perguntou nada sobre você. Os homens têm uma espécie de código de honra para estas situações. — Não pergunte o que não queira saber? — Algo do tipo.
Isso por fim à conversa, mas Emma sabia que tipo de mulher o Barão Weston tinha acreditado que ela fosse, e não gostava nada daquilo.
Durante todo o final de semana, não pode evitar pensar no Barão Weston, na Senhora Morris, nos Inkberry e na crua e solitária realidade que envolvia toda aquela aventura amorosa ilícita. E ficou deprimida. — Esta noite está muito calada — disse ele enquanto esfregavam os pratos do jantar —
Ficou preocupada com Weston? — Não — Respondeu, passando um prato limpo. — Emma, ele não a conhece — tranqüilizou Harry enquanto secava — Não sabe como se
chama, nem nada sobre você. Só está aqui porque um de seus cavalos participa do Derby de Kent Field. Não veio para fazer vida social. Certamente não voltaremos a vê-lo. — Com certeza acredita que sou uma bailarina de boate ou uma atriz, ou ainda uma mulher
de má reputação. — Bem, se isso for o que pensa, equivoca-se por completo, não? Minha acompanhante é uma mulher muito inteligente — Harry deixou de um lado o pano de prato e ficou atrás dela para poder rodear a cintura com os braços — Weston não fará nada que possa danificar sua reputação.
Tal como disse, não sabe quem é. E caso soubesse, também disse que os homens são discretos com estes assuntos. Que importância tem o que ele pensa? — Importa-me, Harry. Eu não sou como você, sabe? Não posso ignorar a opinião dos demais
do mesmo modo que você. Deixou de esfregar pratos e levantou a vista, e ao olhar a paisagem que via pela janela não pode evitar pensar no limitado que se tornou o horizonte de sua vida. Imaginou o futuro e doeu quando comprovou que a única coisa que podia chegar a ter com Harry eram aqueles fins de 199
semana clandestinos no campo. Pensou no casal de anciões que sempre passeavam de mãos dadas e soube que jamais teria isso com ele. Eles não envelheceriam juntos. Tampouco teriam filhos. O coração parou de repente, e ela compreendeu que algum dia aquela aventura terminaria e então a única coisa que restaria seriam lembranças. Harry a estreitou com mais força. — Não tem sentido que se preocupe pelo que pense Weston — disse ele, beijando a fronte — e nada podemos fazer para evitar.
Poderia se casar comigo. Logo que pensou isso, tentou apagar essa idéia de sua mente. Sempre soube que Harry não se casaria novamente, nem com ela nem com nenhuma outra mulher. Quando embarcou nessa aventura o fez com toda a certeza e durante os dois meses que estavam juntos, jamais se arrependeu. Era feliz. Muito feliz, repetiu para a si mesma com convicção. Secou as mãos, colocou-as em cima das mãos dele em sua cintura e virou para trás, recostando-se naquele torso tão tranqüilizador. Mais feliz pelo que havia sido em toda sua vida, pensou. E isso era o mais triste de tudo. O humor de Emma não melhorou no dia seguinte. Ela jamais foi muito falante, mas naquele fim de semana ela estava especialmente calada, e Harry sabia que continuava preocupada com o que aconteceu na tarde anterior. Ele não trocaria nem um cabelo dela, nem sequer uma sarda, mas às vezes desejaria que deixasse de se preocupar tanto pelo que pensavam outros.
Levantou os olhos dos contratos que estava lendo e olhou para Emma sentada na cama ao lado dele, e percebeu que embora ela tivesse sua prancheta no colo e uma pluma na mão, não estava escrevendo nada, mas sim tinha o olhar perdido no infinito. Inclinou-se e viu que algumas gotas de tinta manchavam a página em branco. — Vejo que está inspirada. — Humm? O que? — Sua lista de idéias para o casamento de Diana. Não lembra o que ia fazer esta noite?
Escrever suas idéias para o casamento de Diana com Rathbourne? — Sim.
Voltou a olhar.
200
— Ah! — exclamou assentindo, tratando de animá-la — Então os manuscritos em branco
são o que se leva este ano? Ela riu. — Deus santo! Não escrevi nada. — Já percebi. O que está acontecendo, Emma? Continua preocupada com Weston?
Negou com a cabeça. — Não, estava pensando nesse casal. — Que casal? — Você já sabe, esses dois velhinhos que sempre notamos quando vamos passear. — Hoje não os vimos. O que a fez pensar neles? — O casamento de sua irmã. Estava sentada aqui, esperando que me ocorresse alguma idéia
brilhante, e comecei a me perguntar se dentro de uns anos sua irmã e Rathbourne serão como eles e passearão pelo campo de mãos dadas. Comecei então a imaginar como deve ser esse casal, e perguntei para mim mesma se estarão casados. Talvez sejam como nós, e vivam em pecado durante os fins de semana em seu ninho de amor. Possivelmente em sua época protagonizaram o escândalo local. Talvez... — Olhe para mim — a interrompeu ele, com um sorriso, empenhado em fazê-la mudar de humor — Perguntando coisas sobre essas pessoas, imaginando como são. Deveria escrever uma
novela. — Eu, escrever uma novela? — Por que não? É boa escritora. Poderia escrever. — E isso diz o mesmo homem que uma vez me disse que quando escrevo os artigos da Senhora Bartleby é a voz de minha tia Lydia que fala — ela recordou sem piedade. — Quando disse isso, estava sendo vítima de um ataque de frustração masculina muito
aguda. Caso tenha ferido seus sentimentos, sinto muito. Ela deixou de brincar com o papel. — A verdade costuma fazer mal. — Emma... — Já não estou magoada — o tranqüilizou — Você mesmo me disse que eu teria que
aprender a agüentar as críticas. Além disso, tinha razão. Quando escrevo as colunas da Senhora Bartleby tenho a voz de minha tia na cabeça. Na realidade não é nenhum problema, o que escrevo são coisas práticas. Mas não poderia escrever uma obra de ficção. Não tenho uma voz própria. 201
— Sim, tem. O que tem que fazer é encontrá-la, e isso leva tempo. Acredito que teria que
tentar escrever uma novela. Contos curtos seriam ideais para começar. Emma deixou a pluma no tinteiro e deu meia volta para colocar a prancheta no chão ao lado da cama. Continuando, apagou a vela de sua mesinha de cabeceira. — Eu não sei contar histórias, Harry — insistiu, deslizando sob os lençóis. — Tolices — Ele contestou e também deixou de um lado seu trabalho — Conte-me uma.
Ela virou a cabeça olhando para os olhos dele. — O que? Agora mesmo? — Agora mesmo — Apoiou-se no travesseiro — Tente! Tente! Scherezade. Sch erezade. — E se você não gostar de me escutar ao amanhecer? — perguntou sorrindo. — O pior castigo que poderia receber de mim seriam minhas críticas, e nem sequer farei
isso, prometo. Apenas a escutarei. De fato, inclusive vou ajudá-la a começar. Era uma vez... Ela gemeu exasperada. — Que típico. — Bem, é só o primeiro rascunho. Vamos! Não fuja e me conte um conto. — Oh! De acordo — saltou-se e pensou durante um momento — Era uma vez uma menina
que queria um diário. — Bem — animou ele — Muito bom. Continue.
Emma sentou-se na cama. — Estava muito sozinha, e não tinha ninguém que pudesse conversar com ela.. Sua mãe
havia morrido há cinco anos e como era muito tímida, não contava com muitos amigos. Tinha treze anos e todas as meninas nessa idade são muito cruéis. Além disso, estava assustada, pois cada mês sangrava e não sabia por que. Imaginou que estivesse morrendo. Ninguém nunca contou nada sobre aquilo. Harry começou a sentir um doloroso nó no peito. Ela não estava inventando essa história. Apoiou as costas no travesseiro e observou como ela se enroscava feito um novelo, segurando os joelhos contra o peito. — Não havia ninguém a quem pudesse perguntar nada. Não permitiam que escrevesse para
sua tia, pois ela não se dava bem com seu papai. E a criada que diariamente ia à sua casa, era uma rigorosa mulher alemã e ela tinha muito medo desta mulher. — É perfeitamente compreensível que quisesse um diário.
202
— Seu pai não queria dar dinheiro para que o comprasse, porque eram muito pobres e ele
dizia que não podiam permitir-se a essas frivolidades. Mas a menina tinha muita vontade de ter um, então foi ao barbeiro do povoado onde viviam e cortou o cabelo, como um menino. Vendeu sua cabeleira e com o dinheiro comprou o tal diário. Quando chegou a casa, seu papai havia saído para o bar. O peito de Harry começou a arder de raiva. Aquele homem não podia comprar um diário para sua filha, mas podia ir ao bar? Bastardo. — Nessa noite, ela ficou acordada até tarde, escrevendo e escrevendo sem parar. Sobre
meninos e vestidos bonitos, e sobre como seria seu casamento, e todas essas coisas que as meninas sonham. Por ser um homem, não acredito que entenda. — Sim entendo. Tenho três irmãs. — Então talvez sim entenda como sentia essa menina — Emma girou a cabeça e, com a face recostada no joelho, sorriu — Foi maravilhoso. Foi um alívio poder expressar o que pensava e
sentia, e deixar ali escrito tudo o que queria nesta vida. Então seu pai chegou e viu o que ela havia feito. Ela já o vira zangado antes, mas nunca desse modo. Enfim, o cabelo voltaria a crescer, disse ela, assim não passava nada. Mas seu pai...Não viu do mesmo modo. Harry fechou os olhos um instante. Não queria saber como terminaram as coisas. Não queria escutar. Apertou a mandíbula e abriu os olhos de novo. — Continue.
Emma levantou a cabeça, com uma mão no pescoço e o olhar perdido à frente. — O pai da menina usava um anel — disse — um anel em forma de estrela.
Harry sentiu náuseas. — E quando viu o que a menina havia feito o que fez fez seu pai?
Houve um longo silencio. — Disse-lhe que era uma puta por ter cortado o cabelo, deu uma bofetada e queimou o diário. Não falou com ela durante um mês — apertou os joelhos com força — Essa menina jamais
voltou a escrever um diário. A raiva de Harry se intensificou até que ameaçou asfixiá-lo. Doía o peito. Tentou pensar em algo para dizer, mas as palavras se negavam a sair de seus lábios. A ele diziam falar de tolices, mas era incapaz de manter uma conversa como aquela. E, além disso, Deus, o que podia dizer? Mas Emma continuava ali sentada, feito um novelo no meio da cama, como deve ter feito àquela menina pequena com a cara marcada. Tinha o olhar fixo no infinito, recordando o que havia 203
acontecido. Harry sabia que devia dizer algo, e teria que ser algo correto. Respirou fundo e levantou a mão para acariciar o rosto dela. Tocou-a para que o olhasse e não à parede. — Emma, Emma — a repreendeu com suavidade, com toda a ternura de que foi capaz — E
diz que não sabe contar histórias. Ela olhou para ele e seu lábio inferior tremeu. — Não inventei isso, Harry — sussurrou.
Com o polegar, ele acariciou a cicatriz em forma de estrela que ela possuía na maçã do rosto. — Eu sei. — Então, por que diz que conto histórias?
Harry se inclinou e beijou a pequena marca. — Porque se tiver superado todo isso, dentro de você tem o que terá que ter para escrever
historias maravilhosas, Scherezade. Ela começou a chorar. — Emma, não — Harry a rodeou com os braços e a deitou.
Acariciou-lhe o cabelo, beijou-lhe as lágrimas das faces e a estreitou entre os braços até que conciliou o sono. Apagou a vela que ainda estava acesa em sua mesinha de cabeceira, mas não dormiu. Ficou ali convexo no escuro, pensando em duas coisas. Por um lado, alegrava-se de que o pai de Emma estivesse morto. Mas por outro, desejaria que o bastardo ainda estivesse vivo para poder matá-lo com suas próprias mãos.
204
Queridos leitores, desejo de todo coração que os conselhos que compartilhei com vocês durante os últimos seis meses tenham sido de ajuda e lhes tenham propiciado momentos agradáveis, mas chegou o momento de dizer adeus. Senhora BARTLEBY Social Gazette, 1893
Emma estava sentada em sua escrivaninha, olhando outra página em branco, mas desta vez a folha estava na máquina de escrever. Ao cabo de uns poucos dias viajaria a Marlowe Park, e ainda não tinha nenhuma idéia a oferecer para Lady Eversleigh. O que havia ocorrido de mais inspirador foi que dobrassem os guardanapos da mesa nupcial em forma de cisne. Senhor Pardal estava acomodado em seu colo, ronronando entre sonhos. Suspeitava que ele brincasse muito menos quando o abandonava durante os fins de semana, pois quando ela retornava, passava todo o dia atrás dela, como um menino apaixonado. Harry não sabia o que dizia. Os gatos eram muito melhores que os cães. Concentrou a atenção no monte de papéis datilografados que estava ao lado da máquina de escrever. Os artigos para a próxima edição já estavam terminados, mas só porque havia recorrido a velhos temas de números anteriores. Algo que estava acontecendo muito ultimamente. Não estava inspirada. Harry acertou ao dizer que escrevia o que a tia Lydia sussurrava ao ouvido dela, e desde o dia em que disse isto, cada vez mais custava se interessar por descobrir qual confeitaria de Londres vendia o melhor bolo de ameixa, onde poderia comprar veludo a bom preço ou se era ou não faut ” apertar a mão a alguém em um almoço. “comme Il faut Harry havia dito que tratasse de escrever uma novela. Talvez pudesse fazer isso. Uma faísca de excitação a sacudiu. Talvez devesse fazê-lo nesse mesmo dia. Mas antes teria que terminar a lista do casamento da irmã do V isconde. Quando fosse a Marlowe Park, talvez tivesse tivesse alguma nova idéia. Havia prometido a Lady Eversleigh, e as boas garotas sempre cumprem suas promessas. Apesar da liberdade que estava experimentando durante aqueles dois últimos meses, apesar do quanto era maravilhoso se comportar de maneira reprovável, Emma sabia que, no fundo, ela sempre seria uma boa garota. Ao que parecia, voltava a estar no ponto de partida. Pegou o Senhor Pardal e o deixou com cuidado na cadeira mais próxima. Aproximou-se da janela e saiu à escada escada de incêndios, recordando quando subiu por ali para passar aquela primeira e maravilhosa noite com Harry. Depois disso, houve muitos dias e muitas noites igualmente maravilhosos. 205
Segurou o corrimão de metal e olhou para o beco situado a quatro pisos mais abaixo. De repente, ficou melancólica, algo que estava acontecendo muito nos últimos tempos. Desde aquela tarde na plataforma de Cricket Somersby, quando Harry não pode apresentá-la ao seu amigo. Alguém bateu em sua porta, e Emma deu um passo para trás e retornou ao apartamento. Foi abrir e ao fazê-lo viu um menino com um pacote envolto em papel marrom. — Sim. — Uma entrega para você, Senhorita.
Ela aceitou a caixa, deu uma moeda ao menino de gorjeta e fechou a porta. O coração batia acelerado ao ver o que estava escrito no pacote. Seu nome e endereço com a caligrafia de Harry. Rasgou o papel, perguntando-se que diabo poderia ser. Além da coleção de Burton das mil e uma noites, Harry nunca mais deu nada a ela. Tampouco esperava que o fizesse. Ela não era esse tipo de pessoa, e, além disso, havia deixado bem claro que não era uma de suas bailarinas de Music Hall. Livros e flores, disse-lhe uma vez, eram os únicos presentes aceitáveis que um homem podia dar a uma dama que não fosse sua esposa. Jóias, perfumes e delicados sapatos de seda não. Então, quando Emma abriu o pacote e viu a pele azulada da capa de um livro, não ficou surpresa. Mas quando o pegou e compreendeu o que era, seu coração se quebrou em mil pedaços. Era um diário. Emma esperou até depois das seis e meia para ir a Marlowe Publishing e efetuar sua habitual reunião das quartas-feiras com Harry. Quando chegou, Quinn já tinha saído, e isso a tranqüilizou. Ela e Harry teriam intimidade, e necessitava disso para o que ia fazer. Ele deve ter ouvido quando ela fechou a porta de entrada, porque já estava esperando por ela na frente de seu escritório antes que ela tivesse alcançado a mesa do secretário. — Chegou tarde. Estava preocupado.
Ela olhou para ele e o estômago se encolheu de dor. Estava devastadoramente bonito, como sempre, mas foi seu olhar de preocupação o que a emocionou e quase conseguiu fazê-la mudar de opinião. Quase. Ele sentia carinho por ela, isso sabia. Mas ela o amava e essa diferença era tudo. Na realidade, Emma sempre soube que as coisas terminariam assim. Era inevitável, supôs, que uma tímida solteira de trinta anos se apaixonasse por seu atraente chefe, que uma mulher que nunca havia sido beijada, se apaixonasse por um homem cujos beijos conquistaram seu coração e iluminado sua alma. Era tão previsível que quase parecia um clichê, e foi tudo tão precioso que só de pensar no que ambos tinham vivido dava-lhe vontade de começar a rir e a chorar ao mesmo tempo. Mas também a fazia querer mais. E não havia nada mais. Ela sempre soube disso, também. Segurou com força a alça da maleta em sua mão e passou junto dele para entrar no 206
escritório. — Trouxe os artigos da Senhora Bartleby para a edição desta semana.
Ele a seguiu, mas em vez de colocar-se do seu lado da escrivaninha, deteve-se ao lado dela. — O que está acontecendo?
Emma deixou a maleta em cima da mesa e tirou os papéis que continha. — Não tenho os artigos propostos para sábado que vem — disse ela, deixando-os ali — Não
tive tempo. Uma mentira, e havia jurado que nunca mentiria para ele. Harry apoiou as mãos nos ombros dela fazendo com que desse a volta e olhasse para ele, mas não pode fazer isso. Ainda não. — Emma, você recebeu meu presente? — Sim, Harry. Recebi. Obrigado — Tratou de sorrir sem olhar nos olhos dele — Sempre diz
que não sabe comprar presentes, mas não é verdade. Escolhe presentes maravilhosos. Não permita nunca que Quinn faça isso por você. — Não permitirei, mas... — Nervoso, apertou os ombros dela com os dedos — O que esta
acontecendo com você? Está começando a me preocupar. Não quer me contar por que está assim? Ela apontou os manuscritos que havia deixado na mesa. — Esses são os últimos artigos que a Senhora Bartleby vai escrever. — O que? Mas por que? — Vou escrever uma novela. — Excelente! Já disse que deveria fazer isso. Mas por que não quer seguir com os artigos da
Senhora Bartleby? Você acredita que não vai ter tempo para escrever as duas coisas? Ela sacudiu a cabeça e com cuidado, retrocedeu uns passos. — Não, não é isso. Tinha razão ao dizer que a Senhora Bartleby não sou eu. É a tia Lydia e eu
não sou a mesma mulher de seis meses atrás, essa que acreditava que tudo o que a tia dizia era verdade, e queria compartilhar com o resto do mundo. Agora sou diferente. E devo isso a você. Ele sorriu. — Então agora compreende que as jovens damas deveriam poder comer codorna e beber
duas taças de vinho durante o jantar? — Sim, acredito nisso. Sei que a Senhora Bartleby é muito popular e que se desaparecer terá
que fazer mudanças, mas espero que o Gazette não saia prejudicado. 207
— Isso não me importa. Bem, já sabe que eu não gosto de perder dinheiro, mas quero que
você faça somente o que a faça feliz. Fico alegre ao saber que se animou a escrever uma novela, de verdade. Prometo que não a destroçarei quando a editar. Emma inspirou fundo. — Não vou escrever para você, Harry.
Ele ficou olhando para ela, franzindo o cenho sem compreender nada. Ia dizer algo, mas ela se adiantou. — Não posso continuar escrevendo para você porque me dói muito. Eu amo você, Harry — Ao ver como ele estava atônito, esboçou um sorriso — De verdade, parece tão incrível que eu tenha me apaixonado por você? — perguntou com ternura — Eu acredito que era uma coisa inevitável. Inclusive no princípio, quando resolvi trabalhar para você a primeira vez, pensei... — Fez uma pausa e levou a mão às costelas — Senti que isso aconteceria. Uma vez me disse que enquanto era sua
secretária, havia uma espécie de muro entre nós dois, e estava com a razão. Eu havia colocado ali um muro de educação, desaprovação, e de distância, porque sabia que se esse muro desaparecesse, me apaixonaria por você e acabaria partindo meu coração. Cada vez que uma mulher entrava ou saía de sua vida, cada vez que lia seus artigos condenando o matrimônio, recordava para mim mesma todos os motivos, pelos que nenhuma mulher sensata deveria apaixonar-se por você. — Emma, sempre disse que você não é como nenhuma dessas mulheres... — Por favor, Harry, não me interrompa. Já é bastante difícil dizer a verdade tal qual é, e
tenho que dizer isso porque é o que você me ensinou. A dizer o que penso, a saber o que realmente quero e a entender o que sinto. E esse é o melhor presente que alguém já me deu. Eu disse isso anteriormente, você dá presentes muito melhores do que acredita. Podia ouvir quando sua voz começava a enfraquecer, e soube que teria que terminar logo, antes que começasse a chorar diante dele. — E por isso tenho que por fim ao que q ue há entre nós dois. — Por fim? — Deu um passo para ela — De que diabo está falando? falando? — Tenho que por um ponto final em nossa aventura, Harry. Não posso viver assim, mentindo
aos meus amigos e vendo como os seus me olham com desprezo. — Weston não a olhou com desprezo, Emma. — Mas outros o farão, tenho certeza. Você sabe tão bem como eu. E também tem sua
família. Não posso ir a sua casa, ajudar sua irmã a organizar seu casamento, me sentar à mesa com sua mãe e avó e saber que sou sua amante e que vivemos em pecado durante os fins de semana. — O que há entre nós não é pecado! E não me importa uma droga o que o resto do mundo
pense. 208
— Mas importa para mim — disse com voz baixa, e quando ele fez uma careta de dor, sentiu que rasgava a alma — E essa é precisamente a diferença entre você e eu. Nossa aventura foi
preciosa, maravilhosa e sempre a recordarei com carinho. Não me arrependo, nem me envergonho de tê-la vivido, mas tenho que deixá-lo agora, enquanto ainda é algo bonito, antes que comece a exigir que passe mais tempo comigo, antes que exija que se case comigo. Por isso você deixou todas essas mulheres, porque começavam a exigir coisas. E eu não quero ser como uma delas. Emma não podia decifrar a expressão do rosto dele porque começava a vê-lo impreciso. Tinha que sair dali. Já. Deu meia volta. — Emma! Espere! — Harry rodeou a cintura dela com as mãos e a apertou contra ele — Não faça isso — disse — Não faça isto conosco.
Ela fechou os olhos, tentando controlar a dor. — Não existe um “ nós nós” — Respondeu ela, com o que começava a parecer um soluço — E
nunca haverá. Nós nunca nos casamos. Lutou para manter a compostura, sabendo que tinha que agüentar o tempo suficiente, para sair de seus braços, de seu escritório, de sua vida. Tentou se soltar novamente, mas ele não permitiu, e o pânico se apoderou dela. — Harry! Deixe-me sair! — exclamou, movendo-se desesperada — Por Deus, deixe-me sair!
Essas palavras o deixaram destroçado. Com uma maldição, soltou-a e Emma correu para a porta sem olhar para trás. Ele não a seguiu, e enquanto ela descia a escada correndo, ficou envergonhada por pensar que havia esperado que ele a tivesse seguido, que uma pequena parte dela sonhava que quando pusesse ponto final nessa história, Harry não aceitasse e que, como por magia, percebesse que o casamento era algo maravilhoso. Tinha pensado que talvez ficasse de joelhos e dissesse que a amava. Deus deveria escrever um livro, estava claro que possuía suficiente imaginação para fazê-lo. Tratando de reprimir os soluços com uma das mãos diante da boca, com a outra abriu a porta da carruagem que estava esperando por ela na esquina. Até que não se afastou da vista dos escritórios de Harry não se abateu. Chorou, e não porque tivesse posto posto fim a coisa mais maravilhosa que havia acontecido com ela em toda sua vida, chorou porque ele havia deixado que ela fizesse isso.
Harry! Deixe-me sair. As palavras de Emma ressoavam em sua mente sem cessar. Quando ela as disse, foi como receber um soco no estômago. 209
Ou uma punhalada no coração. Agora eram como uma chicotada, como um látego que se abatesse sobre sua pele ao ritmo dos movimentos do trem que o levava até Kent. Primeiro foi ao apartamento dela com a esperança de encontrá-la ali, mas ela não estava em casa, e sua maldita caseira havia insistido em que saiu e levara o gato. Mandou um telegrama a Diana, embora soubesse que tampouco tinha ido a Marlowe Park, e sua irmã confirmou em seguida. Emma não estava em Berkshire. Em uma tentativa desesperada, decidiu ir para a casinha de campo. Quando chegou comprovou que tampouco ela estava naquele lugar, que sem ela era só uma casca vazia. Pensando que talvez chegasse no próximo trem, ficou para passar a noite e cada rangido da cama e a cada balanço da rede, as palavras de Emma ressonavam em sua cabeça, impedindo que dormisse em nenhum dos dois lugares. Ambos estavam estavam vazios sem ela. Eu amo você. Ficou você. Ficou contemplando o lago onde a ensinou a nadar e recordou seu luminoso rosto sob a luz da lua. Sentou-se na margem e imaginou Emma ali em pé, com a saia arregaçada, deixando descobertas suas longas e preciosas pernas. Viu Emma nua no chão da cozinha, comendo pêssegos e em pé junto dele enquanto se barbeava, e quando escovava os dentes. — Eu também a amo — sussurrou para o espelho, para o fantasma dela nele refletido,
furioso consigo mesmo por não ter dito isso antes. antes. Por não ter dito a Emma. Nem sequer havia dito a si mesmo. Porque não soube até que ela se foi. Desconsolado, passeou pelo prado, desejando ter dado a mão enquanto caminhavam juntos. Deveria ter feito isso. Quero minha primavera. Harry se deteve e olhou ao redor. Essa estação já havia passado e também o verão. Estavam em outono, e as folhas começavam a mudar de cor. Pensou nas tardes que ansiava para que passassem juntos, torrando pão na lareira. Isso não mais aconteceria. Tudo aquilo era uma estupidez. Ela não iria a Kent. Por que deveria ir? Começou a dar a volta para retornar a sua casa, quando algo o deteve. No meio do caminho, e se aproximando lentamente, estava o casal de anciões, que tanto haviam fascinado a Emma. Harry ficou onde estava, observando os dois, de mãos dadas como sempre. Moveu a cabeça para saudá-los, como fazia cada vez que se cruzavam. Harry olhou quando passavam. passavam. — Desculpem — Disse, assim que tinham ultrapassado.
Ambos pararam e se voltaram para olhá-lo. Ele riu incômodo e apontou para as mãos que ainda estavam entrelaçadas. 210
— Desculpem minha impertinência, mas vocês são casados?
O casal riu e olharam um ao outro, mas foi a mulher quem respondeu. — É claro — disse — E você também, Senhor... Williams — Olhou-o com olhos cheios de sabedoria e sorriu com carinho — Só que ainda não notou.
Ele observou atônito, enquanto retornavam segundo seu caminho e justamente antes que desaparecessem desaparecessem de sua vista, ouviu quando o marido dizia: — Sempre os vemos tão felizes juntos...Espero que ele não tarde em fazer dela uma mulher
honesta. Harry ficou ali de pé, sentindo como se a terra se mexesse sob seus pés e o mundo todo começasse a encaixar por fim e a colocar cada coisa em seu lugar. Começou a andar, mas de repente começou a correr. Só tinha vinte minutos para pegar o trem para Londres.
Era domingo, e estava na hora de tomar chá na Rua Little Russell. Emma estava sentada no salão, com a Senhora Morris, a Senhora Inkberry e suas amigas solteiras, falando de temas diversos. Todos apropriados. O tempo continuava instável. A saúde da queridíssima Rainha, que havia deixado todo mundo preocupado. A moda, frívola como sempre. Trocaram várias intrigas, comentários sobre seus trabalhos e comeram uma considerável quantidade de sanduíches, bem, todas exceto Emma, que não gostava de mexericar, não tinha trabalho e para seu consolo, comeu quase um quilo de bombons na noite anterior. Falaram das iminentes bodas de sua querida Beatrice. A jovem resplandecia de felicidade, e Emma tentou não se apiedar de si mesma. Outro assunto de conversa foi, é claro a carta de despedida da Senhora Bartleby. Todas queriam que Emma contasse os detalhes, mas quando ela se negou, mudaram de assunto. Quando deixou Harry, sabia que fez o correto, mas isso não a consolava. Passar a semana sem ele foi insuportável, mas nesse dia estava sendo mil vezes pior. Era domingo e não estava deitada com Harry na rede dormindo a sesta, e sim, sentada no salão da Senhora Morris, tomando chá. Olhou em volta do sofá onde agora estavam Prudence e Maria e recordou todas as coisas picantes que Harry havia sussurrado ao seu ouvido naquela tarde, dois meses atrás, e em seguida recordou todas as ocasiões em que os dois haviam praticado aquelas mesmas coisas picantes. Abaixou o olhar para a xícara que estava em seu colo. Ela já não era a Senhora Bartleby. Tampouco era Scherezade, nem a amante de ninguém. Agora era simplesmente Emma Dove, de trinta anos, quase chegando aos trinta e um, e destinada ao celibato eterno. Tentava se animar. Começara a escrever sua novela, de fato, já estava na sétima página. Mas temia que fosse sair uma novela romântica, e isso fazia com que ficasse deprimida ainda mais. Se não fosse uma mulher com 211
força de vontade, pensou com certo pessimismo, com certeza começaria a beber, como faziam muitos escritores. Olhou a xícara com asco. Naquele momento o conhaque parecia muito mais tentador que o chá. Ouviu quando alguém abriu a porta principal, e sentiu o frio vento outonal em suas costas, mas continuou com o olhar perdido na xícara, sem mostrar interesse em saber quem havia chegado. E então notou. Algo indescritível mudou na sala. Uma agitação feminina saturou o ar. E de repente, reinou o silêncio, excetuando o roçar das saias e algum leve mas audível suspiro. Então viu como em frente a ela, Prudence Bosworth e Maria Martingale arrumavam o cabelo ao mesmo tempo. Emma virou a cabeça e olhou por cima de seu ombro. Embora parecesse incrível, Harry estava de pé na porta do salão da Senhora Morris. Só de vê-lo, o coração deu um salto de alegria, mas imediatamente experimentou uma profunda pena. Separou a vista, sentindo a irreprimível necessidade de sair correndo da sala. E o faria caso impressionante corpo, não bloqueasse a porta de saída. — Boa tarde, Senhoritas — saudou atrás dela, causando outra onda de suspiros — Senhora
Morris, é um prazer voltar a vê-la. Chá? É muito amável de sua parte. Sim, eu adoraria tomar uma xícara. Por que? Por que ele apareceu ali? Perguntou-se desesperada enquanto ao seu redor faziamse as apresentações. — Senhorita Bosworth, Senhorita Martingale, Senhorita Penetre. É um prazer conhecê-las.
Senhora Inkberry, como está? A livraria de seu marido é a melhor de Londres. Emma fechou os olhos. Ele tentaria convencê-la para que voltasse com ele. O terror atou-lhe o estômago. Estava com medo caso ele conseguisse falar a sós e falasse coisas como, por exemplo, que queria tirar suas meias. Ela estaria perdida para sempre. Pensou em como eram frágeis suas convicções. Uma carícia, um beijo e todo orgulho e respeito por si mesma correriam a passeio. Voltaria a ser a amante dele, e seria feliz assim e então voltaria a se deleitar com todos aqueles prazeres terrestres com ele. Em segredo. Até que esta aventura terminasse e recebesse um colar e uma carta de despedida. Emma viu que seus dedos estavam salpicados de chá, e notou de que suas mãos tremiam. Segurou a xícara com tanta força e ficou surpresa de que não se quebrasse. As pernas de Harry apareceram diante sua linha de visão. — Está cansada de chá, Senhorita Dove — disse com tanta ternura que ela não pode
suportar. Com uma mão, ele segurou a xícara, enquanto com a outra segurou o prato e Emma se obrigou a soltá-las, logo desapareceram de sua vista. — Senhoritas, como simples homem que sou, tenho que confessar que não estou a par de
todas as normas de etiqueta.
212
Deixou a xícara e o prato a um lado e voltou a ficar ao lado de Emma, mas desta vez com um lenço. Ele agachou segurando as mãos dela e deixando-a atônita. Quando começou a secá-las com o tecido de linho, todas as demais mulheres suspiraram de uma só vez. — Devido a minha ignorância, é uma sorte que tantas damas estejam presentes —
prosseguiu ele como se estivesse falando do tempo, como se acariciar as mãos dela em público, fosse a coisa mais normal do mundo. — Milorde — Sussurrou Emma e, desesperada, percorreu o salão com o olhar sentindo-se desfalecer ao ver as caras de assombro das presentes — Harry, basta!
A voz dele ocultou o frenético sussurro dela. — Senhoras, eu agradeceria muitíssimo que resolvessem uma dúvida que tenho — Apertou os dedos com força ao notar que tentava se soltar — Quando um cavalheiro quer pedir a uma
dama que aceite se converter em sua esposa, deve ficar de joelhos? Sem esperar que respondessem, ajoelhou-se diante de Emma, que fixou o olhar naqueles preciosos olhos azuis como o oceano, temerosa de não ter entendido bem. Não viu no rosto dele a menor mentira, nem tampouco seu devastador sorriso. Ele estava sério e insuportavelmente atraente. — Aconselhe-me Emma — Levantou a mão e a beijou — Como um homem se declara à
mulher que ama? Houve mais suspiros e algo a meio caminho entre um soluço e um sopro muito pouco feminino. Emma ficou com receio de que o segundo havia saído de seus lábios. De repente, todas ficaram em pé de uma só vez, como se fossem bonecas movidas por cordas invisíveis. Entre sussurros e sorrisos se encaminharam para a saída e saíram do salão. Harry levantou a cabeça, esperando que partissem e fechassem a porta e então a olhou nos olhos. — Desta vez quero fazer tudo perfeito, e começar com o pé direito, por dizer de algum jeito,
assim tenho que me declarar como é devido. Emma seguia estupefata, incapaz de raciocinar. — Mas você não quer se casar novamente. Você me disse isso. Disse a todo mundo.
Inclusive escreveu milhares de artigos sobre isso. — Pois agora terei que engolir minhas próprias palavras, não é? É um bom castigo por ter sido tão cínico durante todos estes anos — Inclinou a cabeça — Diga-me uma coisa, é normal que a
mulher em questão fique tão indecisa? Não é certo que tem que por fim a incerteza e dizer sim, para que assim o pobre tolo saiba por fim que não foi um completo idiota? — Não — conseguiu pronunciar emocionada — Ele merece sofrer até que ela esteja
convencida de que seus sentimentos são profundos e sinceros. 213
— E um anel ajudaria? — Começou a procurar nos bolsos. — Trouxe-me um anel de compromisso? — Não teria que trazer? Espero que o condenado de certo — acrescentou sem deixar de procurar — A Senhora Morris me disse sua medida, mas... — A Senhora Morris estava a par disto? — Emma olhou atônita para ele — Sabia que se
declararia? Ele deixou de procurar e a olhou com ternura, entendendo que ela ainda não acreditava que tudo aquilo era real. — E que de outro modo poderia saber a medida do anel? Não imagina como foi difícil entrar
em sua casa e apanhar um para medi-lo. Disse-me que estava escondida dentro de casa deprimida. — Não estava deprimida! Estava escrevendo minha novela. — Desculpe-me. Isso é o que se consegue escutando intrigas — Retomou a busca do anel —
O que posso dizer é que me alegro de que ontem saiu para comprar chocolate. Embora com certeza fosse para o Senhor Pardal, já que você não esta deprimida. Ah! Com essa exclamação de triunfo, mostrou-lhe um anel de platina com esmeraldas. — Espero que você goste. A Senhora Morris até ontem não pode me telefonar para me dar a
medida, mas me disse que as esmeraldas eram suas pedras favoritas. E então percorri toda a Bond Street em busca de um anel de compromisso com esmeraldas — Segurou a mão dela e deslizou a jóia no dedo — Foi uma tortura, Emma. Não entendo como você gosta tanto de ir às compras — Inclinou-se para ela para olhar melhor a mão com o anel — Gostou? Encaixava-se com perfeição, mas embora abrisse a boca para dizer isso, não pode falar. Voltou a fechá-la. Não podia deixar de olhar a preciosa jóia que brilhava em seu dedo, e logo as lágrimas começaram a deformá-lo diante de seus olhos. Harry queria casar-se com ela? Continuava sem poder assimilar, sem poder acreditar. Ele suspirou. — Suponho que se a dama em questão ainda não está convencida, o cavalheiro tem que
fazer algum gesto heróico, não? Ela engoliu saliva e levantou a vista, obrigando-se a dizer algo. — Está tudo bem — conseguiu articular — porque nunca me cortejaram como é devido. — Esta sendo muito cruel Emma — Franziu o cenho, pensou durante alguns segundos, e
depois as rugas desapareceram de sua fronte. — De acordo. Para demonstrar o quanto eu a amo, farei o maior dos sacrifícios e vou
permitir que o Senhor Pardal viva conosco. Pode perseguir os pássaros de Marlowe Park até se 214
fartar. Mas não dormirá em nossa cama. Não quero me levantar com pelo de gato na boca. Ela não riu. — Harry, por uma vez na vida, fale a sério. — Sei que disse muitas tolices. Tinha razão ao dizer que sou um homem muito simples. Mas verá... — Fez uma pausa e segurou as mãos dela. Inspirou fundo — Amo você. Devia ter dito isso
antes, mas me custa tanto dizer as coisas importantes, e me apaixonar por você foi tão pausado e natural que não percebi. Quero dizer que não foi de repente. Eu deveria ter dito quando me informou que queria por um ponto final em nosso relacionamento, mas então fiquei gelado. Não pude acreditar que estivesse me deixando, quando eu acreditava que tudo estava perfeito. Fez-me mal, Emma. Fez-me tanto dano que não pude dizer nada e de repente, já havia saído. — Mas de verdade quer se casar comigo? Está seguro? — Emma — Harry segurou o rosto dela e soltou suas mãos. Beijou-a nos lábios — Minha
querida e doce Emma, realmente pensou que poderia suportar que saísse de minha vida? — Oh! Harry! — Completamente convencida, rodeou o pescoço dele com os braços — Eu o
amo tanto! — Eu também a amo — ficou em pé levantando-a com ele, e pegando-a depois pela cintura — Então, apesar de que sou um inapresentável e um desconsiderado e que provavelmente chegue
tarde ao nosso próprio casamento, quer se casar comigo? — Sim — A alegria desdobrou-se por todo seu ser e ela começou a rir — Sim. Eu me casarei
com você. — Tampouco é que precisamos — afastou-se olhando bem nos olhos dela e roçando seu rosto com os nódulos dos dedos — Você e eu já estamos casados. A única coisa que nos falta é
pronunciar os votos em uma igreja e que nossos amigos saibam. — Já estamos casados? O que quer dizer? — Olhou-o intrigada — Já está zombando comigo
outra vez? Ele riu. — Vou explicar isso mais tarde. Agora, tenho algo muito mais importante que fazer.
Levantou o rosto e inclinou a cabeça. E então ele a beijou. Emma apertou mais os braços ao redor de seu pescoço e devolveu o beijo com paixão e entusiasmo. Afinal, era perfeitamente apropriado que um homem beijasse uma mulher se estavam comprometidos. Todo mundo sabia isso.
215