GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.
GEOgraphia Niterói, Universidade Federal Fluminense ISSN 15177793 (eletrônico) Vol.19, No40, 2017: mai./ago.
EDITORIAL
A revista GEOgraphia celebra, nesta edição, o seu quadragésimo número, reiterando seu compromisso com a pluralidade de perspectivas e temáticas que marcam a produção acadêmica na área da Geograa, no Brasil e no
exterior. A primeira parte da presente edição consiste em um Dossiê em homenagem a uma das geógrafas mais reconhecidas, Doreen Massey, falecida há pouco mais de um ano. A composição do dossiê é comentada em uma apresentação à parte, que introduz os três artigos sobre a autora e os dois artigos de sua autoria traduzidos. À parte o dossiê, a revista também publica seu número regular, composto de artigos submetidos, da seção Nossos Clássicos, da seção Livros e Autores e da seção de resenhas. A seção de Artigos é aberta com a publicação de Carla Lois (CONICET - Universidad de Buenos Aires), cujo
artigo (“¿Cuándo la Geografía perdió su “graphia”? Un ensayo histórico y crítico sobre las habilidades grácas promovidas en la geografía escolar ) discorre sobre as
A autora observa ainda os impactos desta expansão das nanças sobre o cotidiano da população e as contra-
racionalidades emergentes. Maria Rosângela Gomes e Encarnita Salas Martin (UNESP) oferecem, no artigo seguinte, um estudo cujo objetivo é identicar os fatores de risco que atuam sobre
as praças públicas de Natal/RN. Em levantamento que abrangeu 168 praças públicas da cidade, as autoras identicaram a presença de inúmeros fatores de risco
para os usuários, como acidentes físicos, poluição do ar, do solo e visual, alagamentos, atos de violência, entre outros, dicultando, portanto, o uso efetivo desses
espaços pela população. O artigo de autoria de Guilherme José Ferreira Araújo e Edvânia Torres Aguiar Gomes Correio (UFPE), intitulado A contribuição da ecologia política e do sustainable livelehoods approach nos estudos ambientais no meio rural do Brasil: um olhar sobre os reassentados de Petrolândia, aborda as desigualdades de acesso aos
mudanças históricas no uso de habilidades grácas para o processo de aprendizado na disciplina geográca.
recursos naturais, analisando o caso dos pequenos
Cássio Arruda Boechat (UFES), Fábio Teixeira Pitta e Carlos de Almeida Toledo (USP) voltam-se, no segundo
Sales e Icó-Mandantes, oriundos de transferê transferência ncia forçada por construção de hidrelétrica hidrelétrica.. Em Monitoramento do uso e cobertura das terras do
artigo desta edição, para o fenômeno do land grabbing, discutindo-o à luz da crítica marxista da expropriação. Em diálogo crítico com a obra de David Harvey, os autores questionam a ecácia dos mecanismos de expropriação
para conter a crise atual do capital. No artigo Da nanceirização ao lugar: dos nexos hegemônicos às contra-racionalidades do cotidiano , o terceiro desta edição, Marina Regitz Montenegro (USP) discorre sobre utiliza o conceito de nanceirização para
lançar luz sobre o fenômeno da creditização do território.
produtores de coco dos Perímetros Irrigaods de Apolônio
Parque Nacional da Serra da Capivara e entorno nos anos de 1987 e 2010, Cláudia Maria Saboia de Aquino (UFPI) e
co-autores realizam mapeamento e análise das tipologias de uso e cobertura das terras do parque referido, ao qual se seguiu estudo da dinâmica das alterações por meio de técnicas de geoprocessamento. O artigo conclui que o parque cumpriu os objetivos de preservação para os
quais foi criado. Em Reservas extrativistas na Amazônia: modelo
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EDITORIAL
A revista GEOgraphia celebra, nesta edição, o seu quadragésimo número, reiterando seu compromisso com a pluralidade de perspectivas e temáticas que marcam a produção acadêmica na área da Geograa, no Brasil e no
exterior. A primeira parte da presente edição consiste em um Dossiê em homenagem a uma das geógrafas mais reconhecidas, Doreen Massey, falecida há pouco mais de um ano. A composição do dossiê é comentada em uma apresentação à parte, que introduz os três artigos sobre a autora e os dois artigos de sua autoria traduzidos. À parte o dossiê, a revista também publica seu número regular, composto de artigos submetidos, da seção Nossos Clássicos, da seção Livros e Autores e da seção de resenhas. A seção de Artigos é aberta com a publicação de Carla Lois (CONICET - Universidad de Buenos Aires), cujo
artigo (“¿Cuándo la Geografía perdió su “graphia”? Un ensayo histórico y crítico sobre las habilidades grácas promovidas en la geografía escolar ) discorre sobre as
A autora observa ainda os impactos desta expansão das nanças sobre o cotidiano da população e as contra-
racionalidades emergentes. Maria Rosângela Gomes e Encarnita Salas Martin (UNESP) oferecem, no artigo seguinte, um estudo cujo objetivo é identicar os fatores de risco que atuam sobre
as praças públicas de Natal/RN. Em levantamento que abrangeu 168 praças públicas da cidade, as autoras identicaram a presença de inúmeros fatores de risco
para os usuários, como acidentes físicos, poluição do ar, do solo e visual, alagamentos, atos de violência, entre outros, dicultando, portanto, o uso efetivo desses
espaços pela população. O artigo de autoria de Guilherme José Ferreira Araújo e Edvânia Torres Aguiar Gomes Correio (UFPE), intitulado A contribuição da ecologia política e do sustainable livelehoods approach nos estudos ambientais no meio rural do Brasil: um olhar sobre os reassentados de Petrolândia, aborda as desigualdades de acesso aos
mudanças históricas no uso de habilidades grácas para o processo de aprendizado na disciplina geográca.
recursos naturais, analisando o caso dos pequenos
Cássio Arruda Boechat (UFES), Fábio Teixeira Pitta e Carlos de Almeida Toledo (USP) voltam-se, no segundo
Sales e Icó-Mandantes, oriundos de transferê transferência ncia forçada por construção de hidrelétrica hidrelétrica.. Em Monitoramento do uso e cobertura das terras do
artigo desta edição, para o fenômeno do land grabbing, discutindo-o à luz da crítica marxista da expropriação. Em diálogo crítico com a obra de David Harvey, os autores questionam a ecácia dos mecanismos de expropriação
para conter a crise atual do capital. No artigo Da nanceirização ao lugar: dos nexos hegemônicos às contra-racionalidades do cotidiano , o terceiro desta edição, Marina Regitz Montenegro (USP) discorre sobre utiliza o conceito de nanceirização para
lançar luz sobre o fenômeno da creditização do território.
produtores de coco dos Perímetros Irrigaods de Apolônio
Parque Nacional da Serra da Capivara e entorno nos anos de 1987 e 2010, Cláudia Maria Saboia de Aquino (UFPI) e
co-autores realizam mapeamento e análise das tipologias de uso e cobertura das terras do parque referido, ao qual se seguiu estudo da dinâmica das alterações por meio de técnicas de geoprocessamento. O artigo conclui que o parque cumpriu os objetivos de preservação para os
quais foi criado. Em Reservas extrativistas na Amazônia: modelo
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.
conservação
ambiental
e
desenvolvimento
social? ,
Josimar Silva Freitas (UFPA) e co-autores fazem uma
revisão da produção acadêmica sobre temas relacionados a reservas extrativistas, concluindo que o modelo de gerenciamento do Estado para as reservas é ineciente e por isso diculta a conciliação entre conservação e
desenvolvimento. Antonio José Rocha Luzardo (UFF), Rafael March Castañeda Filho (UFRJ) e Igor Brum Rubim (UFRJ) abordam
a análise exploratória de dados geoespaciais associados a feições de área, com o emprego de uma técnica de análise espacial baseada no Índice de Moran, nas modalidades global e local, com o objetivo de compreender os padrões
de associação espacial (clusters) existentes na distribuição dos dados da região de estudo, bem como identicar valores extremos desse conjunto de dados (outliers).
Na seção Nossos Clássicos, brindamos os leitores com o artigo Subimperialismo, na visão de um geógrafo , de autoria de Milton Santos e originalmente publicado em inglês em 1975 e ainda inédito na língua portuguesa. Complementa o artigo um comentário crítico de Thiago Adriano Machado (UFF), que contextuali contextualiza za esta publicação no âmbito dos debates da época e na obra de Milton Santos. Na seção Livros & Autores, uma seleção de obras de Doreen Massey é indicada por Rogério Haesbaert (UFF). Por m, a revista conclui com uma Resenha do livro O lugar do olhar: elementos para uma geograa da visibilidade
(Paulo César da Costa Gomes), escrita por Leonardo Name
(UNILA). Uma ótima leitura a todos!
Os editores.
Dossiê Doreen Massey
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Dossiê Doreen Massey
POR DOREEN MASSEY: SOBRE ESPAÇO, RESISTÊNCIA E ESPERANÇA
Yo canto a la chillaneja si tengo que decir algo, Y no tomo la guitarra, por conseguir un aplauso, Yo canto a la diferencia que hay de lo cierto a lo falso, De lo contrario no canto. Yo canto la diferencia, de Violeta Parra.
A escrita sobre Doreen Massey (1944-2016) não seria mais oportuna, no atual tempo-espaço. Por isso ao homenageá-la, o convite aos leitores começa com os versos de Violeta Parra. Isso não é acidental. A geógrafa, nascida em Manchester, de saúde frágil, de classe proletária, tinha o sangue latino. Viveu a Nicarágua Sandinista, provou dos sonhos da Venezuela Chavista e seus coletivos, e por diversas vezes experimentou os múltiplos Méxicos. Falava, escrevia em espanhol perfeito, algo raro na comunidade acadêmica inglesa. Aliás, Doreen Massey nunca se doutorou, mas foi em vida reconhecida pelo rigor, criatividade e potência teórica e política. O prestígio viria em prêmios e títulos de emerência em universidades ao redor do mundo. Mulher, global, Doreen incorporou a diferença não como categoria teórica, mas como procedimento de vida. Na verdade, levou a multiplicidade ao extremo, experimentando linguagens diversas, cinema, artes plásticas, materiais didáticos, panetos, foto graa. Doreen não se bastava com a escrita formal, da linguagem científica, de modo que criava palavras para externar o seu pensamento sobre o espaço. Por isso tudo, você, leitor/a, encontrará um Dossiê contaminado com o modo de ser dessa personagem, que inventava palavras para carregar a multiplicidade, as estórias-do-até-então, para a análise geográca. Em tempos de urgência para cantar a diferença, os colaboradores do Dossiê, agora apresentado, buscaram uma prosa coerente com o pensar de Doreen Massey, com interrupções não usuais no texto acadêmico. Em to-
dos os artigos, os colaboradores oferecem suas leituras de Doreen, vividamente. Rogério, o único quem conviveu com Doreen, procurou com o Lugares que fazem diferença: encontros com Doreen Massey textualizar o seu método e sua abordagem espacial, cuidadosamente, articulados aos traços biográcos. Generosamente, Rogério nos retrata Doreen para nos dar a dimensão viva do seu modo de pensar/agir. Joseli, com Márcio e Alides apresentam o enlace entre o feminismo e a geograa, dois pilares fundantes da sua produção teórica, em “‘Não me chame de senhora, eu sou feminista’! Posicionalidade e reexibilidade na produção geográfca de Doreen Mas sey”. Joseli, em especial, registrou o texto como uma dí-
vida à Doreen. Para Joseli, a condição feminista de Doreen anima o seu modo de pensar. Essa é uma marca da escrita de Doreen Massey: a incomensurabilidade do político na análise espacial. De todos os colaboradores deste Dossiê, nunca conversei com Doreen, daí minha necessidade de mergulhar nas entrevistas, escritos, vídeos e imaginá-la. Para mim, o que mais me marcou foi a sua pedagogia. O meu contato com seus textos dedicados à educação a distância tornou mais evidente a faceta inventiva de Doreen, agora, com a nalidade didática. Esta é a minha motivação ao escrever o O que Doreen diria sobre nós? Um ensaio sobre a pedagogia da espe rança.
Para os leitores que quiserem se aprofundar nos estudos de Doreen Massey, ao nal, há as versões para o português de dois artigos: The geographical mind (MASSEY, 2006) e Displacing neoliberalism (MASSEY e RUSTIN, 2015). O primeiro, cuja versão original era uma conferência aos Professores da Educação Básica na Inglaterra, é um texto que pode ser lido como um manifesto de defesa pela geograa escolar. Doreen empodera o ensinar e o aprender a Geograa, ao reetir sobre o que seria uma “mente geográca”. Agradecemos ao Dr. Allan Kinder e à
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago
Geographical Association por permitirem gratuitamente a reprodução deste artigo. Displacing neoliberalism (incomodamente traduzido aqui como “Demovendo o neoliberalismo”) é o último capítulo do livro After neoliberalism? The Kilburn Manifesto, um dos últimos projetos de Doreen escrito em parceria entre Michael Rustin e Stuart Hall. O Manifesto Kilburn (bairro londrino onde ela vivia) nasce da inquietação dos colaboradores da revista política Soundings (fundada em 1995, por ela e Stuart Hall, entre outros acadêmicos e militantes) para desenhar uma agenda alternativa, ao mesmo tempo que apresenta uma análise da conjuntura da crise de 2007-8. Igualmente agradecemos ao Dr. Michael Rustin, coautor, que generosamente permitiu a versão deste capítulo para a língua portuguesa. Este conjunto de textos não ambiciona uma síntese da produção da teórica, nem retrata a multifacetada militante. Mas, como anunciam os versos de Violeta Parra, Doreen Massey, mulher, não procurou aplausos, ao cantar a diferença. O que procuramos aqui, todos nós, foi compartilhar uma experiência Doreen, porque os tempos-espaços nos exigem uma solidariedade, diante dos danos causados por um sistema nefasto, descrente da esperança. Ao acreditar na multiplicidade, no seu (a)pelo espaço, Doreen se ocupou das trajetórias, das geograas das so lidariedades, porque tinha uma crença na mudança mais profunda. Talvez, leitores/as, o principal exercício deste Dossiê seja um testemunho-homenagem à atualidade do legado de Doreen Massey.
Ana Angelita Rocha
Dossiê Doreen Massey
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Dossiê Doreen Massey
LUGARES QUE FAZEM DIFERENÇA: ENCONTROS COM DOREEN MASSEY* Rogério Haesbaert** Univeridade Federal Fluminense
Este texto pretende elaborar um diálogo, ao mesmo tempo intelectual e afetivo, com a geógrafa e amiga Doreen Massey, que nos deixou há pouco mais de um ano. É, assim, igualmente, uma forma de tributo, acadêmico e pessoal, a uma das maiores geógrafas do nosso tempo. Reito a partir de inspirações que ela sugere em distintos momentos de sua rica trajetória intelectual e que, entrecruzando lugares, permitem confrontar e, de algum modo, recompor em outras bases as nossas diferenças. Gostaria de, sempre que possível, mesclar considerações em nível pessoal de minha relação afetiva com Doreen e reexões sobre o papel do espaço na construção da diferença e da multiplicidade, considerando o quanto esse aspecto permeava nossos trabalhos, abrindo perspectivas para diálogos enriquecedores. Em uma era de “tempos virtuais” Doreen ainda preferia a escrita no papel e era uma entusiasta dos contatos face a face. Talvez por isso tenha exclamado de forma tão enfática “você é real!” quando me viu pela primeira vez na plataforma da estação Euston, em Londres, rumo à Open University, em Milton Keynes, depois de vários contatos feitos apenas pela internet. Doreen resistiu como poucos ao poder da efemeridade dos contatos virtuais e instantâneos. Talvez por isso não tenha dado tanta importância, em seu debate sobre o espaço, às relações à distância e ao ciberespaço. Sempre me identiquei muito com sua valorização dos vínculos diretos, de proximidade. Provavelmente sua fragilidade física, com uma enfermidade que debilitava os ossos e que lhe inigia dores constantes, tornou-a ainda mais sensível ao
contato direto, ao “próximo”. Várias fraturas muito sérias ocorreram ao longo de sua vida, em pequenas quedas no metrô ou no trem. Isso, sem dúvida, aguçava sua sensibilidade e sua percepção do espaço. Eu sempre lamentava sua demora na resposta de e-mails, pois ela, que resistia ao uso do computador, dependia de uma secretária (secretárias, aliás, que muito prezava). Por outro lado, nunca reclamei dos seus belos cartões de Natal mesmo que, no Brasil, chegassem sempre atrasados. Doreen ainda caprichava nos recados desenhados a mão e que, assim, densicavam a superfície lisa do espaço branco dos papéis – como se também neles quisesse questionar a visão de um espaço absoluto, liso, em superfície. Numa paródia ao icônico “Ceci n’est pas une pipe”, do pintor Magritte, ela escreveria enfaticamente na legenda de um mapa em seu livro “Pelo Espaço”: “Isto não é o espaço”. Gostaria de destacar, de início, o engajamento de Doreen com todo o leque de perspectivas conceituais que vai das categorias cotidianas, da prática, às categorias analíticas, intelectuais (que incluem também o que podemos denominar de categorias pedagógicas), passando pelo caráter político-normativo – o qual não separava nem mesmo de seus comportamentos mais pessoais. Um dos maiores méritos do trabalho de Doreen é sem dúvida sua habilidade em construir reexões teóricas a partir de fatos simples, cotidianos, como aqueles ligados a seus amigos ou a sua família (como em suas reexões sobre o tempo-espaço a partir da expectativa não atendida de um bolo “tradicional” feito
________________________________ * Este texto é uma versão ampliada da apresentação feita em homenagem a Doreen Massey na mesa “In honour of Doreen Massey”, realizada durante o encontro anual da AAG (Association of American Geographers) em Boston (EUA), abril de 2017, e organizada por Jamie Peck, Victoria Lawson e Erica Schoenberger, a quem agradeço pelo convite. **Doutor em Geograa. Professor do departamento de Geograa da Universidade Federal Fluminense. E-mail:
[email protected]
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.
por sua mãe). Isso tornava sua linguagem muito mais comunicativa, ampliando o alcance de seu pensamento. Nos múltiplos veículos em que difundia suas ideias (incluindo programas de rádio e televisão) e através do diálogo com diversas áreas de conhecimento (da Arte à Economia), a clareza e a aparente simplicidade não comprometiam o rigor e a profundidade de suas proposições. Essas características estão vinculadas ao importante papel pedagógico que também desenvolveu, preparando valioso material didático para os estudantes da Open University, muitos deles pertencentes às classes populares e dos quais muito se orgulhava 1. Sua identicação com o caráter democrático da instituição e a qualidade de seu Departamento de Geograa eram sempre enaltecidos. Doreen era uma apaixonada por tudo que fazia, inclusive – ou talvez mais ainda – como torcedora do Liverpool. Além de, sempre que possível, assistir pessoalmente aos jogos, era capaz de largar tudo (no intervalo de um congresso como o da ANPEGE, em 2005, por exemplo), para acompanhar uma partida de seu time. Doreen era de uma coerência visceral entre o mundo que pensava e o que praticava, entre o mundo da reexão teórica e a esfera da ação política. Às vezes até de forma meio teimosa, como no tempo que levou para voltar a visitar os Estados Unidos onde havia realizado seus estudos de pós-graduação em Regional Science. Só voltou quando recebeu uma grande homenagem da Associação de Geógrafos Americanos. Até da recusa a beber Coca-Cola ela fazia mais uma atitude simbólica de protesto contra o Grande Império. Doreen, em mais uma prova de suas posições alternativas, nunca recebeu formalmente o título de Doutor e se recusava a lecionar em Oxford, que considerava uma instituição elitista – com conhecimento de causa, pois ganhou uma bolsa para fazer sua graduação ali. No nosso último encontro, em julho de 2015, ela armou que o que realmente almejava priorizar, agora aposentada, era o fazer político. Polêmica em alguns posicionamentos políticos, tivemos discussões acaloradas no que se refere a seu apoio irrestrito ao governo Chávez, na Venezuela. Mas, temos de convir, como não defender uma política que passou a usar diretamente uma de suas concepções mais difundidas, a de geometrias de poder do espaçotempo? Ela própria se surpreenderia muito quando, ao chegar pela primeira vez para um debate com intelectuais e políticos venezuelanos, deparou-se com um outdoor que explícitava a busca por uma “nova geometria de poder”. Era extremamente preocupada com a ecácia política de nossos conceitos. Nada lhe poderia ser mais avesso do ¹O expressivo papel da dimensão pedagógica de seu trabalho não foi até agora devidamente analisado. Acredito que uma lacuna importante, nesse sentido, será preenchida com a pesquisa de pós-doutorado de Ana
que um pensamento acadêmico abstrato, sem vinculação direta com a realidade vivida e com o compromisso pela mudança em prol dos grupos subalternos. Seu apoio a diversas políticas do Partido Trabalhista inglês é bem conhecido. Nem por isso deixou de formular densas reexões teóricas, saltando com capacidade ímpar de uma descrição aparentemente banal da vida cotidiana para um conceito mais complexamente elaborado. Inovadora, não deixava de, ao mesmo tempo, adotar e criticar correntes consolidadas, como o marxismo dos anos 1980, conforme retratado em seu Spatial Divisions of Labour (para um balanço das repercussões deste livro, publicado em 1984 e com segunda edição em 1995, v. Phelps, 2008, e Callard, 2004). Também trouxe importantes contribuições ao debate regional, em textos como In what sense a regional problem (de 1979) ou “Regionalismo: alguns problemas atuais” (Massey, 1981) e na obra coletiva Rethinking the Region (Massey et al., 1998). Nos anos 1990, foi uma das pioneiras na introdução do debate sobre gênero na Geograa2, questionando David Harvey e Edward Soja por terem negligenciado o papel do gênero e da etnia em suas obras sobre pós-modernidade e, no caso de Harvey, em sua concepção de compressão espaço-tempo (Massey, 1991a). Foi ainda uma das precursoras do pensamento pós e descolonial na Geograa, a começar pela forma sempre respeitosa com que tratava o pensamento e as práticas de países “periféricos” como quando de sua estada entre os sandinistas da Nicarágua, nos anos 1970, e na África do Sul, para debater com planejadores locais. Ela fazia questão de armar que tinha muito a aprender com eles. Doreen recebeu, ainda em vida, importantes obras em sua homenagem, com destaque para Spatial Politics, organizado por Joe Painter e Mike Featherstone (2011) e “Doreen Massey: un sentido global de lugar”, organizado por Abel Albet e Núria Benach (2012), e que traz no subtítulo alusão a seu texto mais conhecido (Massey, 1991b). Através de sua concepção relacional de espaço, Massey deniu lugar como uma imbricação de múltiplas trajetórias, considerando o movimento e a transformação como constituintes fundamentais na construção do espaço. O termo aparentemente simples “trajetória” sintetiza esta dupla constituição espaço-temporal: não é possível denir trajetória sem vincular de maneira indissociável espaço e tempo. Provavelmente não exista melhor expressão, assim, para romper com a dicotomia entre as categorias mestras, espaço e tempo. Se tomarmos o dicionário e buscarmos o sentido proposto para a palavra, vericaremos que signica “linha descrita ou percorrida por um corpo em movimento”, ²Sobre sua posição como “geógrafa feminista”, mais do que como de uma geógrafa que estuda gênero, ver o artigo de Joseli Silva, neste
Dossiê Doreen Massey
do latim “trajectore”, “o que atravessa” (Novo Aurélio – Dicionário da Língua Portuguesa), “caminho percorrido por um corpo ou partícula em movimento”, “ação de percorrer esse trajeto” – trajeto, por sua vez, signicando “espaço que é preciso percorrer para ir de um lugar a outro” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Ou seja, trajetória signica ao mesmo tempo o espaço (geográco) percorrido e o movimento, o percurso (histórico) dessa jornada, totalmente geminados. Assim, a maior ou menor abertura do espaço para a conguração de novas trajetórias – em outros termos, a multiplicidade inerente ao espaço – é condição fundamental para a criação de uma nova história, de um novo tempo. Trajetória encontra-se intimamente associada, também, com encontro, outro tema recorrente na obra de Doreen e fundamental para a ênfase que ela dá ao espaço como dimensão da multiplicidade e da diferença. Seu conceito de lugar, ao contrário de visões antes dominantes, envolve sobretudo redes, conexões, encontros. E de conexões profundamente marcadas pela materialidade. Doreen, assim, inovou ao condenar as visões que ela denominava “reacionárias” do espaço e do lugar, visto por muitos (como Yu Fu-Tuan) como lócus de estabilidade e segurança. Doreen nunca gostou de lugares assépticos e “seguros”. Preferia o desao do espaço múltiplo onde o Outro sempre reserva uma condição para o inesperado. Seu espaço como emaranhado de trajetórias ela fazia questão de dizer que estava sempre em aberto, sempre carregado de potenciais contingências para a realização de novas e desaadoras conexões. Por mais impositivo e opressor que possa parecer, o espaço, a multiplicidade de trajetórias que ele comporta acaba sempre abrindo a perspectiva de “outros espaços”. Ela não dialogava muito com Foucault, mas não há como não fazer aqui uma analogia com suas heterotopias. Durante nosso intercâmbio de quase um ano durante o estágio pós-doutoral que desenvolvi sob sua supervisão cou muito claro o quanto a vinculação do espaço com a diferença e a multiplicidade permeava tanto o seu trabalho, especialmente em relação ao seu sentido global de lugar, numa perspectiva anglo-saxônica, quanto o que eu vinha desenvolvendo em relação aos conceitos de território e multerritorialidade, numa perspectiva latino-americana. Isso abriu a possibilidade de um rico diálogo, iniciado com o livro “O mito da desterritorialização” e a tradução para o português de “Pelo Espaço” e prosseguido depois, de forma mais direta, com o artigo “Do sentido global de lugar à multiterritorialidade”3. O espaço e o lugar de Doreen eram sempre “espaços outros”. Não apenas seu bairro, Kilburn, em Londres, mas também seu “refúgio” de férias no Lake District, ³Este artigo foi publicado no livro em homenagem a Doreen, já aqui citado (Painter e Featherstone, 2013) e depois em português como capítulo do
que tive a satisfação de compartilhar com ela e sua irmã Hilary. O Lake District é uma verdadeira paisagem inglesa “heterotópica”, pois poucos estrangeiros ouvem falar de uma Inglaterra de lagos e montanhas. Ali também ela (se) encontrava (com) diversos lugares, diversas redes, ainda que estas fossem moldadas mais pela chamada dinâmica da natureza. Ali tivemos um momento único admirando o céu noturno atravessado pelo turbilhão de estrelas da Via Láctea (ausente no céu das grandes metrópoles), buscando o movimento de satélites e lembrando como essas trajetórias também, de alguma forma, acabavam compondo o nosso espaço, o nosso lugar, ao mesmo tempo em que reviviam distantes memórias de nossa infância. Não esqueço um de nossos passeios em Jericoacoara, para onde fomos descansar depois do encontro da ANPEGE em Fortaleza, em 2005. Em meio a uma jornada de buggie por dunas e lagoas, seu fascínio maior se manifestou em detalhes inusitados, mas bem reveladores de sua busca por movimentos e espaços outros: como quando nos surpreendeu pedindo uma parada para observar a toca de uma coruja na base de uma pequena duna. Observação de pássaros sempre foi um de seus hobbies prediletos. Mais do que o mar, ela se revelou fascinada pelo sertão, pela semi-aridez ímpar da caatinga e histórias como a dos cangaceiros – que ela já conhecia desde que estivera em Pernambuco, nos anos 1980, para realizar um documentário para a emissora britânica BBC (divulgado em 1986). Ninguém, assim, poderia lhe questionar por propor uma concepção de lugar “sem natureza”. Meio em resposta a críticas como essa foi que desdobrou em seu livro “Pelo Espaço” a concepção de lugar que, mesmo sendo profundamente marcado por traços “naturais”, como no “sentido global de lugar” que formulou a partir de seu bairro londrino, Kilburn, também era marcado pela dinâmica e pelo encontro de trajetórias, desde a base geológica de placas tectônicas que, há muito tempo, vieram de longe dali, até os pássaros que migram sazonalmente desde o longínquo hemisfério sul. Um dos últimos questionamentos que me fez foi onde estava a natureza na minha concepção de desterritorialização… (de fato a comento, mas para dizer que não se trata exatamente de “poder”, mas de “força” – da natureza). A intuição “antenada” de Doreen nos surpreendia. Como também sua na ironia, que constantemente nos desaava. Doreen aliava como poucos amabilidade e provocação. Tornou-se assim uma grande e inesquecível amiga porque não apenas descobrimos mais pontos em comum do que imaginávamos mas também porque ela tinha a incrível capacidade de nos surpreender o tempo todo. Quando tudo parecia transcorrer rumo à mais terna calmaria, Doreen subitamente nos sacudia com uma intervenção ou “sacada” completamente inesperada,
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colocando em xeque nossos mais seguros pressupostos. Londres, com que Saskia Sassen inaugurou suas “cidades globais” ao lado de Tóquio e Nova York, e que Doreen Massey retratou em livro como “Cidade Mundial” (Massey, 2007), é provavelmente, ao lado da big apple, a urbe etnicamente mais diversicada do mundo. Mas infelizmente trata-se de uma multiplicidade que na maioria das vezes apenas se cruza e, quando admirada, é uma admiração à distância, como representação de um espaço não efetivamente vivido e partilhado. Predominam cruzamentos meramente funcionais por toda essa diversidade. Como os da trabalhadora equatoriana com quem conversei e que limpava meu quarto no College Hall da Universidade de Londres, onde quei hospedado. Doreen contou sobre uma colombiana que encontrou no hospital em que esteve internada para uma cirurgia do braço e que, mesmo depois de residir há um ano na cidade, ainda não falava inglês. Doreen serviu como sua “tradutora” no hospital, e se sentiu muito feliz por isso. Transitar de fato
pelas múltiplas territorialidades que, concomitantemente, uma megacidade como Londres oferece, não é tão fácil. Alguns, mais sofridos (e explorados), podem se fechar como forma de autoproteção e sobrevivência; outros, mais privilegiados, se fecham por empáa, temores infundados e/ou conservadorismo “hereditário” (como se fosse uma herança a ser compulsoriamente preservada). Esse jogo entre diferenças que o espaço proporciona, intensamente vivido em nossos encontros, foi uma das características da obra e vida de Doreen que mais me marcaram. Encerro, assim, com um relato que z logo que me despedi, no nosso último encontro, em Londres, em julho de 2015, e acrescento três fotos, lembranças pessoais que alimentam o lado bom de uma enorme saudade.
O restaurante afegão, de família muçulmana e donos que são vizinhos de Doreen, não vende bebida alcoólica mas aceita que se leve. Compro um bom vinho francês e brindamos o prazer do estar juntos que realimenta o corpo e a alma de uma amizade que perdura e, surpreendentemente, mesmo na efemeridade deste encontro, parece fortalecida com o tempo. Nossa língua também é múltipla, intercalando palavras em inglês, espanhol e francês, as três línguas que Doreen, como poucos intelectuais britânicos multilíngues, domina. Transitamos por múltiplos espaços, reconstruindo o nosso. Já não se trata apenas de reconhecer o múltiplo, mas de transitar por ele e vivê-lo, e nosso diálogo também viaja pelo mundo: do Podemos espanhol ao Syriza grego, das férias em que estivemos juntos no Lake District e nas lagoas de Jericoacoara aos planos de nossas viagens à Argentina e França no segundo semestre, dos colegas da Open University britânica e da AAG nos Estados Unidos aos da UFF e da UEPG no Brasil, das ações do radicalismo islâmico às conquistas do movimento LGBT, do carinho de nossas irmãs às histórias de meu pai aos quase 90 anos, da alegria da família que comemora o aniversário, na mesa ao lado, ao africano que a parou na rua para mostrar o voo dos pássaros que acabam de chegar da África do Sul para o verão do Norte ... Um pouco como esses pássaros sem fronteiras, mas que também constroem ninhos, festejamos a diferença acolhedora que o estar junto proporciona: voamos pelo mundo, mas nosso ninho continua sendo tenazmente construído nesses fugazes mas ao mesmo tempo profundos momentos em que a mais genuína expressão do sentimento humano de partilha e companheirismo se realiza.
Dossiê Doreen Massey
Com Doreen Massey e Arun Saldanha no campus da Open University, em Milton Keynes, 2003
Com Doreen no Lake District, noroeste da Inglaterra, 2010
Com Doreen Massey e José Borzachiello no Encontro da ANPEGE, Fortaleza, 2005
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.
Referências bibliográcas
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Dossiê Doreen Massey
GEOgraphia Niterói, Universidade Federal Fluminense ISSN 15177793 (eletrônico) Vol.19, No40, 2017: mai./ago.
Dossiê Doreen Massey
‘NÃO ME CHAME DE SENHORA, EU SOU FEMINISTA’! POSICIONALIDADE E REFLEXIBILIDADE NA PRODUÇÃO GEOGRÁFICA DE DOREEN MASSEY
Joseli Maria Silva* Universidade Estadual de Ponta Grossa
Marcio Jose Ornat** Universidade Estadual de Ponta Grossa
Alides Baptista Chimin Junior*** Universidade Estadual do Centro Oeste
Resumo: Este texto tem por objetivo evidenciar as inuências da teoria feminista na produção geográca de Doreen Massey. Para dar conta deste objetivo trago registros guardados em minha memória de nossa curta relação em nais de 2015 e início de 2016, bem como os elementos feministas que marcam suas mais notáveis contribuições cientícas na geograa. Retomo as suas críticas em relação à compressão espaço-tempo no processo de globalização, suas proposições para superar a oposição entre espaço e lugar mostrando que a reexão em torno de sua posicionalidade como mulher e feminista lhe possibilitaram a produzir uma imaginação geográca que, sem dúvida, trouxe avanços conceituais nesse campo disciplinar. Palavras Chave: Geograa Feminista. Posicionalidade. Espaço. Lugar.
‘Don’t call me Ms, I’m a feminist!’ Positionality and reexivity in the Doreen Massey’s geographic production
Abstract: This text aims to evidence the feminist theory inuences on Doreen Massey’s geographic production. To achieve this goal, I bring memories of our short relationship in late 2015 and early 2016, as well as the feminist elements that mark her most remarkable scientic contributions to geography. I take up her criticisms of space-time compression in the process of globalization, her propositions to overcome the opposition between space and place, showing that the reection around her positionality as a woman and feminist allowed her to produce a geographical imagination that, undoubtedly, has brought conceptual advances in this disciplinary eld. Keywords: Feminist Geography. Positionality. Space. Place.
‘No me llames de señora, yo soy feminista’! Posicionalidad y reexibilidad en la producción geográca de Doreen Massey
Resumén: Este texto tiene por objetivo evidenciar las inuencias de la teoría feminista en la producción geográca de Doreen Massey. Para llevar a cabo este objetivo son expostos registros guardados en mi memoria de nuestra corta relación a nales de 2015 e inicio de 2016, así como los elementos feministas que marcan sus más notables contribuciones cientícas en la geografía. Retomo sus críticas en relación a la compresión espacio-tiempo en el proceso de globalización, sus proposiciones para superar la oposición entre espacio y lugar mostrando que la reexión en torno a su posicionalidad como mujer y feminista le otorgan la capacidad de producir una imaginación geográca que, sin duda, ha traído avances conceptuales en ese campo académico.
Palabras clave: Geografía Feminista. Posicionalidad. Espacio. Lugar.
________________________________
* Doutora em Geograa - UFRJ, docente do Programa de Pós-Graduação em Geograa - UEPG. E-mail:
[email protected] ** Doutor em Geograa - UFRJ, docente do Programa de Pós-Graduação em Geograa - UEPG. E-mail:
[email protected] *** Doutor em Geograa - UEPG, docente do Departamento de Geograa - UNICENTRO. E-mail:
[email protected]
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.
Introdução
Compartilhar com Doreen Massey os últimos dias de sua existência foi uma experiência emocionante, da qual eu, Joseli Maria Silva, jamais esquecerei. Quando cheguei na Inglaterra em 2015 para a execução da minha pesquisa de pós-doutorado realizei vários ensaios para entrar em contato com ela por telefone. Minha insegurança sobre o domínio do idioma, bem como a apreensão de não ser bem recebida por alguém que nutro profunda admiração intelectual me zeram adiar o telefonema algumas vezes. Escrevi primeiramente um e-mail, pois a forma escrita me colocava em situação de maior conforto. Doreen Massey prontamente respondeu minha mensagem enviando seu
telefone residencial, solicitando que lhe telefonasse para agendarmos um encontro. Tomei o telefone e minha primeira frase ensaiada, conforme as boas maneiras indicadas pelos meus livros de inglês, foi: Can I speak with Ms1. Massey? Ela mesma havia atendido ao telefone e respondeu: Don’t call me ‘Ms’, I’m a feminist! Sua resposta me deixou desconsertada por alguns segundos e eu me recriminava por ter utilizado um pronome de
tratamento que eu, como uma feminista, sabia que era polêmico. Após este episódio sobre sua rme posição de ser uma feminista percebi em vários momentos de conversas a importância que esta identicação tinha para Doreen Massey. Um dia comentei o quanto ela e suas ideias sobre o espaço estavam se tornando reconhecidas nos cursos de pós-graduação no Brasil, em grande parte, graças à tradução do seu livro For Space para o português2. Ela perguntou se as pessoas aqui no Brasil lhe reconheciam como uma geógrafa feminista e eu disse que não. Em geral, as pessoas não fazem a associação entre suas teorias e sua posição identitária feminista o que, em uma academia sexista como é a brasileira, a não conexão trazia a vantagem das pessoas não criarem uma resistência prévia às suas proposições. A conversa continuou e eu relatei a ela a primeira
vez que a vi falar sobre sua identidade feminista e o constrangimento que tal posição causou para a audiência brasileira. Em 2005 em Fortaleza em um encontro da
Associação Nacional de Pós-graduação em Geograa eu estava presente e muito ansiosa por ouvi-la. Lembrome com certo embaraço o momento em que ela se apresentou ‘as feminist geographer’. Várias pessoas ao Desde a década de 60 o mundo anglófono adotou o pronome genérico ‘Ms’ para substituir os anteriormente utilizados: ‘Mrs’ (para mulheres casadas) e Miss (para mulheres solteiras). Embora eu tivesse utilizado o pronome ‘Ms.’ para me referir a uma pessoa com notoriedade no universo acadêmico, o pronome é polêmico e irrita muitas mulheres feministas que consideram todos esses pronomes de tratamento para mulheres associados ao poder patriarcal, pois os termos derivam etimologicamente da expressão ‘Mistress of the House’. 1
Trata-se do livro Pelo espaço: uma nova política da espacialidade, publicado no
2
meu redor riram com desdém de seu posicionamento e
lamentaram sua apresentação como se a característica de feminista diminuísse o valor de suas teorias. Nós rimos juntas e lastimamos o quanto geógrafas feministas, em pleno século XXI, ainda assustam contextos acadêmicos sexistas. Doreen Massey repetiu várias vezes que sua imaginação geográca e proposições teóricas eram, em grande parte, fruto de sua posicionalidade feminista e isso deveria ser conhecido no Brasil. Concordei e prometi que, sempre que tivesse oportunidade, falaria sobre isso à comunidade geográca brasileira. Em onze de março de 2016 tínhamos um encontro e quando liguei para sua casa para conrmação, alguém me comunicou sua morte.
Desde então me senti com uma dívida com Doreen Massey, a de evidenciar sua posicionalidade feminista em suas teorias e agradeço a Rogério Haesbaert a possibilidade de realizar a tarefa prometida por meio desse texto que fará parte de um dossiê em sua homenagem. Com os companheiros do Grupo de Estudos Territoriais
(GETE), Marcio Ornat e Alides Baptista Chimin Junior, construímos esta reexão com o objetivo de marcar a identidade feminista de Doreen Massey como elemento de suas proposições conceituais na geograa. O texto está organizado em duas seções. Na primeira parte discutimos os elementos que caracterizam a prática das geograas feministas, associando a posição de Doreen Massey sobre a produção cientíca e o fazer feminista. Na segunda parte do texto são estabelecidas as conexões entre suas críticas em relação à compressão espaçotempo no processo de globalização, suas proposições para superar a oposição entre espaço e lugar com sua clara posicionalidade como geógrafa feminista.
Geograa feminista é mais do que estudar gênero Há sem dúvida uma confusão entre estudar gênero na geograa e produzir geograas feministas. Doreen Massey tinha clareza sobre este aspecto. Para ela, ser uma geógrafa feminista não remetia diretamente à temática de gênero e abordar gênero nas pesquisas geográcas não estava diretamente vinculada ao fazer cientíco feminista. O feminismo na prática acadêmica é uma perspectiva subversiva mais ampla e em sua ideia era
possível ser uma geógrafa feminista sem, propriamente, abordar gênero. Sua atuação no movimento político feminista durante os anos 70 produziu uma perspectiva de transformação da sociedade que vai além de estudar gênero, como pode ser visto em um trecho de depoimento de Doreen Massey em uma entrevista desenvolvida na
Dossiê Doreen Massey
Universidade de Glasgow 3: Existem diferentes maneiras de fazer geograa feminista e formas absolutamente valiosas de ser uma acadêmica feminista. Minha preferência, o que não signica que eu pense que todos deveriam fazer isso, não foi estudar gênero como tal. O feminismo ia além do gênero. O feminismo na década de 1970 era sobre uma nova sociedade, uma nova maneira de ser, uma nova maneira de organizar as coisas. Isso é uma luta
política mais ampla. Quero ter feministas em todos os lugares, na física nuclear, na geomorfologia, na geograa humana, etc. Estudando tudo como uma feminista, não apenas estudando mulheres ou gênero. Então eu fui bastante resistente ao trabalhar com gênero. Isso não signica que outras pessoas não deveriam fazê-lo4.
Para Doreen Massey ser uma geógrafa feminista implicava pensar o conhecimento, as relações políticas e de poder que eram inerentes ao processo de
constituição da imaginação geográca e de seu processo de legitimação. Ela se dedicou a pensar conceitos geográcos como espaço, lugar, região, desaando as formas de pensar de seu tempo. Seu trabalho inspirou outras geógrafas feministas britânicas como Gillian Rose que produziu Feminism & Geography: The Limits of Geographical Knowledge (1993) e Linda McDowell que escreveu Gender, Identity and Place: understanding feminist geographies (1999). Ambas as obras desenvolvem caminhos conceituais e
metodológicos, evidenciando que a identidade feminista da geograa se constitui no processo de fazer cientíco. A geograa feminista parte do pressuposto de que a ciência é produzida por seres humanos em seu cotidiano e, portanto, o conhecimento gerado é relacional ao tempo
e espaço próprios do cientista. Sendo assim, uma das grandes críticas da corrente epistemológica feminista é sobre o mito da existência de um olhar que tudo vê, que tudo explica e que não pode ser visto, produzindo uma espécie de verdade universal, popularmente conhecido no meio feminista como sendo o god trick 5. McDowell e Sharp (1997) argumentam que a ideia da universalidade
do conhecimento difundido como neutro é apenas um conjunto de ideias sobre a verdade da humanidade que foi especicamente masculino. Sendo assim, como arma Rose (1993), não se pode negar que o conhecimento Em 02 de julho de 2009 Doreen Massey participou da celebração do Centenário da Geograa na Universidade de Glasgow e nessa oportunidade concedeu uma entrevista ao Grupo de Pesquisa de Geograa Humana. 3
There are different ways of doing feminist geography and absolutely valued ways of being a feminist academic and my preferred tack, which isn’t that I think everybody ought to do this, has been not to study gender as such. Feminism was about more than gender. Feminism in the 1970s was about a new society, a new way of being, a new way of organising things; it is a bigger political struggle. I want to have feminists everywhere, in nuclear physics, in geomorphology, in human geography etc. Studying everything as a feminist, not just studying women or gender. So I was quite resistant to doing gender. That doesn’t mean other people shouldn’t. (MASSEY, et all, 2009, p. 7) 4
Esta expressão metafórica foi criada por Donna Haraway (1988) para criticar a posição de arrogância da ciência ocidental moderna como ‘olho que tudo vê’. Uma visão usada para distanciar o pesquisador de tudo e todos para manter o poder. A autora descreve essa posição da visão cientíca como um ‘truque de deus”,
sempre foi genericado, mesmo que masculino. Reconhecer a criação e legitimação das hegemonias de saberes corporicados é um traço fundamental da geograa feminista. As geograas feministas reconhecem a ciência geográca por meio da análise da ação de pessoas, de seus instrumentos de pesquisa, ideologias, culturas, e
assim por diante. Os princípios e enunciados jamais são considerados como fora de embates e medição de forças e interesses, ou seja, o cientíco é sempre político. A ação de conhecer baseia-se nas epistemologias escolhidas que estão nas entranhas dos processos de pesquisa e isso precisa ser assumido, discutido e colocado de forma transparente em uma perspectiva feminista. Doreen Massey considerava a força da epistemologia e como os modelos conceituais construíam a realidade. Ela usava o termo ‘imaginação’ para discutir as teorias que são formuladas e balizam as formas como lidamos com a realidade. Ao discutir a imaginação geográca construída sobre a globalização, por exemplo, ela argumenta sobre “a importância de sempre estar consciente das
relações de poder e isso signica considerar ambos, no sentido das relações de poder nas esferas sociais que estamos examinando e no sentido das relações de poder incorporadas no sistema de saber-poder que as nossas conceituações estão construindo’ 6. (MASSEY, 1999, p. 27).
Uma pesquisa geográca feminista, como argumenta McDowell (1992), deve considerar a metodologia. Não basta incluir gênero como tema de investigação geográca. Nem toda pesquisa que leva em consideração o gênero ou, ainda, que é realizada por uma mulher pode ser considerada uma pesquisa norteada pelas
epistemologias feministas. Os corpos importam nas experiências espaciais e também nas práticas de pesquisa. Esse aspecto é incontestável e deve ser considerado no processo de reexibilidade. Mas a relação direta entre corpos e identidades feministas não é simples. A ideia de Haraway (1988) a respeito do ‘conhecimento situado e corporicado’ advoga contra todas as formas de conhecimento que não são localizáveis. Alerta ela que, da mesma forma que as feministas criticaram as visões totalizantes de realidade que não consideravam as posições de vários grupos sociais e se colocavam como única autoridade cientíca, o relativismo de um conhecimento subalterno, que se
coloque como única versão da realidade, também é uma posição limitada e estreita. Para ela, a alternativa às totalizações não é o relativismo, mas os saberes parciais, localizados, críticos, que formem redes de conexões e articulem a política e a epistemologia.
5
“(…) the importance always of being aware of power-relations. And this is meant both in the sense of the power-relations in the social spheres we are examining and in the sense of the power-relations embedded in the power-knowledge system 6
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Haraway (1988) chama a atenção para a fantasia e a ilusão do conhecimento produzido pelas feministas que fazem de seu ponto de mirada a única possibilidade de verdade, colocando-se como autoridades cientícas por estarem localizadas na subalternidade. Apesar de
ser fundamental que subalternizados produzam suas versões da realidade, é preciso considerar que nenhuma posição está isenta de críticas e tampouco é uma visão inocente e sem interesses. Haraway (1988) alerta para a ilusão de se considerar a versão subalternizada como única verdadeira e a mais próxima da verdade. As versões subalternas são mais atraentes justamente por parecem explicar fenômenos de forma mais rme e, assim, guram como difíceis de serem contestadas e negadas. Para ela, a totalização e o relativismo são faces da mesma moeda porque ambos negam o interesse nas suas posições corporicadas e parciais da realidade. Como alternativa para a produção do conhecimento que escape tanto da totalização como do relativismo, ela diz: Então, com muitas outras feministas, quero argumentar por uma doutrina e prática de objetividade, que privilegie a constatação, a desconstrução, a construção apaixonada, as conexões em rede e a esperança de transformação de sistemas de conhecimento e das formas de ver. Mas nenhuma perspectiva parcial o fará. Devemos ser hostis aos relativismos fáceis e holismos construídos somando e incluindo partes. O “desapego apaixonado” exige mais do que o
reconhecimento e parcialidade autocrítica. Nós também estamos obrigados a procurar perspectiva daqueles pontos de vista, que nunca podem ser conhecidos
antecipadamente, que prometem algo extraordinário, que é o conhecimento potente para a construção de mundos menos organizados por eixos de dominação.7 (HARAWAY, 1988, p. 585).
O conhecimento posicionado proposto por Haraway (1988) implica reconhecer nossa capacidade de produzir
um saber que se faz de determinada situação e de se responsabilizar por ele, sendo capaz de explicitar cada
ação investigativa. Assim, para ela, a política e a ética são as bases das contestações sobre aquilo que pode ser concebido como conhecimento. Do contrário, a autoridade cientíca é simplesmente uma ilusão projetada de maneira abrangente, vinda de lugar nenhum. A ideia do conhecimento parcial e posicionado é um importante
avanço para as epistemologias feministas. Ackerly e True (2010, p. 25) sustentam a ideia de que a “epistemologia é um sistema de pensamento que nós
usamos para distinguir fato de crença. Uma epistemologia é ela mesma um sistema de crenças sobre o que constitui So, with many other feminists, I want to argue for a doctrine and practice of objectivity that privilege constatation, desconstruction, passionate construction, webbed connections, and hope for transformation of systems of knowledge and ways of seeing. But not any partial perspective will do; we must be hostile to easy relativisms and holisms built out summing and subsuming parts. ‘Passionate detachment’ requires more than acknowledged and self-critical partiality. We are also bond to seek perspective from those points of view which can never be known in advance, that promise something quite extraordinary, that is knowledge potent for constructing worlds less organized by axes of domination. (HARAWAY, 1988, 7
conhecimento, evidência e argumento convincente.” 8 Assim, segundo elas, a produção de um conhecimento que seja considerado feminista segue determinados princípios éticos a serem levados em conta durante as práticas de pesquisa. Uma pesquisa feminista está comprometida metodologicamente com a reexibilidade sobre: (1) a força da epistemologia, (2) as fronteiras e limites, (3) as relações e as (4) múltiplas dimensões da localização do pesquisador e suas interações no processo de pesquisa. O comprometimento metodológico tem como
fundamento a prática da pesquisa como instrumento de transformação da ordem social para a promoção da justiça de gênero. Segundo elas, a reexão crítica sobre esses quatro aspectos e sua interdependência permite trazer para a visibilidade a provisionalidade e a
contingência dos dados de pesquisa, e a construção do processo de pesquisa implica relativizar as fronteiras e limites de conceitos que foram essencializados a m de buscar os caminhos transformadores. Os quatro aspectos de reexão propostos por Ackerly e True (2010) sobre as pesquisas feministas são detalhados a seguir. A força da tradição da epistemologia é um dos aspectos a serem enfrentados por aqueles que realizam pesquisas geográcas feministas. O corpo teórico e metodológico deve ser cuidadosamente reetido e desaado. É o corpo teórico e metodológico de um campo cientíco que cria as invisibilidades de certos fenômenos e grupos sociais e não a realidade em si. As mulheres, negros, indígenas, homossexuais e assim por diante vivem espacialmente
na vida cotidiana. Portanto, a abordagem feminista precisa duvidar das bases epistemológicas que criam e sustentam a invisibilidade e recriar conceitos e métodos
que possibilitem a análise geográca desses grupos e não apenas aceitar sua ausência na geograa porque não são considerados seres geográcos, conforme argumenta Silva (2009). É preciso desconar que um campo cientíco seja de tal forma por causa de uma essência qualquer, mas entender que foi assim constituído porque é fruto de forças e privilégios que são mascarados por conceitos e métodos aparentemente neutros, objetivos e imparciais.
Uma geograa feminista questiona conceitos e métodos que podem mascarar diferenças, desigualdades e dominações, e luta contra as universalizações. O cuidado com as fronteiras e os limites é outro aspecto a que uma geograa feminista deve estar alerta, e isso está relacionado com a questão da força da tradição epistemológica. A teoria estabelecida e legitimada
pela tradição cria fronteiras analíticas que limitam as possibilidades e a forma como nós concebemos nossas questões e problemas de pesquisa. As estruturas oposicionais e binárias, com fronteiras e limites, muitas vezes são os fatores que criam e perpetuam as ausências An epistemology is the system of thought that we use to distinguish fact from belief. An epistemology is itself a belief system about what constitutes knowledge, 8
Dossiê Doreen Massey
e silêncios de determinadas geogracidades. Enm, uma pesquisa feminista tem o dever de pensar que os limites e fronteiras que são estabelecidos pela tradição epistemológica não são dados, mas são humanamente construídos, gerando consequências na visibilidade de determinados grupos sociais. As
geograas feministas devem estar atentas para encontrar as lacunas e as razões das ausências, reinventando formas de conceber a realidade espacial por meio do tensionamento dos conceitos e métodos já concebidos. Logicamente, a prática de pesquisa implica a realização inevitável de recortes da realidade, e isso está relacionado com o estabelecimento de limites. Contudo, uma pesquisa
feminista deve ser consciente das responsabilidades sobre as intenções e as consequências das escolhas metodológicas e dos efeitos que tais escolhas podem gerar.
A atenção às relações envolvidas no processo de pesquisa é fundamental para uma pesquisa feminista. 9 A relação de poder entre o/a pesquisador/a e os/as outros/as participantes da pesquisa são elementos a serem considerados na produção dos dados. A ideia de não utilizar a denominação ‘objetos de pesquisa’ ou ‘pesquisadas/os’ relaciona-se com a convicção de que os grupos que são alvo da investigação não são passivos no processo de pesquisa, mas atuantes na sua produção. Portanto, as características que envolvem esta relação devem ser consideradas no processo metodológico
porque fazem parte da produção dos resultados possíveis de serem produzidos. É a relação que produz a pesquisa, e não o/a pesquisador/a ou os/as participantes considerados de forma isolada ou oposicional. Uma pesquisa comprometida com os princípios feministas precisa considerar a relação e os impactos que a pesquisa pode trazer para todos os/as participantes e seus contextos, primando por construir um modelo de
análise que resguarde o respeito. O cuidado com a reexão em torno da localização do pesquisador e suas interações no processo de pesquisa é importante para qualquer pesquisador/a, seja qual for sua abordagem epistemológica. Mas para uma pesquisa feminista é fundamental que o/a pesquisador/a se coloque como ativo/a na produção do conhecimento e reita como sua própria posição sociopolítica de privilégios estabeleceu as dinâmicas especícas com os outros participantes da pesquisa, resultando no saber
que se fez coletivamente. Como a pesquisa feminista considera que o conhecimento é sempre situado, a
reexibilidade é uma prática indispensável (ROSE, 1997). A geograa feminista implica que o/a pesquisador/a se pergunte de que forma sua própria posição afeta sua metodologia, revisitando suas escolhas e relações Este aspecto não é exclusivo das epistemologias feministas, sendo uma reexão
9
políticas em cada estágio do processo de pesquisa. Portanto, não há uma receita de passos para construir uma pesquisa geográca feminista, mas princípios que regem práticas investigativas. A pesquisa feminista se faz com comprometimento da atenção com a força da tradição epistemológica, o cuidado com os limites e fronteiras teóricas e metodológicas que moldam nossa maneira
de pensar a geograa e perpetuam silenciamentos, ausências e marginalizações, a preocupação com o contexto relacional da investigação e a coragem de nos situarmos no processo investigativo, cultivando a
reexibilidade sobre todos os aspectos anteriores, que são interdependentes entre si. Todos os quatro aspectos anteriormente discutidos
podem ser claramente reconhecidos na obra de Doreen Massey. Embora ela tenha trazido o gênero como foco de vários de seus estudos, inclusive no início dos anos 80, ela foi além disso. Trouxe em sua prática de vida acadêmica e produção conceitual sua posicionalidade feminista.
Estabelecendo as conexões das contribuições teóricas de Doreen Massey para a geograa e sua posicionalidade como geógrafa feminista Doreen Massey é uma das poucas mulheres citadas no livro Key thinkers on space and place publicado
por Hubbard, Kitchin e Valentine (2004). Essa obra possui o status de uma enciclopédia que serve como
uma ferramenta para auxiliar prossionais da área da geograa a consolidar o conhecimento dos pontoschaves de desenvolvimento teórico da geograa no contexto anglófono. Ali são apontados autores/ as inuentes no campo cientíco daquele contexto, suas biograas resumidas e as principais críticas e proposições conceituais. Callard (2004) ao explorar a biograa de Doreen Massey e o contexto teórico de sua produção cientíca, não marca sua trajetória como uma geógrafa feminista. Contudo, ela mesma, na entrevista realizada em 2009 na Universidade de Glasgow, quando questionada sobre as inuências intelectuais sobre sua produção cientíca ela argumenta: Bem, elas [referindo-se às inuências] não são intelectuais e isso é o que é tão interessante. Eu nunca trabalhei assim. Eu fui questionada sobre isso anteriormente e eu não consegui dizer se houve pessoas ou autores em especial que tenham me iluminado nessa direção. Isso foi bem mais, e isso pode ser em parte um produto de uma geração especíca da qual eu z parte. Aquele estímulo sobre as coisas, o motivo para fazer perguntas sobre as coisas e as formas como os debates foram enquadrados, resultaram do fato de eu fazer parte dos movimentos políticos. Se isso aconteceu [referindo-se às inuências] no nal dos anos 60 e 70 com o surgimento do marxismo, do feminismo, da libertação sexual ou do tipo de coisas que aconteceram mais recentemente,
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geralmente isso se dá pelo envolvimento com a política. Então, muitos dos meus principais pontos de referência foram debates urgentes provocados por coisas assim [referindo-se aos movimentos políticos] 10.
Ao reetir sobre sua trajetória intelectual no momento da entrevista em Glasgow 2009, Doreen Massey traz uma reexão sobre sua posicionalidade, elemento fundamental para pensar a produção do conhecimento em uma perspectiva das epistemologias feministas, conforme argumentam Ackerly e True (2010). O trecho que segue é ilustrativo de sua reexibilidade em torno de sua condição como mulher, envolvida no movimento feminista que, apesar de buscar o marxismo como fonte de inspiração teórica, sua posicionalidade feminista trazia conitos, até seu encontro com Althusser. A obra de Althusser possibilitou a ligação de sua existência como mulher feminista e a teoria marxista, constituindo assim um caminho particular de produção teórica: Eu li muito Marx e Engels e participei de muitas dessas discussões e achei muito, muito difícil me considerar marxista. Mesmo que em um nível visceral em termos de querer pensar as políticas de classe, eu sabia que estava ‘daquele lado’, lendo Marx não me convencia e acho que, anos depois, eu percebi que muitas de
minhas dúvidas tinham ocorrido pelo fato de que estávamos, naquele ponto, concentrando no início de Marx e em coisas em torno da natureza humana, da ideologia alemã e assim por diante, e, como feminista, não conseguia aderir a essas ideias. Muito disso era muito, muito essencialista sobre as divisões sexuais do trabalho, divisões ‘naturais’ do trabalho, todo esse tipo de coisas continuavam aparecendo. A família heterossexual era tratada de forma totalmente não problematizada e, mesmo naquela fase, eu não tinha intenção de fazer parte de uma daquelas ideias. Então achei muito, muito difícil de aderir ao marxismo. E então, veio Althusser. (...) Althusser insistia que tudo era sempre um produto do que veio antes disso. E se isso
é verdade, então nada está dado. Então, qualquer coisa pode ser alterada: sua frase famosa que eu repeti em vários dos meus trabalhos é ‘não há ponto de partida’. E isso, absolutamente, como uma jovem mulher que
estava tentando escapar das normas, que não estava em conformidade com nenhuma das descrições de ‘mulher’, e que queria uma maneira de desaá-las, foi a primeira entrada no anti-essencialismo, embora eu não conhecesse esse termo e nenhum de nós conhecia esse termo naquele tempo, foi absolutamente importante 11. Well they aren’t intellectual, and that is what is so interesting. I have never quite worked like that. I have been asked this question before and I couldn’t say that there have been particular people or authors that have been guiding lights in that sense. It has been more, and this may be in part a product of the particular generation I have been part of, that the stimulus to stuff, the reason for asking questions and the ways in which debates got framed, have come out of being part of political movements. Whether that has been in the late 60s and the 70s with the emergence of Marxism, feminism, sexual liberation or the kind of stuff that has happened more recently, and more generally an engagement with politics. (MASSEY, et all, 2009, p. 4) 10
I read a lot of Marx and Engels and took part in a lot of those discussions and found it very, very difcult to count myself as a Marxist. Even though at a gut level in terms of wanting to think class politics I knew I was ‘on that side’, reading Marx was not convincing me and I think years later I realised a lot of that doubt had been about the fact that we were, at that point, concentrating a lot on early Marx and stuff around human nature, the German Ideology and so forth, and as a feminist I couldn’t buy it. So much of it was so very, very essentialist about the sexual divisions of labour, ‘natural’ divisions of labour, all this kind of stuff kept coming up. The heterosexual family was treated completely unproblematically and even at that stage I had no intention of being part of one of those. And so I found it very, very difcult to buy into Marxism. And then along came Althusser. (...) Althusser insisted that everything was always a product of what came before it. And if that is true then nothing is given. So anything can be changed: his famous line which I have repeated in a number of my 11
Se a reexividade sobre as múltiplas dimensões da localização do pesquisador no processo de produzir conhecimento é um claro exercício de Doreen Massey, outros elementos indicados por Ackerly e True (2010) sobre as epistemologias feministas podem ser identicados em sua produção, como a consideração da força da tradição epistemológica, a necessidade de questionar as fronteiras e limites estabelecidos, bem como considerar que todo conhecimento é relacional. A obra Spatial Divisions of labour: social structures and the geography of production (MASSEY, 1984) traz alguns importantes elementos sobre o reconhecimento de
Doreen Massey sobre a força da tradição epistemológica e a necessidade de enfrentá-la. O pensamento relacional oriundo de suas bases marxistas foi renado e permaneceu como um importante elemento em toda sua
produção acadêmica. Nessa obra Doreen Massey trata o espaço como inerente às relações de produção capitalista em várias escalas e constitui a ideia da diferença regional como imbricada com dinâmicas de produção. Com essa perspectiva ela enfrentou a ideia de limites estabelecidos e fronteiras que responsabilizavam as próprias regiões de forma isolada pelas suas diferenças internas, classicadas em uma linha imaginária de progresso como sendo bem ou malsucedidas. Há mais de trinta anos, argumentar que as regiões estavam atreladas aos sistemas de organização espacial das relações de produção capitalistas e que as diferenças regionais eram inerentes a esse processo, era considerada uma ideia inovadora, apesar de hoje parecer óbvia.
Ainda nessa obra é possível observar Doreen Massey se afastando do marxismo clássico que explicava os espaços a partir de fenômenos universalizantes de organização produtiva. Ela tratou o espaço para além da concepção usual da época, que compreendia os lugares como resultado dos uxos de capitais, como coisas passivas aos processos globais. Sua teoria espacial
está entrelaçada de forma contundente com as ideias feministas que lutavam contra os processos explicativos universais (god trick) que impediam a visibilidade das
diferenças (HARAWAY, 1988). Nessa obra, mesmo que as relações de classe tenham recebido atenção especial, suas conexões com gênero e raça foram consideradas, evidenciando que há elementos ideológicos para além do econômico que criam hierarquias e diferenças. Doreen Massey rejeita a ideia de universalidade de processos produtivos, da visão dual e oposicional entre local e global, bem como refuta a concepção de progresso e/ou atraso nas análises sobre desenvolvimento de diferentes locais. Para ela os espaços estão interconectados e com essa visão cria as ideias que, was trying to escape the norms, who didn’t conform to any of the given descriptions of ‘woman’, and who wanted a way of challenging them, that rst entry into antiessentialism, although I didn’t know that term, none of us knew that term at that
Dossiê Doreen Massey
controle do que outras. É que a mobilidade e o controle de alguns grupos podem enfraquecer ativamente outras pessoas. A mobilidade diferencial pode enfraquecer a alavancagem do já fraco. A compressão tempo-espaço
durante os anos 90, foram foco de inúmeras discussões, ‘geometrias de poder’ e ‘espaço-tempo’. Um
dos
pressupostos
mais
importantes
das
epistemologias feministas é o questionamento das fronteiras e dos limites estabelecidos que são capazes de recortar a realidade de forma a produzir determinadas visibilidades e compreensões da realidade. As feministas sempre questionam os recortes e como se estabelecem
as fronteiras e oposições a m de produzir outras perspectivas de análise, notadamente trazer para o debate as invisibilidades. Esta perspectiva feminista pode ser reconhecida na sua proposição sobre ‘geometrias do poder’. A ideia de ‘geometrias do poder’ Doreen Massey desconstrói o dualismo na interpretação entre o espaço e o lugar, entre o local e o global. Em Global sense of place artigo publicado por Massey (1991a), ela arma
que as geometrias do poder são entendidas como diferentes formas de relações de uxos e interconexões entre diferentes grupos e indivíduos, evidenciando assim a forma como a compressão do espaço-tempo da globalização afeta pessoas de diversas maneiras. Ela argumenta que não se trata de ver o local em oposição ao global, mas co-constituintes e posicionados em campos distintos de relações de poder. O mundo interconectado é uma realidade em que é necessário questionar a forma
de alguns grupos pode prejudicar o poder de outros 12.
(MASSEY, 1991a, p. 4)
A visão relacional, desconstrutora de dicotomias e oposições, o questionamento das tradições epistemológicas e das relações de poder inerentes à produção conceitual (todos elementos que constituem as epistemologias feministas) foram base de um polêmico artigo escrito por ela, Flexible Sexism (MASSEY, 1991b). Neste texto Doreen Massey teceu uma das mais eminentes críticas de duas obras geográcas monumentais do nal dos anos 80, Condition of Postmodernity de David Harvey (1989) e Postmodern Geographies de Edward Soja (1989). Em 2009, em seu depoimento em Glasgow, ela foi questionada sobre as razões de escrever tal artigo tão controverso e sua resposta expressa sua identidade feminista: A razão pela qual eu z ‘Sexismo exível’ foi em parte apenas raiva pura e visceral. Eu não sei se as pessoas sabem, mas este foi um artigo que publiquei há muito, muito tempo atrás, mas os tipógrafos eram tão in capazes de aceitar o título do artigo, que o cabeçalho foi denido como ‘Sistemas Flexíveis’ ou algo assim. (...) E a outra razão para o ‘Sexismo Flexível’ estava relacionada a isso [referindo-se à necessidade de subversão aos cânones estabelecidos] e acho que devemos atacar as cidadelas13. Estes foram dois grandes livros, todos
como a conectividade se estabelece e isso envolve
pensar nem o local em si, e nem o global, mas a forma e a natureza da geograa das relações de poder que tecem os dois juntos. O local-global são co-constituídos nas geometrias do poder e isso remete à necessidade de estabelecer a política, o que leva à ideia de que nada está dado ou determinado unicamente pelas forças econômicas abstratas.
O olhar feminista de Doreen Massey é aguçado para observar as diferenças e lutar contra as homogeneizações fáceis, da ideia de um mundo global conectado onde impera a compressão espaço-tempo. Ela argumenta que a compressão espaço-tempo precisa ser analisada a partir do ponto de vista da diferenciação social, trazendo muitos exemplos que envolvem classe, gênero e raça que posicionam grupos de forma distinta em tal processo – o que ela chama de geometrias de poder: Existem diferenças no grau de movimento e comunicação, mas também no grau de controle e iniciação. As formas como as pessoas são colocadas dentro da ‘compressão espaço-tempo’ são altamente complexas e extremamente variadas. Mas isso, por sua vez, levanta imediatamente questões de política. Se a compressão tempo-espaço pode ser imaginada na forma mais socialmente formada, socialmente avaliadora e diferenciada, então pode haver aqui a possibilidade de desenvolver uma política de mobilidade e acesso. Pois parece que a mobilidade e o controle da mobilidade
reetem e reforçam o poder. Não é simplesmente uma questão de distribuição desigual, que algumas pessoas
achavam que eles eram maravilhosos e, em muitos
aspectos, ambos eram. Mas eles também me pareciam ser totalmente, inconscientemente, profundamente, sexistas. E eu só queria atacar onde as fontes de poder estavam em termos das vozes dentro da geograa; então eu o z14. (MASSEY, et all, 2009, p. 7).
O artigo Flexible Sexism, posteriormente, gurou como um capítulo do livro Space, place and gender,
publicado em 1994 em que Doreen Massey se dedica ao estabelecimento das conexões complexas entre espaço, lugar e as relações de gênero, evidenciando o papel da geograa na compreensão da construção de ideias que There are differences in the degree of movement and communication, but also in the degree of control and initiation. The ways in which people are placed within ‘time-space compression’ are highly complicated and extremely varied. But this in turn immediately raises questions of politics. If time-space compression can be imagined in that more socially formed, socially evaluative and differentiated way, then there may be here the possibility of developing a politics of mobility and access. For it does seem that mobility, and control over mobility, both reects and reinforces power. It is not simply a question of unequal distribution, that some people move more than others, and that some have more control than others. It is that the mobility and control of some groups can actively weaken other people. Differential mobility can weaken the leverage of the already weak. The time-space compression of some groups can undermine the power of others. (MASSEY, 1991a, p. 4) 12
O termo ‘cidadelas’ é uma metáfora utilizada por Doreen Massey para representar espaços acadêmicos cercados para manutenção de seu poder. 13
The reason I did ‘Flexible Sexism’ was partly just pure, visceral anger. I don’t know whether people know, but this was an article I published a long, long time ago, but the typesetters were so incapable of taking on board the article’s title, that the running head was set as ‘Flexible Systems’ or something like that. (...) And the other reason for ‘Flexible Sexism’ was related to that and that is I think we ought to attack the citadels. These were the two big books, everybody thought they were wonderful, and in many ways they both were. But they also seemed to me to be utterly, unconsciously, deeply, sexist. And I just wanted to attack where the sources of power were in terms of the voices within geography; so I did. (MASSEY, et all, 14
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são culturalmente especícas no espaço-tempo. O texto Flexible Sexism traz com toda força os elementos das epistemologias feministas para sustentar as críticas de Doreen Massey (1991b) à Harvey (1989) e Soja (1989). Já no início do artigo ela esclarece que o texto não se propõe a realizar uma revisão completa
apresentando uma historicidade linear, impedindo a
das obras escolhidas, Condition of Postmodernity e Postmodern Geographies, mas iniciar um debate em
reduzem as ‘suas’ versões sobre a modernidade a uma biograa do capitalismo e isso faz com que estruturas como o patriarcado apareçam apenas como acessórios, já que a centralidade está pautada no sistema de capital. Massey (1991b) ainda menciona que Harvey (1989) considera as políticas feministas como sendo de escopo limitado, pois são consideradas de caráter local, enquanto as relações de classe são consideradas por ele de caráter global. Doreen Massey revela que ambos os autores, Harvey e Soja, utilizam sua posição ‘magistral’, a partir das experiências como âneurs, de arrogar o olhar
torno de uma questão especíca que foi despertada para ela: o feminismo. Muito importante ressaltar que ela entende aqui o feminismo como algo mais amplo do que a ideia de gênero, mas em um movimento cientíco e político que há muito já avançava para além das ideias modernas. Assim, para ela, as duas obras que se comprometiam a
discutir modernidade/posmodernidade na geograa eram, no mínimo, sexistas, na medida em que nenhuma delas considerou uma literatura já produzida anteriormente pelas feministas, sendo simplesmente desprezada. Três direções de argumentos criados por Doreen Massey (1991b) podem ser vericados. A primeira crítica é que ambos os autores, Harvey e
emergência de outras vozes e contradições e defende a ideia da necessidade de contempla as diferenças. Além disso, a linguagem utilizada nas obras em discussão por ela evidencia que o ‘olhar’ que conta na narrativa é universalizado pelo autor. Ela argumenta que os autores
panóptico e arrogante de tudo poder explicar de modo
universalizante, sem considerar as posições de outros grupos e locais.
Soja, assumem a universalidade de subjetividades e processos sociais. Os sujeitos apresentados por esses
O texto crítico de Massey (1991b) recebeu muitas respostas, inclusive do próprio David Harvey (1992), com um artigo sob o título Postmodern morality plays. Doreen Massey enfrentou os debates e como feminista, sabia
autores são descorporicados em termos de raça e gênero,
o poder que as narrativas hegemônicas possuem de
sendo que os autores assumem um sujeito genérico, que é ocidental, masculino, branco e heterossexual como
pessoas ou grupos marginais. Assim, ela manteve sua
modelo para a generalização de suas teorias. Para Doreen Massey, livros que se aventuraram a discutir a pós-modernidade, deveriam contemplar sujeitos que não fossem protagonistas da modernidade. A segunda linha de críticas às referidas obras se baseia na ignorância dos autores da produção cientíca feminista que tratava da pós-modernidade. Ambas as obras apresentam como ‘descobertas’ ou ‘novidades’ muitos aspectos que já haviam sido antecipados na literatura feminista. Um exemplo dado pela autora é a ideia do conhecimento situado já trabalhada por Haraway (1988). Segundo Doreen Massey a ignorância desses autores sobre elementos que não eram mais novidades está baseada na sua desconsideração das vozes femininas na produção cientíca. A terceira linha de críticas sobre ambas as obras em foco é a consideração simplista de que as relações de poder e políticas estão apenas em torno do capitalismo,
excluir outras versões de realidade, produzidas por outras postura crítica para desaar os discursos monolíticos e criar possibilidades de debates. Quando questionada em 2009 em Glasgow sobre a situação entre o sexismo e o espaço acadêmico, ela argumenta: Eu tive muita sorte que a Open University seja bastante progressiva. Mas, nas universidades e instituições acadêmicas, em geral, permanece um esquecimento penetrante das questões do sexismo. A desconsideração das mulheres, simplesmente não nos vendo ou ouvind o, ainda continua. E de forma mais contraditória, para se juntar a eles [referindo-se às posições masculinas] em comitês ‘importantes’ (auto-importantes), para jogar o jogo, você ainda (depois de todo esse tempo) tem que jogar de um determinado modo (pomposo,
excessivamente sério, auto-congratulatório, competitivo - embora de uma maneira muito ‘civilizada’!). Isso é contrário a tudo o que o feminismo deve defender. Há também uma questão que me preocupa recentemente. E a questão é como nós – e isso deveria incluir homens também - anti-sexistas, geógrafos/as feministas, acadêmicos/as, deveríamos abordar questões fora da academia também15. (MASSEY, et all, 2009, p. 7)
deixando de lado outras importantes dinâmicas de
sexismo, racismo e homofobia, reduzindo tais processos com simples efeitos secundários do sistema capitalista. Doreen Massey entende que essas outras dinâmicas não podem ser analisadas como sub-produtos, mas componentes dos processos de produção e reprodução social.
Massey (1991b) acusa ambas as obras de uma narrativa completamente coerente e fechada,
Suas palavras denotam a responsabilidade que o I have been lucky in th at the Open University is pretty progressive. But in universities and academic institutions more generally there remains a pervasive oblivion to issues of sexism. The discounting of women, simply not seeing or hearing us, still goes on. And more contradictorily, to join them on ‘important’ (self-important) committees, to play the game, you still (after all this time) so often have to play in a way (pompous, overly serious, self-congratulatory, competitive – though in a very ‘civilised’ way!) that is counter to everything feminism should stand for. There is also one issue that has been troubling me just recently. And that is how we as – and this would include men as well – anti-sexist, feminist geographers, academics, should be 15
Dossiê Doreen Massey
saber acadêmico possui na transformação social e, principalmente, a necessidade do espaço acadêmico ser compreendido pelas pessoas que fazem parte
comunicar seu profundo equívoco teórico e metodológico.
dele, produzindo outras geometrias de poder, capaz
de impulsionar os grupos menos favorecidos em suas posicionalidades.
Considerações nais Escrever este artigo evidenciando a identidade
feminista de Doreen Massey foi uma imensa satisfação para nós do Grupo de Estudos Territoriais (GETE). Não apenas por cumprir uma tarefa prometida à nossa querida Doreen Massey, mas por trazer para as geometrias de poder que formam os espaços acadêmicos a potência das epistemologias feministas por meio das proposições teóricas de Doreen Massey. Ao realizar as conexões das epistemologias feministas às teorias espaciais que ela realizou durante mais de trinta anos cumprimos a tarefa de evidenciar que a ciência, os enunciados e a forma como tecemos nossas imaginações geográcas estão embebidas de experiências concretas. Enm, àqueles que hoje admiram e utilizam as teorias de Doreen Massey, mas desprezam a importância das epistemologias feministas nas transformações do discurso cientíco geográco, temos o imenso prazer de
Referências
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Dossiê Doreen Massey
GEOgraphia Niterói, Universidade Federal Fluminense ISSN 15177793 (eletrônico) Vol.19, No40, 2017: mai./ago.
Dossiê Doreen Massey
O QUE DOREEN DIRIA SOBRE NÓS? UM ENSAIO SOBRE A PEDAGOGIA DA ESPERANÇA* Ana Angelita da Rocha**
Resumo: Este ensaio investe na análise da produção bibliográca de Doreen Massey, com atenção focada nos títulos dirigidos aos cursos para o segmento do Ensino Superior, ministrados ou organizados por ela nas décadas de 1990-2000, na Open University (em Milton Keynes, Reino Unido). A aproximação a esses trabalhos – ainda sem tradução para o português – procura inventariar os aspectos pedagógicos nas construções epistemológicas da autora. O estudo da face pedagógica de Massey, ao considerar seus textos didáticos, busca um painel de ações, recursos e metodologias para uma possível adoção dos conteúdos da Geograa passíveis de serem inseridos na Educação Básica. Portanto, não se trata de uma incorporação vertical da academia para a escola, mas um estudo cujo inventário de procedimentos possa ser inspirador para a epistemologia escolar, considerando a potencialidade da concepção espacial desenvolvida pela a autora (MASSEY, 1995, 2004, 2006, 2008). Palavras-chave: Doreen Massey, Espaço, Ensino de Geograa.
WHAT WOULD DOREEN SAY ABOUT US? An essay on the pedagogy of hope Abstract: This essay invests in the analysis of Doreen Massey’s bibliographic production, with attention to the titles directed to Higher Education courses, taught or organized by her in the decades of 1990-2000, at the Open University (in Milton Keynes, UK). The approach to these works - without translation into Portuguese - seeks to set pedagogical aspects d own in the author ‘s epistemological constructions. The study of the pedagogical bias of Massey provides a set of actions, resources and methodologies for a possible syllabus of Geography that can be adopted in elementary edu cation. Therefore, it is not a vertical incorporation of the academy into the school, but a study whose inventory of procedures can be inspiring for school epistemology, considering the possibilities of the spatial conception (MASSEY, 1995, 2004, 2006, 2008). Keywords: Doreen Massey, Space, Geography Education. ¿QUÉ DIRÍA DOREEN SOBRE NOSOTROS? Un ensayo sobre la pedagogía de la esperanza Resumén: Este ensayo realiza um análisis de la producción bibliográca de Doreen Massey, con la atención enfocada en los títulos dirigidos a los cursos para el segmento de la Enseñanza Superior, impartidos o organizados por ella en las décadas de 1990-2000, en la Open University (en Milton Keynes, Reino Unido). La aproximación a esos trabajos - aún sin traducción al portugués - busca inventariar los aspectos pedagógicos en las construcciones epistemológicas de la autora. El estudio de la cara pedagógica de Massey, al considerar sus textos didácticos, busca un panel de acciones, recursos y metodologías para una posible adopción de los contenidos de la Geografía pasibles de ser adoptados en la Educación Básica. Por lo tanto, no se trata de una incorporación vertical del ámbito académico a la escuela, sino un estudio cuyo inventario de procedimientos puede ser inspirador para la epistemología escolar, considerando la potencialidad de la concepción espacial desarrollada por la autora (MASSEY, 1995, 2004, 2006, 2008). Palabras clave: Doreen Massey, Espacio, Enseñanza de Geografía.
________________________________
*Este ensaio apresenta a questão central da pesquisa “Lições de Doreen Massey: por uma agenda da Geograa Escolar”, submetida ao Programa de Pós-Graduação de Geograa (UFF), na condição de estágio de pós-doutoramento, sob a supervisão do Professor Doutor Rogério Haesbaert, no período de 2016-2. Cabe sinalizar que, no texto, procuro reetir brevemente a respeito do potencial pedagógico presente na extensa produção bibliográca da geógrafa britânica. **Professora do Departamento de Didática da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, integrante do NEC/UFRJ e NUREG/UFF. Email:
[email protected]
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./a go.
Introdução O objetivo fundamental da educação - perguntar, ao invés de aceitar acriticamente - é particularmente poderoso quando o X da questão seja a natureza das nossas imaginações geográcas. Doreen Massey, 2006 (tradução livre)1 .
Movido pela conjuntura das incertezas e dos desencontros entre a política e a esperança, este ensaio ambiciona, sobretudo, uma escrita solidária às resistências – face à avalanche conservadora que rasga as cicatrizes da história recente da república brasileira. Inspirada na Pedagogia da Esperança de Paulo Freire (1997), o objetivo desse ensaio é, mesmo que brevemente, traçar um perl da pedagogia de Doreen Massey. Sua marcada coerência militante – que não separa a teoria da sua concepção política de espacialidade – nos brinda com princípios de uma pedagogia espacial da emancipação. Neste ensaio, proponho, em um primeiro momento, narrar brevemente suas marcas biográcas atuantes em suas reexões teóricas, com o intuito principal de reetir resumidamente as inuências no campo geográco. Nas seções seguintes, procuro rascunhar uma análise pedagógica de três materiais desenvolvidos e editados por ela e por seus parceiros na Open University , onde produziu recursos didáticos para o atendimento dos cursos (de Ensino Superior na modalidade de Educação
a Distância). Assumo aqui, a princípio, minha profunda admiração pelas suas concepções ideológicas e pedagógicas sobre o espaço. Por esta razão, entendo que o momento é mais que oportuno para nos debruçarmos sobre seu legado que infelizmente assume aqui a ambivalência da luta e do luto. Da luta que se desdobra em diferentes formas de resistência a violentos projetos autocráticos que desestabilizam qualquer princípio de democracia. De luto, em função da prematura e repentina passagem de Doreen Massey, provocando a sincera comoção na comunidade geográca e nos movimentos de esquerda em diversas partes do mundo. Sob esses sentimentos paradoxais, vale aqui acolher o otimismo de Doreen Massey, resumido em suas “geograas solidárias”, pois neste contexto político obscuro devemos celebrar o ato mais fascinante da recente história do protagonismo estudantil brasileiro, resultante das ocupações das escolas públicas, motivadas por uma agenda contundente de demandas populares. Com uma extensa produção bibliográca coerente com sua biograa política, Doreen Massey é um expoente contemporâneo da Geograa Humana, cuja trajetória foi recentemente tratada no livro Spatial Polítics – Essays for Doreen Massey 2 , organizado por David Featherstone e Joe Painter (2013). Em tempo no qual a esperança é ofendida, compete aqui perguntar o que Doreen diria a respeito de nós.
Figura 1 - Ocupação do Colégio Estadual Visconde de Cairu, Rio de Janeiro, maio de 2016.
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Este ensaio apresenta a questão central da pesquisa “Lições de Doreen Massey:
“The crucial aim of education – to question rather than to accept without further thought – is particularly powerful when what is at issue is the nature of our geogra1
por uma agenda da Geograa Escolar”, submetida ao Programa de Pós-Graduação de Geograa (UFF), na condição de estágio de pós-doutoramento, sob a supervisão do Professor Doutor Rogério Haesbaert, no período de 2016-2. Cabe sinalizar que, no texto, procuro reetir brevemente a respeito do potencial pedagógico presente
Dossiê Doreen Massey
A coerência entre teoria e prática política A reunião, que iremos participar no domingo, forma parte de um dos grupos de trabalho estabelecidos na Ocupação LSX e seu objetivo é precisamente reetir sobre a questão da espacialidade. O foco s eria a relação entre espaço e democracia. Trata-se de uma atividade minúscula entre tantas outras, mas com o intuito de transcender o debate sobre a crise econômica. As “ideias”, incluindo as ideias sobre o espaço agora, sem dúvida, são cruciais. (MASSEY, 2013: 251, tradução livre)3.
O depoimento, redigido pela própria professora Massey, aconteceu no contexto dos movimentos de ocupação, no inverno londrino de 2011. Naquela ocasião, Doreen Massey rascunhava as esperanças emergentes dos processos de resistências à autoritária avalanche liberal de resgate às instituições nanceiras. A resistência começava por seu próprio corpo. Frágil, ela o desaava além do frio, para visitar as ocupações e ali presenciar a construção das pautas. Pelos múltiplos “re-existires 4” dessa imagem, essa escrita vai a Massey, não somente como percurso de homenagem, mas para remediar a nossa despedaçada esperança. Falamos de Massey porque sua biograa desobedeceu a fronteira entre a ação e o pensamento. Precisamos da sua desobediência, porque pensar o espaço hoje é pensar em projeto de democracia. Massey, anal, fez de sua vida o ato de pensar-agir porque para ela as questões vêm da rua e emergem da ação. Nascida em bairro proletário de Manchester, em 1944, Doreen Massey viveria (e mais tarde reconheceria) os benefícios do estado de bem-estar social, pois é nesse contexto que se torna uma das primeiras mulheres de sua família a graduar-se no ensino superior, sendo bolsista da prestigiosa e elitista Universidade de Oxford. Aliás, foi onde viveu os muros impostos pelas origens sociais e canalizou esses sentimentos para construir suas ferramentas de interpretação do mundo. Em 1966, graduou-se em Geograa. Também como bolsista entre 1971-1972, fez mestrado em Economia e Ciência Regional na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. Ao comentar sobre essa passagem, ironizava, ao retratá-la como uma ambição de “conhecer o inimigo por dentro”. Durante esse período, ela cursou uma disciplina oferecida por Louis Althusser e, além de aprofundar seus estudos marxistas, estabeleceu laços de amizades com colegas que durariam por toda a sua vida. “La reunión en la que vamos a tomar parte el domingo forma parte de uno de los muchos grupos de trabajo estabelecidos al amparo de Occupy LSX, y su objetivo es precisamente reexionar sobre este tema de la espacialidad. Se centra en la relación entre espacio y democracia. Se trata de una actividad minúscula entre tantas otras en medio de la confusión y con el intento de transcender el debate sobre la crisis económica hasta? llegar al debate sobre las grandes políticas subyacenves. Las “ideas”, incluyendo las ideas sobre el espacio ahora son, sin duda alguna, cruciales”. (MASSEY, 2013:251) 4Expressão inspirada em Porto Gonçalves, para quem a ambivalência da resistência e da existência é princípio fundador dos movimentos sociais. O neologismo é aplicado pelo autor em muitos trabalhos e palestras referentes aos povos dependentes 3
Entre 1968 e 1980, trabalhou no Centre For Environmental Studies, autarquia pública que produziu impactantes pesquisas de planejamento e inovação tecnológica. Contudo, a autonomia das investigações incomodou o governo, o que levaria ao encerramento de suas atividades pelas mãos de Margaret Thatcher. Depois de um período de instabilidade e precariedade de seus empregos, submeteu-se a processo seletivo para a Open University , um projeto de ensino superior com orientação mais democrática, caracterizada como instituição focada na educação a distância, cujos alunos - trabalhadores, presidiários, soldados – dicilmente teriam acesso às universidades presenciais britânicas. Massey assumiu o posto de catedrática em 1982, sem mesmo ter o título de doutorado, e contribuiu decisivamente para a vertente humana do Departamento de Geograa, na Faculdade de Ciências Sociais. Entretanto, cabe sinalizar que Massey, em suas análises, jamais separou a natureza da sociedade e tal perspectiva pode ser evidenciada na sua leitura crítica da concepção do espaço como xidez 5 (2004:14). Nos seus estudos, sublinhou que usualmente as Ciências Sociais consagram o discurso temporal do espaço, uma conversão que mais provocou a cisão do que a indissociabilidade no emprego dos conceitos de espaço e tempo. Ela lamentava que muitas imaginações geográcas haviam sido concebidas (não raras vezes) como sequências históricas, encarnando o discurso do “progresso” ou, em suas palavras, as diferenças entre os lugares residiriam “no lugar em que ocupam na la da história” (2006:5). Desse modo, a dicotomia entre espaço e tempo se funda numa redução desses conceitos a partir de metáforas como “modernização”, “desenvolvimento”, “atraso”, “centro”, “periferia”, entre outros: O que se desenvolveu dentro do projeto de modernidade, em outras palavras, foi o estabelecimento e a (tentativa de) universalização de uma maneira de imaginar o espaço (e a relação sociedade/espaço) que armou o constrangimento material de certas formas de organizar a relação entre sociedade e espaço. E que ainda permanece hoje em dia. (2008:103)
O projeto de revisão da concepção do espaço passa pela superação da pauta essencialista e da cisão espaço-tempo. Massey procurou, assim, enaltecer a multiplicidade e a contingência e, não por acaso, questionou as perspectivas que concebem o espaço como absoluto e/ou as que procuram a denição de representação do espaço como apreensão objetiva do real. Compartilho aqui a suspeita de que a sua atenção às muitas subjetividades e a sua profunda preocupação com Cabe sinalizar que, no decorrer de sua produção, Massey incorporou críticas no desenvolvimento de sua concepção de espaço. Outro movimento foi produzido no “For space”, ao operacionalizar o sentido de espaço articulando o físico e o humano. No material didático “Material Geographies”, é possível inferir tal argumento, ao identicar que sua concepção de globalização envolve indissociavelmente a dimen5
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a injustiça social repercutem no seu projeto de concepção de espaço porque ela prioriza o debate político-discursivo. Tanto nos ensaios e artigos da década de 1990/2000 quanto na sua obra traduzida (como Pelo espaço – uma nova política da espacialidade ), é possível identicar uma proposição substantivamente política na abordagem do espaço/espacialidade, termos denidos por ela como “intercambiáveis” (1992; 2004; 2008). Ou seja, textualmente como substantivo e verbo, espaço/espacialidade/espacializar são concepções que ritualizam a coetaneidade 6 da vida. Podemos ler aqui que há uma forte sugestão para compreender os efeitos de sentido de espaço que, por sua vez, escapariam a qualquer tentativa ou estratégia de representação, de captura, de imobilidade. Nas palavras da autora:
Citando Edward Soja, informa que o estruturalismo havia sido “uma das vias mais importantes do século XX para a rearmação do espaço na teoria social crítica”. (SOJA, 1989 apud MASSEY, 2008:18). Nessa direção, o legado da abordagem estruturalista do espaço favoreceu a construção de modelos determinados (positivados), condicionados pela variável do tempo. Em Pelo espaço, Massey se dedicou em compreender o legado da abordagem estrutural de explicar o mundo que promoveu a consolidação da Geograa como identidade disciplinar. Não por acaso, com esta discussão, a autora produziu reexões acerca da permanência deste modus operandi de promover sentidos espaciais nas teorias que valorizam a sinonímia entre espaço e representação. Tal argumento é sugerido, por exemplo, na seguinte armação:
O espaço é a esfera da possibilidade da multiplicidade na qual distintas trajetórias coexistem, é a esfera da possibilidade da existência de mais de uma voz. Sem espaço não há multiplicidade, sem multiplicidade não há espaço. Se o espaço é indiscutivelmente produto de inter-relações, então, isto deve implicar na existência da pluralidade. Multiplicidade e espaço são coconstitutivos. (MASSEY, 2004: 8).
A armativa acima, com efeito, valoriza a multiplicidade como pauta de interpretação do espaço que incorpora a contingência, afastando-se do modelo explicativo de autorização da dicotomia espaço e tempo, o que, de certo, está a favor da pauta da democracia radical 7 (MASSEY, 1992). A garantia de que “não há multiplicidade sem espacialidade”, e vice-versa, absorve uma qualidade de crítica às formas essencialistas que propõem o esvaziamento de uma abordagem da justaposição, de rizomas e de incompletudes presentes em abordagens teórico-metodológicas, digamos, “mais próximas” ao pósestruturalismo. Emprego o termo “próximo” uma vez que a autora não nega a contribuição das abordagens estruturalistas do pensamento social, em especial, no que diz respeito ao modelo explicativo de interpretação geográca, pautada profundamente em estruturas de classicação. No capítulo ironicamente intitulado “A morada-prisão da sincronia”, Massey considera que a união entre estruturas e pensamento social conferiu status cientíco à Geograa. O conceito de coetaneidade (coevalness) é revisto por Massey (2008a) a partir de Johannes Fabian, para quem: “a coetaneidade tem como objetivo reconhecer a contemporaneidade como condição para o verdadeiro confronto dialético” (FABIAN, apud. MASSEY, 2008 a, p; 109). Massey o revisitou como estratégia de armar a indissociabilidade espaço-tempo, para indicar os limites da interpretação da Geograa na Modernidade que hegemonizou uma leitura de progresso e desenvolvimento e que garantiu uma visão colonizadora do outro. Para a autora, coetaneidade “diz 6
respeito a uma postura de reconhecimento e respeito em situações de implicação
mútua. É um espaço imaginativo de envolvimento: fala de uma atitude. E é informado por uma conceituação prática de espaço e tempo” (2008 a:109). De tal forma que coetaneidade pode ser interpretada como perspectiva procedimental que impediria uma classicação apriorística e verticalizada do “outro”, de u ma forma de subjugação espacial. 7Chantal Mouffe e Ernesto Laclau difundiram a categoria de “democracia radical” que, em poucas palavras, signica a necessidade de interpretar a democracia fora do modelo de consenso, ao armarem que se trata de um problema do terreno do antagonismo. Portanto, o projeto de democracia radical (já citado aqui nesta pesquisa) não busca sublimar o conito, mas reconhecê-lo como constituinte da decisão e
É conceituação de espaço que, uma vez mais, é realmente uma residualização e deriva do pressuposto de que espaço se opõe a tempo e não tem temporalidade. Pensado desta maneira, “espaço” realmente seria domínio do fechamento, e esse, por sua vez o transformaria no domínio da impossibilidade do novo e, portanto, do político (2008:66).
O compromisso com o antiessencialismo, como arma Massey, é dependente de uma imaginação espacial política e que, por esta razão, interroga a centralidade do sujeito ou o de identidades plenamente constituídas. 8 Ou, conforme suas palavras: “devemos ser prudentes a respeito de reivindicações de autenticidade baseadas em noções de identidade imutável” (2004:9, grifo nosso). Mais à frente, também concordando com Laclau (apud Massey), arma que uma abordagem alternativa do espaço procura concebê-lo como “aberto, não nalizado, sempre em devir” ou seja, como um pré-requisito para a história ser aberta e, assim, após os argumentos de Laclau 9, um pré-requisito para a possibilidade da política” (2004: 11). Massey pautou a sua ação/pensamento no antiessencialismo com contundência, por exemplo, em 1991, com o artigo Flexible feminism. Nesse artigo, procurou sinalizar a incompleta leitura crítica a respeito da modernidade no campo da Geograa, por desconsiderar, sobretudo, o debate sobre gênero. Para essa apreciação, Massey focou sua revisão em Postmodern Geographies, de Edward Soja (1989) e The Condition of Postmodernity, de David Harvey (1989), por considerar que ambas são centrais para a visão disciplinar sobre a modernidade. Interessante notar que ela advertiu que tal artigo não dizia Massey, ao discorrer sobre a incompletude da política da identidade, cita os estudos de Mouffe, em especial sua discussão sobre constituição de subjetividades políticas. Massey, concordando com Mouffe, considera que há um modo paralelo de conceber as identidades/entidades políticas e o espaço e enfatiza que o espaço participa da constituição de subjetividades políticas (2008:9). 9Massey, naquela citação, se referiu aos trabalhos de Laclau (1990), no qual se discute a democracia radical, a partir da negação teleológica do pensamento, marcada em perspectivas fundacionalistas da inteligibilidade da política. Em outras palavras, para Laclau seria necessária uma versão aberta do futuro para conceber a democracia radical. Concordando com esta radicalidade, o espaço/espacialidade de Massey 8
Dossiê Doreen Massey
respeito exclusivamente aos dois livros, mas também a outros trabalhos, incluindo os seus, que omitem ou, de alguma maneira, se descuidam da questão da diferença. Anal, Massey, ao se dedicar aos movimentos feministas e se ocupar da discussão de gênero a partir da perspectiva geográca, procurou denunciar os limites da leitura do espaço ao não se debruçar sobre o debate das estratégias de conceber a relação entre sujeito e espaço. Isso denota, mais uma vez, sua profunda atenção para operações intelectuais convergentes às demandas políticas. Até este instante, preocupei-me em narrar a convergência entre sua experiência e seus sentimentos com a sua prática intelectual e convém agora anunciar resumidamente sua tática docente, ou melhor, a prática pedagógica de comunicar sua concepção provocativa de espaço. Com efeito, condizendo com sua criativa e autêntica escrita, Massey se debruçou sobre a produção dos materiais didáticos dedicados aos cursos a distância da Open University . De fato, como uma das atribuições referentes à natureza da instituição, Massey buscou didatizar sua complexa apreensão do espaço, de maneira interativa, sempre ocupada em promover uma relação horizontal com o seu aluno. Isto pode ser percebido com respeito aos processos autônomos de aprendizagens. Na próxima seção, procurarei demonstrar essa sinergia entre
epistemologia e didática, a partir da análise de alguns exercícios que ela propõe nos seus materiais impressos, dedicados aos referidos cursos.
A pedagogia da esperança como lugar do encontro Este ensaio investe na análise da produção bibliográca da autora, com atenção focada nos títulos dirigidos aos cursos ministrados ou organizados por ela na década de 1990, na Open University (em Milton Keynes, Reino Unido). A aproximação a esses trabalhos – ainda sem tradução para o português – procura inventariar os aspectos pedagógicos nas construções epistemológicas de Doreen Massey. O estudo da face pedagógica de Massey, ao considerar seus textos didáticos, busca um painel de ações, recursos e metodologias para a adoção dos conteúdos da Geograa passíveis de serem inseridos na Educação Básica, considerando inicialmente, nesta seção, a análise de dois títulos editados pela autora na série de livros didáticos: The Shape of the world: explorations in Human Geography: Geographical Worlds, (1995) e A Place in the World?: Places, Cultures and Globalization, (1996).
Figura 2 - Capas de dois livros editados por Doreen Massey (1995-1996), Série The Shape of the world: explorations in human Geography.
Publicados entre 1995-1996, em parceria com John Allen e Pat Jess, respectivamente, esses dois títulos compõem a série didática, desenvolvida com o objetivo de abordar os principais temas do pensamento geográco que, na compreensão dos autores, seriam: o espaço, o lugar e o ambiente. A série é composta por cinco volumes
para atender aos objetivos do curso, de mesmo nome, ministrado pela Open University – caracterizada como instituição de prestígio no segmento de educação a distância em nível superior. Para Albet e Benach (2012), organizadores do livro Doreen Massey: un sentido global del lugar , Massey
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imprimiu suas marcas nessas publicações, ao priorizar a complexidade de sua concepção do espaço no conteúdo do projeto didático e na sua organização coletiva. Eles resumiram, da seguinte maneira, o processo de construção destes textos: Antes de dar um texto por acabado e denitivo, se dão diversas etapas imprescindíveis, por decisão coletiva. Primeiro, convida-se uma pessoa a elaborar um primeiro rascunho, cujo tema também é previamente decidido de maneira coletiva. Tal rascunho recebe as críticas construtivas do grupo para que seja reescrito e submetido novamente à revisão até alcançar a versão nal. O objetivo não é teorizar diretamente, nem tampouco apresentar estudos de caso: trata-se de pensar mediante temas e conceitos e expor como estes são desenvolvidos espacialmente (2012:22, tradução livre)10 .
Cabem aqui dois comentários sobre o fragmento acima. O primeiro trata da dimensão criativa de Massey para editar o texto, respeitando a dinâmica coletiva e o rigor teórico-metodológico. No segundo, em que divirjo parcialmente da citação, identico a escrita pedagógica de Massey centrada nos estudos de casos e no cuidado conceitual. Ao analisar os capítulos de sua autoria, em dois volumes da série The Shape of the world: explorations in human Geography, noto que os estudos de caso são tanto os instrumentos didáticos como as operações conceituais, com o m de desenvolverem a aprendizagem espacial. Ou seja, sob uma reexão pedagógica, suspeito que Massey recorreu ao estudo de caso como procedimento didático e, como tal, vejo que este se constitui como uma ferramenta de comunicação e de popularização de seu pensamento. Interessante observar algumas considerações a respeito da natureza didática dos materiais impressos para a Educação a Distância (EAD). A totalidade da coleção e do curso é elaborada por pesquisadores que farão transposição didática de seus objetos. Estamos de acordo com a noção de que livro didático é um gênero textual. O livro dedicado exclusivamente ao EAD obedece às características especícas para atender a modalidade. Por esta razão, é um gênero textual que combina recursos voltados para a interatividade com o leitor, sem descuidarse do rigor acadêmico, por conta do nível de formação. Em outras palavras, há a necessidade da contextualização dos conteúdos, da experiência cotidiana, para garantir a interatividade e a dialogicidade do texto. Por isso, uma das marcas textuais é a reiteração, além do que há diferentes recursos que enfatizam a síntese dos conteúdos. Portanto, podemos identicar “Antes de dar por bueno y denitivo un texto, se llevan a cabo diversos pasos imprescindibles encargar, por decisón colectiva, a una persona la elaboración de un primer borrador sobre un tema previamente decidido también de manera colectiva; dicho borrador recibe las críticas constructivas de conjunto del equipo para que sea reelaborado y sometido a nueva revisión antes de alcanzar la versión nal. El objetivo no es ni teorizar directamente ni tanpoco presentear estudios de casos: se trata de pensar a través de los temas y conceptos y de exponer cómo estos se desarrollan 10
no capítulo de Doreen Massey as seguintes operações didáticas: a descrição, a comparação e a enumeração dos fatores e das causas da dinâmica espacial. Por esta razão, identicamos o estudo de caso como método de aprendizagem privilegiado pela autora em suas obras didáticas. Desse modo, a seleção de um determinado conteúdo ou o emprego de determinado conceito, por exemplo, é uma resposta ao cenário político, ao referendar-se em experiências cotidianas, por meio de exemplicações nos estudos de caso. Uma leitura desaante que inspira o constante cuidado com a escrita sobre os sujeitos e suas demandas em torno da produção do espaço. Para ns de sustentar tal análise, convém neste momento apresentar um enunciado de seus exercícios: “Agora, faça uma pausa, de poucos minutos, e considere como você concebe a seguinte armativa: ‘a identidade europeia deveria ser melhor denida?’” (1996:172, tradução livre) 11. A estratégia da pausa pode ser tomada como uma proposta didática ocupada com a interação horizontal com o leitor, buscando uma escrita dialogada. De acordo com uma perspectiva de análise do texto, reconheço nas “pausas” uma intertextualidade e noto que a autora as usou para inserir novos vocábulos/categorias ou denições. Ou seja, percebo nesses mecanismos a reivindicação de um momento didático para interpor com polidez a “voz” do leitor. Outro movimento de interação com o leitor diz respeito ao uso da primeira pessoa do plural na escrita de seus textos, como um recurso de proximidade. Compete aqui compreender melhor o impacto disso nos seus textos pedagógicos. Vale, contudo, poucas palavras sobre o livro didático no mercado. Empiricamente, consideramos o problema da autoria dos livros didáticos, porque muitas vezes eles são subordinados aos projetos das editoras, como atestam Verónica Hollman e Carla Lois (2015) nos seus estudos sobre o livro didático na Argentina. Sene (2014) também denunciou uma visão do livro didático na ciência geográca, no que ele percebeu como “obramenor”, em referência ao processo de autoria e da especicidade desse gênero no campo disciplinar, se assim o quisermos compreender. Nocasodaqueleseditados porMassey,particularmente nos capítulos escritos sob sua assinatura, ela mantinha os traços e as marcas pessoais de sua escrita – não apenas no uso de uma narrativa de aproximação ao leitor, às vezes com o emprego da primeira pessoa, mas na organização do material coletado por ela em viagens e experiências. Em resumo, a sua pedagogia imprimiu rasgos biográcos, conferindo de fato uma autoria que foge da impessoalidade tão marcante nos livros didáticos. Com “Pause here for a few minutes and consider how you think ‘European identity might
11
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efeito, identico aqui uma particularidade de sua didática coerente com um projeto mais horizontal e democrático de ensino-aprendizagem. Isto é, a despeito de ser um texto ocupado com a educação a distância, Massey ofereceu a dimensão da experiência com seu interlocutor. Para evidenciar tais aspectos, gostaria de brevemente analisar o emprego da charge no volume A Place in the World?: Places, Cultures and Globalization (1996). A charge é inserida no capítulo The conception of place, quando a autora didatiza sua teoria sobre lugar, que é precedida pelo seguinte parágrafo: Cada um de nós, como indivíduos, também possui nosso próprio espaço de atividades. Você poderia pensar o seu e compará-lo com os das outras pessoas. O mais básico é provavelmente um conjunto de caminhos e lugares bastante locais, pois o cotidiano é vivido entre a casa, a escola, o trabalho, a igreja e o clube, com viagens ocasionais a uma cidade vizinha, ou a um hospital, talvez. Este padrão pode, por sua vez, ser pontuado por excursões muito mais longe - com amigos ou parentes para uma visita, para viagens de m de semana ou para acompanhar sua equipe para um jogo fora de casa. (1995:55, tradução livre) 12.
Por m, a inserção do recurso da charge na sequência de um texto que prioriza o rigor acadêmico convida o leitor a dedicar-se poucos minutos para identicar e explorar as suas próprias conexões com lugares. No capítulo The Contestation of Place, Massey optou por distribuir os conteúdos em quatro estudos de caso. Cabe sinalizar que na seção The Openness of Place, a autora pedagogiza seus resultados de pesquisa sobre parques tecnológicos. Somado a esse aspecto de divulgação cientíca, vem outro que igualmente nos importa, isto é, como ela pedagogiza sua inserção política. Massey problematizou a agenda feminista na discussão dos sentidos atribuídos ao “lar” no capítulo mencionado, precisamente na seção chamada de Empirical Critique, no qual articulou o debate do feminismo às teorias e à política da diferença, centrando-se na geograa de gênero. Convém aqui rapidamente a reprodução de um único trecho dessa rica seção: “A questão central para esses críticos é que essa maneira de caracterizar o lugar como uma casa, como uma estabilidade imutável para ser observada, converte-se numa perspectiva masculina” (1995:65, tradução livre) 13.
Figura 3 - Extraído do capítulo “The Contestation of Place”, (1995:56).
“Each of us, as individuals, also has our own activity space. You could think of your own and them compare it with that other people. The basic shape is probably a set of fairly local paths and places as normal daily life is lived between home, school, work, church and club with occasional trips further aeld to a neighbouring town, or to a hospital, maybe. This pattern may in turn be punctuated by forays much further aeld – to friends or relatives for a visit, for weekend excursions, or to follow your 12
“The deeper point is made by these critics is that this way of characterizing place as home, as an unchanging stability to be looked back on, to be returned to is itself 13
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Não raras vezes, ela propôs uma pausa para inserir uma atividade que revisasse ou introduzisse o novo conceito. No início de cada capítulo, ela costumava organizar os argumentos a partir de perguntas, um recurso didático que permite a diagnose dos saberes prévios para sustentar novas aprendizagens. Em Pelo Espaço , que não é um livro didático, ela apresentou momentos que alimentam interações pedagógicas com seu leitor ao promover recursos de intertextualidade. Manipulando, por exemplo, diversos recursos literários, a autora trabalhou com distintas tradições teóricas para sustentar o protagonismo da relação espaço-tempo no pensamento social. Além dessa publicação, outros trabalhos e denições (como a “geometria do poder”) da autora permitem aplicar a metonímia da geograa losóca, como anunciou Arun Saldanha (2013), no artigo intitulado. Cabe sinalizar que o argumento da multiplicidade em Massey (2008:19) mobiliza um projeto de compreensão de ruptura com o determinismo, presente, por exemplo, em operações de signicação do espaço, incluindo aquelas pedagógicas na sua visão da Geograa. Ou seja, a multiplicidade, como princípio para pensar o espaço, exige necessariamente a intencional associação espaçotempo, na medida em que impede o fechamento da interpretação dos mesmos fenômenos. A armação da multiplicidade, como princípio para interpretação do espaço-tempo, requer, no meu ponto de vista, a revisão profunda da agenda política da Geograa escolar – o que, de fato, incide na produção de uma pauta curricular que favoreça a vigilância sobre a produção do antagonismo, particularmente, em operações signicativas da causalidade que são construídas no conhecimento escolar. Com essa ordem de ideias, vejo os manuais pedagógicos de Massey com uma escrita que articula a pessoalidade da autoria ao rigor da divulgação cientíca para ns pedagógicos. Em resumo, as proposições de Massey questionam o pensamento linear e os efeitos (pedagógicos) da lógica da causalidade na Geograa. Entendo que a primazia da relação causa-consequência prejudica outras formas de conceber os sentidos espaciais. Com essa ordem de ideias, pensar o ensino da Geograa, tendo a multiplicidade como condição de sua produção, é uma pauta política a serviço da interpretação espaço-tempo que repercute em uma proposta pedagógica e epistemológica mais democrática. Tal argumento é construído sobre a análise
do material pedagógico de Massey. Suspeito que a (pouco reconhecida) dimensão pedagógica de Massey anuncia o problema do espaço quando reduzido à representação e, por esta razão, ela é inspiradora para a nossa concepção de aprendizado espacial. Em resumo: a dramaturgia do aprendizado espacial está na hegemonização de sentidos espaciais, inscrita nas práticas pedagógicas que superam a lógica de causalidade para explicar o cotidiano. Isso não seria uma exclusividade do predomínio geográco, mas frequentemente a causalidade é reivindicada pelo ensino de um conteúdo que não se ocupa com a complexidade espacial. Com este argumento, caberia interrogar se a tradição escolar da disciplina produz sentidos de espaço e, assim, o inventa e o nomeia como conteúdo a ser ensinado, na exclusão de alternativas que demandem a multiplicidade em detrimento da homogenia ou padronização dos fenômenos. Para tanto, é possível identicar no material pedagógico de Massey uma potencialidade para concepção espacial na escola. Na próxima seção, analisaremos o capítulo Geographies of Solidarities , em que Massey (2008) didatiza estratégias de autonomia e resistências em escala global, chamada por ela de “solidariedades”.
Geografas das Solidariedades: um conteúdo que potencializa o Currículo e a Geografa Esta seção tem o foco na descrição das estratégias adotadas por Doreen Massey ao eleger a Geograas das Solidariedades (tradução livre) como conteúdo. Tratase do sétimo capítulo do livro Material Geographies – a World in the Making, organizado pela autora em parceria com Nigel Clark e Philip Sarre (2008). O livro, somado ao volume Geographies of Globalization: a demanding world (BARRET etal, 2008), integra o material do curso Living in a Globalised World, oferecido pela Open University, com o objetivo de explorar questões-chaves da globalização. É interessante observar uma coesão entre as sequências de aprendizagens dos volumes analisados na seção anterior e o capítulo agora em tela, isto é, a centralidade da experiência para a inteligibilidade da vida, algo muito próximo à compreensão espacial desenvolvida por Doreen Massey. Logo, os seus textos didáticos são coerentes com a premissa do espaço como experiência.
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Figura 4 - Capa do livro, edição 2008.
O sétimo capítulo do volume traz como título Geograas das solidariedades. É organizado em seis subseções, duas leituras complementares, sete atividades e oito recursos visuais, distribuídos em quarenta e oito páginas. Por ser material e recurso de um curso a distância, a escrita é moldada com inteligibilidade didática, cuja clareza e riqueza de imagens e dados indicam a qualidade pedagógica do texto. De modo geral, ao examinar os processos espaciais, particularmente a partir da perspectiva da Geograa Econômica, o livro editado por Massey e seus parceiros indica o necessário método de “pensar geogracamente” para a compreensão das relações políticas e sociais que conguram o fenômeno da globalização. Interessante observar que o curso Living in a Globalised World é produto de um esforço coletivo entre pesquisadores para problematizar a natureza da globalização. O volume Material Geographies – a World in Making é um livro ocupado com o esforço de superar a dicotomia sociedade e natureza. Os seus organizadores armam esta intencionalidade no próprio título ao indicarem que “Embora pareça que vivemos em uma realidade pronta, nosso mundo está constantemente sendo feito e refeito. Ao escolher este título, estamos tentando chegar a um argumento muito particular [relação sociedade e natureza], que é o tema dominante do livro.” (MASSEY & CLARK, 2008:1, tradução livre) 14. A preocupação com a produção do mundo se faz na análise integradora dos movimentos físicos e humanos, com o foco nos sujeitos e nos fatores responsáveis pela globalização. Portanto, para os autores, a compreensão processual se faz nos estudos de caso, considerando especialmente os conceitos de território e uxo: “Though it may seem that we live in a reality that is ready made, our world is in fact constantly being made and remade. By choosing this title we are trying to get at a very particular argument which is the dominant theme of the book.” (MASSEY 14
Um dos argumentos centrais deste livro é que essa interação constante entre território e uxo é um aspecto crucial de um mundo globalizado. Tanto o território quanto o uxo podem ocorrer em muitas formas. Um “uxo” pode ser a transmissão instantânea de nanças, ou os movimentos físicos maciços de bens e commodities negociados. Ou pode ser o movimento das correntes oceânicas. E, no atual período de mudanças climáticas, as migrações de plantas e animais estão acontecendo de novo, como, por exemplo, algumas espécies encontram diculdades cada vez mais em sobreviver nas ilhas do Reino Unido, enquantro outras chegam. Todos esses movimentos que nos referimos aqui são o que entendemos por uxos. (MASSEY & CLARK, 2008: 3, tradução livre) 15.
Nos estudos de caso como recursos pedagógicos, há o interesse na análise dinâmica da natureza associada às práticas sociais, considerando o desenvolvimento da complexidade em múltiplas escalas. Por esta razão, os casos são apresentados como resultantes de uma geometria de poder, dos processos desiguais do capital. No capítulo “Geograas das Solidariedades”, podemos identicar novamente a potência da ambiguidade entre a pesquisadora e a autora didática, o que permite a produção de uma linguagem multimodal (verbal e não verbal) que viabiliza o ato de pedagogizar a sua interpretação do espaço. Massey sublinha as organizações populares na seção Another world is possible para vislumbrar os conteúdos geográcos dos conitos políticos e sociais, a partir de sua percepção do espaço como múltiplo.
“One of the central arguments of this book is that this constant interplay between territory and ow is a crucial aspect of a globalised world. Both territory and ow may occur in many forms. A “ow” might be the instantaneous transmission of nance, or the massive physical movements of traded goods and commodities. Or it might be the movement of ocean currents; and, in the current period of climate change, plant and animal migrations are happening again as, for instance, some species nd it increasingly difcult to survive in the islands of the UK, and yet other arrive. All 15
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Massey narra os movimentos de resistência, a partir dos casos de La Coordenadora, na Bolívia, e do Exército Zapatista, no México. Ela os narra como movimentos de esperança (2008:318). Os exercícios e as imagens são
recursos para evidenciar o protagonismo dos movimentos sociais e, então, denir a concepção dela de espaço como encontro, como coetaneidade, desenvolvida em textos como Pelo Espaço (2008a).
Figura 5 - imagem extraída da seção Another world is possible, que retrata a emergência de novos movimentos sociais na América Latina (MASSEY, 2008, p. 316)
Massey, ao desenvolver seus argumentos conceituais e narrar esses fatos, frequentemente interroga seu leitor, o interpela a comparar a experiência vivida ao dos personagens narrados: “Como você pode argumentar contra a crescente interligação do mundo?” (2008:320, tradução livre) 16. Na contextualização do debate em que se insere tal interrogação ao seu leitor, Massey desenvolve associadamente dois argumentos. O primeiro trata da descrição e, simultaneamente, dos questionamentos das forças externas da globalização. O segundo diz respeito à análise crítica das consequências, especialmente, da homogeneização espacial, por vezes provocada pelos processos da globalização. Não por acaso, ela sustenta seus argumentos ao empregar os conceitos de uxo e território. Para ilustrar tal apreciação didática, convém a interpretação da seguinte proposta de atividade: Atividade 7.2 Leia o último parágrafo novamente e reformule essa percepção em termos de conceitos de território e uxo. Em seguida, aproveite o que aprendemos até agora sobre territórios e uxos para refutar essa crítica. (Você encontrará sugestões para a resposta ao longo desta seção.) * Último parágrafo Uma das maneiras em que as pessoas experimentam “How can you possibly argue against the increasing interconnectedness of the
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mais diretamente “o mundo globalizado” é através do impacto que ele tem em suas vidas diárias. Embora este impacto possa ser enriquecedor, também pode ser perturbador. Há, por exemplo, queixas constantes sobre a invasão e a transformação dos lugares pelas “forças externas” da globalização. É um tipo de sentimento que, de fato, encoraja a defesa de lugares existentes contra “o estrangeiro” (2008: 321, tradução livre) 17.
Observem que a autora oferece uma interação pedagógica com o seu leitor para reinterpretar uma sentença, que poderia servir como premissa para discursos conservadores. O argumento central é descontruir um senso comum que antagoniza o lugar à globalização. Nesse exercício, ela articula sua discussão sobre “os sentidos globais de lugar” 18 , incitando seu leitor a fazer uma ressignicação do cotidiano vivido. Esse tipo de interpelação ao leitor ocorre em diferentes momentos do texto principal. “Activity 7.2 Read the *last paragraph again, and reformulate this feeling in terms of the concepts of territory and ow. Then draw on what we have learned so far about territories and ows in order to refute this criticism. (You will nd hints towards na answer in the resto f the section.) 17
*Last paragraph
On of rhe ways in wich people most directly experience ‘the globalised world’ is through the impact it has on their daily lives; though this impact can be enriching, it can also be disruptive. There are, for instance, constant complaints about the invasion and dislocation of local places by the ‘external forces’ of globalisation. It is the kind of feeling that does in fact encourage a defence of existing local places against ‘the outside’. (2008:321)”
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Além disso, a questão em tela é precedida pela denição de “novos movimentos sociais”, em boxe destacado no texto principal. Importante ressaltar que nesse gênero textual há a valorização de boxes, como uma caixa de diálogo e de esclarecimento com a função didática na aprendizagem a distância. Vejam que isto é uma ferramenta recorrente do texto. Outra é o boxe de síntese de conteúdos, em que os autores se valem da reiteração como operação didática.
Na aprendizagem a distância, a reiteração é um recurso no qual os autores se apoiam para o esclarecimento ou para o desenvolvimento do argumento, especialmente nos capítulos que objetivam o emprego conceitual. Como dito anteriormente, a interatividade é uma das características do gênero textual do livro didático (e que é enaltecida na modalidade de Educação a Distância), ou seja, é frequente a busca pelo diálogo com o leitor (ALBUQUERQUE e SILVA, 2012).
Figura 6 - Boxe de síntese de conteúdos (2008:333).
A narrativa central de Massey foca nos casos de resistência na América Latina para explicar o conceito da solidariedade em contraposição aos fatores da globalização nanceira. O argumento recupera elementos dos conteúdos dos capítulos anteriores. Isto é, o capítulo valoriza a revisão de conteúdos para desconstruir o senso comum. Ademais, tal operação didática está a favor do desenvolvimento teórico, ou seja, de sua crítica ao que chamou de localismo, a m de desconstruir uma polaridade entre lugar e globalização. Além dos conceitos de uxo e território, a discussão empreendida por Massey a respeito das geograas das solidariedades se fundamenta também na apreensão dos conceitos de “poder” e de “responsabilidade” (2008:323). Convém, por exemplo, a análise de um exercício: Use o argumento que foi desenvolvido até agora para dizer por que a transformação [no lugar] pode ser vista de forma tão intimidadora. Tente encontrar uma série de razões distintas para fundamentar sua explicação (idem, tradução livre).19
Em outros artigos e ensaios teóricos, Massey (2006) retoma da losoa, especialmente, o conceito de responsabilidade, o que não se restringe à visão liberal. Massey articula tal compreensão para questionar uma perspectiva propositiva para as geograas das “Use the argument that have been made so far to say why changing things can
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solidariedades. Poderemos ver tal interpretação a partir de seu debate a respeito da migração dos prossionais da saúde de países periféricos da África e da Ásia para o Norte Global. No desenvolvimento da análise, ela provoca seu leitor: “Então, esses prossionais de saúde deveriam ser impedidos de migrar?” (2008:328) 20. Ela põe em questionamento percepções do senso comum. Nesse momento, ela interpela novamente o leitor para avaliar a complexidade das relações espaciais, recuperando o debate sobre “sentido global de lugar”. Nessa direção, a autora oferece elementos ao seu interlocutor para observar os limites cognitivos e práticos de antagonizar o território ao uxo: “[Com o argumento] colocado dessa maneira, nós reduziríamos o debate à sentença de o território versus o uxo, mas nosso ponto de partida é outro”. (2008:328). Massey, nessa narrativa didática, identicou o imperativo da solidariedade internacional na prática dos signicados desse tipo de relação escalar. Mais além, ela desdobra seu argumento para o que chamou de “uma particular imaginação geográca da solidariedade” (2008: 334). Com a discussão de direitos autorais, por exemplo, Massey interpela seu leitor à complexidade da contingência política e das contradições nas ações solidárias. Para tanto, ela recupera a discussão da mídia independente e a sua emergência nos movimentos
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anticapitalistas. Aliás, ao selecionar os casos e narrá-los, ela propõe uma interpretação das potências e dos limites da comunicação diante da dinâmica da geometria de poder. Com tal interpretação, Massey faz a análise espacial, articulando o debate entre a solidariedade, a responsabilidade e a comunicação. Tal associação é percebida por nós como potente conteúdo para o Ensino Médio, ainda pouco tratado sob a perspectiva geográca. Para ela, os novos movimentos sociais e suas geograas dependem do uxo de informação. Nessa direção, é válida a análise a respeito das contradições de movimentos localistas, como dos grupos do campesinato europeu que reivindicam mais barreiras e
políticas antiglobais: Considere a citação de Bové e Dufour (2001) acima. É realista? É mesmo democrática? E as armações que surgem em um mundo globalizado de uma conectividade mais ampla? E as pessoas “locais” que são ricas e poderosas? (2008: 350)
O foco central do capítulo está no desenvolvimento da ambiguidade e não da dicotomia entre o conito e a solidariedade para interpretar e intervir no fenômeno espacial. Aqui, ela recupera a discussão da desigualdade, pois o conito poderia acionar um localismo conservador e se antagonizar às formas alternativas de coletividade e de solidariedade.
Figura 7 - Representação dos movimentos sociais e manifestações em escala global (MASSEY, 2008, P.315)
O argumento é desenvolvido também pela linguagem não verbal, como a expressão de luta protagonizada pelas fotograas destacadas (em meia página e com alta resolução) dos movimentos sociais na América Latina. Outro exemplo é a cartograa temática adotada, oferecendo dados sobre as causas dos movimentos sociais anticapitalistas, em escala global. Em linhas gerais, Massey, no decorrer do seu texto sobre as Geograas das solidariedades, experimenta operações pedagógicas para provocar o seu leitor a pensar a respeito do espaço, da responsabilidade e da geometria do poder. Isso porque a Geograa escolar, não raras vezes, se ancora nas nomeações mais generalizantes para operar classicações – a regionalização do mundo, por exemplo,
geográcas”. Esse argumento pode ser articulado à publicação Debates in Geography Education , editado por David Lambert e Mark Jones (2013) e se soma ao debate curricular que vem denunciando, de maneira análoga, o discurso hegemônico do sujeito universal na seleção do conhecimento escolar (GABRIEL, 2012). Por tais razões, neste ensaio adoto a premissa de que as contribuições de Massey para pensar o espaço nos manuais de sua autoria poderiam contribuir para uma agenda política a favor do ensino da Geograa, o que justica uma aproximação com os trabalhos da autora voltados precisamente para os projetos de ensino. Nestas seções, busquei resumidamente apresentar interpretações sobre as propostas de exercícios, como
Dossiê Doreen Massey
no contexto escolar da emancipação. Nesse caso, vejo a razão pedagógica de Massey, como um lugar de encontro, o que me permite agora conversar com as memórias de Paulo Freire: Em El Salvador, camponeses e camponesas que lutaram ao longo dos anos, de armas e, ao mesmo tempo, de olhos curiosos nas frases, nas palavras, lendo e relendo o mundo, brigando para fazê-lo menos feio e menos injusto, aprendendo a ler e escrever a escrever as palavras, me convidaram para, com esperança, festejar um hiato de paz, na guerra. Queriam me falar do que zeram e me mostrar o que faziam. Era a sua forma de me homenagear. (FREIRE, 1997:100)
Em Pedagogia da Esperança , Paulo Freire revisitou sua obra mais popular Pedagogia do Oprimido e relembrou uma série de episódios que retratam a dimensão emancipadora de projetos educativos. O trecho retrata a dureza da luta (vivida por milhões de camponesas e camponeses no mundo) e a beleza do fazer as palavras e das palavras a sobrevivência da esperança. Paulo Freire, ao narrar seu encontro com os trabalhadores em luta, fez um depoimento de esperança. Inspirada na escrita de Freire, quis nestas seções fazer um pequeno retrato da abordagem emancipadora do espaço, nas aprendizagens propostas por Massey nos seus materiais pedagógicos. Em tempos incertos, nos vale homenagear Massey para seguir no imperativo de que nossas aprendizagens espaciais possam abrigar, sobretudo, uma linguagem de possibilidade para um mundo “menos feio e menos injusto”.
Considerações fnais Para condizer com o legado de Massey – que primou pela indissociabilidade entre a sua escrita e a sua ação política – este ensaio precisava se guardar na esperança. Massey em nenhum momento falou de didática da Geograa, mas, ao ambicionar uma escrita que comunicasse sua concepção de espaço, ela também ofereceu um legado pedagógico. Portanto, com o foco no aprendizado espacial, compreendemos que o ensino de Geograa pode adotar um entendimento de espaço que cona na radicalidade da democracia como horizonte de política educacional. Por isso, compreendemos que na elaboração de avaliação aplicada em todo o território nacional, por exemplo, há marcas hegemônicas que subalternizam outras imaginações geográcas. Isto signica que, na concepção do ensino de Geograa como política democrática de conhecimento, faz-se necessária a inspiração no horizonte da multiplicidade, como nos informa Massey (2008), para impedir subalternizações, ao produzir sentidos de território nacional como conteúdo
Dessa forma, ao considerar a potência do trabalho de Massey para a investigação da Geograa escolar, este trabalho procura em concepções como “multiplicidade”, a análise do encontro/conito com o m de desconstruir os fechamentos de signicações do espaço, tais como ocorrem em muitas questões adotadas pelo ENEM, ou em prescrições curriculares previstas no projeto de Base Comum. Para essa armação, cabe agora a denúncia de Massey: “Ao negar a diferença, podemos negar aos estudantes oportunidades de desenvolver as habilidades de pensamento de ordem mais profunda, necessárias para produzir explicações mais complexas dos fenômenos geográcos”. (2006:51, tradução livre) 21. “O que Doreen diria sobre nós?”, não é um recurso retórico. Tampouco um “elixir” colonizador que guardaria a validade das contundentes explicações cientícas. Massey, uma pensadora global, que viveu na Nicarágua sandinista, participou dos coletivos Venezuelanos no auge do movimento bolivariano e sempre procurou conversar horizontalmente com o outro, não propôs explicações totalizantes sobre a América Latina. Aliás, suas análises sempre focaram na complexidade, na contingência e na democracia. Das múltiplas linguagens que adotou para produzir suas interpretações sobre o espaço do outro, como é possível vericar no documentário narrado e roteirizado por ela “ Land use in Brazil”22 , Massey vislumbra a multiplicidade de produzir interpretações e, com isso, busca alternativas, ou seja, valoriza a estratégia democrática. O que sustenta a interrogação título deste ensaio é a mirada-de-dentro-para-fora ( outwardlookingness): mais que um neologismo, é uma metáfora que nos convida a um método de ensino, para nos questionar como sustentamos nossas imaginações geográcas, o que, de certo, é uma via inspiradora para problematizarmos a agenda da escola. Em outras palavras, o espaço escolar abriga a função política de legitimar saberes, de regular a verdade. Então, as proposições do espaço de Massey nos instrumentalizam a pensar a respeito do espaço e com o espaço da escola. Nesta grave crise política que ameaça o ofício docente, em particular, a natureza intelectual da nossa identidade de professores de Geograa, nos cabe reetir a escola a partir da política da espacialidade, ou seja, entendê-la como espaço do múltiplo e das interconexões. Signica também a abertura como princípio da interpretação espacial para, inclusive, questionar a objetividade oferecida pelo território do verdadeiro. Logo, as contribuições de Massey para o debate educacional estão a oferecer a desconstrução do terreno do totalitário By denying difference we can deny students opportunities to develop the higher-order thinking skills needed to produce deeper explanations of geographical phenomena. (2006:51). 22Informações sobre o documentário: Direção de Hugh Phillips, com a contribuição 21
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(da verdade absoluta), haja vista que sua compreensão do pluralidade de valores não é garantida. espaço se dá na indissociabilidade com o tempo. Dessa maneira, a perspectiva de Massey se funda na teoria política, ao incorporar a dimensão da contingência para produzir o entendimento de espaço. Com esta plataforma teórica, a proposta deste artigo buscou, no legado de Massey, a coerência teórico-político-pedagógica para vislumbrar um projeto de aprendizado espacial que desestabiliza essencialismos, a favor de uma mente geográca mais atenta ao provisório consenso, em um cenário político no qual o conito é o imperativo e a
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Dossiê Doreen Massey
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GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago
GEOgraphia Niterói, Universidade Federal Fluminense ISSN 15177793 (eletrônico) Vol.19, No40, 2017: mai/agos.
Dossiê Doreen Massey
A MENTE GEOGRÁFICA* Doreen Massey
Antes de começar o debate no qual pretendo signicar “pensar geogracamente”, considere suas respostas às seguintes questões: Os moradores têm direitos a e sobre suas localidades?
Nós deveríamos abrir todos os limites e viver sem fronteiras, no planeta ao qual todos nós pertencemos?
Um momento para a discussão
Mas, por quais motivos? Talvez o argumento seja feito com base em que elas são os moradores locais e, em consequência disso, têm direitos a esta localidade diante das forças globais. Para esse argumento ser verdadeiramente válido, ele deve ser um princípio aplicável também em outras situações. E se essa é realmente a maneira pela qual nós queremos discutir o caso, então o que está sendo proposto é uma imaginação geográca particular do planeta: como um mundo que é essencialmente dividido em localidades [em lugares], ou territórios, dentro de cada um dos quais habitam as pessoas locais, com direitos locais.(o que envolve, é claro, diversas noções, sendo a de soberania dos nativos, a principal delas).
Perguntas como aquelas acima são frequentemente elaboradas a partir de casos particulares. Vamos então aprofundar a discussão, considerando um deles. O assunto agora é Amazônia e - no que já é uma reviravolta incomum - o foco é nos povos, ao invés da (ou bem como) a própria oresta. Ambos são frágeis, sob ataque de forças externas. O debate é intenso e o cerne da questão é a população local da Amazônia contra os interesses nanceiros de madeireiros e fazendeiros e até mesmo contra a invasão de outros pobres (mas, os do “lado de fora”) que também estão em busca de um lugar para morar. Até agora, provavelmente, o mais previsível (e também estou inclinada a apoiar a ideia) seria o consenso em torno de algum tipo de direitos à terra e
ao território para os herdeiros das antigas sociedades da Amazônia.
Quando confrontada com o pano de fundo da
imaginação geográca, defendendo a população local da Amazônia, a alegação de que eles são locais começa a parecer menos convincente, precisamente porque seja a mesma imaginação mobilizada na Europa, por exemplo, para justicar controles rigorosos contra a imigração, ou na Califórnia contra os imigrantes que escapam para o norte, fugindo da pobreza e das repressões da América Latina. Anal, são casos de pessoas locais, defendendo seu espaço contra a pressão de uxos globais sobre o lugar. Estes, porém, são os localismos dos poderosos. E é notável como muitos daqueles que defendem os direitos locais na Amazônia vão discutir o caso oposto quando se trata de uma questão de imigrantes e requerentes de asilo à procura de entrada para a Europa. Aqui, os direitos dos imigrantes são tratados com mais simpatia. Outro
________________________________ * Massey, D. (2006) The geographical mind. In: Balderstone, D. (ed) Secondary Geography Handbook , Shefeld, Geographical Association. Disponível em:http://www.ge-
ography.org.uk/projects/valuingplaces/cpdunits/geographicalimaginations.Agradecemos a GEOGRAPHICAL ASSOCIATION por permitir gratuitamente a tradução deste texto. Versão em português realizada por Ana Angelita da Rocha e Maria Lucia de Oliveira.
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conjunto de princípios encontra-se particularmente em outra imaginação geográca muito diferente - desta vez de um mundo que é, essencialmente, sem fronteiras. Há muitas coisas em jogo neste exemplo muito simples.
Primeiro, ele aponta para a inevitabilidade e para
o poder de nossas imaginações geográcas. Nas entrelinhas, elas estão profundamente envolvidas em cada argumento sobre direitos à migração, por exemplo, ou sobre as recorrentes expressões (tão comuns entre nós) como “os moradores locais”. Todos nós operamos o tempo todo, todos nós - estudantes, professores, todos nós em nossos papéis como membros públicos ou cidadãos – com a imaginação de como o mundo está organizado, ou como pode ser organizado em um futuro melhor (e é importante notar imediatamente como
estas imaginações se estendem para além do mundo humano. A decisão de abater alguns animais, a m de defender espécies “nativas” é uma questão em debate). Um compromisso do geógrafo questionador, então, é evidenciar essas imaginações geográcas e perguntar de onde elas vêm. Em segundo lugar (e em parte, precisamente porque não é comum examiná-las de maneira explícita), frequentemente nós operacionalizamos as imaginações geográcas de forma bastante contraditória, como grupos sociais, ou como, por exemplo, tendências políticas. As imaginações contraditórias sobre a “população local”, na Amazônia e no “Fortaleza” Europa, as quais mencionei nos parágrafos anteriores, são suscetíveis de serem apreendidas como tendências mais “progressistas”. Os grupos mais “conservadores” são capazes de defender o “Fortaleza” Europa (“as pessoas locais têm direitos sobre o que elas construíram, você sabe”), ao mesmo tempo defendendo o livre comércio (“no novo mundo sem fronteiras, o protecionismo deve ser evitado”). Uma das maneiras mais ecazes de interromper a pretensa importância de muita alegada sabedoria é apontar para as contradições entre as imaginações geográcas em que se fundamentam. Em terceiro lugar , o objetivo fundamental da educação - a ação de questionar, ao invés de aceitar um pensamento supercial - é particularmente poderoso quando o que está em discussão é a natureza de nossas imaginações geográcas. O ponto de expor as contradições geográcas mobilizadas nos debates sobre pessoas locais, migrantes, livre comércio, é que nem “local” e nem “global” é em si “bom”, seja qual for a posição que se tome no espectro político. É necessário fazer a distinção entre o localismo dos subalternos e o localismo dos poderosos, e da mesma forma entre os globalismos (como o das corporações transnacionais ou dos poderes militares, mas também o do novo internacionalismo dos grupos indígenas ou dos sindicatos). O argumento não
se reduz a uma geograa como resposta, mas que, para pensar geogracamente, devemos ter em conta o seu poder (diferencial). Isto é, as geograas (as geometrias do poder) através das quais o mundo é construído e, talvez, as geometrias de poder mais igualitárias através das quais poderia ser reconstruído. Levar a sério a geograa em alguns dos principais debates do nosso tempo, tanto nos leva ao coração das questões, quanto nos obriga a pensar mais criticamente a geograa. Em quarto lugar , este tipo de exemplo é um entre muitos que apontam para a contribuição intelectual que pode ser feita particularmente pela Geograa como uma disciplina escolar. Uma das coisas maravilhosas sobre a Geograa é, certamente, a sua amplitude, o caminho que nos permite cruzar as fronteiras de outras disciplinas. Mas isso não deve obscurecer o fato de que a Geograa também tem a sua própria integridade intelectual, os seus próprios caminhos especícos para explorar e proposições para defender. Em linhas gerais, a contribuição que a Geograa traz às discussões citadas é um rigor persistente na elaboração de dois dos conceitos centrais da vida moderna: o espaço e o lugar. Muitos outros poderiam ser citados, mas eu quero um momento para fazer uma profunda exploração destes dois conceitos particulares em busca dessas noções de imaginação geográca e de mente geográca.
A imaginação geográfca Provavelmente, é mais aceito agora, embora ainda seja importante argumentar, que muito da nossa “geograa” está na mente. Ou seja, nós carregamos conosco imagens mentais do mundo, do país em que vivemos (todas aquelas imagens da divisão Norte/Sul), da rua ao lado. O mapa mental dos EUA pela revista New Yorker e a imaginação do mundo de Ronald Regan tornaram-se posters populares. Todos nós levamos tais imagens. Elas podem, por vezes, estar em conito ou até mesmo ser a causa de conito. E reetir sobre essas coisas e falar sobre elas parece-me um bom caminho para começar a examinar o que signica “pensar geogracamente”. Nós também podemos examinar como tais imaginações são produzidas, seja através dos nexos de poderosos conglomerados de mídia internacionais ou do imaginário persistente e implantado em conversas locais (“essa rua não é muito boa, não é tão segura quanto a nossa”). E podemos explorar, também, como tais imaginações têm efeitos poderosos sobre as nossas atitudes para com o mundo e sobre o nosso comportamento. Um das nossas (muitas) habilidades como professores de Geograa é de mostrar a irrelevância dessas imaginações e submetêlas a interrogatório.
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em jogo nos debates sobre os direitos dos moradores, ou de imigração, ou os erros e acertos de livre comércio, é uma camada ainda mais profunda da imaginação geográca. E, mais uma vez, é importante descobrir e examiná-la. Para defender os direitos da sociedade amazônica, com o argumento do local, é válido imaginar o espaço, implicitamente, como um espaço de lugares, de territórios. Para argumentar a favor de “livre comércio”, alegando que, nesta era de globalização em que as fronteiras e os limites devam cair , é imaginar o espaço como, acima de tudo, um espaço de uxos. Meu argumento acima foi que nenhuma dessas imaginações nos fornece um princípio e que cada uma, provavelmente, funciona com contradições. E que só se pode considerar casos particulares em articulação às relações de poder em que estão inseridas. O que nós precisamos é de uma imaginação de espaço que incorpore as geometrias de poder que constroem este mundo altamente desigual. O que está em questão é a forma como, em um nível muito básico, nós pensamos o planeta, na verdade, a forma como pensamos sobre o próprio espaço geográco. Deixe-me dar outro exemplo. Uma das temáticas mais importante do ensino de Geograa é aquela que explora a questão do “desenvolvimento”, isto é, se o foco é sobre
do desenvolvimento (ou modernização, ou progresso) é que elas presumem que esse desenvolvimento, basicamente, só pode obedecer a um único modelo. Outros devem seguir o caminho ao longo do qual o Ocidente liderou. Este é um ponto muito importante, pois representa que só pode haver apenas um tipo de história. É uma versão global de um ditado infame que arma a ausência de alternativa. Mas, eu argumentaria que dizer que há apenas uma história quer dizer que não há nenhuma geograa. Para imaginar lugares em termos de quão longe eles estão ao longo desta pista de mão única do desenvolvimento (ou da modernização, ou do progresso) é imaginar as diferenças entre eles só em termos de história. Isto é, transformar as diferenças geográcas (diferenças reais, coexistentes) apenas em lugares na la da história. Esse pensamento se recusa a tolerar a possibilidade de que existam muitas histórias acontecendo ao mesmo tempo , que outros lugares têm as suas próprias trajetórias particulares e, além disso, com signicado político, talvez, para o potencial de seus próprios futuros. O que é, certamente, uma imaginação geográca. Isto é claramente uma forma de imaginar espaço geográco. Mas, ironicamente, o seu efeito é quase o de abolir esse espaço, para transformá-lo em
as desigualdades entre primeiro e terceiro mundos (a
tempo.
terminologia aqui é sempre inadequada) ou dentro de um país. Há muitas questões aqui relativas às poderosas imaginações geográcas e aos geógrafos e a algumas agências de ajuda humanitária (ambos) têm lutado para combater as imagens do terceiro mundo como vítima infeliz, por exemplo. Essa é a camada de imaginação geográca que se concentra em imagens de lugares. Abaixo disso, no entanto, é mais uma imaginação, em que esses lugares estão, de alguma forma, “atrás” dos países “avançados”, em seus níveis de desenvolvimento. A própria linguagem que é usada projeta poderosamente essa imaginação. Termos como avançado e atrasado (e ao mesmo tempo “para trás” estão provavelmente menos em voga, por causa de suas implicações pejorativas, mas o emprego do termo “avançado” tem exatamente o mesmo efeito - avançado como contrário do quê ?!). A terminologia de desenvolvimento pode ter as mesmas implicações. Atualizar os subdesenvolvidos para o mais otimista “em desenvolvimento” ainda coloca o país em desenvolvimento por trás daqueles que já são “desenvolvidos”. Além disso, exatamente o mesmo posicionamento implícito de algumas partes do mundo, como por trás e outros como na frente está implicado em todas as narrativas de uma “modernização” singular ou de um único caminho do “progresso”. Aqui está acontecendo uma manobra muito importante que, mais uma vez, diz respeito a como imaginamos o planeta e como nós concebemos o próprio espaço geográco. A crítica mais frequente feita sobre tais narrativas
Esta é uma imaginação que tem sido bastante característica da modernidade ocidental, com suas grandes narrativas de progresso e mudança. E como acontece com outras imaginações geográcas, é perpetuamente reproduzida por meio de discursos políticos e populares. Como Chris Durbin argumenta no Capítulo 19 1, a capacidade de diagnosticar essas imaginações é um elemento importante do letramento midiático, especifcamente geográfco.
A mente geográfca Esta última imaginação geográca, na qual a geogra a é transformada em história, é particularmente interes sante. Quando os discursos de desenvolvimento e ans realizam esta operação, uma das coisas cruciais que es tão a fazer é subestimar a diferença. Para desenvolver tal argumento, considere este exemplo muito simples.
Quando em nossas visões mentais localizamos Cha de, Brasil e Estados Unidos da América numa sequên cia histórica (subdesenvolvido, em desenvolvimento, desenvolvido) estamos resistindo ao reconhecimento das diferenças (histórica, real e potenciais) que existem entre eles. O fato de que esses lugares podem ter tra jetórias distintas é obscurecido. É somente quando re conhecemos que, de fato, estes três países não formam N.T. Doreen Massey faz referência à contribuição do Durbin presente no livro
1
Dossiê Doreen Massey
uma sequência histórica, é que podemos investigar a extensão da sua distinção individual e, com certeza, a sua interdependência. Mas isso signica reconhecer que eles coexistem, que Chade é totalmente coetâneo com os Estados Unidos da América. E para fazer isso, por sua vez, é preciso reconhecer que estas diferenças são or ganizadas não historicamente, mas espacialmente. Uma das implicações do “levar o espaço (ou a geograa) a sério” é o pleno reconhecimento da coexistência simul tânea de diferentes outros (para uma pausa, um pouco
de losoa, por um instante: se o tempo é a dimensão da sequência e da mudança, o espaço é a dimensão da coexistência e da multiplicidade). A consciência espacial real deste argumento implica numa mirada-de-fora-para-dentro 2, uma vontade de dar pleno reconhecimento à existência de outros autôno mos. Isto tem sido chamado um reconhecimento da “co etaneidade 3”. Talvez este seja, na verdade, um aspecto de uma “mente geográca”. Além disso, há implicações mais profundas. Como sugerido acima, é apenas com o reconhecimento da coetaneidade que é possível começar a examinar as mui tas relações de poder e as interdependências que con -
guram esses lugares juntos e inuenciam a evolução de seus personagens e de suas trajetórias. Se reconhecer mos (novamente usando exemplos muito simples) que o Chade e os Estados Unidos, cada um tem a sua pró pria história, então as políticas e as grandes questões de seu chamado subdesenvolvimento e desenvolvimento residem também nos termos de sua interdependência. Ou ainda - e para desta vez levar as coisas na direção oposta - muitas vezes é argumentado que uma ênfase na “diferença” (pessoal, ou de grupo, ou de nível étnico, por exemplo) ca no caminho da coletividade ou da soli dariedade. Eu diria o contrário: que diferença tem de ser considerada e negociada antes de qualquer solidarieda de signicativa ou coletiva - ou até mesmo, antes de que essa coisa chamada de “sociedade” - possa ser constru ída. E um verdadeiro reconhecimento da diferença requer uma total virada de mente espacial e geográca. Outro exemplo deve ajudar a ilustrar o argumento e demonstrar a sua importância potencial. As referências anteriores foram sobre a escala global, então vamos ago ra concentrar-nos em uma escala mais local. Pois, se as várias culturas e sociedades do mundo podem ser vistas como tendo suas próprias histórias, e se as geograas que devemos explorar são as geometrias de poder de suas interações e interdependências, o mesmo também é verdade quanto à escala local, do lugar. Temos em Ge ograa feito muito trabalho para minar a noção bastan te romântica de lugares como entidades simplesmente
coerentes, com características aparentemente “eternas”, N.T. A expressão outwardlookingness foi aqui adaptada como a locução substantiva “mirada-de-fora-para-dentro”. 2
singulares e, muitas vezes, não problemáticas. Temos, de várias maneiras, argumentado que é mais útil para com preender lugares tão complexos, tão diferenciados inter namente, vê-los como “lugares de encontro”. Isto reproduz o argumento mais amplo. Os lugares são lugares de encontro de diferentes pessoas, diferen tes grupos, diferentes etnias. Em termos humanos, eles são o emaranhamento, a reunião de diferentes histórias, muitas delas sem qualquer ligação anterior com as ou tras. Eu, por exemplo, moro em um apartamento no se gundo andar, onde existem dois apartamentos abaixo do meu. Os moradores destes três espaços de habitação, agora neste edifício, vieram de muitas direções. Mas aqui estamos nós, e agora devemos administrar o viver juntos, para durar um longo tempo. A área da cidade em que vivo replica isto em uma escala maior e uma manei ra de imaginar as cidades inteiras é na verdade [vê-las] como uma reunião de lugares-de-diferença intensamen te complexa (essa diferença não tem de ser dramática ou etnicamente denida, por exemplo. Nós somos cada um de nós diferentes). A consequência disso é que “lugares”, a partir de um edifício de apartamentos até uma cidade inteira, exigem a negociação. O cotidiano, de uma cente na de maneiras, demanda diretamente a negociação da nossa diferença. Algumas vezes fazemos isso; em outras há abismos de desigualdade e/ou incompreensão; impli cando na violência e no confronto. A questão é que deve haver a negociação. E antes que possa haver negociação, deve ser reconhecida e respei tada a diferença. Agora, isto funciona como uma ferra menta nas obras de retórica por demais fácil da “comu nidade local”, que encontra o seu caminho em tantos do cumentos de política que tentam abordar, por exemplo, os lugares de privação do espaço urbano. A análise aqui é que “comunidade” - geralmente implícita no sentido de coerência não problemática – simplesmente não existe; não basta existir, aliás, tem de ser sempre negociada. E dado que as geometrias de poder internas do espaço de lugares às vezes podem ser quase tão complexas como na escala global, essa negociação será difícil e perma nente. Tendo em vista que a negociação nunca vai aca bar, pode-se argumentar que não só a noção estática e romântica da comunidade local (que é inatingível) como também o reconhecimento das relações de poder inter nas nas negociações é politicamente mais saudável do que um anseio por uma conformidade pacicada. Uma democracia saudável não exige a supressão da diferen ça, mas uma abertura para isso e uma vontade de nego ciar.
E a minha armação aqui é que uma “mente geográ ca” necessariamente implica em uma atitude da mira da-de-fora-para-dentro que, ao reconhecer a diferença, também indaga necessariamente sobre os termos da ne gociação. Aliás, a disciplina geográca, como um exer -
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cício intelectual, pode contribuir para o rigor da maneira como nós imaginamos (e analisamos a imaginação de) essas noções geográcas essenciais: o espaço e o lu gar4.
Implicações para a prática [docente] a) A Geograa pode ajudar os jovens a explorar a natureza controversa do mundo. A Geograa como disciplina está no currículo escolar por causa do valor que ela oferece para a educação do jovem. Pensar geogracamente contribui para os/as estudantes compreenderem e interpretarem as suas
próprias reações às pessoas e aos lugares e para a reexão sobre as perspectivas dos outros que podem ser diferentes das suas. Para possibilitar aos/às estudantes o “pensar geogracamente”, nós devemos garantir que a investigação geográca considere necessariamente (diferencialmente) o poder. Isso levaria a um reconhecimento das geograas (geometrias do poder) através das quais o mundo é construído e as geometrias de poder, talvez mais igualitárias, através dais quais ele possa ser reconstruído. b) Grande parte da nossa “geograa” está na mente - nas imagens mentais que levamos carregamos do e sobre o mundo. A reexão geográca deve tornar explícitas as “imaginações geográcas” dos/das alunos/as e explorar de onde elas vêm. Eles/elas também devem expor contradições das imaginações geográcas em que grande parte da “sabedoria recebida” e muitas questões geográcas fundamentam-se. A Geograa pode, assim, cumprir esse objetivo crucial da educação - questionar, ao invés de aceitar, sem mais reexão. c) A Geograa deveria ajudar aos estudantes a explorarem como os lugares são complexos e variados. Ela deve fazer isso mediante uma variedade de perspectivas e dar credibilidade suciente para pontos de vista dos/as próprios estudantes. É mais útil pensar em lugares como tão complexos, diferenciados internamente, “lugares de encontro” de diferentes pessoas, diferentes grupos e etnias. A diferença tem de ser reconhecida e negociada antes de qualquer sentido de comunidade, ou mesmo de sociedade, que possa ser desenvolvido. Ao negar a diferença, podemos negar aos estudantes as oportunidades de desenvolver as habilidades de pensamento de ordem mais profunda, As idéias deste texto foram melhor desenvolvidas em “Pelo espaço – uma nova olítica da espacialidade” (MASSEY, 2008, versão em português de Hilda Pareto 4
necessárias para produzir explicações mais complexas dos fenômenos geográcos.
Dossiê Doreen Massey
GEOgraphia Niterói, Universidade Federal Fluminense ISSN 15177793 (eletrônico) Vol.19, No40, 2017: mai/ago.
Dossiê Doreen Massey
DEMOVENDO O NEOLIBERALISMO * Doreen Massey Michael Rustin
O Projeto do Manifesto Kilburn começou com trabalhos anteriores de autores da Revista Soundings para compreender o que nós chamamos (inspirados em Gramsci) “conjuntura”, à luz da crise nanceira de 2007-8. Estávamos tentando elaborar uma resposta sobre o que provocava aquela crise do sistema do neoliberalismo, ou da globalização desenfreada do capitalismo, que vem dominando o mundo ocidental durante as últimas três décadas. Poderia haver uma oportunidade para o desenvolvimento de algumas forças signicativas de mudança, especialmente, quando essa oportunidade surge dos danos causados pela crise e pelo descrédito das instituições que foram responsáveis por ela, em particular bancos e governos? Haveria uma chance para um renascer dos projetos progressistas, que foram bastante enfraquecidos pela ascensão neoliberal e por uma rme investida pelo capital e seus agentes políticos sobre o trabalho e suas formas coletivas de representação e autodefesa? Alguns de nós consideraram que haveria algum nível de reconhecimento do fracasso pelas elites dominantes e, de fato, algum tipo de concessão que permitisse formas mais esclarecidas de regulação da economia de mercado. Mas, tais expectativas tiveram vida curta. Por toda a Europa, o remédio rapidamente adotado para o fracasso do sistema neoliberal foi insistir que ele fosse imposto com maior austeridade nas economias e
sociedades já arruinadas pela crise 1. Os “programas de ajustes estruturais” (redução dos salários, programas de privatização, redução dos gastos públicos) agora aigem a própria Europa, que é visitada pelos mesmos programas que, desde os anos 1980, têm sido impostos pelo FMI com efeitos desastrosos, como o Consenso de Washington que vem destruindo as economias endividadas da América Latina e da África. A “solução” para os problemas de dívida causados pela crise bancária em nações como Grécia, Espanha, Islândia, Portugal, Irlanda e Itália seria a restauração da competitividade de suas economias, mesmo que isso fosse sempre impossível de alcançarse num contexto de austeridade geral e com uma única moeda europeia valorizada em referência à vantagem competitiva superior da Alemanha. O fato é que as causas da crise nanceira 2007-2008 foram deliberadamente deturpadas, com signicativos efeitos políticos. As suas causas subjacentes foram o estado da crescente desigualdade e o enfraquecimento da posição relativa do trabalho, por um longo período de tempo (o rendimento real médio do americano “de classe média” – isto é, o da classe trabalhadora, está estagnado há décadas, enquanto a riqueza e os rendimentos dos mais ricos vêm aumentando) E um “sintoma” decisivo desta situação, que quase levou o sistema nanceiro ao colapso, foi a crise da hipoteca sub-prime nos EUA, Imediatamente após a crise bancária, Gordon Brown (Primeiro-Ministro do Reino Unido, líder do Parido Trabalhista de 2007 a 2010) desempenhou um importante papel para impedir um colapso nanceiro, mas agora isso é, em grande parte, es quecido. 1
*
Tradução de Ana Angelita da Rocha e de Maria Lucia de Oliveira. Agradecemos aos amigos Rogério Hæsbært e Juan Lucas Nachez pelas sugestões de revisão da tradução. N.T. Originalmente publicado com o título Displacing neoliberalism, o último capítulo do livro After neoliberalism? The Kilburn Manifesto, organizado por Stuart
Hall, Doreen Massey e Michael Rustin (Londres, 2015), sintetiza o Manifesto, como um texto de proposições alternativas à esquerda tradicional. Dando sequência à agenda de trabalho político da revista Soundings (também fundada pelos autores acima citados), o Manifesto reúne artigos de colaboradores, de coletivos, com análises de conjuntura e de uma pauta alternativa à crise de 2007-8, especialmente no Reino Unido. Agradecemos, em especial, ao Professor Michael Rustin (Professor de Sociologia
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com base nos pacotes de créditos impagáveis para o nanciamento da casa própria. A “globalização” – na forma da exposição do mercado de trabalho ocidental à competição dos produtores de baixo custo – e o ataque às instituições de proteção da classe trabalhadora (sindicatos e benefícios do Estado de bem-estar social) foram os meios pelos quais esta mudança ocorreu na balança do poder econômico durante as décadas de 1980 e 1990. A crise de 2007-8 foi de fato a segunda mais importante desestabilização do período pós- guerra. Nas primeiras décadas pós Segunda Guerra, os governos adquiriram, mediante a pressão de um consenso progressista, o poder de regular e estabilizar a economia de mercado e de manter um equilíbrio de poder entre as classes sociais. Este paradigma faliu no nal dos anos 1970, e o neoliberalismo foi instalado como uma solução conservadora. Mas o colapso de 2007-8 representou a falência do próprio neoliberalismo. Entretanto a crise foi distorcida, assim como acontecera da primeira vez, como sendo essencialmente uma crise de desregramento governamental e proteção social excessiva. Apesar de o “sangramento do paciente” ter falhado em atingir uma estabilidade ao longo de três décadas de neoliberalismo, o remédio para a segunda crise deveria ser ainda mais sangramento 2. As consequências deste desastre sem m continuam se desenrolando, ainda que lentamente. Não há perspectiva de sucesso para essas políticas porque, sem o crescimento da demanda de mercadorias e serviços, não pode haver melhora na produção ou nos investimentos. As políticas econômicas dominantes, de fato, não são nada mais do que uma receita para a interminável recessão. Até agora, as consequências políticas desta crise foram minimamente mais positivas do que as consequências econômicas. De fato, vem ocorrendo um aumento de protestos radicais, por exemplo, em movimentos nos EUA e no Reino Unido, como os Occupy , e no crescimento de novos partidos radicais como o Podemos, na Espanha, e o Syriza, na Grécia. Se um deles ascender nas eleições gerais, será um catalisador para um novo estágio da crise e para um reconhecimento de que são necessárias soluções nas quais o capital nanceiro não pode mais ditar as regras. Porém, mais potente que o crescimento destas novas formações de esquerda, há o crescimento dos movimentos nacionalistas e xenófobos em muitos países, que sistematicamente deturpam os problemas estruturais (os quais estão essencialmente associados ao empobrecimento e às relações de classe) como questões de identidade étnica e nacional. O controle da migração e a repressão às culturas ²Martin Wolf destacou de forma memorável ( “Reform alone is no solution for the Eurozone”, Financial Times 2.10.2014) que os efeitos do enfraquecimento da pro -
teção social nas economias europeias não foram para aumentar a competitividade,
mas apenas para estender mais amplamente a pobreza. Sua análise keynesiana está totalmente estabelecida em The Shifts and the Shocks: What we’ve learned –
das comunidades migrantes vêm sendo amplamente apresentadas como questão central a que os governos devem dar resposta, apesar de a migração ter apenas uma relação periférica com os problemas econômicos das nações europeias. Nós fortalecemos o debate dessa questão com a denição do problema no capítulo sobre raça do Manifesto (Capítulo 10, Race, migration and neoliberalism , de autoria de Sally Davison e George Shire). Apesar de a migração apresentar consequências adversas para alguns setores da população (por exemplo, a competição por emprego), suas consequências gerais são provavelmente positivas quando julgadas em termos de crescimento e desenvolvimento econômicos. A atual situação econômica europeia precisa ser compreendida a partir de um contexto internacional mais amplo. A determinante mais abrangente que esta situação de estagnação e regressão política reete é o declínio do poder e da riqueza relativos do Ocidente, particularmente da Europa. Depois do colapso da União Soviética e do comunismo do Leste europeu, por um breve momento a situação era o contrário. Parecia que o Ocidente nunca havia sido tão forte. No capítulo anterior (Capítulo 8, Rethinking the neoliberal world order , de autoria de Michael Rustin e Doreen Massey), focamos no contexto catastróco da crise internacional e nos resultados do triunfalismo do Ocidente. Traçamos o ressurgimento de uma nova ordem do chamado imperialismo liberal (tão “liberal” que restaurou a tortura sistemática como um instrumento político), e a contribuição disso para reduzir todo um conjunto de Estados (grande parte do que foi a Iugoslávia, o Afeganistão, o Iraque, a Líbia, a Síria, a Ucrânia) à desordem e à barbárie. Esta foi uma política de mal-entendidos e ilusões paralela aos fracassos da governança econômica descritos acima. O repetido erro dos governos ocidentais foi acreditar que se as ditaduras pudessem ser debilitadas ou derrubadas, às vezes por uma invasão direta (como foi o caso do Iraque e do Afeganistão), ou outras mediante o nanciamento ou a cobertura de dissidentes ou rebeldes (Síria, Líbia, Ucrânia – cujos primeiros insurgentes foram os pró-europeus do oeste da Ucrânia), a consequência disso seria a esperada substituição pelas democracias do capitalismo ocidental. Na realidade, os principais resultados das políticas fundadas nessa crença foram o estado de guerra civil, a ruptura da paz e da ordem e o crescimento dos movimentos de fundamentalismo teocrático, profundamente hostis ao Ocidente e aos seus supostos valores. No Oriente Médio, o Ocidente tornou-se de fato um agente ignorante e inconsciente em um conito entre ramicações do Islã que algumas vezes lembram a Guerra dos Trinta Anos, entre os poderes Protestantes e Católicos da Europa do Século XVII. Esse padrão de intervenções militares e paramilitares (provocadas pelo Ocidente ou autoridades legitimadas
Dossiê Doreen Massey
algumas operações, durante os anos 1980, para depor e desestabilizar governos radicais na América Latina (Chile, Nicarágua, Argentina, Brasil [os autores aqui também se reportam aos anos 1960]) e na África (Angola e Moçambique). Contudo, o caso é diferente em um aspecto. Essas intervenções neoimperiais precedentes, nos seus próprios termos reacionários, em sua maior parte e no seu tempo foram bem-sucedidas, tanto em derrotar quanto em substituir governos progressistas ou, pelo menos, em deter seu avanço, por exemplo, na África (embora muitas dessas mudanças agora tenham sido revistas, depois de causarem décadas de sofrimento para os cidadãos daqueles países). As intervenções militares do Ocidente desde 1989, entretanto, de modo quase uniforme, fracassaram em atingir seus objetivos. Nessa sequência de desastres, repetidas vezes o que está sendo revelado são as limitações do poder do Ocidente. O que foi alardeado pelos EUA, como “pleno espectro de dominação [ full spectrum dominance ]”, acaba sendo um contínuo fracasso de intervenções militares e paramilitares em alcançar os objetivos pretendidos 3. Certamente, esta situação deve ser compreendida no contexto do surgimento dos novos poderes econômicos, em particular, mas não apenas, da China, e da perda das vantagens econômicas comparativas do Ocidente sobre seus competidores. As prolongadas recessões econômicas europeia e japonesa devem ser vistas em contraste a taxas muito mais altas de crescimento econômico nos “mercados emergentes” do antigo “Terceiro Mundo”. O que vemos no caráter aventureiro da política neoimperial e na imposição de programas de “ajustes estruturais” sobre seus próprios povos é um sistema em declínio. De fato, isto é o sinal do desvendamento dos acordos em curso e a remodelação das relações de poder em todo o mundo 4. Os movimentos políticos de direita que ocorreram em muitas nações deram-se em resposta ao fato das pessoas verem seu bem-estar econômico sob ameaça, seu status, superioridade e poder diminuídos e seus governos com muito menos poder para convencer de que havia uma situação de melhora. Isso tem alarmantes similaridades aos acontecimentos da Europa nos anos 1930, seguidos do desastre da Primeira Guerra Mundial e as crises da ordem social existente a partir daí. Pode-se querer reetir sobre as relações subjetivas mutáveis em relação às instituições de governo que são suscitadas por essa situação – para as quais cada uma de nossas respostas pessoais pode ser uma espécie de testemunho. Talvez possam ser identicados períodos, anteriores à crise nanceira 2007-8, nos quais o sistema
dominante parecia estar consolidado e até mesmo, em seus próprios termos, ser indispensável – certamente em comparação à era atual. Mas, praticamente em cada nação europeia parece haver um desencantamento geral e descrença na capacidade de governo, e o sintoma principal disso é o desinteresse em relação aos principais partidos políticos. Um fator que contribuiu para essa situação é a evidente imunidade de instituições nanceiras, corporações, milionários, diante da jurisdição dos estados. Com efeito, em escritos anteriores sobre a conjuntura (veja The Neoliberal Crisis ) zemos uma avaliação de que a situação atual provavelmente estaria além da capacidade de controle ou regulação por parte de qualquer governo legítimo 5. Em Policing the Crisis , Stuart Hall e seus coautores descreveram a situação do governo, conforme ocorria nos anos 1970, justamente nesses termos, documentando a desintegração dos acordos do pósguerra exatamente como estavam acontecendo 6. Durante essa década os frágeis governos (de denominações distintas que tentavam soluções parecidas) sucederamse uns aos outros, até que, em 1979, a direita encontrou uma oportunidade de embarcar em uma trajetória radicalmente diferente que, depois da segunda vitória eleitoral em 1983, permitiu mudar decisivamente o cenário político e econômico do Reino Unido. No momento da escrita deste texto, nós encaramos uma eleição geral 7 cujos resultados parecem tão indenidos quanto aqueles do começo dos anos 1970. Isso não se dá meramente pelo fato de nenhum partido poder conseguir uma maioria decisiva: isso se dá pelo fato de não haver uma proposta alternativa clara às atuais políticas. Mesmo que os partidos trabalhistas queiram de antemão se colocar em uma posição de formar um governo, existe pouca indicação de que isso perpetue seu pacote ainda muito fechado de políticas que temos para solucionar de modo adequado os problemas que enfrentamos hoje. Nós enfrentamos agora a necessidade de desenvolver uma agenda de alternativas viáveis para a política equivocada e destrutiva dos últimos trinta anos. Este Manifesto é o começo disso. Nesta conclusão, tentamos identicar ideias e temas que sugerem um caminho a seguir, um novo curso progressista.
O que nós tentamos fazer Chegamos ao nal desta sequencia de capítulos do Sally Davison e Katharine Harris (Organizadoras), The Neoliberal Crisis, publicado on-line em 2012 e como um livro de bolso L & W em 2015, como um volume com 5
plementar para este.
S. Hall, C. Critcher, T. Jefferson, J. Clarke, B. Roberts, Policing the Crisis [1978], re publicado por Palgrave Macmillan em 2013. 7 N.T. Referência às eleições gerais do Reino Unido, realizadas em 7 de maio de 2015, que consolidaram a aliança liberal-conservadora, sob a liderança de David Cameron. 6
A supercialidade e a fraqueza subjacentes ao projeto imperial norte-americano foram observadas, de diferentes perspectivas políticas, por Niall Ferguson (in Colossus: The Rise and Fall of the American Empire, Allen Lane 2004) e Michael Mann 3
(Incoherent Empire, Verso 2005).
Reconhecemos aqui a contribuição de Justin Rosenberg para o desenvolvimento
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Manifesto de Kilburn, embora não do nosso projeto de
pensar, discutir e procurar envolver públicos mais amplos. O que estmos tentando aqui é uma problematização do momento atual, principalmente no Reino Unido, mas também dentro de um contexto internacional, em uma análise que resista tanto à demanda por políticas imediatas que simplesmente respondam às pressões eleitorais, como à tentação de ler a situação presente apenas como um sintoma de princípios teóricos de longa data. Precisamos de um reconhecimento pleno da especicidade desses tempos e de uma “teoria” que não se renda aos reducionismos. Também precisamos envolver o debate popular e político atual em seus próprios termos e, quando apropriado, desaá-los justamente como parte do problema. Soundings, a revista na qual este Manifesto surgiu, sempre se comprometeu com a análise qualicada por tais questões, e há uma série de razões para isso. Mais de imediato, acreditamos que é necessário envolver-se tanto com públicos mais amplos quanto com partidos políticos potencialmente simpatizantes. As políticas parlamentares e extraparlamentares são vitais em qualquer processo de mudança futura. Um partido político - que tem qualquer intenção de ser ousado - precisa saber que há apoio “lá fora”. Embora, certamente, o partido político deva mostrar liderança política (e não ser escravo da “opinião pública”, já constituída) e seja igualmente necessário sentir que exista alguma possibilidade de adesão “a/do público” em geral por seus desaos e de que exista uma pressão extra-parlamentar para sustentá-lo contra as forças conservadoras que operam quando estão “no poder”. Como resultado desse entendimento, enfatizamos muito a importância de abordar questões de senso comum, hegemonia, cultura, linguagem. O debate sobre a política econômica, por exemplo, está atualmente encurralado em seus termos restritos, considerados inquestionáveis, tanto pelos vocabulários quanto pela compreensão da própria economia e forma da sociedade mais ampla - a maneira como pensamos em questões de “justiça” ou de gênero, o Estado ou o meio ambiente, para mencionar apenas alguns exemplos dos capítulos anteriores. Além disso, ainda que consideremos os partidos políticos potencialmente progressistas, também é o caso de que mesmo as políticas mais imediatas e “práticas” necessariamente estejam em debate e visíveis para a sociedade. Descrever esses princípios subjacentes pode possibilitar um tipo diferente de apelo para o público, interpelando-o de maneiras que uma discussão política técnica não o faz. (Thomas Frank, em Pity the Billionaire , faz a mesma crítica aos democratas nos EUA). As políticas setoriais podem ser usadas para mobilizar debates e estabelecer fronteiras políticas genuínas. Do mesmo modo, sem um projeto político efetivo, de fato, para o público em geral, uma série de políticas setoriais
não irá somar nem atrair (ou signicar). Tom Crompton escreveu sobre isto em Soundings 54. Começando com a famosa citação de Thatcher sobre o caso ser mudar-se a abordagem, e que, por sua vez, signicava a necessidade de tocar “o coração e a alma da nação”, ele explora a “expressiva” função das políticas, sua “possibilidade de afetar” 8. Isso é essencial. Mesmo as políticas setoriais precisam não só abordar questões práticas, materiais, mas também afetar e ajudar a perceber valores e identidades subjacentes. Isso faz parte da luta pelo senso comum. Isso implica em reconhecer que os círculos eleitorais políticos não apenas existem, por aí, já prontos. Eles precisam ser ativamente construídos. Como Stuart Hall e Alan O’Shea escrevem no Capítulo 3 (Common-sense neoliberalism ), aqui em referência especica ao Partido Trabalhista: “Os Trabalhistas devem usar todas as questões políticas como uma oportunidade, não só para examinar a pragmática, mas para destacar o princípio subjacente, construindo lentamente um consenso alternativo ou “losoa popular”. Esta é uma injunção que se aplica à discussão de políticas entre a esquerda e a esquerda extraparlamentar, que tentamos repercurtir nos capítulos deste livro que tem abordado políticas especícas. Tudo isso interfere na análise que tentamos produzir aqui: o momento que se apresenta para nós - ou pelo menos a questão que nos colocamos, em termos de conjuntura. Trata-se da articulação das diferentes instâncias da formação social; como elas oferecem (ou não) as condições de existência para cada uma. O fato agrante na sequência da crise nanceira de 2007-8 não era apenas que a direita política estava usando a crise econômica para reforçar uma agenda política neoliberal (esta era uma moeda comum à esquerda), mas sim que, ocorrido isso, havia uma crise extraordinária na esfera econômica, sem grandes fraturas políticas, sem pertubar (após os primeiros momentos) a hegemonia ideológica estabelecida (neoliberal), sem rupturas signicativas no discurso popular. Nosso objetivo aqui é perguntar o que permitiu que isso fosse possível; problematizar o que é necessário para uma mudança profunda nos termos do debate (ou seja, uma ruptura ideológica) e talvez para começar a sugerir maneiras de transformá-las. Nesse cenário, duas coisas são imediatamente evidentes. Primeiro, é claro que não há lugar aqui para pressuposições de um simples determinismo econômico. É claro que a economia é absolutamente crucial, mas é o caso de que a atual trajetória econômica construída politicamente está causando tanto dano a tantas pessoas e a tantos aspectos da sociedade. Por isso, a economia não poderia ser questionada sem fundamento (a dimensão ideológica, pressupostos culturais, discursos políticos ...) de outras instâncias da formação 8
Tom Crompton, “Thatcher’s spiral and a citizen renaissance”, p.37, Soundings 54
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social. Em segundo lugar, e, por consequência, deve ser dada uma atenção séria às outras instâncias e ao papel estruturante que desempenham. Nós, inevitavelmente, começamos essa análise aqui, mas é reconhecido seu signicado nos primeiros capítulos do Manifesto, após a introdução, nas várias maneiras em que são assumidas essas questões. Vocabularies of the economy [Capítulo 1, de autoria de Doreen Massey] desaa o próprio idioma que usamos para falar sobre a economia, que determina a nossa compreensão e estabelece os termos do debate sobre a política econômica. (Isto é então levado para o capítulo sobre política econômica, Capítulo 7, Whose economy? Reframing the debate, de autoria de Doreen Massey e Michael Rustin). A relational society (Capítulo 2, de Michael Rustin) assume a centralidade conceitual de toda a visão do mundo neoliberal - a “idéia de um indivíduo autônomo e auto-determinado como o ‘átomo» fundamental do mundo humano’- e demonstra que isto está mal concebido. Ao invés disso, argumenta o capítulo, deve haver mais reconhecimento da nossa inevitável relação e interdependência e do fato de que essas relações têm as suas próprias especicidades. Deve haver um reconhecimento adequado de uma política de relações. Isso não só desaaria um princípio central do neoliberalismo, mas começaria a apontar - como o capítulo faz – os caminhos alternativos para seguir (a construção de um sistema sustentável de cuidados deve ser fundamental como estratégia econômica. E o argumento para um Estado dialógico, no capítulo States of the imagination , também coloca esta questão das relações humanas no centro do palco, defendendo o reconhecimento das dimensões emocionais de nossas diferentes relações com as instituições e práticas do Estado: “os complexos conjuntos de relacionamentos mediante os quais o Estado (essa estranha ideia abstrata) é trazido à vida. Cada conjunto de relações é altamente político». Da mesma forma States of [the] imagination retoma a questão da linguagem e “a necessidade de renovar e refazer o discurso público para constituir novas formas de solidariedade pública”, a m de trabalhar na criação de um Estado que possa contribuir para a reinvenção e expansão da cultura pública. O terceiro desse conjunto de abertura, Commonsense9, explora a natureza do senso comum, apontando para o fato de que é sempre contraditório e contestado, e argumenta que desaar o atual sentido hegemônico, neoliberal, deve ser fundamental para o nosso projeto. As questões de linguagem (discurso), de relações humanas, N.T. Vale mencionar que, na língua inglesa, a expressão common sense é empregada como bom senso, bom julgamento e também no sentido de percepção de massa, como senso comum. Tal ambivalência está presente nas análises do Ma nifesto. Lembrando que “senso comum” e “bom senso” são categorias abordadas por Gramsci em “Cadernos do Cárcere”. Vide também Oxford Dictionary , (Disponível em: https://en.oxforddictionaries.com/denition/common_sense Acesso em: 9
além das transações comerciais baseadas no mercado do indivíduo isolado, e o signicado de entender e contestar o senso comum dominante, são as contribuições desse Manifesto. A análise conjuntural também é parcialmente sobre a periodização (ver Stuart Hall, The Neoliberal Crisis). No entanto, é uma periodização da sociedade como um todo que se forma fora da interconexão de diferentes elementos (sociais, culturais, econômicos), que muitas vezes isoladamente têm diferentes temporalidades. Isso é evidente no momento atual (ver John Clarke, What crisis is this? , Soundings 43, reimpresso em The Neoliberal Crisis). Assim, ao longo das décadas anteriores à conjuntura neoliberal, as mudanças econômicas e sociais começaram a minar e fragmentar o que havia sido considerado como a base natural (em outras palavras garantidas pelo) do Partido Trabalhista. A interseção dessa erosão de longo prazo numa dinâmica mais imediata dentro da esfera política - em que Blair e New Labour optaram por interpretar essas mudanças de uma maneira que desconectou ativamente o partido dessas raízes políticas tradicionais (na verdade, às vezes essas raízes foram denidas como o outro a se opor), o que também foi absolutamente crucial. Isso transformou o terreno político. Não só mudando o centro desse terreno para a direita, mas também eliminando a possibilidade de alternativas ao neoliberalismo e reduzindo o campo político às questões de competência técnica, de quem poderia gerenciar melhor o sistema. Cada um desses tópicos no tecido (econômico, social e político) tinha sua própria dinâmica e sua própria temporalidade (e, de fato, sua própria espacialidade - o econômico sendo inerentemente global, por exemplo), mas cada um forneceu condições para o outro. A sua articulação e a natureza dessa articulação foram cruciais. Da mesma forma, a explosão de impaciência e frustração com a consolidação da social-democracia, uma explosão que entrou em erupção há mais de meio século, na década de 1960, desencadeou uma série de desaos e mudanças especialmente no campo cultural no sentido mais amplo. Sua dinâmica pretendida era progressista e amplamente para a esquerda, mas eles foram ocupados com satisfação pela direita e incorporados em seu projeto de ascensão, a partir da década de 198010. Então, o que havia sido na década de 1960 uma reivindicação para o reconhecimento da diversidade e um desao para a social-democracia em relação às estruturas monolíticas (e não é de modo algum negar os ganhos genuínos que foram feitos por meio dessas reivindicações e desaos), se transmutou lentamente na direção ao individualismo. A demanda por maior exibilidade foi igualmente cooptada para ser principalmente um princípio do mercado de trabalho,
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cujos efeitos seriam sentidos pelos trabalhadores. E assim por diante. Parte da atmosfera e do enfoque dos movimentos culturais da década de 1960 contribuiram, de forma distorcida, para o sucesso da hegemonia nanceira hoje. A leveza aparente do setor, a sua (a de novo aparente) facilidade de uxo combinam confortavelmente com a sensação cultural do momento presente (ver Doreen Massey, Ideology and economics in the present moment , Soundings 48, p.33, reimpresso em The Neoliberal Crisis ). Essas temporalidades e espacialidades, mais longas, diferenciadas e interconectadas, são fundamentais para a compreensão do caráter e da dinâmica do atual momento conjuntural. Se existe uma articulação particular, que é cerne do presente na relação de forças, é certamente a de interesses nanceiros que estão na terra e na propriedade. Ambas têm longas histórias, ambas foram e continuam hoje a ser pilares centrais da estruturação de classes da sociedade do Reino Unido. Ambas mudaram de forma ao longo dos séculos e ambos persistiram. Durante muito tempo, os interesses nanceiros vêm sendo internacionalizados, desde os dias do império até os da globalização dominada pelas nanças hoje. Embora localizada no Reino Unido, dominante em sua economia, sociedade e geograa, a relação de nanças com a economia produtiva do país tem sido muitas vezes transformada. O interesse pela terra é fundado, historicamente, mais na moradia. As lutas pela terra e pelo seu poder e a elite proprietária de vastas áreas do país fazem parte da história nacional. Os últimos quarenta anos viram a emergência do efeito dramático desses dois interesses de classe. Por um lado, o domínio estrutural das nanças acompanhou a invenção de uma nova forma do imperialismo nanceiro. Por outro lado, a terra e a propriedade tornaram-se o veículo perfeito para armazenar uxos nanceiros (um relatório recente sobre os dados do preço da moradia em Londres aponta que “os imóveis na capital [são] vistos como uma moeda de reserva global para investidores estrangeiros, bem como, para os habitantes ricos”) 11. E, como os indicadores de cotação, o lucro pela terra 12é agora um elemento num setor econômico completamente globalizado. O intercâmbio desses dois interesses de classe, juntamente com a transformação de cada um, e de ambos juntos, é um fio condutor da história do momento atual. E acrescenta-se a isso os interesses do grande corporações de petróleo, há muito globalizado e agora uma parte signicativa, não só do FTSE 13, mas também das reservas de previdência popular - em outras palavras, as grandes petrolíferas também são parte integrante do H. Osborne, “Round the bend: the crescent where house prices average £16.9m”,
11
The Guardian, 12.12.2014, p.21 .
N.T. Aqui, os autores também permitiriam um trocadilho com a expressão “lan ded”, para signicar a dinâmica do capital imobiliário. 13 N.T. É a sigla para Financial Times Stock Exchange 100 Index , uma agência clas sicadora britânica, do Grupo proprietário do Financial Times e do banco London 12
poder da nança (ver Capítulo 9). De fato, no caso da energia, a articulação de temporalidades contrastantes e espaciais é ainda mais marcante. A aliança entre corporações de energia e nanças, muito fortalecida nas últimas décadas sob o neoliberalismo, tem trabalhado para sua imensa vantagem, uma herança de alcance global construída em uma história imperial de séculos. As medidas neoliberais, incluindo as privatizações, o apoio dos governos às grandes decisões sobre a política energética e um regime scal favorável, fortaleceram ainda mais o poder das petrolíferas. E o vocabulário dominante de “clientes” nos posiciona como dependentes, capazes apenas de inuenciar o mercado nal (se é verdade), ao invés de desaar as estruturas de produção - e de poder sobre a extração contínua de estratos depositados há centenas de milhões de anos (e insubstituível) - que estão no cerne da questão. É, como se demonstrou no Capítulo 9, uma constelação mortal. Existem boas razões para levar a sério a natureza dessas interações entre histórias e geograas. Fazer isso ajuda a desvelar a estrutura do que pode parecer uma situação esmagadoramente monolítica. Isso nos leva ao reconhecimento do signicado de distintos aspectos, tanto no seu desenvolvimento relativamente independente, quanto na forma como fazem ou fornecem as condições de existência de outros os neste complexo tecido. Esse processo de desembaralhamento conceitual ajuda a esclarecer as diferentes forças que enfrentamos e a localizar conitos especícos em um contexto histórico mais longo. Uma batalha sobre a “reconstrução” de uma habitação popular, por exemplo, está em uma longa disputa de confrontações, voltando para os gabinetes e as autorizações e sobre quem é proprietário e tem controle sobre a “terra da nação”. Talvez isso ajude - politicamente, intelectualmente, emocionalmente - quando se luta num prédio ocupado, ou permaneça por horas com o cartaz de protesto, para fazê-lo no conhecimento dessa trajetória mais longa de contestação. Além disso, uma análise da articulação dessas diferentes histórias, sobre como elas funcionam juntas hoje, poderia ser uma base para o reconhecimento de interesses comuns entre forças que se opõem à ordem dominante e para uma possível aliança. Então, que momento é esse? Desde 2007/8, claramente houve uma crise da economia que ainda não está resolvida. Isto aplica-se ao Reino Unido, à UE e à escala mundial. Mas, poderia haver crises em outros aspectos da sociedade que poderiam levar a “conduzir a uma unidade ruptural”, como Althusser já havia dito? Como Stuart escreveu em The neoliberal revolution : “As crises são momentos de mudança potencial, mas a natureza de sua resolução não é dada. Pode ser que a sociedade avance para outra versão da mesma coisa (Thatcher a Major?), ou para uma versão pouco
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transformada (Thatcher a Blair?); ou as relações podem ser radicalmente transformadas”(pp.60-1). O momento atual parece ser diferente de qualquer uma dessas duas transições dentro do neoliberalismo. Em primeiro lugar, há uma grande implosão econômica, trazida internamente ao sistema e não por oposição política e, mesmo que a hegemonia ideológica e política tenha sido restaurada, as águas certamente foram perturbadas. A hostilidade em em relação aos bancos e a toda uma gama de grandes corporações permanece. O imposto (e suas várias formas de não pagamento) é uma questão tóxica. Há mais conversas sobre jovens elegantes governando o país. A palavra “privatização” agora amplamente vem atraindo nuvens de negatividade e suspeição. Qualquer um e todos estes elementos poderiam provocar uma via para questões mais profundas. E há, é claro, a austeridade. As coisas eram diferentes antes da crise nanceira. E em segundo lugar, a crise econômica e a falta de uma resposta alternativa foram aproveitadas politicamente pela Coalizão LibDem-Tory 14 para desencadear o que Stuart chamou de “revolução social mais radical, de longo alcance e irreversível, desde a guerra” ( The neoliberal revolution , p.27). E, ainda no mesmo trecho, ele argumentou que “a atual situação é a crise, outra ruptura sem solução cuja conjuntura que podemos denir como “uma longa marcha da Revolução Neoliberal” (p.13). A crise é sempre um momento de oportunidade. Alguém pode questionar deste momento em particular se a trajetória é sustentável. Economicamente, é óbvio, a questão básica é a de sustentar uma demanda suciente, dada essa mudança do trabalho para o capital. Ecologicamente, como o coletivo Plataforma escreve no Capítulo 9, “mais cedo ou mais tarde, a mudança climática vai forçar um colapso na conguração atual da sociedade”. E se esses momentos de diculdade potencial para o sistema neoliberal forem corretamente excluídos (aumentando a desigualdade e o autoritarismo), o que poderia provocar um sério desao político? O aumento impressionante dos movimentos e partidos sociais de esquerda na Grécia e na Espanha (para restringir-nos aqui à Europa) dá esperança, assim como o aumento da direita aponta para o fracasso do que foi percebido como “mainstream” da política eleitoral, que é muito mais grave do que um mero declínio nos níveis de votação. Nas respostas ambivalentes a esses momentos de diculdade, existe uma crise emergente do político? Talvez um retorno ao “business as usual” não seja mais possível.
N.T. Referência ao termo Conservative-Liberal Democrat Coalition que signicou a aliança política entre o Partido Conservador com Liberais Democratas, cuja pla taforma eleitoral foi vitoriosa em 2010 e 2015, permitindo a maioria do Parlamento 14
Um necessário sentido de crise e a guerra de posição A crise pode ser um termo excessivamente utilizado. No entanto, a essência da análise do Manifesto Kilburn é que estamos vivendo uma crise permanente. É preci so insistir em que os programas e discursos que agora dominam a política e a formulação de políticas na Grã-Bretanha, assim como no ocidente, são inadequadas às situações a que se propõem responder. A austeridade não é uma solução para os problemas de instabilidade econômica, desigualdade e falta de crescimento. Assim, a expansão da OTAN e a instituição de uma neoguerra fria contra a Rússia capitalista não são uma solução para os problemas da segurança do ocidente. Então as inter venções militares e paramilitares neoimperiais no Oriente Médio (para provocar mudanças de regime e garantir o suprimento de energia no ocidente) já pioram pratica mente todos os problemas (seja de terrorismo, segurança energética ou proteção dos direitos humanos e democra cia) que eles procuram remediar. No período dos próximos cinco anos, o que se verá mesmo é que uma estratégia oposta - de reconciliação e troca aberta, como é o caso agora da relação entre os Estados Unidos e a Cuba - tem consequências muito mais benécas do que o ostracismo, as sanções e o cerco das cinco décadas anteriores. Um redirecionamento semelhante da política deve ocorrer em relação ao Irã e à Rússia. Portanto, é necessário que as vozes sejam ouvidas, por mais indesejáveis que sejam, que insistam nesse de sajuste fundamental entre os parâmetros “ociais” da formulação de políticas e as realidades da situação. Só então os sintomas políticos patológicos (como o ressentimento mobilizado contra imigrantes da Europa ou do “Islã”, em geral) são reconhecidos como os epifenômenos que são. Gramsci diferenciou de forma memorável as pré-condições, respectivamente, de uma “guerra de movimento” e uma “guerra de posição”. As primeiras eram as circuns tâncias em que uma mudança decisiva no equilíbrio do poder social e político poderia ser alcançada, de uma só vez, por assim dizer. Ele tinha em mente as condições da revolução, mas também poder-se-ia descrever nestes termos a chegada ao poder dos Trabalhistas em 1945, ou de Thatcher em 1979 (ainda que a força do primeiro fora se perdendo durante os anos dentro no escritório gover namental, enquanto que a última se fortaleceu ali). Uma “guerra de posição” é aquela na qual nenhuma mudança brusca ou rápida na relação de poder é viável, mas onde, no entanto, haveria ganhos a longo prazo. Acreditamos que estamos atualmente em uma situa ção em que uma “guerra de posição” precisa ser prepa rada. O valor da vitória de um governo de coalizão traba -
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lhista ou liderado pelo Partido Trabalhista em maio de 2015 não é que ele, por si só, transformará a política ou a sociedade, mas que pode estabelecer uma situação em que o novo pensamento e os novos tipos de ação política possam voltar a se tornar possíveis. O individualismo rasteiro, a privatização e a costumização 15 da sociedade que se realizaram nas últimas três décadas não serão re vertidas por cinco anos, ou mesmo dez anos, do governo social-democrata e hiper-cauteloso, o que é o mais provável que vejamos, na melhor das hipóteses. Mas neste contexto, pelo menos, deve tornar-se um pouco mais possível desenvolver formas de agência, novos centros de poder, diferentes tipos de identidade e re sistências ao mercado, dentro das quais pode surgir uma melhor ordem social. Pensamos que, na atual conjuntura política, é enfaticamente necessário ter uma visão de longo prazo.
Hoje, como muitos observaram, a própria noção de futuro parece ter sido cancelada. Toda essa atmosfera da social-democracia, parece-nos, acabou. A problematização de Beatrix Campbell sobre os contextos em mudança do feminismo (Capítulo 4) nos oferece um exemplo vivo. Isso pode ser lido simples mente como derrota e como deprimente, mas o que nos traz no Manifesto é bastante diferente. Em primeiro lugar, proíbe a nostalgia: devemos abordar o radicalmente alterado aqui-e-agora. Não podemos voltar. E, em segundo lugar, devemos revigorar a sensação do tempo prospec tivo, um sentido fundamentado de que as coisas podem ser realmente diferentes (em oposição a uma outra invo cação que descarta a ideia de que outro mundo é possível). E para isso, devemos mudar os termos do debate, redesenhar o terreno político. Estas são as questões que permeiam o Manifesto.
Financiarização: uma aliança contra financiamentos
Temas emergentes O que acontece O processo de escrita do Manifesto traz para o aqui e agora o quão a democracia social foi completamen te solapada. Isso não é tanto em termos de estruturas formais - ainda haverá mecanismos de redistribuição e elementos do Estado de bem-estar, embora muito transformados. Ao contrário, queremos dizer isso em termos de ethos e espírito; como o “senso comum” da social-democracia foi fraturado e fragmentado. Como a nossa lin guagem foi transformada. Stuart escreveu em 2010 (em Interpreting the crisis , Soundings 44, reimpresso em The Neoliberal Crisis) sobre a “limpeza do discurso político”, o apagamento da linguagem da classe, a substituição das “forças de mercado” pelo “capitalismo”, da “comuni dade” para “sociedade”. Para muitos, a própria estrutura temporal do nosso auto-posicionamento no mundo foi implodida. Onde uma vez houve um sentimento de viver em uma história mais longa em que haveria progresso, para o qual poderíamos contribuir (independentemente das nossas profundas reservas à essa dupla crença es tranha às nossas críticas das meta-narrativas deterministas), agora há mudanças constantes, especialmente a tecnológica, mas é uma pequena mudança. A grande mudança, a mudança histórica, parece muito difícil de imaginar. E, embora o imaginário anterior tenha certamente suas desvantagens (sua natureza muitas vezes monolítica, a própria restrição de viver dentro de uma trajetória assumida), teve um sentimento de localização histórica e de otimismo (por mais que seja mal colocado). N.T. A expressão consumerisation of society referencia-se ao modelo das
15
O que é fundamental para o aqui-e- agora, argumentaríamos, é “nanciarização”. Isso tem sido um tópico em muitos dos capítulos aqui, e sua importância é evidente, não só no sentido econômico óbvio, mas também na maneira como ele entra nas nossas cabeças, nossas imagi nações e cultura mais ampla. É argumentável, de fato, qual seria a base fundamental da atual articulação das diferentes instâncias hegemônicas neoliberais. É parte do que mantém as coisas juntas. Pelo mesmo argumen to, é consequentemente uma base possível para reconhecer temas comuns entre uma miríade de lutas diferentes na sociedade britânica hoje; é o “inimigo comum” de uma série de escaramuças aparentemente diferentes. A oposição à nanciarização poderia ser a chave para a construção de cadeias de equivalência que liguem, pelo menos, algumas dessas lutas, construindo uma fronteira política comum, uma “aliança contra nanciamentos”? Tal aliança é, de fato, proposta no Green New Deal 16, e, além de apoiar isso, sugerimos ampliar o alcance do pro posto ali17. O objetivo de tais alianças é manter a especi cidade das diferentes lutas e seus círculos eleitorais de base, ao mesmo tempo em que os vincula às demandas que questionam as estruturas de poder mais profundas da formação social, a oposição que compartilham. Claro, as estruturas de poder “mais profundas” são coisas ainda maiores - imperialismo, capitalismo. Mas, como Chantal Mouffe argumentou, na construção de análises práticas viáveis, pés no chão, é necessário reconhecer pontos de poder, que são invocados na imaginação. Sugerimos que N.T. Termo faz referência ao New Deal, proposto na Grande Depressão dos anos 1930 nos Estados Unidos da América. Nesse casto trata-se de uma expressão que indica um pacote endereçado à crise nanceira, questão ambiental e mudanças cli 16
máticas.
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a nanciarização é uma dessas na conjuntura atual.
Alcançando “bom senso” No entanto, se a nança / nanciarização é um dos “inimigos”, um desao que pode ajudar a desfazer alguns dos piores aspectos do atual cenário, também é preciso apontar algumas das coisas boas que temos. Na verdade, existem muitas lutas especícas, embora um pouco desconectadas em suas particularidades - daí a necessidade de alianças como discutido acima. Mas também há sen timentos e atitudes potenciais, sentimentos talvez mal interpretados - acreditamos - bastante difundidos. No capítulo 3, Stuart Hall e Alan O’Shea exploraram a noção de senso comum - um conceito chave para a análise de conjunturas18. Além de enfatizar a natureza internamente composta e muitas vezes contraditória do senso comum e o fato de ser um local de contestação política, os autores apontam também para o fato de que o senso comum sempre contém “o núcleo saudável” que merece ser feito mais unitário e coerente” (p.54, citando Gramsci). Este é o “bom senso” de Gramsci: “O bom senso oferece uma base sobre a qual a esquerda poderia desenvolver uma estratégia popular para mudanças radicais - se levar a cabo a ideia de que o senso comum é um terreno de luta política” (p.54). Existem muitos elementos potenciais no senso comum atual que poderia ser atraído e, uma vez rascunhado, tecido em uma narrativa mais ampla e mais explícita. Podemos retomar essa aversão generalizada a ser constantemente chamado e, portanto, posicionado como, um “consumidor” ou um “cliente”. Os estudantes odeiam ser chamados de clientes; passageiros em trens comentam com desprezo serem chamados como clien tes; os fãs do time de futebol que um de nós apoia têm uma bandeira que arma sua identidade como “torcedores e não clientes”. O que está acontecendo aqui é uma rejeição popular da redução de todas as identidades e relações às baseadas em transações comerciais (Capítulo 1). Não seria possível recorrer a isso, e desenvolver um discurso político que reconheça a especicidade das relações e a importância crucial de se ter uma política de relações (ver especialmente capítulos 2 e 6)? Em seu capítulo, Stuart e Alan exploram o elemento de “justiça” em todas as suas articulações complexas e contraditórias e concluem que “enquanto o discurso neolibe ral é cada vez mais hegemônico e estabelece a agenda para o debate, existem outras correntes em jogo - empatia pelos outros, como uma cooperação ao invés da concor rência, ou um sentimento de injustiça, por exemplo”(p.65). Veja, por exemplo, Chantal Mouffe, sobre o Político On the Political (Thinking in Action), Routledge 2005. 18
Da mesma forma, no Capítulo 6, Janet Newman e John Clarke documentam “como as pessoas apegadas a um determinado grupo permanecem em suas identidades como membros de um público mais amplo”. E o Coleti vo Plataforma, no Capítulo 9, aponta para as questões que podem ser solicitadas a uma política energértica que possa afetar e potencialmente desencadear esse “núcleo saudável dentro do nosso senso comum que se opõe à injustiça”. Um dos exemplos mais claros de tal possibilidade, em que uma sensação de justiça poderia ser ampliada e in tegrada a uma política progressista, diz respeito à noção de “a sociedade do tudo-ou-nada”. Isto é particularmente signicativo porque o debate sobre o seu signicado chega ao cerne do assentamento neoliberal.
A sociedade do algo-ou-nada Não há dúvida de que o governo de Coalisão está cien te de que as pessoas são suscetíveis a noções de justiça. Eles tocam neste assunto constantemente de modo que são projetados para fomentar antagonismos entre aque les que, caso contrário, se oporiam a eles. Cameron se co loca em uma posição de raiva fabricada 19 contra o que ele chama de sociedade do “algo-ou-nada”. Ele normalmente se refere às pessoas sem emprego, quando ele sabe que consegue ativar o senso de (in)justiça do povo. Por que eu deveria trabalhar enquanto os outros se acomodaram com os “benefícios”? Uma resposta fácil e imediata é se perguntar sobre o que foi que ele fez precisamente para merecer toda a riqueza com a qual nasceu. Mas, existe uma resposta mais estrutural, trocar algo por nada signica precisamente o que eles (o governo de coalisão Tories and Liberal Democrats) decidiram acerca da formação econô mica e social no Reino Unido. Muito da economia de hoje não trata de produzir coisas novas, trata-se de comprar e vender ativos (terra, arte, propriedade, derivados de vá rios tipos, previsões de commodity), a m de adquirir renda e/ou se beneciar da venda dos mesmos. Dinheiro é simplesmente “feito” fora da habilidade de possuir . Como foi argumentado no capítulo 7, essa aquisição de riqueza não trata de produção de riqueza e esse efeito econô mico imediato é a redistribuição dos ativos aos acionis tas. Em resumo, chamamos isso de sociedade rentista. É também uma sociedade do algo-ou-nada. E no capítulo Energy beyond neoliberalism , os mecanismos e as apropriações injustas que isso envolve são vistos através de uma lente geográca mais ampla, na monopolização privada da Terra e de seus recursos. O que está em questão aqui é a renda e a riqueza não conquistadas. Esse não seria também um problema de “justiça” passível de de-
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bate? Isso não seria divergente do ponto defendido por Cameron? Existem diculdades claras. Por exemplo, o povo comprou essa ideia, tanto simbolicamente quanto material mente. Que são os aumentos dos preços das casas ou dos dividendos das aposentadorias, senão a apropriação privada do valor produzido socialmente? Ainda que sejam de direita, os milionários rentistas também estão cien tes da potencial precariedade que podem causar. Como Andrew Sayer apontou, a própria distinção entre dinheiro conquistado e o lucro, curiosamente, caiu em desuso, à medida em que o mercado nanceiro se tornou a nova proeminência, e ele escreve sobre como a história das nanças passou por lutas contínuas acerca do uso de termos favoráveis e desfavoráveis para as suas práticas: “investimento “,”especulação”,”aposta”,”fraude”. 20 Há claramente uma disputa a ser enfatizada aqui, as sim como Stuart Hall e Alan O’Shea argumentam, sobre como esse componente do “bom senso” que é atraído pela idéia de equidade deve ser articulado e entendido politicamente. No momento desta escrita, a batalha sobre a proprie dade da New Era em Londres está nas notícias (é na verdade uma das muitas dessas batalhas). A venda de empresa (que anteriormente forneceu casas acessíveis à classe de baixa renda) a um grupo de investimento internacional, que propôs grandes aumentos nos lucros, pode ser vista como um “evento” que sintetiza muito a conjuntura atual. Os edifícios e a terra em que se situa a propriedade foram transformados de valores de uso, de um retorno modesto, para serem considerados ativos puramente nanceiros. E esta transformação é um produto dessa nova articulação do capital e das nanças e da globalização do setor terra / propriedade sob a hegemonia neoliberal, que foi discu tida no capítulo inicial: um evento particular que emerge da constelação da mais antiga a mais recentes histórias e mudanças geográcas. No entanto, o ponto aqui é que se tornou uma causa célebre, e idéias sobre justiça foram fundamentais para a batalha. Na verdade, a campanha afetou tanto que, inclusive, o prefeito de Londres, Boris Johnson, ofereceu apoio apesar de o fato de que esse confronto particular já esti vesse sendo realizado - ele estava dando boas-vindas ao “mercado internacional dos prossionais do imóvel” (MIPIM)21, a maior feira imobiliária do mundo - precisamente o tipo de força através da qual os inquilinos da proprie dade podem perder suas casas (a própria feira também atraiu uma forte oposição de base). Foi um momento perfeito para entrar no jogo sobre o que queremos dizer com “justiça”, para levantar desaos sobre os ganhos A. Sayer, “Facing the challenge of the return of the rich”, em W. Atkinson, S. Rob erts and M. Savage (eds), Class inequality in austerity Britain, Palgrave Macmillan 2012, p.107. Veja M. de Goede, Virtue, Fortune, and Faith: A Genealogy of Finance, University of Minnesota Press 2005; e o capítulo 7 deste volume “Whose economy? Reframing the debate”, de autoria Doreen Massey e Michael Rustin. 21 N.T. No original se refere à expressão “ Le marché international des profession20
com a propriedade da terra, por trazer para o debate po lítico dominante toda a questão do capital imobilizado e do rentismo. É evidente que o objetivo era abrir para essa intervenção é evidente no fato de Johnson sentir que ti nha que dizer algo: ele - se não políticos da oposição estava muito ciente de que isso tocava dolorosamente naquele núcleo saudável de “bom senso” do povo. Não se trata de trivialidades ou de simpatia pelo indivíduo, mas de mobilizar parte de uma contestação contrária à hegemonia do senso comum, desaando a ganância e as estruturas instaladas. Quando o livro estava sendo impresso, anunciaram que os proprietários venderam a empresa para uma fundação que fornece casas acessíveis a baixa renda. Uma fase da batalha foi vencida he roicamente, mas algo maior precisa ser feito. Aliás, esta é uma arena que demanda “políticas” potencialmente possíveis e extremamente efetivas. No capítulo 7 sobre “redesenhar o debate da economia”, escreve mos sobre a necessidade de um imposto sobre o valor da terra - uma política que não só funcionaria (entre outras coisas) para atenuar o frenesi que resulta em lucrativas as moradias como as do New Era, mas também seria o veículo perfeito para aumentar as maiores questões políticas de (in) justiça e capital imobilizado. Uma política, em outras palavras, é mais do que uma política, que poderia ser parte de uma narrativa alternativa ao desenho de fron teiras políticas.
Linhas de divisão social Existe um outro elemento neste surgimento da nova sociedade rentista que raramente é mencionado, mas que é importante para a esquerda. Isto é, trata-se da mudança nas relações de classe 22. Os principais mecanismos de exploração e de apropriação do excedente já não estão tão claramente localizados em relações entre o capital, por um lado, e os trabalhadores, por outro. O valor também é apropriado através do aluguel, ganhos de capital e juros. Isso signica que as localidades da expropriação se multiplicaram, muitas vezes em lugares menos transparentes e menos contestáveis do que os locais de produção aos quais estamos acostumados (ou onde a luta não tem um histórico estabelecido). Esta é outra importante mudança, mais recente do que o declínio da fabricação e da mineração que é tão frequente mente objeto de referência, mas que também contribuiu de forma signicativa para a fragmentação das forças da classe trabalhadora. Além disso, outras linhas de divisão social também são importantes para a estruturação do momento atual. As linhas de divisão em torno de gênero / sexualidade e raça / etnia, por exemplo, estruturam as relações sociais
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de maneiras distintas. Como argumentamos na declaração inicial que abre este volume: “Quando essas divisões sociais operam dentro do sistema capitalista, são profun damente moldadas por ele e articuladas a ele. Mas elas conservam sua “autonomia relativa”. O que é importante para o nosso tipo de análise no Manifesto, portanto, não foi a documentação das desigualdades, discriminações e exclusões que seguem essas linhas de divisão (apesar de serem importantes), mas antes tentando entender como esses sistemas de divisão e subordinação relativamente autônomos se articulam com os do neoliberalismo. Nós abordamos, até agora, somente três destas linhas de divisão no Manifesto. Como é demonstrado, de fato a natureza de cada uma é distinta. A atenção à divisão ao longo de linhas geracionais é uma resposta às características políticas e econômicas imediatas da própria situação pós-crise. Há evidentes privações materiais para os jovens e um discurso político que visa criar [o conito entre] as gerações uma contra a outra. Em parte, este último foi construído para desviar a atenção das divisões de classe. Mas, não teria tido nenhuma adesão política se tivesse sido completamente falso. Como muitas narrativas políticas deturpadas, ela atinge e toca uma realidade vivida. O capítulo 5 [“ A growing discontent: class and geration under neoliberalism”, de autoria de Ben Little] rearma este argumento.
O que se manifesta como desigualdade intergeracional é, de fato, parte integrante da construção de um novo pa radigma de classe, de desigualdade e insegurança. Uma geração “nova” está emergindo, com o potencial de uma identidade coletiva, precisamente como um marcador de mudanças na conguração social. A geração mais jovem pode ser, em parte, compreendida como um caldeirão dentro do qual as normas pós-social-democracia podem ser experimentadas e incorporadas. Pode ser visto como um equivalente temporal do “caldeirão” que, na dimen são espacial, é a Grécia 23. Ambos estão pressionando os pilares para desmascarar os princípios neoliberais. Compreender a interseção de classe e geração desta forma nos dá novas ferramentas para entender a conjuntura atual, reorientar a fronteira política, muito além de ser um simples conito intergeneracional e apontar para o potencial de uma nova ação política. Além de haver paralelos com a Grécia, a questão da “geração” está inserida em discursos e movimentos que abrangem grande parte da Europa e do Norte da África. A linha de divisão social que corre ao longo do gênero e sexualidade, no entanto, é mostrada no Capítulo 4 ( After the neoliberalismo: the need for a gender Revolution , de autoria de Beatrix Campbell) que tem dimensões globais. Também há uma história estrutural mais longa e a natu reza de sua articulação com a ordem econômica domi Veja Christos Laskos e Euclid Tsakalotos, Crucible of Resistance, Pluto, 2103; e dos mesmos autores de Out of the mire: arguments from the Greek left, Sounding s 23
nante mudou no decorrer do tempo. Como argumenta o capítulo, na Europa o contrato de gênero social-democrata, centrado no movimento progressivo para, por exem plo, a igualdade de remuneração, está morto. Tinha suas próprias limitações, sendo esmagadoramente preocupa do com a redistribuição e não com a transformação das relações humanas e das identidades hegemônicas. Mas, na verdade, produziu um certo progresso. Em matéria de igualdade de gênero, o capítulo conrma o argumento de que chegamos ao nal da social-democracia com uma narrativa da melhoria desta relação. Isso foi uma derrota histórica. Em seu lugar, temos uma nova articulação do neoli beralismo e do patriarcado. Tanto o capitalismo quanto o patriarcado têm a sua dinâmica (relativamente) indepen dente, não existe uma lógica ou necessariamente uma as sociação entre eles. Mas, eles se alimentam mutuamente em sua conjuntural relação transformando-se e otimizando-se reciprocamente. Sob o neoliberalismo, essa habilitação e moldagem mútua é surpreendente. Dos ataques ao estado de bem-estar no Ocidente (e na China), às “novas guerras” e às masculinidades militarizadas que não se limitam a zonas de guerra, à impunidade que protege a violência sexual, às congurações sexuais dominadas pelos homens que estruturam o capitalismo na Ásia (e, podemos acrescentar, as hiper-masculinidades dos chamados setores econômicos “avançados”, no sistema nanceiro e tecnológico do ocidente) ... tudo isso está completamente imbricado no caráter e no funcionamen to do neoliberalismo. “O novo acordo global não é nada, senão um novo arranjo sexual.” O que isso signica é que um forte movimento feminista não só intersecciona-se com outras lutas contra a ordem atual (a necessidade de solidariedade social de algum tipo de estado de bem-estar, a necessidade de abordar relações sociais comple xas, a necessidade de abordar isso dentro de um quadro internacionalista, a necessidade de enfrentar sexualida des violentas ...), como também é crucial para erodir essa ordem. O neoliberalismo construiu-se de tal maneira que depende das formas de dominação masculina. Talvez isso também apresente uma linha de falha na qual pudes se ser atacada pelo forte movimento feminista. O capítulo 10 [ Race, migration and neoliberalism , de autoria de Sally Davison e George Shire] analisa alguns dos mecanismos, bastante diferentes, mediante os quais os discursos e as práticas racializadas foram articuladas ao neoliberalismo. De fato, como argumentam, a raça es tava no cerne de muitas mudanças e lutas políticas que marcaram a transição inicial para o novo paradigma. Des de então, as formas racializadas de senso comum têm sido fundamentais para o funcionamento e a sustentação do neoliberalismo, seja na manutenção de relações co merciais desiguais ou na construção de alianças entre classes.
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O que o capítulo também destaca, no entanto, são as contradições no coração dessas articulações. “O neoliberalismo há muito se baseou em apoio ideológico a discur sos conservadores que, em termos lógicos formais, são contraditórios, por exemplo, Margaret Thatcher desdo brou a família e a nação. Tais combinações contraditórias são parte integrante do funcionamento do senso comum hegemônico. Eles podem ser vistos claramente hoje no co-funcionamento do neoliberalismo e do racismo. Uma questão é, portanto, se as contradições podem ser es cancaradas para permitir uma maneira de estabelecer-se formulações alternativas que possam refazer a fronteira política, longe das linhas raciais, para aqueles que se encontram entre uma aliança que pode “envolver a classe e outras formas de desigualdade”, por um lado, e “o enorme poder da elite” no outro.
Pontos de Resistência Discutimos desde o início da Soundings que a política é, e precisa ser, muito mais do que “política” (de fato, esta é mesmo uma das lições que deve ser extraída do surgimento do neoliberalismo, que não é meramente um pro grama político de governos, mas envolveu a conquista de toda uma sociedade e o “senso comum” de sua época). Foi essa concepção de política que inspirou a New Left desde os seus inícios, em 1956, e que buscamos renovar quando a Soundings foi fundada em 1995. Assim, a luta sobre como a sociedade está organizada, como seus membros devem se relacionar e o que emergirá como valores centrais e representações simbólicas, precisa ter lugar numa multiplicidade de locais. No entanto, existem certos domínios-chave sobre os quais o argumento político deve ser concentrado.
Desigualdade e pobreza Um deles diz respeito ao aprofundamento das desi gualdades provocadas pelo regime do capitalismo neo liberal e a pobreza que acompanha isso. As crescentes desigualdades não são meramente uma questão de ren da e as habilidades diferenciais para gastar, que são as características mais visíveis; eles também são sobre a distribuição da riqueza e do poder. A distribuição gros seiramente desigual da riqueza, em sociedades como a Grã-Bretanha, signica que uma pequena minoria tem controle sobre o investimento e a alocação de capital. A nanceirização e o excesso de investimento em bens
imóveis que caracterizamos como direção errada da eco nomia britânica são parte integrante dessa desigualdade de poder. Mesmo onde o capital é ostensivamente imo bilizado por um grande número de cidadãos, através de fundos de pensão e outros, não existe um mecanismo efetivo para garantir que tais recursos sejam alocados para ns socialmente responsáveis 24. No contexto da distribuição do capital e da crescente desigualdade, os pro gramas de privatização (aprovados pelo New Labour 25 no cargo) têm sido altamente signicativos, já que transferiram recursos até então em comum propriedade (embora indireta ou remotamente gerenciada) para indivíduos que possuem uma riqueza privada signicativa, que de fato são uma pequena minoria da população. A distribuição do poder econômico nesta sociedade está se tornando quase feudal26. Uma consequência do padrão neoliberal de desen volvimento econômico não é apenas desindustrialização na Grã-Bretanha e em muitas outras nações, entretanto, mais amplamente, a diminuição da demanda por em prego qualicado. Este é o resultado em parte da substituição do trabalho pelo capital, agora remodelando o trabalho burocrático e também administrativo, além da exportação de investimentos para regiões com salários mais baixos do mundo. Seu efeito é enfraquecer o po der daqueles que devem viver pelo seu trabalho, que é a maioria da população adulta. Isso traz uma redistribui ção adicional do poder em favor da propriedade. Esse fe nômeno da “classe média sufocada” é evidente nos EUA na estagnação das rendas de “classe média” (como vimos, eufemismo Marx- fóbico para classe trabalhadora), no decorrer de duas décadas. Um fenômeno semelhante é visível na Grã-Bretanha. É dada uma expressão política hipócrita na apelação de Tory às “famílias trabalhadoras”, que parece se identicar com elas mesmo quando elas estão sendo danicadas pelas políticas econômicas neoliberais. A “classe média sufocada” é seu contra- slogan, que está fragilmente ligado à ideia de que as cor porações bilionárias e inadimplentes devem contribuir mais para o bem-estar da maioria. Há muitas razões pelas quais é necessária uma estratégia econômica dis tinta do modelo de neoliberalismo liderado por nanças e propriedades. Por um lado, manter o padrão de vida e evitar outra crise nanceira depende disso. Por outro lado, o equilíbrio de poder entre as classes - entre o trabalho e a propriedade - depende da disponibilidade de formas de trabalho produtivas e criativas. Um setor pú blico renovado tem um papel crucial a desempenhar em Robin Blackburn propôs que uma transferência de poder democrática pudesse ser alcançada se a propriedade popular nominal dos ativos do fundo de pensão pudesse se tornar substantiva, de fato. Veja também Age Shock: How Finance is 24
Failing Us, Verso 2011.
N.T. Referência ao Gabinete do último governo do Partido Trabalhista, no Reino Unido, cujo líder era Gordon Brown (2007-2010). 26 O texto fundamental sobre os padrões de propriedade desigual e seu signicado é o Capital in the Twenty-First Century de Thomas Piketty, publicado em 2014. O impacto deste best-selling sugere que este problema está se tornando reconhecido 25
Dossiê Doreen Massey
tal desenvolvimento, tanto na estimulação e orientação do novo investimento produtivo, como Mariana Mazzucato argumentou, quanto no fornecimento de contextos para o trabalho humanamente graticante. 27 Em termos políticos, as questões cruciais de pobreza, crescente desigualdade, irresponsabilidade e uso indevi do do poder corporativo exigem políticas de memória, crítica e ataque. Injustiça aos pobres, privilégios indefensáveis e impunidades para os ricos, a fuga das instituições nanceiras e corporativas da jurisdição efetiva dos governos - tudo isso precisa ser exposto como, nas palavras de Edward Heath, “a face inaceitável do capitalismo”; e os mandatos políticos devem ser conquistados para os movimentos em direção a arranjos econômicos mais equi tativos. Nas situações em que a má conduta for evidente (quebra de regras ou trapaça por bancos ou por empresas de terceirização, evasão de passivos à tributação), isso pode ser utilizado como oportunidades políticas. Nos últimos anos, Richard Wilkinson e Kate Pickett, entre outros, demonstraram que os altos níveis de desigualdade são destrutivos do bem-estar social, não só para os mais pobres da sociedade, mas para a qualidade de vida da sociedade como um todo 28. Parece que quanto mais íngreme o gradiente de desigualdade material na sociedade, mais numerosos são os “sintomas mórbidos” e o mal-estar social que surgem de experiências generalizadas de desrespeito, humilhação e ansiedade - ou, em uma formulação anterior, “relativa privação”.
Democracia e democratização A questão da democracia e o objetivo de alcançar uma forma de sociedade mais democrática são igual mente fundamentais. Um dos principais meios pelo qual o capital e a propriedade mantiveram seu poder é sempre aplicar a interpretação mais restrita da idéia de demo cracia. O que acontece no contexto histórico de um lon go processo de democratização que levou à realização de um sistema universal (apenas na década de 1920, ou seja, menos de um século atrás), é que votar em eleições nacionais, locais e europeias, de vez em quando, e ter a oportunidade (de fato exercida apenas por uma par cela diminuta da população) para participar ativamente da política eleitoral são uma mínima forma de exercício do poder democrático, geralmente representando pouco mais do que um direito de veto popular sobre políticas e decisões realmente impopulares. Sob a inuência do neoliberalismo, a causa da democracia tem, em sua maior parte, perdido terreno. Colin Crouch descreveu seu “esvaziamento”, a partir da cres M. Mazzucato, The Entrepreneurial State, Anthem Press 2013.
27
R. Wilkinson e K. Pickett. The Spirit Level. Penguin 2010.
28
cente inuência das corporações e instituições nanceiras no governo, por meio do lobby e do nanciamento de partidos políticos e da formação de opinião pública 29. O encolhimento do poder de comércio, de sindicatos e de governos locais eleitos foi uma causa adicional do enfra quecimento da agência democrática popular na nossa época. De fato, o poder e a responsabilidade democráticos são mais efetivamente exercidos em circunstâncias pró ximas à experiência das pessoas, onde elas têm maior conhecimento e compreensão do que está em jogo nas suas decisões. A área mais importante da vida das pessoas - que é excluída do formal e também muitas vezes de processos democráticos informais - é a ambiente de trabalho. A pré-condição de uma democratização mais profunda da sociedade é o estabelecimento de direitos e responsabilidades democráticas na esfera econômica, a partir da representação dos funcionários nos conselhos da empresa e nos procedimentos de tomada de decisão e dos poderes de compensação dos sindicatos e das associações prossionais. Não só esse desenvolvimento aprofundaria a cultura da democracia na sociedade e a experiência da prática democrática, mas também torna ria muitas organizações corporativas e governamentais mais ecientes e competitivas, ao permitir-lhes mobilizar maior iniciativa, responsabilidade e compromisso de seus membros. O referendo sobre a independência na Escócia vem sendo um evento importante na vida política britânica, ao mostrar quais níveis intensos de comprometimento e atividade são possíveis quando os cidadãos sentem que algo importante está em jogo. Este debate levou a uma nova consideração de questões de poder descentraliza do no resto do Reino Unido, incluindo a Inglaterra. A reali dade é que o Reino Unido, antes da devolução da Escócia e de Gales, tem o aparelho de governo mais centraliza do na Europa. A desindustrialização de grande parte da Grã-Bretanha e a redução do poder de suas autoridades locais contribuíram para aumentar as desigualdades entre as regiões, agravando as desigualdades de classe e propriedade que cresceram sob o neoliberalismo. Sem responder a um localismo romântico, uma transferência signicativa de poderes dentro de um quadro de normas e de redistribuição ofereceria a possibilidade de corrigir esse (des)equilíbrio e de criar novos centros de agência democrática, como surgiram da delegação de poder para a Escócia. É necessário também revisar a questão do sistema eleitoral, cujo sistema de maioria simples para as eleições parlamentares inibe seriamente o processo democrático. As questões da desigualdade e do empoderamento democrático são cruciais para qualquer contestação do poder e da legitimidade do neoliberalismo como sistema. Veja Colin Crouch, Post-Democracy, Polity 2004; E The Strange Non-Death of
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Quaisquer restrições que um governo alternativo possa enfrentar ao assumir o cargo, uma pauta essencial para a sua ecácia será o progresso de duas medidas: uma agenda para diminuir a desigualdade e para o aprimora mento do poder e da prática democráticos.
Questões Ambientais Em Soundings número 51, Guy Shrubsole lembrou que Robin Cook disse uma vez que o ambientalismo era o “gigante adormecido da política britânica” 30. Como uma questão imediata, teve seus altos e baixos, explosões de atividade em torno de protestos sobre estradas, alimen tos transgênicos, mudanças climáticas e a venda de orestas públicas, sendo separados por períodos de relativa calmaria. Mas, seu artigo também aponta para uma distinção entre opiniões e valores. O primeiro refere-se à urgência dos temas políticos, às atitudes diante do que acontece debaixo da superfície, e o segundo valoriza a profunda mudança da opinião pública. É no nível de atitudes e valores que o Manifesto desejava argumentar. Uma das abordagens para questionar isso, como Guy Shrubsole argumenta, é assumir o nosso distanciamento do mundo natural, reconhecendo e valorizando nossa relação com ele. Isso também é uma chave de interpretação central aqui no nosso argumento. Um dos elementos cruciais que o nosso capítulo sobre energia deixa claro é que as questões ambientais não fa zem parte de uma esfera separada, mas estão totalmen te relacionadas com todas as outras lutas políticas que aqui abordamos. Sua relevância para os debates sobre a democracia é fundamental para esse capítulo, porque ele argumenta a necessidade de movimentos sociais, de intervenção do Estado e um conjunto de arranjos mais diversicado e exível em que a especicidade local e o ativismo são cruciais, sem recorrer a um localismo fácil ou exclusivo. A questão da propriedade da terra também é importante para mudar nosso sistema de energia, tanto para permitir as mudanças necessárias de uso quanto para evitar lucros e concessões para as grandes corporações. A fúria com que a população manifestou-se sobre a proposta de venda de orestas públicas é uma indicação de que há sentimentos progressivos a serem aproveitados aqui. E a questão da energia também está totalmente ligada à das nanças, e especialmente ao desenvolvimento de Londres, que não é apenas um centro nanceiro, mas também uma cidade energética. Isso levanta, por sua vez, grandes questões da responsabilidade histórica e global do Reino Unido. Não poderia haver uma política que abordasse especicamente este papel de Londres no mundo global? O que Londres representa? Não faz tanto tempo que Londres era uma cidade radical.
Então, questões de “ambientalismo” não são apenas básicas para nossa própria sobrevivência, elas tam bém são parte integrante do resto da nossa política, uma arena em que uma innidade de diferentes fronteiras políticas podem ser abertas.
Múltiplas esferas da ação: encontrando unidade na diversidade Por conta da natureza das políticas conjunturais, não se pode prever os locais de antagonismo e a potenciali dade que mais possam vir a provar qual seria o signicado nas lutas para suplantar o neoliberalismo de sua atual posição de domínio ideológico. Discutimos neste Manifesto que o neoliberalismo tornou-se um senso comum compartilhado e, de fato, foi deliberadamente construído para ter essa força, por muitas agências diferentes. Apon tamos neste Manifesto que há pontos de resistência. Por exemplo, o nosso argumento contra o individualismo, ao considerar o conceito relacional da natureza humana (no Capítulo 2, A relational society ), está enraizado na experiência da maioria das pessoas em relação à dependência e à conexão como condição para o desenvolvimento atra vés do ciclo de vida. Contra as pressões para interpretar as relações em termos de mercado, médicos, enfermei ros e professores continuam vendo aqueles para quem o bem-estar e o desenvolvimento trabalham como pacientes ou estudantes, e não como meros clientes. A resis tência ao mercado e às denições corporativas dessas esferas de trabalho é, portanto, central para um conceito diferente de uma boa sociedade. O compromisso revela dor dos conservadores em reduzir o papel do Estado e dos serviços públicos a um mínimo residual, algo não visto desde a década de 1930, agora expõe o pleno signicado do neoliberalismo, mas talvez dena um terreno de luta em que possa ser travado com sucesso. Mas há muitas outras esferas de vida nas quais os valores do neoliberalismo e as formas de poder que ele mobiliza precisam ser contestados. No Capítulo 9 ( Energy beyond neoliberalism ), discutimos o signicado das questões ambientais e as mobilizações em torno delas, como um exemplo crucial disso. Essas questões envol vem o bem-estar futuro de toda a comunidade humana e exigem uma perspectiva que não seja meramente indi vidual e de curta duração, como no tipo dominante neo liberal. O desenvolvimento de programas responsáveis para responder aos perigos da mudança climática impli ca numa transformação fundamental nos valores, que até agora podem ocorrer, mesmo que seja muito lenta. Ou considere o campo mais especíco da educação pós-escolar [como o Ensino Superior ou Prossionalizante]. Foi relatado que meio milhão de jovens entraram em
Dossiê Doreen Massey
seu primeiro ano de universidade em 2014, o maior núme ro de todos os tempos. As experiências que eles têm, os currículos que eles seguem, o que e como eles aprendem, devem, a seu modo, ser formativos para a ordem social, o que é inevitavelmente reeditada por todas as gerações. Há perguntas a serem feitas sobre o que é ser “político” neste contexto? Como os professores da universidade e a “equipe de apoio” e seus alunos dão ao seu trabalho um signicado que resista à sua redução a uma mera conquista de credenciais e na vantagem competitiva, seja para si ou para cada vez mais organizações “corporati vas”? Aqui é um local onde a invenção de uma política “prognóstica”, na qual as relações de aprendizagem e sociais assumam a forma que desejariam ter no futuro, pode ser tão importante quanto as formas mais comuns de ação política. Essas relações desejáveis estão bastante longe do estado atual das coisas, nas universidades dominadas pelo gerencialismo, pela classicação competitiva e por uma consciência subjacente de que muitos diplomados não encontrarão trabalho que faça bom uso de sua educação e de suas capacidades. Mas, para que uma abordagem tão prognóstica se torne possível, é preciso que haja uma análise crítica do que são agora os desapontamentos generalizados desse setor. Não se pode prever onde, mesmo envolvendo a análise política mais articulada e multifacetada, a necessidade, a oportunidade de contestação e o debate político possam se abrir. Por exemplo, as principais organizações esporti vas gostam de armar que não têm “nada a ver com a política”, quando, de fato, os esportes oferecem à sociedade algumas das suas representações mais inuentes sobre seus signicados e valores. Assim, faria alguma diferença para o senso de si mesmo da sociedade se os torce dores do futebol reivindicassem alguma participação de propriedade e poderes de decisão nas equipes que eles apoiam. Ou se as federações esportivas internacionais, como a FIFA ou o COI, fossem libertadas do controle oli gárquico e da corrupção. Ou, para tomar outra instância aparentemente menor, vimos que os currículos de História nas escolas têm um signicado político sério, na medida em que eles constroem e impõem uma versão de identidade nacional e social. Cabe lembrar que a contribuição dos escritos de Raymond Williams para o vocabulário socialista ofereceu o reconhecimento de que as práticas e instituições culturais (por exemplo, a imprensa) são fundamentais na denição dos limites das possibilidades e são elas mesmas um elemento crucial no campo de conito 31. Com referência a essas várias instâncias, buscamos com o Manifesto argumentar que a política precisa ter muitas dimensões (procurando, pelo menos, conter o capitalismo dentro de um espaço limitado, responsável e democrático), algumas das quais podem não parecer
políticas no sentido comum do termo. Como Deleuze e Guattari colocaram em seu diferente idioma, há “mil pla tôs”, isto é, um número quase innito de pontos de múltipla interseção, dentro dos quais o futuro de uma socie dade pode ser imaginado, combatido e determinado 32. De fato, em uma boa sociedade haveria muitas formas de coexistência e contestação, e não exclusivamente as de propriedade e capital, por um lado, nem de governos e organizações políticas, por outro. Após esses anos de ascendência neoliberal, o desao é desenvolver maneiras de pensar e sentir que possam criar conexões entre diferentes tipos de ação e identicações engajados nelas. É preciso haver tanto o respeito pela diversidade, para as especicidades de cada esfera da vida, quanto um reconhecimento do que deve ser uma concepção fundamental da justiça, da igualdade e da “democracia profunda”. A tarefa é criar e sustentar um novo consenso acerca de valores que os governos eleitos, ao longo do tempo, encontrariam segurança para fortalecer em suas decisões. Agora, com o Manifesto Kilburn concluído, nós na Soundings seguiremos problematizando esta análise e estes argumentos.
G. Deleuze e F. Guattari, A Thousand Plateaus, Continuum, 1987.
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GEOgraphia Niterói, Universidade Federal Fluminense ISSN 15177793 (eletrônico) Vol.19, N 40, 2017: mai./ago.
ARTIGOS
¿CUÁNDO LA GEOGRAFÍA PERDIÓ SU “GRAPHIA”? UN ENSAYO HISTÓRICO Y CRÍTICO SOBRE LAS HABILIDADES GRÁFICAS PROMOVIDAS EN LA GEOGRAFÍA ESCOLAR Carla Lois * CONICET – Universidad de Buenos Aires **
“En la enseñanza del dibujo, es un lugar común decir que lo fundamental reside en el proceso especíco de mirar. Una línea, una zona de color, no es realmente importante porque registre lo que uno ha visto sino por lo que le llevará a seguir viendo”. John Berger, Sobre el dibujo.
Resumen: La geografía es una disciplina que carga con una larga tradición gráca, que forma parte incluso de su propio nombre (algunas interpretaciones etimológicas hacen prevalecer el sentido de gráco o dibujo del sujo graphia sobre la de descripción textual). Sin embargo, en los últimos dos siglos, la Geografía se ha ido consolidando como en una disciplina eminentemente literaria y ello ha terminado impactando sobre la producción y el u so de imágenes en la geografía escolar. Por el contrario, a nales del siglo XIX, estaba ampliamente aceptado que el acto del dibujo (sobre todo, el copiado y el calcado de mapas) era un ejercicio útil para pensar, interpretar e interiorizar contenidos geográcos. En este artículo se analiza cómo fueron variando las habilidades grácas promovidas en la geografía escolar a partir de experiencias, materiales y actividades desarrolladas en instituciones escolares (considerando que es allí donde y cuando se aprenden las destrezas expresivas y comunicacionales) entre nales del siglo XIX y mediados del siglo XX. Palabras clave: Geografía escolar. Mapa. Dibujo. Geometría.
QUANDO A GEOGRAFIA PERDEU SUA GRAFIA? UM ESNSAIO HISTÓRICO E CRÍTICO DAS HABILIDADES GRÁFICAS PROMOVIDAS NA GEOGRAFIA ESCOLAR. Resumo: A geograa é uma disciplina que traz consigo uma longa tradição gráca, que é parte de seu próprio nome (algumas interpretações etimológicas prevalecem o signicado de gráco ou desenho do suxo graphia sobre o de descrição textual). No entanto, nos últimos dois séculos, a Geograa se consolidou como uma disciplina eminentemente literária e iss o acabou impactando na produção e uso de imagens na geograa escolar. Em oposição a isso, no nal do século XIX, foi amplamente aceito que o ato de desenhar (especialmente a cópia e o mapeamento) era um exercício útil para pen sar, interpretar e internalizar conteúdos geográcos. Neste artigo, analisamos como as habilidades grácas promovidas na geograa escolar foram variadas com base em experiências, materiais e atividades desenvolvidos nas instituições escolares (considerando que é lá e quando as habilidades expres sivas e comunicacionais são aprendidas) entre o nal do século XIX e meados do século XX. Palavras-chave: Geograa escolar. Mapa. Desenho. Geometria.
WHEN DID GEOGRAPHY LOSE ITS GRAPHIA? A HISTORICAL AND CRITICAL ESSAY ON THE GRAPHIC SKILLS LEARNED AT SCHOOL. Abstract: Geography is a discipline that carries with it a long graphic tradition, which is even part of its own name (some etymological interpretations prevail the sense of graphic or drawing attributed to the graphia sufx over textual description). However, in the last two centuries, Geography has been consolidated as an eminently literary discipline and this has ended up impacting on the production and use of images in school geography. In contrast, at the end of the nineteenth century, it was widely accepted that the act of drawing was a useful exercise for thinking, interpreting and internalizing geographical contents. In this article we analyzed how the graphic skills promoted in school geography varied from e xperiences, materials and activities developed in school institutions between the end of the 19th century and the mid - 20th century. Keywords: School geography. Map. Drawing. Geometry.
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*Doutora em Geograa. Pesquisadora do CONICET – Universidad de Buenos Aires. E-mail:
[email protected] ** Calle Puán 480, 4o piso. Ciudad de Buenos Aires - 1406. Tel. 54 11 44320606
¿Cuándo la geografía perdió su “ graphia”? un ensayo histórico y crítico sobre las habilidades grácas promovidas en la geografía escolar
Introducción La mayoría de las interpretaciones etimológicas del término geografía suelen mencionar que, strictu senso, el signicado original del término remite a la descripción (gráca y textual) de la Tierra: geo: Tierra – graphia: descripción y/o diseño y dibujo 1. Sin embargo, especialmente durante la segunda mitad del siglo XX, la crisis de identidad disciplinar y las críticas a los modelos descriptivos han llevado a relativizar el peso de la etimología cuando se intenta explicar de qué se trata la disciplina geográca. Y aunque, por cierto, los saberes geográcos y la disciplina geográca no pueden ser explicados o denidos sólo a partir de sus raíces etimológicas, también es probable que el hecho de renegar por completo de ellas haya sido uno de los elementos que contribuyó a esa confusión respecto del objeto y de los métodos de la geografía que, con mayor o menos intensidad, aún persiste 2. ¿O, por el contrario, esa obliteración es un síntoma de tal confusión? En cualquier caso, son hipótesis que no pueden abordarse sin antes reexionar sobre las prácticas de inscripción (tanto textual como gráca) que dieron forma y materialidad a los saberes geográcos.
y publicó artículos sobre el tema 3. Sin embargo, la trayectoria de Mackinder se asocia más a la geografía política, y sus textos sobre la visualidad son bastante menos conocidos que los de geopolítica, lo que también puede ser interpretado como un síntoma colateral del
soslayo al que se ha relegado lo visual en la tradición geográca. Sin embargo, todavía hoy en día, persiste la convicción de que existe una íntima asociación que se asume entre geografía y mapas (ya sea de manera implícita o explícita, entre académicos o entre legos). Pero aquí no queremos reducir lo visual a los mapas. La tradición gráca y visual de la geografía a la que nos referimos aquí es mucho
más amplia, variada y compleja que la simple asociación entre geografía y cartografía. Especícamente podemos armar y demostrar que hacia nales del siglo XIX y principios del siglo XX, la cuestión visual estaba asociada a las destrezas grácas no sólo se utilizaban para la visualización de información geográca mediante mapas y otros dispositivos visuales sino que también implicaba el desarrollo de habilidades para el dibujo con el objetivo de facilitar el aprendizaje de la geografía en la escuela primaria y, en términos más amplios, proporcionar los elementos necesarios para desarrollar el pensamiento espacial.
En sintonía con otros estudios que recientemente
Sin embargo, en los últimos dos siglos, la Geografía
procuraron rescatar el valor de la descripción textual en la tradición geográca desde una perspectiva que la desestigmatiza a partir de una minuciosa revisión histórica (Zusman, 2014), en este trabajo se aborda la
se ha ido consolidando como en una disciplina
otra acepción de la graphia de la geografía, es decir la
dimensión gráca y visual, que, por motivos diferentes, también ha venido quedando relegada en las prácticas geográcas contemporáneas, y en la reexión sobre la historia y las teorías de la geografía. Las cuestiones visuales fueron y siguen siendo una parte central en la formulación de teorías geográcas, no sólo para la visualización de información geográca mediante mapas y otros dispositivos visuales sino como estrategia epistemológica. De hecho, existen textos de autores clásicos, como Halford Mackinder, que se han referido en más de una oportunidad a la importancia
cuestión visual: como señalan Schwart y Ryan, Mackinder denía a la geografía como “una forma especial de visualización” (2003: 3), e incluso dio conferencias La entrada “Geografía” del Diccionario AKAL de Geografía comienza diciendo “Descripción, dibujo de la Tierra, en aparente oposición etimológica con la discusión, es decir, la explicación de la tierra, la geología. No es pues en la etimología sino en la práctica de la investigación y de la formación del conocimiento geográco donde se deben buscar los elementos de una denición” (George, 2044: 288-290). En otras variantes de las deniciones etimológicas, se ha optado por traducir “graphia como escritura: “GEOGRAFIA La geografía puede ser formalmente denida como el estudio de la supercie de la Tierra. considerada como el espacio en el que se desenvuelve la vida de la pobladón humana (Haggett, 1990) o simplemente como el estudio de la Tierra como hogar de la gente (Tuan, 1991). El término viene del griego geo. la Tierra. y graphein, escribir” (Haggett, 1987: 238). 1
En El lugar de la geografía, el geógrafo Tim Unwin comienza armando “la geografía es una de las formas más antiguas de ejercicio intelectual y, pese a ello, los geógrafos profesionales no responden unánimemente a la pregunta de qué es 2
eminentemente literaria (Godlewska, 1999: 21-56). Este sesgo literario también tuvo su impacto sobre las narrativas acerca de la propia disciplina: la mayor parte de las historias de la geografía están habitualmente centradas en el análisis de la producción textual de los geógrafos, tanto cuando hacen un relato con criterios intelectuales o de historia de las ideas como cuando se guían por criterios institucionales.
No está claro si este proceso de “literarización” está conectado con la institucionalización de las primeras cátedras de Geografía en disciplinas humanísticas y sociales en el último tercio del siglo XIX, que se consolidó a la largo del siglo XX 4 -es decir, la inscripción de la geografía entre las ciencias humanas y sociales (en lugar de las ciencias físicas). También pudo haberse debido a que, en el contexto de una crisis de identidad disciplinar, a mediados del siglo XX, se fue poniendo cada vez más el acento sobre cuestiones espaciales y sociales; y, por ejemplo, en lugar de denir a la geografía por rasgos derivados de (o asociados a) su etimología se volvió un
lugar común denirla según más o menos los siguientes términos: “a) ciencia que tiene por objeto el espacio de las Entre esos textos, quiero especialmente rescatar una conferencia que dictó en 1911 y que fue publicada como “The teaching of geography from an imperial point of view, and the use which could and should be made of visual instruction” en la revista The Geographical Teacher, vol. 6, n.2, summer, pp.79-86 (1911). 3
Sobre la institucionalización de la geografía y los modos de contar historias de la geografía a partir de ella pueden consultarse algunos de los trabajos más clásicos:
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sociedades, la dimensión espacial de lo social; b) objeto de esta ciencia, espacio de las sociedades” (Levy, 2003: 399). Otra opción para explicar esa “textualización” de la Geografía puede tener que ver con el desarrollo cada vez
la escuela primaria, el calcado de mapas, recientemente
visualización6 y pensamiento espacial vinculado a la formación y la experticia de los geógrafos profesionales. Sin duda, una combinación variable de estos factores debe haber tenido cierta inuencia para que hoy en día, la tendencia general de los geógrafos sobre el uso de las
acusada por algunos pedagogos de ser un método enciclopédico y repetitivo de aprendizaje. Lejos de esta concepción, a nales del siglo XIX, estaba ampliamente aceptado que el acto del dibujo (incluyendo el copiado y el calcado de mapas) era un ejercicio útil para pensar, interpretar e interiorizar contenidos 9. A partir de esta premisa, en este artículo me focalizaré en analizar las habilidades grácas promovidas en la geografía escolar a partir de experiencias, materiales y actividades desarrolladas en instituciones escolares (considerando que es allí donde y cuando se aprenden las destrezas expresivas y comunicacionales) para analizar sus variaciones históricas a entre nales del siglo XIX y nales del siglo XX. La selección de casos de diversos países (Estados Unidos, Francia, Argentina, Brasil y Guatemala) mostraría que el problema que es objeto de estudio en este artículo es una tendencia generalizada, independientemente de las coyunturas de los sistemas
imágenes (en el caso de aquellos que efectivamente las
educativos.
usan) consista más en analizarlas que en producirlas, es decir, en ponerle palabras o verbalizarlas. Si bien este diagnóstico es particularmente válido para
En primer lugar, contextualizaré el lugar y la espacialidad de las imágenes en las instancias de instrucción formal, y su impacto sobre los modos de observación. En segundo lugar, procuraré analizar qué tipo de dibujo se promovía en contextos de instrucción escolar moderna y con qué nalidades pedagógicas. En tercer lugar, analizaré las
más autónomo del campo de la cartografía (no sólo en
ámbitos técnicos que se dedicaron a desarrollar métodos de levamiento y producción de cartografía topográca sino también en la creciente apatía de los geógrafos por diseñar lenguajes visuales que, en parte, derivó en la especialización de muchos diseñadores grácos en la producción de cartas temáticas). Con esto, la imagen
metonímica de la geografía (el mapa) fue convirtiéndose más en un soporte para la espacialización de datos que en un dispositivo que produce regularidades 5 de
la comunidad de geógrafos profesionales 7, puede hacerse
extensivo al resto de la sociedad asumiendo que durante la formación escolar primaria y secundaria también la ciudadanía alfabetizada accedió a conocimientos geográcos que, con mayor o menor sincronía, están vinculados con la producción de conocimiento geográco académico8. De hecho, un síntoma de esto es la erradicación de una de las prácticas más tradicionales de “El dispositivo está destinado a producir regularidades, constituyendo un ensamble dinámico, efectuando operaciones prácticas ey dotado de una función estratégica” (Brossat, 2008: 203). Los dispositivos tendrían una doble agencia: la de las máquinas (en el sentido panóptico, la experticia médica) y el de los ujos que atraviesan los individuos y los gruos, afectando directamente los modos de subjetivación (aquellos que conciernen a la política, al sexo, a la salud, etc). El dispositivo se pone en acción con nes útiles. Lo propio del dispositivo es responder a una demanda ligada a una situación nueva. Lo que caracteriza a un dispotsiivo es su plasticidad para responder a demandas cambiantes 5
Especícamente aquí se recupera la cuestión visual asociada a la categoría foucaultiana de dispositivo que Deleuze delineaba en los siguientes términos: “Las dos primeras dimensiones de un dispositivo, o las que Foucault distingue en primer término, son curvas de visibilidad y curvas de enunciación. Los dispositivos son (…) máquinas para hacer ver y para hacer hablar (…). Cada dispositivo tiene su régimen de luz, la manera en que ésta cae, se esfuma, se difunde al distribuir lo visible y lo invisible, al hacer nacer o desaparecer al objeto que no existe sin ella” (Deleuze, 1999: 16).
funciones didácticas asignadas a diversas prácticas de
dibujo de mapas e imágenes geográcas en función de las instrucciones que se daban para producirlas (para ello examinaré libros didácticos y pedagógicos, dirigidos tanto a alumnos como a docentes en los que se explica para qué y por qué es necesario dibujar mapas en el aprendizaje de la geografía). Finalmente, revisaré algunos ejercicios de dibujos cartográcos en relación con la aplicación de principios geométricos y el desarrollo del pensamiento espacial.
6
Uno de los síntomas visibles de este diagnóstico son los estudios realizados sobre las publicaciones geográcas que han detectado la escasez de mapas en ellos. Ron Martin contabilizó sólo 50 páginas con mapas dentro de las más de 2000 que había publicado Transactions of the British Geographers en 1999 (Martin, 2000: 4). Perkins (2004) comenta que en ninguno de los reportes de Progress in Human Geograpphy publicado en las dos décadas del siglo XX no habían incluido ningún mapa aunque el reporte estuviera vinculado a cuestiones cartográcas. 7
Se han estudiado casos de desfasaje de décadas entre los temas y problemas abordados por la geografía académica y la curricula escolar. En el caso de la Argentina, históricamente las “características de la geografía profesional deben tenerse en cuenta para comprender la trasposición didácticas de las innovaciones disciplinares. Si bien los discursos escolares nunca son transposiciones literales de los saberes disciplinares, ya que el campo de la educación es un lugar de decantación y circulación de visiones que provienen de varias fuentes, en el caso de la Geografía este aspecto se potencia por la debilidad del campo disciplinar local como generador de contenidos. El espacio curricular de la Geografía recibió la impronta que difícilmente pueden ser referidos en forma directa a la producción local de la disciplina, y que encuentran sus fuentes en el ensayo histórico y sociológico, en el saber estadístico y geológico, en elaboraciones de los círculos diplomáticos y militares” (Romero, 2004: 81). Para una visión contemporánea, véase 8
La contemplación de las imágenes en las paredes del aula: entre la decoración y la función didáctica Con el rótulo “lección de geografía” (o “geography lesson” o “cours de géographie”) se etiqueta una inmensa y ecléctica cantidad de imágenes que varían desde la pintura del Rey Luis XVI mostrando con atención un globo terráqueo a su hijo Louis-Charles en Temple hasta actuales clases de geografía donde los alumnos dirigen su atención hacia algún mapa desplegado en una gigante pantalla digital sobre el que el profesor está dando alguna explicación. Especícamente, la relación entre educación geográca y cartografía escolar viene siendo objeto de múltiples reexiones críticas que pretenden revisar el papel que juegan los mapas en la enseñanza de geografía Jörn Seeman, “O ensino de cartografía: olahres cartográcos, Cartofactos e Cultura cartográcas. En Flaviana Gasparoti Nunes, Ensino de Geograa. Novos Olhares e Práticas. : Dourados MS, 9
¿Cuándo la geografía perdió su “ graphia”? un ensayo histórico y crítico sobre las habilidades grácas promovidas en la geografía escolar
Es decir: más allá de los momentos históricos, de
actualidad, las imágenes de las paredes del aula son, a
las tecnologías y de los grupos sociales, los mapas fueron utilizados como “teatros del mundo” 10, dignos de contemplación y síntesis de nuestro mundo.
veces provistas por el docente; otras, elaboradas por alumnos; o incluso “heredadas” de quienes usaron ese aula el año anterior. Abarcan un amplio espectro de temas: “Hojas de árboles secas en otoño, ores de papel en primavera, veinticinco dibujos exactamente iguales, veinticinco dibujos todos distintos entre sí, instructivos para combatir la pediculosis, un menú del comedor, carteles con reglas ortográcas, relojes, calendarios,
La tradición de las imágenes en las paredes del
aula con objetivos didácticos tiene una larga data. Las primeras imágenes explícitamente diseñadas para ser exhibidas en el aula aparecieron en 1822, producidas en pequeño formato (20 x 30 cm) y presentando escenas u objetos familiares destinados a la enseñanza primaria. Pero la ‘era de oro’ de este tipo de dispositivos didácticos se dio entre 1870 y 1920, cuando las imágenes comenzaron a producirse en diferentes formatos y en grandes cantidades. En esta etapa, su uso se expandió especialmente en los países germanos y abarcó todos los niveles educativos. Sólo en geografía, aparecieron
más de treinta series de imágenes entre 1880 y 1915 (Bucchi, 2006: 90-91). Aparentemente, incluso antes de que se diseñaran materiales especícos para ser colgados en las paredes, el libro Elementarwerk (Libro de texto para la enseñanza elemental) publicado por el pedagogo alemán Johann Bernard Basedow (1732-1790) acompañó su atlas con más de 100 grabados (copper engravings) encargados al artista Daniel Nieolas Chodowwiecki (1762-1801) que incluían tanto temas de la vida cotidiana (la casa, el campo, etc.) como otros aspectos relacionados con las
artes, las artesanías, los paisajes geográcos y la historia natural. El autor sugería que algunas de esas imágenes
fueran recortadas, pegadas a algún soporte duro y cubiertas por un vidrio de manera tal que fuera posible
láminas de revistas, son sólo algunos de los elementos
que podemos encontrar en las paredes de pasillos y aulas de una escuela primaria. Esto resulta tan habitual, es tan «natural» que estén allí, que por lo general no constituyen un problema o un tema de reexión; tanto es así, que son relativamente escasas las investigaciones empíricas que tratan sistemáticamente este aspecto particular del
espacio escolar” (Augustovsky, 2003: 39). Los mapas fueron y son una de las imágenes omnipresentes en las paredes de las aulas, y por tanto no sorprende que se haya discutido y reexionado largamente sobre cómo utilizarlos. En una revista para docentes publicada por el Ministerio Nacional de Educación de la Argentina, El Monitor , el artículo de Antonio Atienza y Medrano incluye un capítulo llamado “Mapas murales escritos” en el que dice: “Siempre es útil el uso de los mapas murales cualquiera que sea el estado de los alumnos; pero se siente más la necesidad en la enseñanza primaria, donde los niños carecen a menudo de atlas. (…) Los tres mapas esenciales en una escuela primera
son tres: el de la patria, el del continente y el mapamundi o planisferio.” (Atienza y Medrano, 1890: 1382).
colgarlas en la pared del aula.
Desde entonces y hasta nuestros días, las paredes del aula moderna son uno de los espacios tradicionalmente usados para desplegar imágenes de diverso tipo. En la En la cartografía, la noción de teatro quedó denitivamente instalada a partir del éxito editoral del Theatrum Orbis Terrarum del cartógrafo amenco Abraham Ortelius (1527-1598) (considerado el primer atlas moderno, comenzó a publicarse en 1570). En este caso, el teatro ponía la geografía ante los ojos del lector; y para eso organizaba una puesta en escena que hacía visible un inventario de elementos geográcos. Esta propuesta –que supone, a su vez, una manera de mirarescenicaba el teatro mismo desde la portada: invitaba a los lectores a traspasar un pórtico (el frontispicio) que no sólo evocaba los teatros reales sino que también, como ha señalado Denis Cosgrove, realzaba la apreciación de la arquitectura y los diseños clásicos (Cosgrove, 2003: 858). Ya en el Renacimiento, la noción de teatro aparecía como un topos de la época, “tal vez por imitación del famoso gran ‘teatro de la memoria’ de Giuglio Camillo, devino un símbolo del enciclopedismo hermético y platonizante en toda Europa (...). Devino el título ideal para cuanto libro, museo o biblioteca en el que el consenso cientíco es llamado a observar los documentos y las maravillas de la naturaleza (repertorio de emblemas, herbolarios, narrativas e inventarios de imágenes, de retratos, de monedas, etc.)” (Magnani, 1998: 46). En su libro sobre Abraham Ortelius, Giorgio Magnani explica que “el tema del espectáculo del mundo observado desde el cielo había sido un topos de la losofía estoica: los dioses se complacían observando desde lo alto de su estrado la vida de los hombres y la parte que cada uno de ellos desempeñaba en la ‘comedia humana’” (Magnani, 1998: 38). Para el momento en que se publicaba la primera edición de Ortelius, ya se habían editado (y se seguían reeditando) las siguientes obras que también llevaron títulos que recuperaban la idea de teatro: Le théâtre du monde (Pierre Boistuau, 1558), Teatro morale de’moderni ingegni (Cherubino Gherarducci, 1586), Il teatro de’ vari cervelli mondani (Tomasso Garzoni, 1591), Teatro del cielo e Della terra (Giusseppe Rosaccio, 1594), Teatro degli inventori (Vicencio Bruno, 1603), Theatrum Galeni (1568), Theatrum diabolorum (1569), Theatrum humanae vitae (Theodor Zwinger, 1565), Theatrum instromentorum et machinarum (Jacques Besson, 1578), Gynaeceum sive theatrum mulierum (José Amman, 1586), Théâtre de la nature universelle (Jean Bodin, ca. 1590). 10
Claro que eso tenía sus riesgos: a pesar de (o
justamente debido a) su omnipresencia y de compartir el espacio y el tiempo cotidianos, esas imágenes, aparentemente pasivas y meramente decorativas del aula, a veces llegan a resultar casi invisibles. Aunque el hecho de que los alumnos estén permanentemente expuestos a imágenes aparentemente pasivas, que son miradas sin ver cotidianamente, tiene, sin duda, efectos subliminales
en el aprendizaje, algunos pedagogos hablaban de una suerte de efecto rebote, en el que los mapas se vuelven
completamente invisibles si se los transforma en un decorado inerte. Por eso se sugiere que “aunque algunos maestros creen preferible tener siempre los mapas a la vista es preferible retirarlos a menudo, porque así se estropean menos y se evita el peligro de que los alumnos dejen de prestar atención a una cosa que están viendo constantemente ” (los
destacados son propios; Atienza y Medrano, 1890: 1382).
En el mismo artículo se incluyen sugerencias respecto a los modos de trabajo con esos mapas murales: “En los mapas murales escritos, la atención debe ir más bien
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.
dirigidos hacia las cosas, o sea el trazado geográco, que hacia las palabras o nombres escritos. Conviene que los nombres no sean muy visibles, para que no oscurezcan lo escencial que es el trazado, y cuando ocurra es de precisión que el alumno se ejercite a la vez en un mapa mudo del mismo territorio (Atienza y Medrano, 1890:
porque funcionaban como dispositivos que articulaban el pensamiento. Más allá de su formación en losofía e historia y la inuencia que ejerció el idealismo alemán en su pensamiento, este tipo de postulados para haber sido más bien el resultado de los intercambios con pedagogos, en especial, con su amigo Johann Pestalozzi.
1382).
Reriéndose a las prácticas de enseñanza/aprendizaje de la geografía y al rol que le cabe a la cartografía en ellas, Christian Jacob (1992) discute una multiplicidad de estrategias destinadas a “aprender el mapa y arma: “El
Los objetivos pedagógicos: la importancia del dibujo para el desarrollo del pensamiento visual sobre el espacio
paradigma del mapa colgado de la pared de las escuelas
primarias es propio de una sociedad que maneja las técnicas de difusión masiva de imágenes. El mapa mural entra en un juego de resonancias visuales complejas con las cartas impresas en los libros, los mapas utilizados en la publicidad, en los documentos turísticos, etc. Miles de mapas que se prestan a las miradas repetitivas y prolongadas” (Jacob, 1992: 436-437). Sin haber llegado a un acuerdo unánime sobre sus modos de uso, como podemos comprobar si visitamos aulas de clase, los mapas siguen y seguirán adornando las paredes –aunque se reexione poco sistemáticamente sobre ello. En muchos países latinoamericanos que estaban atravesando procesos de formación y consolidación
Educadores y pedagogos reformistas activos nales del siglo XVIII, tales como Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827) en Suiza, propusieron que los alumnos
estatal, el mapa mural cumplía, además, la función de
por ejemplo, la familia Gavarrete, que ya había producido un libro de geografía de pequeño formato, produjo el
maestro era que los libros de texto eran caros y no todos podían comprarlos. Pero también es cierto que aunque los costos de producción y los precios de los libros disminuyeron abruptamente durante la segunda mitad del siglo XIX, el dibujo de mapas en las clases de geografía
primer mapa mural para las aulas escolares en 1878,
persistió.
acompañado por estadísticas y otras informaciones que debían ser aprendidas a lo largo del curso (Dym, 2015:
Desde nales del siglo XVIII, muchas escuelas solicitaban que sus estudiantes aprendieran a trazar o crear mapas para aprender habilidades cognitivas, estéticas y sociales que podían ser útiles más
socializar un “mapa logotipo” (Anderson, 1991) asociado a la formación de la identidad nacional. En Guatemala,
247).
En la misma época, la contemplación y la observación minuciosa de mapas era también un modo de pensar cuestiones o problemas geográcos en ámbitos académicos. El geográfo prusiano Carl Ritter (17791859) hizo algunas de sus célebres armaciones sobre la geografía mundial observando distintos tipos de mapas. Por ejemplo, armó que “a pesar del desorden aparente en que se encuentra inmerso el Globo para un ojo inexperto, es en las diferencias entre supercies y formas donde reside el secreto del sistema interno y superior de organización planetaria. (…) Es precisamente en la repartición
diferencial y en la amplitud irregular de las extensiones de tierra y de agua, así como en las temperaturas variables que las acompañan necesariamente y en los movimientos aparentemente desordenados de los vientos, donde
reside la razón fundamental de su ubicuidad y de su interacción general” (citado en Gómez Mendoza, 2004: 177). El terreno de observación y de reexión que llevó a Ritter a sostener estas armaciones eran los mapas: los mapas servían para pensar, para establecer relaciones,
copiaran sus propios mapas a partir de mapas impresos provistos por los maestros porque entendían que esa era
la mejor manera de aprender geografía. Esta práctica rápidamente llegó a ser común en Europa, y también en los Estados Unidos, donde se popularizó con las obras de Emma Willard (1787-1870) y William Wooldridge (17941845)11.
Es cierto que, sobre todo a principios del siglo XVIII, una de las razones para que los alumnos trazaran sus propios mapas a partir de modelos provistos por el
adelante en distintos órdenes de la vida, más allá de
los conocimientos geográcos que evidentemente estaban involucrdos en el dibujo de todo mapa. Esto fue particularmente importante en la educación de las
mujeres. Aunque hay algunos buenos ejemplos de mapas dibujados por los niños, en general a los varones se les enseñaba topografía y navegación en vez de dibujar o colorear mapas. En el caso de las niñas, el objetivo no era prepararlas para ser cartógrafas o geógrafas: se suponía
que la elaboración de mapas servía para ayudarles a obtener, retener y demostrar conocimientos generales, convertirse en buenas ciudadanas y mostrar sus habilidades artísticas. En Estados Unidos, por otra parte, el dibujo de mapas encajaba muy bien con lo que eran los objetivos centrales de la educación femenina después de la revolución de independencia de los Estados Unidos. En aquel entonces, la geografía era vista como una vía Emma Wiillard y William Channing Woodbridge publicaron juntos The Woodbridge and Willard Geographies and Atlases (1823), y A System of Universal Geography on 11
¿Cuándo la geografía perdió su “ graphia”? un ensayo histórico y crítico sobre las habilidades grácas promovidas en la geografía escolar
apropiada para que las niñas se volvieran culturalmente alfabetizadas, para prepararlas para una vida de utilidad e intercambio social. Además, el dibujo de mapas contribuía a que las niñas entrenaran el dominio del arte de la caligrafía (por eso las letras eran muy cuidadosas y ordenadas, con múltiples fuentes, tamaños y pesos para
pasaron a ser más activas e incluso, en algunos casos,
diversos tipos de características como estados, ciudades
puestos vacantes12).
y ríos, al igual que los mapas hechos profesionalmente en los que se basaban como modelos). Desde entonces, hubo una notable transición en el papel desempeñado por las mujeres en su papel de creadoras, diseñadoras y educadoras con materiales cartográcos:
La exposición “Women in Cartography: Five Centuries of Accomplishments”13 hace un recorrido interesante sobre los diferentes modos en que las mujeres participaron tanto en la cartografía realizada en ámbitos privados y escolares como en ámbitos institucionales y comerciales, articulado en torno a una invaluable colección de mapas. Entre los ejemplos allí exhibidos, se encuentra un atlas francés manuscrito de principios del siglo XIX delicadamente realizado por una colegiala, Mlle. Elise Massieu, y dedicado a su tía, Mlle. Fromaget. Estos trabajos manuscritos no eran obras acabadas sino que servían para continuar y actualizar los estudios: estos mapas estaban “abiertos” para hacer correcciones y agregados (como ejemplo de ello, en la exposición
mientras que al principio eran participaciones secundarias
y marginales, restringidas al círculo de niñas de familias acomodadas, desde de la Segunda Guerra Mundial
fundamentales (en gran parte debido a que súbitamente los hombres se vieron llamado al frente de guerra o a cubrir diversos puestos estratégicos, algunos campos cientícos y técnicos suplieron esa falta de personal formando y entrenando mujeres para que ocuparan los
mencionada se mostraron dos facsímiles de mapas
de la Península Ibérica, el primero en marzo de 1806, y un segundo de diciembre de 1808 que tiene algunas variaciones).
Figura 1 - Elise Massieu “Carte generale de l’Amerique septentionale par Mlle. Elise Massieu en Novembre, an 1805”. En Elise Massieu, “Etrennes dediées a Mlle. C. Fromaget” (1806), fol. 8r. Manuscript, 26cm x 38cm. Osher Collection 46798
En diciembre de 1941, el presidente estadounidense Franklin Roosevelt creó entre 1.000 y 2.000 empleos en ocinas estatales dedicados a actualizar y producir mapas. En 1942, ya habían entrado en funcionamiento 57 instituciones en 30 estados que enseñaban curso de cartografía topográca, uso de instrumentos, procedimientos para el relevamiento del terreno, dibujo, fotogrametría (aunque las mujeres solían tomar estos cursos en departamentos de geografía y no en instituciones de ingeniería civil, como los hombres). Esas mujeres eran empleadas con buenos salarios, aunque se sabe poco de sus trabajos puesto que la mayoría de su producción fueron mapas secretos que nunca salieron a la luz. Como era de prever, al nalizar la guerra, la participación de las mujeres en el campo de los cartógrafos decreció notablemente Véase Van Den Hoonard (2013), especialmente el capítulo “From the Early Twentieth Century to World War II y las páginas 89-92. 12
Tuvo lugar entre el 31 de octubre de 2015 y marzo de 2016 en la Central Library, Norman B. Leventhal Map Center, de la Boston Public Library http://www.bpl.org/ 13
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.
A principios del siglo XIX, muchos estudiantes en los Estados Unidos debían dibujar mapas elaborados, ya sea copiando o trazando mapas ya existentes, como parte fundamental de su educación. Según Susan Schulten, esta práctica fue muy popular especialmente entre 1800 y 1835. Algunos libros de texto tenían un capítulo dedicado a ello, como el capítulo “Construction of Maps” del libro Elements of Geography, de Jospeh Worcester de 1891 14 (Schulten, 2007: 251). Pero a nales de siglo todavía se aspiraba a que el alumno pudiera expresar grácamente sobre un mapa “mudo” (denominados, con muy buen tino, “semi-mudos” por Raja Gabaglia en su Geographia iIustrada) aquello que había aprendido de geografía al mismo tiempo que aprendía el lenguaje cartográco. En el artículo ya mencionado “Mapas murales escritos” de El Monitor, se armaba que: “Todos los detalles en el mapa mural deben ser muy marcados, ayudando el colorido a marcar el relieve y la división de los Estados. El relieve se señala con el sombreado ordinario, o por medio de las curvas de nivel; por eso es útil además que en varios tipos de dibujo o de colorear se representen las diferentes divisiones
en papel porque eso estimula el pensamiento espacial, la formación de una visión de mundo en que pueden
situar objetos, reconocer lugares y establecer relaciones espaciales según sus propias necesidades. En la misma línea, la neurocientíca Veronique Bohbot (McGill University and Douglas Institute) remarcó que esta “pereza” que lleva a la pérdida de las capacidades de los sujetos para producir sus propios mapas mentales tiene consecuencias que van más allá de la habilidad de la orientación en el espacio: las personas que se vuelven
dependientes de los mapas digitales pierdan la habilidad de improvisar en sus desplazamientos si el dispositivo falla (o si momentáneamente no dispone de él), pierden la capacidad de tomar decisiones propias y de establecer vínculos con el entorno físico, y restringen el desarrollo del pensamiento espacial que no sólo tiene que ver con
la orientación en el espacio geográco sino que también afecta la posibilidad de producir otros tipos de mapas mentales que usamos a diario: desde el mesero que se forma su mapa mental de la mesa para entregar los platos solicitados por los comensales hasta el docente
hidrográca, hipsométrica, administrativa, etc.” (Atienza y Medrano, 1890: 1382)
que identica a sus alumnos según la posición en que se
En la actualidad se arma que “la Geografía es más que duplicar mapas” y que “salidas de campo y elaboración de mapas mentales así como el uso de las TIC reemplazan el papel calcante” 15. La licenciada en losofía Paulina Calderón, dedicada a temas de educación, abogó explícitamente por “el uso de las herramientas que se encuentran en un celular” argumentando que “se puede visualizar el mundo desde uno de estos dispositivos lo
Resulta algo paradójico que en una cultura que se autoconcibe como eminentemente visual, saturada
que transforma en arcaico e hipócrita poner un alumno a calcar mapas”16.
Con críticas explícitas o implícitas, con argumentos o sin ellos, lo cierto es que el calcado de mapas ha sido desterrado del aula en pos de generar una actitud supuestamente más proactiva que calcar o copiar.
Sin embargo, estudios recientes demuestran que la masicación del uso de mapas dispositivos digitales está restringiendo severamente nuestra capacidad de orientación, principalmente porque los usuarios se limitan a seguir las indicaciones propuestas por los dispositivos
y prestan cada vez menos atención al entorno. Los neurocientícos arman que esa “desconexión” entre el sujeto que se desplaza y el espacio en el que se mueve reduce progresivamente las habilidades para gurarse mapas mentales propios. Por eso los expertos en neurociencias insisten en que, si bien en la era digital, muchas habilidades y destrezas se volvieron obsoletas, los niños deben seguir aprendiendo a manejar mapas Joseph Emerson Worcester, Elements of Geography, Ancient and Modern… (Boston, 1891). 14
15
http://www.mineducacion.gov.co/observatorio/1722/article-253396.html
http://www.eldiariodelarepublica.com/provincia/El-cambio-una-revolucion-que-
16
sientan en la clase.
de imágenes en sus diversos formatos, la formación
geográca no intente recuperar y potenciar el desarrollo de habilidades grácas como lenguaje complementario a la discursividad que, hoy por hoy, se ha vuelto dominante en las prácticas de producción de conocimiento geográco, y en las prácticas de enseñanza y aprendizaje.
De las instrucciones al uso intuitivo A nes del siglo XIX circulaban libros con instrucciones para que los maestros pudieran hacer esquemas, grácos y bocetos en la pizarra al tiempo que explicaban los tópicos de la clase. En el libro de Eliza Morton (1895) titulado Chalk Illustrations for Geography Classes. A Manual for Teachers to Accomapny any Series of Geographies y publicado en 1895, se advierte: “Este libro no debe usarse con demasiada libertad, ni permitirse ocupar el lugar de una sólida y regular instrucción con libros de texto, pero deben ser implementados en el trabajo cotidiano” (Morton, 1895: Preface s/n).
En otras palabras: estaba claramente estipulado el papel pedagógico que tenía que cumplir el dibujo: no debía reemplazar sino, más bien, debía complementar otros materiales de estudio tradicionales pero, al mismo
tiempo, la ejercitación de las destrezas grácas “deberían ser ayudas y no hobbies” (Morton, 1895: 95), es decir, desempeñar una función pedagógica activa y especíca.
¿Cuándo la geografía perdió su “ graphia”? un ensayo histórico y crítico sobre las habilidades grácas promovidas en la geografía escolar
Los ejercicios prácticos estrictamente orientados al dibujo eran intercalados con consejos prácticos y pedagógicos que apuntaban a dejar claro que el dibujo no era un n en sí mismo sino una estrategia didáctica. Los docentes no debían perder de vista ese objetivo primordial y para asegurarse de la efectividad del método se buscaba que aquellos alumnos con habilidades más toscas no se vieran afectados ni en el proceso de aprendizaje ni en su autoestima. Por lo tanto, se multiplican los consejos que sugieren modos especícos de compartamiento del docente asociados al uso del dibujo. Algunos de esas sugerencias eran: “Esboce la roca y luego las olas, no trate de hacer las líneas exactamente igual que el modelo de este tipo, sólo esfuércese por acercarse a la forma general” (Morton, 1895: 95).
“No remiende su boceto ni lo corrija o borre constantemente; si hace líneas algo desguradas, no se disculpe por ello; los niños pierden la conanza en quien no tiene conanza en sí mismo, haga lo mejor que pueda y mejorará” (Morton, 1895: 103).
Y, más generalmente, Eliza Morton propone al maestro cómo dibujar y trabajar en el aula con diagramas que muestran alturas comparativas:
Los dibujos eran acompañados con alguna información geográca sobre el lugar u objeto retratado. En este caso: “Chimborazo es una montaña bien conocida de Ecuador. La cima de esta inmensa montaña está cubierta de nieve perpetua. Durante mucho tiempo se cre yó que era la montaña más alta de los Andes, pero ahora se sabe que es el sexto pico más alto (Morton, 1895: 110-111).
En Guatemala, el pedagogo José Luis Arévalo recomendaba que los maestros dibujen los mapas en la pizarra durante la lección para obtener el máximo y más sólido “impacto educativo”. Exhortó a los maestros a que se alejen del aprendizaje exhaustivo y el énfasis excesivo en los detalles y que alienten a los estudiantes para que entiendan e interpreten lo que ven. Por último, Arévalo sugería que si el material estuviera disponible, el niño debía hacer su propio mapa para cada una, guardándolo en su propio atlas, ya que la experiencia manual e intelectual más graticante era “conocer el mapa general de Guatemala” (Arévalo, 1936: 21, en Dym, 2015: 249). Suponiendo docentes entrenados en el dibujo de las formas geográcas, los estudiantes eran motivados para bocetar mapas y así establecer diversas relaciones entre temas ya estudiados (vientos, temperatura, vegetación, entre otros).
“Una regla ancha se puede colocar en el margen izquierdo de la pizarra y, teniendo en cuenta esa escala [en kilómetros], se dibujan con tiza líneas que indiquen las alturas [de las montañas] se marcan con el crayón o tiza. El diagrama se puede apuntar hacia la parte superior, si se preere [esto apuntaba a que resultara “más natural” para los alumnos representar la altura de las montañas en sentido vertical tal como se piensa visualmente en las montañas en tanto elevaciones del terreno]. Anime a los niños a agregar otros picos al diagrama y que usen su propio juicio en cuanto a la altura para hacer lo mismo. Ejercicios de este tipo deben ser frecuentes. Todo lo que atrae al ojo impresiona a la mente con más fuerza que la que cae sobre el oído” (Morton, 1895: 100).
El libro de Morton no pretende ser un tratado sobre el arte del dibujo, sino simplemente un manual sugerente destinado exclusivamente a los profesores. Buscaba ayudar al maestro en la elaboración de “bocetos a mano de los contornos de muchas escenas y objetos de interés” (Morton, preface)
Las instrucciones para dibujar eran sencillas, cortas y venían acompañadas del gráco en cuestión para que el maestro pudiera visualizar un modelo de lo que tenía que aprender a dibujar: “Dibuje la línea de base, luego el contorno del Chimborazo y el de la elevación cercana, resaltándolo tal como se representa en el bosquejo. El nivel más alto de las montañas debe ser marcado con un punto presionando la tiza con bastante fuerza. Para dibujar los lados de las montañas, aplique la tiza con una ligera presión” (Morton, 1895: 110).
Otros textos escolares se dedicaron exclusivamente a estimular a los alumnos para bocetar sus propios mapas. Uno de los más célebres entre ellos fue A Sketch-map geography : a text-book of world and regional geography for the middle and upper school (editado por primera por Methuen en Londres en 1921) 17, de Eva Germaine
Rimington Taylor (1879-1966), que tuvo una edición posterior, reimpresa con cambios menores en 1966. 18 El libro comienza con una nota acerca de “este libro y su uso”, donde dice que “un mapa [didáctico] no es una mera transcripción de un atlas. En un atlas, hechos tales
como topografía, clima, vegetación y otros son mapeados separadamente. Estos mapas-boceto muestran diferentes combinaciones de tales hechos, de manera tal que cuando son observados por el estudiando, más que meros hechos, son factores que determinan ciertos
resultados geográcos” (1921: v). La idea de que el dibujo de mapas apunta a que el alumno establezca relaciones, conexiones y explicaciones se ve reforzada en la nota sobre “uso del atlas” que aparece en las ediciones de 1921 y 1966: “este libro de texto, como todos los demás, debe utilizarse junto con un buen atlas (no uno necesariamente caro), que muestre el viii, 147 pp. : maps ; 22 cm. Contents: Part I. Regional geography. The British Isles; Europe; Asia; Africa; North America; South America; Australia and New Zealand -- Part II. World geography. General maps -- Part III. Memory and revision aids. Shorthand sketch maps; index of subjects; index of place names. Part of th e Roger S. Baskes Collection en la Newberry Library. Call No.: Baskes G127 .T39 1921 (NLO) 17
By E.G.R. Taylor and E.M.J. Campbell. viii, 163 pp. : ill., maps ; 21 cm. El libro fue reimpreso trece veces antes de ser completamente revisado en 1950 con la ayuda de Eila Campbell. En ese entonces, todos los mapas fueron redibujada en un estio 18
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.
relieve de la tierra, así como las divisiones políticas. Las características físicas generales de cada país, sus límites
y así sucesivamente, deben ser aprendidas directamente del atlas antes de que el conjunto de croquis-mapas relacionados con ese país es estudiado” (1921: vii; and 1966: vii).
En la sección nal, A Sketch-map geography : a textbook of world and regional geography for the middle and upper school, titulada “Ayuda-memoria y revisión“ incluye
consejos taquigrácos para el dibujo mapas, un índice de topónimos y un índice de temas con algunosconsejos pedagógicos: “el ‘atajo’ sketch-mapas en las dos páginas siguientes pueden usarse como ayuda de memoria o
memoria de pruebas. Quien conoce su geografía bien puede ver a la vez lo que signican los símbolos y las siglas. Cada mapa puede ser dibujado en la pizarra, y los miembros de la clase pueden ser invitados o desaados descubrir qué ciudades o región representa. De los mapas de ‘forma’ o contornos, los alumnos pueden dibujar fácilmente un mapa boceto. Sin embargo, los alumnos deben ser siempre estimulados a dibujar el mapa en su totalidad para poder examinar y relacionar todos los elementos que allí se encuentran, así como deberán encontrar formas de ‘abreviatura’ para anotar todo aquello que consideren pertinente retener a modo de guía para
estudiar los contenidos geográcos del libro” (1921: 135).
Figura 2 - A Sketch-map geography : a text-book of world and regional geography for the middle and upper school (London: Methuen, [1921]), de Eva Germaine Rimington Taylor.
A diferencia de los mapas de las niñas que dibujaban mapas en el siglo XIX, estos no apuntaban a lo estético sino a lo pedagógico. De hecho, como vimos, los maestros
eran instruídos para enseñar y estimular los alumnos a producir grácos de diverso tipo. Existieron “cuadernos de cartografía” diseñados para que el alumno desarrolle habilidades de pensamiento espacial (“representación de las cosas en sus más variadas formas, sus características y sus posiciones espaciales relativas” 19) a partir de ejercicios de reproducción de mapas tales como, trazar croquis de mapas de los países Eugenio de Barros Raja Garabaglia, A Terra Ilustrada – Geograa Universal: Physica, Etnographica, Política, Economica das cinco partes do Mundo. Citado en 19
estudiados y reproducirlos en el cuaderno de cartografía (algo que, por cierto, se sigue vendiendo hoy en día, por ejemplo, en Brasil), indicar accidentes geográcos (contorno de territorios, ríos, montañas, localización de ciudades, etc.) y nombrar o etiquetar solo algunos de ellos elegidos por el profesor a n de evitar “confusiones grácas” (Boligian y Doin de Almeida, 2011: 87). En Guatemala, los “cuadernos de geografía” destinados a que los alumnos dibujen sus propios mapas tuvo un derrotero particular. Julio Piedra Santa Arandi fundó la editorial Editorial Escolar Piedra Santa con su esposa Oralia Díaz en 1947. Él creó folletos ilustrados y mapas de una sola hoja que Oralia vendió a sus compañeros maestros en el Instituto Normal para
¿Cuándo la geografía perdió su “ graphia”? un ensayo histórico y crítico sobre las habilidades grácas promovidas en la geografía escolar
Señoritas Centro América (INCA). Los “mapitas” eran mapas en blanco de un solo color, destinados a ser llenados por estudiantes. Los mapas individuales, que se
vendían al módico precio de un centavo cada uno; aunque el pequeño negocio de producción y venta de mapitas en blanco aportaba ingresos extras al matrimonio, parecían ser un recurso poco rentable para sostener un emprendimiento comercial. Así que la pareja dejó sus respectivos empleos para abrir la editorial y dedicarse a ello a tiempo completo. Comenzaron a vender mapas mudos pero también dibujos de ora y fauna, dirigidos al currículo que conocían desde su propio tiempo en el
aula. Inicialmente, los Piedras Santas trabajaron solos pero pronto contrataron a otros maestros. Recogiendo los materiales y añadiendo ejercicios, la Piedra Santas pronto comenzó a complementar los mapitas y las hojas ilustradas que Piedra Santa había vendido por centavos para producir compilaciones geográcas. A diferencia del libro de tapa dura de Arévalo, de gran formato y papel de papel grueso, Piedra Santa se especializó en la publicación de pequeños libros de bolsillo (libros de texto y libros de trabajo) que han tenido numerosas ediciones y se han distribuido en toda Guatemala. A partir del vocabulario visual de sus primeros cuadernos, las “compilaciones” de 30 a 40 páginas, con mapas e información geográca o demográca básica, contrastaron con los libros ociales de geografía de más de 400 páginas. Los cuadernos de
trabajo para anotaciones y ejercicios, entonces como ahora, se venden en cuadernos adaptados al formato del
plan de lecciones original que acompañan, y su precio de hoy es de aproximadamente US $ 3. En una nota al nal de la primera recopilación, el equipo editorial de Piedra Santa recomendó que este “folletito” para maestros y estudiantes sirve como un complemento a los libros de trabajo que poner hechos y mapas a trabajar para resolver la mayoría de las dudas que la memoria no puede resolver y para evitar la necesidad de consultar atlas que “en su mayor parte no están a la mano”. El libro termina con “croquis mudos” (bosquejos del mapa mudo) que los estudiantes podrían cortar y colgar en la pared, e incluso el equipo editorial invitó a los profesores a encontrar usos
adicionales para el libro (Dym, 2015: 254-256). Para acompañar el libro de texto System of Universal Geography , Emma Williard y William Woodridge publicaron separadamente Outline and Skeleton Maps, también llamado Geographical Copy Book , en el que los alumnos debían dibujar mapas a diversas escalas, empezando por su espacio inmediato y terminado por el planisferio 20; pero además insistían en que el objetivo del libro era que el estudiante, a fuerza de repetición, lograra dibujar el mapa de Estados Unidos sólo de memoria y sin ningún tipo de ayuda. Susan Shulten, que estudia la enseñanza de geografía en Estados Unidos, señala que este tipo de ejercicios también cumplían funciones didácticas especícas más relacionadas con los valores nacionales y culturales, a menudo de corte racista. Por ejemplo, en esta sucesión de escalas, Schulten encuentra que se naturaliza el 20
La Geografía Elemental de Guatemala de Arévalo
(1936) transformó los libros de textos guatemaltecos de geografía (que apenas tenían un mapa o dos) en libros de mapas, de tapa dura y gran formato. A diferencia de sus predecesores del siglo XIX, la enseñanza de esta geografía utiliza palabras con moderación, y los estudiantes recibían lo que Arévalo llamaba “mapas mudos” junto a breves explicaciones, que requerían el compromiso y la aplicación del conocimiento geográco. Para promover el aprendizaje interactivo, por ejemplo, uno de los ejercicios consistía en que el maestro proponía a sus alumnos era
dibujar y narrar un viaje dentro del país (Dym, 2015: 249). La práctica de copiar mapas a mano alzada ya estaba instalada en la década de 1870: el The Midland Mapping Book era un libro de hojas en blanco en las que los estudiantes tenían que dibujar mapas que incluía copetes del tipo “Conocimiento es poder” y “Diligencia comandos éxito.” 21 Y el libro de Morton con instrucciones para los docentes justicaba la relevancia de la obra en que “La popularidad de las ilustraciones en la pizarra en el estudio de la geografía ha llevado a la autora a preparar este
pequeño libro, dedicado enteramente a los bosquejos de esta naturaleza.” (1895, preface). Con la expansión de los sistemas de educación básica obligatoria hacia nes del siglo XIX, se reactivaron los debates sobre los objetivos pedagógicos relacionados con el dibujo de mapas. En el citado artículo El Monitor …, se recomendaba ejercicios cartográcos con objetivos pedagógicos especícos, como un método para facilitar y mejorar el aprendizaje de la Geografía: “La mejor lección de geografía será la que se funde a la vez en la observación de la Naturaleza y, cuando sea posible, en el uso de mapas, imagen de la realidad, y en los trazados geográcos que el mismo alumno haga. Para esos ejercicios cartográcos deben servir de modelo, no los mapas muy detallados, sino croquis simplicados, y para la seguridad de la ecacia del estudio conviene que el alumno haga eso trazados de memoria o imaginativamente, sin tener el modelo
delante, después que lo haya copiado una y otra vez.” 22
Dos de los métodos de dibujo más habituales para dibujar/copiar mapas y que más han perdurado era el copiado y calcado 23. En la exhibición “The Art of the Hand-Drawn Map” (16 octubre 2014 – 26 febrero 2015 curada por Matthew H. Edney en la Osher Map Library en University of Southern Maine) dedica una sección a “Early Geographical Education” donde es posible apreciar cuadernos de estudiantes donde dibujaban mapas. De allí fueron tomados algunos ejemplos para este artículo, según se indica en los respectivos epígrafes. http://www.bpl.org/exhibitions/past-exhibitions/women-in-cartography Hoy en día, los mapas hechos por colegialas se han convertido en objetos codiciados entre los coleccionistas, cuyos precios por lo general alcanzan varios centenares o unos miles de dólares. 21
Atienza y Medrano, Antonio (1890) “Material de enseñanza de la Geografía,” en El Monitor de la Educación Común, Consejo Nacional de Educación, Año XI, N. 180, pp. 1381-1383, [on line]. 22
También se proponía el coloreado de mapas, tanto de aquellos dibujados por los estudiantes como los que aparecían el libros y que habían sido impresos en blanco y negro. Recordemos que la incoportación de grabados, mapas y esquemas fue una novedad en libros de textos a principios del siglo XX, cuando se abarataron los costos. En principio funcionaban como apoyos didácticos para “aclarar” conceptos” para facilitar el aprendizaje. Sobre las imágenes y las vulgatas en relación con las transformaciones de los libros didácticos en historia y geografía, véase Boligian y 23
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.
Para la técnica del calcado se usaba un papel no denominado papel manteca, que se superponía sobre el mapa original y se dibujaba sobre él. Pero a veces no se disponía del llamado “papel manteca” y el papel disponible era demasiado grueso como para ver a través de él. En estos casos, los estudiantes podrían haber usado un truco común de la época para hacer una especie de calco: cubrían el mapa entero con papel con grato (papel carbónico), poner esa boca abajo en una hoja en blanco debajo el mapa original y, al trazar el mapa con algún tipo de puntero transferirán el contorno del grato a la hoja en blanco.24 Una alternativa al calcado, era el dibujo o copiado de mapas .En algunos manuales de principios de siglo XX, se instaba a que los estudiantes copiaran mapas que tenían a la vista en la hoja par sobre una cuadrícula casi en blanco que había en la página impar del libro. Podían hacerlo a simple vista o podían trazar una cuadrícula sobre el mapa original a ser copiado, para dibujar celda a celda (copiar el contenido de cada celda pequeña a simple vista, uno a la vez, era mucho más fácil que echando un vistazo un mapa de todo a la vez). Los métodos de copiado eran variados. Por ejemplo, nn el capítulo dedicado a la construcción de mapas del libro Elements of Geography de Joseph Worcester (1891), se incluye un rectángulo con la grilla de la proyección Mercator que, además, tiene algunos puntos
geográcos de referencia localizados y etiquetados con su nombre: Filadela, Londres, Cabo de Hornos y unos pocos más. Se pide a los estudiantes que dibujen el contorno territorial de Estados Unidos y del Reino Unido, con esas ayudas (más la grilla de coordenadas y los puntos cardinales) 25. A lo largo de las páginas del Atlas de 5e. Le monde polaire, l’Amérique, l’Asie, l’Océanie (autour du Pacifque...)26 se propone un método de copiado
ligeramente diferente: en doble página se presenta un mapa colorido, con división política e información
geográca de diverso tipo (página par) y un croquis o “esqueleto de mapa” que repite el contorno del mapa de la página par pero está completamente en blanco a la espera del trabajo del estudiante (página impar). En la página del mapa “completo”, además de la respectiva leyenda, a veces se incluyen otros grácos (en su mayoría, perles topográcos). En la parte inferior, todas las páginas con croquis tienen un breve texto que empieza siempre con el mismo encabezado en tono de instrucción: “Regardons les cartes et retenons” (“Miremos el mapa y retengamos” [el siguiente texto]). En efecto, ese pequeño texto “sugiere” cómo debe ser leído el mapa: es un texto corto apunta a la simplicación de la información cartograada, es una verbalización del mapa 27.
Figura 3
Aunque queda fuera del alcance de este trabajo, cabe mencionar que Susan Schulten analiza este dibujo y otros similares desde su implicancia en la “enseñanza” implícita de valores nacionalistas e imperialistas, con ejercicios placenteros y estéticos. Véase Schulten 250-157. 25
Librairie Belin, 1971. Crous V. Prévot. Cartographie R. Lucas.
26
Por ejemplo, “LE MONDE ANTARCTIQUE. Regardons la carte et retenons: Le circle polaire antarctique entoure un continent couvert par un inlandsis d’une épaisseur de 4000 mètres sur le socle de l’Antarctique oriental. De puissantes chaines de montagnes s’allongent sous la glace de l’Antarctique occidental. D’énormes icebergs dérivent sur les mers australes. Une trentaine de stations scientiques, côtières pour la plpart, constituent le seul peuplement de ce continent sans vie. Les mers environnantes attirent les pêcheurs et les chausseurs de baleines” (mapa 2, 27
Las distintas técnicas, mapas base y personalidades de los alumnos llevaron a una amplia gama de estilos de mapas. A veces los estudiantes estaban claramente tratando de replicar la apariencia del mapa impreso se copia, hasta detalles como el tamaño de letra, colocación del título. Otros preferían añadir sus propios toques 24
¿Cuándo la geografía perdió su “ graphia”? un ensayo histórico y crítico sobre las habilidades grácas promovidas en la geografía escolar
El croquis de la página impar representa las formas y los contornos esquemáticos del mapa al que acompaña, tal como lo podría dibujar un estudiante. Incluso en la mayoría de los casos, el croquis se apoya sobre una cuadrícula, como la que se usa para copiar dibujos y que sirve para que el alumno “parcele” el mapa en blanco y se oriente dentro del croquis, para que el croquis no se
transforme en una intimidante hoja en blanco, sirve para establecer ubicaciones relativas.
Analicemos el caso del caso del continente americano.
En la página par, hay un mapa físico político y en la parte inferior de la hoja hay un perl topográco de corte latitudinal entre San Francisco y New York, que da información sobre altura y formas de los principales accidentes geográcos identicados por su nombre (nótese la anotación a mano de la alumna). La página
impar, en cambio tiene un croquis despojado, que sólo muestra los contornos y, con unas líneas negras indica la
Figura 4 e gura 4 detalhe
localización y la disposición orientación de los principales macizos montañosos. Es algo así como esos famosos “mapas semi-mudos” para completar, aunque no lleva instrucciones explícitas. Teniendo en cuenta que no es un ejercicio aislado, perdido azarosamente en un libro de texto sino que, por el contrario, el libro entero se trata de ejercicios de dibujo cartográco, la falta de un instructivo escrito en el libro mismo sugiere que el alumno trabaja con la guía y asistencia del maestro. Las instrucciones, que en su mayoría eran orales y formaban parte de la práctica, fueron cediendo espacio a la intuición. A principios del siglo XX, los textos geográcos sobre Guatemala y Centroamérica podrían incluir mapas topográcos de múltiples colores sobre el país o el istmo, así como fotografías y dibujos de diferentes regiones, pueblos, rasgos naturales e industrias para acompañar las lecciones. Se esperaba que los estudiantes dibujaran sus propios mapas como parte de las lecciones, y aprendieran nombres de departamento y ciudad para memoria. Sin embargo, la alfabetización de mapas no era parte de la pedagogía (Dym, 2015: 247)
En la actualidad, es difícil encontrar material didáctico
que tenga instrucciones para el dibujo de imágenes sobre el espacio. Esto que está, de alguna manera, ligado al desprecio por el valor didáctico de la producción
de imágenes o del pensamiento a través de imágenes parece un correlato de la pasividad con la que nuestra
sociedad consume imágenes con escasa o nula reexión. Esa incapacidad de pensar las imágenes que se nos
presentan ante nuestros ojos (con o sin nuestra voluntad) se traduce en la eliminación de las prácticas grácas como metodologías de apredizaje (Hollman y Lois, 2015). Pero como el pensamiento espacial forma parte de nuestra experiencia de mundo, el hecho de que no se enseñe o no se entrene no signica que no existe o que pueda eliminarse. Ahí es donde comienza a incubar un pensamiento intuitivo que se nutre de esos saberes mejor sistematizados. Por eso, la geometría forma una parte esencial de nuestro pensamiento espacial.
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.
Simplifcación y geometrización: estrategias
complejas de pensamiento espacial
neutralizan otros posibles. El croquis-boceto de un mapa tiene un referente que es no es el espacio mismo sino que es otro mapa. Más
Contrariamente a lo que pueda parecer, las guras simples o geométricas usadas para dibujar mapas los mapas analizados no son elementales. Si bien desde el punto de vista gráco parecen sencillas, desde el punto
especícamente, es un mapa aprendido y reconoscible. Ese mapa es una gura estable, simple y exhibida por doquier, lo que Benedict Anderson llamó mapa logotipo” para explicar que en el contexto de la formación de los
de vista cognitivo requieren un importante proceso de
nacionalismos modernos, las siluetas territoriales fueron transformadas formas sencillas, siluetas de territorios que
abstracción. El pensamiento diagramático es una variante del dibujo cartográco que también apunta a desarrollar el pensamiento visual y a establecer relaciones espaciales, a aislar variables y esquematizarlas de manera tal de hacerlas comparativas.
Respecto de los croquis, el historiador del arte Rudolph Arnheim sostuvo que cuando se realizan bocetos de ciertas imágenes a mano alzada, las formas que toman esos dibujos son el resultado de las luchas entre dos campos de huellas que tendían a querer modicar el diseño en dos direcciones opuestas: por un lado, se experimentaría una tendencia a la estructura más simple (que pierde todo detalle y renamiento pero gana en simetrías y regularidades, y que termina resaltando los rasgos distintivos de la conguración, aunque a veces eso implique el sobre o el subdimensionamiento de tales rasgos). Por otro lado, una tendecia a conservar todo lo que puede contribuir a la identidad del objeto (Arnheim, 1969: 94). Kulhavi y Stocks proponen algo similar especícamente aplicado a los mapas: “cuando un lector intenta aprenderse un mapa, dos factores cognoscitivos
entran en el juego. Primero están los procesos de control: estos emparejan el mapa a la información ya almacenada en su memoria y determinan cómo el sistema debe lograr la tarea asociada a aprender tal mapa. En segundo lugar, participan las características del sistema conmemorativo:
estas incluyen el modo de la representación (verbal o imagen) y un sistema limitado de recursos para almacenar y mantener una representación del mapa en la memoria. La interacción entre los procesos de control y el sistema conmemorativo determina la forma de la representación
que resulta de ver un mapa” (Kulhavi y Stocks, 1996: 123). Si las regularidades expresan un canon, las variaciones extremas, denen a su vez un campo de posibilidades relativamente estrecho: con la excepción de algunos casos, la mayor parte de los dibujos han elaborado imágenes reconocibles, es decir, las han inscrito dentro de lo que hemos denominado márgenes de seguridad
(Lois, 2000): haciendo un uso libre de las palabras de Roland Barthes, podemos decir que existe una campo de dispersión dentro del cual se inscriben las variables de ejecución –en nuestro caso, dibujar el mapa– sin que esas variedades impliquen un cambio de sentido. Y ese campo de dispersión está denido por unos bordes que garantizan su funcionamiento, es decir, garantizan la comunicación de ciertos signicados a la vez que
participan de “una serie innitamente reproducible, que podía colocarse en carteles, sellos ociales, marbetes, cubiertas de revistas y libros de textos, manteles y paredes de los hoteles (Anderson, 1991: 245). La ecacia de esta imagen se garantiza, sostenía Anderson, con la concurrrencia de otras instituciones 28 y políticas públicas (como el sistema educativo).
Retornando al Atlas de 5e. Le monde polaire, l’Amérique, l’Asie, l’Océanie (autour du Pacifque) 29 recordemos
que incluye en todas sus páginas impares un croquis simplicado del mapa que hay en la página par. Lo singular es que esos croquis que se espera que hagan los alumnos no
son simples dibujos a mano alzada de los contornos que simplemente apelan a la propia memoria o a la creatividad de los estudiantes. Como he mencionado, todas las páginas impares de -
dicadas al dibujo del mapa tienen algún tipo de grilla o plantilla de base, y también todas esas grillan llevan sobre impresa –agrego ahora que antes no mecioné- una gura geométrica que evoca simplicadamente el contorno territorial del mapa en cuestión: “Le Brésil » (pp 26-27) tiene un polígono romboide que une los puntos extremos ; « Le Sud de l’Amerique latine » (pp 28-29) (Argentina, Uruguay y Chile), un triángulo ; « l’Asie occidental », (34-35) un triángulo cruzado por bisectrices (que, en cierto modo, regionalizan) ; « Le monde indien » (36-37), una cuadrado dividido en cuatro y un triángulo que une los dos vértices superiores y el punto medio del lado inferior.
En este libro (y en otros similares), las nociones de geometría y las guras geométricas funcionan en solidaridad con los mapas, como un dispositivo mnemotécnico para retener información básica sobre las formas de los territorios o algunas características de las regiones. Raja Bagaglia armó en su Terra Ilustrada que si los ejercicios de dibujo cartográco sobre mapas semi-mudos se hacían regularmente, el estudiante incorporaría contenidos geográcos a través de procesos nmemotécnicos y, por tanto, evitaría que tengan que consutlar permanentemente los atlas y libros de texto (citado en Boligian y Doin de Almeida, 2014: De hecho, sus reexiones sobre el mapa comparten el capítulo con sus notas sobre el censo y el museo: en “El mapa, el censo y el museo” se propone profundizar su análisis sobre el surgimiento del nacionalismo abordando cada una de estas tres instituciones que sirvieron para que el Estado moderno imaginara sus dominios (“la naturaleza de los seres humanos que gobernaba, la geografía de sus señoríos y la legitimidad de su linaje”; Anderson, 1991: 229) y para crear sentimientos de pertenencia en una comunidad. 28
¿Cuándo la geografía perdió su “ graphia”? un ensayo histórico y crítico sobre las habilidades grácas promovidas en la geografía escolar
86). Esos mapas semi-mudos operan como una plantilla geométrica que soporta los elementos geográcos representados y sus posiciones relativas, a veces con información adicional acerca de sus tamaños proporcionales. Los modos en que la plantilla geométrica funciona son variables: en ocasiones, la gura es la silueta propiamente dicha. Otras veces, la gura geométrica funciona como una suerte de esqueleto que sostiene otra representación
de un modelo cartográco caracterizado por el trazado irregular de la línea de la silueta, se superpone una gura geométrica. Este tipo de ejercicios era posible porque, al mismo tiempo, el alumno era familirizado con los elementos básicos de geometría en otras asignaturas (a veces, Matemáticas, pero también había cursos de Formas Geométricas o Formas de los Objetos). Por lo tanto, el
más “cartográca” o como marco que la recuadra: sobre un diseño de aspecto más o menos analógico respecto
profesor de Geografía podía evocar esos contenidos relativos a las formas de los cuerpos o los conceptos de
Figura 5
punto, línea, plano, ángulos, rectas, curvas y otros para
En el sentido común, es habitual el mapa logotipo
ponerlos en práctica aplicados, primero, al reconocimiento
de países, regiones, provincias o ciudades se asocie a
de formas geométricas en los mapas y, luego, al dibujo de formas cartográcas traducidas a formas geométricas. Dicho en otros términos, los conocimientos sobre
alguna gura geométrica. El caso emblemático es la representación simplicada del territorio de Francia como hexágono (Smith, 1969: 30). Pero no es el único: entre otros varios casos que podríamos nombrar, mencionemos que Portugal usa un rectángulo vertical y que la Argentina es asociada a un triángulo con el vértice en la parte inferior.
geometría se activan cuando se demanda al estudiante
cierto pensamiento cartográco: es el saber geométrico aprendido lo que opera para la eciencia de la intuición cartográca.
En un trabajo anterior, analicé cómo aparece la gura del triángulo en la representación del mapa de la Argentina y en la conguración de un sentido 30
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.
Estas guras también suelen ser usadas en el aula por los docentes, que realizan esas guras la pizarra y sobre ella sitúan grácamente los procesos que están enseñanzado.
Algo de esto pervive en la actualidad aunque
con algunas variantes. Las formas simplicadas (básicamente líneas, que en algunos casos tienden a formar guras geométricas) se siguen haciendo como bocetos de mapas y funcionan como esquemas espaciales y espacializadores de ciertas temáticas. El 11 de marzo de 2016, Rony Gao, un profesional de la educación preguntó a los lectores de su página web cómo los maestros dibujan los territorios de sus países31. Rony Hora incluyó otras imágenes realizadas por docentes que representan “mapas croquizados” para demostrar la vigencia de estas formas de dibujo cartográco.
Figura 6
Figura 7
How do geography teachers draw their countries? https://www.quora.com/How-do-geography-teachers-draw-their-countries/answer/ 31
¿Cuándo la geografía perdió su “ graphia”? un ensayo histórico y crítico sobre las habilidades grácas promovidas en la geografía escolar
Sin embargo, apenas se les propone a los alumnos realizar sus propios mapas o croquis. Lo que sí suele ocurrir es que se los inste a reconocer formar en las
siluetas de los territorios y distribución espacial de esas formas, pero, en general, a partir de la verbalización de esas formas más que a partir de su dibujo 32. Y eventualmente, el dibujo se presenta como un “ayuda memoria” personal, para el que no se reciben instrucciones de ningún tipo y, por tanto, su elaboración y/o sus usos quedan librados a la intuición (del docente y del alumno). Esto no sorprende si se tiene en cuenta que, tanto en
la educación geográca en la primaria y en la secundaria, así como en la formación universitaria de geógrafos se
abordan consideraciones generales sobre los mapas; y aunque en teoría se sugiere y alienta el uso de mapas, la realidad es que en la práctica no se promueve la escritura
cartográca en ningún nivel (Seeman, 2011: 50). El desafío hoy pasa por trabajar sistemáticamente con esas intuiciones espaciales, geométricas y cartográcas para lograr una reexión consistente no sólo sobre el mundo (y las representaciones del mundo) sino, sobre
para pensar y para desarrollar el pensamiento espacial. Menos todavía se habla de que el dibujo de mapas contribuye a desarrollar una destreza relacionada con el pensamiento visual que, necesaria e inevitablemente, mejora y potencia la habilidad de leer mapas. Sin embargo, debido a que todos los individuos establecemos vínculos visuales y espaciales con nuestro entorno físico, la falta de instrucción sistemática sobre la producción de mapas mentales y sobre el “pensamiento cartográco” no elimina el tema de la agenda – es decir, de la necesidad humana de visualizar su posición en el mundo- sino que apenas lo desplaza al terreno de la intuición (en el que, para funcionar ecientemente, toma préstamos de otros conocimientos, fundamentalmente de la geometría y la perspectiva).
En el caso del espacio geográco, el desarrollo de la perspectiva fue clave tanto para representar el espacio
con la profundidad de planos como para establecer vínculos sensibles entre los sujetos y su espacio, ya que las tres dimensiones de la geometría eclideana en las que
todo, acerca de nosotros mismos, de nuestro lugar en el
se basa la perspectiva “pueden fácilmente concebirse de modo intuitivo por referencia a nuestro cuerpo y a
mundo y de cómo nos vemos (o no) en él.
su posición en el espacio: la verticalidad es la dirección
En los métodos de enseñanza y aprendizaje de la geografía en el ámbito escolar hubo una notable tendencia hacia la textualidad y a la discursividad a lo largo del siglo XX. La mayoría de los manuales escolares del último siglo insisten en que el mapa sirve para mostrar
de la gravedad y de la posición del pie; la segunda dimensión, horizontal, sería la de la línea de los hombros, paralela al horizonte visual que hay ante nosotros; la tercera dimensión, nalmente, es la de la profundidad, correspondiente al avance del cuerpo en el espacio” (Aumont, [1990] 2013: 40-41). En contraste con la pérdida de terreno por parte de los geógrafos en la producción de mapas, resulta insolayable remarcar la multiplicación de “mapas artísticos” y, sobre todo, de proyectos en que los artistas se proponen dibujar
(en general, información). Es cierto que el mapa es un
mapas (algunos lo hacen de forma sistemática, como
Conclusiones
potente dispositivo de visualización que permite, entre otras cosas, detectar patrones de distribución espacial de datos que, ordenados en una tabla o alfabéticamente, no “hablan” de su distribución ni estimulan la formación de preguntas para dar cuenta de esas distribuciones o de la correlación de fenómenos que las explicarían. En este sentido, los mapas temáticos escolares son sometidos a
una “lectura extractiva” en la que los estudiantes sacan sólo lo que les sirve para “ver” lo que arma el texto que lo acompaña. Poco o nada se dice que los mapas sirven también para pensar o, mejor dicho, cómo podrían ser utilizados Durante entrevistas personales realizadas en Neuquén en 2002 y 2003, los profesores de geografía (egresados de universidades públicas, con formaciones iniciadas en distintos momentos históricos y de la disciplina) manifestaban preocupación de que sus alumnos no “recordaban” el mapa de Argentina y la sistemática confusión de algunas provincias. Entonces, señalaban que, para que sus alumnos recordaran la “forma” de las provincias, los instaban a establecer asociaciones con formas de cosas o formas geométricas: la bota para Santa Fe fue el ejemplo mas apelado, pero también se mencionó con alta recurrencia el hexágono para Tucumán. Además, los profesores expresaron que habitualmente utilizan el esquema “triangular para Argentina” en el pizarrón como recurso rápido para marcar determinados aspectos tales como la extensión latitudinal de Argentina, los puntos extremos, las “franjas” climáticas. Según estos mismos docentes, los alumnos ya manejaban o reconocían con facilidad la asociación triángulo- mapa de Argentina. 32
Guillermo Kuitca y Jorge Macchi y otros, ocasionalmente, como Jasper Johns). Incluso los mapas dibujados a mano alzada, ya sea por parte de artistas como por parte de “gente común” se han vuelto un género cartográco muy popular que despierta gran interés en el público general (algo que puede advertirse con sólo navegar algunos de
los cientos sitios de internet y blogs dedicados al tema o, también, a los libros publicados basados en este tipo de imágenes) (Cooper, Harmon, Hand Drawn Map Association, entre otros). No obstante, esta tendencia creciente (que celebramos) poco tiene que ver con la tradición de formación e instrucción geográca (por lo general, son trabajos o proyectos que apuestan a la originalidad y al impacto estético) y parece profundizar el divorcio entre los dibujos artísticos y los diseños cientícos sobre el espacio (en lugar de enriquecerse mutuamente).
¿El dibujo de mapas queda para los artistas y para las expresiones deliberadamente subjetivas sobre el espacio? ¿Los geógrafos ya no tienen la imaginación
GEOgraphia, vol. 19, n. 40, 2017: mai./ago.
visual para pensar y expresarse a través de imágenes que producen ellos mismos? Aunque todavía no es posible ofrecer respuestas consistentes a estos interrogantes, es alentador
reconocer que en la última década, geógrafos e investigadores de disciplinas anes han comenzado a revisar la naturaleza de la imagen cartográca, el uso de mapas en la enseñanza inicial, el pensamiento espacial de los niños, el impacto de las nuevas tecnologías sobre el uso de nuevos dispositivos cartográcos, entre otros temas. Sin embargo, son pocos los casos que, además de hacer diagnósticos o establecer causas, elaboren propuestas metodológicas que permitan dar ese salto que nos permitiría encontrar los modos de reconectar con la tradición visual de la geografía –con esa graphia perdidadesde perspectivas que respondan a los interrogantes de nuestro tiempo.
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Data de submissão: 24/01/2017 Data de aceite:30/07/2017
Data de publicação: setembro/2017
Land grabbing e crise do capital: possíveis intersecções dos debates
GEOgraphia Niterói, Universidade Federal Fluminense ISSN 15177793 (eletrônico) Vol.19, N 40, 2017: mai/ago. o
Artigos
LAND GRABBING E CRISE CRI SE DO CAPITAL CA PITAL::
POSSÍVEIS INTERSECÇÕES DOS DEBATES
Cássio Arruda Boechat* Universidade Federal do Espírito Santo**
Fábio Teixeira Pitta*** Universidade de São Paulo****
Carlos de Almeida Toledo***** Toledo***** Universidade de São Paulo******
Resumo: O artigo aqui apresentado pretendeu realizar uma apreciação tanto do fenômeno recente denominado por land grabbing, comumente traduzido por “apropriação de terras”, bem como das diferentes formulações teóricas acerca dele. Podemos sugerir que, após as crises alimentares e nanceiras da primeira década do século XXI, a expansão de tal fenômeno cou perceptível e foi responsável por fundamentar a produção de estudos e artigos inicialmente quantitativos. Uma virada mais qualitativa de abordagem do land grabbing pôde, subsequentemente, ser formu lada, a qual apresentamos em linhas gerais e visitamos seus pr incipais autores com a nalidade, porém, de alcançarmos a crítica marxista da expropriação (como dimensão formativa e reprodutiva para a compreensão do land grabbing) como prática imanente ao capitalismo como forma de sociedade. Finalmente, detivemo-nos na apropriação teórica de David Harvey para o land grabbing, para podermos relacioná-lo à compreensão deste autor da crise imanente do capital e conclusivamente, para sugerirmos alguns pontos de questionamento no que diz respeito à capacidade da própria expropriação funcionar como uma contratendência à crise atual do capital – por meio da acumulação por espoliação do ajuste espacial (HARVEY, 2005; 2011). Palavras-chave: Land Palavras-chave: Land grabbing. Expropriação. Crise do capital. Espoliação. Ajuste espacial. David Harvey. LAND GRABBING AND CAPITAL’S CRISIS: POSSIBLE INTERSECTIONS OF THE DEBATES Abstract: The Abstract: The present article intended to grasp the recent phenomenon known as land grabbing as well as the different theoretical framework about it. We may suggest that after the food and nancial crises of the 21st Century’s rst decade the rapid expansion of such phenomenon became clear and stimulated the production of articles and researches initially based on quantitative analyses. A qualitative turn within the production over recent land grabbing was subsequently formulated. We here present this sh ift and its main authors in general lines, although with the purpose to achieve the Marxist critique of expropriation (as a formative and reproductive dimension to understanding land grabbing) as an immanent practice of capitalism as a social form. Finally, we focus on David Harvey’s approach to land grabbing as our way to relate such phenomenon with this author’s formulation of capital’s immanent crisis. As a conclusion, we question the capacity of expropriation to work as a countertendency to the prevailing crisis of capital – through accumulation by dispossession and the spatial x (HARVEY, 2005; 2011). Keywords: Land Grabbing. Expropriation. Capital’s Crisis. Dispossession. Spatial Fix. David Harv ey.
________________________________ *Doutor em Geograa Humana pela Universidade de São Paulo. Professor de Geograa do Centro de Ciências Humanas e Naturais/Univ Naturais/Universidade ersidade Federal do Espírito Santo. E-mail: cassio.boechat@
[email protected] ufes.br ** Av. Fernando Ferrari, 514 – Goiabeiras, Vitória/ES – 29.075-910. Telefone: (27) 4009 - 2523. *** Doutor em Geograa Humana Universidade de São Paulo. Atualmente, realiza estágio de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Geograa Humana na Universidade de São Paulo. Bolsista FAPESP. E-mail:
[email protected] **** Av. Prof. Lineu Prestes, 388 – Cidade Universitária, São Paulo/SP – 05508-000. (11) 3091-3749. ***** Doutor em Geograa Humana, pela FFLCH/USP. FFLCH/USP. Professor associado do Departamento de Geograa e do Programa de Pós-Graduação em Geograa Humana da Universidade de São Paulo. E-mail: carlosdealmeidatoledo
[email protected] @gmail.com ****** Av. Prof. Lineu Prestes, 388 – Cidade Universitária, São Paulo/SP – 05508-000. (11) 3091-3749.
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LAND GRABING Y LA CRISIS DEL CAPITA CAPITAL: L: POSIBLES INTERSECCIONES DE LOS DEBATES Resumen: El Resumen: El artículo aquí presentado pretendió realizar una apreciación tanto del fenómeno reciente denominado por land grabbing, que suele ser traducido por “apropiación de tierras”, así como de las diferentes formulaciones teóricas acerca del mismo. Podemos sugerir que después de las crisis alimentarias y nancieras de la primera década del siglo XXI, la expansión de esto fenómeno s e quedo perceptible y fue responsable por fundamentar la producción de estudios y artículos inicialmente cuantitativos. Subsecuentemente, un cambio más cualitativo de abordaje del land grabbing se tornó posible, lo cual presentamos en líneas generales y visitamos sus autores principales aunque con la intención de llegarnos a la crítica marxista de la expropiación (como dimensión formativa y reproductiva para la comprensión del land grabbing) como practica inmanente al capitalismo como forma de sociedad. Finalmente, nos de tuvimos en la apropiación teórica de David Harvey para el land grabbing, para podernos relacionarlo a la comprensión de este autor para la crisis inmanente del capital e, conclusivamente, para sugerirnos algunos puntos de cuestionamiento en lo que se reere a la capacidad de la propia expropiación funcionar como una tendencia contraria a la crisis actual del capital – por medio de la acumulación por espoliación del ajuste espacial (HARVEY, 2005; 2011). Palabras clave: Land clave: Land grabbing. Expropiación. Crisis del Capital. Espoliación. Ajuste Espacial. David Harvey.
Introdução Este artigo procurou retomar o debate recente sobre land grabbing, que compõe nos últimos anos, segundo Cotula (2012) e Sauer e Borras Jr. (2016), uma “corrida na produção acadêmica” para tentar dar conta de interpretar a “corrida mundial por terras” que teria se inaugurado como respostas de países, empresas e fundos de investimentos às crises alimentar, energética, ambiental e nanceira, dos anos 2000, agravadas a partir de 2007/2008. Observamos, em nossa retomada dessa profusão de textos, livros e artigos sobre o tema, a existência de duas fases bem marcadas na referida produção, sendo a primeira pautada pelas tentativas de quanticar o fenômeno e a segunda caracterizada por uma “virada qualitativa”, a buscar elementos teóricos, políticos e metodológicos para melhor interpretar (ou para gerenciar) o processo. Dentro dessa segunda fase da produção acadêmica sobre land grabbing destacamos a emergência de “narrativas de crise”, a articular a expansão da apropriação mundial de terras como resposta às dimensões de crise acima aludidas. Com isso, observamos, sobretudo pela incorporação parcial da teorização de D. Harvey sobre a “acumulação por espoliação” ou sobre o “ajuste espacial”, a possibilidade de um diálogo dessa literatura recente com a teorização marxista sobre o desenvolvimento crítico do capitalismo. Há, assim, uma sugestão de uma “virada crítica” dentro da “virada qualitativa” na “corrida na produção acadêmica” sobre land grabbing, o que não signica que não haja críticas recorrentes às práticas de land grabbing além da literatura que erta com a perspectiva marxista, embora encontremos nesta última perspectiva uma possibilidade de uma interpretação mais aprofundada e sistemática sobre a relação entre desenvolvimento e crise. Por isso, desdobramos nas seções nais deste artigo um entendimento sobre a teoria marxiana da crise e localizamos, dentro dessa matriz interpretativa, as leituras particulares de D. Harvey.
Os debates sobre land grabbing A questão da quanticação De início os números, mas quais números e o que representam? Vejamos. O assombro (ou a tentativa de promovê-lo) com relação à corrida recente para a aquisição de terras ao redor do mundo vem sendo mensurado de maneiras diversas. E com implicações a serem debatidas. A fonte de dados mais recorrentemente acionada tem sido o relatório de 2010 do Banco Mundial, posteriormente publicado como Rising Global Interest in Farmland – can it yield sustainable and equitable benets? (DEININGER et al., 2011). Nele, os autores advogam uma visão que pende a um estímulo aos investimentos em aquisições de terras em locais mapeados como possuindo terras subutilizadas e passíveis de serem adquiridas a preços baixos e com boa fertilidade e localização. Antes do debate sobre as implicações de tal roteiro para o “banquete nos trópicos”, reitera-se usualmente o levantamento da existência de um boom na comercialização de terras agricultáveis agricultáve is a partir de 2008. E o número representativo apresentado pelos autores apontava para um interesse expresso na comercialização de terras no mundo em torno de 56 milhões de hectares, apenas entre 2008 e 2009 (DEININGER et al., 2011). Outros estudos permitem-no permitem-noss compilar a abrangência da discrepância. Enquanto a primeira publicação do relatório do Banco Mundial estimava uma área global total de 43 milhões de hectares sendo efetivamente negociada, estudo da The International Land Coalition (ILC) reportava um número de 81 milhões de hectares apropriados na última década, ao passo que outra estatística da Oxfam apontava 227 milhões de hectares transacionados no período (White et al., 2012, p. 620). L. Cotula (2012, p. 652) mostraria os mesmos estudos com números distintos e com destinações geográcas desiguais dos investimentos: ILC indicando aquisições
Land grabbing e crise do capital: possíveis intersecções dos debates
entre 51 e 63 milhões de hectares em 27 países africanos, entre 2008 e 2010; Deninger et al. (2011) apontando 56,6 milhões de hectares negociados em 81 países ao redor do mundo, entre outubro de 2008 e agosto de 2009, a partir de dados de GRAIN; e a Oxfam atestando ao redor de 67 milhões de hectares transacionados em todo o mundo entre 2001 e 2010. De todo modo, a imponência da mudança do patamar de negociações saltava aos olhos e o impacto do dado empírico representava antes de tudo um chamado à atenção para algo expressivo e preocupante. S. Sauer e S. Leite (2012) captaram bem essa possibilidade ao indicar, embasados no referido relatório do Banco Mundial, que enquanto a média anual de negociações com terras no mundo era de cerca de 4 milhões de hectares até 2008, a partir de então e até outubro de 2009 este número saltara para 43 milhões de hectares. S. Sassen (2013) tampouco se furtaria a se s e valer do importante expediente, apontando que, entre 2006 e 2012, mais de 200 milhões de hectares foram adquiridos por rmas e governos estrangeiros ao redor do mundo. Porém, não poderiam as variações consideráveis nos dados implicar questionamentos dos estudos em si? A busca pelos chamados killer facts não seria desnecessária face à gravidade e à urgência de análises das implicações do monopólio sobre a terra em qualquer escala? E, ainda, o que há de novo no movimento global de aquisições de terras é mesmo sua intensidade nova ou existem outros elementos qualitativos a se considerar? Antes, todavia, de avançar sobre tais questionamentos, mais séria do que a questão sobre a discrepância dos dados totais cabe se ponderar sobre a própria produção de dados em geral. Duas organizações vêm se dedicando a realizar tais levantamentos que, por sua vez, vêm servindo de fonte de dados para pesquisas acadêmicas e matérias jornalísticas. Tr Trata-se ata-se dos estudos feitos pela ONG internacional GRAIN e pelo portal na internet The Land Matrix. Os estudos da GRAIN se centraram no período entre 2007 e 2011, perdendo espaço entre as outras frentes de atuação da organização, expressas em seu website (
), enquanto o outro portal () segue recebendo informações e as compilando, produzindo produzindo um banco de dados importante. As diferenças 1 entre as fornecedoras de dados para I. Scoones, R. Hall, S. Borras Jr., B. White e W. Wolford (SCOONES et al., 2013, p. 470-472) reconhecem que ambas as iniciativas deram importantes contribuições para o debate sobre land grabbing, mas que as duas têm sérias limitações e problemas. De todo modo, os autores apontam suas diferenças ao observar que a parceria que organiza The Land Matrix, iniciada pela The International Land Coalition (ILC) e se desdobrando em outras iniciativas, adotou a estratégia de crowd-sourcing 1
para identicar negociações de terras, sendo que as submissões de informações por terceiros seriam checadas e conrmadas e só depois
entrariam no grande banco de dados. A estratégia de GRAIN, por outro lado, foi a de fazer pesquisas na interne t e compilar registros, amplamente
militantes, acadêmicos e políticos também se observam nas suas motivações declaradas ao levantar, organizar e disponibilizar tais dados sobre aquisições de terras. Desse modo, diante do espanto com o fenômeno de land grabbing e a sensação de urgência, criou-se um contexto primordial para a pesquisa engajada. Neste, GRAIN se posicionou explicitamente como não se propondo a fazer uma pesquisa neutra, mas tendo o objetivo de “compilar a melhor e mais útil informação” para apoiar respostas de comunidades locais e redes de ativistas contra o fenômeno (). Por sua vez, a parceria The Land Matrix declararia buscar promover a transparência e fornecer dados abertos sobre decisões tomadas sobre terras e investimentos, como passo para um melhor entendimento sobre o que estava ocorrendo. Scoones et al. (2013, p. 472), todavia, enxergam um mesmo comprometimento político, embora o papel político da pesquisa seja mais explícito em GRAIN do que em The Land Matrix. Assim, ambas se tornaram fontes recorrentemente acessadas, inclusive inuenciando politicamente o debate. No entanto, B. White, S. Borras Jr., R. Hall, I. Scoones e W. Wolford (WHITE et al. 2012, p. 620) apontariam que, apesar de haver certa concordância em relação à denição de land grabbing, à necessidade e às maneiras de mensurá-lo, as grandes negociações com terras são usualmente secretas e ninguém sabe exatamente quanta terra foi adquirida. C. Oya (2013, p. 506-507) vai além e atesta que a base empírica bruta sobre land grabs não deriva de levantamentos quantitativos em larga escala sobre propriedades fundiárias nem de qualquer número considerável de entrevistas diferenciadas. Desse modo, este autor cita quatro problemas dos “números” sobre land grabbing. O primeiro problema da mensuração seria relativo a se tomar dados publicados na imprensa como fatos a serem incorporados nos bancos de dados como Grain e Land Matrix, de modo a haver uma “complex mix of facts and ‘factoids’” (OYA, 2013, p. 506). O segundo advém da diculdade mesma de se coletar dados sobre uso da terra, tanto aqueles coletados por fontes ociais como os coletados pelos próprios pesquisadores, comprometendo as pesquisas e as comparações entre países. O terceiro problema estaria no caráter enviesado dos bancos de dados sobre land grabs, como, por exemplo, na maior atenção dada aos casos ocorridos na África ou àqueles em que o governo e empresas chineses estão envolvidos, negligenciando o que vem ocorrendo em outras partes e também a importância de investidores domésticos que, embora sejam os atores principais nessa corrida, aparecem de forma menos espetacular nos noticiários terras, disponibilizando as informações num banco de dados aberto a qualquer interessado, bem como publicando relatórios ocasionais. Uma compilação de dados, explicação de metodologias e primeira sistematização sistematizaç ão sobre as práticas de quanticação de land grabbing pode
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e na percepção nacionalista geral. Por m, o quarto problema resultaria de uma quase completa ausência de trabalhos de conrmação dos dados coletados, e, quando há pesquisas mais rigorosas, estas parecem indicar uma grande distância entre as intenções de investimento em terras e os reais investimentos sacramentados e efetivamente feitos (OYA, 2013, p. 506-509). Diante do referido cenário, Oya (2013, p. 508 – tradução nossa) arma haver uma espécie de “bola de neve” que parte das informações contidas nos bancos de dados de Land Matrix e GRAIN, sendo utilizadas por pesquisadores e ativistas que fazem reclamações por meio de grandes números, geralmente apontando os casos dos grandes “apropriadores” (grabbers) de terras. Isso, então, alimenta a imprensa que produz manchetes espetaculares para atrair seus leitores. A partir de então, as matérias se tornam fontes para livros e para a literatura acadêmica, e assim por diante sem que ninguém reconheça que os “dados” são “uidos, imprecisos e sujeitos a mudar após vericação”. Corroborando a lista de problemas elencados, Oya (2013) e Scoones et al. (2013, p. 472-475 – traduções nossas) concluiriam ter se constituído uma “circularidade de referências”, “produzindo uma metadiscussão sobre negociações com terras bastante descolada da vericação in loco”, na qual a dupla contagem de negociações se soma a casos como o do bizarro embasamento da pesquisa recorrentemente citada do Banco Mundial, apoiada basicamente num levantamento de uso da terra nas mais diversas partes do mundo feito por imagens de satélite. Trata-se, pois, de um bom exemplo da escala “distanciada” própria de uma quanticação problemática que, no entanto, não se restringia, como vimos, ao lado apologista do fenômeno. A reiteração e a explicitação da existência desses problemas teriam, assim, levado a questionamentos que colocariam a necessidade de uma revisão de procedimentos de análise e de posturas políticas e éticas em relação ao fenômeno de land grabbing, a ponto de se apontar para o “m da era do killer fact” e para a necessidade de “uma nova fase da pesquisa sobre land grab”, aprofundando o debate com a sociedade civil (SCOONES et al., 2013, p. 480).
A virada qualitativa Tanto Oya (2013) como Scoones et al. (2013), mas também White et al. (2012), apontam ter ocorrido uma mudança entre uma primeira leva de estudos sobre land grabbing mais superciais e apressados, entre 2008 e 2012, e uma segunda em que se nota uma busca pelo aprofundamento de questões suscitadas
anteriormente. Na primeira fase, podiam-se observar dois tipos de contribuições principais: teorizações sem provas empíricas sistemáticas e relatórios de campo descritivos e sem muita teorização (OYA, 2013, p. 511). A mudança qualitativa teria sido promovida e sistematizada, sobretudo, por edições especiais de periódicos como The Journal of Peasant Studies, The Journal of Agrarian Change e Globalizations e pelas conferências LDPI (Land Deal Politics Initiative), mas envolveria também uma posição diferenciada no sentido de uma crítica qualitativa às aquisições de terras em larga escala da parte de organismos internacionais, como a FAO/ONU (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) e o próprio Banco Mundial, e uma compreensão da variedade de resistências que o fenômeno provoca, pondo em questão o próprio entendimento dele como unívoco e consensual (HALL et al., 2015, p. 468). Segundo os pesquisadores que lideraram esta guinada de aprofundamento sobre as referidas questões – principalmente, Saturnino M. Borras Jr., Ruth Hall, Ian Scoones, Ben White e Wendy Wolford –, tratavase de constituir uma plataforma e uma rede para gerar evidências sólidas por meio de pesquisas de campo detalhadas que zessem uma ponte entre o pensamento teórico-acadêmico com a militância, ao que se somava a destinação de uma série de bolsas de estudos e a organização de congressos. A motivação, desse modo, era explicitamente a de se promover uma virada qualitativa: In
this context, in-depth and systematic enquiry that takes into account the political economy, sociology and ecology of contemporary land deals is urgently needed. It is for this reason that the ve of us came together and launched the Land Deal Politics Initiative (LDPI) (…), all of us are members of the editorial team of the Journal of Peasant Studies (JPS). Thus there is solid basis for collaboration between LDPI and JPS on this team, leading to fruitful initiatives such as this JPS Forum on Global Land Grabbing (…). (BORRAS JR. et al., 2011, p. 210)
Numa primeira escala, pode-se observar um aprimoramento qualitativo da própria compilação e publicação de dados sobre aquisições de terras em larga escala. O portal The Land Matrix, por exemplo, passaria a indicar as fontes de suas informações e as discerniria entre intenções de investimentos e investimentos efetivamente concretizados, qualicando melhor, dessa maneira,, os dados disponibiliza maneira disponibilizados. dos. Em outra escala, importantes organizações como o G8, o grupo das principais economias economias mundiais, por meio do Banco Mundial, e a ONU (Organização das Nações Unidas), por meio da FAO, passariam a incorporar em documentos ociais e diretrizes destinados a países
Land grabbing e crise do capital: possíveis intersecções dos debates
e investidores particulares parte das preocupações levantadas pelas pesquisas e pelos ativistas contra as grandes aquisições de terras 2. Para R. Hall, M. Edelman, S. Borras Jr., I. Scoones, B. White e W. Wolford (HALL et al., 2015, p. 479), as bases políticas e ideológicas que unem e dividem as leiras de atores sociais lidando com as negociações com terras foram se organizando em três formas de regulação diversas, visando: regular para facilitar; regular para mitigar impactos negativos (e maximizar oportunidades) ou regular para bloquear e reverter land grabs 3. Constituíase, desse modo, uma “corrida pela governança fundiária”, amparada por tais documentos acima e pelas pesquisas feitas (MARGULIS; MCKEON; BORRAS JR., 2013). Porém, uma transformação na produção teóricoacadêmica sobre o fenômeno merece de nossa parte uma atenção mais detida, embora não deixando de reconhecer as relações desta com as dimensões acima aludidas. O Relatório do Banco Mundial, anteriormente aludido Em 2012, o G8 lançou o documento New Alliance for Food Security and Nutrition, colocando em sua agenda a necessidade de transparência e responsabilidade sobre investimentos em terras. Em maio do mesmo ano, o Comitê de Segurança Alimentar da FAO lançou o Voluntary Guidelines on Responsible Governance of Tenure of Land, Fisheries and Forest in the Context of National Food Security, saudado por Scoones et al. (2013, p. 475) como extraordinária conquista a exigir posicionamentos e re spostas de governos, de entidades da sociedade civil e de investidores. Outro documento importante foram os Principles for Responsible Agricultural Investment that Respect Rights, Livelihood and Resources (RAI), proposto pela FAO, lançado pelo Fundo Internacional para o Desenvolvimento da Agricultura (IFAD), pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) e pelo Banco Mundial. Elencando sete princípios, o documento foi criticado, por um lado, da parte de governos interessados seja em vender ou em comprar 2
terras, por não ser sucientemente inclusivo, e, por outro lado, da parte
de movimentos e organizações sociais, por se constituir como espécie de checklist para validar investimentos (DE SCHUTTER, 2011, p. 254). Os dois documentos foram considerados (HALL et al. 2015, 479) como apresentando parâmetros internacionais diversos para os agentes envolvidos nos debates sobre land grabbing. Enquanto o primeiro foi tratado como “o mais importante fundamento global em relação aos direitos à terra e seus recursos naturais”, o segundo aparecia como “um parâmetro para a autorregulação dos investidores”. A eles se somaram os Principles for Responsible Investment in Agriculture and the Agro-food System (R IA), pela FAO, FAO, em 2014, que seguiu a adoçã o do Voluntary Guidelines e explicitamente se contrapunha como alternat iva ao RAI patrocinado pelo Banco Mundial. O histórico do Banco Mundial em estimular países em desenvolvimento a aceitar investimentos estrangeiros, diminuindo protecionismo e scalização, corroboraria as
suspeitas da militância e de pesquisadores, mas, por outro lado, a adoção de um discurso preocupado com as implicações dos investimentos que passam por aquisições em larga escala de terras representava, de algum modo, uma reação dessas instituições à primeira leva de pesquisa e de reclamações acerca do fenômeno de land grabbing. 3Por exemplo, o relator da ONU sobre direito à alimentação, O. de Schutter (2011, p. 254) armaria que, à medida que o debate sobre land grabbing girava em torno de sua regulação, tratava-se de uma insuciente posição
aparentemente neutra, possivelmente favorável aos investimentos em aquisição de terras em larga escala. Insuciente posição porque,
por outro lado, ele defendia uma análise aprofundada dos custos de oportunidade subjacentes, uma vez que tais investimentos implicam um modelo de produção em larga escala para a exportação em detrimento da agricultura familiar e das populações locais e sua segurança alimentar.
no que tange aos números de aquisições de terras em larga escala no mundo, constitui um parâmetro também interpretativo do fenômeno, implicando, como se sabe, incentivos a grupos econômicos e a formas estatais de regulação. Este Relatório (DEININGER et al., 2011, p. 76), em sua essência, constituir-se-ia num inuente guia para “terras disponíveis” no mundo e concluía haver cerca de 446 milhões de hectares não devidamente cultivados em terras agricultáveis e não orestais, em áreas pouco habitadas, com menos de 25 pessoas por km 2. A noção de “lacuna produtiva” (yield gap) era aí acionada para calcular o quanto se podia incrementar na produção segundo as condições dadas e valendo-se das melhores condições técnicas disponíveis. Isso levava a uma classicação de países segundo uma tipologia que variava entre aqueles que teriam: a) pouca terra disponível e baixa lacuna produtiva (como China, Japão, países do Oriente Médio etc.); b) terras disponíveis e baixa lacuna produtiva (como Brasil, Uruguai e Argentina e outros do Leste Europeu); c) pouca terra disponível e alta lacuna produtiva (como alguns países da África e da América Central); e d) terras disponíveis e alta lacuna produtiva (como Sudão, Etiópia, Moçambique, Tanzânia e outros) (DEININGER et al., 2011, p. 86-93). Com isso, cava clara a observação lógica de uma ação de governos e empresas de (a) e ocasionalmente de (b), agindo sobretudo em (d), mas também em (b). A positivação dessa ação, embora considerando a fragilidade institucional e social da maioria dos países tidos como alvo desta “corrida”, cava explícita nas diversas formulações sobre os benefícios a que o investimento de capitais poderia levar, sobretudo na mitigação de uma crise alimentar em potencial, mas também na alegada geração de empregos ou na de renda por meio da compra ou do arrendamento de terras, supostamente beneciando a população (DEININGER et al., 2011, p. 71). Enquanto parâmetro interpretativo para o fenômeno de land grabbing, o Relatório do Banco Mundial seria central também num segmento de uma literatura, tornando-se alvo recorrente da crítica da produção teórica que aqui se quer abordar. Reforçando-a e se embasando na supracitada virada qualitativa, O. De Schutter (2011, p. 251-252) observava, desse modo, um pressuposto inicial comum na maioria das análises sobre land grabbing a apontar o problema do fenômeno como localizado na falta de regulação dos Estados fracos dos países receptáculos de tais investimentos, sendo eles em geral localizados no continente africano. Ainda, ao abordar o contexto atual, esses estudos apontavam, segundo o autor, como causa do fenômeno a alta dos preços de alimentos em 2007/2008, indicando como os principais promotores das aquisições de terra em larga escala os governos e empresas da China, da Coreia do Sul, dos países do Golfo
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Pérsico e da Índia. Tais pressupostos eram sustentados por provas produzidas por ONGs e instituições de pesquisa, incluindo GRAIN e Land Matrix. Independente da descrição e da averiguação de onde o fenômeno se dava, a perspectiva crítica que passa a se impor irá questionar alguns pressupostos como os encontrados no Relatório do Banco Mundial, acima citado. Como bem sintetiza a leitura de White et al. (2012, p. 632), a crítica compartilharia a compreensão de ausência de três fundamentos naquela leitura: a) de que as medidas de uma produção “em potencial” levam a quadros irrealistas das condições particulares de produção, inando as expectativas; b) de que a “disponibilidade” de terras sugere não haver uso e reclamações ou disputas sobre aquelas terras; e c) de que a ideia da introdução de uma moderna agricultura ignora o passado de políticas de modernização da agricultura amplamente fracassadas ou abandonadas. A crítica à positivação de land grabbings, tratados ali como meras aquisições em larga escala de terras, passaria, no entanto, pelo questionamento das supostas benesses trazidas pelo investimento de capital. T. M. Li (2011, p. 281-285) revisaria os pontos tratados no Relatório, indicando a pouca probabilidade de que a população local venha de fato a se beneciar seja da venda ou aluguel de suas terras, seja do assalariamento, colocando em dúvida que o modelo produtivo do agronegócio, que se pressupunha ser instalado por meio de tais aquisições, levasse à alegada redução da pobreza. Por m, S. Borras Jr., C. Kay, S. Gómez e J. Wilkinson (BORRAS JR. et al., 2012) corroboram a existência de duas fases na produção sobre as aquisições de terras em larga escala, sintetizando os movimentos de aprofundamento teórico e empírico sobre o tema. Segundo os autores, passou-se a alargar o escopo da vericação de existência do fenômeno para áreas da antiga União Soviética, para o Sudeste Asiático, para a América Latina e para países do Norte. Outros estudos, citados no artigo, teriam apontado que a busca pelo controle sobre a terra derivava, principalmente, de uma busca pelo controle das cadeias globais de valor, passando-se inclusive a se teorizar sobre control grabbings, algo semelhante a críticas pretéritas sobre práticas monopolistas ora reiteradas. A busca do controle sobre as reservas de água, sobre reservas orestais (Green grabbing) e sobre os suprimentos de trabalhadores também representaram importantes desdobramentos das pesquisas. Mudanças nos regimes alimentares e na disputa mais ampla entre agricultura de pequena e larga escala se somaram a perspectivas que incluíam o conito e a violência e aquelas que se originavam de análises mais amplas sobre o desenvolvimento do capitalismo global contemporâneo e a convergência de uma multiplicidade de crises: alimentar, energética, climática e nanceira
(BORRAS JR. et al., 2012, p. 403). Desse modo, ressaltamos aqui que a referida “virada qualitativa”, observada tanto na própria coleta e na sistematização de dados como na preocupação de organismos internacionais e na política de um modo geral, estava referenciada num e perpassava sobretudo um aprofundamento teórico e uma ampliação de pesquisas empíricas críticas sobre o fenômeno de aquisições em larga escala de terras ao redor do mundo. Os termos desse aprofundamento teórico e empírico é que estão postos em questão e merecem ser mais bem compreendidos.
Denindo o fenômeno A própria denição de land grabbing seria alvo de controvérsia, tendo sido, ao contrário, até então aparentemente parte de certo consenso preliminar da primeira fase de estudos. Segundo o dicionário on-line Merriam-Webster, land grabbing é “geralmente uma mudança, uma aquisição de propriedade (como terra ou direitos de patente), muitas vezes por fraude ou pela força”. Já o dicionário on-line Cambridge reitera uma dimensão da noção acima como “ato de tomar uma área de terra pela força, por motivos militares ou econômicos”, mas amplia a possibilidade do seu entendimento como “ato de tomar o controle de uma parte do mercado muito rapidamente ou forçosamente”. Se a expansão rápida do domínio se reitera em todas as denições acima, o objeto da dominação (terra, patentes ou parte de mercado), a maneira de proceder (por fraude, força militar ou força econômica) ou os motivos (militares ou econômicos) seguem passíveis de variação. Quanto à tradução do termo land grabbing para o português, S. Sauer e S. Borras Jr. (2016, p. 12-13) sugerem o termo “apropriação de terras” pela sua abrangência e o leque de possibilidades interpretativas que com ele se abre, para se evitar as restrições inerentes a termos como “grilagem”, “estrangeirização de terras” e “expropriação”. No entanto, o uso dessas variantes tem sido recorrente, expressando a disputa pela sua interpretação. A caracterização em si de land grabs em geral dispensaria, em certa medida, qualquer tratamento mais sistemático e profundo dentro de um quadro teórico como o do marxismo. Especicamente abordando um estudo da FAO sobre land grabs em 17 países da América Latina e do Caribe, conduzido por S. Gómez (2011), viase, por exemplo, uma denição do fenômeno como sendo de aquisições de mais de mil (1.000) hectares, com o envolvimento direto de governos estrangeiros e com impacto negativo na soberania alimentar. Atendo-se a
Land grabbing e crise do capital: possíveis intersecções dos debates
essas três condições básicas, o rigor da denição levava a FAO a concluir só haver land grabbing em dois dos 17 países estudados: Brasil e Argentina. Borras Jr. et al. (2012, p. 404-405) sugerem, por sua vez, uma denição que não seja nem tão restritiva nem muito genérica, indo além da perspectiva de análise de impactos apenas no sentido de conduzir a uma crise alimentar, mas evitando incluir na denição as formas cotidianas de expropriação ou espoliação (dispossession) por diferenciação, seja num sentido leninista ou num chayanoviano. Para evitar tais “problemas”, os autores mobilizam a ideia de três aspectos denidores decisivos e interligados dos land grabbings contemporâneos. O primeiro é a dimensão do poder envolvida no controle da terra e de outros recursos a ela associados, como a água, para extrair benefícios dele. Essa subordinação do fenômeno de land grabbing ao de control grabbing, no entanto, particulariza-se pela análise das mudanças nas formas de uso da terra, em geral associadas ao processo, envolvendo relações políticas de poder que não necessariamente implicam a expulsão de camponeses de suas terras. Nessa dimensão, os autores estão explicitamente inuenciados pelas propostas de Peluso e Lund (2011). Em segundo lugar, é necessário, de acordo com os autores, considerar a escala dos processos de aquisições de terra e há uma distinção a ser feita entre a escala das aquisições de terras propriamente ditas e a escala do capital envolvido. Inserindo essa dimensão, compreendese que há várias formas de se controlar a terra: compra, arrendamento, concessão, contrato de fornecimento, conservação orestal etc. Ademais, evita-se, assim, considerações meramente quantitativas sobre a escala das terras adquiridas, que dizem pouco ou nada sem a devida explicação sobre o seu uso produtivo, de modo que uma mesma grandeza de investimento de capital pode se materializar, por exemplo, em 300 hectares de vinhedos altamente valorizados ou em 500 mil hectares de pastagens. A esta altura, a retomada inicial dos “números” de land grabbing que expusemos mais acima adquire importante qualicação: “Our framework brings capital back into the analysis of land grabs, questioning the current prevalence of land measurement-oriented accounting” (BORRAS JR. et al., 2012, p. 404). O terceiro aspecto a balizar a conceituação proposta de land grabbings seria sua compreensão como parte das estratégias da dinâmica de acumulação do capital, respondendo à convergência de múltiplas crises: alimentar, energética, climática e nanceira. De um lado, o investimento em terras seria uma nova e mais segura oportunidade e, de outro, seria motivado pelas crescentes necessidades dos mais novos conglomerados do capital mundial, especialmente no bloco das principais economias emergentes (BRICs) e em alguns poderosos
países de renda intermediária (MICs). A ascensão de lavouras temporárias de uso variado (ex crops) entraria neste bojo representando a possibilidade de variar o investimento produtivo feito conforme as novas e dinâmicas necessidades do mercado e suas crises. Essas características amplas e interconectadas, a compor um contexto novo, viriam a conformar uma diferenciação dos land grabs atuais em relação a movimentos anteriores de controle sobre a terra. Deriva daí a denição dos autores, que possibilitaria repensar o estudo da FAO, alargando os critérios de análise e permitindo ver a ocorrência do fenômeno não em apenas dois dos 17 países estudados, mas em 12 da América Latina e do Caribe: In short, contemporary land grabbing is the capturing of control of relatively vast tracts of land and other natural resources through a variety of mechanisms and forms involving large-scale capital that often shifts resource use to that of extraction, whether for international or domestic purposes, as capital’s response to the convergence of food, energy and nancial crises, climate change mitigation imperatives and demands for resources from new hubs of global capital. (BORRAS JR. et al., 2012, p. 405)
Vê-se, portanto, uma série de desdobramentos que recorrentemente se remete às diversas dimensões de crise, impulsionando processos e investimentos que estão na base dos land grabbings, aqui postos em questão. Retomaremos essa relação entre a qualicação dos fenômenos e as narrativas de crise na seção seguinte. Parece-nos fundamental, porém, reconhecer antes uma origem do termo em questão num referencial crítico que permite aprofundar a compreensão sobre os fenômenos empíricos normalmente descritos 4. O termo White, Borras Jr, Hall, Scoones e Wolford (WHITE et al., 2012, p. 627630) retomariam a questão, apontando a existência de seis tendências a caracterizar o movimento recente de land grabbings. Com elas, os 4
termos da síntese acima cam mais claros ao se remeter a fenômenos
empíricos abarcados nas tendências. A primeira tendência seria a antecipação global da insegurança alimentar, motivada pela mudança na dieta de países populosos como a China e a Índia e consolidando uma busca por suprir a demanda crescente de alimentos. A segunda seria derivada da volatilidade do preço do petróleo, levando a uma busca por uma “segurança energética”, na qual a chamada “revolução dos biocombustíveis” seria reposta a uma crise energética em potencial. Reagindo a essas mudanças e tendências, haveria a integração vertical do agronegócio a produzir lavouras exíveis, variando
a sua destinação seja para a produção de alimentos, seja de rações ou mesmo de combustíveis. A terceira tendência viria dos novos imperativos ambientais, que fomentaram uma espécie de “mercado ambiental” e um discurso de separação entre povo e natureza, que os autores consideram como uma “neoliberalização da natureza”. Daí adviriam novas formas de mercantilização e novas formas de governança, levando a medidas que vão desde o fomento a reservas orestais até
mecanismos de compensação pela emissão de gases tóxicos e danosos, constituindo os chamados Green grabs. A quarta tendência de ascensão de mecanismos de acumulação viria do estabelecimento de corredores extensivos de infraestrutura e de Zonas Econômicas Especiais. Ambos vêm sendo nanciados por organismos internacionais (BID, FMI, Banco
Mundial) e mesmo por países e investidores, expandindo e melhorando
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land grabbing, segundo White et al. (2012, p. 621), teria sido cunhado por K. Marx (1985, I, cap. 24), no capítulo d’"A assim chamada acumulação primitiva”, que atribuiria à apropriação privada de largas porções de terra o primeiro passo na criação da agricultura em larga escala. Desse modo, há que se reter que a formulação original de Marx (1985) atribuía ao fenômeno ser fundamento da monopolização dos meios de produção, por meio da expulsão de populações locais, ocasionada sobretudo pelos cercamentos (enclosures) de terras comunais, produzindo simultaneamente a propriedade fundiária e o trabalhador livre. Como reconheceria J.-P. de Gaudemar (1977), constituía-se assim a dupla liberdade do trabalhador: livre negativamente das possibilidades de se autorreproduzir na terra; e livre positivamente para ir e vir, escolher onde e com quem trabalhar, ainda que não tendo a liberdade de escolher deixar de trabalhar. Para Gaudemar (1977), esse seria o processo de mobilização do trabalho. Para a literatura marxista em geral, tratavase, essencialmente, de um processo de expropriação. No entanto, a acumulação primitiva que colocaria, por meios diversos e violentos, a extração de maisvalia como “deus único” no altar do capitalismo (Marx, 1985) veria seus métodos de aplicação serem repetidos para realidades outras, além do caso inglês tratado por Marx no referido capítulo. À reiteração de processos semelhantes de constituição da propriedade privada da terra e da mobilidade do trabalho, D. Harvey chamaria de “acumulação por espoliação” (2013, p. 121), retomando a linha de pensamento de R. Luxemburgo acerca da constante necessidade do capitalismo de incorporar elementos “externos” à sua reprodução ampliada, ou ao mercado. Nesse argumento, land grabbing seria forma recorrente de se mitigar os processos de crise do capitalismo. Um exame mais detido da descrição que Marx faz da acumulação primitiva revela uma ampla gama de processos. Estão aí a mercadicação e a privatização da terra e a expulsão violenta de populações camponesas; a conversão de várias formas de direitos de propriedade (comum, coletiva, do Estado etc.) em direitos exclusivos de propriedade privada; a supressão dos direitos dos camponeses às terras comuns [partilhadas]; a mercadicação da força de trabalho e a supressão de formas alternativas (autóctones) de produção e consumo; processos coloniais, neocoloniais e imperiais de apropriação de ativos causando impactos signicativos nos mercados de terra, o que tem levado a grandes conitos fundiários. A quinta tendência seria a criação de novos instrumentos nanceiros, visando reduzir os riscos e permitindo
(inclusive de recursos naturais); a monetização da troca e a taxação, particularmente da terra; o comércio de escravos; e a usura, a dívida nacional e em última análise o sistema de crédito como meios radicais de acumulação primitiva. O Estado, com seu monopólio da violência e suas denições da legalidade, tem papel crucial no apoio e na promoção desses processos (...). Todas as características da acumulação primitiva que Marx menciona permanecem fortemente presentes na geograa histórica do capitalismo até os nossos dias. (HARVEY, 2013, p. 121)
Entretanto, o quanto a literatura sobre land grabbing retoma esses debates do marxismo e da questão agrária ou como se afasta deles é algo a se pensar. Na medida em que se busca a especicidade do fenômeno atual, não são muitos os autores que retomam essa história interpretativa crítica. Alguns, porém, permitem tal caminho. Por exemplo, S. Sauer e S. Borras Jr. (2016, p. 1315) retomam esse debate, reconhecendo a importância da denição abrangente de Harvey (2013) como fundamento para o land grabbing e para green grabbings. S. Sassen (2010; 2013) igualmente reorienta suas pesquisas anteriores (ver Sassen, 1990) sobre a política externa norte-americana implicando uxos imigratórios nas décadas de 1970 e 1980 para práticas atuais de expulsão por meio de land grabbings, como fenômenos da acumulação por despossessão. N. Peluso e C. Lund (2011, p. 667-668) ainda encontram na literatura clássica sobre a questão agrária, desde Marx, a constância de um debate centrado em torno do controle da terra. Nessa compreensão, land grabbing é a forma primordial de se obter o controle da terra e de se promover a exclusão de outros de seu uso, sendo, entretanto, modicado por contextos em transformação e por novos atores e matrizes de interpretação dos fenômenos. As “novas fronteiras do controle da terra” seriam tema de suas análises visando à particularidade de land grabs atuais. Tem-se, com isso, uma possível interação da literatura atual sobre land grabbing, a partir de sua “virada qualitativa”, com os fundamentos de uma explicação marxista sobre o controle fundiário. Procuraremos desdobrar essa interação a partir da constatação de “narrativas de crise” orientando tal literatura e propondo um debate sobre os fundamentos da crise no interior da matriz interpretativa marxista, concluindo este artigo com o posicionamento de D. Harvey em relação à teoria marxiana da crise, assim como com a apresentação de uma problematização acerca de tal posicionamento.
rentabilidade a investidores a partir da preocupação disseminada de que a comida e os combustíveis (mas também os recursos naturais em geral) estão acabando. Fundos de pensão e private equities são os principais atores nesse âmbito, diversicando em meio à crise nanceira
seus portfólios em terras e promovendo uma agricultura baseada no
Narrativas de crise
modelo produtivista do agronegócio. Por m, uma série de regras,
regulações e incentivos da comunidade internacional têm se posicionado ambiguamente em relação às preocupações com as crises alimentar, ambiental e energética, reiterando o incentivo ao desenvolvimento mas
A partir de “narrativas de crise” é que surgiram discursos como aqueles presentes, por exemplo, no
Land grabbing e crise do capital: possíveis intersecções dos debates
Relatório do Banco Mundial, buscando na ocupação produtiva de “terras marginais, vazias e disponíveis”, a solução para elas: The justication for land investments on a large scale is often presented around a series of “crisis narratives”, linked to growing scarcity and impending catastrophe. The underlying assumption is that the solution to such food, energy and climate “crises” lies in capturing the potentials of so-called “marginal, empty and available” lands across the globe. (WHITE et al., 2012, p. 631)
Outras narrativas de crises, no entanto, não compõem o repertório do estímulo às aquisições de terras em larga escala. Pelo contrário, a alusão a elas serve para inverter a ordem dos fatores e evidenciar que o modelo de produção em que a apropriação de largas porções de terras é pressuposta e reiterada é que deve ser pensado como causa das crises, e não exatamente sua solução. Assim, os próprios White et al. (2012, p. 624) apontam formas contemporâneas de transição agrária que envolvem investimentos e deslocamento ou expropriação com expulsão da população sem reabsorver o seu trabalho em indústrias ou em qualquer setor da economia. A degradação social, dentro dessa “crise agrária ao redor do mundo” (2012, p. 627), viria da pobreza e da falta de alternativas para a população. T. M. Li (2011, p. 295) seria ainda mais enfática em abordar a existência de uma “crise do trabalho”, na qual a expropriação, ocorrendo quando ao capital interessa apenas a terra e não o trabalho, implica, no mais das vezes, falta de emprego para os expropriados, sobretudo no cenário de generalização do uso de tecnologias poupadoras de trabalho na indústria, na agricultura e na mineração, de maneira que “até trabalhos ruins estão escassos”. Nesse cenário de falta de apoio do Estado, “até uma pequena fatia de terra é uma rede de segurança crucial”. No entanto, a série de casos tratados por Hall et al. (2015) permitiriam notar que a aparente melhor condição de reprodução social daqueles que permanecem na terra não poderia ser tratada de modo unívoco. Assim, a discussão sobre os “termos de uma integração adversa” pode, retomando a terminologia de Li (2011), mostrar que, mesmo quando o capital quer tanto a terra quanto o trabalho, as condições de fornecimento de pequenos produtores pode ser igualmente crítica, havendo situações em que a expropriação e o assalariamento podem aparecer como alternativas até desejadas por eles. Por m, é Z. W. Brent (2015, p. 672) que retoma a formulação de D. Harvey sobre o “ajuste espacial”, como forma de expansão da acumulação por espoliação, para requalicar o fenômeno de land grabbing como uma reestruturação territorial, motivada pela crise do
capitalismo e como forma de mitigação da mesma, acionada pelos próprios capitais em parceria com instâncias dos Estados, igualmente em crise. O poder territorial sobre lugares, pessoas e espaços sociopolíticos se somaria ao poder capitalista do controle do dinheiro e dos processos de acumulação. Embora reconheça a importância da formulação de Harvey, Brent defende, todavia, a busca das mediações e tensões na legitimação de práticas por meio do Estado para facilitar a acumulação de capital . A maneira como Harvey trataria o “ajuste espacial” como mitigação da crise é algo a ser explorado, dentro do debate sobre as “narrativas de crise”. Essa crise seria, para o autor, aquela oriunda da sobreacumulação de capitais, na forma de excedentes de capital e de trabalho. A “acumulação por espoliação”, privatizando terras e bens comuns, permitiria, então, liberar “ativos (incluindo força de trabalho) a custo muito baixo (e, em alguns casos, zero)” para que o capital sobreacumulado possa se apossar deles e dar-lhes um uso lucrativo: 5
O que teria acontecido com o capital sobreacumulado nos últimos 30 anos sem a abertura de novos terrenos de acumulação? Dito de outro modo, se o capitalismo vem passando por uma diculdade crônica de sobreacumulação desde 1973, então o projeto neoliberal de privatização de tudo faz muito sentido como forma de resolver o problema. (HARVEY, 2013, p. 124)
Essas outras “narrativas de crise” (crise agrária, crise do trabalho e crise do capital) permitem um olhar diferenciado para o fenômeno, que não é, desse modo, positivado como saída para o problema, mas como gerador de novas ou aprofundando crises sociais e ambientais. Conforme expusemos, o recurso à teorização de D. Harvey pela literatura recente sobre land grabbing sugere um diálogo desta com a vertente marxista de compreensão da expansão do capitalismo e das suas crises. Por isso, passaremos a nos aprofundar nesse referencial como meio de promover um aprofundamento do debate em torno das crises e, assim, repensar como interpretar o fenômeno de land grabbing. Concluiremos, Quem igualmente se escora na formulação de D. Harvey (aceitando-a mais do que Brent, no entanto) é S. Sassen (2010, p. 26-27), sobretudo na derivação do argumento acima, que aponta como mecanismo de mitigação da crise a injeção de matérias-primas baratas no sistema, de um lado, e a desvalorização dos ativos de capital e de força de trabalho existentes, de outro (HARVEY, 2013, p. 124-126). Para Sassen (2010, p. 27-28), as “lógicas de extração” estariam expandindo seu domínio no capitalismo avançado. Um exemplo disso teria sido a política de modernização de países do Terceiro Mundo no pós-guerra, levando a um endividamento crônico destes. Com a crise das dívidas de inícios dos anos 1980, o serviço das dívidas teria sido especialmente perverso para países africanos e da América Latina, numa proporção em relação ao PIB muito superior ao que foi cobrado na reconstrução de países como a Alemanha e o Japão, nos anos 1940 e 1950. Sassen, com isso, observa um uso da dívida primeiro como fator de disciplinamento e depois como desvalorização dos ativos desses países, para serem reincorporados pelos capitais dos países credores, num mecanismo de 5
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portanto, este artigo com uma consideração teórica sobre a crise do capital e suas relações com a apropriação de terras.
Aprofundando as “narrativas de crise” para repensar o land grabbing A teoria marxiana da crise A ideia de que a reprodução social capitalista tende a conduzir à crise já estava presente na Economia Política clássica, embora com tratamento distinto da maneira sistêmica e inerente ao movimento do capital, tal qual Marx a elabora. R. Rosdolsky (2001, p. 315-319), por exemplo, observa a construção ricardiana de uma teoria da crise que contrapõe o uso produtivo da natureza ao seu uso industrial , não derivando da própria dinâmica de produção industrial a imanência da queda da taxa de lucro. Retomando os apontamentos metodológicos de K. Marx (2005), o autor relaciona a teoria ricardiana ao pressuposto de T. Malthus acerca da queda tendencial da fertilidade da terra no seu uso agrícola, além da falta de distinção entre taxa de mais-valia e taxa de lucro, algo de que Marx (1986) viria a se ocupar mais no Livro III d’O capital. Na seção terceira do Livro III daquela obra é que encontraremos o debate sobre a lei da queda tendencial da taxa de lucro (Marx, 1986, III, t. 1, cap. 13), que localizamos como sendo o fundamento central da teoria da crise na obra de K. Marx e alvo de uma controvérsia 6
7
Em David Ricardo (1982, p. 65-75), a expansão da necessidade social por mais mercadorias conduziria ao uso de terras de pior qualidade para a produção adicional de alimentos para a população e de matérias-primas para a indústria, evidenciando uma produtividade gradativamente menor da agropecuária. Isso acarretaria aumento da renda da terra, dado o aumento dos diferenciais de produtividade entre as terras; além disso, forçaria um aumento da quantidade de trabalho necessário à produção das mercadorias consumidas pelos trabalhadores e consequente pressão de aumento dos salários e redução da taxa de lucro, numa tendência de o sistema produtivo ser conduzido a certo “estágio estacionário”. 7Antes de chegar até a concepção da crise na totalidade da reprodução capitalista, tal como abordada no terceiro livro daquela obra de Marx, 6
devemos indicar que a possibilidade da crise já se armava nas suas
análises anteriores. No primeiro capítulo do Livro I d’O capital, ao tratar da forma mercadoria, Marx (1985) já apontava para uma relação inerente entre forma relativa e forma equivalente, deixando entrever uma possível distinção entre os momentos da contradição interna entre valor de uso e valor. Entre outras questões, indicava-se aí a possibilidade de não se consumar a realização da mercadoria, não se tornando ela valor de uso para outro que não aquele que a produziu. De modo semelhante, no desdobramento que exterioriza a antítese interna (entre valor de uso e valor) da forma-mercadoria numa antítese externa entre mercadoria e dinheiro, os atos de compra e de venda implicam uma possibilidade da não realização do valor contido na merca doria. Porém, essa possibilidade de crise, ainda aí analisada do ponto de vista de uma produção e circulação individualizada, adquiriria contornos efetivamente mais abrangentes na análise do dinheiro como meio de pagamento. Nesta, a distensão temporal entre os momentos de compra e venda se alargava, abrindo caminho para os posteriores desenvolvimentos teóricos marxianos sobre o crédito e evidenciando a formação de uma cadeia de interdependência, cada vez maior, entre compradores e vendedores (ou
recente8. Apresentemos brevemente os termos da seção escrita por K. Marx e editada por F. Engels, a começar por seu título. Veja-se, a princípio, que a tão criticada formulação de uma “lei” será aí articulada à noção nada mecanicista de “tendência”, de maneira a ressaltar a contradição de um processo que produz ou pode vir a produzir a sua própria crise (PRADO, 2014; MELLO, 2012). Essa tendência, indicando um caráter crítico da reprodução ampliada do capital, parece se originar, para Marx (1986), dos efeitos da própria concentração e da centralização do capital, motivados pela concorrência e acelerados pelo sistema de crédito. No entanto, na recepção marxista ao longo do século XX, ela pôde ser tratada em seus termos estritos, a ponto de ser criticada contemporaneamente pelo próprio D. Harvey (2015a; 2015b) como equivocadamente “monocausal”, em análise confrontada por M. Roberts (2014) e por A. Kliman (2015). Por sua vez, o próprio Marx não se furtou a apresentar possíveis e efetivas causas a contrariar aquela tendência de queda da taxa de lucro: “Deve haver inuências contrariantes em jogo, que cruzam e superam os efeitos da lei geral, dando-lhe apenas o caráter de uma tendência (...)” (Marx, 1986, p. 177). No capítulo em questão (MARX, III, t. 1, 1986, cap. 14), ele cita seis causas contrariantes: a) Elevação do grau de exploração do trabalho; b) Compressão do salário abaixo de seu valor; c) Barateamento dos elementos do capital constante; d) Superpopulação relativa; e) Comércio exterior; e f) Aumento do capital por ações. A síntese da lei da queda tendencial é, portanto, logo “bombardeada” teoricamente, pelo próprio autor, com diversas questões que compõem contratendências que, de um ponto de vista como o de M. Heinrich (2012), poderiam levar à conclusão de se tratar de uma negação da lei ou de um autor incoerente. Por outro lado, poder-se-ia argumentar ainda sobre a existência de uma “necessidade relativa” da primeira tendência, de pagamentos levar à queda em série de compromissos rmados
(MARX, I, t. 1, 1985, cap. 3). No que se refere à transformação do dinheiro em capital, a compra de força de trabalho e seu uso produtivo apareceria, no decorrer da análise do Livro I, como condição para a valorização do capital, pela extração de mais-valia. Apareceria também como a característica fundamental da reprodução ampliada do capital (ver Marx, I, t. 2, 1985, caps. 20 a 22), de maneira a evidenciar a centralidade da valorização em detrimento da mera produção de valores de uso, que lhe aparece como acessória, segundo um entendimento que leva à conclusão de o capital se alçar como “sujeito automático”, subordinando aqueles que personicam tanto
o trabalho como o próprio capital (MARX, I, t. 1, 1985, cap. 2). 8A título de breve apontamento, observamos que Harvey (1982) o consideraria como o primeiro corte da teoria da crise para posteriormente (HARVEY, 2015a; 2015b) a criticar; Heinrich (2013) o trata como uma inconsistente formulação editada por Engels e posteriormente abandonada por Marx; Kliman et al. (2013), Carchedi e Roberts (2013) e Kurz (2015) se dedicariam contra a posição de He inrich; Kliman (2015) se esforçaria em provar que Harvey (2015a) se distancia do próprio Marx; e Kurz (1995) constrói sobre este mesmo fundamento sua formulação
Land grabbing e crise do capital: possíveis intersecções dos debates
não se impondo necessariamente na realidade, como na proposição de leitura de J. Grespan (2012, p. 197). Ou, ainda, de um teorema supercial sobre a tendência de crise que se origina de uma tendência estrutural profunda de aumento da composição orgânica do capital, sugerindo a possibilidade de uma realização futura da “lei”, conforme a sugestão de M. Postone (2008, p. 9091). Vejamos, todavia, a lógica interna da formulação marxiana. O aumento da composição orgânica dos capitais representa uma diminuição relativa do capital variável (v) sobre o capital total (C), incorrendo numa diminuição também relativa da mais-valia extraída (m) desse capital variável, e assim levando à queda da taxa de lucro (m/C). A tendência progressiva da taxa geral de lucro a cair é, portanto, apenas uma expressão peculiar ao modo de produção capitalista para o desenvolvimento progressivo da força produtiva social de trabalho. (...) Como a massa de trabalho vivo empregado diminui sempre em relação à massa de trabalho objetivado, posto por ele em movimento, isto é, o meio de produção consumido produtivamente, assim também a parte desse trabalho vivo que não é paga e que se objetiva em mais-valia tem de estar numa proporção sempre decrescente em relação ao volume de valor do capital global empregado. Essa relação da massa de mais-valia com o valor do capital global empregado constitui, porém, a taxa de lucro, que precisa, por isso, cair continuamente. (MARX, III, t. 1, 1986, p. 164)
Por se tratar de uma formulação em torno de uma relação entre os componentes que atuam sob a forma do capital, a primeira questão que se interpõe, e que contribuiu sobremaneira para posteriores divergências interpretativas, diz respeito ao fato de que o número de trabalhadores empregados e inclusive a mais-valia deles extraída pode e deve aumentar, em termos absolutos, sem anular o determinante para a lei tendencial de que estejam decrescendo do ponto de vista do capital global empregado 9. Desse modo, o que é mais importante ressaltar de toda essa passagem é a maneira como a crise fundamental parece decorrer, contraditoriamente, do desenvolvimento das próprias relações sociais de produção: A taxa de lucro não cai porque o trabalho se torna mais improdutivo, mas porque se torna mais produtivo. Ambas, elevação da taxa de mais-valia e a queda “O número dos trabalhadores empregados pelo capital, portanto a massa absoluta de trabalho posta em movimento por ele, portanto a massa absoluta de mais-trabalho absorvida por ele, portanto a massa de maisvalia produzida por ele, portanto a massa absoluta de lucro produzida por ele pode, por conseguinte, crescer, e crescer progressivamente, apesar da progressiva queda da taxa de lucro. Isso não apenas pode ser o caso. Tem de ser o caso – descontadas oscilações transitórias – na base da produção capitalista” (MARX, III, t. 1, 1986, p. 167). Este é outro ponto controverso que, de acordo com Roberts (2014) e Kliman (2015), Harvey (2015b) teria sugerido erroneamente que o aumento do número de trabalhadores empregados seria evidência da invalidade da 9
da taxa de lucro são apenas formas especícas em que se expressa de maneira capitalista a crescente produtividade do trabalho. (MARX, III, t. 1, 1986, p. 182)
O que se tem, com isso, é um processo que pode aparecer como “crescimento” ou “expansão” do capital ou progresso (técnico), mas que, no fundo, tende a representar uma reiteração de uma crise fundamental do capital, a estreitar a sua base de extração de mais-valia, na proporção agigantada de trabalho objetivado que não gera por si nova mais-valia. Por outro lado, pela equalização da taxa de lucro, os capitais maiores, como maiores “acionistas” da classe capitalista de determinado setor, aparecem como tendo direito de reclamar uma maior parcela na divisão do lucro médio, exatamente por sua magnitude. O aumento da composição orgânica do capital aparece, ao capital individual, pois, como vantagem na competição com outros capitais por maiores massas de lucro 10, embora a mesma concorrência tenda a equiparar as taxas de lucros, reduzindo-as. A mobilidade do capital e sua centralização, na análise marxiana, agiriam no sentido de reduzir as taxas de setores altamente lucrativos e de aumentar aquelas de setores saturados, menos atraentes, por meio da expulsão de capitais face à baixa rentabilidade. Por outro lado, mecanismos de controle de propriedade privada visariam monopolizar tecnologias, diferenciais de fertilidade e localização de solos e vantagens das mais diversas. 11 O quanto terão capacidade, no longo prazo, para minimizar a queda da taxa de lucro, ou o quanto essa capacidade se mostrará pontual é uma importante questão a ser pensada. É por essa chave, portanto, que a análise de K. Marx permite compreender a contínua centralização do capital e a monopolização em diversas esferas produtivas e do mercado como “guerra” pelas massas de lucro, face à tendência imanente de queda da taxa de lucro. Essa formulação permite dar fundamentação teórica nova ao quadro de um regime alimentar corporativo e policêntrico (MCMICHAEL, 2014), ou de agigantamento dos conglomerados que agem na agricultura (BOECHAT, 2015) incluindo em suas práticas novas modalidades de land grabbing. Apresentamos, com isso, a possibilidade de um aprofundamento das “narrativas de crise”, que envolve uma consideração sobre o entendimento de uma “crise imanente” do capital a motivar práticas de “espoliação” ou de “ajuste espacial”. Compreender Também este argumento, por assim dizer, empiricista pode comprometer uma aceitação do fundamento da t eoria da crise, conforme observa Kliman (2007). 11A análise dos processos de monopolização dos capitais, associados 10
ao capital bancário, promovendo a constituição de um capital nanceiro,
articulado a investidas expansionistas e à proteção estatal, organizou o debate acerca do imperialismo, nas primeiras décadas do século XX, tendo nas obras de Hilferding (1985), Lenin (1979) e Luxemburgo (1985)
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a particularidade da leitura de D. Harvey sobre esse referencial é o caminho que permite a conexão do debate sobre land grabbing com o debate sobre a teoria da crise.
D. Harvey e a teoria marxiana da crise Um importante leitor de K. Marx na atualidade é D. Harvey, que aceita com ressalvas a formulação marxiana. No primeiro livro em que delineia seus estudos dentro de uma perspectiva marxista, The Limits to Capital, escrito nos anos 1970, Harvey (1982) apontava a existência de três “cortes” ou níveis de crise, sendo a lei da queda tendencial da taxa de lucro (LQTTL) o primeiro deles. No entanto, os processos de desvalorização, sobretudo por meio da inação e de crises, iriam fazer retomar patamares de lucratividade. 12 Uma das formas acionadas para “exportar” a desvalorização se daria por meio da expansão territorial e da exportação de capitais. Essa perspectiva embasaria suas formulações posteriores sobre o chamado ajuste espacial (HARVEY, 2005), como já mencionamos anteriormente, e que visivelmente se articula como uma expansão territorial a mitigar os efeitos da LQTTL13. Sugerimos também acima a possibilidade de entender os fenômenos de land grabbing como parte de No capítulo 6 da referida obra, Harvey elabora sobre o movimento da lei geral de acumulação capitalista até a LQTTL, para no capítulo seguinte delinear sua abordagem sobre a reprodução ampliada do capital conduzir à sobreacumulação de capital. Essa acumulação excessiva seria a causa primeira de crises, exigindo um processo de desvalorização do capital. Trata-se aí de um movimento que não é meramente resultado da destruição de capitais que uma crise provoca, mas igualmente resultado da desvalorização contínua que o aumento da produtividade do trabalho reitera, a diminuir o valor adicionado às mercadorias produzidas em escala aumentada (HARVEY, 1982, p. 196-203). Esta seria uma primeira 12
abordagem de uma teoria da crise (ou “rst-cut” theory of crises). Posteriormente, após tratar das questões do capital xo, Harvey (1982,
p. 413-445) faz uma longa imersão na discussão sobre o dinheiro e suas relações com o capital produtivo, entrando no debate sobre o capital nanceiro. Da desproporção aí encontrada, passando pela desvalorização materializada na inação, Harvey circundaria uma segunda abordagem
teórica fundamental da teoria da crise, já neste ponto articulando as obras de Marx às de Hilferding (1985) e de Lenin (1979). Por m, seu olhar se voltaria para a dimensão geográca da reprodução social sob o
capitalismo, retomando as questões de Marx sobre a renda fundiária para concluir sua análise da obra marxiana nos pontos sobre a mobilidade do capital e do trabalho. A obra, todavia, iria além e debateria ainda com a teoria do imperialismo, em especial com a de Luxemburgo (1985). 13Em outras obras, observamos a maneira como esse estudo de Harvey se desdobrou, especialmente nos conceitos de “ajuste espacial” e de “acumulação por despossessão” (ou “via espoliação”). Certamente, ainda, há a sua formulação consagrada da passagem do fordismo ao pós-fordismo, conformando uma nova qualidade de reprodução social, caracterizada pelo autor como marcada pela “acumulação exível”
e também pela “condição pós-moderna” (HARVEY, 1992). No que se refere à noção de “ajuste espacial”, ela deriva de uma compreensão, já esboçada em Harvey (1982), de que a crise gestada na dialética interna da sociedade civil (entre capital e trabalho e na reprodução ampliada do capital) conduz à necessidade de uma expansão territorial (HARVEY, 2005). De certo modo, a consideração dessa expansão como sendo um “ajuste” evidencia um diálogo com as chamadas “causas contrariantes” à lei da queda tendencial da taxa de lucro. Devemos nos perguntar sobre os limites dessa possibilidade na obra de Harvey (ver Toledo; Boechat; Pitta, 2013), o que relaciona a discussão com a questão sobre as crises serem
um ajuste espacial de economias centrais com capitais superacumulados. Por outro lado, em estudo mais recente sobre a crise de 2007/2008, Harvey (2011) retomaria especicamente um tratamento negativo da teorização de Marx, negando-a de maneira distinta do que parecia fazer anteriormente, numa aparente unicação das perspectivas que apontam para a inconsistência da LQTTL com aquelas que ressaltam as suas contratendências: Marx achava que tinha identicado um meio fundamental para explicar a queda da taxa de lucro [...]. Deslocar o trabalho da produção era contraproducente para a lucratividade a longo prazo. A tendência de queda dos lucros [...] e as crises a que inevi tavelmente daria origem eram internas ao capitalismo e não eram explicáveis em termos de limites naturais. Mas é difícil fazer a teoria de Marx sobre a queda da taxa de lucros funcionar quando a inovação é tanto para economizar capital ou meios de produção (por exemplo, pelo uso mais eciente de energia) quanto para economizar trabalho. O próprio Marx, na verdade, listou uma série de inuências de contratendência para a queda da taxa de lucro [...]. Esta lista é tão longa que torna a explicação de uma lei sólida de queda de lucros uma resposta mecânica à inovação para economizar trabalho, que permanece uma proposta insuciente. (HARVEY, 2011, p. 82) 14
Não precisamos assumir o lado dos defensores da inevitabilidade ou da efetividade da teoria da crise marxiana. Basta-nos apontar que a crítica de D. Harvey (2011) procura recuperar elementos de tentativa de superação daquela tendência, o que por si sugere a atuação da tendência mesma. O que nos parece mais importante ressaltar, para concluir, é que parece haver um movimento generalizado de aumento da composição orgânica de capitais, seja na agricultura e na mineração seja na indústria, promovendo em escala ampliada o aumento da produtividade do trabalho, ao menos em potencial, o que requer em tese uma necessidade declinante de trabalhadores e uma ascendente de matérias-primas, levando a graves consequências sociais e ambientais com a reiteração desse modelo. A tese do “ajuste espacial”, assim, ao armar a existência de um “modelo produtivista” que se pauta pela difusão de inovações, conclui de modo contrário, por exemplo, às “sete teses sobre o mundo rural” de Buainain et al. (2014), segundo as quais a terra seria menos importante do que o capital neste modelo vitorioso. Quanto mais o capital se impõe, mais ele parece requerer a expansão territorial, e parece, pois, recolocar a importância da terra como mecanismo de mitigação da sua crise imanente. Restaria saber o quanto se poderá, nos limites históricos dados, reproduzir esse modelo e seu “ajuste espacial”. Com isso, Harvey (2011) toma partido de ambas as críticas ao esquema de reprodução ampliada crítico de Marx. Primeiramente, aponta certa indeterminação da LQTTL pela inovação economizar capital e trabalho, 14
e, no nal da citação, toma partido das “inuências de contratendência”,
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Considerações fnais Para concluir, podemos lembrar a formulação sobre a distinção para a agricultura entre tempo de produção e tempo de trabalho, que tendia a ser igualada pela industrialização dos processos produtivos no campo (SILVA, 1981). A principal implicação da teoria da crise marxiana é apontar uma tendência na qual, na produção altamente tecnicada e mecanizada, tempo de produção pode não signicar um tempo de valorização suciente para auferir uma taxa de lucro que remunere o sistema produtivo. A exclusão relativa e absoluta de trabalho vivo dos processos produtivos, pela sua substituição pelo trabalho pretérito e objetivado em elementos do capital constante, sugere uma dissociação crescente entre tempo de produção e tempo de trabalho. Com isso, por mais que o tempo de vida do trabalhador continue a ser expropriado dele mesmo, ele tende a ser gasto principalmente na busca por emprego ou em atividades que não necessariamente respondem pelo tempo de trabalho socialmente necessário. A sugestão de uma crise do trabalho (HEIDEMANN et al., 2014; Li, 2011) implica uma crítica ao modelo produtivista como não mais gerador de emprego e de renda, como teria sido outrora. Fica a questão do que fazer e como gestar o excedente social crescente de tempo de não trabalho. Por outro lado, a modernização da agricultura atrelada ao projeto nacional de modernização do pós-guerra parece encontrar seus próprios limites históricos, o que não signica que o ajuste espacial não possa seguir se dando ao nível dos monopólios e das corporações, ou mesmo de países agindo estrategicamente para garantir segurança alimentar, energética ou de suprimento de matérias-primas para suas empresas. Land grabbings em busca de sobrelucros na forma de renda da terra parecem estar se dando num contexto de diversas crises, às quais procuramos sugerir aqui a existência de uma profunda e fundamental, impactando a taxa de lucro. Eles acabam por representar o aumento do capital constante das empresas, ou de seu patrimônio, que, como dissemos, acaso superacumulado, tende a se desvalorizar. Seria preciso que houvesse maneiras distintas para promover essa “valorização” do patrimônio, uma vez que, enquanto capital, de um modo geral, sua capacidade de se valorizar pela exploração do trabalho parece se tornar elemento questionável. A reiteração de mecanismos de land grabbing, assim, adquire sentido social e histórico distinto do que já teve para as fases de imposição da mobilidade do trabalho e de industrialização nacional, e seus elos com o capital nanceiro precisam ainda ser buscados, o que não se pôde fazer nos limites do presente artigo.
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Data de submissão: 26/10/2016 Data de aceite:26/06/2017 Data de publicação: setembro/2017
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Artigos
DA FINANCEIRIZAÇÃO AO LUGAR: DOS NEXOS HEGEMÔNICOS ÀS CONTRA-RACIONALIDADES DO COTIDIANO
Marina Regitz Montenegro* Universidade de São Paulo**
Resumo: As nanças alcançam, no período atual, uma centralidade inédita em todos os campos da vida social, assumindo um papel determinante Resumo: As sobre as dinâmicas do espaço geográco. Na medida em que envolve transformações na economia, na política e na sociedade como um todo, a nanceirização implica uma renovação dos próprios conteúdos do território e do cotidiano. Partindo de uma aproximação teórica sobre o processo em tela, o artigo busca desvendar cer tos nexos da creditização do território brasileiro para, em um segundo momento, focar a capilaridade alcançada pelas nanças entre a população pobre e seus impactos no cotidiano, onde a incorporação de nexos nanceiros se combina à emergên cia de novas contra-racionalidades. Palavras-chave: Financeirização. Território. Cotidiano. Lugar. Contra-racionalidades.
FROM FINANCIALIZATION TO PLACE: FROM THE HEGEMONIC LINKS TO DAIL DAILY Y COUNTER-RATIONALITIES Abstract: The Abstract: The nances reach, in the current period, an unprecedented centrality in all elds of social life, playing a leading role on the dynamics of geographical space in contemporaneity (SANTOS, 1996; FRENCH et al., 2011). As far as it involves changes in economy, in politics in and society as a whole (Christopherson et al., 2013), nancialization implies a renewal of the contents of territory and of daily life. From a theoretical approach about this process, the article seeks to uncover certain links of the Brazilian territory creditization to, in a second moment, focus the reach achieved by nance among the poor and their impact on daily life, where the incorporation of nancial links combines itself with the emergence of new counter-rationalities. Key words: Financialization. words: Financialization. Territory. Taily life. Place. Counter -rationalities.
DE LA FINANCIERIZACIÓN AL LUGAR: DE LOS NEXOS HEGEMÓNICOS A LAS CONTRA-RACIONALIDAD CONTRA-RACIONALIDADES ES DE LO COTIDIANO Resumen: Las Resumen: Las nanzas alcanzan, en el período actual, una centralidad inédita en todos los campos de la vida social, asumiendo un papel determinante sobre las dinámicas del espacio geográco. En la medida en que involucra transformaciones en la economía, en la política y en la sociedad como un todo, la nancierización implica una renovación de los propios contenidos del territorio y del cotidiano. A partir de una aproximación teórica sobre este proceso, el artículo busca desvelar ciertos nexos de la creditización del territorio brasileño para, en un segundo momento, enfocar la capilaridad alcanzada por las nanzas entre la población pobre y sus impactos en el cotidiano, donde la incorporación de nexo nancieros se combina a la emergencia de nuevas nu evas contra-racionalidades. Palabras clave: Financierización. clave: Financierización. Territorio. Cotidiano. Lugar. Contra-racionalidades.
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* Doutora em Geograa, atualmente realiza e stágio de Pós-Doutorado em Geograa na Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected] [email protected] ** Av. Prof. Lineu Prestes, 338 - Butantã, São Paulo - SP SP,, 05508-000. Tel: (11) 3091-3769
Da fnanceirização ao lugar: dos nexos hegemônicos às contra-racionalidades do cotidiano
Introdução O protagonismo alcançado pelas nanças no período atual implica a reprodução dos nexos da nanceirização em diferentes escalas. Se suas origens são globais, estes nexos redenem, ao mesmo passo, processos nas escalas das formações socioespaciais e dos lugares. Visamos, nesta direção, compreender como o processo de nanceirização se realiza no território brasileiro para aproximar-nos das novas formas de capilaridade assumidas pelas nanças junto à população de baixa renda na metrópole de São Paulo. Propomos, destarte, uma análise teórico-empírica do processo de nanceirização nanceirizaçã o da pobreza e de seus espaços na cidade. Partimos da análise da conformação de um regime de acumulação nanceirizado e da crescente imbricação entre as dimensões produtiva e nanceira para, em seguida, destacar as abordagens correntes da nanceirização. Dada a centralidade do processo em tela na contemporaneidade, analisamos, em um segundo momento, a recente inserção da nanceirização no campo de conhecimento voltado às relações entre geograa e nanças. As especicidades do processo de nanceirizaç nanceirização ão na formação socioespacial brasileira (SANTOS e SILVEIRA, 2001), ou ainda, a forma particular assumida pelo nexo “Estado-Finanças (HARVEY, 2011) é abordada, em um terceiro momento, para compreendermos como a creditização da sociedade e do território relaciona-se à expansão do consumo entre as diferentes classes de renda no país, mas, por outro lado, encontra-se igualmente igualmente na origem da generalização do endividamento. Apoiados na sistematização de informações obtidas em trabalhos de campo, buscamos, nalmente, desvendar novas formas de capilaridade assumidas pelas nanças e pelo consumo na periferia de São Paulo e seus impactos no cotidiano da população pobre. Realiza-se, aí, a convivência dialética entre uma razão de ordem local e outra de ordem global (SANTOS, 1996) a partir da combinação entre nexos hegemônicos e contraracionalidades emanadas do lugar.
Financeirização: uma aproximação conceitual As nanças alcançam, no período atual, uma centralidade inédita em todos os campos da vida social, assumindo, por conseguinte, um papel determinante nas dinâmicas do espaço geográco (SANTOS, 1996; FRENCH et al., 2011). Viveríamos hoje em um mundo com “dominância da esfera nanceira” (CHESNAIS, 1998), onde os imperativos nanceiros permeiam e sujeitam todas as esferas da atividade social.
Gestada desde os anos 1970, uma nova conguração do capitalismo mundial implicou a consolidação de um “regime de acumulação com dominância nanceira” (BOYER, 2000; CHESNAIS, 2005), ou ainda, de um “capitalismo dirigido pelas nanças” (GUTTMANN, 2008). A expansão deste processo, em sua contemporaneidade, pode ser compreendida como “nanceirização”, termo crescentemente invocado nos debates sobre as dinâmicas do capitalismo contemporâneo. Segundo Christophers (2015), a nanceirização, junto à globalização e ao neoliberalismo, conformam um tripé analítico capaz de distinguir o capitalismo atual de suas fases anteriores. Abrangendo um amplo processo de transformação econômico, mas também cultural, a nanceirização envolve mudanças de comportamentos e valores na economia, na política e na sociedade como um todo (CHRISTOPHERSON et al., 2013), renovando, por conseguinte, os próprios conteúdos do território e do cotidiano. As determinações do regime de acumulação nanceirizado se armam em diferente escalas no período da globalização, sinônimo, por sua vez, do próprio processo de mundialização do capital (CHESNAIS, 2003). Conforme arma Santos (1996), a possibilidade de realização de uma mais-valia ao nível global assume, atualmente, o papel de motor da vida social e econômica. A nanceirização coincide, assim, com o protagonismo assumido pelo capital nanceiro, mas também com a própria globalização da acumulação. Na visão de Lapavitsas e Powell (2013), a nanceirização corresponde, nesta direção, à busca de autoarmação do sistema nanceiro enquanto uma esfera autônoma da acumulação do capital e, ao mesmo passo, à reestruturação a longo prazo da economia global em benefício de agentes nanceiros hegemônicos. hegemônicos. Estes atores se estendem hoje dos tradicionais capitais bancários a instituições nanceiras não bancárias como investidores institucionais, fundos de pensão, fundos de investimento coletivos, empresas nanceiras e sociedades seguradoras, os quais tende a assumir um crescente protagonismo nanceiro (DIAS, 2009). Alavancado pelas tecnologias da informação e da comunicação, o novo sistema técnico característico do período surge como condição e fator da globalização nanceira (CHESNAIS, 1998). Além de potencializar a mobilidade dos capitais e permitir a instantaneidade das operações, as redes digitais autorizaram a constituição de um mercado em escala mundial. A combinação entre políticas de desregulamentação e a informatização resultou na passagem de um sistema nanceiro controlado e organizado em âmbito nacional a um sistema auto regulamentado de âmbito global (GUTTMANN, 2008). O capital nanceiro pode tirar, deste modo, crescente proveito de sua exibilidade e rapidez.
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caracterizavam por sua atividade regional e nacional, alcançam hoje uma escala de ação mundial, operando no mercado internacional de capitais, créditos e moedas (CONTEL, 2006). Embora frequentemente empregado pela literatura anglo-saxã em análises sobre a crise das hipotecas norte-americana no m dos anos 2000, o potencial analítico do conceito de nanceirização abrange o processo mais amplo de reestruturação da economia sob regência da esfera nanceira. Conforme esclarece Lapavitsas (2011), as origens deste conceito residem na economia política marxista. Autores como Sokol (2013) e Aalbers (2008), por exemplo, concebem a nanceirização como o deslocamento do capital dos circuitos primário, secundário e terciário para o circuito quaternário do capital, o qual não constitui um mercado de produção ou consumo, mas um mercado de especulação, ou ainda, um circuito de autoreprodução do capital. Estabelecese, assim, um padrão de acumulação onde a realização do lucro ocorre cada vez mais por meio de canais nanceiros do que através da produção de mercadorias e do comércio. Lapavitsas (2011) adverte, contudo, para a complexidade das relações existentes entre as esferas das nanças e da produção, assim como para os riscos de uma simplicação analítica que apregoa uma relação direta entre a estagnação produtiva e a ascensão nanceira. Nesta nova fase, passa a haver, em realidade, uma estreita imbricação entre as dimensões produtiva e nanceira, a qual se manifesta, entre outros, pela crescente associação entre redes industriais, comerciais e instituições nanceiras. Entre o conjunto de atividades modernas, multiplicam-se hoje as sinapses internas, cujo resultado é uma maior interdependência interdependência entre os agentes do circuito superior da economia (SILVEIRA, 2016), ou seja, entre as empresas que comportam elevados graus de capitalização, tecnologia e organização 1 (SANTOS, 1975). A mundialização da indústria e dos serviços envolve, com efeito, uma crescente incursão na esfera nanceira. Ao mesmo passo, operações puramente nanceiras dos grandes grupos adquirem maior importância no conjunto de suas atividades, decorrendo em uma migração de capitais da esfera do investimento para a esfera da especulação (CHESNAIS, 1998). No bojo dos debates atuais sobre nanceirização, podemos distinguir três abordagens mais correntes que, de certo modo, se revelam complementares: aquelas desenvolvidas por representantes da Escola da Regulação, pela leitura da Contabilidade social Segundo Santos (1975), a economia urbana dos países periféricos pode ser compreendida a partir da formação de dois circuitos de produção e consumo, concorrentes e complementares, que se distinguem em função dos graus de tecnologia, capital e organização assumidos pelas atividades urbanas. Quando estes são altos, trata-se do circuito superior, incluindo sua porção marginal; quando são baixos, trata-se do circuito 1
crítica (Critical social accountancy) e pelas abordagens socioculturais da nanceirização da vida cotidiana (everyday life) (PIKE e POLLARD, 2010; FRENCH et al., 2011). O papel desempenhado pelas nanças em diferentes regimes de acumulação é focado por autores da Escola da Regulação,, vertente que mais aprofundou este debate ao Regulação conceber a nanceirização nanceirizaç ão como o regime de acumulação sucessor do regime fordista (CHESNAIS, 2003). Enquanto pioneiro dessa abordagem, Aglietta (1998) destaca a emergência de um regime de crescimento patrimonial, caracterizado pelo protagonismo dos mercados de ativos, pela multiplicação de investidores institucionais e pela crescente importância da regulação corporativa. O “regime de acumulação nanceirizado” compreenderia, deste modo, o sucessor do regime fordista baseado não mais em uma nova forma de organização técnicoindustrial - como no caso do toyotismo -, mas no protagonismo alcançado pelas nanças. Ainda no m dos anos 1990, Orléan (1999) dene o “regime de acumulação nanceirizado” como aquele assentado na liquidez dos mercados de títulos, cujo núcleo duro residiria na governança empresarial. Boyer (2000), por sua vez, se questiona sobre a viabilidade de um regime de acumulação governado pelo nanceiro enquanto alternativa ao fordismo. A atualização das propostas de Arrighi (1994) representa uma referência central da abordagem regulacionista, daí a nanceirização ser compreendida também como parte integrante de um projeto neoliberal global que marca o retorno da hegemonia da fração nanceira do capital, sendo a expansão nanceira concebida como o próprio símbolo de maturidade do desenvolvimento capitalista (PIKE e POLLARD, 2010). A vertente da Contabilidade social crítica (Critical social accountancy), por sua vez, se restringe mais propriamente às relações entre mercados nanceiros e corporações, priorizando as análise nos níveis meso e micro econômicos. Caracteriza-se, por conseguinte, como uma abordagem mais limitada à descrição dos processos e efeitos envolvidos no crescente poder dos valores e métricas nanceiros e das tecnologias a eles associados no âmbito das empresas, mas igualmente entre os indivíduos. A nanceirização é associada ao aumento da inuência dos nexos dos mercados de capital (produtos, atores e processos) sobre os comportamentos das empresas e famílias, ou ainda, a uma nova forma de competição pautada na rentabilidade e nos padrões da performance nanceira (ERTURK et al., 2008). Por m, as abordagens socioculturais da nanceirização da vida cotidiana (everyday life) tendem a se voltar à análise das formas através das quais o dinheiro e as nanças moldam o cotidiano nas economias e culturas contemporâneas (FRENCH et al.,
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2011). Segundo Martin (2002), a nanceirização da vida cotidiana está diretamente relacionada ao desmonte dos sistemas de proteção social, substituídos hoje pelo mercado privado em suas variantes. Nesta direção, Langley (2007) compreende a nanceirização como um processo de individualização que condiciona os indivíduos a assumir maiores responsabilidades e riscos nanceiros, visto que benefícios providos outrora pelo Estado são substituídos por investimentos e previdências e seguros privados. Destaca-se ainda, neste campo, a análise da ascendência dos valores nanceiros sobre os sujeitos e as próprias subjetividades.
Geografa e fnanceirização Enquanto temática, a nanceirização se insere no amplo campo de conhecimento voltado às relações entre geograa e nanças. Os estudos geográcos das nanças se iniciam propriamente com a publicação seminal de Jean Labasse (1955) sobre a região de Lyon, na qual o autor desenvolve uma inovadora análise sobre as relações entre a função nanceira e a vida regional. Desde então, registraram-se signicativas mudanças conceituais e a diversicação dos temas abordados nesse subcampo disciplinar. Da evolução das escalas de análise do fenômeno das nanças, inicialmente restrita às realidades locais e regionais, “a geograa passou a se preocupar com o alcance nacional e global de todos os tipos de atores nanceiros, permitindo ganhos explicativos em relação entendimento do capitalismo atual, um capitalismo mundializado” (CONTEL, 2016, p.72). Ao longo desta trajetória, ao passo em que certos conceitos perderam relevância, outros adquiriram signicados atualizados. Dentre os novos temas e termos surgidos recentemente no campo de uma nova “geograa das nanças” (MARTIN, 1999; FRENCH et al.; SOKOL, 2013), destaca-se justamente a nanceirização. Enquanto um campo de análise do presente em expansão, a nanceirização apresenta, certamente, desaos temáticos, teóricos e metodológicos a serem enfrentados pela geograa. Segundo Pike e Pollard (2010), a nanceirização em curso, além de compreender uma oportunidade analítica para a disciplina, representa um imperativo político-econômico para situar a nança no centro da análise em geograa econômica e aprofundar seus diálogos com os campos social, cultural e político. Para Sokol (2013), as nanças e a nanceirização precisam ser incorporadas à conceitualização da geograa econômica se esta pretende oferecer uma análise sólida das economias contemporâneas crescentemente nanceirizadas. O aprofundamento e a renovação das leituras de uma geograa do dinheiro
direção, à atual agenda da disciplina. Reconhecer a centralidade das nanças, desvendando as formas como participam, através de redes de valor, da reprodução das desigualdades sociais e espaciais em múltiplas escalas compreende, destarte, um novo imperativo. Embora assentada na maximização da mobilidade dos capitais e na imaterialidade de suas variáveis dominantes, a nanceirização não é, certamente, um processo geográfico neutro ou a-espacial e tampouco implica uma pretensa desterritorialização (DAHER, 2016). Conforme já ressaltava Santos (1996) na década de 1990, embora as nanças tenham adquirido uma crescente autonomia no período da globalização, seguem dependendo de uma série de fatores eminentemente geográcos. Seu funcionamento depende não só de todo um conjunto de infraestrutura de sistemas e objetos técnicos, mas dos próprios “conteúdos normativos do espaço”, como as normas e leis de cada país que lhes garantem, por sua vez, ubiquidade e instantaneidade. Há, por conseguinte, uma causalidade do fenômeno das nanças que deriva dos elementos que compõem o espaço geográco (CONTEL, 2016). No período atual, agentes hegemônicos institucionais como investidores institucionais, fundos de pensão, fundos de aplicação coletivos, empresas nanceiras e sociedades seguradoras, assumem um crescente protagonismo na determinação dos conteúdos locais e regionais. Os Estados Nacionais não deixam, no entanto, de desempenhar um papel chave nas dinâmicas em curso, uma vez que delimitam o alcance da ação destes atores, mesmo em um cenário de desregulamentação e desintermediação, o qual não deixa de ser, contudo, autorizado pelo Estado. Conforme assevera Harvey (2011), há em cada Estado uma forma particular do nexo “Estado-Finanças”, ou seja, estabelecem-se variações geográcas dos arranjos institucionais e alianças envolvendo a gestão de cada Estado no que tange à circulação do capital em seus territórios. A nanceirização envolve, ademais, não apenas um enraizamento das redes e práticas nanceiras, mas todo um processo de reconguração espacial que lhe é inerente (PIKE e POLLARD, 2010). Emana e é controlada a partir de determinados lugares, sujeitando os demais às suas estruturas e determinações (MARTIN, 2011). Representa, nalmente, uma forma contemporânea do processo de desenvolvimento desigual (CRISTPHERSON et al., 2013). Em um cenário onde os capitais podem circular cada vez mais livremente sem restrições, “a poupança é coletada em diferentes regiões, potencialmente do mundo inteiro, para, em seguida, ser centralizada nas praças nanceiras respectivas (Zurich, Londres, Paris etc) e redistribuída nas escalas nacionais e internacionais” (THEURILLAT e CREVOISIER, 2011, pp.2-3). Conforma-se, assim, um
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espaço nanceirizado de mercados interconectados, cuja lógica implica uma redistribuição que tende a beneciar as maiores empresas nanceirizadas e as regiões onde localizam-se suas sedes. Frente à conformação desta nova geograa da nanceirização (DE MATTOS, 2014), impõe-se à geograa a tarefa de analisar este processo e suas consequências (PIKE e POLLARD, 2010), atentando especialmente ao papel ativo do espaço e do lugar em suas dinâmicas (FRENCH et al., 2011), ou ainda, aos seus determinantes gerais e às suas congurações particulares, esforço que buscamos empreender a seguir a partir de um olhar sobre dinâmicas recentes no território brasileiro.
Financeirização e creditização do território brasileiro O processo de nanceirização da formação socioespacial brasileira (SANTOS e SILVEIRA, 2001) está diretamente relacionado à reestruturação recente do sistema nanceiro nacional. A partir dos anos 1990, a maior inserção do país na globalização envolveu a implementação de um conjunto de políticas relacionadas ao campo nanceiro, como o ajuste scal, a realização de reformas tributárias, a prática de juros e câmbio de mercado, a abertura a uxos de capitais estrangeiros, a desregulamentação e as privatizações de empresas públicas. Em um contexto de avanço da ideologia neoliberal, conjugaram-se, assim, a liberalização normativa, econômica e nanceira, a desnacionalização, a privatização e a implementação de um programa de estabilidade macroeconômica com o Plano Real de 1994 (CONTEL, 2006), os quais resultaram, dentre outros, em uma maior concentração econômica e nanceira no país. As políticas de desregulamentação e desnacionalização alcançaram diferentes setores, dentre os quais o sistema nanceiro, reestruturado profundamente a partir de meados dos anos 1990 com a implementação do Programa de Incentivo à Redução do Estado na Atividade Bancária (PROES) e do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (PROER) . No plano do território nacional, este processo implicou, a consolidação da concentração nanceira em São Paulo, fortalecendo-se, por conseguinte, o seu papel de metrópole nacional e internacional. Já nos anos 2000, a implantação do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) surge como um instrumento normativo para regular as transações efetuadas pelos principais agen2
Com o PROES, desencadeou-se um amplo processo de privatização e eliminação de bancos públicos estaduais que passaram a ser controlados, em grande medida, por bancos privados estrangeiros. O PROER, por sua vez, envolveu uma série de intervenções e alterações societárias em bancos que levaram a uma redução da capacidade das regiões em co2
tes nanceiros no território brasileiro, garantindo não só maior velocidade, mas interconexão instantâneas às operações (CONTEL, 2009). Com a reestruturação do sistema nanceiro nacional, passou-se a autorizar, ao mesmo passo, instituições não bancárias a atuarem como se o fossem, o que resultou na multiplicação e diversicação dos agentes credores no país, dentre os quais se destacam não mais apenas os bancos privados, mas também agências nanceiras de crédito pessoal e grandes redes varejistas de diversos ramos. Estabeleceu-se, assim, uma maior complexidade da distinção entre instituições, produtos e serviços bancários e nanceiros. Cabe destacar que esta extensão da oferta de crédito a instituições nanceiras não bancárias coincide com o processo de desintermediação, ou seja, com a abertura das operações de empréstimo a todo tipo de investidor institucional, correspondente, por sua vez, a um dos processos constitutivos da mundialização nanceira (CHESNAIS, 2005). A renovação da base técnica e organizacional que rege o funcionamento da atividade bancária e nanceira implicou, ao mesmo passo, a expansão do alcance das nanças no espaço nacional. De acordo com Contel (2006), a conformação de uma nova topologia bancária, alcançada pela maior presença dos xos geográcos bancários – como agências, caixas eletrônicos, postos de atendimentos e correspondentes bancários – e a difusão de novos canais eletrônicos garantiram não só a maior oferta de serviços bancários, mas uma ampla expansão da concessão de crédito, resultando, por m, em uma “hipercapilaridade das nanças” no território brasileiro. Conforme coloca Sokol (2013), a expansão do sistema creditício representa um componente central do processo de nanceirização. Nos últimos anos, conformou-se no Brasil, com efeito, um cenário de ampla difusão do crédito pelo território, o qual alcançou 54,7% do PIB em 2014. Ao longo dos anos 2000, o ciclo de expansão da oferta de crédito se sustentou no desempenho positivo dos indicadores de emprego e renda, se estendendo, por conseguinte, às diferentes camadas de renda da população através de modalidades especícas para cada segmento, como o crédito consignado, os cartões de crédito, o crédito pessoal, o crédito imobiliário e rural. Desde meados da década de 1990, a expansão do crédito no país se baseou sobretudo em operações contratadas por pessoas físicas: enquanto em 1995, estas operações movimentaram R$12,9 bilhões, em 2014 já alcançavam R$ 1,412 trilhão (BCB, 2015). Cabe destacar que a despeito da desaceleração do PIB nacional observada a partir de 2011, a oferta de crédito segue em expansão, haja visto o crescimento de 82% do volume de crédito ofertado entre 2010 e 2014 (BCB, 2015). Outro indicador expressivo da nova realidade alcançada pelas
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nanças no território brasileiro consiste no aumento da bancarização. Enquanto em 1999, contabilizavamse cerca de 49,9 milhões de contas-corrente, em 2015 já eram mais de 108 milhões, ano em que a população bancarizada chegava a 60% do total (BCB, 2015). Embora a recente expansão da oferta creditícia no país tenha envolvido diferentes estratos da população, os segmentos de menor renda foram especialmente focados e beneciados por modalidades como o crédito pessoal, cartão de crédito e crediário. Segundo Harvey (2011), uma das características centrais do capitalismo contemporâneo reside na busca do mercado por se estender também aqueles com rendimentos mais baixos, especialmente através da indústria de cartões de crédito e do endividamento. A população de baixa renda se destaca, efetivamente, como o segmento mais tomador de crédito no país: 60% dos tomadores, ou 20% da população adulta, possuem renda inferior a três salários mínimos. Em 2014, 46% do volume de crédito concedido através do cartão de crédito parcelado e 45% do volume concedido através do cartão de crédito rotativo se direcionaram apenas a este estrato da população (BCB, 2015). Contudo, se em um primeiro momento, o acesso facilitado ao crédito, combinado a outros fatores, permitiu a expansão do consumo, em especial entre os de menor renda (NERI, 2011; MONTENEGRO, 2014); posteriormente, desvelouse o reverso da lógica da creditização generalizada, ou seja, o endividamento em massa e seus desdobramentos sobre o cotidiano.
Hegemonia do crédito e generalização do endividamento A nanceirização global da economia, a possibilidade de acumulação em escala global, a mercantilização econômica e social e a progressiva transição de uma sociedade de produtores a uma sociedade de consumidores conformam tendências constitutivas e inter-relacionadas desta nova fase de modernização capitalista nanceirizada (DE MATTOS, 2014). O consumo, intermediado pelas nanças, assume, com efeito, um papel fundamental na determinação das atuais dinâmicas sociais, posto que com a globalização, tornou-se um imperativo (SANTOS, 2000). Segundo Bauman (2007), a atual “sociedade de consumidores” estabelece uma refundação das relações humanas à medida dos mercados, sendo sua característica mais proeminente justamente a capacidade de comprometer seus membros enquanto consumidores. Ao analisarem as relações atuais entre geograa e consumo, Ballesteros e Carreras (2006, p.326) consideram o consumo como “a perspectiva mais importante a partir da qual se deve
distanciando-se da explicação clássica relativa à propriedade dos meios de produção”. Autorizada pela banalização do acesso ao crédito, a expansão recente do consumo alcançou também a população de baixa renda. No território brasileiro, e em especial em suas maiores cidades, conforma-se hoje, por conseguinte, uma pobreza permeada por novos padrões de consumo – desejosa de certas marcas e da frequência a certos tipos de estabelecimentos – mas também por uma nova escassez. Conforme esclarece Silveira (2011a, p.45): O consumo ganha hoje um importante papel explicativo. Trata-se do acesso aos novos bens, tantas vezes mascarado de armação social quando na realidade é uma forma de controle, e de obediência às normas que advém do processo de consumir e de um endividamen to difuso da população (...) Tal desigualdade estrutural na qual escassez e consumo coexistem é herança e cenário para a atual vida de relações.
Pois, se por um lado, a recente difusão do crédito permitiu efetivamente a expansão do consumo entre as diferentes classes de renda no país nos últimos anos; por outro, implicou também a ampliação do endividamento e da inadimplência, sobretudo entre os pobres, uma vez que um crédito fácil e desburocratizado é oferecido a uma população sem condições de poupar e sem lastro. É notória, nesta direção, a coincidência entre o avanço do endividamento e a expansão da oferta de crédito no país nos últimos anos3. No início de 2016, 60,8% das famílias brasileiras encontravam-se endividadas; do total destas dívidas, 77,4% haviam sido adquiridas através de cartões de crédito (PEIC/CNC, 2016). Conforme arma Lazzarato (2011), o cartão de crédito transformou-se na forma mais simples de transformar seu proprietário em um permanente endividado, uma vez que a própria relação credor-devedor já se encontra inscrita nos cartões. Objetos constituintes do espaço geográco da globalização intencionalmente concebidos para o exercício de certas nalidades (SANTOS, 1996), os xos geográcos bancários, aos quais se somam hoje meios eletrônicos como cartões e smartphones, garantem ubiquidade às nanças e onipresença ao crédito no plano do cotidiano (CONTEL, 2006). Artefato emblemático do período atual, o cartão constitui uma modalidade de crédito com especial poder de difusão em diferentes segmentos. Para além da publicidade em diferentes meios de comunicação, as estratégias para abarcar a população de baixa renda como usuários de cartões de crédito envolve apelos de diferentes ordens como correspondências, telefonemas, premiações e convites Entre 2010 e 2013, observou-se um signicativo aumento do percentual de famílias endividadas, que passou de uma média anual de 59,1% a 3
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personalizados (SCIRÉ, 2011). Há atualmente, no Brasil, cerca de 293 milhões cartões de débito emitidos, dos quais 111 milhões encontram-se ativos, 158 milhões de cartões de crédito emitidos, dos quais 84 milhões ativos, além de 225 milhões de cartões de redes e lojas (private label) (BCB, 2015). Ao antecipar recursos para a compra, o cartão potencializa o fenômeno do consumo, inclusive aquele de natureza conspícua, ou seja, de itens supéruos. A facilidade do crédito pré-aprovado induz ao endividamento e, muitas vezes, à inadimplência, sobretudo entre a população de menor renda, sem garantias reais de solvabilidade e sem acesso ao crédito consignado, o que acaba por elevar as taxas de juros praticadas pelas instituições credoras. Estima-se, nesta direção, que 60 milhões de brasileiros se encontrassem inadimplentes no início de 2016, cifra equivalente a 41% da população com mais de 18 anos (SERASA, 2016). No bojo do processo de creditização da população de baixa renda, grandes conglomerados empresariais e nanceiros parecem ter reconhecido a “necessidade de desburocratizar o crédito”, posto que a rigidez e a quantidade dos requisitos – muitas vezes limitados à apresentação de RG, CPF e talões de cheques – para o acesso a cartões e empréstimos se reduzem à medida que aumenta o custo do dinheiro (SILVEIRA, 2009). A nanceirização logra alcançar, deste modo, novos patamares, capilarizando-se junto aos estratos de menor renda. A oferta de crédito por instituições bancárias, agências nanceiras e redes comerciais acaba por provocar, destarte, não apenas a expansão do consumo, mas a própria busca por novos empréstimos para quitação de dívidas prévias. Aprofunda-se, por conseguinte, o ciclo vicioso entre acesso ao crédito e ao consumo, endividamento crônico e aprofundamento da pobreza. Verica-se, com efeito, que o segmento mais pobre da população é aquele com maior comprometimento relativo de sua renda com o pagamento de dívidas: 38,2% dos tomadores de crédito com renda até três salários mínimos, equivalentes a 13,2 milhões de pessoas, apresentavam comprometimento de renda acima de 50% no Brasil em 2014 (BCB, 2015). Este estrato é também o mais atingido pelo endividamento e pela inadimplência. Atualmente, 62,4% das famílias de menor renda no país se encontram endividadas; dentre os inadimplentes, 77,2% ganham até 2 salários mínimos (SERASA, 2016; PEIC/CNC, 2016). Conforme já apontava Baudrillard (1970), o processo mágico de realização imediata da compra se confronta, necessariamente, com a realidade socioeconômica do indivíduo no vencimento de cada prestação. A facilitação do acesso ao crédito tende a ser compensada pela imposição de juros mais elevados a aqueles que não possuem patrimônio e cuja renda é
menor e mais volátil, a rigidez das condições se agrava em casos de histórico de inadimplência. O acesso ao crédito fácil se torna, assim, mais oneroso aos estratos de menor renda, haja vista as altíssimas taxas de juros praticadas, por exemplo, no cartão de crédito, uma modalidade facilmente concedida, mas que cobra os juros mais elevados do mercado através do instrumento do rotativo. Além de permitir a realização de saques, o crédito rotativo possibilita o pagamento de apenas uma parcela mínima da fatura e o adiamento do restante para o mês seguinte, ao qual são acrescidos, no entanto, juros bastante elevados, chamados de “encargos contratuais”. As taxas de juros praticadas no rotativo são as mais altas do mercado, alcançando valores superiores a 600% ao ano , daí o crescimento veloz e vultuoso das dívidas e, por conseguinte, dos atrasos e da inadimplência. Conforme propõe Lazzarato (2011), a dívida assume um papel determinante para o entendimento de uma sociedade regida pela nanceirização, De acordo com o autor italiano, ao passo em que indivíduos, famílias e rmas tornam-se progressivamente sujeitos à disciplina dos mercados nanceiros, a relação credor-devedor se consolida como a relação central na sociedade ocidental contemporânea. Há, de fato, uma lógica do endividamento generalizado que permeia hoje todas as escalas, ou seja, uma produção constante e sistemática de devedores (LAZZARATO, 2011). Ancoradas nas possibilidades técnicas e políticas do período, a nanceirização e a drenagem da poupança popular passam a se realizar através de novos canais. Conforme assevera Lapavitsas (2011), a nanceirização da renda dos trabalhadores, ou das famílias em sentido mais amplo, envolve aspectos diversos, mas interrelacionados. Por um lado, como vimos, há a expansão da concessão de diferentes modalidades de crédito, como o crédito imobiliário, os cartões de crédito, o crédito para consumo, para educação e saúde etc. Por outro, tem-se a generalização da oferta de produtos e serviços nanceiros como hipotecas, pensões, fundos de investimento, aplicações, previdências privadas e seguros diversos. Estes aspectos integram, por sua vez, o processo de mercantilização econômica e social neoliberal (CHRISTOPHERSON et al., 2013), evidenciado pelo recuo contínuo da provisão pública dos mais diversos serviços. O consumo torna-se, deste modo, progressivamente privatizado e mediado pelo sistema nanceiro. Nesta direção, a extração da poupança popular pode ser compreendida como um processo de “expropriação nanceira” (LAPAVITSAS, 2011, p.620), ao permitir a realização de lucros crescentes fora da esfera dos salários. 4
As taxas de juros anuais cobradas no crédito rotativo pelo Itaú, por exemplo, chegam a 631%, pela BV Financeira a 610% e pela Losango a 565% (BCB, 2016). Dentre os inadimplentes com renda mensal até três salários mínimos, 47% encontram-se inadimplentes na modalidade do crédito ro4
Da fnanceirização ao lugar: dos nexos hegemônicos às contra-racionalidades do cotidiano
A redenição das práticas de consumo e a readequação da gestão do orçamento emergem como implicações do avanço da nanceirização entre a população pobre, sobretudo nas grandes cidades, onde a produção de necessidades é mais exacerbada e a topologia dos agentes e xos nanceiros mais densa. A necessidade constante de reorganizar o orçamento doméstico para conciliar o pagamento de parcelas e dívidas com a economia familiar se destaca entre estes processos. O acesso ao crédito e a expansão do consumo representam, certamente, um alto custo para a população pobre. Como arma Harvey (2011, p.98), “em curto prazo, o crédito serve para suavizar pequenos problemas, mas, em longo prazo, tende a acumular as contradições e tensões. Ele espalha os riscos, ao mesmo tempo que os acumula”. Frente ao avanço da nanceirização, a análise das relações entra a difusão do crédito e a expansão do endividamento, em suas múltiplas consequências, torna-se central para a compreensão da sociedade brasileira hoje, visto que vetores nanceiros têm provocado diferentes implicações no território e na vida social, como um todo.
O cotidiano permeado pelas fnanças: contra-
racionalidades e resistências no lugar Procuramos analisar, a seguir, certas dinâmicas relacionadas aos impactos da nanceirização no plano do cotidiano da população pobre, a partir de um olhar sobre a periferia da metrópole de São Paulo, onde a incorporação de nexos nanceiros se combina, não obstante, à emergência de novas contra-racionalidades. Trabalhos de campo realizados nos bairros de Campo Limpo e Jardim São Luiz, na zona sul, e Itaquera, na zona leste, e no Município de Taboão da Serra na porção oeste da Região Metropolitana de São Paulo constituem um insumo primordial das análises que se seguem. Cabe destacar que 150 entrevistas e questionários foram realizados junto à população de baixa residente nestas localidades periféricas e junto a pequenos negócios do circuito inferior da economia urbana e a estabelecimentos do circuito superior aí localizados. Nas entrevistas realizadas junto aos consumidores, foram priorizados questionamentos sobre locais de consumo de produtos e serviços de diferente natureza, da frequência e dos deslocamentos aos diferentes estabelecimentos, do uso de serviços nanceiros e do endividamento. Nos questionários aplicados junto aos estabelecimentos do circuito inferior, buscou-se analisar, entre outros, o impacto da instalação de grandes empresas nos bairros periféricos, os efeitos da expansão do crédito e as relações estabelecidas com as grandes empresas em suas proximidades. Já nos questionários aplicados junto às
referentes à inserção da periferia em seu mercado, às diferentes possibilidades de pagamento, às formas de publicidade realizadas e às relações estabelecidas com os pequenos negócios do bairro. A sistematização das informações obtidas resultou em uma valiosa fonte de dados primários, visto que não dispomos de dados secundários especícos sobre o que entendemos por circuito inferior da economia urbana e tampouco sobre as transformações cotidianas resultantes do avanço da nanceirização na periferia da metrópole. Manifestação empírica da globalização, os vetores da nanceirização se realizam hoje nos lugares, permeando o próprio cotidiano. Enquanto espaço do acontecer solidário e da interdependência obrigatória, o lugar não abriga apenas vetores de uma racionalidade hegemônica, mas também contra-racionalidades localmente criadas e sempre renovadas, conformando, assim, um híbrido de horizontalidades e verticalidades (SANTOS, 1996). No período atual, as nanças e o consumo assumem progressivamente novas formas de capilaridade sobre a pobreza e as periferias das grandes cidades. Uma destas formas está relacionada à diversicação da topologia de agências nanceiras e grandes redes de comércio e serviços em metrópoles como São Paulo. Nos últimos anos, estes agentes vêm buscando inserir-se em locais considerados até então mercados desinteressantes. Daí a crescente presença de agências bancárias, instituições nanceiras de crédito pessoal, shopping centers, cadeias de hipermercados e supermercados e liais de grandes redes de varejo e serviços não apenas em centralidades populares, mas também em seus bairros periféricos. A divisão territorial do trabalho destas grandes corporações passa a incorporar, doravante, novas porções do território urbano, conformando um movimento que conta, muitas vezes, com o auxílio do próprio Estado. Agências nanceiras de crédito pessoal como Cresa, Finasa e Fininvest5, shoppings e redes varejistas como Extra, Casas Bahia, Magazine Luiza, Marabraz e Ponto Frio, entre outras, expandiram signicativamente seu número de lojas e sua área de atuação na Região Metropolitana de São Paulo nos últimos anos. Embora concentrada nas áreas centrais, a topologia destes estabelecimentos alcança agora bairros periféricos da cidade, como Campo Limpo, Jardim São Luiz e Socorro na zona sul, e Itaquera e São Miguel na zona leste, assim como cidades que margeiam o Município de São Paulo e reúnem grandes periferia pobres, como Taboão da Serra, Carapicuíba e Itapecerica da Serra, logrando, assim, um alcance de maior escala junto à população de baixa renda. Muitas vezes alojadas dentro de shoppings, as redes varejistas de móveis, eleFinasa e Cresa se destacam como as agências nanceiras de crédito com o maior número de lojas em São Paulo. A Cresa possui atualmente 63 lojas no Município de São Paulo e mais 36 nos demais municípios da Região Metropolitana. Já a Finasa possui 47 lojas no Município de São Paulo, às quais se somam mais 36 nos demais municípios da Região 5
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trodomésticos e vestuário se destacam entre os agentes do circuito superior que têm alcançado maior capilaridade no território metropolitano 6. A proximidade de equipamentos de consumo e de grandes redes de varejo nas periferias acaba por potencializar os anseios reprimidos de certos produtos e marcas globais e nacionais entre a população pobre que pode acessar agora um crédito fácil, ainda que extremamente custoso. A importância do acesso a determinadas marcas exerce, neste ponto, um papel central nas dinâmicas em curso, uma vez que, conforme explica Sennet (2006), a paixão auto consumptiva não se fundamenta mais apenas na inuência da publicidade e na lógica da “obsolescência planejada”. Há, hoje, um maior envolvimento do consumidor em sua paixão pelo consumo, expresso pela exaltação das marcas e da suposta potência embutida nos objetos. O processo de consumo envolve, desta forma, não apenas uma classicação e diferenciação social de objetos, mas também de signos, que se ordenam como valores estatutários no seio de uma hierarquia (BAUDRILLARD,1970). A crescente oferta por parte do circuito superior volta-se, hoje, a uma demanda anteriormente voltada sobretudo aos pequenos negócios da economia popular do circuito inferior da economia (SILVEIRA, 2009). Frente à proximidade das grandes redes e à maior acessibilidade ao crédito, diversicam-se as práticas de consumo da população pobre em estabelecimentos de diferentes portes. Transformam-se ritmos e deslocamentos de práticas características do cotidiano nos lugares. Redene-se, por conseguinte, o tamanho do mercado do circuito inferior que passa a enfrentar uma concorrência altamente capitalizada, inclusive em bairros periféricos que até então lhes eram cativos. Intensica-se, ao mesmo passo, a drenagem de um uxo já escasso de capital que agora passa a ascender em maior volume do circuito inferior, ou seja, da população pobre, rumo ao circuito superior da economia, ampliando, nalmente, as formas de acumulação das grandes redes (SILVEIRA, 2016). Pequenos negócios seguem, porém, exercendo um importante poder de polarização sobre o mercado na periferia. Determinados tipos de serviços e compras menores e pontuais ocorrem, em sua maioria, em estabelecimentos como vendinhas, açougues e salões de beleza. Tal frequência se explica não apenas pela facilidade garantida pela proximidade, mas também pela permanência da possibilidade do ado no comércio de vizinhança, mesmo que, muitas vezes, estes pratiquem preços mais altos do que os supermercados do bairro. A preferência pela pequena vendinha para a compra de A rede Casas Bahia possui atualmente 142 lojas espalhadas pela Região Metropolitana de São Paulo, das quais 84 se encontram no Município de São Paulo. A rede Ponto Frio possui, por sua vez, 49 lojas no Município, contabilizando 79 pontos de venda na Região Metropolitana. Já a rede de confecções Marisa possui 103 estabelecimentos na Região Metropolita6
artigos de consumo diário se fundamenta, ademais, na importância das situações de interação que conferem sentido ao lugar no cotidiano (LINDÓN, 2006), ou ainda, de redes de sociabilidade características das redes de vizinhança nas periferias. Processos desta natureza expressam meios pelos quais a racionalidade hegemônica nanceira tem logrado alcançar uma maior capilaridade no território e no tecido social. Contudo, os impactos cotidianos dos nexos nanceiros têm implicado, ao mesmo passo, a resistência e a emergência de contra-racionalidades, reveladoras do papel ativo assumido pelo espaço e pelo lugar. Muitas vezes subestimado pela literatura recente em nanceirização, o caráter ativo do espaço encontra, como referido, certa expressão entre as abordagens socioculturais da nanceirização da vida cotidiana (COPPOCK, 2013). Na periferia de São Paulo, estas formas de racionalidade divergentes, mas ao mesmo tempo convergentes (SANTOS, 1996), se manifestam, entre outros, em fenômenos analisados a seguir, envolvendo toda uma “economia dos centavos”, a convivência com a situação de endividamento a partir da utilização do crédito rotativo, o empréstimo de cartões, nomes e terminais de pagamento eletrônicos, assim como a presença de moedas locais. A situação de pobreza vivenciada cotidianamente pelas camadas de baixa renda se manifesta, entre outros, na importância assumida por operações de pequeno valor, ou ainda, em uma verdadeira “economia dos centavos”, densamente presente nos bairros periféricos das grandes cidades (MONTENEGRO, 2014). Embora a possibilidade de pagamento com cartões venha se difundindo recentemente, o dinheiro à vista se mantém como a principal forma de circulação monetária na economia popular. Há toda uma economia que circula na forma de centavos, visto que as próprias moedas possuem ainda um valor central. Haja vista o baixo poder de compra dos consumidores nas periferias, cada cliente só pode comprar quantidades muito pequenas ou demandar serviços relativamente “baratos” em estabelecimentos como vendinhas, bicicletarias, chaveiros, sapateiros e copiadoras. A compra fracionada de cigarros, balas e comprimidos por R$ 0,50 ou o pagamento de centavos pelo uso da internet em lanhouses, por exemplo, manifestam a importância deste fracionamento do capital e sua própria escassez. Situações desta natureza, presentes na periferia de São Paulo, revelam, ademais, quanto o dinheiro pode “render” entre a população de baixa renda, tanto para o desenvolvimento de pequenas atividades quanto para a realização de seus consumos diários. Frente ao alto custo de vida nas metrópoles e aos baixos níveis de remuneração da maioria da população, aos quais se
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soma hoje o endividamento generalizado, desenvolvemse diferentes táticas nanceiras que garantem o sustento das famílias até o m do mês. O maior acesso ao crédito induz, em contrapartida, à expansão do consumo e à realização de compras de maior valor em grandes estabelecimentos, as quais não encontram, como referido, lastro na renda efetiva da população pobre. Ao analisar as implicações da nanceirização sob o consumo dos trabalhadores, Lapavitsas (2011) relembra que os gastos não se baseiam, no entanto, apenas em decisões nanceiras, uma vez que envolvem também aspectos não econômicos como compromissos morais, obrigações familiares e aspirações pessoais. Nesta direção, é importante pontuar que o recente impulso às compras entre a população pobre brasileira atendeu, em grande medida, a uma demanda legítima, mas reprimida durante anos. Neste cenário, o recurso ao parcelamento das compras no cartão de crédito ou ao adiamento do pagamento da fatura se destacam entre novas práticas mais “nanceirizadas” para fazer o dinheiro render. Diante da produção sistemática do endividamento, estabelece-se, hoje, uma relação cotidiana com a economia da dívida (LAZZARATO, 2011). Apesar das elevadas taxas de juros praticadas, a disponibilidade de um valor ctício suplementar todo mês leva muitas famílias a considerar o limite dos cartões de crédito como parte prévia do orçamento, ao qual é acrescido de antemão esta renda “extra”. Grande parte da população de baixa renda gasta, porém, muitas vezes, mais do que ganha e, no momento de pagar as faturas dos cartões, recorre ao crédito rotativo e não paga o valor integral da fatura, mas o mínimo exigido para o que cartão seja “liberado” e este possa continuar a ser usado. Tal prática implica, como referido, o pagamento de juros bastante elevados, o que acaba por multiplicar o valor nal das faturas. O uso do desta modalidade de crédito revelase, assim, uma armadilha cuja lógica tende a ampliar o grau de endividamento e inadimplência, dicultando ainda mais a chance de solvência 7. O constante recurso ao crédito rotativo explicita a incorporação, ou ainda, a naturalização da condição de endividamento entre a população pobre e como diferentes estratégias para lidar cotidianamente com esta condição nascem dos próprios nexos nanceiros. Conforme coloca Bauman (2007), a generalização da concessão de crédito visa incutir a prática da dívida não paga enquanto estratégia de vida, convertendo o “viver a crédito” em hábito. A posse simultânea de diferentes cartões de crédito emerge, neste quadro, como outra estratégia derivada da capilaridade alcançada pela nanceirização. Enquanto
um determinado cartão encontra-se cheio de despesas, paga-se apenas o exigido e passa-se a não utilizá-lo até que se consiga desbloqueá-lo. Entrementes, utiliza-se outros cartões próprios ou de terceiros. A banalização do acesso aos cartões entre as diferentes classes de renda se reete na posse generalizada deste artefato entre entrevistados na periferia paulistana, dentre os quais 60% possuíam mais de um cartão. A crescente mobilização de redes pessoais para o empréstimo de cartões de crédito, ou ainda, do próprio nome revela, ademais, como os nexos nanceiros permeiam hoje a esfera da sociabilidade. Segundo o Datapopular, entre 2010 e 2014 cresceu não só a quantidade de pessoas que pediram dinheiro ou o nome emprestado para pagar contas ou como garantia para uma compra a um parente ou amigo, mas também a frequência destes empréstimos 8. Entre os entrevistados na periferia paulistana, 40% declararam já ter usado cartões de terceiros e 42% já ter emprestado seus cartões a parentes ou amigos. Tais práticas envolvem a mobilização de vínculos próximos para o auxílio cotidiano, explicitando a importância das redes de apoio para indivíduos em situação de pobreza, assentadas, em sua maioria, no localismo e na proximidade (MARQUES, 2010). Das redes de relações desenvolvidas na vida cotidiana no lugar, podem nascer racionalidades de uma natureza divergente, mas que não deixam de ser convergentes aos nexos da nanceirização. A crescente incorporação de terminais eletrônicos de cartões de débito e de crédito (conhecidos como “maquininhas”) entre os pequenos negócios representa outro fenômeno revelador da permeabilidade alcançada pelas nanças entre a população de baixa renda. Sua difusão, a partir de 2002, coincide com a implantação do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), referido acima. Desde então, os chamados POS (points of sale) alcançaram uma extrema capilaridade pelo território brasileiro, chegando às periferias metropolitanas e às menores cidades. Estima-se que haja atualmente cerca de 4,9 milhões de máquinas de cartão em todo o país (BCB, 2015). Sua incorporação pelas mais diversas atividades do circuito inferior reete não apenas a banalização do acesso aos cartões, mas a decorrente mudança no uso de instrumentos de pagamento tradicionais e o crescente interesse em oferecer esta opção adicional, presente em 87% dos pequenos estabelecimentos entrevistados na periferia de São Paulo. Emitidos por instituições nanceiras credenciadas, os terminais eletrônicos representam, contudo, altos custos operacionais referentes ao aluguel das máquinas e às porcentagens sobre cada transação realizada através dos mesmos. Os A dimensão do fenômeno da mobilização de redes sociais para o auxílio nanceiro se expressa, por exemplo, no fato de 25,5 milhões de brasilei ros terem emprestado seu cartão de crédito para parentes ou amigos em 8
De acordo com estudo da Serasa Experian (2015), os chamados “jovens adultos da periferia” representam 23% dos inadimplentes no Brasil, dentre 7
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valores destas taxas variam conforme o ramo de atuação ou o porte da empresa em termos de faturamento. Na periferia paulistana, os aluguéis dos terminais variam entre R$ 60,00 e R$ 100,00 mensais e as taxas cobradas sobre o cada operação de 2% a 5%. A incorporação das “maquininhas” para o pagamento com cartões implica, assim, uma aceleração da drenagem da poupança popular para o circuito superior, uma vez que se multiplicam os canais que a conduzem. À tal subordinação nanceira, acresce-se ainda uma dependência técnica e organizacional, haja vista a imposição do uso exclusivo dos terminais eletrônicos de credenciadores como Visanet e Rede. Cabe destacar que a adoção dos terminais eletrônicos de pagamento pode resultar ainda no endividamento de seus locatários. A partir da aquisição das “maquininhas”, é possível solicitar aos bancos a antecipação do recebimento do valor de futuros pagamentos a serem feitos pelos clientes com cartões, como uma forma de crédito, ao invés de aguardar até o m do mês para recebê-los. Oferecido aos estabelecimentos aliados ao sistema Cielo, a Antecipação de Valores Recebíveis (ARV) tem provocado o endividamento de pequenos negociantes, visto que as operações em seus estabelecimentos não alcançam, muitas vezes, o valor antecipado, sobre o qual ainda recaem juros. Dentre os pequenos negócios entrevistados na periferia de São Paulo, 27% declararam utilizar o serviço ARV. Não obstante, ao mesmo passo em que estes novos nexos se capilarizam pela economia popular, emergem também diferentes formas de contornar a rigidez que lhes é inerente. Daí os diferentes acordos estabelecidos entre pequenos comerciantes envolvendo o empréstimo das máquinas e as porcentagens das operações para o uso das mesmas. Os “empréstimos” podem se estender inclusive a estabelecimentos localizados em outras partes da cidade, já que o uso do terminal poder se dar através de uma linha de telefone xo, de telefone celular ou de radiofreqüência. Tais práticas revelam a capacidade do circuito inferior em driblar a especialização extrema dos objetos técnicos, ou ainda, a hipertelia de que nos fala Simondon (1958). Não obstante, isto se dá, em um contexto de aprofundamento de subordinação crescente aos nexos nanceiros. Por m, verica-se, ao mesmo passo, o surgimento de novos padrões de engajamento nanceiro para além das redes nanceiras hegemônicas. A emergência de organizações econômicas como cooperativas de crédito, bancos comunitários, sistemas de moedas locais, clubes de troca de serviços por créditos representa, segundo Coppock (2013), novos meios de subverter os impactos da nanceirização. Para este autor, há toda uma multiplicidade de espaços e sujeitos nanceiros situados fora do mainstream aos quais devemos atentar.
Estas formas alternativas de organização das nanças também se fazem presentes em São Paulo , conforme revela Paula (2014) em pesquisa sobre os bancos comunitários e as moedas locais (e/ou sociais). Fundamentada nos preceitos da economia solidária, a criação de bancos comunitários e moedas locais visa desenvolver redes locais contíguas de produção e consumo em comunidades de baixa renda. A concessão de empréstimos tende a estar pautada em relações de conança e de vizinha (PAULA, 2014), características de um cotidiano compartilhado no lugar, sobretudo por aqueles em situação de pobreza. O alcance espacial de uma moeda local revela a importância da contiguidade e das redes de relação aí desenvolvidas para a emergência de organizações nanceiras de outra natureza. A mobilização destas redes assentam-se no próprio sentido atribuído ao lugar pelos sujeitos em seu cotidiano (LINDÓN, 2006). Enquanto expressões de uma racionalidade nanceira divergente, os bancos comunitários e as moedas locais compreendem, ademais, uma forma de evitar a drenagem da poupança popular, na medida em que impedem o auxo nanceiro vertical para o circuito superior (PAULA, 2014). Nos lugares, reúnem-se, assim, diversas redes sociais e nanceiras, representantes, por sua vez, dos nexos da nanceirização hegemônica, mas também de contraracionalidades localmente gestadas. Depreendem-se, daí, abordagens como aquela das ecologias nanceiras (nancial ecologies), segundo a qual a dinâmica espacial do sistema nanceiro abrange uma composição de atores e instituições produtores de conhecimento nanceiro local, além de práticas e de subjetividades distintos (FRENCH et al., 2011). Buscando realizar “uma leitura das nanças mais sensível ao lugar”, Coppock (2013, p.482) destaca como a reunião de redes sociais e nanceiras variadas, compreendidas como ecologias nanceiras, molda as subjetividades nanceiras e as condições de engajamento com instituições nanceiras do mainstream, mas também com organizações alternativas na vida cotidiana. Em cada lugar, tem-se, em suma, a convivência dialética entre uma razão de ordem local e outra de ordem global enquanto ordens que se superpõem, se associam e se contrariam (SANTOS, 1996). Novas formas de capilaridade da nanceirização sobre a pobreza e as periferias das grandes cidades têm provocado, hoje, diferentes implicações no território e na vida social como um todo. Seus impactos cotidianos evidenciam como as nanças deixam de compreender um espetáculo da economia distante, consolidando-se, progressivamente, como uma esfera da qual os indivíduos 9
Segundo Paula (2014), havia 104 bancos comunitários instalados no país em 2015, dos quais 4 encontram-se na cidade de São Paulo. Os principais produtos oferecidos pelo banco União Sampaio (na periferia da zona sul) são o crédito para consumo, o crédito produtivo, o crédito cultural e o “Pu 9
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devem não apenas participar, mas a partir da qual devem denir sua identidade (MARTIN, 2002). Os novos nexos assumidos pela nanceirização correspondem, porém, sobretudo ao processo de “expropriação nanceira” (LAPAVITSAS, 2011), o qual assume hoje uma natureza superlativa por meio da multiplicação dos canais de extração da poupança popular e da produção generalizada do endividamento.
Considerações fnais No período atual, estabelecem-se novos nexos entre agentes hegemônicos dos mercados nanceiros e a pobreza, ou ainda, entre os circuitos superior e inferior da economia. O papel central das nanças nestes nexos se revigora diante das novas possibilidades técnicas e políticas do período. Ao mesmo passo em que ao circuito superior interessa agora a liquidez do dinheiro oriundo das poupanças populares, este passa a garantir a capilaridade da nanceirização junto ao circuito inferior. Como resultado, “aceita-se o custo exorbitante do dinheiro emprestado, o endividamento crônico como forma de vida social e a denição de insolvência enunciada pelas grandes rmas” (SILVEIRA, 2009, p.74). Frente ao avanço das formas de “capilaridade” assumidas pelas nanças, à violência do endividamento e à multiplicação dos canais de drenagem da renda popular, consideramos, por m, que cabe aprofundarmos as análises sobre o discurso hegemônico que apregoa a chamada “nancial literacy” (educação nanceira) enquanto habilidade imprescindível em uma sociedade regida, paradoxalmente, pela própria fabricação do homem endividado (LAZZARATO, 2011). A “nancial literacy” envolve competências pretensamente requeridas para lidar com a complexidade nanceira que permeia a vida social. Refere-se, nesta direção, ao conhecimento e à compreensão de produtos e serviços nanceiros com os quais se deve lidar no cotidiano e às implicações de compromissos nanceiros. A “nancial literacy” emergiria, nesta direção, como solução para capacitar a sociedade a lidar com a complexidade nanceira e o risco (CLARK, 2014). Contudo, para além da assimetria de informações disponíveis aos cidadãos e aos agentes hegemônicos, a nanceirização avança em um contexto de recuo dos sistemas de proteção social e de privatização de bens e serviços universais. Em um mundo regido pelas nanças e pelo mercado, o declínio da capacidade dos sistemas de proteção social em garantir a segurança a longo prazo tende a ser substituído pela individualização da capacidade de garantia de bem-estar através da aquisição da nancial literacy e, nalmente, pela própria
de um padrão de provisão de riqueza baseado no mercado, indivíduos passam a ser obrigados a gerir seu futuro nanceiro através de investimentos e poupanças. A nancial literacy corresponde, destarte, não apenas à habilidade para “performar” segundo o ideal neoliberal, mas à própria sujeição à disciplina dos mercados nanceiros (COPPOCK, 2013). No entanto, como coloca Storper (2014), enquanto não houver políticas públicas com capacidade regulatória para reformatar o mundo das nanças, nenhuma educação nanceira será suciente para proteger a sociedade e voltar a garantir o bem-estar social. Aos avanços recentes da nanceirização do território e da sociedade brasileiros não correspondeu, como referido, nenhum avanço no campo da regulação no sentido de minimizar a generalização do endividamento e suas repercussões sobre o cotidiano da população pobre. Em um contexto de desregulação dos sistemas nanceiros nacionais e de mercantilização generalizada, revigorase, contudo, justamente o imperativo de disciplinar os mercados nanceiros, sobretudo em países periféricos e semiperiféricos (DAHER, 2016). Frente à potência dos preceitos neoliberais e dos ditames dos interesses hegemônicos no território brasileiro, tal imperativo faz-se ainda mais urgente.
GEOgraphia, Niterói, vol. 19, n. 40, 2017: mai/ago
Referências
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Data de submissão: 10/03/2017 Data de aceite:30/05/2017 Data de publicação: setembro/2017
Degradação das praças públicas e os fatores de riscos para a população: exemplos para a cidade de Natal/RN
GEOgraphia Niterói, Universidade Federal Fluminense ISSN 15177793 (eletrônico) Vol.19, No40, 2017: mai./ago. ARTIGOS
DEGRADAÇÃO DAS PRAÇAS PÚBLICAS E OS FATORES DE RISCOS PARA A POPULAÇÃO: EXEMPLOS PARA A CIDADE DE NATAL/RN*
Maria Rosângela Gomes** Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho ***
Encarnita Salas Martin**** Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho *****
Resumo: As condições de degradação em que se encontram algumas praças públicas da cidade recaem, diretamente, sobre a queda de sua qualidade e a perda de suas funções, além de poderem oferecer riscos a seus usuários. Nesse sentido, o objetivo é vericar quais os fatores de
riscos potenciais que as praças públicas de Natal/RN oferecem para a população local, em virtude das incontingências advindas das condições de degradação e inadequações presentes. Foram realizadas leituras sobre a temática em pauta, seguidas de levantamentos de dados secundários sobre as características e condições de 168 praças públicas da cidade, selecionadas a partir de uma amostragem aleatória simples, estraticada por bairro. Os resultados apontam que, diante das condições das suas estruturas de lazer, dos equipamentos urbanos de suporte, das condições de limpeza, da arborização e da permeabilidade do solo nas praças analisadas, essas apresentam fatores de riscos potenciais, como acidentes físicos, poluição do ar, do solo e visual; alagamentos, atos de violência, aumento de temperatura e desconforto térmico, para os seus usuários, para a população do entorno e para a cidade como um todo, em virtude da abrangência do problema em questão. Palavras-chave: Praças públicas. Riscos potenciais. Natal. DEGRADATION OF PUBLIC SQUARE AND THE RISK FACTORS FOR THE POPULATION: EXAMPLES FROM THE CITY OF NATAL/RN Abstract: The conditions of degradation in which are some public square of the city fall directly on the fall of his quality and the loss of their functions, and can pose risks to their users. In this sense, the goal is to check what the risk factors, potential, that public square of Natal/RN offer for the local population, because of absence of contingency resulting from degradation and inadequacies present conditions. Readings were held on the subject in the agenda, followed by secondary data from surveys on the characteristics and conditions of 168 public square of the city, selected from a simple random sampling, stratied by district. The results show that on the conditions of its leisure facilities, urban equipment support,
the cleaning conditions, afforestation and soil permeability in the public square analyzed, these, present potential risk factors such as, physical accidents, pollution air, soil and visual; oods, acts of violence, increased temperature and thermal discomfort for its users, to the surrounding
population and for the city as a whole, because of the scope of the target problem. Keywords: Public square. Potential risks. Natal. DEGRADACIÓN DE LAS PLAZAS PÚBLICAS Y LOS FACTORES DE RIESGOS PARA LA POBLACIÓN: EJEMPLOS PARA LA CIUDAD DE NAVIDAD / RN Resumen: Las condiciones de degradación en las que se encuentran algunas plazas públicas de la ciudad recaen directamente sobre la caída de su calidad y la pérdida de sus funciones, además de poder ofrecer riesgos a sus usuarios. En este sentido, el objetivo es vericar qué factores
de riesgo, potenciales, que las plazas públicas de Natal/RN ofrecen para la población local, en virtud de las condiciones de degradación e y de las inadecuaciones presentes. Se realizaron lecturas sobre la temática en pauta, seguida de levantamientos de datos secundarios sobre las características y condiciones de 168 plazas públicas de la ciudad, seleccionadas a partir de un muestreo aleatorio simple, estraticado por barrio.
Los resultados apuntan que ante las condiciones de sus estructuras de ocio, de los equipamientos urbanos de soporte, de las condiciones de limpieza, de la arborización y de la permeabilidad del suelo en las plazas analizadas, éstas, presentan factores de riesgos potenciales, como accidentes físicos, contaminación del aire, del suelo y visual, inundaciones, actos de violencia, aumento de temperatura e incomodidad térmica, para sus usuarios, para la población del entorno y para la ciudad como un todo, en virtud del alcance del problema en cuestión. Palabras clave: Plazas públicas. Riesgos potenciales. Natal.
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* Artigo construído a partir do trabalho de dissertação de mestrado intitulado “As praças públicas de Natal/RN no âmbito dos problemas socioambientais urbanos”, apre-
sentado e defendido em março de 2012 junto ao Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geograa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. O mesmo resulta de uma nova perspectiva de análise e de abordagem das informações e dos dados levantados na referida pesquisa, agora com foco nos fatores de riscos presentes nos espaços estudados. **Doutoranda em Geograa na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Campus de Presidente Prudente/SP. E-mail: [email protected] ***Campus Presidente Prudente. Rua Roberto Simonsen, 305 – Presidente Prudente – Fone: 18 32295680 ****Geógrafa e doutora em Geociências e Meio Ambiente - Docente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Cam pus de Presidente Prudente/SP. E-mail: [email protected]. *****Campus Presidente Prudente. Rua Roberto Simonsen, 305 – Presidente Prudente – Fone: 18 32295680
GEOgraphia, GEOgraph ia, vol. 19, n.40, 2017: mai./ago.
Introdução É notório, na paisagem dos centros urbanos brasileiros, que o rápido e desordenado processo de ocupação do solo, sobretudo nas grandes cidades e regiões metropolitanas, acabou por produzir espaços profundamente contraditórios e inadequados em múltiplos aspectos naturais e sociais, e que expõem a população citadina às mais complexas condições de riscos. O risco pode ser tomado como uma categoria de análise associada a priori às noções de incerteza, exposição ao perigo, perda e prejuízos materiais, econômicos e humanos em função de processos de ordem “natural” (tais como os processos exógenos e endógenos da Terra) e/ou daqueles associados ao trabalho e às relações humanas. O risco ( lato sensu) refere-se, portanto, à probabilidade de ocorrência de processos no tempo e no espaço, não constantes e não determinados, e à maneira como esses processos afetam (direta ou indiretamente) a vida humana (Castro; Peixoto; Rio, 2005, p. 12).
O risco também é compreendido, aqui, enquanto uma construção social, a “percepção de um perigo possível, mais ou menos previsível por um grupo social ou por um indivíduo que tenha sido exposto a ele” (Veyret, 2007, p. 24). As cidades brasileiras, embora com diferentes níveis de complexidade, abrigam e expõem signicativa parcela da
população a diferentes condições de riscos, associadas, entre outros problemas, às precárias condições no fornecimento de energia e de saneamento básico; ao acesso à habitação, à saúde, à educação e ao lazer de qualidade, bem como à redução e às inadequações das áreas verdes; ao aumento de alagamentos, enchentes, temperatura, poluição do ar, visual e sonora (Ribeiro, 2010). Tais problemas se intensicam juntamente com a
expansão dos centros urbanos, além de sustentarem e potencializarem os demais. Apresentam maior crescimento de suas características sistêmicas quanto maiores forem as cidades (Santos, 2005), exigindo questionamentos e reexões acerca de sua infraestrutura
e a efetiva legitimidade legitimidade das políticas públicas de serviços urbanos. Assim, e em um contexto mais amplo da frequente ausência de investimentos em infraestrutura e na oferta de serviços urbanos de qualidade que atendam todos os setores e as camadas sociais das cidades brasileiras, é que se chama a atenção, também, para o caso das áreas verdes urbanas públicas. A área verde é um espaço que, em meio à estrutura da cidade, desempenha grande papel pela riqueza das combinações de seus atributos na qualidade ambiental urbana (Monteiro, 2009), tanto pelas suas funções ecológicas como pela oferta de lazer para a população.
Entretanto, por vezes, as inadequações de seus projetos urbanísticos, a falta de manutenção, os atos de vandalismo e outros processos sociais envolvidos não são compatíveis e favoráveis ao cumprimento de suas reais funções. São muitos os problemas presentes nas áreas verdes, em termos de distribuição espacial, quantidade quantidade e qualidade, mas, especicamente, para ns deste trabalho,
a discussão está centrada nas frequentes condições de degradação em que essas se encontram. Condições que incidem diretamente na queda de qualidade, na perda de suas funções, e as caracterizam como espaços que, em potencial, podem oferecer riscos de uso para os seus frequentadores e para a cidade como um todo. Assim como em outras cidades e capitais brasileiras, essa é uma situação bem marcante e presente na cidade de Natal. Conforme Gomes (2012), as praças públicas da cidade, no conjunto de suas áreas verdes, caracterizamse por diversos níveis de inadequação e degradação nos aspectos de lazer, ecológico e de infraestrutura, contribuindo para a queda de qualidade das condições ambientais 1 urbanas. Essa é uma realidade também expressa na matéria publicada pelo jornal Tribuna do Norte (2004), que destaca que as praças públicas da cidade, em sua grande maioria, são espaços descuidados e aparentemente abandonados, sobretudo em virtude da pouca arborização, da falta de manutenção, dos precários serviços de limpeza e de iluminação, além da crescente presença de usuários de drogas no local. Todavia, e fazendo uso das palavras de Acselrad (2001, p. 46), trata-se de problemas que, “exprimemse sob a forma de uma queda da produtividade política dos investimentos urbanos, incrementando os graus de conito e incerteza no processo de reprodução das estruturas urbanas”. Também, rearmam a crise da
legitimidade das políticas públicas urbanas, em virtude da incapacidade de fazer frente aos riscos naturais e sociais (Acselrad, 2001). Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é vericar
quais os fatores de riscos potenciais que as praças públicas de Natal/RN oferecem para a população local, em virtude das incontingências advindas das condições de degradação e inadequações presentes nesses espaços. O município de Natal possui 869.9542 habitantes , em uma área de 167.263km², considerado como área urbana na sua integridade. O município está inserido no litoral oriental do estado do Rio Grande do Norte, localizado nas coordenadas geográcas 5° 47’ 42’’ de latitude sul e 35° 12’ 34’’ de longitude oeste (Figura 1).
Dentre outras áreas verdes existentes na cidade de O termo condições ambientais faz referência aos aspectos de ordem ecológica, natural e social. 1