Lenio Luiz Streck José Luis Bolzan de Morais
Ciência Política &
Teoria do Estado Quinta edição Revista e Atualizada
A livraria// 1)0 A D V O G A D O
//editora
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I
S9 1 4 c
Streck, Lenio Luiz C iê n c ia política e teoria do estad o / L e n io L u iz S treck ; Jo s é L u is B olzan de M orais. 5. ed. rev. a t u a l.- P o rto A legre: L iv ra ria d o A dvogado Ed., 2006. 211 p .; 23 cm.
tSBN 85-7348-446-2 1. C iê n cia política. 2. T eoria do E stad o. 3. E stad o m o d e rn o . 1. M o rais, Jo sé L uis Bolzan de. II. T ítu lo . CD U 3 4 2 .2
ín d ic e s para o catálog o sistem ático C iê n c ia p o lítica T e o ria d o E stado E sta d o m o d em o
(B ib lio te cá ria responsável: M arta R o b erto , C R B -1 0 / 6 5 2 )
* ORIGINAL DATA ____ .____ PASTA_____________ N.° FOLHAS
^
LENTO LUIZ STRECK J O S É L U IS B O L Z A N DE M O RA IS
Ciência Política &
Teoria do Estado Q U IN TA ED IÇÃ O Revista e Atualizada
A livraria/ DO ADVOGADO / editora Porto Alegre 2006
Sum ário Notas preliminares à quinta e d iç ã o ..................................................................................
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['ARTE I Elem entos que caracterizam o Estado: a importância da Ciência Política 1. A aptidão da Ciôncia Política para a compreensão do nascimento do Estado M o d e r n o ............................................................................................................... 1.1. Considerações g e ra is............................................................................................... 1.2. A tradição das formas estatais pré-m od ernas................................................ 1.2.1. Principal forma estatal pré-moderna: o m ed iev o......................................
19 19 23 24
2. O EsLado na Teoria Política M o d e rn a ...................................................................... 2.1. Considerações g e r a i s .......................................................................................... 2.2. A visão positiva do Estado: o modelo co n tra tu a lista ................................ 2.2.1. O Estado de n a tu re z a ......................................................................................... 2.2.2. Contrato s o c ia l..................................................................................................... 2.2.3. Estado c i v i l ............................................................................................................ 2.3. O Estado Moderno .............................................................................................. 2.4. A primeira versão do listado Moderno: o Estado a b so iu tista ................ 2.5. A visão negativa sobre o E s t a d o ......................................................................
28 28 29 30 31 33 39 4.r» 46
3. A segunda versão do Estado Moderno: o modelo liberal e o triunfo da b u rg u e sia ............................................................................................................................ 3.1. Considerações g e r a i s ............................................................................................ 3.2. O contra Lualísmo e o Estado Iibera 1-burguês................................................ 3.2.1. Definições de lib e r a lis m o ............................................................................... 3.2.2. Os diversos núcleos do lib e r a lis m o ............................................................. 3.2.3. O (não) Estado L ib e r a l...................................................................................... 3.2.1. O início da tran sfo rm ação...............................................................................
51 51 55 56 58 61 63
4. QWclfare State e a transformação do lib e r a lis m o ................................................ 4.1. Considerações g e r a i s .......................................................................................... 4.2. A mutaçào dos papeis do Estado - do absenteísmo ao intervencionismo .................................................................................................. 4.2.1. Função(oes) da In te rv e n ç ã o ............................................................................ 4.3. A idéia do Estado do bem-estar so c ia l............................................................
68 68 69 76 78
5. A peculiarieda-de do intervencionismo do Estado no Brasil: a crônica de um simulacro e a crise da m od ern id ad e........................................................
81
6. O Estado de D ire ito ...................................................................................................... 91 6.1. Considerações g e r a i s ........................................................- .............................. 91 6.2. A apresentação do Estado de Direito . . , , , ............................................ 92 6.2.1. ü Estado Liberal de D ir e ito .......................................................................... 94 6.2.2. O Estado Social de D ire ito ............................................................................. 96 6.2.3. O Estado Democrático de Direito .............................................................. 97 6.2.3.1. Ü listado Democrático dc Direito e a Constituição "Dirigente" . . 106 7. A questão dem ocrática........................................- .................................................... 109 7.1. Considerações g e r a i s ............ ............................................................. , . . 109 7.2. A democracia (liberal) representativa: seus modelos e incertezas . . . 110 7.3. Democracia: o jogo das regras e as regras do j o g o ............................ ... . 112 7.4. Propostas rirão c ljm p r id a s ............................................................................... 113 7.5. Obst ác ulos ã concretização dem ocrá tica ....................................................116 7.6. Representação versus Delegação: o problema da democracia no Brasil (e na América Latina) ........................................................ ................................ H 7 7.7. Uma "n o v a" democracia. Ü sujeito democràLico .................................... 123 7.8. Democracia, Cidadania o G lo b a liz a ç ã o .......................................................131 7.9. A antítese da democracia: o totalitarismo....................................................133 8. As crises do E s ta d o ...................................................................................................... 136 8.1. Considerações g e r a i s .......................................................................................... 136 8.2. Crise conceitual do E sta d o ............................................................................. * 137 8.2.1. A questão da soberania ............................................................. .................. 138 8.2.2. A questão dos direitos h u m a n o s ................................................................. 143 8.3. Crise estruturai............................................................... .................. .................. 148 8.3.1. O Estado do b e m -e s ta r................................................................................... 148 8.3.2. As crises de um m o d e lo ................................................................................ 150 8.4. Crise constitucional {institucional}................................................................. 153 8.5. Crise fu n cio n a l...................................................................................................... 155 8.6. Crise política (o da re p re sen a çã o )................................................................. 156 PAR TF II Elementos que caracterizam o Estado: a importância da Teoria Geral do Estado 9. Elementos constitutivos do Estado ....................................................................... 163 9.1. Considerações iniciais .......................................................................................163 9.2. A visualização d<5 t í s t a d o .................................................................................163 9.2.1. Território .............................................................................................................164 9.2.2. Pov o/ população................................................................................... ... 165 9.2.3. Soberania ~ concepção c lá s s ic a .................................................................... 167 10. Formas de Estado, Formas de Governo, Sistemas dc Governo e Funções do E s t a d o .................................................................... ..................................170
B ib lio tz -c ?
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Storápoli"
10.1. F orm as de E stado .............................................................................................170 10.1.1. E stado F e d e r a d o .............................................................................................171 10.1.2. E stado U n itá rio ................................................................................................ 173 10.2. Formas de governo ........................................................................................ 174 10.2.1. R e p ú b lic a ......................................................................................................... 174 10.2.2. M onarquia......................................................................................................... 175 10.3. S istem as de g o v e r n o ..........................................................................................176 10.3.1. Parlam entarism o............................................................................................. 176 10.3.2. Presidencialism o.............................................. ..................... ........................ 177 10-4. À s funções do F i t a d o ............................................... . ............................................. 179
10.4.1. Funções do listado e sistema de freios c co n trap e so s.........................180 11. A democracia representativa; partidos políticas e sistemas eleitorais O v a lo r da opiniüo p ú b lic a ............... ...................................................................... 183 11.1. Considerações iniciais .....................................................................................IH.T 11.2. Partid os p o lític o s ...........................................................................................................1H!1
11-3. Sistemas E le ito ra is............................................................................................. 188 11.4. A opinião pública ............................................................................................. 191 11.4.1, Considerações in icia is............... ........................................, ........................ 191 11.4.2. A opinião pública, o ideal ilnminista da publicidade e o papel da m íd i a ....................................................................... .....................................192 Referências bibliográficas.......................................................................... ........................ 201
N otas p relim in a res à quinta edição A lgum as referências iniciais são necessárias para que o leitor não tenha apenas a dim ensão a que se propõem as presentes refle xões, mas também alguns esclarecim entos acerca da estrutura esco lhida e da forma de tratam ento dada ao tem a, b em com o da estratégia que orientou esta edição. Com efeito, m uitas são as obras que se dedicam ao enfrentam ento das questões relativas à Ciência Política e à Teoria do Estado. D esnecessário referir que diversos autores se d ebruça(ra)m sobre esta tem ática aportando conhecim entos novos e/ou trazendo ao d e bate o conteúdo repisado daqueles aspectos que tradicionalm ente dizem respeito a tais disciplinas. len d o presente tais aspectos, assim com o a nossa própria traje tória acadêm ica, além da necessidade de se dar um perfil renovado ao conteúdo d esenvolvido além de ter consciência acerca da realida de m utante d a.E stad o contem porâneo, optam os por introd uzir um viés diferenciado no trato das questões concernentes à C iência Polí tica e à Teoria do Estado, aportando um debate esp ecífico sobre as crises que afetam o próprio objeto da Teoria do Estado, o Estado, para além de suas propostas (não) cum pridas. Com este quadro referencial é que dem os início à elaboração deste livro, tendo sem pre presente que o m esmo se destina, em especial, a subsidiar o conhecim ento e a form ação dos operadores juríd icos, optando por um reforço dos interrogantes acerca da o ri gem do Estado M oderno, seu desenvolvim ento e form ulações, suas crises e perspectivas, com o que acreditam os aportar ao leitor um conhecim ento diferenciado e substancial da m atéria. C rem os, desse m odo, estar perm itindo que se estabeleça, prim a riam ente, o debate acerca de temas cruciais para a com preensão da realidade institucional estatal, em particular em um m om ento no qual até m esm o sua continuidade é questionada por m uitos, em face das transform ações da ordem social contem porânea, tendo como pano d c fundo o fenôm eno da globalização econôm ica e da m undiaCiência Política e Teoria do listado
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lização ilos subsistemas rociai» e dos projetos políticos da moderni dade, em especial dos direitos humanos e do constitucionalismo. Assim, rcvisitando autores consagrados e construindo um pon to de vista particular, estru tu ramos estas reflexões sobre a Ciência Política c a Teoria do Estado cm duas partes, atribuindo a cada uma delas um caráter próprio, com o privilegiamento de facetas especí ficas. Na primeira - Elementos que caracterizam o Estado: a importância da Ciência Política - a questão fulcral se dá sobre o questionamento da realidade estatal moderna o contemporânea, enfrentando-a a partir do aporte de conhecimentos específicos, com a utilização de biblio grafia que permite uma compreensão sofisticada e a reconstrução da tradição político-estatal em seus diversos aspectos e momentos. Em um «egundo momento, procuramos propiciar ao leitor o conhecimento específico a respeito dos itens tradicionais e próprios daquilo que se convencionou chamar de Teoria do Estado, estratégia que, a nosso ver, viabiliza, de maneira rápida, porém completa, uma visão dos tópicos inerentes à forma, ao conteúdo e à expressão do listado. Portanto, este livro, agora reestruturado, além de ser um instru mento de trabalho e de aula, sobretudo em nível de graduação, busca servir como um facilitador para a compreensão da realidade estatal contemporânea, buscando aguçar o interesse do leitor relativamente às matérias que dizem respeito ao Estado. Os resultados atingidos nos permitem considerar o acerto das opções realizadas. Em poucos meses, as edições anteriores se esgo taram, o que nos impôs a confecção desta nova versão, a qual já deveria ter vindo a público no ano que passou. Optamos, assim e novamente, diante dos índices de aceitação expressos pelos leitores, por não operar uma transformação radicai no conteúdo do texto, apenas refletindo algumas circunstâncias novas, bem como agregan do considerações contemporâneas que trazem outros interrogantes para que se constitua uma teoria acerca do Estado ou, como se põe o debate, repercutindo a dúvida acerca da possibilidade mesma de ter-se uma teoria do/para o Estado 011 de esta ser plural diante da dinâmica e da fragmentação próprias aos tempos (pós) modernos. Por fim, é preciso chamar atenção para o fato de, desde o título do presente livro, termos optado por abandonar a terminologia tra dicional Teoria "G eral" do Estado diante da impossibilidade mesma de tal proposta, sem que se adole uma postura idealista e a-histórica, quanto mais sendo este o Estado em seu momento atual de ampla e lotai fragmentação e crise de seus pressupostos clássicos, o que co 14
Lenio Luiz Streck José i.itis Bolzan dc Morais
loca, por outro Indo, <1 dificuldade, hv nfto «i ImpoMibilidtulü, dento ser tratado no singular. Por i s s o mcimo, a alteração no título desta obra, como se observa da capa do presente volume - Ciência Política e Teoria do Estado. Assumindo esta postura, acreditamos estar contribuindo para uma melhor formação dos lidadores do Direito, buscando compro metê-los com uma prática jurídica que considere a ordem jurídica como um instrumento de suporte para viabilização de um pacto social mais justo e humanitário. Os autores
Ciência PolíLica c Teoria do Estado
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P A R T E I
Elementos que caracterizam o Estado: a importância da Ciência Política
1. A aptidão da Ciência P olítica para a com preensão do nascim ento do Estado M oderno 1.1. Considerações gerais Estudar o Estado e suas relações com a sociedade im plica, ne cessariam ente, estudar os mais variados aspectos que envolvem o próprio funcionamento das instituições responsáveis por essa socie dade. Estado, Governo, Democracia, Legitim idade, Poder são ques tões que, im bricadas, exigem uma disciplina para o estudo de suas complexidades: é a í que entra a Ciência Política, forma de saber cujo objeto se desenvolve no tempo - sendo por isso histórica, no dizer de Bobbio - sofrendo contínua transformação, sendo im possível nela aplicar a experim entação, própria dos físicos e biólogos. Lembra nesse sentido o mestre italiano que "não se pode reproduzir uma re volta de camponeses em laboratório por óbvias razões, entre outras, aquela que uma revolta reproduzida não seria mais uma revolta (notese a relação entre uma ação cênica, que se pode repetir indefinida mente e a realidade representada pelos acontecimentos: o Hamlet, de Shakespeare, não é o príncipe da Dinamarca que realmente viv eu )."1 Em síntese, repetindo Bobbio, a Ciência Política, enquanto ciên cia do homem e do comportamento hum ano, tem em com um , com todas as outras ciências hum anísticas, dificuldades específicas que derivam de algumas características da m aneira de agir do homem, das quais tres sâo particularmente relevantes: A - O homem ó um animal teleológico, que cum pre ações e se serve de coisas úteis para obter seus objetivos, nem sempre declarados, e muitas vezes, inconscientes, não podendo a C iência Política prescindir, desse modo, da presença da psi cologia e da psicanálise; 1 Cfe. Bobbio, Norberto et alli. Dicionário de Política. Brasília, Edunb, 1993, p. 168. Cicncia Política e Teoria do Kstado
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B - O hom em 6 um tiiiinnil sim bólico, que se com unica com seus sem elhantes através de sím bolos - dos quais o mais im por tante é a linguagem . O conhecim ento da ação hum ana exige a d ecifração e a interpretação destes sím bolos, cuja sign ifi cação é quase sem pre incerta, às vezes desconhecida, e ape nas passível de ser reconstruída por conjeturas.2 C - O hom em é um anim al ideológico, que utiliza valores vigentes no sistem a cultural no qual está inserido, a fim de raciona lizar seu com portam cnto, alegando m otivações diferentes das reais, com o fim de justificar-se ou dc obter o consenso dos dem ais; por isso, a im portância que assum e na pesquisa social e política a revelação daquilo que está escondido, assim com o a análise e a crítica das ideologias.3 N esse sentid o, entendem os .1 Ciência Política com o um saber operativo, um instrum ento apto a intervir na realidade que estud a mos (G iovani Sartori). A Ciência Política será, assim , essa disciplina que, m ediante um processo de com preensão interdisciplinar, possi bilitará in terp retar a com plexidade que envolve o Estado, o poder, a política, a dem ocracia e o direito (e suas conseqüências para a Socie dade). Por isso, é necessário entender que a C iência Política guarda 2 O b serve-se que, nas três categorias construídas por Lacan (real, im aginário e sim bólico), sim bolizar é dar sentido pela palavra; em H eidegger, a linguagem é a casa do scr; para Com elius Castoriadis, tudo o que existe no m undo social-histórico está indissociavelm ente entrelaçado com o simbólico; náo que tudo seja simbólico, mas nada existe fora de uma rede de relações simbólicas, nada existe fora do simbólico. 3 Nesse sen tid o, um conceito ainda im portante para ser usado com o auxiliar na construção de um discurso crítico qxie tenha o condão de d esm i{s)tificar o im aginá rio d om inante í o de C hauí, para quem ideologia "n ã o é apenas a representação im aginária do real para servir ao exercício da dom inação em um a sociedade funda da na luta dc classes, com o não é apenas a inversão im aginária do processo histórico na qual as idéias ocupariam o lugar dos agentes históricos reais. A ideologia, forma específica do im aginário social m oderno, 6 a m aneira necessária pela qual os agentes sociais representam para si mesm os o aparecer social, econôm ico e político, de tal sorte que essa aparôncia (que não podem os sim plesm ente tom ar com o sinônim os de ilusão ou falsidade), por ser o m odo im ediato e abstraio de m anifestação do processo histórico, e o ocultam ento ou a dissim ulação do real. Por isso, universali zando o p articu lar pelo apagam ento das diferenças e contradições, a ideologia ganha coerência e força porque é um discurso lacunar que não pode ser preench i d o". Cfc. C h au í, M arilena de Souza.Cultura e D em ocracia: 0 discurso com petente e outras falas. 3a ed. São Paulo, M oderna, 1982, p. 2 e 3. A inda sobre ideologia, ver M észáros, István .O poder da ideologia. Trad. Magda Lopes. São Paulo, F.nsaio, 1996; Zizek, Slav o j.ü m jnapa da ideologia. Zizek, Slavoj (org). Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, C ontraponto, 1996; Streck, Lenio Luiz..H erm enêutica furíciica e(m ) cria e. Uma exploração herm enêutica da construção do Direito. 3* ed. Porto A legre, Livraria do A dvogado, 20U1. p. 72 e segs. 20
Lenio Lui2 Streck Jo sé Luis Bolzan de M orais
umn inexorável ivl.iç.io com os dem ais ram os da ciência estudados pelo hom em , que, de um modo ou de outro, produzem realidade(s), com o o direito, a econom ia, a história, a psicologia, a sociologia, a filosofia etc. V ê-se, então, que com o conteúdo, a C iência Polícia, na qual se insere uma Teoria (Geral) do Estado, pretende estudar o Estado, sua estrutura e seu funcionam ento, bem com o sua relação com o sistem a jurídico, um a vez que o Estado é o locus privilegiado de em anação da norm atividade, e, com o objeto, tanto a sua realidade quanto a sua idealidade. Isto não significa dizer que estam os bu scand o, aqui, a com preensão de um m odelo norm ativo de um Estado, m as, sim, perseguim os o entendim ento dc como este se reveste e se apresenta. Pretendem os, assim , elaborar um conhecim ento "p o sitiv o " (não transcendente) acerca deste objeto de estudo, comn d iz R. Z ippelius.4 hsta questão assum e especial relevância neste período h istórico, no qual o direito assum e um papel que vai m uito além do lugar que lhe era destinado originariam ente, embora não rom pa, ainda, com seus vínculos inaugurais com a instituição estatal e, em particular, com a experiência do Estado Constitucional, nascido da tradição liberal revolucionária do século XVIII, o que m arca ind elevelm ente a conti nuidade entre Estado e D ireito (e Constituição). Parece evidente, assim , que, falar do Estado sign ifica falar acer ca das condições de possibilidade de sua com preensão, desde o seu nascim ento até hoje, explicitando-se com o uma experiência nova m oderna - que se inaugura com a ultrapassagem do m edievo.5 A "n ecessid ad e"d o Estado, por assim dizer, que faça a in terd i ção, a ruptura, entre civilização e barbárie, o que se traduziu em um rom pim ento histórico-paradigm ático, depois de sístoles e diástoles representadas pelas form as liberal e social, com o contraponto das experiências socialistas, tem o desafio, contem poraneam ente, de res ponder às novas necessidades e enfrentar os novos dilem as, caracte 4 Ver Zippelius, K. Teoria Geral do Estado. Lisboa: Fundação C alou sle Gulbenkian: "... realidade do Hstado não se esgota inteiram ente só com fatos insensíveis a valo res, nem lão-pouco na projeção de um norm ativism o extrem o com um sistem a de norm as puro, alheio a toda» as realidades sociais". 5 Nesse sentido, com o m uito bem ensina Lourival V illanova, é im portante ter claro que (...) a Teoria Geral do Estado está, intim am ente, ligada à história do Hstado Moderno. Sociologicam ente, é a explicação e o com entário desse Hstado. Sua base em pírica é o Estado M oderno, notadam ente, o Hstado C onstitucional, o Estado que com eça depois do m ovim ento revolucionário d e 1789. Por isto, acrescenta, "a Teoria Geral do Estado, apresenta conteúdo dem ais para ser apenas uma lógica do Hstado, isto é, uma análise do norm ativism o pu ro" . Cfe. Villanova, Lourival. O Problema do O bjeto du Teoria G eral do Estado. Recife, Im prensa O ficial, 1953, p. 49 e 175. Ciência Política e Teoria do Estado
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rizadas polo epíteto que a tradição cunhou do século XX em diante: o Estado Democrático de Direito, que busca assegurar as conquistas modernas e resgatá-las naquilo que ainda está incumprido, enfren tando, inclusive, suas próprias dificuldades frente às transformações operadas por novas formas de vida. É nesse ponto que, praticamente, a Ciência Política se aproxima mais e mais da Teoria do Estado, quando vai tratar das relações de poder enquanto possibilidades de os Kstados atenderem às deman das e às promessas (incumpridas) da modernidade, circunstância que assume especial relevo em países de modernidade tardia, como na América Latina. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, ela se afasta de uma Teoria Geral do Estado, enquanto esta pretende dar uma explicação unívoca acerca da experiência estatal moderna, abstrain do-se das especificidades e dificuldades próprias de cada País. Em resumo, pode-se dizer que a Teoria Geral do Estado, cujo grande autor clássico é Jellinek, parte de pressupostos a-históricos, tendo como modelo o Estado alemão do final do século XJX, portanto é uma teoria idealista, que tem um tipo ideal (aliás, foi o próprio Jellinek quem construiu a idéia de tipo ideal que Max W eber, seu colega em Heidelberg, iria depois utilizar e difundir) de Fstado. Portanto, o Estado seria Invariável, com características constantes e caráter universal através do tempo e do espaço (por isso,os adeptos desta concepção falam tranqüilamente em Estado romano, Estado medieval etc).6 Por outro lado, a concepção de Heller, aqui seguida, busca entender o Estado enquanto realidade, ou seja, com o formação real e histórica, a partir de suas ligações com a realidade social. Ou seja, não ó possível uma Teoria geral do Estado, mas apenas uma Teoria do Estado, daquele Estado concreto e histórico, inserido em sua totalidade e realidade específicas. Portanto, mais do que pretender dar conta de uma explicação global e uniforme do objeto Fstado, o que se pretende é refletir acerca de suas reais condições de viabilidade, desde um pressuposto de sua inevitabilidade, diante do papel fundamental que "ainda"tem a cumprir. ^ Sobre a impossibilidade de urna teoria GERAL do Estado, seguindo a proposta de Hermann Heller, ver: Gilberto BF.KCOVICI, Desigualdades Regionais, Estado c Consti tuição, São Paulo, Max Limonad, 2003, p. 44-50; Gilberto BERCOVICT, "A Constitui ção Dirigente e a Crise da Teoria da Constituição" in Cláudio Pereira de SOUZA Neto et al., Teoria da Constituição: Estudos sobre o Lugar da Política no Direito Constitucional", Kio dc Janeiro, Lumen Juris, 2003, p. 85-88, 98-103 o 133-138 e Gilberto BERCOVIC1, C.onslituiçãu Econômica e Desenvolvimento'. Uma Leitura a partir cia Constituição dc 1988, São Paulo, Malheiros, 2005, p. 63-64. Ainda: Ciüberto BERCOVICl, "As Possibilidades de uma Teoria do Estado", Revista de H istória dns Idéias, voi. 26, Coimbra, Faculdade de Letras, 2005, p. 7-32. 22
Lenio Luiz Streck josé Lu is Bolzan de Morais
1 .2 . A t r a n s iç ã o d a s fo rm a g e s t a t a i s p r é - m o d e r n a s
A verificação cia transformação histórica tem o escopo de fixar as formas fundamentais que o Hstado adotou na passagem do m e dieval ao moderno, ficando claro que, para os objetivos destas reflexões, privilegiam os a(s) forma(s) moderna(s) do Estado. De qualquer sorte, é im portante que se estabeleçam alguns parâmetros identificadores do que nominamos ''form as estatais pré-modernas", a saber: A - Oriental ou Teocrático - é uma forma estatal definida entre as antigas civilizações do Oriente ou do Mediterrâneo, onde a família, a religião, o Estado e a organização econômica formavam um conjunto confuso, sem diferenciação aparen te, Em conseqüência, não se distingue o pensamento político da religião, da moral, da filosofia on de doutrinas econômi cas. Características Fundamentais: a) a natureza unitária, inexistindo qualquer divisão interior, nem territorial, nem de funções; b) a religiosidade, onde a autoridade do gover nante e as normas de comportamento eram tidas como ex pressão de um poder divino, demonstrando a estreita relação Estado/divindade. B - Pólis Grega: caracterizada como: a) cidades - Estado, ou seja, a pólis como sociedade política de maior expressão, visando ao ideal da auto-suficiência; b) uma elite (classe política) com intensa participação nas decisões do Estado nos assuntos públicos. Nas relações de caráter privado, a autonomia da vontade individual é restrita, C - Civitas Romana, que se apresentava assentado em: a) base familiar de organização; b) a noção de povo era restrita, compreendendo faixa estreita da população; c) magistrados como governantes superiores. D - Outras formas estatais da antiguidade, que tinham as seguiu tes características: a) nao eram Estados nacionais, ou seja, o povo não estava ainda ligado por tradições, lembranças, costumes, língua e cultura, mas por produtos de guerras e conquistas; b) modelo social baseado na separação rígida das classes e no sistema de castas; c) governos marcados pela autocracia ou por monarquias despóticas e o caráter autoritário e teocrático do poder político; d) sistema econô mico (produção rural e mercantil) baseado na escravidão; e) profunda influência religiosa. Ciência Política e Teoria tio Tí&iâdo
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1.2.1, Principal form a estatal prS-modermt: o tnedievo Três (3) elem entos se fizeram presentes na sociedade m edieval, som and o-se para a caracterização da forma estatal m edieval: A - O cristianism o - base da aspiração à universalidade, isto é, a idéia do Estado universal baseado na aspiração a que toda a hum anidade se tornasse cristã. D ois (2) fatores, porém, influem nestes planos, a saber: 1°) a m ultiplicidade de cen tros dc poder e 2°) recusa do Im perador em su bm eter-se à au torid ad e da Igreja. B - As invasões bárbaras - que propiciaram profundas transfor m ações na ordem estabelecida, sendo que os povos invaso res estim ularam as regiões invadidas a se afirm ar como unidades políticas independentes. Percebe-se, pois, que no M edieval a ordem era bastante precária, pelo abandono de pad rões tradicionais, constante situação de guerra, ind efini ção de fronteiras políticas ctc. C - O feudalism o - desenvolve-se sob um sislem a ad m in istrati vo e um a organização m ilitar estreitam ente ligados à situa ção patrim onial. O corre, principalm ente, por trôs institutos juríd icos: 1°) vassalagem (os proprietários m enos poderosos a serviço do senhor feudal em troca da proteção deste); 2o) benefício (contrato entre o senhor feudal e o chefe de fam ília que não tivesse patrim ônio, sendo que o servo recebia uma p o rção de terras para cultivo e era tratado com o parte inse parável da gleba); 3“) im unidade (isenção de tributos às terras sujeitas ao benefício). C onju gad os os três fatores, temos as características m ais m ar cantes da form a estatal m edieval: A - perm anente instabilidade política, econôm ica e social. B - d istinção e choque entre poder espiritual e poder temporal; C - fragm entação do poder, m ediante a infinita m ultiplicação de centros internos de poder político, distribuíd os aos nobres, bisp os, universidades, reinos, corporações ctc; D - sistem a ju ríd ico consuetudinário em basado cm regalias nobiliárquicas; E - relações de dependência pessoal, hierarquia de privilégios; O m odo de produção feudal se espalhou por toda a Liuropa. Segundo C apella, esquem aticam ente, o feudalism o consistia no se guinte: um a aristocracia originalm ente m ilitar se autodesignava um território e sua população. Os habitantes eram obrigados a cultivar 24
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a terra nccrHsárin para si e também para o senhor feudal, lím geral, prevalecia um sistem a sim ples de cultivo, cham ado "trôs cam pos" ideais ou m ateriais: um cam pesino cultivava uma parcela para si, outra para o seu senhor e uma terceira para repor as sem entes de ambas. Os cam poneses não podiam abandonar a terra. M ilitarm ente, o senhor feudal protegia o território do feudo, incluindo sua popu lação. O senhor feudal detinha o poder econôm ico, o político, o militar, o juríd ico e o ideológico sobre os "se u s" servos. Para am pliar suas riquezas, os senhores feudais apelavam para as guerras de con quista e para os m atrim ônios. A guerra e a capacidade para realizá-la teve a conseqüência de hierarquizar a aristocracia feudal, estabele cendo relações d c vassalagem também entre ela e os senhores mais poderosos. A arte de concertar m atrim ônios ganhou foros de so fis ticação, m ediante a increm entação de dotes e heranças com uns: os m atrim ônios proporcionavam um título juríd ico que podia ser rei vindicado pelas arm as. O refinam ento "m atrim o n ial" alcançou seu ápice no baixo m edievo, quando C arlos V III da França ficou com prom etido pela paz dc A rras (1482) com M argarita de Á ustria, que tinha som ente dois anos de idade e que agregava ao reino de Carlos VIII a Borgonha, A rtois e m ais outros feudos; já C arlos I da Espanha (V da A lem anha) superou essa marca. Com efeito, pelo tratado de Noyon, de 13 de agosto de 1516, com prom eteu-se com a princesa Luisa, que ainda não tinha com pletado um ano de id ad e.7 D esnecessário referir que não há data precisa delim itando a passagem do feudalism o (ou da forma estatal m edieval) para o ca pitalism o, onde com eça a surgir o Estado M oderno em sua prim eira versão (absolutista). Com efeito, durante séculos, na Europa O ciden tal e C entral coexistiram os dois modos econôm icos de produção: o feudalism o, que se esvaía, e o capitalism o, que nascia. C abe registrar, ainda com Capella, que no interior da ordem feudal surgiram rela ções de intercâm bio m ercantil, bem com o produções para o mercado, e não apenas para o autoconsum o e à tributação feudal em espécie. D iferentem ente da produção agrícola feudal - tendencialm ente está vel - a produção artesanal e a m anufatureira para ser levada ao m ercado tinha rendim entos variáveis, o que gerava, em con seqüên cia, inovação social. O s pequenos reinos constituídos depois da que da do Im pério rom ano deram lugar a algum as unidades m aiores e mais estáveis: a Florença dos M édicis, a unidade política de Castela y A ragão, os reinos de Inglaterra e França, para citar alguns, até chegar às m onarquias absolutistas da m odernidade. 7 C fe C apella, Juan Ramón. F rula prohibida. Una aproxim ación histórico-teorética a! estudio d ei derecho y dei estado. M adrid, Trotta, 1997, p. 86 e 87. Ciência Política e Teoria do listado
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Durante algum tempo, coexistiram dois tipos de relações em realidade pouco compatíveis: uma ordem de relações feudais fixas, em que as pessoas tinham distintos estatutos segundo sua posição de classe, e uma ordem de capitalismo mercantil, em que as pessoas valiam em função do que podiam comprar, independentemente de sua origem social. Mas o feudalismo ainda perduraria. Os espanhóis organizaram suas conquistas americanas com categorias ainda précapitalistas, porem novas para a época (as encommidaa). A unificação política da Espanha pelos reis católicos é, ainda que com predomínio de relações de poder feudal, uma inovação política, isto porque os reis católicos subordinam à Coroa o poder militar da nobreza, além de criar a primeira polícia estatal do mundo moderno (a Santa Ir mandade), unificando geográfica e ideologicamente seus reinos (li quidando o reino árabe de Granada e expulsando os judeus de Sepharad em 1492), e implantando um Tribunal especial para manter a unidade ideológica (A Santa Inquisição). É isto, em termos gerais, que se chamou de £poca do renascim ento* Em face das características stricto sensu da forma estatal medie val, 6 razoável afirmar que não existiu Estado centralizado no decor rer do período medieval, exatamente pela fragmentação dos poderes em reinos, feudos etc. A forma de Hstado centralizado - o Estado como poder institucionalizado - é pós-medieval, vindo a surgir como decorrência/exigência das relações que se formaram a partir do novo modo de produção - o capitalismo - entâo emergente. Tem-se, assim, utilizando a linguagem dos tipos ideais weberianos, que na forma estatal medieval vigorou o tipo de dominação carismática, caracterizada por Max Weber9 como decorrente de uma relação social especificamente extracotidiana e puramente pessoal. O locus apropriado para estudar a dominação carismática é o medievo (Idade Média). Freqüentemente o carisma repousa no direito he reditário de primogenitura do senhor feudal. Dito de outro modo, é a dominação que decorre da relação ex parte príncipe, porque pessoalizada. Afinal de contas, o servo da gleba tinha uma relação direta face to face - com o senhor feudal que, inclusive, detinha o direito de possuir as plebéias na primeira noite de casadas. Os servos não conheciam outra autoridade que não a do seu senhor. Nào era o rei que submetia o plebeu - vassalo - e, sim, o conde ou barão, proprie tário do feudo. Por outro lado, tal situação refletia uma multiplici dade de ordens e poderes, tantas quantas fossem os feudos e seus 8 Capella, Ju.irt Ramón. Fruta prohibida, op. cit., p. 91 e 92. v Cíe. Weber, Max. O s três tipos puros de dominação legítima. In: Sociologia. Gabriel Cohn (org). S<1o Paulo, Ática, 1986, p. 128 e sega. 26
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senhores, as quais concorriam entre si, bem como com o monarca. Com a passagem da forma estatal medieval para o Hstado Moderno - na sua versão inicial absolutista tem-se o início de um modelo de dominação legal-racional. Ou seja, do ex parte príncipe passa-se ao cx parte principio. O vassalo do suscrano feudal passa a ser súdito do rei, o que, à evidência, não deixa de ser uma novidade (e um avanço), da mesma forma que os diversos poderes dispersos pelos feudos são substituídos e unificados no poder soberano da monarquia ab soluta.
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2. O Estado na Teoria P olítica M o derna 2.1. C o n sid eraçõ es gerais V árias teorias tentam explicar e justificar a origem do Estado. Com efeito, além da perspectiva contratualista - mais em voga poderiam ser m encionad as outras vertentes de explicação da origem do Estado e do poder político que não esse "con sen so con tratu alis ta ", tais com o a de Augusto C om le (a origem estaria na força do núm ero ou da riqueza), a de algum as correntes psicanalíticas (a origem do Estado estaria na morte, por hom icídio, do irm ão ou no com plexo de Édipo), a de Gum plow icz (o Estado teria surgido do dom ínio de hordas nôm ades violentas sobre populações orientadas para a agricultura). Entretanto, para os objetivos destas reflexões, o exam e ficará restrito à tese contratualista lalo sensn, entendida, à evidência, como teoria positiva do Estado, e à teoria m arxista, entendida com o a teoria n egativa sobre o Estado. De qualquer sorte, à revelia e com uma parte das teorias ex p licativ as/ ju stifica d o ra s, é p o ssív el a fir mar qu e o E stad o é um fenôm eno original e h istó rico de d o m in a ção. C ad a m om en to h istó rico e o co rresp o n d en te m odo de p rod u ção (p revaleeen te) engendram um d eterm in ad o tipo de Es tado. O b serv e -se , assim , que o Estado m od ern o, em sua prim eira versão (a b so lu tista ),10 nasce das n ecessid ad es do cap italism o .as cen d en te, na (u ltra)p assag em do períod o m ed iev al. Ou seja, o E s tado não tem um a co n tin u id ad e (ev o lu tiv a ), que o lev a ria ao ap erfeiço am en to ; são as con d ições eco n ô m ico -so ciais que fazem e m erg ir a form a de d om inação apta a aten d er os in teresses das classes h eg em ô n icas.
lü Ver, acerca de uma especificação desta form a estatal da m odernidade o item 2.4 a seguir.
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2 .2 . A v i s ã o p o s i t i v a d o E s t a d o : o m o d e l o c o n t r a t u a l i s t a
A visão in stru m en tal do Estado na trad ição co n tra tu a lista aponta para a instituição estatal com o criação artificial dos hom ens, apresentando-o com o um “instrum ento" da vontade racional dos indivíduos que o "in v en tam ", sem pre buscando o atingim ento de d eterm inados fins que m arcam ou identificam as condicionantes de sua cria çã o .11 Neste sentid o, a perspectiva aberta pela escola do jusnaturalismo contratualista - nas suas variantes particulares, com o se verá - é crucial para o entendim ento da trajetória adotada pelo Estado M o derno e sua estrutura institucional com o Estado C onstitucional em seus diversos aspectos assum idos ao longo dos últim os cinco sécu los. A concepção orgânica contrapõe-se à id éia contratu alista vendo a sociedade com o "n a tu ra l" ao homem. N esta, por outro lado, n Sociedade/Estado é vista com o uma criação artificial da razão hu mana através do consenso, acordo tácito ou expresso entre a m aioria ou a unanim idade dos indivíduos... Fim do Estado N atural e o início do Estado Social e Político. O contratualism o m oderno é uma escola que floresce no intercurso dos séculos XVI a X V IIÍ.12 A estrutura básica se dá pela con traposição entre o Estado de N atureza e o Estado C ivil m ediada pelo C ontrato Social, com o E N - C. - EC, onde: HN corresponde a Estado de N atureza; C significa contrato; EC significa Estado C ivil com o um conceito genérico, e que será a seguir especificado. A ssim , o pensam ento contratualista pretende estabelecer, ao mesmo tem po, a origem do Estado e o fundam ento do poder político a partir de um acordo de vontades, tácito ou expresso, que ponha fim ao estágio pré-político (estado de natureza) e dê início à so cie dade política (estado civil). Para os autores dessa escola, o estado civil surge com o um artifício da razão hum ana para dar conta das deficiências inerentes ao estado de natureza, construído com o hipótese lógica negativa ou, para alguns, com o um fato histórico na origem do homem civilizado O contrato clássico aparece com o um instrum ento de legitim ação do 11 Com o diz Cesar Luis 1’asold, "a condição instrum ental do Estado é con.seqüôiu ln de dupla causa: ele nasce da Sociedade e existe para atender dem andas que, permn nenle ou conjunturalm ente, esta mesma Sociedade deseja sejam atendidos".Voi .1 respeito, do autor, o seu .‘1 Função Social do Estado Contem porâneo. Florianópolis: I■1 1. Do A utor, 1984. 12 Ilo b b e s, Leviatã - J6 5 1 ; Locke, D ois Tratados sobre 0 G overno C ivil - 1690; Koiissimii, Contrato Social - 1762, Ciência Política e Teoria do Estado
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Estado - já existente - e a base sistemática cie construção do sistema jurídico. Pode-se dizer, então, que: A - o estado de natureza, como hipótese lógica negativa, reflete com o seria o homem e seu convívio fora do contexto social; B - o contrato/ instrumento de em ancipação em face do estado de natureza e de legitimação do poder político e; C - o estrado civil, portanto, surge como uma criação racional, sustentado no consenso dos indivíduos. Para dar conta disso, pretendemos, com o fazem Bobbio e Bovero,15 expor cada um destes momentos isoladam ente, visando, com isso, a facilitar a compreensão do tema, retomando-o por autor em seguida.
2.2.7. O Estado de natureza A idéia cie estado de natureza aparece correntem ente, como dito acima, com o mera hipótese lógica negativa, ou seja, sem ocorrência real. E um a abstração que serve para justificar/legitim ar a existência da sociedade política organizada. Para alguns, pode ter havido uma ocorrência histórica do mesmo - como é o caso de Rousseau. Mas, substancialm ente, o estado de natureza se apresenta como contraface do estado civil, ou seja, se não estamos no interior da sociedade política, caím os no estado de natureza. Seria o estágio pré-político e social do hom em , embora este, mesmo eni estado de natureza não seja pensado com o "'selvagem ", sendo o m esmo que vive em socie dade. Para os contratualistas, a figuração do mesmo não e uniforme. Uns, com o TTiomas Hobbes e Spinoza, vêem -no com o estado de guerra, am biente onde dominam as paixões, situação de total inse gurança e incerteza, domínio do(s) mais forte(s), expressando-o com adágios, tais com o: guerra de todos contra todos; o homem lobo do homem etc. O utros, com o Kousseau, definem-no com o estado histórico de felicidade - o estado primitivo da hum anidade onde a satisfação seria plena e comum (mito do bom selvagem , sendo significativa a frase dc abertura do Contrato Social: os homens nascem livres e iguais e, em todos os lugares encontram-se a ferros), e o estabelecim ento da propriedade privada joga papel fundamental. O estado civil seria ■3 Ver, dos autores, Sociedade liense, 1986, passim .
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Estado nu Filosofiu Política M oderna. São Paulo, tfrasi-
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um corretivo do p r ó p r i o desenvolvimento humano, que teria, assim, urna estrutura triádica (estado de natureza, sociedade civil como momento negativo e estado civil como república. Já um terceiro pensador desta Escola sinaliza um quadro refe rencial diverso do até aqui apresentado. Para John Locke, tido como "pai do liberalism o", o estágio pré-social e político dos hom ens, ou seja, sua vida em natureza, se apresentava com o uma sociedade de "paz relativa", pois nele haveria um certo domínio racional das pai xões e dos interesses. Nos quadros do estado de natureza, a raz?lo permitiria a percepção de limites à ação hum ana, conform ando um quadro de garantias naturais ou, melhor dizendo, um quadro de direitos naturais que deveriam ser seguidos pelos homens; aqui o homem já se encontra dotado de razâo e desfrutando da propriedade (vida, liberdade e bens); não há, todavia, na eventualidade do con ílito, quem lhe possa pôr termo para que não degenere em guerra e, ainda, tenha força coercitiva suficiente para impor o cumprimento da decisão.
2.2.2. Contraio social De maneira diversa, cada um destes autores, em bora em todos eles esteja presente a inevitabilidade de alterar o estágio de convi vência social, propõe um mecanismo que dê conta desta passagem, o contrato social. Assim, para superar os inconvenientes do estado de natureza, os homens se reúnem e estabelecem entre si um pacto que funciona como instrumento de passagem do m omento "negati vo" de natureza para o estágio político (social); serve, ainda, como fundamento de legitimação do "Estado de Sociedade". Contudo, há diferenças marcantes entre os autores no que diz com o conteúdo destes pactos. Fiquemos, em um primeiro momento, com dois deles: Hobbes e Locke. Para o primeiro, o contrato social, à m aneira de um pacto em favor de terceiro, é firmado entre os indivíduos que, com o intuito de preservação de suas vidas,14 transferem a outrem não-partícipe (homem ou assembléia) todos os seus poderes - não há, aqui, ainda, em se falar em direitos, pois estes só aparecem com o Estado - em troca de segurança. Ou seja: para pôr fim à guerra de todos contra todos, própria do estado de natureza, os homens despojam -se do que 14 Sobre a idéia de vida em llobbes, ver: Ribeiro, Renato Janinc. Ao leito r sem Medo. São Paulo: Brasiliense. 1984. Ciência Política e 1eoria do listado
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possuem do direitos e possibilidades em troca de receberem a w gurança do Leviatã. O Estado é caracterizada como o Leviatã na obra de Hobbes, que o designa com o "d eu s m ortal", porque a ele — por debaixo do D eus im ortal - devem os a paz e a defesa de nossa vida. Esta dupla denom inação resulta fortem ente significativa: o Estado absolutista que H obbes edificou é, em realidade, m etade m onstro e m etade deus mortal, com o se pode ver na seguinte passagem do Leviatã:1Ii O único cam i nho para erigir um poder com um que alcance defender os hom ens das agressões estrangeiras e das injúrias recíprocas - assegurando-se assim que possam alim entar-se e viver satisfeitos com sua própria indústria e com os frutos da terra - reside em conferir todos os seus pod eres e toda a sua força a um hom em ou a uma assem bléia de hom ens que possa reduzir todas as suas vontades m ediante a plura lid ad e das vozes a um a só vontade; isto eqüivale a designar a um hom em ou a uma assem bléia de hom ens para que represente a sua pessoa, dc m odo que cada um aceite e se reconheça a si m esmo como autor de tudo aquilo que defende o representante de sua pessoa, do que possua ou do que cause, naquelas coisas que concernem à paz e à segurança com uns, subm etendo todas as suas vontades à vontade dele, e todos os seus ju ízos ao juízo dele. Isto é m ais do que um 15 Na Bíblia, m ais especificam ente no Livro de Jó (capítulos 40-41), encontra-se a descrição do m onstro invencível Leviatã (que significa literalm ente crocodilo). Sua descrição term ina assim : "Si lo despiortan, furioso se levanta, i y qu ién podrá aguantar delante d c cl? Lo alcanza la espada sin clavarse, Lo m ism o la lanza, jabalina o dardo. Para él el hierro es sólo paja, El bronce, m adera carcom ida. No lo ahuyentan los disparos dei arco, C ual polvillo le llegan las piedras de la honda. Un junco la m aza le parece, Se ríe dei vcnablo que silba. Debajo de él tejas puntiagudas: Un trillo que va pasando por el lodo. Hace d ei abism o una olla borbotante, Cam bia el m ar en pebetero. Deja tras de sf una esteia lum inosa, el abism o diríase una m elem blanca No hay en la tierra sem ejante a él, Que há sid o hecho intrépido. Mira a Ia ca ra a los m ás altos, Bs rey de todos los hijos dei orgujjo. Consultar; Reale, G iovani e A ntiserí, D ano. H istoria dei pensam ietilo filosófico \j cientí fic o II. Uarcelona, Editorial Herder, 1995, p. 425 e 426. 32
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consentim ento ou concordância; é uma unidade real de todo» em lima só e m esm a pessoa, realizada m ediante o pacto de cada homem com todos os dem ais, de um a forma que im plique que cada homem diga a todos os outros: "C ed o e transfiro m eu direito de governar-m e a mim m esm o a este hom em , ou a esta assem bléia de hom ens, com a condição de transferires a ele texi d ireito, autorizando de m aneira sem elhante todas as suas ações. Feito isso, à m ultidão assim unida numa só pessoa se chama F.stado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatâ (...). E nele que consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim definida: uma pessoa de cujos atos uma grande m ultidão, m ediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituí da por cada um com o autora, de modo a ela pod er usar a força e os recursos de todos, de m aneira que considerar conveniente, para a s segurar a paz e a defesa com um . Àquele que é portador dessa pessoa se cham a soberano e dele se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são sú d ito s".16 Por outro lado, em Locke altera-se su bstancialm ente o conteúdo do contrato, adm itindo, inclusive, seu c a rá te r histórico, m uito em bo ra perm aneça com o um princípio de legitim ação do poder. Aqui, a existência-perm anência dos d ireitos naturais circunscreve os lim ites da convenção. O "p acto de consentim ento" que se estabelece serve para preservar e consolidar os direitos já existentes no estado de natureza. O convênio e firm ado no intuito de resguard aT a em ersão e generalização do conflito. A través dele, os indivíduos dão seu consentim ento unânim e para a entrada no estado civil e, posterior mente, para a form ação do governo quando, então, se assum e o princípio da m aioria. 2.2.3. Estado civil A conseqüência destas atitudes díspares se m ostrará na con fi guração do estado civil proposta por cada um dos autores citados. Poderem os ter a construção de um poder ilim itado, posto que sem nenhum referencial no estado de natureza, ou seja, um poder novo, sem víncu los ao estilo hobbesiano, tido com o ilustrador do estado absoluto, uma vez que o "p rín cip e" tudo pode, ou tudo deve fazer, pecando unicam ente por fraqueza. Aqui, não há parâm etros naturais para a ação estatal, uma vez que pelo contrato o hom em se despoja 16 Cie. Hobbes. Lcviata. Os pensadores. Trad. de João Pau Io M onteiro e M aria Beatriz Nizza da Silva. S3o Paulo, Abril Cultural, 1983, p. 105 c 106; ver também Reale, G iovani c A ntiseri, op. cit. Ciência Política o Teoria do Eslado
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de tudo, exceto da vida, transferindo o assêguram ento dos interesses à sociedade p olítica, especificam ente ao soberano. O Estado e o Di reito se constroem pela dem arcação de lim ites pelo soberano que, por não ser partícipe na convenção instítuidora e, recebendo por todo desvinculad o o poder dos indivíduos, tem aberto o cam inho para o arraigam ento de sua soberania. P or outro lado, para John L ocke, a passagem do Estado de N atureza para o Estado Civil, m ediada por este C ontrato Social, se fará para perm itir que aqueles direitos p rc-sociaís, vistos com o d i reitos n atu rais, dos indivíduos, presentes no Estado de N atureza, possam ser garantidos m ais eficazm ente pelo soberano. A ssim , o conteúdo do C ontrato Social será constituído pelo con jun to d e direi tos n atu rais presentes no EN , os quais irão traçar os lim ites do poder soberano no Estad o Civil. Pode-se dizer, portanto, que na teoria iockeana esb oça-se o qua dro prim ário do individualism o liberal assentado em uma sociedade não conflitu osa cuja form a de organização estará lim itada pelo con junto de direitos pré-sociais e políticos já presentes no EN e cuja positivação no EC perm itirá não apenas o seu reforço com o tam bém estabelecer os lim ites à ação estatal. C onform e Locke, "a lín ica m a neira pela qual uma pessoa qualquer pode abdicar de sua liberdado natu ral e revestir-se dos elos da sociedade civ il é concordando com outros hom ens em ju n tar-se e unir-se em uma com unidade, para viverem confortável, segura e pacificam ente uns com os outros, num gozo seguro de suas propriedades e com m aior segu rança contra aqueles que dela não fazem p a rte".17 Há, desse m odo, um duplo contrato em Locke: o de associação, quando se funda a sociedade civil, e o de subm issão, instituid or do pod er político, que não pode, no entanto, violar direitos naturais. D esse m odo, para Locke, o hom em traz consigo, quando do estabelecim ento da sociedade civil, os direitos presen tes no estado de natureza; não há um despojam ento nesta passagem , tal qual em Hobbes. Assim o estado civil nasce duplam ente lim itado. Por um lado, não pode atuar em contradição com aqueles direitos; por outro, deve oportunizar, o m ais com pletam ente possível, a usufruição dos m esm os. N asce, assim , com o poder circunscrito àquela esfera de interesses pré-sociais do indivíduo natural. O estabelecim ento da lei civil, do ju ízo im parcial e da força com um tem um papel de reforço dos direitos naturais não alienados através do contrato social. Os 17 Cfe. Locke, John. Dois Iralados sobre o governo. Trad. de Ju lio Fischer. São Paulo, M artins Fonles, 1998, p. 468.
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Indivíduos, ao contrário do que ocorreu em H obbes, abandonam um único direito: o de fazer ju stiça com as próprias mãos. Ao contrário de H obbes, para Locke, o poder estatal é essen cial mente um poder circunscrito. O erro do soberano não será a fraque za, m as o excesso. E, para isso, adm ite o direito á e resistência. A soberania absoluta, incontrastável do prim eiro, cede passo à teoria do pai do individualism o liberal, reorientando-se no sentido de um listado vinculado a conteúdos pré-sociais - os d ireitos naturais. Em Locke, ainda encontram os o controle do Executivo p elo Legislativo e o controle do governo pela socied ad e, cernes do pensam ento liberal. Tom ando, paradigm aticam ente, a idealização lockeana, p o d e mos b u scai a caracterização dos m oldes do liberalism o. N o autor de Dois Tratados sobre o G overno, burguês puritano de n ascim ento, en contra-se, além da d efesa da liberdade c tolerância religiosas, a for m ulação prim ária e m ais com pleta do Estado Liberal. E ste nasce lim itado pelos d ireitos n atu rais fundam entais - vida e propriedade - que são conservados pelos indivíduos qu ando da criação do E sta do, o qual tam bém é restringido ''porque o consenso é dado aos governantes som ente sob a condição dc que exerçam o pod er dentro dos lim ites estab elecid o s".1* Bobbio sintetiza "(...) através dos p rin cípios de um direito na tural preexistente ao Estado, de um Estado baseado no con sen so, de subordinação do poder executivo ao pod er legislativ o , de poder lim itado, de direito de resistência, Locke expôs as d iretrizes fund a mentais do estado liberal../ '.10 G enericam ente, pode-se dizer que, para o jusn atu ralism o contratualista, a sua regra básica consiste na n ecessid ad e de basear as relações sociais e p o líticas num instrum ento de racionalização, o d ireito, ou de v er no pacto a condição form al da existência jurídica do Estado. R esum idam ente, pode-se retom ar este d ebate para dizer que, para H obbes,211 o contrato social, à m aneira de um pacto cm favor de Bobbio, N orberto. D ireito e Estado cm L K ant. B rasília: UnB. 1984, p. 40. 19 Idem, ibidem, p. 41. 2(1 Im portante registrar que, ao lado dos ingredientes econôm icos e políticos - i*nu*i gência do modo d e produção capitalista a as lutas pelo poder - há todfl uinfl fundam entação filosófica na form ulação das teses acerca do listado. Com efeito, nAo se pode olv ica r que o noininalism o (ou conceptualism o, com o sustentam tiltfunu autores) de Hobbes e de suma relevância para a em ergência do contrrttudllumo O bserve-se que, "e m H obbes, a linguagem é o instrum ento fundam ental para a com unicação hum ana. O pacto, para a form ação do estado, exige uma compreenufto e adesão, e isto so m en te c possível pela linguagem . A não-com preensAo exala do Ciência Política e Teoria do Estado
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terceiro, é firm ado entre os indivíduos que, com o objetivo de pre servarem suas vidas, transferem a outrem não-partícipe (hom em ou assem blcia de hom ens) Iodos os seus poderes - não há, ainda, que se falar cm direitos, pois estes só aparecem com o Estado. O u seja: para pôr fim à guerra, despojam -se do que possuem em troca da segurança do Leviatã.21 C ontrapondo H obbes, para Locke o poder estatal é essencial m ente um poder delim itado. O erro do soberano não será a fraqueza, m as o excesso. E, em conseqüência, para isso, adm ite o direito de resistência. A soberania absoluta, incontrastável, do prim eiro cede passo à teoria do pai do individualism o liberal, na qual ainda consta o controle do Executivo pelo Legislativo e o controle do governo pela sociedade (cem cs do pensam ento liberal). A ltera-se o conteúdo do contrato, se com parado com Hobbes. Em Locke, a existência-perm anência dos direitos n atu rais circunscre ve os lim ites da convenção e do poder dela derivado. O pacto de consentim ento que se estabelece serve para preservar e consolidar os d ireitos preexistentes no estado natural. A convenção é firm ada no intuito de resguardar a em ersão e a generalização do conflito. A través dela, os ind ivídu os dão o seu consentim ento para a entrada no estado civil e, posteriorm ente, para a form ação do governo quan do, en tão, se assum e o princípio da m aioria. Já no terceiro contratualista - Jean-Jacqucs R ousseau — há um sensível deslocam ento da noção de soberania. Para chegar naquilo que Rousseau denom inou de contrato social, é fundam ental que se com preenda o estado de natureza e a inserção do homem cm com u nidade. Com efeito, o estado de natureza em Rousseau é som ente pacto acarreta na form ação do Estado. Porém, a linguagem subjetiva da denom ina ção das p aixões exige uina atenção peculiar. É na interpretação errônea e subjetiva que podem ocorrer o s m aiores riscos de um Fstado. Portanto, H obbes assegura à linguagem um a função constitutiva a respeito das relações sociais e políticas. Sem linguagem não haveria entre os hom ens nem Estado, nem Sociedade, nem contrato, nem pax., tal com o não existem entre leões, os ursos e os lobos. N esse sentido, W olm ann, Sergio. O conceito cie liberdade no Lcvialã de Hobbes. P orto A legre, Edipucrs, 1992, p. 30. É, pois, a filosofia fornecendo o arcabouço teórico para a possibilidade d c sustentar a origem convencional do Estado e do poder, possibilitando, assim, rom per com as teses m etafísico-essencialislas vigorantes até o m edievo, que davam suporte ao poder de então. R epete-sc nas teorias contratualistas o que jâ ocorrera com a sofistica, m ediante o rom pim ento da possibilidade da existência de essências e verdades im anenles. À evidência, a tese da origem convencional do Estado é um duro golpe às teses acerca do Estado e do Poder atiS então vigorantes. Para tanto, ver Streck, L enio Luiz- H erm enêutica Jurídica e(m ) Crise, op. eit., p. 117 e 118. 11 A respeito do tema, ver: Bolz.an de M orais, José Luis. A inda H obbes. Revista da Faculdade de D ireito da URI/FW . Frederico W estphalen: HDURI, 1999. 36
Lenio Luiz Streck José Luis Bolzan de Morais
umn categoria histórica para facilitar esse entendim ento. Assim, no "D iscurso sobre a d esigualdade", Rousseau diz que "o verdadeiro lundndor da sociedade civil foi o prim eiro que, depois de haver delim itado um terreno, pensou em dizer 'isto é m eu', e falou a ou tros, tão ingênuos para nele acreditarem ". A desigualdade nasceu, pois, junto com a propriedade, e, com a propriedade, nasce a hosti lidade entre os hom ens. Com isso, percebe-se a visão pessim ista de Kousseau sobre a história, ao ponto de Voltaire ter classificad o o I )iscurso sobre a origem e os fundam entos da desigualdade entro oh hom ens com o sendo um "lib elo contra o gênero hu m ano". Ao contrário de H obbes, Rousseau não considera o homem com o "o lobo do h om em "; na verdade, o hom em sc transform a 110 lobo do hom em no decorrer da história. É fácil perceber, assim , que o estado de natu reza Rousseauniano e antitético ao de Hobbes: " Tudo é bom quando sai das mãos do Autor das co isa s", porém "tud o se degenera nas mãos do hom em ", sentencia. C onseqüente mente, no seu Contrato Social, Rousseau diz que o hom em nasceu livre, e, paradoxalm ente, encontra-se aprisionado. R ousseau preten de, assim , devolver a liberdade ao hom em , e o m odelo que propõe se sustenta na consciência hum ana e deve estar aberto à com unidade: "A passagem do estado de natureza até o estado social produz no homem um a m udança bem acentuada, substituindo, cm sua condu ta, o instinto pelo sentim ento de justiça, e outorgando a suas ações relações m orais que antes estavam ausentes. Som ente assim , quando a voz do dever substitui o im pulso físico, e o d ireito substitui o apetite, o hom em , que até então se havia lim itado a contem plar-se a si m esmo, se vê obrigado a atuar segundo outros princípios, con su lt ando com sua razão antes de escutar as suas inclinações. N o entanto, ainda que esse novo estado acarrete privações de m uitas das vanta gens que lhe concede a natureza, obtém com pensações m uito g ran des, suas facu ld ades se exercitam e se am pliam , su as idéias se desenvolvem , seus sentim eiitos se enobrecem e sua alm a se eleva até um grau tal que - se o m au uso da nova condição com freqüência não lhe aviltasse, fazendo que se situe m ais abaixo de seu estado originário - teria que agradecer sem parar o feliz instante em que foi arrancado para sem pre daquele lugar, convertendo o anim al estúp i do e lim itado que era, em um ser inteligente, em um h o m em ".22 22 C onsultar Reale e A ntiseri, op. cit., p. 635-652; R ousseau, Jean Jacques. Du CotiIratct Social. Paris: G allim ard, 1979; Idem, D iscurso sobre Ia econom ia política. Madrid, Tecnos, 1985; Idem , D iscurso sobre a origem e os fu n dam en tos da desigualdade entre os homens. Brasília, U niversidade Nacional de Brasília,, 1989. Ciência Política e I eoria do listado
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O princípio que dá legitimidade ao poder ó a vontade geral, assim explicado por Rousseau: "Creio poder estabelecer como prin cípio indiscutível que somente a vontade geral pode dirigir as forças do Estado segundo a finalidade de sua instituição, que é o bem comum; com efeito, se para que aparecessem as sociedades civiliza das foi preciso um choque entre os interesses particulares, o acordo entre esses 6 o que as faz possíveis. O vínculo social é conseqüência do que existe em comum entre esses interesses divergentes, e se não houvesse nenhum elemento no qual coincidissem os interesses, a sociedade não poderia existir. Isto posto, porquanto que a vontade sempre se dirige para o bem do ser que quer e a vontade particular sempre tem por objetivo o bem privado, enquanto que a vontade geral se dirige ac» interesse comum, disso se deduz que somente esta última é, ou deve ser, o verdadeiro motor do corpo social". A vontade de que fala Rousseau não advém da submissão a um terceiro, através de um pacto: cia se origina de uma uniâo entre iguais. Cada um renuncia a seus próprios interesses em favor da coletividade. X ad a é privado; tudo e público no Rousseau do Con trato Social. A soberania sai das mãos do monarca, e sua titularidade é consubstanciada no povo, tendo como lim itação, apesar de seu caráter absoluto, o conteúdo do contrato originário do Estado. É esta convenção que estabelece o aspecto racional do poder soberano. A vontade geral incorpora um conteúdo de moralidade ao mesmo, perm itindo que se entenda a obediência como exercício de liberdade e a soberania como a ação do povo que dita a vontade geral, cuja expressão é a lei.2* O homem rousseauniano só deve obedecer à consciência públi ca representada pelo estado, fora do qual não há mais do que cons ciências privadas ou individuais, que devem ser rechaçadas porque prejudiciais: "Para que o pacto social não se reduza a uma fórmula vazia, im plica tacitamente o seguinte empenho, o único que pode dar força aos demais: aquele que se nega a obedecer a vontade geral, será obrigado a isso por todo o corpo; isto não significa outra coisa que obrigar-lhe a ser livre". Fm síntese, a vontade geral, encarnada no Estado e pelo Estado, é o todo. Como se pode observar, a defesa do bem comum sufoca as possibilidades individuais do cidadão. O indivíduo é absorvido por esse "tod o " representado pelo Estado portador da vontade gerai. Nesse sentido, Sérgio Cotta chama a atenção para o fato de que o contrato social dá origem a um Estado dem ocrático, na medida em que o poder já não pertence a um prín cipe ou a uma oligarquia, e sim à comunidade. Esta é a grande ^
ld e m , ib k lc m .
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Lcnio Lu iz Sírcck }o$é Luis Bulzan de M or uh
contribuição de Kousseau à filosofia política. Entretanto, Roussoau também consagra o despotismo da maioria, que assume roupagens de totalidade, pela qual sua vontade nào somente é lei, senão tam bém a norma que indica o justo e a virtude. Desde o ponto de vista ético e político, há uma negação da liberdade ao ser humano. Quan do esta entra em conflito com a vontade geral predominante, impõese-lhe o dever de aceitar que tenha se equivocado, sacrificando assim inteiramente a sua razão em face da vontade? coletiva, mediante um autêntico ato de fé. Por isso, conclui Cotta, impulsionada pratica mente por uma fatal necessidade, a filosofia com o revolução propos ta por Rousseau desemboca no listado ético e totalitário.24
2.3. O Estado Moderno As deficiências da sociedade política medieval determinaram as características fundamentais do Fstado M oderno, quais sejam: o ter ritório e o povo, como elementos materiais; o governo, o poder, a autoridade ou o soberano, como elementos formais. Para alguns autores, existe um quarto elemento: a finalidade - o Estado deve ter uma finalidade peculiar, que justifique sua existência.25 Bobbio26 traz a lume uma questão interessante, a partir da pró pria discussão do nascimento do nome ESTADO. Não há dúvidas de que foi M aquiavel que cunhou a expressão no seu Príncipe: "Todos os Estados, os domínios todos que existiram e existem sobre os ho mens, foram e sào repúblicas ou principados". A partir disso, quando se fala em Hstado Moderno, questiona-se se houve uma continuidade ou uma descontinuidade. Afinal, Estado M oderno por quê? Houve, então, um Estado Antigo? M as, se, como di/ Luciano Gruppi, tudo começou com M aquiam!, não deveríamos cha mar o Estado dito moderno, simplesmente, de "o Estado"? Para ele, o Estado M oderno - o Estado unitário dotado de um poder próprio independente de quaisquer outros poderes - começa a nascer na segunda metade do séc. XV na França, na Inglaterra e na Espanha; posteriorm ente, alastra-se por outros países europeus, entre os quais a Itália. Por conseguinte, diz Gruppi que, desde seu nascimento, o Tdem, ibide-m.
25 Consultar: Corrêa, Dor ciso. Implicação jurídico-polftk.o da dicolomia público e privado na sockdado capitalista, l e s e do Doutorado. Florianópolis, UFSC, 1995. Ver, ainda, na presente obro, o tópico 8.2, bem como, na segunda porte, o item 9.2. 26 Nesse sentido, consultar Bobbio, Norberto. Estado, Governo, Sociedade - Para uma teoria geral da política. Trad. de Marco Aurclio Nogueira. Rio Uc Janeiro, Faz e Terra, 1987, p. 65 c scgs. Ciência Política e Teoria do Fstado
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Eslado M oderno apresenta dois elem entos que diferem dos Estados do passado, que não existiam , por exemplo, nos Estados antigos dos gregos e dos romanos. A prim eira característica do Estado Moderno é essa autonom ia, essa plena soberania do Estado, a qual não permite que sua autoridade dependa de nenhum a outra autoridade. A se gunda é a distinção entre o Estado e sociedade civil, que vai eviden ciar-se no séc. XVII, principalm ente na Inglaterra, com a ascensão da burguesia. O Estado se torna uma organização distinta da sociedade civil, em bora seja a expressão desta. Uma terceira característica dife rencia o Estado em relação àquele da Idade M édia. O Estado m edie val é propriedade do senhor, é um Estado patrim onial. O senhor é dono do território e de tudo o que nele se encontra (hom ens e bens). N o Estado M oderno, pelo contrário, existe uma identificação abso luta entre o estado e o monarca, o qual representa a soberania estatal. M ais tarde, cm fins de 1600, o rei francês afirm ava "L/etat c'est m o i", no sentido de que ele detinha o poder absoluto, m as tam bém de que ele se identificava com pletam ente no Estado.27 Com Bobbio, é possível alinhar argum entos a favor c contra a descontinuidade, cnlre aquilo que se poderia cham ar Estado Antigo e Fstado M oderno. Com efeito, a favor da descontinuidade, pode-se afirm ar, de pronto, que o nome Estado é um novo nome para uma realidade nova: a realidade do Eslado precisam ente moderno, a ser conside rado como uma form a de ordenamento tão dÍ7)erso dos ordenam entos pre cedentes que não podia mais ser chamado com os antigos nomes. Assim, diz o m estre italiano, o nome Estado deve ser usado com cautela para as organizações políticas existentes antes do novo ordenam ento cen tralizador, institucionalizado, denominado por Maquiavel de Estado.28 O Estado M oderno como algo novo insere-se perfeitamente em uma descontinuidade histórica, isso porque um dos maiores argumen tos a confirmar tal tese é de que é o processo ineroxável de concentração do poder de comando sobre um determinado território bastante vasto, que acontece através da monopolização de alguns serviços essenciais para a manutenção das ordens interna e externa, tais como a produção do direito através da lei, que, à diferença do direito consuetudinário, é uma emanação da vontade do soberano, e do aparato coativo neces sário à aplicação do direito contra os renitentes, bem com o através do reordenam ento da im posição e do recolhim ento fiscal, necessário para o efetivo exercício dos poderes aum entados.29 27 C f e . G ruppi, Luciano. T udo começou com Maquiavel. Porto Alegre, L&PM, 1980, p. 7 e segs. 28 Ver Bobbio, Estado, Covcrno e Sociedade, passitrt. 2‘J Idem. 40
Lenio l.iitz Streck José Luis Bolzan de Morais
Do qualquer sorte, complementa Bobbio, a escolha de uma delinição depende de critérios de oportunidade, e não de verdade. Assim, quem considera como elemento constitutivo do conceito do listado também um certo aparato adm inistrativo e o cum prim ento de certas funções que apenas o estado m oderno desem penha, deverá sustentar que a pólis grega não é um Estado, e que a sociedade íeudal não tinha um Estado. A favor da descontinuidade, por exem plo, poder-se-ia perguntar se existe uma continuidade entre as cidades romanas e as cidades m edievais, entre os collegia e as corporações? Mais ainda, sobretudo com respeito à organização política, é possível falar propriam ente de Estado - que im plica a idéia de unidade do poder sobre um determ inado território - num a sociedade fraccionn da e policêntrica com o aquela dos prim eiros séculos, na idade dos reinos bárbaros, cm que as principais funções que hoje são habitual mente atribuídas ao estado e servem para conotã-lo são desem pe nhadas por poderes periféricos, onde não existe distinção nem no alto nem em baixo entre poder propriam ente político e poder econô mico? Independentem ente do "nom e da coisa" ou do m érito dos argu m entos alinhavados a favor de uma tese ou de outra, é im portante deixar assentado que o Estado M oderno é uma inovação. A com eçar pelo fato de que, no feudalism o, o Poder é individualizado - encar na-se num homem que concentra na sua pessoa os instrum entos da potência e a justificação da autoridade (poder carism ático, na acep ção de Weber). Com o contraponto, no Estado Víoderno, a dom inação passa a ser legal-racional, definida por W eber30 com o aquela decor rente de estatuto, sendo seu tipo mais puro a "dom inação burocrá tica", onde qualquer direito pode ser criado e m odificado m ediante um estatuto sancionado corretam ente quanto à forma; ou seja, obo decc-se não à pessoa em virtude de seu direito próprio, mas à regra estatuída, que estabelece ao mesmo tempo a quem e em que medida se deve obedecer. Como se pode perceber, a dom inação legal-racio nal, própria do Estado M oderno, é a antítese da dom inação carismá tica, predom inante na forma estatal medieval. O bserve-se, ainda, que, para autores como G eorges Burdeau,11 as origens do Estado só podem ser procuradas quando começa a existir um organism o que, aos olhos dos hom ens do séc. XVI, surgiu como suficientem ente novo para que eles sentissem a necessidade do dotar um nome: um nom e que os povos, na mesma época, transm i 30 Cfe. W eber, op. cit., p. 128 c segs. 31 Consultar Burdeau, Georges. O Estado. Póvihí de Varzim, Publicações F.uropa-Aml' rica, sd. Ciência Política c Teoria do Estado
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tiram imediatamente de uns para outros. Herman Heller12 vai mais longe, ao .afirmar que é patente o fato de que durante meio milênio, na Idade M édia, não existiu o Estado no .sentido de uma unidade de dom inação, independentemente no exterior e interior que atuara de m odo contíuuo com meios de poder próprios, e claramente delimi tada pessoal e territorialmente. A própric jurisdição estava em mãos privadas. N essa linha, é importante registrar que, naquilo que se passou a denom inar de Estado M oderuo, o Poder se torna instituição (uma empresa a serviço de uma idéia, com potência superior à dos indiví duos). É a. idéia de um a dissociação da autoridade e do indivíduo que a exerce. O Toder despersonalizado precisa de um titular: o Rstado. Assim , o F.stado procede da institucionalização do Poder, sendo que suas condições de existência são o território, a nação, mais potência c autoridade. Esses elementos dão origem à idéia de Estado. Ou seja, o Hstado Moderno deixa de ser patrimonial. Ao contrário da forma ostatal medieval, em que os monarcas, marqueses, condes e barões eram donos do território e de tudo o que nele se encontrava (homens e bens), no Estado Moderno passa a haver a identificação absoluta entre Estado e monarca em termos de soberania estatal. L'État c e s t moi.™ A prim eira forma de Estado centralizado é denominado por Linares Quintana de Estado Estamental, uma espécie de transição entre a form a estatal medieval e o Estado Absolutista (primeira for ma stricto sensu de Estado Moderno). Esse Fstado de Estamentos era formado pela concentração estamental de alta nobreza, baixa nobre za, clero e a burguesia das cidades. Ou seja, o Estado fundado em pactos elaborados e subscritos pelos m enbros de múltiplas classes, que juram lealdade entre si e obediêncú aos seus príncipes e reis. Era, assim , um conglomerado de direitos adquiridos e privilégios, e não um a Constituição, o que dava forma jurídica a este protoestado medieval/ que, ao concluir seu processo dc desenvolvimento histó rico, constituirá o Estado nacional típico do mundo mediterrâneo europeu ocidental. Eram pactos às vezes escritos, às vezes fruto de usos e costum es que limitavam e controlavam o poder do príncipe centralizador, que detinha o título de rei. Assim se conformaram entre o século XÍV os reinos de Inglaterra, França, Espanha, Portugal e Suécia, p o r exemplo. Nos anos quínher.tos, incluem-se nos pactos entre o rei e os senhores feudais outros dois elementos que vão dar 3-* C onsultai H eller, Herm an. Teoria do Estado. São Paulo, M estre Jo u , 1968.
33 Ncssc sentido, consultar, além dos autores citados retro, Corrca, Uarciso, op. cit. p. 84 e segs. 42
Lenio Luiz Streck José Lu is Bolzan d e M orais
nascim ento, em definitivo, aoH grandes Estado» nacionais tio único universo político existente no mundo conhecido na época, isto é, as 1'uropas Central e M eridional.34 Com o Estado, nessa sua nova feição, procura-se ligar o Poder a uma funç
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guém . É esta, pois, a grande novidade que se estabelece na prtHHngcin do m edievo para o Estado M oderno. D esse m odo, é possível dizer, com G iusti Tavares, que o Estado M oderno se constitui e desenvolve com o resultado de um quádruplo m ovim ento: a) de centralização c concentração do poder; b) de su pressão ou rarefação c, deste modo, neutralização ou debilitação, ao nível societário, das associações e com unidades interm ed iárias, bem com o, no âm bito do próprio com plexo estatal, das instituições e poderes de nível interm ediário dotados de algum a autonom ia; c) de redução da população, quaisquer que sejam seus estam entos, classes ou estratos, a uma m assa indistinta, anônim a, uniform e, e indiferenciada de súditos, isto é, à igualdade abstrata de sujeição com um a um pod er d ireto e im ediato; e, enfim , d) de um m ovim ento em virtude do qual este poder, o Estado, se destaca, separa c isola da sociedade. Todavia, a redução da população a uma m assa uniform e e im pessoal de súditos supõe uma sociedade na qual as condições e os processos sociais fundam entais coloquem , por sua vez, os hom ens em relações altam ente im pessoais e abstratas. Mas estes são precisa m ente os traços que caracterizam a nova econom ia, cujos agentes produzem para m ercados cada vez m ais distantes e anônim os e se articulam entre si através de vínculos contratuais universalistas, abs tratos e im pessoais —o salário, a com pra e venda em geral, o m ercado de trabalho - ao m esm o tempo em que adotam largam eiite não apenas o sistem a m onetário, como tam bém instrum entos m ais refi nad os, tais com o a letra de câm bio, mas altam ente abstratos, como expressão da circulação de riqueza. Tais traços não existiam nas relações feudais de produção, em inentem ente pessoais, e concretam ente orientadas e lim itadas pelas necessidades básicas e espontâ neas do autoconsum o local.37 A organização burocrática vem a ser o elem ento fundam ental que viabiliza os quatro outros elem entos essenciais de cuja conflu ên cia resulta a realidade material do Estado: o m onopólio do sistem a m onetário, o m onopólio do sistem a fiscal, o m onopólio da realização da ju stiça, a que se chega substituindo as jurisd ições autônom as e a título próprio que dom inavam o localism o m edievo, pela m oderna In stitu ição de "in stâ n c ia s" de um a grande unid ad e ju risd icio n a l cu jo v értice é o Estado e que age através de agentes do Poder Sobe rano e finalm ente o exército nacional.38 37 Cfe. Tavares, Jo sé A ntonio Ciusti. /* estrutura do uutoritarism o brasileiro. Porto A legre, M ercado Aberto, 1982. p. 55 e 56. 38 Idcm , ibidem. 44
Lenio Luiz Streck José Luis Bolzan dc Morais
2.4. A p rim e ir a v e rsão do Estado M o d e r n o ; o tÍHt.ido ab so lu tista
C om o prim eira expressão do Estado M oderno, vam os observar >111<‘ a estratégia de construção da nova forma estatal, alicerçada na Idéia de soberania, vai levar à concentração de todos os poderes nas i i i . I o s dos m onarcas, o que vai originar as cham adas m onarquias ab nolulialas, fazendo com que, com o sustenta Duguit, a realeza que está nas origens do Estado M oderno associe as concepções latina e feudal de autoridade - im perium e senhoriagem - perm itindo-se personificar 0 listado na figura do rei, ficando na história a frase de Luiz XIV, o Kci Sol: L ‘Étal c'est moi - O Estado sou eu. Com isso, as m onarquias absolutistas se apropriaram dos Esta dos do m esm o m odo que o proprietário faz do objeto a sua proprie ilnde, fazendo surgir um poder de im perium com o d ireito absoluto do rei sobre o Estado. Por outro lado, com lal postura, os reis con s tituíram -se com o senhores dos Estados, tal qual o faziam os senhores feudais do m edievo, titularizando individualm ente a propriedade tio Estado. la l estratégia absolutista serviu fundam entalm ente para, na passagem do m odelo feudal para o m oderno, assegurar a unidade territorial dos reinos, sustentando um dos elem entos fundam entais da forma estatal m oderna: o território. A base de sustentação do poder m onárquico absolutista estava alicerçada na idéia de que o poder dos reis tinha origem divina. C) rei seria o “represen tante" de D eus na Terra, o que lhe perm itia d esvincular-se de qualquer vínculo lim itativo de sua autoridade. 1 )i/.ia Bodin, um de seus doutrinadores, que a soberaiiia do m onarca era perpétua, originária e irresponsável em face de qualquer outro poder terreno. Portanto, pode-se dizer que o Estado absolu tista, de um ponto de vista descritivo, seria aquela forma de governo em que o detentor do poder exerce este últim o sem dependência ou con trole de outros poderes, superiores ou inferiores, com o refere Pierangelo Schiera.M D eve-se, todavia, ter claro que o absolutism o não se confunde com a tirania, posto que sua ilim itação diz com uma autonom ia em face de qualquer lim ite externo, mas gerando lim ites internos com relação a valores e crenças da época. Da m esm a form a, o absolutism o que finda convencionalm ente com a Revolução Francesa de 1789, apesar das diferanças tem porais que podem ser observadas nas d i w Ver o verbete A bsolutism o. In Bobbio, Norberto et alt. D icionário de Política. Bra sília: UnU. 1986, p. 1 a 7. i. iência P olítica e Teoria do Estado
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versas experiências estatais de então - difere do despotismo, o qual, ao seu inverso, encontra nos elementos mágicos, sagredos e religio sos sua legitimação.'10 Im porta referir, fundamentalmente, que a passagem da forma estatal medieval para o Estado Ábsolutista representou um avanço para as relações sociais e de poder. Com efeito, o Estado Moderno nessa sua versão inicial absolutista - calca-se, como bem assinala Max Weber, na burocracia e no exército. Isso significa dizer que o m odelo de dominação carismática soçobra diante do modelo de do minação legal-racional. E o poder do exército será funcam ental para a manutenção do cerne da estrutura do Estado Moderno: a soberania territorial. Ou seja, o homem do medievo passa de servo da gleba, praticamente propriedade do senhor feudal, para súdito do Rei. F a relação de poder passa de ex parle príncipe para ex parte principio.
2.5. A visão n egativa sobre o Estado
A contrario sensu, uma vez que o modelo contratualista via po sitivamente o Estado, surge a tradição socialista - de base marxista, fundamentalmente - que se apoia em uma versão negativa do Estado desde uma perspectiva que considera a hegemonia e a submissão no contexto de uma sociedade de classes. No livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado,41 Engels diz que a síntese da sociedade civilizada é o Es:ado, que, em todas as épocas conhecidas, tem sido o Fstado da classe preponde rante e essencialmente, em todos os casos, a máquina d-? opressão da classe explorada. M arx e Engels reconhecem ao Estado, pois, somen te um fim: n opressão de uma classe por outra. O pensamento marxista é uma das mais vigorosas reações às doutrinas clássicas da teleologia estatal. Leva, pois,
Len io I.uiz Streck José Lu is Bolzan d e Morais
tmln é produto da sociedade ao chegar a ume determ inada fase de desenvolvim ento; é a confissão de que esta sociedade se há enredado consigo mesma numa contradição insolúvel, se há dividido em an tagonism os irreconciliáveis, perante os quais se mostra im potente pnrn conjurar. E a fim de que com estes antagonism os, estas classes com interesses econôm icos em com bate não se devorem m utuam en te, bem com o à sociedade numa luta estéril, se faz m ister um Poder, colocado aparentem ente acima da sociedade, CL>m a m issão de am or tecer o conflito e m antê-lo dentro dos lim ites da ordem. Este Poder, que brotou da sociedade, mas que se colocou por sobre ela e da qual cada vez mais se divorcia, é o Estado.42 Em síntese, a teoria m arxista prevê o desaparecim ento do Esta do - por isso a sua visão negativa. A finai, se o Estado é instrum ento para proteger os interesses da classe dom inante43 e em não havendo mais classes sociais após a revolução proletária, não há mais razão para a existência de um aparato como o Estadn, que, em uma socie dade harm onizada, extinguir-se-á naturalm ente. Como diz Ernest M andei:44 "E ste facto tem que ser sublinhado: enquanto existir o listado, será ele a prova de que há conflitos sociais, (portanto, uma relativa escassez de bens e serviços). Desaparecendo os conflitos sociais, desaparecerão os cães-de-guarda, por inúteis e parasitas, mas nunca antes disso". 1,2 Cfe. Engels, op. cit. tb. Donavides, op. cit., p. 52 e sega. N com arxistas como Poulantzas e Cram sci não aceitam a idéia d o Estado como mero instrum ento a serviço das classes detentoras do pnder. Recuperam , assim, a perspectiva política da teoria marxLsta. Desse m odo, para cies, mesmo sendo o núcleo do "b lo co de poder" e representando os interesses politicam ente hegem ôni cos das classes dom inantes, o Hstado, como agente organizador e unificador, goza de "autonom ia relativa" diante das frações dom inantes de um a sociedade dividida em classes. Desta form a, ainda que as frações hegem ônicas controlem e atuem ntravés do aparato estatal, jam ais o podem possuir integralmente. A questão central está no fato de que o Fstado nem c um instrumento total de um a classe, nem é uma "p o tên cia" capaz de controlar diferentes frações, eqüidisLanLemente de todas ela«. Claro está que para Poulantzas não há que atribuir demasiada im portância à partii ipaçâo d ireta da classe dom inante no aparelho do Fstado - nos níveis do governo, da adm inistração, da m agistratura e da política. TrabalVando e superando as cate gorias althusserianas, Poulantzas concebe o Estado nâo apenas com o atuação nega* tiva configurada no exercício da violência física legítima através dos aparelhos repressivos, mas também na articulação positiva do "consenso", através dos apare lhos ideológicos, m antendo, assim , a coesão da formulação social e a reprodução das relações sociais. Ver, para tanto; Poulantzas, Nicos. Poder político c. C.lusses sociais. São Paulo, M artins Fontes, 1977; idern, O Estndo em cri*cr. Rio de Janeiro, C raal, 1977; Gruppi, op, cit.; em especial, W olkm er, Antonio Carlos. Elementos para uma critica do Estado. Porto AlegTe, Fabris, p. 33 e 34. 44 Cfe. Mandei, F.rnest. Teoria Marxista do Estudo. Lisboa, Editora Antídoto, 1977, p. 29. Ciência Política e 1'eoria do Lstado
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É possível afirm ar, dessarte, com G ruppi, que nâo existi* nina teoria m arxista orgânica do Estado. Tem os uma primeira tese que perm ite construir essa teoria: a descoberta da natureza de classe do Estado, isto é, dc que o Estado nasce da luta de classes. Nesse sen ti do, Lucio Colletti afirma que procurar em Marx uma teoria do Esta do é um erro, pois o marxism o é a teoria da extinção do Estado, é a teoria do com unism o, isto é, da sociedade sem Estado; Marx não poderia elaborar uma teoria do Estado, pois sua teoria é a da extin ção do Estado. Entretanto, Gruppi não concorda inteiram ente com essa assertiva, isto porque o próprio Marx respondeu a essa questão, afirm ando justam ente que, para o trânsito do Estado burguês à so ciedade sem Hstado, é necessário um poder estatal, o qual entretanto não é m ais um poder estatal no verdadeiro sentido da palavra (já com eça a extinção do Estado), mas ainda é um Estado, bm Marx temos a análise do P.stado burguês porque, para derrubar o Estado burguês c construir uma sociedade sem Estado é preciso prim eiro conhecê-lo. M arx elaborou os fundamentos de um verdadeiro conhe cim ento do Estado burguês em sua obra O Capital. Ali está a chave, conclui.45 Im portante notar que a teoria negativa (não orgânica, segundo Gruppi) do Estado assentava-se sobre três elem entos do marxismo clássico que se apoiavam m utuam ente: m arxism o como em ancipação de classe identificava as doenças no m undo existente; marxism o como análise de elasse providenciava a diagnose de suas causas; e m arxism o com o solução científica identificava sua cura. Após a que da do muro de Berlim (1989), agudiza-se a crise do m arxism o. Como bem asseveram W right, Levine e Sober, a expressão "crise do m ar xism o" designa hoje duas realidades diferentes: a crise política, eco nôm ica e ideológica dos países e partidos políticos que adotaram o m arxism o com o uma ideologia oficial; e a crise dentro da tradição intelectual do marxismo. A prim eira dessas crises tem suas raízes na estagnação e no declínio das socied ad es au toritárias dc socialism o d c Estado. A segu nd a, porém , não proveio da estagn ação do m arxism o com o tradição teórica, mas acom panhou um período de considerável vita lidade, abertura para novas idéias e progresso técnico dentro das três dim ensões da tradição marxista - análise de classe, socialism o cien tífico e em ancipação das classes. A análise de classe registrou suces sos, m as a idéia de que a ciência social, em geral, deva resum ir-se à análise de classe não mais parece ser plausível. 4S C fe. C r u p p i, o p cit., p . 45 e '16.
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() m arxism o clássico ora um em preendim ento am bicioso, pois aspirava, prim eiram ente, à unidade entre teoria e prática, onde n teoria deveria guiar a prática, e a prática transform ar a teoria dialetlcamente, Pretendia ainda construir um esquema conceitual abran gente, apto para a análise dos fenôm enos sociais. Nesse sentido, aduzem os autores que um retrocesso às aspirações m arxistas ante riores já náo (• mais possível. O mundo mudou, e essas form as pas sadas náo podem mais ser recuperadas. A fragm entação da antiga Iríado unitária da teoria marxista certam ente esvazia seu apelo ideo lógico. Esses três com ponentes da antiga tríade m arxista floresce ram, contudo, no referente a muitos aspectos, na medida em que sua iuterconexão ia enfraquecendo. Por isso, concluem , "vem os com oti mismo que um marxismo reconstruído, em bora m enos integrado, é possível, e o que c hoje sentido com o uma crise será visto com o uma condição dolorosa, mas inevitável, de crescim ento".'16 Enfim , com o assevera Perry Anderson,47 m encionar os limites e os problem as do m arxism o não significa deixar dc render as devidas hom enagens aos seus maiores pensadores. Seria absurdo imaginar que Marx ou Lenin ou Trotsky poderiam ter resolvido com sucesso todos os principais problemas de suas épocas - quanto mais aqueles surgidos posteriorm ente. O fato de M arx nâo ter decifrado o enigma do nacionalism o, de I .enin não ter percebido o poder da dem ocracia burguesa, bem como de Trotsky não ler previsto revoluções sem sovietes, nâo deve causar surpresa nem ser censurado. A grandeza de suas realizações não pode ser ofuscada por qual quer lista de suas om issões ou erros. Na verdade, por a tradição que representam ter sem pre se concentrado na econom ia e na política ao contrário do m arxism o ocidental, com sua orientação prim ordial mente filosófica - os mesmos temas ressurgem em nossos dias pra ticamente como problem as universais perante qualquer militante socialista. A esta altura, já vimos quão num erosos e persistentes são esses problem as. Qual é a natureza constitutiva da dem ocracia burguesa? Q ual é a função e o futuro da nação-Eslado? Qual é o verdadeiro caráter do im perialism o como sistema? Qual é o significado histórico de um Estado operário sem democracia operária? Como alcançar uma revolução socialista nos países capitalistas avançados? Como 'u' C ie, W ritiit, Erik Oliii; Levine, Andre e Sober, Ellioll. Reconstruindo o marxismo Hnsaios sobre a explicação e teoria da história. lJctrópolis, Vozes, 1993, p. 330 e segs. ’17 Cie. Anderson, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. SSo Paulo, Brasiliense, 1999, p. 16:5 e 166. Cicncia Política c Teoria do Estado
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tornar o internacionalismo unia prática genuína, t» nAo meramente um piedoso ideal? Como evitar que se repita em países que se liber taram do colonialismo o destino de revoluções anteriores levadas a cabo em países em condições equivalentes? Com o atacar e abolir sistemas estabelecidos de privilégio e opressão burocráticos? Qual seria a estrutura de uma autêntica democracia socialista? São estas, finaliza Anderson, as grandes questões não respondidas que enca beçam a agenda de prioridades da teoria marxista hoje.
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3. A segunda versão do Estado M oderno: o modelo liberal e o triunfo da burguesia 3.1. Considerações gerais tl exatam ente o contratualista Rousseau - já apresentado aci ma - quem exercerá grande influência nos revolucionários franceses que inauguraram , em 1789, uma nova fase do Estado M oderno.48 ( om efeito, enquanto instituição centralizada, o Estado, em sua pri meira versão - absolutista foi fundamental para os propósitos da burguesia no nascedouro do capitalism o, quando esta, por razões econôm icas, "abriu m ão" do poder político, delegando-o ao sobera no, concretizando-se mutatis mutandis, aquilo que H obbes sustentou
no Leviatã. Na virada do século XVIII, entretanto, essa mesma classe não mais se contentava em ter o poder econôm ico; queria, sim , agora, lom ar para si o poder político, até então privilégio da aristocracia, legitim ando-a com o poder legal-racional, sustentado em uma estru tura norm ativa a partir de uma "C o n stitu ição "- no sentido moderno do term o - como expressão jurídica do acordo político fundante do Kstado. A liás, náo foi menos que isso - a exigência da convocação ** t.em bra B ona vides que, quando se dá a Revolu-ção, a doutrina do estado liberaldemocrático surge completa com a obra de Locke e Monlesquieu e a contribuição parcial de Rousseau. Chegamos, assim, a um período das idéias políticas em que todos os princípios liberais-democráticos haviam sido exaustivam ente exposto», discutidos e em larga cscala aceitos pela consciência do século, consolidando-se como fórm ula disruptiva da experiência anterior. M as entre a form ulação e a aliciaçáo doutrinária das idéias, de uma parte, e a passagem para os fatos, a concretização na realidade política daquele mesmo século, doutra parte, medeia enorm e distância. A revolução francesa m esma, aduz o autor, ao querer adotax as teses dc Rousseau para ser coerente ao máximo com as linhas do pensam ento democrático, frustrou-se por com pleto, li frustrou-se precisamente quando se toma em consideração que n Constituição de 1893, elaborada pela Convenção n o auge do processo revolucioná rio, perm aneceu inaplicada. Era o texto que mais fielm ente se propunha a pôr em prática algum as teses fundamentais do pensam ento rousscauniano da "vontade ►*eral". Cfe. Bona vides, op. cit., p. 52 c 53. Ciência Política e 1’eoria do listado
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d e u m a assem b léia con stitu inte - que A b ad e S ieyès e seu s co m p a n heiros le v a ra m ao Rei L u is XV I um ano antes-dai R e v o lu çã o . C o m o b em lem b ra Bonavides, a m onarquia, ab so lu tista não foi jam ais a b u rg u e sia politicam ente no p od er. A co n tra d iç ã o en feixada p elo p o d e r m o n árq u ico absoluto no seu co m p o rta m e n to p eran te as classes so ciais co n d u z p o r vezes àquele eq u ív oco d e in terp retação . A m o n arq u ia fav o receu consideravelm ente o s in teresses d a b u rg u e sia n ascen te, m o rm en te n a área econôm ica. Já lhe era im possível rep resá-lo s. A m on arq uia absoluta, já sem m eios d e q u alq u er ação im p ed itiv a à exp an são capitalista da p rim eira id ad e d o E sta d o M o d ern o, p a ss a a estim u lá-la com a adoção d e p o líticas m ercan tilistas, p olítica d e reis seq u iosos de fundos co m que m a n te r a b u ro cra cia e o s exército s p erm an en tes, política da qual a a risto cra cia tira v a tam b ém sua fatia d e p articip ação ociosa, m as so b re tu d o p o lítica , v e rd a d eira, p ro fu n d a , n ecessária, dos interesses a rra ig a d o s d a s classes m ercan til e in d u strial.49 P o r o u tro lad o , é em Locke que v em os a co n stitu içã o inau gu ral d o perfil d o lib eralism o político su sten tan d o a n e ce ssid a d e d a lim i ta çã o d o p o d e r e d as funções do Estado, já p re se n te s em su a obra, co m o v e re m o s a sergu ir. A m o n arq u ia absoluta n ão dispunha d e o u tro re m é d io senão e x e rcita r a p o lítica que lhe m antivesse no p o d e r, u m a v e z que qual q u er v a cila ç ã o p o d eria ser fatal. Aí av u lta tod a a co n tra d içã o : a superestrutura política do feudalismo abrindo à infra-estrutura econômica da burguesia caminhos que lhe eram fatais, o a b so lu tism o real a p a re lhand o en fim a crise revolucionária que te ria co m o co ro lá rio sua p ró p ria d e stru içã o .50 O p a lc o ideal p ara o d esen cadeam ento d esse p ro ce ss o d e co n trad içõ es foi a F ra n ça . Relem brem os que - na F ra n ça p ré -re v o lu cio n ária - o cle ro e a n ob reza não pagavam q u alq u er tipo d e im p ostos. P o r d u as v e z e s o Rei - n a prim eira em 1 7 7 4 , a ssistid o p o r T u rgou (eco n o m ista e F iscal-G eral do Reino) e n a se g u n d a e m 1 7 8 7 , assistid o p o r N eck er (b an q u eiro e Fiscal-G eral) - p ro p ô s, co n v o ca n d o os n o táveis, su p rim ir p rivilég ios e obrigar o cle ro e a n o b re z a a p a g a r im p o sto s. E m am b as as ocasiões os m in istro s fo ra m fo rça d o s à re n ú n cia, e o C o n selh o d os N otáveis, insu b m isso, in sistin d o em m an ter p riv ilég io s e resistin d o ao g ravam e trib u tário , d isso lv id o . Estes m in istro s, e n tre ta n to , em b ora n ão tenham co n se g u id o a c a b a r co m os p riv ilég io s, p re cip ita ra m a em ergência d e fo rça s so cia is a té então co n tid as, in cen tiv an d o u m a política de lib eração d o co m é rcio de 49 Cfe. Bonavides, Teoria do Estado, op. rit., p. 69 e 70. 50 Idem, ibidem, p. 70.
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cereais, abolição d o trabalh o gratu ito dos cam poneses na co n stru ção de estradas, supressão d o s grêm ios corporativos e a em an cip ação das fazendas reais. A com binação d as d em and as das novas forças so ciais-p op u lares com as exigências da b u rguesia enriquecida pelas ativid ad es c o m e r ciais nas cidades forn eceu o caldo de cultura para os aco n tecim en to s que viriam a seguir. C om efeito, em 1788, o Rei, com o a ltern ativ a viável para su perar a crise social e institucional, co n co rd ou , em 8 de agosto, na co n vo cação novam en te dos Estados G erais que não se reuniam desde 1614.51 Até então, as v o taçõ es dos Estados Gerais eram feitas p o r o r dem , e não por cabeça. O A b ad e Sieyès, que mais tard e p ro p o ria que os Estados Gerais se tran sform assem em Assembléia C on stitu in te, denunciava que duzentos mil privilegiados franceses eram representados pelas duas ordens (nobreza e clero), contra o Terceiro Estado, que repre sentava de vinte e cinco a vinte e seis milhões de pessoas. E m 2 7 de dezem bro, o Rei au to riza a du p licação do núm ero de rep resen tan tes do Terceiro Estado, nos E stad os G erais, convocados p ara o dia I o de maio de 1789. A b u rgu esia obtém , desse m odo, o dob ro d os re p re sentantes, isto é, 600 m em b ro s co n tra 300 da nobreza e 300 do cle ro .52 Os Estados Gerais são instalados em 5 de maio de 1789, rep o n d o no quadro da con turbada ação política, ao lado do clero e da n ob reza, 51 Os Estados Gerais não eram propriamente um parlamento, mas, em tese, um Conselho Consultivo do rei. Nesse Conselho assentavam-se desproporcionalmente procuradores do clero, dos nobres e da classe laboriosa - os homens das cidades, os comerciantes enriquecidos, os fabricantes da indústria incipiente e do campesinato - que politicamente eram denominados de Terceiro Estado. De observar que, na França, o fortalecimento do poder central se processou a partir do século XIII, quando o rei capeto Felipe II promoveu uma importante reforma judiciária, que debilitou as atribuições judiciais dos senhores feudais e fortaleceu o poder real, obtendo o apoio de cavaleiros menores, do ciero paroquial e dos camponeses. Anos depois, Felipe IV, o Belo, no ano de 1302, criou os Estados Gerais. Convocados pouquíssimas vezes, os Estados Gerais perderam sua importância, inclusive o poder de autoconvocar-se (grande ordenação), adquirido no início da guerra dos cem anos. Luis XI (1461/1483), conhecido como aranha universal, sucedeu a Carlos VII, enfra quecido em guerras com os senhores feudais, especialmente com Carlos, o Temerá rio (Duque de Borgonha) que, finalmente, vencido, perdeu os seus domínios. Essa vitória sobre o Duque de Borgonha caracteriza o início da formação do estado Nacional francês. Cfe. Bastos, Aurélio Wander. Para a compreensão de Sieyès: notas e fragmentos sobre a história da França feudal. In: Sieyès, Emmanuel Joseph. A Cons tituinte Burguesa: Quést-ce que le Tiers État? Rio de Janeiro, Liber Juris, 1986, p. 9 e segs.; tb Introdução, op; d t , p. 34 e segs. “ 52 As eleições se realizaram üa seguinte maneira: um grupo de cidadãos votava nos eleitores e estes nos deputados procuradores, sendo que somente poderiam ser eleitos os contribuintes de impostos com domicílio fixo. C iência P olítica e Teoria d o Estado
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u m T erceiro E stado reforçad o e p ren h e d e re iv in d ica çõ e s, q u e se p o d iam v e r nos C adernos d e Q u eixas elab o rad o s p e la s assem bléias d e eleitores. O s n otáveis (clero e n ob reza) q u eriam se ssõ e s se p a ra d a s e as v o taçõ es por Estado, o que lhes a sse g u ra v a se m p re d o is votos; já o T erceiro E stad o, con form e p re co n iz a v a S ieyès, p re te n d ia sessões conju ntas e v o tação nom inal, p or cab eça, o que lhes g a ra n tiria a m etad e dos v otos sem co n tar as p resu m ív eis a d e sõ e s.53 Esse im passe e as d ificu ld ad es p ara su p e rá -lo p ro v o ca ra m a d e sag reg ação d os Estados G erais e co n seq ü en tem en te a e clo são dos fato s revolucion ários que se segu iram . A p a rtir de 12 de junho d e 1789, a m p lia ra m -se a s ad esõ es à p ro p o sição d e reunirem -se os três estad os co n ju n tam en te: inicial m en te os sacerd otes p aro q u iais e, d ep ois, q u ase to d o s o s rep re sen tan tes do clero. Já em 17 d e jun h o, p or p ro p o sta d o A b ad e Sieyès, o T erceiro E stad o se d eclarou em A ssem b léia N a cio n a l. O Rei d eter m in o u que os d ep u tad os se reu n issem p o r esta d o e su sp en d essem as reuniões. R epresentantes do clero e da n ob reza a d e rira m ao Ter ce iro E stad o. E m 9 de julho, a A ssem bléia N a cio n a l, co n stran g id a p elo im p acto da insurreição p o p u la r, d ecla ro u -se A ssem b léia C on s tituin te, p ara, dias depois, o co rre r a queda d a B a stilh a ...54 C om a R evolução F ran cesa, a b u rgu esia in a u g u ra se u p od er p olítico co m o classe: "acab a v a ela de su p rim ir a c o n tra d iç ã o com o p assad o . Q u an d o porém a p ro p a g a n d a jacobin a alicia v a ad ep tos p a ra as teses d e R ousseau, e a C on v en ção e la b o ra v a a C o n stitu ição in ap licad a d e 1793, quando Babouef caía m o rib u n d o ao s p és do cad afalso , p ag an d o co m a v id a a p rim eira co n sp ira çã o so cia lista dos n o v o s tem p os, o Terceiro E sta d o , ca stig a d o iro n ica m e n te p ela H is tó ria , via ab rir-se-lhe aos olhos a co n tra d içã o do fu tu ro : a co n tra d i ç ã o b u rg u esia-o p erariad o , aq u ela que n a seq ü ên cia d o conflito id eo lóg ico lhe h averia de ser fatal à co n se rv a çã o in ta c ta d o s p rivilé g io s eco n ôm icos ad q u irid os",55 p re m in d o , em ce rta m e d id a , d o s em b ates fu tu ros que co n d u ziriam à ru p tu ra "d e s ta " o r d e m e / o u as tran sfo rm açõ es intestinas ru m o ao m o d elo d e E sta d o S ocial que em erg irá tem p o s d epois, co m o v e re m o s ad ian te. 53 Consultar Aurélio Wander Bastos, introdução, op. cit., p. 56 e segs. 54 Idem, ibidem. 55 Cfe. Bonavides, op. cit., p. 74, que acrescenta o dizer de Marx m Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, no sentido de que a revolução de 1789 foi o triunfo do Terceiro Estado, "da grande massa da Nação empenhada na produção e no comércio, sobre o clero, a nobreza e as classes sociais, até então privilegiadas. Mas a vitória do terceiro estado logo se desmascarou como vitória exclusiva de uma pequena parte desse estado, como conquista do poder político através da camada socialmente privilegiada, a burguesia proprietária".
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3.2.. O co n tra tu a lism o e o Estado lib e ra l-b u rg u ê s C om o se viu , a doutrina do contrato social to m o u -se um im p o r tante com p onente teórico para os revolucionários de en tão . A reivin dicação d e um a Constituição embasava-se exatam ente n a tese d e que o con trato social encontra sua explicitação na C on stitu ição .56 O con tratu alism o tem no seu cerne a idéia de indivíduo, seja em Hobbes, seja em Locke, particularmente. O consentim ento era dado pelo indivíduo, sendo que o último aprofunda-o, to m a n d o -o p erió dico e con d icion al, moldando uma política de con fian ça, coeren te com suas invocações anteriores. A ssim , o "contratualism o de Locke representou a a p o teo se do direito natural no sentimento individualista m oderno (...) os d ireitos pessoais p ro v ém da natureza, com o dádiva de D eus, e estã o longe de d issolver-se no pacto social (...) Entronizando o d ireito d e re sis tência, ele am pliou o princípio individualista de v o n ta d e e co n sen tim ento. E consentim ento, em lugar de trad ição, é a p rincipal característica de legitim idade em política liberal".57 Dessa form a, pensam os poder situar o liberalism o co m o um a doutrina que foi-se forjando nas marchas e co n tram arch as co n tra o absolutism o onde se situa o crescimento do individualism o que se form ula d esd e os em bates pela liberdade de consciência (religiosa). Todavia, isso av an ça na doutrina dos direitos e do co n stitu cio n alism o, este co m o garan tia(s) contra o poder arbitrário, da m esm a form a que contra o exercício arbitrário do poder legal. Em um pequeno traço histórico, seguindo M erq u ior, p o d em o s referir que o term o liberal como identificação política e m e rg e na prim eira d écad a do séc. XIX em Espanha, no m om ento em que as C ortes lutavam co n tra o absolutismo, embora sua origem rem o n te à luta política travad a na Inglaterra (Revolução G loriosa - final do século XVII), onde se buscava tolerância religiosa e g o v e rn o co n sti tucional. N o interregno tem poral dos anos 1800, liberal era u m a estru tu ra institucional com funcionamento garantido, sejam P a rla m e n to s, se 56 É evidente que o ideário liberal não surge com a formulação inglesa de Locke e tampouco com a Revolução Francesa. A vertente de tal pensamento é mais antiga, podendo ser pensada a partir da "reivindicação de direitos - religiosos, poiíticos e econômicos - e a tentativa de controlar o poder político. Neste quadro referencial a tolerância religiosa se insere angularmente na teoria liberal". Ao lado, a reformula ção da teoria do direito natural, o modelo contratualista cimenta uma "explicação individualista da sociedade". Ver: Merquior, JoSè Guilherme. O Liberalismo: antigo e moderno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1991. 57 Merquior, Op. cit., p. 45. Sobre liberalismo, consultar também Santos, Francisco de Araújo. O Liberalismo. Porto Alegre, Editora da Universidade, 1991. C iên cia P olítica e Teoria d o E stad o
jam "n o v as" lib erd ades. É p or isso que o liberalism o, p o r largo te m p o, se associa à idéia de "p o d e r m onárquico lim itado e num bom grau de lib erd ad e civil e relig io sa ",58 o que gerou u m a com p reen são protoliberal d e estad o m ínim o, atuan d o apen as p ara g aran tir a p az e a segu ran ça. O que se p o d e d iv isar d este esboço é q u e o liberalism o signifi cou uma lim itação d a au to rid ad e, bem com o u m a d ivisão da au to ri dad e, sendo que o g o v ern o p o p u lar se form ula a p a rtir do sufrágio e da rep resentação restritos a cid ad ãos prósperos, em bora esta situação tenha se tran sform ad o já em fins do séc. XIX, quando a representação e o sufrágio se u n iv ersalizam (prim eiro co m o v oto m ascu lin o inde pendente de ren d a). C om isto há a con solid ação das con q u istas libe rais, tais co m o : lib erd ad es, d ireitos hu m an os, o rd em legal, govern o rep resen tativ o, legitim ação d a m obilidade social, etc.
3.2.2. Definições de liberalismo Definir liberalism o é tarefa d as m ais co m p lexas. O d evir h istó rico da d o u trin a liberal apresen ta co n stan tes tran sfo rm ações pela in corp o ração d e novas situ ações, o que nos co n d u z a falar em liberalism os, no p lu ral, p osto que sob a m esm a ro u p a g e m estão co n teú dos v ariad o s. C o n tu d o , há um qu ad ro referen cial u n ív oco que caracteriza o m o v im en to liberal: a idéia de lim ites. Por isso, Bobbio irá d izer que "...o liberalism o é um a d ou trin a d o E stad o lim itad o tanto co m respeito aos seu s p od eres quanto às su as fu n çõ e s".59 T o d avia, a tran sição que se verifica co m a in d u strialização, o p rogresso eco n ô m ico e a d em o cratização , em esp ecial n os fins do século XIX, refletem um a alteração substancial no m o d elo liberal de E stad o lim itad o (m ín im o), co m a in corp oração dos asp ecto s de "ju s tiça so cial", co m o v erem os adiante. N o p lan o d o s an teced en tes h istóricos do liberalism o, o w higuism o ocupa u m im p ortan te p ap el com o u m a esp écie de "a n ce stra l histórico d o lib eralism o " pois, sabe-se, com o bem lem bra M erq u ior, que "o p artid arism o W hig n asceu da afirm ação de d ireitos co n tra o p od er m o n árq u ico e tinha, p elo m enos, d ois objetivos: lib erd ad e religiosa e g o v e rn o co n stitu cio n al." É exa ta m e n te p o r isso que a busca de um a definição de libera lism o se apresenta^ co m o u m a em p reitad a de difícil so lu ção, a co m e 58 Idem, ibidem, p. 16. 59 Bobbio, Norberto. Liberalismo e Democracia. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 17. 56
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ç a r pelo fato de que é a- necessidade de fazer frente à cham ada "qu estão social" que faz com que o "É tat G endarm e" se transform e no Estado' Intervendonista do século XX. Ou seja, é a crise do libe ralism o, p or um lado, que vai g erar n ovas form as de exercício do p od er e de políticas públicas, m antendo intactas, em certa m edida, as postulações centrais do- pensam ento liberal de organ ização do p o d er e liberdades, com o aponta N. M atteu cri.60 A p ar disso, é possível elencarm os algum as definições possí veis, apenas visando a d ar a conhecer um estereótipo m ínim o. A s sim , para Bobbio, "o liberalismo é uma determ inada con cep ção de E stad o, na qual o Estado tem poderes e funções lim itadas, e com o tal se contrapõe tanto ao Estado absoluto quanto ao E stad o que hoje cham am os de social".61 Já, para Roy M acridis, o liberalismo é um a ética individualista p u ra e simples que se expressa, num prim eiro m om ento, em term os de direitos naturais e, posteriorm ente, num a psicologia que conside ra os interesses m ateriais e sua satisfação com o im p ortan tes na m o tivação do indivíduo.62 N a definição de M erquior, o liberalism o (a coisa senão o nome) surgiu na Inglaterra na luta política que culm i nou na Revolução Gloriosa de 1688 contra Jaim e II. Os objetivos dos vencedores da Revolução Gloriosa eram a tolerância religiosa e o governo constitucional, p rocu ran d o instituir tanto um a lim itação da au torid ade quanto uma divisão da autorid ade.63 No Século XIX, o liberalism o tom ou -se a doutrina da m onarquia lim itada e de um governo p opular igualm ente lim itado, já que o sufrágio e a representação eram restritos a cid ad ãos p rósp eros. Hoje em dia, o que a palavra liberal geralm ente significa na E u rop a conti nental e na Am érica Latina é algo de m uito diverso do que significa nos EU A . Desde o New Deal de Roosevelt, o liberalism o am ericano adquiriu, n as palavras de R ichard H ofstadter, "u m tom so cial-d em ocrático ". O liberalismo nos EU A ap roxim ou -se do liberal-socialism o um a preocupação igualitária que não chega ao au toritarism o estatal, m as que, no entanto, prega um a ação estatal m uito além da condição m ínim a, de vigia noturno, exaltada pelos velhos liberais,64 segundo M erquior, muito em bora os con trastes que se pod em estabelecer entre os diversos m odelos sociais-intervencionistas exp erim en tad os 60 Ver, deste autor Organización dei Poder y Libertad. Madrid: Trotta, 1998. 61 Bobbio, Op. d t, p. 7. 62 Cfe. Macridis, Roy. Ideologias Políticas Contemporâneas. Brasília: UnB, 1982. 63 Cfe. Merquior, op, cit., p. 16-20. 64 Idem, ibidem. C iên cia Política e T eo ria do Estado
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ao longo d o sécu lo X X na experiência o cid en tal, em p a rtic u la r na eu ropéia. P o rtan to , co m o visto, falar em liberalism o é d is co rre r so b re m ú l tip los. M as, d e tu d o isso pode-se co n ce n tra r a te n çã o à idéia de que lib eralism o id en tifica-se com a idéia de lim ite s /lib e rd a d e s e que tem co m o ato r p rin cip a l o indivíduo.
3.2.2. Os diversos núcleos do liberalismo P ara a v a n ç a rm o s nossos objetivos, a n te cip a d a m e n te p recisam o s fazer alg u m as distinções no interior do m o d e lo liberal, p o sto que o liberalism o é p lu ral tanto na con cep ção q u an to n o seu co n teú d o . N ão é possível id en tificarm o s, e.g., liberalism o co m d e m o cra cia , p osto q u e não sã o interd epend entes, ou liberalism o co m cap italism o (lib erism o), p o s to q u e é apenas um a p arte do tod o . H á , p o r ce rto , u m a p olítica lib eral, assim com o há um a eco n o m ia liberal, sen d o que aquela co n trib u iu em m uito tanto p ara a tra n sfo rm a çã o d e sta , e a últim a ten d e a co n tradizer as p retensões d a p rim e ira , so b retu d o q u an do o s co n te ú d o s político-jurídicos do lib eralism o são u n iv e rsa lizados. Com este objetivo, ap ropriam os a p ro p o sta a p re se n ta d a p or R oy M acrid is.65 N e ste esp ectro, é de significativa aju d a a d iv isão su scita d a pelo a u to r, vislu m b ran d o o liberalism o a p a rtir d e n ú cleo s d istin to s: m oral, p o lítico , econôm ico, sendo: a) N ú c le o M o ral Este n ú cle o con tém um a afirm ação d e v a lo re s e d ireitos b ásicos atrib uíveis à n a tu re z a do ser hum ano - lib erd ad e, d ig n id a d e , vid a q u e su b o rd in a tu d o o m ais à sua im p lem en tação . M u ito an tes do ad ven to d o C ristian ism o , desenvolveu-se a n o çã o de que o ser h u m a n o in d iv id u al tem qualidades e p oten cialid ad es in atas m e re ce d o ra s do m ais a lto respeito. Com um rasgo d e ra z ã o ou v o n ta d e d iv in a, to d o e ca d a in d ivíd u o deve ser respeitado e ter a lib erd ad e d e b u scar a s u a au to -re a liz a çã o . P od e-se p e rceb er no interior deste n ú cleo a o co rrê n cia d e lib er d ad es: p e ss o a is, consistentes nos direitos que g a ra n te m a p ro te çã o in d ivid u al co n tra o governo. O requisito b ásico é o d e que h om en s e m u lh eres v iv a m debaixo de leis gerais e a b stra ta s, p rev iam en te co n h ecid as. E m Locke observa-se: "L ib erd ad e te r u m a lei p e rm a n e n te, com u m a to d o s na sociedade e feita p elo p o d e r leg islativ o nela 65 Cfe. Macridis, Op. cit., passim.
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instituído". São as liberdades individuais de pensam ento, e x p re ssã o , crença etc.; civis, que indicam os canais e as áreas livres e p ositivas da atividade e d a participação humanas; sociais, que co rresp on d em ao que ch am am os de oportunidades de mobilidade social, sen d o que todos têm a possibilidade de alcançar uma posição na so cied ad e com patível com suas potencialidades. b) N úcleo P olítico Este núcleo poderia ser nominado como político-jurídico, pois se apresenta sob quatro categorias eminentemente jurídicas. A qui estão presentes os direitos políticos, relacionados à re p resen tação , tais com o: sufrágio, eleições, opção política etc. A p resen ta-se sob quatro aspectos: A - Consentimento individual: a teoria do consentim ento, em es pecial a de m atriz lockeana, é a fonte da au torid ad e política e dos p oderes de Estado. O status dava lugar ao CONTRATO. B - Representação: quem deve tom ar as decisões é a LEGISLATURA eleita pelo p ovo, restringida pela própria n atu reza d a co n venção que a estabeleceu originariamente. H á lim ites p ara a legislatura, e a representação era censitária - lig ad a à fo rtu na pessoal. Na am pliação da participação, os u tilitaristas tiveram papel positivo, embora temessem que, pelo m ajoritarism o, os m uitos (pobres) se utilizassem de su a força n u m érica p ara subjugar pelos seus interesses. P ara resolver estes riscos, a educação era fundamental para se forjar o auto interesse esclarecido idealizado por John S tu art Mill, onde se poderia valorar os objetos por suas q u alid ad es in trínsecas, e a contenção atual servisse para ganhos futuros. N este quad ro, é paradigm ática a atitude de J. S. Mill: co n tra grandes p artid os; a favor da propriedade e qualificação p or idad e; peso m aior aos eleitores educados; a favor de uma segu n d a câm ara representativa do m érito pessoal. C - Constitucionalismo: o estabelecimento de um d ocu m en to fun d am ental acerca dos limites do poder político é cru cial p ara a garantia dos direitos fundamentais dos ind ivíd u os, bem com o p a ra traçar os m arcos da atividade estatal, não só pela lim itação de seus poderes como também pela d iv isão de suas funções. A C onstituição escrita estatui lim itações e x p lí citas ao governo nacional e aos estados ind ivid u alm ente e institucionaliza a separação dos poderes de tal m an eira que um controla o outro (checks and balances dos am e rica n o s), e C iên cia P olítica e Teoria do E stado
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o Judiciário ap arece co m o salv agu ard a p a ra ev en tu ais ru p tu ras, em p articu lar a tra v é s do judicial review.66 D - Soberania popular: o ideal rou sseau n ian o d a p articip ação p o p u lar direta se ap resen ta co m o lim ite. H á u m a tensão co n s tan te entre a fo rm ação da "v o n ta d e g e ra l" e os riscos de sua ab so lu tização e a p a rticip a çã o a tra v é s d e rep resen tan tes eleitos. c) N ú cleo E co n ôm ico O m o d elo econ ôm ico d o liberalism o se relacion a com a idéia d o s d ireito s econ ôm icos e de p ro p ried ad e, ind ivid u alism o eco n ô m i c o o u sistem a de Uv-r ? em p resa ou cap italism o. Seus p ilares têm sido a p ro p rie d a d e privacia e um a eco n om ia de m ercad o livre de co n tro le s estatais. A ên fase é co locad a no ca rá te r volu n tário d as relações en tre os d iv e rso s fatores econ ôm icos. A liberdade de co n tra to é m ais v a lo ri z a d a d o que a liberd-.de da p alav ra. A essên cia do liberalism o está na tran sição d o status (relaçõ es • g ru p a is fixas) para o co n trato (au to d eterm in ação ind ivid u al). O p on to de en co n tro de v árias v o n tad es in d ivid u ais, onde são estab elecid as as relaçõ es co n tratu ais, é o m ercad o, que se a u to -o rg a n iz a co n stan tem en te, sendo sensível tanto à p ro cu ra p or p arte do co n su m id o r quanto inteiram en te ab erto, p erm itin d o a en trad a de n o v o s co m p etid o res e a saíd a dos que não tiv eram su cesso. A co m p e tiç ã o é o term ôm etro reg u lad o r. E n tre seus teóricos, p od e-se m en cionar A d am Sm ith - em seu A Riqueza das Nações - , p ara quem o que im p orta, acim a de tu d o , é d a r lib erd ad e à ação ind ividu al e lim itar o papel do E stad o à sim ples 66 Importante registrar, com Faria, José Eduardo. Direito e Globalização, op cit., p 6; Morris, Richard B. Witnesses at the criation, New York, Henry Holt, 1985; Poggi, Gianfranco. The úevelopmetit of lhe modem State. Londres, Hutchinson, 1978, que, surgidos das revoluções burguesas do século XVIII, como a inglesa (1688), a norteamericana (1766) e a francosa (1789), o constitucionalismo e a teorização jurídiconormativista que posteric mente lhe serviu de suporte ideológico, identificando ordenamento jurídico e Estado, ofereceram esses dispositivos formais consolidando a idéia de Estado democrático de Direito como um dos conceitos políticos funda mentais do mundo moderno. Trata-se de um Estado resultante de um determinado padrão histórico de relacionamento entre o sistema político e a sociedade civil, institucionalizado por meio de um ordenamento jurídico-constitucional desenvolvi do e consolidado em torno de um conceito de poder público em que se diferenciam a esfera pública e o setor privado, os atos de império e os atos de gestão, o sistema político-institucional e o sistema econômico, o plano político-partidário e o plano político-administrativo, os interesses individuais e o interesse coletivo. Contudo, devem-se relevar os aspectos fragilizadores do modelo Estado Constitucional, como será debatido no item 8.4 deste livro.
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m anu ten ção da ordem e segurança. Ele acreditava: que-a h arm onia social e econôm ica resultaria da livre concorrência e da interação de interesses e forças econômicas. A mão divina da providência (livre con corrên cia) traria ordem e riqueza aos interesses concorrentes. O utro d os formuladores liberais foi J. Bentham , com seu utilitarism o, onde qualquer objeto tem a sua utilidade, sendo esta um atributo subjetivamente dado, e o propósito da vid a é satisfazer o p razer e ev itar a dor - o que caracteriza o cálculo utilitário - tirando, cada um , o m aior proveito possível e im ediato que lhe estiver ao alcance. Para John Stuart Mill, o auto-interesse esclarecido perm itiria alguém recu sar um prazer imediato para aproveitar um outro ainda m aior m ais tard e, demonstrando esclarecim ento. A s concessões ap a recem co m o estratégia para evitar o risco de se perder tudo. Para ele há q u alidades intrínsecas em determ inados objetos, o que lhes atri buiria um v alo r próprio e diverso dos demais. Os utilitaristas e particu larm en te Mill, depositaram suas esperanças na ed u cação, e na sabedoria e autocontenção das classes m édias, sendo obrigação do E stad o d ar educação, cuja função seria esclarecer o auto-interesse em term os de valores e considerações coletivas, grupais, sociais e nacionais. A educação transform aria uma sociedade essencialm ente hedonista em um corpo de cidadãos conscientes de suas obrigações p ara com o g ru p o social.
3.2.3. O (não) Estado Liberal O liberalism o se apresentou com o uma teoria antiestado. O a s p ecto cen tral d e seus interesses era o indivíduo e suas iniciativas. A ativid ade estatal, quando se dá, recobre um espectro reduzido e p reviam en te reconhecido. Suas tarefas circunscrevem -se à m an u ten ção da o rd em e segurança, zelando que as disputas p orventura su r g id as sejam resolvidas pelo juízo im parcial sem recurso a força p rivad a, além de proteger as liberdades civis e a liberdade pessoal e assegu rar a liberdade econôm ica dos indivíduos exercitad a no âm bito do m ercad o capitalista. O papel do Estado é n egativo, no sentido da proteção dos indivíduos. Toda a intervenção do Estado que extrap ole estas tarefas é má, pois enfraquece a independência e a iniciativa individuais. Há uma dependência entre o crescim ento do Estado e o esp aço da(s) liberdade(s) individual(is). T od avia, o devir histórico dos liberalismos deixa d ú vid as quan to aos traços definitivos de tal separação. C iên cia P olítica e T eoria do E stad o
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E n tretan to , d ev e -se referir o surgim ento d os Novos o u (Neo)Liberais67 a p artir d e 1880 com a crença de que o an tigo m od elo indi vid u alista - à m o d a hobbesiana, com o inexistência de im p ed im en to - n ão se a d eq u av a à n ova realid ad e industrial. A lib erdade n egativa é rev ista. G reen, seg u n d o M erquior, aponta que "(...) os fins racio nais d a co n d u ta im p licam a com preensão d e que, q u an do falam os em lib erdade co m o algo de inestim ável, p en sam o s num p o d e r p osi tivo d e fazer co isa s m eritórias ou delas u sufruir. P o rta n to , a lib erd a d e é um co n ceito p o sitivo e substantivo, e não um con ceito form al e n e g a tiv o ".68 C om isso, a p ercep ção m inim alista do E sta d o , atu an te ap en as p ara a seg u ran ça in d ivid u al, é, senão desfeita, d eslocad a, p ois a su a fu n ção p assa a se r a de rem o ved o r de o bstácu los p ara o au to d e se n v olvim en to d o s h om en s pois, com um m aior n ú m ero de in d ivíd u os p od en d o u su fru ir d as m ais altas liberdades, estar-se-ia g aran tin d o efetivam ente o ce rn e liberal, qual seja: a lib erdade in d ivid u al, d a n d o-se v alo r n o v o e fun d am en tal à igu ald ad e d e o p o rtu n id a d e s e a um a ce rta o p ção solid ária. N esta trilh a, p o d e-se v islu m b rar o reflexo d este p e n sam en to na elab o ração d o E sta d o social b ritânico, feita p o r W illiam B ev erid g e, ond e objetiva-se o equilíbrio d a liberdade ind ivid u al com a se g u ra n ça social. 67 Outra vertente do pensamento liberal pode ser creditada aos democratas radicais, os quais aceitavam o núcleo moral do liberalismo, também o núcleo político, de perfil rousseauniano, mas apresentavam reservas fundamentais acerca do núcleo econômico. Eles questionavam o modelo do “laissez faire" do capitalismo proposto por Adam Smith e eram a favor da utilização do Estado de forma a corrigir alguns dos males e incertezas do mercado. Eles eram a favor de regulamentações amplas e de controles diretos ocasionais, mas não da socialização dos meios de produção. Na reconciliação entre democratas radicais e liberais, as funções do Estado são vistas não apenas como de apoio ou reguladoras e se tomam complementares às do setor privado. A questão dos 3 oitos, proposta pelos cartistas, é ilustrativa - 8 horas de trabalho, 8 horas de lazer e 8 horas de sono. Já para os socialistas democráticos os núcleos moral e político, expandidos, são aceitos, havendo uma convergência quanto às questões do econômico no sentido da atuação do Estado no domínio econômico, chegando à socialização, em alguns casos de alguns meios de produção. Políticas neste sentido se acentuaram no pós-Segunda Guerra Mundial, como na Inglaterra quando da ascensão do Partido Trabalhista em 1945, que se mantiveram com o Partido Conservador, assim como na França, após a desocupação em 1944, e na Itália com a queda do facismo mussoliniano. Sustentam, assim, um controle direto ou indireto da produção e da atividade eco nômica pelo Estado, em aspectos tais como investimento, renda, exportações, im portações, preços, crescimento econômico, etc. 68 Cfe. Merquior, op. cit., p. 153.
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Pode-se afirm ar, com N icola Matteucci, que "(...) o liberalism o lutara fundam entalm ente pelas liberdades de (isto é, de religião, de palavra, de imprensa, de reunião, de associação, de p articip ação no p od er político, de iniciativa econôm ica para o indivíduo), e co n se quentem ente reivindicara a não interferência p or p arte do E stad o e a garantia p ara estes direitos individuais, civis e políticos. O enfoque atual é orientado para as liberdades do ou da (isto é, da n ecessid ad e, do m edo, da ignorância), e para atingir estas finalidades im p lícitas na lógica universalista do liberalismo renunciou-se ao d o g m a da n ão intervenção do Estado na vida econôm ica e so cial".69
3.2.4. O início da transformação A passagem da fórmula liberal do Estado M ínimo p ara o E stad o Social, em sentido amplo, im portou na transform ação do perfil do m odelo adotado pelo liberalismo clássico, onde, co m o v isto acim a, à autoridade pública incum bia-se apenas, e tão-só, a m an u ten ção da p az e da segurança limitada que estava pelos im pedim entos p ró p rio s às liberdades negativas da época. A partir de m eados do século XIX percebe-se um a m u d an ça de rum os e de conteúdos no Estado Liberal, quando este p assa a a ssu mir tarefas positivas, prestações públicas, a serem asse g u ra d a s ao cidadão com o direitos peculiares à cidadania, ou a ag ir co m o ato r privilegiado do jogo socioeconôm ico. Com M acridis,70 podem os visualizar com clareza esta situ a çã o , no seguinte quadro referencial proposto pelo autor: Ordem e proteção État Gendarme - Estado M ínimo Laissez Faire Laisser Passez (lib erd ad e de)
A um enta a interferência
Welfare State (liberdade do ou da)
69 Bobbio, Norberto et aü. Dicionário de Política. Ver verbete Liberalismo, em parti cular, p. 702-3. 70 Cfe. Macridis. Op. cit. C iên cia Política e T eoria do Estado
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Na am pliação da atuação positiva do listado, tem os a dim inui ção no âm bito da atividade livre do indivíduo, ou seja, com o cres cim ento da intervenção, desaparece o m odelo de Estado m ínim o e abre-se o debate acerca de até que m om ento sobrevivem os ideais liberais diante de tal situação, bem com o até que ponto não é esta transform ação o m eio através do qual o próprio liberalism o estabe lece as cond ições suficientes para a sua continuidade, sobretudo observado desde o seu núcleo econôm ico forjado sob o liberism o e onde estão presentes os elem entos conform adores do capitalism o. N ovos liberais e neoliberais se debatem sobre ate onde o interven cionism o não altera até a transform ação com pleta o perfil que seria pecu liar às estratégias próprias do liberalism o.71 N o século XIX, os libeTais e os m ovim entos e partid os liberais m udaram a estrutura econôm ica, social e política da Europa e m odi ficaram drasticam ente a com unidade internacional. P ôs-se fim à es cravid ão, incapacid ad cs religiosas (tolerância), inau gu rou-se a liberdade de im prensa, discurso e associação, a educação foi am plia da; o sufrágio foi se estendendo até a sua universalização - muito em bora esta tenha se concretizado já no século XX C onstituições escritas foram elaboradas; o governo representativo consolidou-se com o m odelo de organização política; garantiu-se o livre com ércio e elim inaram -se as taxações até então im postas etc. É de observar, ainda, que o liberalism o teve um im pacto pTofundo na vida econôm ica, e a liberdade de m ovim ento se realiza. Lar e propriedade sc tornam invioláveis; elim inam -se taxações de m er cadorias para a facilitação do livre com ércio m undial. N o referente específico ao sufrágio, o seu alargam ento provoca uma conseqüência im ediata com a form ação de partidos p olíticos (de m assa), provocando uma m aior participação eleitoral - no sentido quantitativo - , bem com o reform ulando o conteúdo das dem andas p olíticas - na perspectiva, agora, qualitativa. Há uma suscetibilidade tanto de governos quanto de partidos às rcivindicações sociais que se expressam a partir da am pliação da participação político-eleitoral que passa a inclu ir os não possuidores de patrim ônio ou renda, os proletários/operários, na seqüência as m ulheres e aqueles com uma idade lim ite, a qual vem sendo reduzida historicam ente. As novas dem andas sociais implicam não apenas um reforço quantitativo na atuação estatal, m as tam bém requerem novas estra tégias de acão por parte dos entes políticos. A atividade prestacional pú blica sc aperfeiçoa, de início, a partir da luta dos m ovim entos 71 Aqui é im portante que recordem os o já dito anteriorm ente: o liberalism o não é singu lar, é plural.
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oppfrfrlos pelo regulação das relações produtivas. A luta pelos trPs oitos (oito horas de sono, oito horas de lazer e oito horas de trabalho) (* exem plar. Intervenções são assum idas para m anter os desam parados; o fi cin as públicas são m antidas para resolver o desem prego, legislação *1nobre o trabalho de m enores, regulação da jornada de trabaiho, leis Wcl.itivas ã segurança no trabalho, etc. Assim é que a liberdade contratual e econôm ica, sím bolos da doutrina econôm ica liberal - o liberism o - , é fortem ente reduzida pela participação do Estado como ator do jogo econôm ico, atuando no e sobre o dom ínio econôm ico, e, em um sentido m ais am plo, do |oj>o social com o um todo, participando das m ais variadas form as nas lutas, reivindicações e arranjos sociais com o ator privilegiado. lista atuação, todavia, não irá se lim itar à sim ples norm atiza1, 1) 0 /regulação das relações dc m ercado, m as irá se espraiar pela participação efetiva e positiva do poder público no âm bito da ativi dade cap italista, seja com o agente econôm ico, seja com o parceiro, ■teja com o concorrente etc. Da mesma forma, a atividade interventiva não ficará restrita ao âm bito financeiro, m as se alargará para os ■.etores m ais díspares do cotidiano, pondo cm relevo, não sem riscos r questionam entos, o caráter presencial da autoridade estatal. A partir disso, pode-se, prelim inarm ente, referir que o modelo liberal se consolidou e se expandiu no século XIX, m uito em bora os Infortúnios que atingiam os segm entos populares crescessem , assim com o, por outro lado, tam bém aum entassem os confrontos entre aquela que era considerada a classe hegem ônica - a burguesia - e as «am adas populares - o proletariado - em conseqüência, sobretudo, do seu próprio m odelo econôm ico, o capitalism o. No cam po das liberdades, já nas décadas finais do século XIX, um novo com ponente em erge, a justiça social, e reivindicações igua litárias transform am a sua face, dando início à construção do que ir<1 se tornar o Estado Social e suas diversas expressões ao longo do século XX e a consolidação das cham adas liberdades do ou da - as liberdades positivas.72 Em resum o, pode-se dizer que, ao longo do século XIX, os liber.iis e os m ovim entos e partidos liberais m udaram a estrutura ecoNo debate dos d ireilos hum anos esta nom enclatura já perde seu sentido inaugusobretudo se considerados sob a sua unidade conceitual, u m particular pel.i ilesdiferenciação e integração de suas diversas dim ensões. Sobre o tema ver: Bolzan ilr M orais, Jose Luis. .As Crises do Estado e da Constituição e a Transform ação Espacial ilos D ireitos H umanos. Col. Estado e Constituição, n. 1. Porto A legre: Livraria do Advogado. 20U2 e Sarlet, Ingo W. A Eficácia dos Dire.ilos fu n dam en tais. 3* ed. Porto Alegre: Lilvraria do Advogado. 2003. 1 .1 I,
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nôm ica, social e política da Europa, e m odificaram d rasticam en te a com u n id ad e internacional, qu ando, entâo, term inaram a cncravidAo e as incap acid ad es religiosas, garan tiu -se a tolerância, a liberdade de im prensa, de m anifestação e d e associação; a ed u cação foi estendida; o direito de voto am pliou-se - universalizou-se - a té as mulheres; elaborações constitucionais lim itando e responsabilizando os g ov er nos foram escritas. P or o u tro lado, na m edida em que o sufrágio se estendeu a novos setores sociais, os partid os políticos co m eçaram a surgir e se am pliar, buscando votos de m od o a gov ern ar na b ase do que ofere ciam co m o respostas ao eleitorado, tornando os govern os suscetíveis às solicitações populares. Da m esm a forma, as con trad ições do pró prio liberalism o econôm ico - liberism o - vão se exp ressar m ais ra dicalm ente, deixando à m ostra as insuficencias de su a s respostas, assim co m o o caráter excludente de seu form ato econôm ico - o ca pitalismo. Tudo isso, aqui sintetizado, irá im por um a m udança de rota no projeto do Hstado Mínimo no sentido da interven ção do poder público estatal em espaços até então próprios à iniciativa pri vada, d an d o início a um a nova fase do Estado Lib eral: a do interven cionism o estatatal com o resposta às dem andas sociais e às próprias fragilidades do projeto político-econôm ico liberal. O esp aço interventivo da ação estatal, de início, se expressa através d e leis de pobreza p ara m anter os d esam p arad o s; oficinas públicas p ara resolver o desem prego; legislação sobre o trabalho de m enores - jornada de trabalho (10 horas em 1846, na Inglaterra); leis trabalhistas relativas à segurança do trabalho, p ro p ag an d o-se m ovi m entos de autodeterm inação e independência. E m term os globais, o liberalismo do séc. XIX ap resen ta um re gistro im portan te em term os de surgim ento e de institucionalização de direitos civis, direitos políticos e liberdades econôm icas. Tam bém foi notável pelo crescim ento e o desenvolvim ento sem precedentes da tecnologia e da p rod u ção, apesar dos num erosos infortúnios que con tin u avam a afligir os trabalhadores. As econom ias se fortalece ram ; a popiilação m undial com eçou a crescer rapidam ente; com uni cações..., cid ad es; ...dinheiro... e n ovas p ráticas b an cárias facilitaram as trocas. N o fim do século, um fator n ovo foi injetado na filosofia-política liberal. E ra a justiça social, an tes referida, vista com o a necessidade de apoiar o s indivíduos - estes não m ais perceb id os com o seres isolados, m as agora com o com ponentes de d eterm inadas coletivida des, o que lhes d ava certas identidades próprias e exp ressava inte resses com u n s - de uma ou outra form a quando sua autoconfiança
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r iniciativa nfto podiam m ali dar-lhes proteção ou quando o m ercado nAn m ostrava n flexibilidade ou a sensibilidade que e ra suposto d em onstrar na satisfação de suas necessidades básicas. Um novo papírito de ajuda, cooperação e serviços m útuos com eçou a se desen volver, torn an d o-se m ais forte com o advento do século X X , quando nr inaugura a fase do Estado Social. Para a com p reen são destas transform ações, pode-se lançar mào de diversos au tores que, em bora suas variantes específicas, apontam para algu m as características e especificidades com uns, com o v ere mos a seguir, qu an do enfrentarm os a questão da tran sform ação do liberalismo e o surgim ento do Welfare State.
Ciência Política u Teoria do listad o
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4. O Welfare State e a transformaçao do liberalismo 4.1. C on sid erações gerais A idéia de intervenção, uma das características do W elfare State, não é uma novidade do século XX. Todavia, há uma distinção clara entre o papel interventivo contem porâneo - vinculad o à idéia de função social - e aquele - assistencial - antes realizado. E ntretanto, o Estado negativo - com um intervencionism o zero - nunca foi experim entado, pois, desde sua criação, a atividade es tatal sem pre se deu, em maior ou m enor escala, voltada para fins d istintos, porem algum grau de intervencionism o sem pre foi expe rim entado, até m esm o porque, em caso contrário, estaríam os diante da própria supressão do Estado com o ente artificial que deve res pond er às características postas pelo C ontrato Social. Com o sustenta Fernando Scaff,73 apenas por sua existência, o Estado, com sua ordem jurídica, im plica intervenção. N o modelo liberal, o que há, efetivam ente, é uma exclusão da atuação estatal interventiva com relação ao proccsso econôm ico com o ocorrera ao tem po dc D iocleciano com o tabelam ento dos preços ou com a regu lação m ercantil intentada pelo absolutism o, o qual fica im une à re gulação do ente público, sendo forjado pelos arranjos "n a tu ra is" do próprio m ercado capitalista. A pós a fase absolutista, o listado M oderno assunte, na tradição libera] dos anos 1700/1800, a visão do poder público percebido e apresentado com o inim igo da liberdade individual, uma vez que, para a burguesia enriquecida, a liberdade contratual era tida com o um d ireito natural dos indivíduos, p o is :... Cada hom em é o m elhor ju iz de seu interesse e deve ter a liberdade de prom ovê-los segundo a sua livre vontade. Já no século X I X ,... aceitava-se com o exceção a interferência do Estado nos assun tos em que. fo s s e predom inante o interesse individual, sendo raros os que não eram assim considerados ... A ssim , o ... Estado 73 Cfe. Scaff, Fernando. A Responsabilidade do Estado Intervencionista. São Paulo: Sa raiva. 1990, passim .
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Liberal resultante da ascensão política da burguesia, organizou-se de ma neira a ser o mais fraco possível, caracterizando-se como o Estado mínimo mi a l.stailo polícia, com funções reslritas quase que à mera vigilância da urdem social e à proteção contra ameaças externas.74 I >t\ssa form a, percebe-se que o grau zero de intervenção é ideal nunca alcançad o, pois sem pre houve políticas estatais de algum tipo dii, porque, com o se percebe, o Estado Liberal requer qualidades e pressupostos igualitários, além de uma com petição equilibrad a, con cretizadas cm sede legislativa.
4.2. A m utação dos p ap éis do Estado - do a b sen teísm o ao in terv en cio n ism o M as com o vai se dar esta m utação nos p apéis do Estado, quando no século XIX via-se como cxccção a interferência do Estado nos rtssuntos privados, o que deixava quase nada à ação do poder públi co? Para com preender esta m utação, é necessário levantar alguns aspectos próprios da adoção do ideário liberal onde, ao lado do desenvolvim ento econôm ico e técnico-científico, viu-se o agigantamento dos centros urbanos e o surgim ento do p roletariad o urbano, fruto do desenvolvim ento industrial e da conseqüente destruição de modos de vida antigos e tradicionais. Evidente é que não só isso serviu com o pretexto para a m udança nas atitudes do E stado, mas papel significativo tiveram como traços am plos da(s) crisc(s) gerada(s) pela ortodoxia liberal. Nos E stados U nidos da América, com o New Deal d c Roosevelt, ocorre um apoio m aciço a program as de obras piiblicas, regulam en tação do créd ito, controle sobre a produção agrícola; regulação das lioras de trabalho; salários m ínim os; negociação coletiva; sistema .ilirangente de seguros sociais. O projeto liberal teve com o conseqüências: o progresso econô mico; a valorização do indivíduo, com o centro e ator fundam ental do jogo político e econôm ico; técnicas de poder com o pod er legal, baseado no direito estatal, com o já explicitado acim a. Todavia, estas circunstâncias geraram , por outro lado, uma postura ultra-indiviilualista, assentada em um com portam ento egoísta; uma concepção individualista e form al da liberdade onde há o direito, e não o poder de ser livre; e a form ação do proletariado em conseqüência da R evo Cfe. D allari, Dalm o dc A breu. Elementos de. Teoria Geral do Estado. 18'1 ed. São Paulo, Sa ra iv a , 1989, p. 233 e segs.
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lução Industrial e seus consectários, tais como a urbanizaçfto, condi ções de trabalho, segurança pública, saúde etc. Evidentem ente que isto trouxe reflexos que se expressaram nos m ovim entos socialistas e em uma m udança de atitude por p arte do poder público, que vai se expressar em ações intcrventivas sobre e no domínio econôm ico, bem como em práticas até então tidas com o próprias da iniciativa privada, o que se dá, por um lado, para m itigar as conseqüências nefastas e, por outro, para garantir a continuidade do m ercado am eaçado pelo capitalismo financeiro, o que será reto m ado na seqüência deste texto. Para Dallari, há um duplo aspecto neste p rocesso de transfor m ação do Estado Liberal, quais sejam: a) melhoria d as condições sociais, uma vez que o poder público se assume com o garanti dor de \ condições m ínim as de existência para os indivíduos e; b) garantia regulatória para o próprio m ercado, já que o mesmo poder público passa a funcionar como agente financiador, consum idor, sócio, p ro dutor, etc,, em relação à economia. Assim pode-se elencar, junto com Dallari,75 aquilo que entende ser as causas privilegiadas deste processo de transform ação do perfil mínimo adotado pelo Estado Liberal: A - A R evolução Industrial e suas conseqüências d e proletarização, urbanização (transporte, saúde, saneam ento, m oradia), m udança nas condições de trabalho, previdência e degrada ção ambiental; B - A Prim eira Guerra Mundial rom pe a tradição d o liberalismo econôm ico, acelerando violentamente a ação de fatores desagregadores. De fato, tal guerra dilata desm esuradam ente as exigências de arm am ento e aprovisionam ento, dem ons trando a necessidade do controle integral e co ativ o da vida econôm ica, também como reflexo da em ergência da Revolu ção Russa, da Constituição de W eim ar (1919) e do constitucionalism o social iniciado pela Constituição m exicana dc 1917; C - A crise econôm ica de 1929 e a Depressão trouxeram embu tida a necessidade de uma econom ia interventiva onde sc reconciliam os dois maiores fatores de estabilidade econô mica: a iniciativa privada e a ação governam ental, que en gendram a política social de Roosevelt e o New Deal am ericanos, uma intensa política d c nacionalizações imple m entada p or Atlee, após a II Guerra M undial, bem com o os 75 C fe. Daltari, D alm o de A breu. O p. cil., passim , em especial, p. 235 e segs.
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reflexos da ação de Léon Blum e a Front P opulaire, no caso francês. D - A Segunda G uerra Murulial com a em ergência de guerra que im põe a assu nção de um papel controlad or dos recursos sociais, bem com o de uma atitude p rática por parte do ente estatal com o objetivo de m anter a prod ução, a distribuição, o controle da econom ia etc., não se lim itando apenas a uma atitu d e reconhecedora c repressora. É d e salien tar, ainda, que "a guerra p ro vo ca excessos dim ensio nais e d istribu içõ es erradas na industrialização, com predisposição .'i fragilização industrial por falta de capital e de dem anda, e conse qüente absorção estatal para evitar a crise, fracion a o m ercad o inter nacional pelo surgim ento de novos listad o s e de um nacionalism o econôm ico, determ inando, adem ais, o d efin itiv o deslocam ento do eq u ilíbrio econôm ico em favor dos EUA e em prejuízo da Europa, além d c provocar o desenvolvim ento num érico e o despertar classista das m assas operárias". E - As crises cíclicas as quais, já no fin a l do sécido, apontavam para as fissuras do liberalism o, em seu viés econôm ico que afetavam o com portam ento da econom ia, sendo qu e a ação nefasta dos m onopólios e o exacerbam en to das d esigu ald a des sociais com prom etiam a su bsistên cia do regim e. F - O s m ovim entos sociais rechaçam o dogm a de que a livre força do m ercado, como uma mão invisív el, seria capaz de levar a bom term o o processo econôm ico. O in teresse social é, m u itas vezes, incom patível com a livre concorrência. G - Há uma liberdade positiva em lu gar da poten cialid ad e (não garantida) liberal, sustentada em su as liberdades negativas - de não-im pedim ento, o que im p lica a m udança de sentido das liberdades liberais pela incorporação das liberdades so ciais ou liberdades positivas. N o cam po político, não há que esquecer a ocorrência das expe riências do nazifascism o, na Europa O cid ental, e o cham ado so cia lismo real na antiga U RSS - desfeita após a qu ed a do m uro de Berlim em 19S9 e o d esfazim ento do cham ado Bloco Soviético dos países do l este Europeu. A Ind ep end ência dos países afro-asiáticos, d espertando a cons ciência d o subdesenvolvim ento e o recru descim ento do n acio n alis mo, ex ig e a p resença do Estado, atrav és de m ecanism os de planejam ento, com o ocorrido na índia ao fin al do processo de independentização do Im pério Britânico. C icncia P olítica e Teoria do Estado
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É de salientar, ainda, o papel desem penhado pela Igreja C atóli ca na form ulação deste "'novo liberalism o." As en cíclicas papais que form ularam o conjunto teórico que se convencionou nom inar "d o u trina social da ig reja" formaram uma das pilastras desta transform a ção. A R erum N ovarum inaugurou, em 1891, esta form ulação, reafirm ando a liberdad e de contratar, mas vinculando-o a um ele m ento de justiça natural, anterior e superior à livre vontade dos contratantes, sustentando que o salário deve ser su ficiente para o "su sten to do operário frugal e de bons costum es" (n. 27). C onfigu ra-se, assim , a idéia de qualificação do interesse individual pelo social. Além disso, os desequilíbrios internacionais, bem com o algu m as outras influências oriundas do século XIX - descobertas cien tí ficas, grandes conglom erados fabris, form ação de aglom erados urbanos, constitucionalism o e maior participação p olítica, m ovim en tos so cialistas, em particular o aparecim ento do M anifesto C om unis ta d e 1848, form am o cenário apropriado para as m udanças que serão experim entadas pelo projeto estatal liberal Pode-se, então, dizer que a transform ação no viés intervencionista do Estado M oderno Liberal o faz assum ir responsabilidades organizativas e diretivas do conjunto da econom ia do País, em vez de sim plesm ente exercer poderes gerais dc legislação e polícia, pró prias do perfil do Estado M ínim o, com o era ate então conhecido. Em virtude disso, pode-se dizer que o Estado do Bem -Estar Social constitui uma experiência concreta da total disciplina pública da econom ia, assum ido com o m odelo de futuros objetivos au toritá rios da política econôm ica e ao m esm o tem po cria h ábitos e m étodos dirigistas dificilm ente anuláveis. Para J. M. Keynes, é a própria atividade estatal que, m esm o sem regulam entar a atividade particular, produzirá a d istribuição dos resultad os desta de m aneira eqüitativa e com patível com o interesse coletivo. Para os liberais, do ponto de vista doutrinário, a onipresença do Estado im põe o exam e dos lim ites dessa intervenção, interrogandose com o perm anecer liberal em política, quando a econom ia se in cli na para o dirigism o? Para Fernando Facury Scaff,76 a transform ação do Estado L ibe ral se dá pelas m esm as circunstâncias apontadas p or D alm o Dallari. A ssim , esta transição irá sc operar, condicionada, fundam ental m ente, por fatores da própria econom ia capitalista, além de circuns7f> Ver F. Scaff, A Responsabilidade do Estado Intcrvcncionista, ibidem .
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tiiiuiiiN históricas que lhe im pulsionaram , podendo ser reunida, re sum idam ente, nos seguintes aspectos: 1
A liberdade de m ercado que propiciou o surgim ento de econom ias de escala que favoreciam posições m onopolísticas. Com isso, os próprios pressup ostos liberais viam -se constrangidos, uma vez que estas posições iam de encontro aos pressupostos da econom ia liberal com o espaço da liber dade de organização c desenvolvim ento da econom ia. Como reação, surgiram duas posições diversas, com o forma de enfrentam ento à desestruturação do m ercado. De um lado, da perspectiva do legislador, "leis an titru ste" foram aprova das com o objetivo de com batê-los. Dc outro, a jurispru d ên cia consagrou que a form ação oligopolista era lícita, e daí defluía uma concorrência perfeita. A ssim , na solução am e ricana - leis antitruste - , m odificou-se a ordem juríd ica para m anter o m ercado liberal. Na Alem anha, através da ju risd i ção, o ordenam ento jurídico foi m antido intacto, mas a o r dem natural do m ercado foi quebrada.77 2 - As Crises Cíclicas do m ercado capitalista, ocorrendo em p e ríodos decenais, levavam à desestruturação dos fatores eco nôm icos e aprofundavam as diferenças sociais, cm virtude do desemprego, ou promoviam um enfraquecim ento profun do dos agentes econômicos, advindos, m uitas vezes dc fatores naturais, com o variações clim áticas dc grande envergadura, secas, inundações ctc. 3 - O utro m otivo diz respeito à presença de efeitos externos à produção, e que não podem ser apurados pelo m ercado, denom inados com o dcscconom ias externas - poluição, con gestionam ento, esgotam ento dos recursos n atu rais, etc.78 4 - As teorias socialistas são outro fator im portante a ser con si derado, diante da repercussão produzida pelos estudos eco nôm icos que negavam o m ercado e viam o liberalism o como um sistem a fadado à destruição. Esses estudos teóricos o ca sionaram a m itigação dc im im eros institutos do liberalism o, surgindo daí uma proposta alternativa ao m odelo liberal, o que conduziu, em uma espécie de síntese, a um a m aior par ticipação do Estado na/sobre a econom ia, no que se pode nom ear com o um regim e intervencionista. Em n ível teórico, poder-se-ia falar em tese liberal, antítese coletivista e síntese /VDesse m odo, àquela época, a Alemanha necessitava fortalecer-se econom icam en te, incentivando os conglom erados de em presas, para fazer face ao poderio inglês. /h y er p Scaff, op. cit. < iência Política c Troria do Estado
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intervencionista ou de iniciativa dual. O que deu origem , em m uitos países europeus, a um tipo de Estado com propostas socialistas m itigadas, onde a preocu p ação com o bem -estar da população é acentuada, não sen do prim ordial a eliminação das classes sociais. 5 - N a tradição socialista, p rod u z-sc um a crítica profunda ao projeto liberal que considerava a venda d a força de trabalho com o a v end a de um a qualquer m ercadoria. O trabalhador não vende sua força de trabalho porque quer, m as p or ter de utilizá-la para sua sobrevivência, tendo que aceitar as cond ições (de trabalho) im postas pelo poder econôm ico. Adem ais, com o a quantidade de m ão-de-obra 6 m ais num e rosa e pulverizada no m ercado do que o cap ital, este levava vantagem no ato de contratar. Esta postu ra irá contribuir, tam bém ela, para este processo de transform ação do perfil e caráter do Estad o Liberal. 6 - A transform ação do regim e foi acelerada pela I G uerra M un dial, que transform ou a face do m undo e iniciou novo cap í tulo nas relações econôm icas. Surgiu a necessidade de o E stad o atuar para organizar as necessidades produtivas, direcionando-as para o esforço de guerra, o que abriu cam inho p ara um a experiência intervencionista concreta. A guerra p ro v o co u a destru ição do m ercad o n atu ral e ocasionou enorm es perdas, requerendo a ação do Estado no sentido de evitá-las, além de p rovocar o aum ento n um érico e o surgi m ento de um a consciência de classe entre os operários, cuja organização se intensificou nesta época, e cujo poder políti co passou a ser mais respeitado, possibilitando o enfrentam ento dos proprietários dos m eios de produção. Em conseqüência disso, a concepção da separação entre o eco nôm ico e o político não tem com o subsistir. C om o já dito, a própria existência do Estado e da ordem jurídica significa uma intervenção: o Estado e a ordem jurídica são pressupostos inerentes à econom ia. O que caracterizaria o Estado com o intervencionista, já que ele o 6 desde sem pre, desde que tom em os a própria ocorrên cia do E sta do com o tal, um a v ez que toda ação estatal p rom ove algum tipo e de algum nível de intervenção na sociedade? A intervenção estatal no dom ínio econôm ico não cum pre papel socializante; antes, m uito pelo contrário, cum pre, den tre outros, o papel de m itigar os conflitos do Estado Liberal, através da atenuação de suas características - a liberdade contratual e a propried ad e pri-
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Vfldfl tio s m eio» d c p r o d u ç ã o n fim d e q u e h a ja a s e p a r a ç ã o e n tre or tra b a lh a d o r e s e o s m e io s d e p ro d u ç ã o .
D ecorre daí a necessidade de im por uma função social a estes Institutos c a transform ação de tantos outros. Da propriedade com direito de pleno uso, gozo e disposição, passam os a um a exigência funcional da propried ad e, sendo determ i nante sua utilização produtiva, e não mais seu título form al.79 Igual sentido perpassa pela liberdade con tratu al, hoje condicio nada por um dirigism o econôm ico estatal, im plicando tam bém uma idéia de função social do contrato.30 O Princípio d a Legalidade e o ila Separação de Poderes foram m antidos tão-som en te sob o aspecto form al, tendo sido, na prática, ab-rogados em razâo da intensa ati vidade legislativa praticada pelo Executivo e um a ce rta prática imeiliatista que lhe caracteriza. Da propried ad e p rivad a dos meios de p rod u ção passou a viger ,t função social da propriedade, e da liberdade contratual passou-se ao dirigism o contratual. Contudo, o prim ado básico do Estado Libe ral se m antém , a despeito de o Estado ter-se tran sform ad o em Intervencionista, qual seja: a separação entre os trabalhadores e os meios de produção, gerando m ais-valia, d c apropriação p rivad a pelos de tentores do cap ital.81 O utro exem plo desta transform ação no ca rá te r e no perfil do Estado Mínimo é a legislação econôm ica oriunda d o P od er E xecu ti vo, casuística e com força vinculativa ou não - o q ue Scaff nomina C apacidade N orm ativa de Conjuntura - que não condiz com os tipos formais construídos no regime liberal, destinados exclusivam ente à produção de leis gerais e abstratas com a finalidade de assegu rar o reconhecim ento d as liberdades individuais form ais e lim itativas à ação da autorid ade pública.*2 Sobre o assunto, ver também Slreck, Lenio Luiz. E que o texto constitucional nâo se transforme em um latifúndio improdutivo. - uma crítica à ineficácia do Direito. In: O Direito Público cm tempos de crise. Estudos ern homenagem a Ru)' Ruben Ruschel. Ingo Sarlet (org). Porto Alegro, Livraria do Advogado, 1999, p. 175 e segs. ^ Ver, c g-, para o caso brasileiro, o Código do C onsum idor, L oi 8.079.
Hl Aqui é de se referir o problema contemporâneo do capital financeiro e sua vola tilidade, transformando o capitalismo de produção em capitalismo de e.speculaçSo. Veja-se, sobre este debate, na literatura jurídica, a obra de 15A_K1A, Jose Eduardo. /)ireito e Globalização Econômica e Direito na Economia Globalizada. 82 Ver, e g., a atividade legislativa exercida pela função executiva no Brasil através tias medidas provisórias previstas no texto constitucional de 198.8, o que para alguns configura exercício compatível com o perfil intervencionisla da Estado Contempo râneo - ver a seguir - e, para outros, caracteriza abuso incompatível com o próprio Estado de Direito. Ciência Política c leo ria do Estado
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fi preciso salientar, ainda, que o voto ccnsitârio foi derrogndo pela pressão das m assas excluídas desse processo. O voto universal foi m esm o uma válvula dc cscap c para a revolução pregada por alguns socialistas, uma vez que possibilitou às m assas excluídas a participação no processo político e a inclusão no debate político de tem as que lhes são peculiares - particularm ente aqueles com ponen tes da questão social. Contudo, tam bém isto fez com que o Estado Liberal cam inhasse para uma transform ação, uma vez que foi neces sário aum entar o elenco das propostas políticas a fim de alcançar todo este novo eleitorado num ericam ente superior. Isto determ inou o surgim ento das norm as program aticas/1 que visam a tratar dos tem as econôm ico-sociais, mas que possuem - para alguns doutrinadores - eficácia lim itada. Surge daí a concepção dessas norm as como p olíticas/ 1 não com o jurídicas.
4.2.1. Função(ões) du Intervenção A partir do exposto, pode-se questionar: Por que o listado Libe ral com eçou a intervir? Duas razões são explicitadas por Fernando Facuri Scaff, em seu A R esponsabilidade do Estado Intervencionista. Em prim eiro lugar, a burguesia se sentiu am eaçada pelas tensões sociais existentes e, em razão delas, possibilitou m aior flexibilização do regim e liberal. Da m esm a form a, a própria burguesia se beneficiou desta intervenção, pois possibilitou que a infra-estrutura básica necessária para o de53 A s ditas norm as program áticas são de dúbia configuração, passando d c sim ples instituidoras de program as a serem desenvolvidos e dependentes dc posterior colo cação em prática até a conteúdos passíveis de usufruição pelo cidadão, im plicando intrincado debate teórico constitucional. Cabe registrar que o constitucionalism o do Estado D em ocrático de Direito adota a posição de que a C onstituição é dirigente c vinculativa, de onde exsurge que todas as norm as possuem eficácia, não tendo mais sentid o falar em "no rm as program áticas", cm sua acepção negativa. D aí que, preo cupado com a problem ática relacionada à ineficácia histórica das norm as program áticas, Ingo Sarlct, em percucicnte abordagem , prefere cham á-las de '"normas de cunho program ático", asseverando, desde logo, que todas as norm as consagradoras de direitos fundam entais são dotadas de eficácia. Cfe. Sarlet, Ingo. A eficácia dos direitos fu n dam en tais. 5* cd. rcv. e atualizada. Porto Alegre, Livraria do A dvogado, 2001, p. 271 e segs. Já M arcelo Neves, em bora reconheça o forte com ponente ideo lógico e a profunda im precisão sem ântica (vagueza e am bigüidade) das norm as program áticas, deixa claro seu entendim ento no sentido de que "p o r desctim prim enlo de norm a program atica, sem pre é possível, nos sistem as de Constituição rígida, o questionam ento jurídico da inconstitucionalidade de le i". In: Teoria üa inconstitucionalidade das leis. São Paulo, Saraiva, 1988, p. 103. 54 Sobre essa discussão, consultar Streck, H erm enêutica, op. cit., p. 224 a 239. 76
I/m io Luiz Slreck José Luis Boizan de M orais
atmvolvlmento das atividades de acum ulação e expansão do capital íoMtu' gerada com verbas públicas constituídas pela poupança e taxnçfto generallzndas. lal processo gerou uma tripla vantagem para a burguesia: A - a flexibilização do sistem a, possibilitando sua m anutenção de forma m itigada; U .1 divisão por todo o povo dos custos da infra-estrutura básica necessária para o desenvolvim ento do capital; e C - o benefício decorrente da concessão de obras e serviços públl COS.
Por óbvio que o processo intervencionista não se dâ u niform e mente, sendo necessário diferenciá-lo em razão de sua extensão o prolundidade. Assim, temos: A - Intervencionismo - fase inicial da decadência do regim e liberal. Caracterizou-se por medidas esporádicas e sem pre circu n s critas a ocasiões específicas. V isava a solu cionar problem as concretos que surgiam e podiam colocar cm risco a m anu tenção do regim e. ü - D irigism o - nesta segunda fase, a atuação estatal passa a ser m ais firme e coerente, com atos sistem áticos de ajuda e re forço à iniciativa privada, inclusive com objetivos políticoeconôm icos predeterm inados. C - Planificação - representa o últim o e m ais acabado estágio de atuação do Estado, inclusive com previsões que abrangem largo período tem poral, e com análise econôm ica global. Ainda com Scaff, é im portante frisar que a intervenção pode-se dar de diversas m aneiras, podendo-se classificá-la de m últiplas for mas. Em prim eiro lugar, a intervenção pode ser direta ou indireta. A primeira se dá quando o Estado exerce atividade econôm ica, as sumindo a condição de parceiro cios agentes privados econôm icos. I sta intervenção pode ocorrer para regulam entação do m ercado, ou no capital das em presas. Tal forma de intervenção pode ocorrer por meio de assunção total ou parcial de atividades. É o Estad o enquanto Instituição que intervém . Já a Intervenção Indireta ocorre quando o Estado age dirigindo ou controlando as atividades econôm icas privadas. N ão com o partí cipe, m as com o legislador. É o Estado enquanto ordenam ento que tlua, podendo fazê-lo no âm bito do fom ento econôm ico, da polícia econôm ica ou através da criação de infra-estruturas.85 " Op. cit., passim . A leitura desta obra 6 elucidativa sobre o tema, perm itindo-nos com preender o fenôm eno característico do listado Contem porâneo. i 'iência Política e Teoria do Estado
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T o d av ia, é m ister que nflo sojfl m rn n sp rr/m lo ou esquecido que esta est:ratégia b u rguesa nfto se dá apenas por força d estas circu n s tâncias; há, por o u tro lado, o tensionam ento p rom ovid o por outros fatores e setores, com o, aliás, já ap resen tad o an teriorm en te, que im pulsionam esta m u dança. Em p articu lar, as ditas classes operárias, com su a s reivindicações e conquistas, se ap resen taram com o agente fundam ental para que isso ocorresse, sendo, então, fundam ental que se ag regu em às d u as razõ es inaugurais ap resen tad as acim a as co n quistas p roletárias e o s direitos daí advin d os - d ireitos sociais com o um a terceira razào para o crescim en to, ap rofu nd am en to e di recio n am en to do p rocesso intervencionista.
4 .3 . A idéia do Estad o de b em -e sta r social A con seq ü ên cia gorai que advem desse p rocesso até a g o ra deli nead o se concretiza n o Welfare State, na n om enclatu ra am erican a. A regu lam en tação, em especial a da denom inada genericam en te ques tão so cial, envolvendo os tem as m ediata e im ed iatam en te relacion a d os ao processo p ro d u tiv o (relações d c trabalho, previdência, san eam en to , saú d e, ed u ca çã o etc.) d elin eiam os tra ço s característi co s d o E stad o d o Bem -Estar, ou seja, seu papel interven tivo e p ro m ocional. O que irá diferen ciar substancialm ente o m odelo d o Estado in terv en tivo con tem porâneo à form a d e E stad o do B em -E star dos E stad os assistenciaís an teriores é o fato d e a regu lação n ão significar a troca d a s garantias pela liberdade pessoal, um a vez que o benefi ciado, n o últim o caso, era considerado p erigo so à ordem pública e na p ersp ectiv a d a caritas protestante, eram vistos com o não ilum i n ad os p elas bênçãos divinas, enquanto no m odelo d c B em -E star as p restaçõ es públicas sao percebidas e con stru ídas co m o u m /u m a di reito /co n q u ista da cid adania. Além do que há uma diferença subs tancial en tre as políticas de b em -estar p ropostas num q u ad ro de assistencialisnio daquelas de um m odelo d em o crático que tem cm seu in terior o com prom isso com con cretização de sua função social. R esum idam ente, p od e-se dizer que o Welfare State, com o já d e m o n strad o anteriorm ente, em erge definitivam ente com o conseqüên cia g era l d as políticas definidas a p artir d as g ran d es guerras, das crises dei décaíla de 1930, em bora sua form ulação constitucional te nha se d ad o originalm ente n a segunda d écad a do século X X (M éxico, 1917, e VVeimar, 1919). O nete deal am ericano de R oosevelt, o keynesian ism o e a política social do p ós-Segunda G uerra na In glaterra 78
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mlAo entre os fatores relevantes que dem onstram a estru tu ra que enlri se m ontando. C om a I G uerra M undial, tem -se a inserção defi nitiva d o Estado na p ro d u ção (indústria bélica) e d istribuição (ali m entos etc.); com a crise de 1929, há um aum ento d as despesas públicas para a su sten tação do em p rego e d as con d ições d e vid a dos trabalhadores; nos an os 1940, há a co n firm ação desta atitu d e interventiva, instaurand o-se a b ase d e que tod os os cid ad ãos com o tais Iflm direito a ser p rotegidos contra dependências de cu rta ou longa d u ração. O desenvolvim ento d o État Providence o u E stad o d e B em -Estar pode ser creditad o a du as razões: A - Uma d e o rd em política, através da luta pelos d ireitos indi viduais (Terceira G eração), pelos d ireitos políticos e, final m ente, p elos direitos sociais, e B - O utra de n atu reza econôm ica, em razâo da transform ação da socicd ad c ag rária em industrial, pois "o desenvolvim ento industrial p arece a única constante cap az de ocasionar o surgim ento do problem a da segu ran ça so cial..." À vista disso, p od e-se caracterizar este m odelo de E stad o com o aquele que garan te tipos mínim os d c ren d a, alim en tação, saúde, habitação, ed u cação , assegu rad o s a todo cid ad ão , n ão com o ca rid a de, m as com o direito político.80 O cerne da diferença, além da crescente atitude interventiva estatal, se coloca exatam ente neste asp ecto de direito p róprio do cid ad ão a ter garan tid o o seu bem -estar pela ação p ositiva do Estad o com o afian çad or da qualidade de vida do povo. C om l^aulo Bonavides, pode-se enten d er que o E stad o C on tem porâneo, ao estilo do Estado do Bem -Estar, adota com p rep on d erân cia a idéia social na sua constituição com , com o diz, a exp ectativ a de que este princípio generoso e h um ano de justiça (deva) se com p ad eça(cer) d r tese n ão m enos nobre e verídica da independência da personalidade. Na tentativa de realizar este equilíbrio, estabelece-se, segundo Bobbio,87 um n o v o co n trato social, que nom ina de socialism o liberal, no qual, partindo-se da m esma concepção individualista da sociedade e adotando os m esm os instrum entos liberais, se incluem princípios de justiça distributiva, onde o governo das leis - em co n trap o sição ao H6 Ver Bobbio, Norberto d alL Dicionário dc Polílica, verbete Eslado do bem-estar. H7Ver deste autor: O Futiiro da Democracia. Uma defesa das regras do jogo: São Paulo: RT, 1986, p. 128 e 171. C iência P o lílica e Teoria d o Estado
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governo d o s h om ens - b u sq ue a im plem entação d a-d e m o cra cia com um caráter igualitário. A ssim , ao E stad o C on tem p orân eo é atribuída, um a fu n ção so cial, a qual p o d e ser ca racteriz a d a , com Pasold, co m o " ... açõ es que - por d ev er p ara co m a socied ad e - o E stad o execu te, resp eitan d o , valo rizan d o e en vo lven d o o seu SUJEITO, atendendo ao seu OBJETO e realizan d o os seu s OBJETIVOS, sem pre co m a p revalên cia do social e p rivilegiand o os v alo res fundam entais do ser h u m an o". Tal "fu n ç ã o " co m p a ctu a , em ab strato, com u m a co n d ição ins trum ental do E stad o, co m p ro m isso com o bem co m u m e com a d ig nidade d o ser h u m an o , consolid an d o-se, co n cretam en te, con form e as con d ições (ex)p o stas em ca d a Sociedade e E stad o e, tendo com o conteú d o finalístico, a idéia de justiça social e, p or con segu in te, de socialização d as relaçõ es interpessoais. N esta p ersp ectiv a, Pasold p ropõe u m conceito operacional para o Estado C on tem p orân eo , d izen do que ao estad o cab e asseg u rar e p ro m ov er ações que d êem ao h om em -trab alh ad o r g aran tias para a obtenção, m an u ten ção e e x e cu ção de seu trabalh o em co n d ições d ign as.88 Esta fu n ção social, to d av ia, não se ap resenta u n iform em en te, p od en d o co n stitu ir-se em segm entos, através de "... á re a s de atu ação nas quais o E stad o e xerce ou deva e x e rce r a função so cia l".89
88 Cfe. Pasold, op. cit., p. 60. 89 Idem, ibidem, p. 63. Ver, ainda, Bolzan de Morais, José Luis e Cademartori, Sergio U. de. "Liberalismo e Função do Estado nas Relações de Produção". Revista Seqüên cia, Florianópolis, n. 24, 1992, p. 81-91. _
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5. A peculiariedade do intervencionismo do Estado no Brasil: a crônica de um simulacro e a crise da modernidade René A ntonio M ayorga, estudioso da "m od ern id ad e" latinoam ericana, é co n tu n den te ao afirm ar que "(...) a A m érica Latina, onde o E stad o de Bem -E star jam ais chegou a estabelecer-se e co n so lidar-se com o na Europa social dem ocrática, tem agora m enos p e rs p ectivas de desenvolvim ento do que há décadas atrás e os p rocessos de red em o cratização em andam ento encontram -se num con texto de crise econôm ica gen eralizad a, não havendo capacidade p ara resolver os problem as da acu m u lação, a distribuição equitativa dos benefí cios econôm icos e, sim ultaneam ente, dem ocratizar o E stad o ".90 A s p ecu aliarid ad es do desenvolvim ento dos países d a A m érica Latina - processo de colonização, séculos de governos au toritários, ind u strialização tard ia e dependência periférica - não perm itiram a gestação e o florescim ento de um Estado de Bem -Estar Social ou algo que a ele se assim ilasse. O intervencionism o estatal confunde-se his toricam ente com a p rática au to ritária/d itato rial, con stru ind o-se o avesso da idéia de Estado Providência, aum entando as distâncias sociais e o p rocesso de em pobrecim ento das populações. A ssim , a tese de que em países periféricos, de desenvolvimento tardio, o p a pel do Estado d everia ser o de intervenção para a correção das d esigu ald ad es, n ão encontrou terreno fértil em terras latin o-am eri canas. Ao co n trário , a tese intervencionista sem pre esteve ligad a ao patrim onialism o d as elites herdeiras do colonialismo. Isso é perfeitam ente aplicável ao caso brasileiro, onde o inter vencionism o estatal, con d ição de possibilidade para a realização da função social do E stad o, serviu tão-som ente p ara a acu m u lação de capital e ren d a em favor de um a pequena parcela da população. De todo m od o, em bora o E stad o intervencionista represente um a esp é cie de am álgam a cap italista, com o projsto salvacionista em face do 90 Cfe. Mayorga, René Antonio. "Las paradojas e insuficiências de la modemización y democratización". In: Imagenes desconocídas, Buenos Aires, Clacso. C iên cia Política e T eoria d o Estado
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crescim en to d os m ovim entos de m assa, to m o u -s e , na verdade, o em b rião d a co n stru ção das condições d a e ta p a que o sucedeu nos p aíses d esen v olvid os, o E stad o D em ocrático d e D ireito. E isso não o co rreu no Brasil. N essa linha, vem bem a p rop ósito o d iz e r de B oaventura de S ou sa S an tos, p a ra quem esse E stad o, tam b ém ch a m a d o de Estado P ro vid ên cia ou Social, foi a instituição p olítica in v en tad a nas socie d ad e s cap italistas p ara com patibilizar as p ro m e ssa s da M odernidade co m o d esen v olvim en to capitalista. E ste tip o d e E sta d o , segundo os n eoliberais, foi algo que p assou , d e sa p a re ce u , e o E stad o sim ples m en te tem , ag o ra , de se en xu gar cad a v e z m ais. P a ra os neoliberais, co m p lem en ta o m estre p ortu guês, ele (o E sta d o ) é, a g o ra , uma insti tu ição an acrô n ica , porque é um a en tid ad e n acion al, e tud o o m ais está glo b alizad o. A g lo b alização n eoliberal-p ós-m od ern a co lo ca -se justam ente co m o o co n tra p o n to das políticas do Welfare state. A p arece com o a n o v a fa c e /ro u p a g e m do capitalism o in tern acio n al: a lógica geral da co m p etição globalizan te é ineq u ivocam en te co n ce n tra d o ra . Daí não ap en as fusões, m as, sobretudo, a ex clu sã o d e g ra n d e s m assas de trab alh ad o res d a possibilidade de in serção a p ta n o m u n d o econôm i co , o d esem p reg o e a precarização do trab alh o , a d esigu ald ad e social crescen te m esm o nos países em que o d e se m p re g o é co m p arativ a m en te re d u zid o , e os indicadores exibem sa ú d e e p u jan ça econôm ica - em su m a, aquilo que alguns têm ch a m a d o de "b ra silia n iz a çã o " do cap italism o a v an çad o . N o caso b rasileiro, a cre sc e o fato de que nos in serim os m ais p recariam en te no jogo, n ã o só p orq u e já som os o Brasil da p esad a heran ça escravista e d o fosso social, m as tam bém p o rq u e n o ssas fragilid ades nos to m a m v ítim as p referen ciais, sem pre p ro n ta s a su rg ir co m o "bola da vez'' n as p e rv e rsid a d e s da dinâm ica tran sn acio n al.91 P a ra este p erig o tam bém alerta A n d ré -N o é l R oth,92 ao d en u n cia r que a g lo b alização nos em purra ru m o a u m m o d elo d e regu lação so cial n eofeu d al, através da con statação do d eb ilitam en to das esp ecificid ad es que diferenciam o E stad o M o d ern o d o feudalism o: a) a d istin ção en tre esfera p rivad a e esfera p ú b lica; b ) a d issociação en tre o p o d e rio p o lítico e o econôm ico; e c) a se p a ra ç ã o en tre as funções 91 Cfe. Reis, Fábio Wanderlei. "As reformas e o mandato". In Folha de São Paulo, 28 mar 98, p. 1-3. Sobre globalização, ver, também, "Metáforas de la globalización", de Otávio Ianni, in Revista de Ciências Sociales. Quilmes, Universidad Nacional, Mayo de 1995, p. 9-19. 92 Roth, André-Noél. "O direito em crise: fim do Estado Moderno?" In: Direito e globalização econômica - implicações e perspectivas. José Eduardo Faria (org). São Paulo, Malheiros, 1996, p. 16 e segs. 82
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ad m inistrativas, políticas e ai sociedade civil. Para R oth, o caráter neofeudal da regulam entação social reside em parte nessa evolução e em parte em um a leitura pessim ista da forma decisória - a infini d ad e de foros de negociações descentralizados - su gerida pelo direi to reflexivo (de cunho autopoiético). E videntem ente, a m inim ização do Estado em p aíses que p assa ram pela etapa do Estado Providência ou Welfare State tem con se qüências absolutam ente diversas da minim ização do Estado em países com o o Brasil, onde não houve o Estado Social.93 O E stad o interventor-desenvolvim entista-regulador, que d eve ria fazer esta função social, foi - especialmente no Brasil - pródigo (som ente) p ara com as elites,94 enfim, para as cam adas m éd io-su p eriores da sociedade, que se ap ro p riaram /ap rov eitaram de tudo d es se E stad o, p rivatizan d o -o , d ividin do/lotean d o co m o capital internacional, os m onopólios e os oligopólios da econ om ia. A ssim , com o alerta Touraine, as sociedades exigem que o p od er retom e as fu n ções de árbitro na solução das injustiças.Para tanto, o E stad o d eve (re)assum ir a sua capacidade de tran sform ação da so ciedade, questão para a qual aponta claram ente o art. 3° d a C on sti tuição b rasileira, ao im por a construção de um E stad o Social, sob a fórm ula do E stad o D em ocrático de Direito. N ão se trata m ais de livrar a econom ia de vínculos paralisantes, m as ao co n trário , de rein teg rar a ativid ad e econôm ica ao conjunto da v id a social e refor ça r as interven ções do poder político.95
93 Segundo Bonavides, baseado em Kaegi, in Die Verfassungsals Rechtliche Grundordnurtg des Slaates, 1948, p. 94 e segs., "sendo o Estado social a expressão política por excelência da sociedade industrial e do mesmo passo a configuração da sobrevivên cia democrática na crise entre o Estado e a antecedente forma de sociedade (a do liberalismo), observa-se que nas sociedades em desenvolvimento, porfiando ainda por implantá-lo, sua moldura jurídica fica exposta a toda ordem de contestações, pela dificuldade em harmonizá-la com as correntes copiosas de interesses sociais antagônicos, arvorados por grupos e classes, em busca de afirmação e eficácia. Interesses ordinariamente rebeldes, transbordam eles do leito da Constituição, até fazer inevitável o conflito e a tensão entre o estado social e o Estado de Direito, entre a Constituição dos textos e a Constituição da realidade, entre a forma jurídica e o seu conteúdo material. Disso nasce não raro a desintegração da Constituição, com o sacrifício das normas a uma dinâmica de relações políticas instáveis e cambiantes". Cfe. Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Malheiros, 1996, p. 435. 94 Sobre a caracterização das elites, ver: Houaisst Antonio e Amaral, Roberto. Mo dernidade no Brasil: conciliação ou ruptura. Petrópolis, Vozes, 1995, p. 56. 95 Cfe. Touraine, Alain. "Ecos da ausência do Estado". In Folha de São Paulo, 17.11.96, p. 5-11. C iên cia P o lítica e T eoria d o E stado
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Repita-se, pois, que no Brasil a m od ern id ad e é ta rd ia e a rcaica. O que houve (h á ) é um sim u lacro de m o d ern id ad e.96 C om o m u ito bem assinala E ric H obsbaw n, o Brasil é "u m m o n u m en to à n e g lig ê n cia so cial", fican d o atrás de m u ito s países p eriférico s em v á rio s in d icad ores so ciais, com o m o rta lid a d e infantil e alfa b e tiz a çã o , tudo porque estes E stad o s se em p en h aram na re d u çã o d a s d e sig u a ld a des.97 Ou seja, em nosso país, as prom essas d a m o d e rn id a d e ainda não se realizaram . E, já que tais p rom essas não se re a liz a ra m , a solução que o establishment ap resen ta, por p a ra d o x a l que p ossa p a recer, é o reto rn o ao E stad o (neo)liberal. Daí que a p ó s-m o d e rn id a d e é vista com o a v isão neoliberal. Só que existe u m im en so déficit social em nosso p aís, e, p or isso, tem os que defen d er a s in stitu ições da m odernidade co n tra esse neoliberalism o p ó s-m o d ern o . Daí vir a p ro p ó sito o d ize r d e B oaven tu ra S a n to s,98 p a ra quem o Estado não p o d e p reten d er ser fraco: "P re cisa m o s d e u m E stad o cad a vez m ais fo rte p ara g a ran tir os direitos n u m co n te x to h ostil de globalização n eo lib eral". E acrescen ta: "F ica e v id e n te que o co n ceito de um E stad o fraco é um co n ceito fraco. (...) H oje, fo rça s p olíticas se confrontam c o m diferentes co n cep çõ es de re fo rm a ". P o r isso, co n clui, não é p o ssív el, ag o ra, o rg a n iz a r p oliticam en te a m iséria e a exclu são, p ro d u zid as d e m o d o d eso rg an izad o e d e sig u a l ta n to g lo balm ente q u an to nos co n texto s nacionais: "N u n ca os in clu íd os esti veram tão inclu íd os e os exclu íd o s, tão ex clu íd o s". É evid en te, p ois, que em p aíses com o o Brasil, em que o E stad o Social não existiu , o agente p rincipal de toda p o lítica so cial d e v e ser o Estad o. As p o líticas n eoliberais, que visam a m in im izar o E sta d o , não ap on tarão p a ra a realização de tarefas an tité tica s a su a n a tu re z a . Veja-se o exem p lo o co rrid o n a F ran ça, onde, a p ó s u m a v a n ç o d os neoliberais, na d écad a de 1990, a p ressão p o p u lar e x ig iu a v o lta das políticas típicas d o E stad o P ro vid ên cia. É este, p o is, o dilem a: q u an to m ais n e cessitam o s d e p o líticas públicas, em face da m iséria que se avolu m a, m ais o E sta d o , ú nico agente que p o d eria errad icar as d esigu ald ad es so cia is, se en colh e! T udo isso aco n tece na co n tra m ã o do q u e estab elece o o rd e n a m ento co n stitu cio n al brasileiro, que aponta p a ra u m E sta d o forte, in tervencion ista e reg u lad o r, n a esteira daquilo q u e, co n te m p o ra n e a 96 A expressão é de Vieira, José Ribas. Teoria do Estado. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 1995. 97 Consultar Hobsbawn, Eric. A era dos extremos. Trad. de Marcos Santarrita. Cia das Letras, 1995. 98 Cfe. Sousa Santos, Boaventura. "Boaventura defende o Estado forte". Ln: Correio do Povo. Secção Geral. Porto Alegre, 6 de abril de 1998, p. 9. 84
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m ente, se entende com o Estado D em ocrático de D ireito. O D ireito recu p era, pois, sua especificidade. No Estad o D em ocrático d e D irei to, o co rre a secularização do Direito. D esse m odo, é razo ável afirm ar que o D ireito, enquanto legado da m odernidade - até p orqu e tem os um a Constituição dem ocrática - deve ser visto, hoje, com o u m ca m po necessário de luta para im plantação das prom essas m od ern as. A tod a evidência, não se está, com isto, abrindo m ão d as lutas políticas, via Executivo e Legislativo, e dos m ovim entos sociais. É im portante observar, no meio de tudo isto, que, em nosso p aís, há até m esm o uma crise de legalidade, um a vez que nem sequer esta é cu m p rid a, bastando, para tanto, ver a inefetividade d os dispositivos da C onstituição. Daí a pergunta: como pode o E stad o, nesse co n texto , atuar, intervir, para (com eçar a) resgatar essa imensa dívida social? O q u a dro é desolador. Com efeito, nossas classes dirigentes con tin u am na m od ern id ade arcaica. Com uma indústria que só dispõe de m ercad o se a renda for concentrada para viabilizar a dem anda; um a ag ricu l tura eficiente, m as voltada para a exp ortação, em u m p aís onde m ilhares de crianças morrem de fom e a cada ano; m egalóp olis que são incapazes de oferecer os serviços p ara os quais elas d everiam existir; estrutura de transporte urbano nos m oldes d os países ricos, m as que condena, p or falta de dinheiro, milhões de p essoas a cam i nhar, com o andarilhos medievais, os quilôm etros entre su as pobres casas e o trabalho; e obriga aqueles que têm acesso à m od ern id ad e, ao d esp erd ício de tem po em engarrafam entos que seriam d esn eces sários em um sistema de transporte eficiente. Enfim , a m o d ern ização é v ista independentem ente do b em -estar coletivo. O btém -se um im enso poder econôm ico, mas ele não consegue resolver os p roble m as da qualidade de vida. C on stroem -se estru tu ras sociais que, ao se fazerem m odernas, mantêm tod as as características d o que há de m ais injusto e estú p id o ." A s prom essas d a m odernidade só são ap roveitad as p or u m cer to tipo de brasileiros. Para os dem ais, o atraso! O apartheid social! Pesquisas recorrentes m ostram que os excluídos são cerca de 60% da p op u lação d o país. N essa categoria "exclu íd o s" estão as p essoas que estão à m argem de qualquer m eio de ascensão social. N a escola, a esm agad o ra m aioria dessas pessoas não foi além da 8 a série do I o grau . De tod os os segm entos sociais, são os que m ais so frem com o d esem p reg o e a precarização do trabalho: g ran de p a rte v iv e de "b ico ", e m uitos são assalariados sem registro algum . C om o co n tra 99 Buarque, Cristovam. O colapso da modernidade brasileira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991, p. 19 e 20. C iên cia Política e T eoria d o E stad o
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p o n to , tais lev an tam en to s m ostram que a elite se resu m e a uma p eq u en a p a rce la d os brasileiros, m ajoritariam en te co m p o sta por b ra n co s - ce rca d e 80% . É a elite, em conseqüência, o seg m en to onde há m en o s n e g ro s e pardos. N ão há, p o is, co m o não d ar razão a L e o n a rd o Boff, quando a firm a que (essas) n ossas elites construíram u m tipo de socied ad e "o rg a n iz a d a n a esp oliação violenta da p lu svalia d o trab alh o e na e x clu sã o de g ra n d e p arte da p o p u lação ".100 D aí a e x istên cia no Brasil de d u a s esp écies de pessoas: o sobreintegrado ou sobrecidadão, que d is p õ e do siste m a , m as a ele n ão se subord in a, e o subm tegrado ou su b cid a d ã o , q u e d epen de d o sistem a, m as a ele n ão tem a ce s so .101 O sistem a eco n ôm ico-so cial "co n stru íd o " ao lon g o d e cin co sé cu lo s ap resen ta o s seguintes "resu ltad os": os 20% m ais rico s co n cen tram 32 vezes m ais renda do que os 20% m ais p ob res. C e rca d e 40% das fam ílias b rasileiras viv em co m renda anual inferior a U S$ 1,5 mil. Ao m esm o te m p o , as p rincipais instituições fin an ceiras d o país têm m an tid o g a n h o s financeiros incom patíveis co m as d isp a rid a d e s so ciais, m o rm en te se co n sid erarm o s que os 10% m ais rico s p ossu em m ais d a m etad e d a renda nacion al, enquanto os 20% m ais p ob res têm m en o s de 3% d a renda nacional. N o Japão, o cap ital e as g ran des riq u e z a s têm u m a trib u tação m édia de 4 4 ,0 9 % . N a In g laterra, 6 4 ,1 2 % ; nos E U A , 42,1% . Já no Brasil o capital p a g a m en o s de 9% de im p osto s. O u tro d a d o relevante que desnuda a insu ficiên cia total do sistem a eco n ô m ico vem da questão fundiária. C o m efeito, 4 2 m ilhões de h e cta re s d a s terras para ag ricu ltu ra são d e p ro p rie d a d e d e apen as 512 p ro p rie tá rio s . En q uan to isso 4,5 milhões d e a g ricu lto re s n ão têm terra p ara trab alh ar. E ste q u a d ro de insuficiência do sistem a e co n ô m ico é fru to das e rra d a s p o líticas eco n ôm icas im plem entadas no p aís. H isto rica m e n te, c a d a v ez q u e o p aís se vê na necessidade d e m u d a n ça s, fru to de p re ssão p o p u la r e / o u da conjuntura social, e co n ô m ica e p olítica, p ro d u z e m -se alia n ça s co n serv ad oras, visando à co n se rv a çã o d o p o der. A co n seq ü ên cia de tais "a c o rd o s" (p. e x ., In d e p e n d ê n cia , A b o lição d a E s c ra v a tu ra , República etc.) foi a in to cab ilid ad e d a e stru tu ra de d o m in a çã o . O u isso, ou o Brasil, em bora a b oa v o n ta d e d e seu p ov o e de su a elite d irigen te, tem sido "in feliz" n a c o n d u çã o d a res publica no d e c o rre r d o s sécu lo s...102 100 Cfe. Boff, Leonardo. "A violência contra os oprimidos. Seis tipos de análise". In. Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996, p. 96. 101 Cfe. Neves, Marcelo. "Teoria do direito na modernidade tardia". In. Direito e democracia. Kátie Arguello (Org). Florianópolis, Letras Contemporâneas, 1996, p. 110. 102 Já em edições anteriores deste livro apontávamos que: A irresponsabilidade dos governantes colabora para a continuidade do quadro. A Prefeitura do Rio de Janeiro 86
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O sistem a social, em conseqüência, só poderia estar d esin teg ra do. C onseqüência disso é que também nos presídios essa so cied ad e díspar é rep rod u zid a. Daí por que o estereótipo do delin q ü ente b ra sileiro se fixa na figura do favelado. Pouco im porta, p ois, que, a m aioria das m ortes violentas estejam associadas a acid en tes de trân sito, e não a outros delitos com maior repercussão so cia l.103 N ossa figura do m atad or não é um homem de classe m édia sen tad o no seu carro, e sim o assaltante arm ado, entrevistado pela im p ren sa sen sa cionalista.104 promoveu uma festa para comemorar a passagem do ano novo de 1996, contratan do, para tal, vários artistas. Somando os gastos com cachê, fogos de artifício e demais encargos, os cofres públicos foram aliviados em cerca de US$ 1 milhão. Na mesma noite, em vários hospitais da rede pública do Estado do Rio de Janeiro (e no resto do país também), várias pessoas morreram por falta de atendimento médico. Como consertar o quadro de insuficiência econômica se os governantes elegem prioridades dessa maneira? Do teratológico ao tragicômico, os jornais noticiaram que quinze funcionários do INSS, com idades entre 37 e 40 anos, requereram apo sentadoria (que foram deferidas!). Três tinham apenas 37 anos. Um, 38. Outros três, 39. Os demais, 40 anos. Em Goiás, uma Juíza de Direito computou como tempo de serviço 7 anos e 5 meses de serviço como empregada doméstica de seu próprio pai, um juiz de direito aposentado. E o INSS forneceu a respectiva certidão. Segundo a Juíza, seu trabalho como empregada doméstica consistia em "olhar as três fazendas" do seu pai. Em contrapartida, um camponês, via de regra, morre antes de atingir o tempo para se aposentar ... Enfim, disse muito bem a jornalista Marilene Feiinto, ironizando a situação da distribuição de renda no país: O país que o Brasil mais inveja no mundo é Botsuana, que fica no sul da África, tem cerca de 1 milhão e 300 mil habitantes e cuja capital é Gaborone. Tá lá, na rede, pra não deixar dúvida, pra calar a boca de qualquer adversário: relatório do Banco Mundial informou que o Brasil aparece em primeiríssimo lugar como o país onde há pior distribuição de renda do mundo. É jogada de mestre, não teve braço nem mão no lance. O tira-teima esclarece, a superioridade brasileira é indiscutível: o levantamento do Banco Mun dial mostra que 51,3% da renda brasileira está concentrada nas mãos de apenas 10% da população. E conclui o jornalista: agradecemos por nossos 26 milhões de analfa betos, pelos nossos quase 3 milhões de crianças que vivem em favelas, por nossos meninos de rua, nossos sem-teto, nossos sem-terra, pelos 60% de famílias brasileiras que vivem à custa de um salário mínimo (golaço). 103 Ibidem. 104 Paulo Sérgio Pinheiro, analisando a crise do sistema penitenciário brasileiro, diz que é fácil apontar os usuários habituais das prisões no país: os clientes das prisões, dos internatos, dos orfanatos, dos reformatórios. dos manicômios são as classes populares, o proletariado e o subproletariado. E acentua: "Para um observador que de repente desembarcasse no Brasil, poderia parecer que, exceto raríssimas exceções de alguns pequeno-burgueses ou burgueses encarcerados, a delinqüência é o atri buto de uma só classe. E mesmo diante dos crimes mais bárbaros cometidos pelas outras classes, há uma enorme tolerância, existe t*m conceito de recuperação dife rente, que não precisa ser realizado dentro do sistema penitenciário. Não se afirma aqui a usual identificação entre as classes pobres e as classes perigosas, como se os oprimidos tivessem uma vocação irresistível e automática para o crime. Ao contrá C iên cia Política e T eoria d o Estado
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C on fo rm e M arilena C h auí,105 " o a u to rita rism o social e as d esi g u ald ad es eco n ôm icas fazem com que a so cied ad e brasileira esteja p o la riz a d a entre as carências das ca m a d a s p o p u lares e os interesses d as classes ab astad as e dom in an tes, sem co n se g u ir u ltrap assar ca rên cias e interesses e alcan çar a esfera d o s d ireitos. O s interesses, porqu e n ão se tran sform am em d ireito s, to rn a m -se privilégios de algu ns, d e sorte que a p olarização so cia l se efetua en tre os despossu íd os (o s carentes) e os p rivilegiados. E ste s, p orq u e são p ortad ores d o s co n h ecim en to s técnicos e científicos, são os 'co m p o n e n te s', ca b en d o-lh es a d ireção da so cied ad e". P or isso, assevera C h auí,106 a so cie d a d e b rasileira, colocada en tre dois p ólo s (carên cia e p rivilégio), n ão co n seg u e ser d em ocrática, p o r não en co n trar m eios p ara isso. A s leis, p o r su sten tarem os p ri v ilégios d as elites, n ão são vistas co m o e x p re ssã o nem de direitos n em de v o n tad es p roven ientes de d ecisõ es p ú b licas e coletivas. O P o d er Ju d iciário ap arece, desse m o d o, co m o m isterioso, d eten tor de u m a au to rid a d e q u ase m ística. P o r isso a so cied ad e aceita que a leg alid ad e seja, p o r um lado, in com p reen sível, e , p o r outro, inefi cien te (a im p u n id ad e não reina livre e so lta?) e qu e a única relação p ossível co m ela seja a da tran sg ressão (o fam oso "jeitin h o ").107 rio, o que prevalece no Brasil é a opção preferencial da ação policial e da intervenção do judiciário em relação aos pobres. As penas recaem mais fortemente sobre os transgressores das classes populares. (...) Muitos crimes praticados por classes com mais recursos econômicos e políticos não chegam a ser contemplados pelo código penal. O foco é generosamente jogado sobre os crimes contra o patrimônio e contra a pessoa individualizada, cometidos igualmente no interior das próprias classes populares, deixando fora do debate os crimes com conseqüências em escala muito maior, mesmo no que diz respeito à vida humana." In "Crise do sistema penitenciá rio e crise institucional". In Folhetim, FSP, 18.11.84, p. 4. A pergunta que não quer calar é a seguinte: do período em que o cientista político Paulo Sergio Pinheiro fez a pesquisa, até os dias atuais, mudou alguma coisa? 105 Cfe. Chauí, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1995, p. 436 106 id em , ib id em .
107 A Revista Veja fez uma reportagem intitulada "O brasileiro segundo ele mesmo", mostrando uma pesquisa feita pelo instituto Vox Populi. Pela pesquisa, os atributos do tipo "jeitinho", "cordial", "malandro", "preguiçoso" etc., são deixados de lado pela população brasileira. A matéria dev“ ser questionada na origem, uma vez que é impossível, em uma sociedade tão díspar, conceituar o que é "o brasileiro" ou quais as "características" do "brasileiro". Tais características, negativas ou positivas, nada mais são do que estereótipos. Dante Moreira Leite cravou um marco histórico no processo de desmi(s)tificação das noções estereotipadas. Não foi, todavia, sufi ciente para acabar com essa panacéia ideológica que se encontra, ainda hoje, pro fundamente enraizada/materializada no imaginário social. Com efeito, Moreira Leite, na obra O caráter nacional brasileiro - história de uma ideologia -, acusa a noção de "caráter nacional" de preconceito, equívoco e obstáculo. Afinal, cabem várias indagações: de qual brasileiro falam os que afirmam, por exemplo, a sua cordialida 88
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Dito de outro m odo, na feliz síntese do historiador Luiz Roberto Lopez, num tecido social descosturado, m antém -se a alienação e quem sai ganhando são as elites, já vitoriosas, num conflito travado ao longo de todo um século. A o que parece, a nossa Belíndia - um a m istura de uma pequena p orção Bélgica com uma imensa m aioria indiana expressão cunha da na década de 1980, aprofunda-se com a insistência em não enfren tarm os a nossa questão social com o caso de política - políticas públicas de inclusão social - e não com o caso de polícia e de direito penal. P ara bem dem onstrar essa problem ática, cham am os a atenção para o sim bolism o representado pelas idiossincrasias constantes na legislação penal brasileira, na qual "ad u lterar chassi de autom óvel" tem pena m aior que "sonegação de tribu tos", e "fu rto de botijão de g ás" p raticad o p or duas pessoas recebe um a pena (bem) m aior do que o crim e de "caixa dois". Mais, se alguém sonega tributos, tem a seu fav or um longo e generoso REFIS;108 já na hipótese do ladrão de de, a sua acomodação, etc.? De qual carioca falam os que pregam a malandragem e a preguiça deste habitante do Rio de Janeiro? Seria o operário que mora na favela da Rocinha ou o rico que mora na zona sul e que toma scotch às três horas da tarde? A qual gaúcho se referem os que o apregoam como sendo trabalhador, viril, sizudo? Seria o fazendeiro, com milhares de vacas pastando no latifúndio ou, quem sabe, o operário da Vila Restinga, em Porto Alegre, com cmco filhos e um mísero salário para sobreviver? Cabe que se indague, por fim, se as características atribuídas ao brasileiro ou aos brasileiros de diferentes estados têm alguma relação com a reali dade, em uma sociedade como a nossa, em que a miséria (con)vive com a opulência. Afinal, se os traços característicos dos brasileiros são todos os elencados por Gilberto Freyre, Buarque de Holanda, Vianna, Chico Anísio, Revista Veja, Jornal Nacional, Alexandre Garcia (e tantos outros, cotidiana mente), já não há mais caraterísticas, pois, logicamente, se ele (o brasileiro!) é tudo isso que dizem (e a pesquisa da Revista Isto É "demonstrou" (sic), ele é, também, nada disso.. Ou seja, como se diz na filosofia, se tudo é, nada é. 108 No ano de 2003 foi promulgada a Lei n° 10.684, que, seguindo a tradição inau gurada pela Lei n° 9.249/95 (que, no seu art. 34, estabelecia a extinção de punibilidade dos crimes fiscais pelo ressarcimento do montante sonegado antes do recebimento da denúncia), estabeleceu a suspensão da pretensão punitiva do Estado referentemente aos crimes previstos nos arts. Io e 2° da Lei n° 8.137/90 e nos arts. 168-A e 337-A do Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacio nada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento (art. 9o). Mais ainda, estabeleceu a nova lei a extinção da punibilidade dos crimes antes referidos quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o paga mento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios. De pronto, cabe referir que inexiste semelhante favor legal aos agentes acusados da prática dos delitos dos arts. 155, 168, caput, e 171, do Código Penal, igualmente crimes de feição patrimonial não diretamente violentos. Fica claro, as sim, que, para o establishmenl, é mais grave furtar e praticar estelionato do que sonegar tributos e contribuições sociais. Daí a pergunta: tinha o legislador discricionariedade (liberdade de conformação) para, de forma indireta, descriminalizar os C iên cia P olítica e T eoria d o E stado
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b otijõ es, m esm o que ele d evolva o m aterial su b traíd o , n ão terá a seu fa v o r o s ben efícios con ced idos aos son egad ores. D o m esm o m odo, a crise p a ra d ig m á tica conseguiu escon d er m u ito bem (não esqueçam os q ue o d iscu rso ideológico tem eficácia na m ed id a em que não é p erceb id o ) o fato de que, co m o advento da Lei n° 1 0 .2 5 9 /0 1 , os crim e s d e ab u so de au torid ad e, m au s-trato s em crian ças, sonegação d e trib u to s, frau d e em licitações, dentre m u itos o u tro s, foram trans fo rm a d o s em soft crimes, isto é, em crim es de "m e n o r potencial ofen s iv o " (sic), tu d o sob o silêncio eloqüente d a co m u n id ad e jurídica.
crimes fiscais (lato sensu, na medida em que estão incluídos todos os crimes de sonegação de contribuições sociais da previdência social)? Poderia o legislador reti rar da órbita da proteção penal as condutas dessa espécie? Creio que a resposta a tais perguntas deve ser negativa. No caso presente, não há qualquer justificativa de cunho empírico que aponte para a desnecessidade da utilização do direito penal para a proteção dos bens jurídicos que estão abarcados pelo recolhimento de tribu tos, mormente quando examinamos o grau de sonegação no Brasil. No fundo, a previsão do art. 9o da Lei n° 10.684/03 nada mais faz do que estabelecer a possibi lidade de converter a conduta criminosa - prenhe de danosidade social - em pecúnia, favor que é negado a outras condutas. Também aqui - com raríssimas exceções - não tem havido qualquer resistência constitucional no plano da operacionalidade do Direito. A respeito do tema, ver STRECK, Lenio Luiz. "Da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot): de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais". Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, (Neo)constitucionalismo, n. 2, Porto Alegre, 2004, p. 243-284.
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6. O Estado de Direito 6.1. C on sid erações gerais Se o E stad o se configura com o instituição, o p od er d e m an d o em d ad o território não prescinde do Direito p ara fazer co m que os d em ais elem entos que com põem a sua ossatura sejam im p le m e n ta dos. E stad o e D ireito, pois, na perspectiva clássica, p a ssa m a ser com p lem en tares e interdependentes, aquele m on op olizan d o - ou pretend en d o - a pro d u ção e aplicação deste. C om efeito, no plano teórico, o Estado de Direito e m e rg e co m o um a con stru ção p rópria à segunda m etade do século XIX, n a sce n d o na A lem anha - com o Rechtstaat - e, posteriorm ente, sen d o in co rp o rad o à dou trina francesa, em am bos com o um debate a p ro p ria d o pelos juristas e vinculado a uma percepção de hierarquia d a s re g ra s juríd icas, com o objetivo de enquadrar e limitar o p o d e r d o E sta d o pelo D ireito. O d evir histórico, entretanto, recupera tal conceito, a ssu m in d o o D ireito com o um ponto de referência estável e a p ro fu n d a n d o o m odelo através d e seu con teú d o, fazendo suplantar a idéia d e E stad o de D ireito com o de uma pura legalidade. P od em -se, en tão , apon tar três visões próprias a este fen ô m en o: A - Visão Formal, onde se vincula a ação do E stad o ao D ireito, ou seja, a atu ação estatal é jurídica, exercitan n d o -se a tra v é s de regras jurídicas. B - Visão Hierárquica, na qual a estruturação e sca lo n a d a d a o r dem jurídica im põe ao Estado sua sujeição ao D ireito. C - Visão Material, que implica a imposição de atributos intrínsecos ao Direito, ou seja, aqui, a ordem jurídica estatal p ro d u z -se tendo certa substancialidade com o própria. H á u m a qu alifi cação d o E stad o pelo Direito e deste p or seu co n te ú d o . O E stad o de Direito su rge desde logo com o o E sta d o que, n as suas relações com os indivíduos, se submete a um regim e de direito q u an d o , então, a ativ id ad e estatal apenas pode d e sen v o lv er-se u tili C iên cia P olítica e T eo ria do E stado
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zando um instrum ental regulado e autorizado pela ordem jurídica, assim com o, os indivíduos - cidadãos - têm a seu dispor mecanismos jurídicos aptos a salvaguardar-lhes de uma ação abusiva do Estado.10* A idéia de Estado de Direito carrega em si a prescrição da su prem acia da lei sobre a autoridade pública. Na sua origem germ â nica, está em bãsada na autolim itação do Estado pelo Direito, pois é o Estad o a única fonte deste, atribuindo-lhe força coercitiva, e é o D ireito criação daquele. A doutrina francesa, já no século XX, irá Duguit, H auriou,110 C arré de M alberg etc. - questionar tal form ula ção, agregando-lhe novas perspectivas. C ontudo, o F.stado de Direito d iferend ar-sc-á tanto do Estado Polícia — no qual o D ireito é apenas um instrum ento sob plena dis ponibilid ad e do Estado - quanto do Estado Legal, onde, mesmo sendo a lei lim ite e condição da atividade adm inistrativa, não há o privilegiam ento hierárquico da ordem jurídica, cristalizando-se uma suprem acia parlam entar, sequer uma vinculação de conteúdos que lhe são inerentes. D eve-se ter presente que esta perquirição referenda, no quadro de nosso trabalho, a perspectiva de elaboração de uma leitura acerca da estatalidade do Direito, a qual é apropriada por uma pretensão de conteúdo. Embora a intenção de montagem de uma teoria jurídica do Estado de D ireito, isenta de vinculações, devem os ter presente alguns aspectos encontrados na elaboração histórica do mesnio. 6.2. A apresentação do Estado de D ireito E ste Estado que se juridiciza/legaliza é, todavia, m ais e não apenas um Estado jurídico/legal. Não basta, para cie, assum ir-se e apresentar-se sob uma roupagem institucional norm ativa. Para além da legalidade estatal, o Estado de D ireito representa e referenda um algo m ais que irá se explicitar em seu conteúdo. Ou seja: não é apenas a forma jurídica que caracteriza o Estado mas, e sobretudo, a ela agregam -se conteúdos. 109 Ver: Ctievallier, Jacqucs. L 'tla l de Droit. 2 ' ed. Paris: M ontchrcstien. 1994, p. 12 e ss. un E stes autores, entre outros, irão recolocar o debate acerca da exclusividade estatal de produção jurídica. Para eles, há um Direito superior àquele do Estado consubs tanciado, p . ex., na Declaração de Direitos. Duguit crê em uma juridicidade produ zida através da solidariedade, enquanto Hauriou fala de uma constituição social. Ambos, jun tam ente com Gurvitch, apontam para a idéia de um direito social. Ver, ainda: M orais, José Luis Bolzan de. A Idéia de Direito Social. O pluralism o jurídico de G eorges G urvitch. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. 92
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C) século XX irá dem onstrar claram ente esta assertiva. A dim en são de conteúdo do listado de Direito aproxim a os m odelos alem ão c francês do seu vizinho insular, o modelo britânico do rtilc o f law. Assim, o Estado de Direito não se apresenta apenas sob unia forma jurídica calcada na hierarquia das leis, ou seja, ele não estó limitado apenas a uma concepção formal de ordem jurídica mas, também, a um conjunto de direitos fundam entais próprios de uma determ inada tradição.1" D eve-se atentar, ainda, para algum as críticas. Em especial para a construção de uma concepção idealizada do Direito, legitim adora da autoridade estatal, produzindo um valor m ítico para a ordem jurídica através do fetichism o da regra, quando a norm a jurídica tende a estar form atada pela realidade mesma, capaz de fazer advir aquilo que enuncia; e a passagem para a forma jurídica vem a cons tituir a garantia suprem a.112 Feita esta ressalva, im porta, aqui, ressaltar que a m aterialidade do Estado de Direito se subslancializa sob os contornos da forma jurídica, mas com ela não se identifica. Ao contrário, à form alidade jurídica são incorporados conteúdos que se juridicizam sob o Direito do Estado. Diz J. Chevallier: A construção da teoria do Estado de Direito não pode ser feita no acaso ou como produto de uma lógica puram ente interna ao cam po jurídico: a teoria é dissolvida sobre um certo terreno ideológico, enraizado num a certa realidade social e política, afastada de suas referências, ela não aparece m ais do que como uma concha vazia, um quadro form al, podendo-se dizê-la in significante.113 O u, ainda o Estado de Direito não é m ais considerado somente como um dispositivo técnico de lim itação de poder, resultante do enquadram ento do processo dc produção de norm as jurídicas; ó também uma concepção que funda liberdades públicas, de dem ocra cia, e o Estado de D ireito não é mais considerado apenas com o um dispositivo técnico de lim itação do poder resultante do enquadra mento do processo de produção de norm as jurídicas. O Estado de Direito é, tam bém, uma concepção de fundo acerca das liberdades públicas, da dem ocracia e do papel do Estado, o que constitui o hm dam cnto subjacente da ordem juríd ica.114 I I Chevallier, op. cit., p. 73. Apesar disso, nâo se pode esquecer que, também sob o aspecto form al, o Hstado de Direito teve desdobram entos através do aprofunda mento dos m étodos de controle da atuação adm inistrativa estatal, bem com o da sun .ituação legislativa, por m eio do controle de constitucionalidade da leis. 112 Idem, ibidem, p. 64. III Idem, ibidem, p. 54. 114 Idem, ibidem , p. 74. C iência Política e Teoria do Fstado
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Assim , o Estado de D ireito irá se apresentar ora com o liberal em sen tid o e strito , ora com o so cial e, por fim , com o d em ocrático. C ada um d eles m olda o D ireito com seu conteúdo, com o verem os a seguir, sem que, no entanto, haja uma ruptura radical nestas trans form ações.
6.2.1. O Estado Liberal de Direito
Portanto, im põe-se que façam os uma construção partindo da form ulação da idéia de Estado dc Direito que em erge com o expressão ju rídica da dem ocracia liberal.115 N esta tradição, pode-se definir o Estado L iberal de D ireito como sendo "um Estado cuja função principal é estabelecer e m anter o D ireito cujos lim ites de ação estão rigorosam ente definid os por esle, bem entendido que D ireito não se identifica com qualquer lei ou conjunto de leis com indiferença sobre seu conteúdo (...) O Estado de D ireito significa, assim , uma lim itação do pod er do Estado pelo D ireito, porém não a possibilidade de legitim ar qualquer critério concedendo-lhe form a dc le i...".116 PoTtanto, não basta que um Estado possua uma qualquer lega lidade. Ind ispensável será que seu conteúdo reflita um determ inado ideário. O u seja, para o Estado ser de D ireito, não é suficiente que seja um Estado Legal. O que sc observa, portanto, é que no seu nascedouro o concei de Estado dc D ireito em erge aliado ao conteúdo próprio do libera lism o ,117 im pondo, assim , aos liam es juríd icos do Estado a concreção do id eário liberal no que diz com o princípio da legalidade - ou seja, a subm issão da soberania estatal à lei - a divisão de poderes ou funções e, a nota central, garantia dos direitos individuais.
11s C fe. S ilva, Jo se A fo n so d a . "O H stado D e m o c rá tic o d e D ire ilo " , Revista da PCE/SP, p. 61. 116 C fe. G a rc ia -P e la y o , M a n u e l. Ias Transfortnaciones dei Estado Contemporâneo. M ad rid : A lia n z a . 19N2, p. 52. 117 P a ra u m a p e rc e p ç ã o cla ra , e m b o ra lim ita d a , d e s te te m a , v er: M a c rid is , K oy, o p. cit. E ste a u to r faz u m a in te re s s a n te d iv isã o d o lib e ra lis m o ern 3 n ú cleo s: u m m o ra l, q u e r e p r e s e n ta o s d i r e ito s n a tu r a i s d o in d iv íd u o e a s lib e r d a d e s n e g a tiv a s ; u m e c o n ô m ic o c a r a c te r iz a d o p e lo in d iv id u a lis m o e c o n ô m ic o , o liv re m e r c a d o , o i n d iv id u a lis m o e c o n ô m ic o e os d ire ito s c o r re s p o n d e n te s e u m n ú c le o p o lític o - o u p o lític o -ju ríd ic o - o n d e e sta ria m p re se n te s a s c o n q u is ta s in c o r p o ra d a s ao c o n stitu c io n a lism o , c m e s p e c ia l o s d ire ito s p o lítico s p ró p rio s à d e m o c ra c ia re p re s e n ta tiv a . 94
i.ftün Luiz Streck Josá Luis Dolzan de Morais
Pode-se apontar com o características deste tipo de Estado de I Jlrelto: A - Separação entre Estado e Sociedade Civil mediada pelo Direi to, este visto com o ideal de justiça. B • A garantia das liberdades individuais; os d ireitos do homem aparecendo com o m ediadores das relações entre os indiví duos e o Fstado. C - A d em ocracia su rge vincu lad a ao id eário da soberania da nação produzido pela R evolução Francesa, im plicand o a aceitação da origem consensual do Estado, o que aponta para a idéia de representação, posteriorm ente m atizada por m ecan ism os d e d em o cra cia sem id ireta - referendum e plebiscito - bem com o, pela im posição de um controle hie rárquico da produção legislativa através do controle de constitucionalidade. D - O Estado tem um papel reduzido, apresentando-se com o Es tado M ínim o, assegurando, assim , a liberdade de atuação dos indivíduos. Não se trata, com o se quer m uitas vezes, de um total alheam en to do conteúdo juríd ico do Estado, com o bem aponta G arcia-Pelayo. F.m realidade, tem -se a consubstanciação do conteúdo político do liberalism o na form a juríd ica do Estado ou Estado Liberal de Direito. Não é correto, pois, identificar o Estado dc D ireito ao "E stad o Le gal". Há um forte conteúdo político sustentado em uma juridicidade, im plem entada fundam entalm ente nas diversas form as de positivis mo jurídico, que nunca foi íieutro. Por outro lado, devem os ter claro que a legalidade não contém in totum a idéia de Estado de Direito, m uito em bora sua origem alem ã com o Rechtstaat esteja ligada à idéia de hierarquia das norm as e nutolim itação, com o já apontado anteriorm ente. E nesta trajetória que se biparte este conceito em form al - relativo ao m ecanism o dc atuação estatal, restrito à legalidade (lei) - e material - que diz com o conteúdo da ação estatal e da relação listado-cidadão. Portanto, Estado de D ireito, m esmo cm sua acepção liberal ori ginária, não c conceito a ser utilizado d escontextualizado de seus vínculos m ateriais, para não cair-se na deform ação do Estad o Legal. Deve-se tratá-lo nos seus vínculos externos e, aqui, vem os que, desde os prim órdios, ele se confunde com o conteúdo global do liberalis mo, com o dito acima. O que se impõe é que à própria id éia de Estado de D ireito está adscrito um conteúdo específico, sob pena de perderse a própria idéia do m esmo. Ciência Política c Teoria do Estado
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A nota central deste Hstado Liberal de D ireito apresentei-sc com o uma lim itação jurídico-legal negativa, ou seja, com o garantia dos ind ivídu os-cid ad ãos frente à eventual atuação do Estado, im pe ditiva ou constrangedora de sua atuação cotidiana. Ou seja: a este cabia o estabelecim ento dc instrum entos jurídicos que assegurassem o livre desenvolvim ento das pretensões individuais, ao lado das restrições im postas à sua atuação positiva. Em razão disso é que o D ireito, próprio a este Hstado, terá com o característica central e como m etodologia eficacial a coerção das atitudes, tendo com o m ecanism o fundam ental a sanção. 6.2.2. O E slado Social dc Direito Apesar de sustentado o conteúdo próprio do Estado de D ireito no individualism o liberal, faz-se m ister a sua revisão frente à própria disfunção ou desenvolvim ento do m odelo clássico do liberalism o. Assim , ao D ireito antepõe-sc um conteúdo social. Sem renegar as conquistas e os valores im postos pelo liberalism o burguês, dá-selhe um novo conteúdo axiológico-político. D essarte, o Estado "a co lhe os valores jurídico-p olíticos clássicos; por?fn7~de acordo com o sentido que vem tom ando através do curso histórico e com as de m andas c condições da sociedade do presente (...). Por conseguinte, não som ente inclui direitos para lim itar o Estado, senão tam bém direitos às prestações do Estado (...). O Estado, por conscgu inte, não som ente deve om itir tudo o que seja contrário ao D ireito, isto c, a legalidade inspirada em uma idéia de D ireito, senão que deve exercer uma ação constante através da legislação e da adm inistração que realize a idéia social de D ireito".lw A adjetivação pelo social pretende a correção do individualism o liberal por interm édio de garantias coletivas. C orrige-se o liberalis m o clássico pela reunião do capitalism o com a busca do bem -estar social, fórm ula geradora do welfare State neocapitalista no pós-Segunda G uerra M undial. — ----- Com o Estado Social de Direito, projeta-se um m odelo onde o bem -estar e o desenvolvilm ento social pautam as ações do ente pú blico. Para M anuel G arcia-Pelayo, o Estado Social de D ireito significa um Estado sujeito à lei legitim am ente estabelecida com respeito ao texto e às práticas constitucionais, indiferentem ente de seu caráter form al ou m aterial, abstrato ou concreto, constitutivo ou ativo, à 118 C fe. G a rc ia -P e la y o , o p. cit., p . 56.
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Lenio Luiz Slreck Jo sé l.iiis B ohati de Morais
qual, de qualquer m aneira, não pode colidir com os preceitos sociais i-Nl.ihelccidos pela C onstituição e reconhecidos pela práxis co n stitu cional com o norm atização dc valores por e para os quais se constitui o üstado Social e que, portanto, fundam entam a sua legalid ad e.119 N este quadro, esvai-se a noção de legalidade própria do ideário liberal, pois a lei passa a ser utilizada não m ais, apenas, com o ordem geral e abstrata, m as, cada vez m ais, apresenta-se esp ecífica e com destinação concreta - a generalidade da lei era considerada fulcro do Estado de D ireito - m as, sim com o instrum ento de ação, muitas vives, com caráter esp ecífico e concreto, atendendo critérios circuns tanciais. A transform ação do Estado Liberal de D ireito não se dá, assim , a penas no seu conteúdo íinalístico, mas, tam bém , na reconceituali/ação de seu m ecanism o básico de atuação, a lei. Todavia, o conteú do social adrede ao Estado não abre perspectiva a que se concretize uma cabal reform ulação dos poderes vigentes à época do m odelo clássico. Precisa ser referido que, mesmo sob o Estado Social de Direito, .1 questão da igualdade não obtém solução, em bora sobrepuje a sua percepção puram ente form al, sem base m aterial. 6.2.3. O Estado D em ocrático de Direito É por essas, entre outras, razões que se desenvolve um novo conceito, na tentativa de conjugar o ideal dem ocrático ao Estado de I )ireito, não com o um a aposição de conceitos, mas sob um conteúdo próprio onde estão presentes as conquistas dem ocráticas, as garanlias juríd ico-legais e a preocupação social. Tudo constituindo um novo conjunto onde a preocupação básica c a transform ação do status l / I I O.
O conteúdo da legalidade - princípio ao qual perm anece vincu lado -"assu m eiT íõ rm a de busca efetiva da concretização da igualda de, não pela generalidade do com ando norm ativo, m as pela realização, através dele, de intervenções que im pliquem diretam ente uma alteração na situação da com unidade. O Estado D em ocrático de D ireito tem um conteúdo transform a dor da realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito, .i uma adaptação m elhorada das condições sociais de existência. Assim, o seu conteúdo ultrapassa o aspecto m aterial de concretiza ção de uma vida digna ao homem e passa a agir sim bolicam ente 119 C fe. G a rc ia -P e la y o , o p. cit., p . 64. < iôneia Política e I coria do Estado
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com » fom entador da participação pública no processo dc construçAo e reconstrução de um projeto de sociedade, apropriando-se do cará ter incerto da dem ocracia para veicular uma perspectiva de futuro voltada à produção de uma nova sociedade, onde a questão da de m ocracia contém e im plica, necessariam ente, a solução do problem a das condições m ateriais de existência. Com efeito, são princípios do Estado D em ocrático de Direito: A - C onstitucionalidade: vinculação do Estado D em ocrático dc D ireito a uma C onstituição com o instrum ento básico dc ga rantia ju ríd ica;120 120 O fe n ô m e n o d a c o n s titu c io n a l id a d e (o u d o c o n s titu c io n a lis m o ) im p lica o e n fre n ta m e n to d e u m p a ra d o x o , r e p re s e n ta d o p elo m o d o co m o esse fe n ô m e n o é e n g e n d r a d o na h is tó ria m o d e rn a . C o m efeito , a C o n stitu iç ã o n asce c o m o u m p a ra d o x o p o r q u e , d o m e s m o m o d o q u e s u rg e co m o ex ig ên cia p a r a c o n te r o p o d e r a b s o lu to d o re i, e s ta b e le c e -se ta m b é m co m o m ecan ism o d e c o n te n ç ã o d o p o d e r d a s m aio ria s. T a lv e z n e s te a s p e c to - a ex istê n cia d e u m a re g ra co n tra m a jo ritá riii - é q u e re sid a o g r a n d e d ile m a d a d e m o c ra c ia n a q u ilo q u e e la d e ita ra íz e s h is tó ric a s n o d ire ito (c o n stitu c io n a l) e c o m ele tem u m p r o fu n d o d é b ito . É n e s te p o n to , aliás, q u e L aure n c e T rib e co m eça se u in flu e n te tra ta d o so b re d ire ito c o n s titu c io n a l (Cfe. T ribe, L a u re n c e . American Constitutional Law. F o u n d a tio n P re ss, M e n e o la , 1978), p r o c u ra n d o e n f re n ta r esse d ile m a fu n d a m e n ta l re p re s e n ta d o p e la d is c ó rd ia e n tre a p o lílica m a jo ritá ria e os a n te p a r o s p re v isto s n o te x to c o n s titu c io n a l: e m su a fo rm a m ais b á sic a , a p e r g u n ta é p o r q u e u m a n a ç ã o q u e fu n d a m e n ta a le g a lid a d e so b re o c o n s e n tim e n to d o s g o v e r n a d o s d e c id iria c o n s titu ir su a v id a p o lític a m e d ia n te u m c o m p ro m is so co m u m p a c lo /a c o r d o o rig in a l e s tr u tu r a d o d e lib e r a d a m e n te p a r a d i f ic u lta r m u d a n ç a s . D e d iv e rs a s m a n e ira s, este p ro b le m a tem s id o a p re s e n ta d o , a d u z T rib e , in d a g a n d o : c o m o sc p o d e re c o n c ilia r o c o n s e n tim e n to d o s g o v e rn a d o s co m a g a ra n tia d e u m c o n s e n tim e n to u lte rio r m e d ia n te u m a c o n v e n ç ã o c o n stitu c io n a l? P or q u e u m m a rc o c o n s titu c io n a l, ra tific a d o h á d o is sé cu lo s, d e v e ex ercer tã o g ra n d e p o d e r so b re n o s s a s v id a s atu a is? P o r q u e so m e n te a lg u n s d e n o sso s c o n c id a d ã o s p o ss u e m a f a c u ld a d e p a r a im p e d ir q u e se façam e m e n d a s à C o n s titu iç ã o ? A re v isã o ju d ic ia l, q u a n d o e s tá b a s e a d a em u m a le a ld a d e su p e rs tic io sa e m re la ç á o à in te n ç ã o d e s e u s c ria d o re s , é c o m p a tív e l com a so b e ra n ia p o p u la r? (C fe. T ribe, o p .cit.; H o lm es, S te p h e n . "K l p re c o m p ro m is o y la p a ra d o ja d e la d e m o c ra c ia " . In: C onstitucio nal istno y Democracia. Jo n E lster y R u n e S la g sta d (org). M éxico, F o n d o d e C u ltu ra E conôm ica, 2003, p . 217 e segs). Se se c o m p re e n d e s se a d e m o c ra c ia c o m o a p r e v a lê n c ia d a re g ra d a m a io ria , p o d e r-se -ia a firm a r q u e o c o n s titu c io n a lis m o c a n tid e m o c rá tic o , n a m e d id a c m q u e este " s u b tra i" d a m aio ria a p o s s ib ilid a d e d e d e c id ir d e te r m in a d a s m a té ria s , r e s e rv a d a s e p ro te g id a s p o r d is p o s itiv o s c o n tra m a jo ritá rio s (Cfe. E lster, Jon. Introducción a obra Constitucionalismn y Democracia. Jon E lster y R u n e S la g sta d (org). M éxico, C o lé g io N a c io n a l d e C iên c ia s P o lític a s y A d m in istra c ió n P ú b lica, A . C.; F o n d o d c C u ltu ra E conôm ica., 2001, p. 34 e 35). O d e b a te se a lo n g a e p a re c c in te rm in á v e l, a p o n to de a lg u n s teó rico s d e m o n s tr a r e m p re o c u p a ç ã o com o fa to d e q u e a d e m o c ra c ia p o s s a ficar p a ra lis a d a p elo c o n tra m a jo rita ris m o c o n s ti tu c io n a l, e, d e o u tr o , o firm e te m o r d e q u e , em n o m e d a s m a io ria s, sc ro m p a o d iq u e c o n s titu c io n a l, a r ra s ta d o p o r u m a esp écie d e re to rn o a R o u sse a u . A í q u e, d e s d e logo, c o n s id e ro n e c e s sá rio d e ix a r c laro q u e a c o n tra p o siç ã o e n tr e d e m o c ra c ia e c o n s titu c io n a lism o é u m p e rig o so re d u c io n ism o . N ã o fosse p o r o u tr a s ra z õ e s , n ã o se p o d e 98
Lenio Luiz Streck José I.ui8 Holzati de Morais
U - O rg a n iz a çã o D em o crática da S o cie d a d e ;
C - Sistem a de direitos fundamentais individuais e coletivos, seja com o Estado de distância, porque os direitos fundam entais asseguram ao homem uma autonom ia perante os poderes públicos, seja com o um Estado antropologicam ente amigo, pois respeita a dignidade da pessoa hum ana e em penha-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e da solid arie d ad e;121 D - Justiça Social com o m ecanism os corretivos das desigu ald a des; E - Igualdade não apenas como possibilidade form al, m as, tam bém , com o articulação dc uma socied ad e justa; F - D ivisão de Poderes ou de Funções; G - Legalidade que aparece como medida do direito, isto é, através dc um meio de ordenação racional, vinculativam ente prescritivo, de regras, form as e procedim entos que excluem o arbítrio e a p repotência;122 H - Segurança e C erteza Jurídicas. A ssim , o Estado D em ocrático de D ireito teria a característica de ultrapassar não só a form ulação do Estado Liberal de D ireito, como também a do Estado Social de Direito - vinculado ao W elfare slate neocapitalista - im pondo à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo u tópico d c transform ação da realidade. D ito de outro modo, o Estado D em ocrático é plus norm ativo em relação às form u lações anteriores. V ê-se que a novidade que apresenta o Estado D em ocrático de Direito é m uito m ais em um sentido teleológico de sua norm atividade do que nos instrum entos utilizados ou m esm o na m aioria de seus conteúdos, os quais vêm sendo construídos de algum a data. p e r d e r d e v ista o m ín im o , isto é, q u e o E sta d o C o n s titu c io n a l só ex iste <* to m o u -s r p e re n e a p a r tir e p o r m e io d e u m p ro c e ss o p o lític o c o n s titu c io n a lm e n te re g u la d o (L o ew e stein ). N a v e r d a d e , a afirm a ç ã o da ex istê n c ia d c u m a ' te n s ã o " irreco n c iliáv e l e n tre c o n s titu c io n a lis m o e d e m o c ra c ia é u m d o s m ito s c e n tra is d o p e n s a m e n to p o lític o m o d e r n o (H o lm e s, o p . rit., p. 219), q u e e n te n d e m o s d e v a se r desm i(s)tificn d o . F rise-se, a d e m a is , q u e , se e x istir a lg u m a c o n tra p o siç ã o , e s ta o c o rre necessarin m e n te e n tr e a d e m o c ra c ia c o n s titu c io n a l e d e m o c ra c ia m a jo ritá ria , q u e s tã o q u e vem a b o r d a d a e m a u to r e s c o m o D w o rk in , p a r a q u e m a d e m o c ra c ia c o n s titu c io n a l p re s s u p õ e u m a te o ria d e d ir e ito s f u n d a m e n ta is q u e te n h a m e x a ta m e n te a fu n çao d e co lo c a r-se c o m o lim ite s /f r e io s à s m a io ria s e v e n tu a is (D w o rk in , R o n a ld . Uma questllo de Princípio. S ão P a u lo , M a rtin s F ontes, 2000, p . 80 e segs.). 131 C fe. C a n o tilh o , J. J. G o m e s e M o reira, Vital. Fundam entos
C iência P olítica e Teoria do Estado
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Para sintetizar esto debate, poderíam os sustentar que, como contraposição ao m odelo absolutista, o m odelo liberal se form aliza com o Estado de Direito. Este se afasta da sim plista form ulação com o estado legal, pois pressupõe não apenas uma regulação jurídico-norm ativa qualquer, mas uma ordenação calcada em determ inados co n teúdos. E é neste ponto que as várias possibilidades se produzem . # 'C o m o liberal, o F slad o de D ireito sustenta juridicam ente o co n teúdo próprio do liberalism o, referendando a lim itação da ação es tatal e tendo a lei com o ordem geral e abstrata. Por outro lado, a efetividade da norm atividade c garantida, genericam ente, através da im posição de uma sanção diante da desconform idade do ato prati cado com a h ip ótese norm ativa. Transm u tad o em social, o Estado de D ireito acrescenta à juridicidade liberal um conteúdo social, conectando aquela restrição à atividade estatal a prestações im plem entadas pelo Estado. A lei p as sa a ser, privilegiadam ente, um instrum ento de ação concreta do E stado, tendo com o m étodo assecuratório de sua efetivid ad e a pro m oção de determ inadas ações pretendidas pela ordem jurídica. r-Em am bas as situações, todavia, o fim ultim ado é a adaptação à ordem estabelecida. Q uando assum e o feitio dem ocrático, o Fstado de D ireito tem com o objetivo a igualdade e, assim , não lhe basta lim itação ou a prom oção da atuação estatal, m as referenda a pretensão à tran sfor m ação do slatu s quo. A lei aparece com o instrum ento de transform a ção da socied ad e não estando m ais atrelada in elu tavelm ente à sanção ou à prom oção. O fim a que pretende é a con stan te reestru turação das p róprias relações sociais. É com a noção de Estado de D ireito, contudo, que liberalism o e dem ocracia se interpenetram , perm itindo a aparente redução das antíteses econôm icas e sociais à unidade form al do sistem a legal, principalm ente através de um a C onstituição, onde deve prevalecer o interesse da m aioria. Assim, a C onstituição é colocada no ápice de uma pirâm ide escalonada, fundam entando a legislação que, enquan to tal, é aceita com o poder legítim o. A ssim , e com intuito dc dispersar ou absorver as contradições decorrentes da diversidade socioeconôm ica, pondo à m ostra o fala cioso princíp io da isonom ia (form al) diante da lei, o liberalism o juríd ico-p olítico alberga as noções de um ordenam ento com pleto, ausente de lacunas e hierarquizado que, para conseguir a reprodu ção da dom inação vigente, requer a aceitação acrílica de norm as básicas, ...calibrando expectativas e ind u zind o à obediência no sen tido de uma vigorosa prontidão generalizada de todos os cidadãos
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Lenio Luiz Slreck
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Biblioteca "Prof. José Storópou J
josé Luis Bolzan de Morais
porn rt rtceltnçflo passiva do n u i i r n i » g r r n l s e im possonis ou soja, das p re s criçõ e s legais ain d a in do lo rm lnad as q u a n to ,10 sou co n te ú d o c o n c r e t o . 133
Todavia, este processo não se díi sem rupturas e transformaçOes. O D ireito do Estado vai assum indo o conteúdo das transformaçOes pelas qu ais este passa. Km síntese, a transform ação do conceito de Estado de Direito irá im plicar a assunção dc um novo feitio para Estado e D ireito. Para explicitar esta transform ação, podem os propor o seguinte quadro exp licativ o :124 ESTAD O M O D ERN O
|
A B S O L U T IS T A
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|
|
E s t a d o le gal
|
1
L I bI
r
AL
E s t a d o d e D ire ito
|
Estado Liberal de Direito
Estado Social de Direito
Estado Democrático da Direito
conteúdo jurídico do liberalismo
questão social
igualdade
limitação da ação estatal
prestações positivas
transform ação do
lei = ordem geral a abstrata; não impedimento
lei = instrumento de ação concreta do Estado; facllltação; a ce sso
lei = Instrumento de transformação; solidariedade
indivíduo
grupo
comunidade
sanção
promoção
“educação"
adàplaçãc)
~]
status quo
I
r e e s t r u lu r j ^ T
Tal estrutura nos mostra, grosso modo, duas dicotom ias - absolutista/liberal e Estado Legal/Estado de D ireito - que vão se insta lando conjuntam ente com o estabelecim ento do que convencionam os apontar com o Estado M oderno, ou seja, aquele Estado no qual apa rece u nificad o um centro de tom ada e im plem entação de decisões, 123 C fc. F aria, Jo se E d u a rd o . Direito e Justiça - A Função Social do ju diciário. São Paulo: Á tica, 1989, p . 25. 124 A lg u m a s d a s c a ra c te rístic a s a q u i a p o n ta d a s e s tã o p re s e n te s em : F aria, Jo»< E d u a rd o . Justiça e Conflito. Os juizes em fa ce dos novos m ovim entos sociais. S ão Paulo: RT. 1991. F.m e sp e c ia l, v e r ite n s 1 e 2. V er, a in d a , B o lza n d c M o ra is, Jo sé L uis. Do D ireito Social aos Interesses Transindim duais. P o rlo A legre: Liv. d o A d v o g a d o , 1996, p. 65 e seg s. C iência Política e Teoria do Estado
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caracterizado pelo poder soberano incontrastável sobro um determ i nad o espaço geográfico - território. D e início, estabelecem os uma grande dicotom ia que irá se apre sentar na base d o Estado M oderno, colocando de um lado o estado absolu tista, caracterizado pela figura do m onarca que se identificava com o próprio Estado e, de outro, tem os o desenvolvim ento do m odelo liberal que, desde suas origens, significou a lim itação do poder e o estabelecim ento de garantias próprias aos indivíduos, ao lado de um a m ecânica econôm ica assentada na liberdade contratual e no livre desenvolvim ento do m ercado. C ontudo, o que nos im porta, aqui, é, tom ando com o substrato básico o m odelo liberal, pensar com o se desenvolve no seu interior a estrutura do Estado de D ireito, partindo de seu m odelo liberal clássico para chegaT a um ponto de quase ruptura, representado pelo Estado D em ocrático de Direito. Para tanto, é fundam ental que se perceba que a teoria do Estado de D ireito foi confrontada, no século XX, com um duplo desafio. Um prim eiro proveniente do surgim ento dos regim es totalitários, nos quais a ordem ju ríd ica não se apoiava cm nenhum valor subjacente ao Estado de D ireito. O utro, proveniente da construção do Estado de Bem -Estar, que m odificou profundam ente o substrato liberal so bre o qual se fundava o ideário do Estado de D ireito. Ambos acabam por contribu ir para a em ersão de uma concepção substancial de Estado de D ireito.125 T endo-se assente a distinção entre Estado Legal e Estado de D ireito, aquele restrito à forma da legalidade, enquanto este in cor pora à m esm a determ inados conteúdos, pode-se pensar, no interior deste últim o, um a tripartição que se expressa por Estado l iberal de D ireito, Estado Social de D ireito e Estado D em ocrático de Direito. O Estado Libera 1 de D ireito apresenta-se caracterizado pelo con teúdo liberal de sua legalidade, onde há o privilegiam ento das liber dades negativas, através de um a regulação restritiva da atividade estatal. A lei, com o instrum ento da legalidade, caracteriza-se com o uma ordem geral e abstrata, regulando a ação social através do não-im pedim ento de seu livre desenvolvim ento; seu instrum ento básico c a coerção através da sanção das condutas contrárias. O ator característico é o indivíduo. O desenrolar das relações sociais produziu um a transform ação neste m odelo, dando origem ao Estado Social dc D ireito que, da m esm a form a que o anterior, tem por conteúdo ju ríd ico o próprio ideário liberal agregado pela convencionalm ente nom inada questão l2p C fe. C h e v a llic r, o p . cit., p. 99.
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social, a <11i.iI trii/. à baila os problem as próprios ao desenvolvim ento (Un rclaçÃos d c produção e aos novos conflitos em ergentes de uma Hoclcdade renovada radicalm ente, com atores sociais d iversos e conIIíIom próprios a um m odelo industrial-dcsenvolvim entista. Tem os .u|iii a construção de uma ordem juríd ica na qual está presente a lim itação do Estado ladeada por um conjunto de garantias e prestaçOes positivas que referem a busca de um equilíbrio não atingido pela sociedade liberal. A lei assume uma segunda função, qual seja ,1 de instrum ento de ação concreta do F.stado, aparecendo com o m ecanism o de facilitação de benefícios. Sua efetivação estará ligada privilegiadam ente à prom oção das condutas d esejadas.12'’ O personagem principal é o grupo que se corporifica diferentem ente em cada m ovim ento social. Ao final, o que se observa é uma certa identidade nestes m ode los apresentados, podendo-se dizer que am bos têm com o fim comum .1 adaptação social. Seu núcleo básico perm anece intocado. A novidade do Estado D em ocrático de D ireito não está em uma revolução das estruturas sociais, mas d eve-se perceber que esta nova conjugação incorpora características novas ao m odelo tradicional. Ao lado do rníd eo liberal agregado à questão social, tem -se com este novo m odelo a incorporação efetiva da questão da igualdade como um conteúdo próprio a ser buscado garantir através do asseguraIJh O p r o b le m a d a fu n ç ã o p ro m o c io n a l d o D ireito a p a re c e c o m o u m a d a s nova» técn icas d e c o n tro le so cial, p r ó p r ia d o e s ta d o so c ial, o u seja, o e n c o ra ja m e n to d c ações p r e te n d id a s . Tal c a ra c te rístic a p o d e se r p e rc e b id a in c lu siv e n o e s tu d o d o c o n s titu c io n a lis m o , o n d e a s c o n s titu iç õ e s d e c a rá te r lib e ra l clássico a p o n ta m p a ra a lu te la d e d ir e ito s co m o c a ra c te rístic a q u e lhe é f u n d a m e n ta l, e n q u a n lo a s c o n s titu i çõ es c o n te m p o r â n e a s a p o n ta m p a r a a p ro m o ç ã o c o m o técn ica d e c o n se c u ç ã o do o b jetiv o s. C o m o d iz B obbio: In u n o rd in a m e n to re p re ssiv o la técn ica tip ic a a ttra v e rso c u i si a ttu a n o le m is u re in d ire tte £■lo sc o ra g g ia m e n to ; in u n o rd in a m e n to p ro m o zio n ale, la técn ica tip ic a d e lle m is u re in d ire tte è l'in c o ra g g ia m e n to . A q u e s to p u n to sia m o m g r a d o d i d e fin ire "s c o ra g g ia m e n to " q u e lla o p e ra z io n e c o n c u i A cerca di ín flu e n z a re il c o m p o rta m e n to n o n v o lu to (n o n im p o rta se c o m m iss iv o o o m issivo) di 1!, o o s ta c o la n d o o a ttr ib u e n d o g li c o n s e g u e n z e sp ia c c v o li; s im m e tric a m e n te , "in
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m ento juríd ico de condições m ínim as de vida ao cidadão e i* com u nidade. Hmbora tal problem ática já fosse visível no m odelo anterior, há, neste últim o, uma redefinição que lhe dá contornos novos onde tal objetivo sc coloca vinculado a um projeto solidário - a solidariedade agrega-se a ela com pondo um caráter com unitário. Aqui estão inclu sos problem as relativos à qualidade de vida individual e coletiva dos hom ens. A atuação do Estado passa a ter um conteúdo de transform ação do status quo, a lei aparecendo como um instrum ento de transform a ção por incorporar um papel sim bólico prospectivo de m anutenção do espaço vital da hum anidade. Dessa form a, os m ecanism os utili zados aprofundam paroxisticam ente seu papel prom ocional, m utando-o em transform ador das relações com unitárias. O ator principal passa a ser coletividades difusas a partir da com preensão da partilha com um de destinos. À diferença dos m odelos anteriores, o Hstndo D em ocrático de Direito, m ais do que um a continuidade, representa uma ruptura, porque traz à tona, foTmal e m aterialm ente, a partir dos textos cons titu cionais diretivos e com prom issórios, as condições de possibilid a de para a transform ação da realidade. Aponta, assim , para o resgate das prom essas incum pridas da m odernidade, circunstância que as sum e especial relevância em países periféricos c de m odernidade tardia com o o Brasil. Ilá , desse m odo, uma identificação entre o constitucionalism o do segundo pós-guerra e o paradigm a do Estado D em ocrático dc D ireito. Veja-se, para tanto, a C onstituição d o Brasil, que determ ina, no art. 3", a construção do Estado Social, cujo papel, cunhado pela tradição do constitucionalism o contem porâneo, "é o de prom over a integração da sociedade nacional, ou seja, "e l proceso constantem ente renovado de conversión de una pluralidad en una unidad sin p crju icio de la capacidad dc autodeterm inación de las p artes" (M anuel G arcia-Pelayo). Integração esta que, no caso brasi leiro, deve-se dar tanto no nível social quanto no econôm ico, com a transform ação das estruturas econôm icas c sociais. C onform e pod e mos depreender de seus princípios fundam entais, que consagram fins sociais e cconôm icos em fins juríd icos, a C onstituição de 1988 é voltada à transform ação da realidade b rasileira.127 Ou seja, a C ons tituição de 1988 parte do pressuposto de que o Brasil não passou pela 127 C fe. B ercovici, G ilb erto . "C o n stitu iç ã o e su p e ra ç ã o d a s d e s ig u a ld a d e s re g io n a is". In: Direito Constitucional - estudos em hom enagem a Paulo Ronavides. S áo P au lo : M aIh eiro s, 2001, p. 96.
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ottip.i do Estado Social. E é exatam ente por isso que o texto - d iri gente e com prom issório - aponta para esse desiderato. Percebe-se nesta trajetória com o que uma redefinição contínua do listado de Direito, com a incorporação de conteúdos novos, em especial face à im posição dos novos paradigm as próprios ao Estado dc Uem-Estar Social. O que ocorre não pode ser circunscrito, apenas, um aum ento no núm ero de direitos m as, islo sim , a uma transfor inação fundam ental no conleúdo do Direito ele mesm o. Para além da passagem dos droits-libcrtés para os droits-créancrs, da transm utação da sanção em prom oção, há a constituição de rea lidades novas que se im põem, ü caráter dem ocrático im plica uma constante m utação e am pliação dos conteúdos do Estado de Direito. M ais do que apontar a m utação das características tradicionais do D ireito, a m udança de caráter da regra jurídica - não m ais um preceito genérico e abstrato, mas uma regulação tendente à particuiarização de su a transitoriedade e, em conseqüência, de seu even tual d esp restígio vinculado à sua com plexidade, especificidade, tecnicalidade e proliferação, o que conduz ao seu difícil con h ecim en to por p arte dos operadores jurídicos, c prcciso perceber que o Esta do de D ireito passa a ser percebido a partir da adesão a um conjunto de princípios e valores que se beneficiarão de uma consagração ju rídica explícita e serão providos d c m ccanism os garantidores apro priados, fazendo com que a concepção form al fique subm etida a uma concepção m aterial ou substancial que a engloba e ultrapassa, tor nando a hierarquia das norm as um dos com ponentes do Estado de Direito su bstancial.128 O Estado de D ireito, dada a sua substancialidade, para além de seu form alism o, incorporando o feitio indom esticado da dem ocracia, apresenta-se com o um a contínua (re)criação, assum indo um caráter dinâm ico m ais forte do que sua porção estática - form al. Ao aspecto paralisante de seu caráter hierárquico agrega-se o perfil m utante do conleúdo das norm as, que estão, a todo instante, subm etidas às va riações sociopolíticas. E videntem ente que uma prefiguração positiva de tal fenôm eno não subestim a, sequer faz desaparecer, alguns problem as que são fundam entais e estão intrinsccam cnte relacionados à prática do Es tado de D ireito, com o p. ex. a possibilidade de que m ais do que garantir e prom over interesses sociais apresente-se com o um m eca nismo dc opressão, utilizando-se da juridicização integral do cotid ia no das relações sociais, construindo a realidade tom ando como l2S C ie . C h e v a lJie r, o p . c it., p. 108.
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paradigm a o prism a jurídico. Seu caráter rolórico-argum entativo ser ve, inclusive, de vínculo redutor da política no debate público. O risco de m itificação do Estado de D ireito, transform ando-o em uma referência ritual, pode ser, todavia, m atizado por sua ade quação aos p rincípios dem ocráticos - o que caracteriza o seu protó tipo com o Estado D em ocrático de D ireito, onde a dem ocracia vincula Estado e D ireito - com o que estará sob a constante interro gação dem ocrática. 6.2.3.1. O Estado Democrático de Direito e a Constituição "Dirigente" Daí a necessidade constante do debate acerca dos lim ites do d ireito e do grau de vinculariedade da C onstituição, que, em bora já tenha o seu fim anunciado pelos defensores das teorias processuaisproced im entais, continua absolutam ente atual. Se o Estado D em o crático de D ireito tem o seu berço no constitucionalism o surgido no segundo pós-guerra, a pergunta que é: ainda 6 possível falar em C onstituição com prom issória? Pode um texto constitucional "d eter m inar" o agir político-estatal? Ainda é possível sustentar que a C ons tituição especifica "o que fazer", e o governo - lato sensu - estabelece o "com o fa z er"? A vontade geral popular, representada por m aiorias eventuais, pode alterar substancialm ente o conteúdo da C onstitui ção, naquilo que é o seu núcleo político? Ainda é possível falar em soberania dos Bstados? Q uais os lim ites do "co n stitu ir" da C onsti tuição? Para o enfrentam ento desses questionam entos, parece apro priado lem brar, de pronto, com Eros G rau, que a C onstituição do Brasil não é um m ero "instrum ento de g ov ern o ", cn u nciad or de com petências e regulador de processos, mas, além d isso, enuncia diretrizes, fins c program as a serem realizados pelo Estado c pela sociedade. N ão com preende tão som ente um "estatu to juríd ico do p o lítico ", mas um "p lan o global norm ativo" da sociedade e, por isso m esm o, do Estado brasileiro. Daí ser ela a C onstituição do Brasil e não apenas a C onstituição da República Federativa do Brasil. Os fundam entos e os fins definidos em seus artigos I o e 3o são os fun d am entos e os fins da sociedade brasileira. O utra questão, diversa dessa, é a relativa a sua eficácia juríd ica c social e a sua aplicabilid a de. D e tal m odo, o legislador está vinculado pelos seus preceitos, ainda que sob distintas intensidades vinculativas, conform e anotava C anotilho já na prim eira edição de sua tese, ao cogitar genericam ente dessa q u estão.129 129 Cfe. G rau, Eros Roberlo. Canotilho e a Constituição D irigente. Jacinto N. M . Coutinho (org). Rio de Janeiro, Renovar, 2003.
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D ecorre disto a perene im portância daquilo que se con ven cio nou cham ar de dirigism o constitucional ou C onstituição D irigente, tese elaborada inicialm ente por Peter I.erche (dirigierende Verfas■ii/iig)1 e devidam ente adaptada à doutrina constitucional portugue8ii por J.J. G om es C anotilho.131 N o d ecorrer dos anos, a tese do dirigism o constitucional tem sofrido críticas das mais variadas, mor mente a partir do fortalecimento da globalização e do neoliberalismo. De outra banda, o engendram ento das teses processuais-procedimentais acerca da C onstituição vem , paulatinam ente, enfraquecendo 0 papel com prom issário-vinculante dos textos constitucionais. O próprio C anotilho, principal articulador da tese do dirigism o conslitucional em terras portuguesas - no que foi seguido por vário* constitucionalistas brasileiros - , tem colocado serias reservas à pre valência da tese da C onstituição dirigente. Em bora C anotilho reconheça, v.g., que o texto constitucional continue a constituir uma dim ensão básica da legitim idade moral e m aterial e, por isso, possa continuar sendo um elem ento de garantia contra a d eslegitim ação ética e d esestruturação m oral de um texto básico através de desregulam entações etc., por outro lado considera que esse texto básico (a Constituição) não m ais pode servir de fonte jurídica única e nem tam pouco pode ser o alfa e o ôm ega da co n sti tuição de um Estado.132 É evidente que tais afirm ações devem ser contextualizadas. Com efeito, a afirm ação de Canotilho vem acom panhada de uma explicação, no sentido de que "a C onstituição dirigente está morta se o d irigism o con stitucional for entendido com o norm ativism o constitucional revolucionário capaz de, só por sí, operar tran sform a ções em ancip atórias". Entendo, assim , que a afirm ação de Canotilho não elim ina e tam pouco enfraquece a noção dc C onstituição dirigen te e com p rom issária.133 1''' c f e . Lcrchc, Peter. Qfrermass und Verfassungsrecht: Zur Bildung des Cezetzgebers mi ilie Crundsdtze der VerhültnismSssigkeit und der E rforderlichkeil. 2“ G oldbach, Keip Verlag, 1999, p. 60 e segs. 131 Ver, nesse sentido, Canotilho, J. J. Gom es. Constituição Dirigente e Vinculação do legislador. 4 ” ed. Coim bra, Coim bra Editores, 1994. 132 Lim vários textos C anotilho tem feito a revisâo da tese da C onstituição Dirigente 1 ara tanto, rem eto o leitor para os seguintes: "O Direito Constitucional na Encruzi lhada do M ilênio. De um a disciplina dirigente a um a disciplina d irigida". In: Cons titución y Constitucionalismo Hoy. Caracas, Fundación M anuel G arcía-Pelayo, 2000, p . 217-225; "R ever ou Rom per com a Constituição D irigente? Defesa de um conslltucionalism o m oralm ente reflexivo". In: Cadernos de Direito Constitucional e Ciência 1'olílica, n. 15, p. 7-17; "O estado Adjetivado c a teoria da C onstituição". In: Revista .7ii Procuradoria Geral do Estado KS, n. 56, dez/2002; ainda Canotilho e a Constituição Dirigente. Jacinto Nelson M iranda Coutinho (org). R io de Janeiro, Renovar, 2002. 113 Ver, para tanto, meu Jurisdição Constitucional, 2a ed., op. cit., cap. 3. Ciência Política e teoria do Estado
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O bserve-se, nesse ponto, e desde logo, que nflo <5 possível fnlar, hoje, de uma teoria geral da Constituição. A C onstituição (e cada C onstituição) depende de sua identidade nacional, das especificidades de cada Fstad o N acional e de sua inserção no cenário interna cional. Do m esm o m odo, não há "u m con stitucion alism o", e, sim, vários constitucionalism os. O u seja, para uma m elhor com preensão da problem ática rela cionada à sobrevivência ou à m orte da assim denom inada C onstitui ção dirigente, é necessário que se entenda a teoria da C onstituição enquanto uma teoria que resguarde as especificidades histórico-factuais de cada Estado nacional. D esse m odo, a teoria da C onstituição deve conter um núcleo (básico) que albergue as conquistas civilizatórias próprias do Estado D em ocrático (e Social) dc Direito, assentado no binôm io dem ocracia e direitos h u m ano s-fu n d am en tais-so ciais134 Esse núcleo derivado do Estado D em ocrático de Direito faz parte, hoje, de um núcleo básico geral-universal que com porta elem entos que poderiam confortar um a teoria geral da C onstituição e do constitucionalism o do O ciden te. Já os dem ais substratos constitucionais aptos a confortar uma teoria da C onstituição derivam das especificidades regionais c da identidade nacional de cada Estado. Dito de outro m odo, afora o núcleo m ínim o universal que con forma uma teoria geral da C onstituição, que pode ser considerado com um a todos os países que adotaram form as dem ocrãtico-constitucionais de governo, há um núcleo específico dc cada C onstituição, que, inexoravelm ente, será diferenciado de Estado para Fstado. R e firo-m e ao que se pode denom inar de núcleo dc direitos sociais-fundam entais plasm ados em cada texto que atendam ao cum prim ento das prom essas da m odernidade.
134 Ver, p ara tanto, M orais, José Luis Bolzan de. Do Direito Social aos Interesses Transittdividuais. Porto A legre, Livraria do A dvogado, 1996.
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7. A questão dem ocrática 7.1. C o n s id e r a ç õ e s g e r a is
D esnecessário dizer que a conceitiiação de dem ocracia é uma tarefa quase im possível, m orm ente porque o term o "d em o cracia", m m o passar do tem po, foi transform ado em um estereótipo, conta m inado por uma anem ia significativa (W arat). Daí que parece acer tado dizer que a razão está com C laude Lefort, para quem a dem ocracia é uma constante invenção, isto é, deve ser inventada cotidianam ente. É nessa esteira que M arilena C hauí diz que "A d e mocracia é invenção porque, longe de ser a mera conservação de direitos, é a criação ininterrupta de novos direitos, a subversão con tínua dos estabelecidos, a reinstituição perm anente do social e do p o lítico ."135 Ou com o assevera C astoriad is,136 para quem "u m a socie dade justa não é uma sociedade que adotou, de uma vez para sem pre, as leis justas. Um a sociedade justa c uma socied ad e onde a questão da justiça perm anece constantem ente aberta." De pronto, ainda com Chauí,137 é possível dizer, a par da d ifi culdade d c conceituar a dem ocracia, que existem alguns traços que <1 distinguem de outras form as sociais e políticas: em prim eiro lugar, a dem ocracia é a ú nica sociedade e o único regim e p olítico que considera o conflito legítim o, uma vez que não só trabalha p olitica mente os conflitos dc necessidades e de interesses, como procura instituí-los como d ireitos e, com o tais, exige que sejam reconhecidos e respeitados. M ais do que isto, nas sociedades dem ocráticas, indi víduos e grupos organizam -se em associações, m ovim entos sociais e populares, classes sc organizam em sindicatos, criando um contrapoder social que, direta ou indiretam ente, limita o poder do Estado; em segund o lugar, a dem ocracia é a sociedad e verdadeiram ente 115 Cfe. C h auí, M a r i l e n a . In: Lefort, Claude. A Invenção D em ocrática. Trad. d e Isabel Marva Loureiro. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 7. 136 (_fe C astoriadis, C o r n e l i u s . Socialism o ou Barbárie. São Paulo: B r a s i l i e n s e , 1 9 8 3 . 1,7 Cfe. C hauí, M a r i l e n a Convite ii filosofia. S 3 o Paulo, Atica, 1995, p. 433. Ciência Política e t eoria do Estado
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histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformnçAes e ao novo. As lutas históricas em prol da dem ocracia nos m ostram quão duro é alcançá-la e, m uito m ais do que isto, conservá-la. É evidente que a "qu estão da d em ocracia" nasce lado a lado com o processo de form ação da sociedade organizada e do listado. Para tanto, basta ver, com o já dem onstrado retro, o lento processo de conqu istas das liber dades e dos direitos hum anos. A Am érica Latina, em especial, não tem sido pródiga em exem plos de dem ocracia. Com efeito, m ergu lhada até há pouco tempo cm ditaduras m ilitares, as seqüelas ainda se m ostram bem visíveis, m orm ente se exam inarm os a equação "d is tribuição cie renda z>crsns participação dem ocrática da popu lação", adicionando a isso a.s constantes fraudes nas eleições, parlam entos eleitos com representatividade desproporcional e escand alosas vio lações das C onstituições de vários países, inclusive no que pertine à inclu são de em endas para reeleição de governantes. 7.2. A d e m o c r a c i a (lib e ra l) re p re s e n t a tiv a : s e u s m o d e l o s e i n c e r te z a s
D iversos m odelos e teóricos têm -se debruçado sobre a temática "d em o cracia". Um deles, C. B. M acpherson,138 no início de sua obra A dem ocracia liberal. Origens e Evolução, indaga: "D ev em os pois con siderar a dem ocracia liberal tão perto do fim a ponto de esboçarm os desde já suas origens e evolução?" A resposta que ele dá c sim, se tom arm os dem ocracia liberal com o significando, o que de um modo geral ela ainda significa, a dem ocracia de uma sociedade de m ercado capitalista (não obstante as m odicações advindas com W elfare state); m as a resposta seria "n ão necessariam ente", se por dem ocracia libe ral entenderm os, com o John Stuart Mill e os teóricos liberal-dem ocratas éticos que o acom panhavam em fins do século XIX e inícios do século XX, um a sociedade em penhada em garantir que todos os seus m em bros sejam igualm ente livres para concretizar suas capaci dades. Assim , a dem ocracia pode significar as duas coisas. E eis que liberal pode significar um m ercado livre, com o m ais forte d erruban do o m ais fraco, ou pode significar liberdade para todos desenvol verem plenam ente suas capacidades. 138 C fe M acpherson, C. B. A democracia liberal. Origens e Evolução. Trad. d e Nathanael C. C aixeiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1978; tb Streck, Lenio l.ui/,. "R eflexõ es sobre o Irilerna D em ocracia-Igualdade-Liberdade a partir do Modelo M acphersoniano de D em ocracia L ib eral". Florianópolis, lievista Seqüência n“ 10, 1985, p. 96-108.
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Mdi p lif r»un 1.1 / uma crítica no» vilrios i i u h M u k
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econôm ica, eis que .1 desigualdade exige um sistem a partidário nâo participativo para m anter o status quo. Acentua que há uma espécie de círculo vicioso: não se pode conseguir mais participação dem o crática sem haver uma prévia mudança da desigualdade social e sua consciência, m as tam bém não se consegue m udar am bas as condi ções sem um aum ento anterior da participação dem ocrática. Daí a prescrição de M acpherson para que se estimulem os procedim entos que viabilizem as propostas tanto de Marx como de J. S. Mill numa dem ocracia que ele cham a de "participativa", através de associações de bairros, liberdade dc expressão, co-gestão nas em presas, luta pelo direito das minorias, etc.; por últim o, fala da necessidade de enfati zar o peso do ônus social decorrente do capitalism o financeiro de satisfazer as expectativas do consum idor enquanto reproduzindo a desigualdade e a crescente consciência dos custos da apatia política. A partir desses pressupostos, o teórico propõe aquilo que deno mina cie uma com binação de um aparelho dem ocrático piram idal direto e indireto com a continuação de um sistem a partidário. Há, porém , riscos nesse propósito, diz o autor, que poderiam tornar inviável 0 m odelo de dem ocracia participativa, com o a ameaça de uma contra-revolução, o reaparecim ento de uma divisão e oposição de classes. Para ele, a conciliação de classes pregada nesse modelo de dem ocracia não poderá ser pensada com o mera distribuição de renda; outro risco é a apatia do povo na base, o que requer a atuação de partidos políticos pensados de uma maneira nova, não no sentido tradicional, que é o da manutenção da ordem vigente num sistema de classes sociais. Acredita que, com o passar de algum as décadas, os partidos tenderiam a desaparecer, pela conscientização social da possibilidade de outras formas de participação. No m odelo macphersoniano de democracia participativa, está ínsita a idéia de uma sociedade sem classes ou com mínim as diferenças de classe, circuns tâncias, aliás, que é condição de possibilidade para o próprio funcio nam ento do m odelo. Por outro lado, é possível ver nesse modelo tam bém rasgos daquilo que Gramsci cham a de guerra dc posição, com a tom ada de espaços dentro do próprio sistem a capitalista, como form a pacífica da tomada dos aparelhos do Estado. 7.3. D e m o c r a c ia : o jo g o das reg ras e as regras do jo g o
Form alm ente, na linha do pensam ento dc N orberto Bobbio,139 podem os dizer que dem ocracia é um conjunto dc regras (prim árias 139 Ver, do autor, O Futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo, op. cit.
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ou lundam entais) que estabelecem quem está autorizado a tom ar as dfi'is(V s coletivas e com quais procedim entos. Ou seja, a dem ocracia Nlgnifica, nesta perspectiva, a montagem de um arcabouço de nor mas que definem antecipadam ente os atores e a forma do jogo, iden tificando-se, de regra com as questões relativas a quem vota?, onde sc vota? e com quais procedim entos?, sendo que, para cada pergun ta, devem os adotar respostas compatíveis. Assim, quanto a quem vota(7), devem os responder todos; sobre onde se vota(?), devem os responder em todos os locais onde se tomem decisões de caráter coletivo; e sobre quais procedim entos a serem adotados(?) precisam os responder que o m ecanism o funda mental é o da regra da m aioria, sendo que para que se possa im ple mentá-la devem -se disponibilizar alternativas reais, bem como garantir possibilidades de escolha, tendo com o conteúdo mínimo: a) garantia dos direitos de liberdade; b) partidos; c) eleições; d) sufrá gio; e) decisões por acordo ou por maioria com debate livre. Além disso, é evidente que a dem ocracia requer uma grande ilose de justiça social e uma razoável preservação do habitat nacional e das fontes de recursos, como lembra Karl Deutsch, para preservar o cidadão do amanhã. Não é possível falar em dem ocracia em meio .t indicadores econôm ico-sociais que apontam para a linha (ou abai xo da) linha da pobreza. Uma grande dose de justiça social é condi ção de possibilidade da democracia. 7.4. T ro p o s ta s n ã o cu m p rid a s
O processo dem ocrático nunca se caracterizou por um desen volvimento linear. Com efeito, a sua trajetória, longe de percorrer um histórico que lhe traçasse um perfil uniform e, expressou-se, m ui tas vezes, de m aneira contraditória. Tais contradições permitiram que a teoria jurídico-política propusesse a ocorrência daquilo que nominou contrapontos, na tentativa de explicitar esta tortuosidade e as dificuldades encontradas. N orbcrto Bobbio, em seu O Futuro da Dem ocracia, perm ite-nos uma visão abrangente desta situação a partir do quadro a seguir:
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ContrapontoN140 Aspecto
Modelo democrático (teórico)
Modolo democrático (real)
Protaqonistas
Indivíduo • s/corpos intermediários
Grupos
Forma de sociedade
Centrlpeta Derrota das oliqarquias
Centrífuqa
Mandato livre (fiduciário) (Interesses gerais)
Mandato imperativo (disciplina partidária)
Poder Representação (revanche dos interesses)
Oliqarquias em concorrência
Espaços de decisão
Poder ascendente
Poder descendente (burocracia)
Espaços de atuação
Quem vota - sufrágio universal Onde se vola - dever político
Dever social - menos espaço
Poder invisível
Eliminação do segredo Poder transparente Publicidade - formação da opinião pública
“Duplo Estado' (visível + invisível) Controle público x controle do público (quem controla os controladores?)
Educação para cidadania
Prática democrática (cidadania ativa) Voto de opinião
Voto di scambio (de troca)
O qu e se pode retirar dc tal form ulação é, em prim eiro lugar, a idéia de que m uito daquilo que fora prom etido pelos form uladores do ideário dem ocrático, na perspectiva procedim ental, em particu lar, não foi cum prido ao longo destes dois séculos, caracterizando o que Bobbio cham ou de prom essas não cumpridas. N esta seara, pode-se perceber que, com o dem onstrado acima, desde a idéia dos protagonistas do jogo dem ocrático que, na origem , deveriam ser os indivíduos, temos a entrada em cena, cada vez mais fortem ente, de grupos de interesse que nos substituem e passam a patrocinar o jogo político. Em um segundo m om ento, tem -se a questão da organização da sociedad e que do ideal dc um m odelo onde o poder estivesse cen tralizado em um único local passou-se a uma sociedade caracteriza da pela dispersão dos espaços decisórios. Da m esm a forma que, em relação à detenção do poder político quando então pretendeu-se a sua d istribuição o m ais am plam ente possível, fazendo desaparecer o poder oligárquico, onde uma deter m inada elite controla a ccna pública, o que se observa é que, no m áxim o, o que se obteve foi a m ultiplicação de elites que visam à dom inação política e que concorrem entre si. 140 Kste Q uadro Sistem ático foi m ontado a partir da obra de N orberto Bobbio, O
Futuro da Democracia: uma defesa das regras do iogo. SSo Paulo: Paz e Terra, 1986. 114
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M.iis significativo ainda c o que reflete o problema da represrnlnçrto política quando no ideal propugnava-se pelo estabeleci mento de uma representação dotada de liberdad e de atuação, podendo decidir os tem as que lhe fossem propostos a partir dos Interesses gerais da com unidade, sendo que o que se v erificou na pi aticn foi a constituição de limites à ação dos representantes através doN mais diversos fatores, dentre os quais - em bora positivo - o da disciplina partidária. O utra das prom essas não cum pridas, m uito em bora o seja em fuce m esm o da transform ação da sociedade contem porânea, diz rei» peito aos espaços de tomada de decisão para os quais se previa um processo que partisse da base dos interessados - pod er ascendente e não, ao contrário, se caracterizasse inversam ente pela produç.V» de decisões técnicas, cuja racionalidade está arraigada em pressupôs l o s tecnoburocráticos, e não em pretensões políticas. O u seja, a ra/flo Instrumental se substitui à razão p olítica, assentada na teoria dnn razões de Kstado, para a qual o Estado deve agir em segredo para não provocar escândalo. Já para as duas questões centrais à dem ocracia procedim ental quem vota e onde se vota —o que se verificou foi um alargam ento quantitativo em am bos os casos, seja pela adoção do su frágio uni versal, seja pela am pliação do núm ero de locais onde as decisões são adotadas a partir de estratégias participativas, m uito em bora tam bém tenha-se observado que a atuação tenha-se pautado unicam ente por um dever social, o que inviabiliza a consolidação de um processo de participação política calcado no ideal da conscientização da cid a dania, ocasionando assim uma perda de sentido no projeto de edu cação para a cidadania que privilegiasse a opinião con scien te em vc/ da troca de favores. Ou seja, a prática dem ocrática pressuposta na base da cidadania ativa acabou por ser subm etida a um a total apatia participativa. Por fim , outro aspccto a ser relevado diz com a necessidade de controle do poder. Para tanto, pretendeu o ideal dem ocrático conslituir-se em um espaço de ampla visibilidad e, com suporte na idéia de que as decisões públicas devem ser tom adas em público, onde n transparência deveria ser a tônica. Todavia, o que se observou foi a am pliação dc espaços decisórios im unes ao olhar do cidadão, fugin do, assim , ao controle público do poder. D essa form a, ao ideal do poder visível su b stitu iu -se o real do pod er in v isív el; às d ecisões pú blicas sucederam -se as decisões secretas; à publicidade, o segre do. Ciência Política e t eoria do Estado
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7 .5 . O b s t á c u l o s à c o n c r e t i z a ç ã o d e m o c r á t ic a
Por evid ente que todas estas prom essas não sofreram tais in flu xos única e exclusivam ente em razão de circunstâncias aleatórias im peditivas de sua concretização. Para B obbio ,141 o que condicionou tais contrad ições foi o que cham ou de obstáculos à dem ocracia, ou seja, circunstâncias fáticas que im puseram transform ações profundas naquilo pressuposto para aquilo ocorrido, na m edida em que não estavam previstos ou su rgi ram em decorrência das transform ações da sociedade civil. D entre tais obstáculos, elenca, em prim eiro lugar, a com plcxificação da socied ad e quando a passagem de uma econom ia fam iliar para um a econom ia de m ercado e desta para uma econom ia prote gida142 prod uziu a necessidade de constituição de um quadro profis sional h abilitad o tecnicam ente a lidar com a com plexidade social crescente, o que veio a colocar o problem a da legitim ação para a tom ada de decisões, posto que o projeto dem ocrático é antitctico ao projeto tecnocrático. Enquanto aquele assenta-se em um podeT d iluí do/disperso, onde todos podem decidir a respeito de tudo, neste apenas aqueles iniciados nos conhecim entos técnicos envolvidos p o dem tom ar decisões. Surge, aqui, o dilem a que contrapõe a decisão política à decisão técnica, o poder diluído, próprio à dem ocracia, ao poder concentrado, característico da decisão tecnocrática. De outro lado, um segundo obstáculo surge em conseqüência do próprio processo de dem ocratização da sociedade que, na m edida em que alargava as possibilidades de participação social, perm itia que novas dem andas fossem propostas ao Estado. Assim , a organi zação estatal viu-se na contingência de m oldar-se estrutural e fun cionalm ente para tentar dar conta do crescente e diversificado núm ero d c dem andas. A fórm ula adotada foi a da constituição dc um aparato bu rocrático responsável por responder às pretensões sociais cuja característica é a de ser um pod er que sc organiza v erti calm ente do alto para baixo, contrapondo-se, assim , ao m odelo de m ocrático de um poder que se eleva da base para o topo. Dessa form a, as respostas às dem andas dem ocráticas vieram organizadas burocraticam ente, com o se experienciou com o Estado do Bem -Estar - im pondo-se um aspecto de suas crises, com o verem os adiante - , 141 Id e m , ib id em ,
passim.
142 O que dizer hoje, com o retorno a uma econom ia dcsregulada na perspectiva neoliberal, com uma concentração maciça de capitais em poucos conglom erados financeiros transnacionais, bem com o com o privilegiam ento de um capitalism o financeiro desvinculado da produção de bens e produtos. 116
l enio Luiz SInxk José Luís Bnlzan de Morais
onde, multau vezes, chocam-w
N o ano de 1991, o cientista político G uillerm o 0 'D o n n e llu5 es creveu um texto, ainda atual, cham ando a atenção para um fenôm e no què estava ocorrendo (e estava por ocorrer) em países da América Latina recentcm ente saídos de regim es autoritários. R eferia-se, pois, a "u m n o v o " tipo/m odelo de dem ocracia - a "d em ocracia delegativ a". Para fundam entar sua tese, o cientista político desenvolveu os seguintes argum entos: a)
A instalação de um governo dem ocraticam ente eleito abre cam inho para uma "segunda tran sição", provavelm ente
143 Bobbio, O ruturo iia Democracia, p. 35-36. 144 Idem , ibidem ., p. 37. 145 Cfe. 0 'D o n n e ll, G uillerm o. Dem ocracia delegativa? In: Novos Estudos 31 - ou t 91. São P aulo, Brasileira de Ciências, 1991, p. 25-40.
Ciência Política e Teoria do Kstado
Cebrap n.
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b)
c)
d)
e)
f)
m ais dem orada e até mesmo m ais com plexa que n tMnsiçílo do regim e autoritário; E spera-se que essa "segunda tran sição" seja de um governo dem ocraticam ente eleito para um regim e d em ocrático ou, o que é equivalente, para uma dem ocracia institucionalizada consolidada; N ada garante que essa "segunda tran sição" seja feita: novas dem ocracias podem regredir para o regim e autoritário, ou podem atolar-se em uma situação frágil e incerta. Essa situa ção pode ser duradoura, pode inclusive não abrir cam inhos para a realização de form as m ais institucionalizad as de de m ocracia; O elem ento decisivo para determ inar o resultado da "seg u n da tran sição" é o sucesso ou fracasso de um conjunto de instituições dem ocráticas que se tornem im portantes pontos no fluxo do poder político; Tal resultado é fundam entalm ente condicionado pelas po lí ticas públicas e pelas estratégias de vários agentes, que in corp orem o reconhecim ento de um interesse superior com um na tarefa de construção institucional dem ocrática. Segu ndo CVDonneü, as dem ocracias delegativas se funda m entam em uma prem issa básica: quem ganha a eleição presid encial é autorizado a governar o país com o lhe pare cer conveniente, e, na m edida em que as relações de poder existentes perm itam , até o final de seu m andato. O presiden te é, assim , a encarnação da nação, o principal fiador do "in teresse m aior da n ação ", que cabe a eie definir. O que ele faz no governo não precisa guardar nenhum a sem elhança com o que ele disse ou prom eteu durante a cam panha elei toral - afinal, ele foi autorizado a governar com o achar con veniente. E, com o essa "fig u ra p atern al" precisa cu id ar do conjunto da nação, é quase óbvio que sua sustentação não pode ad v ir de um partid o ; sua base p o lítica tem d e ser um m ovim ento, a su p eração su p ostam en te v ib ran te do facciosism o e d o s co n flito s qu e c a ra c te riz a m os p a rtid o s. T i p ica m e n te , os cand id atos presid enciais vitoriosos nas dem ocracias delegativas se apresentam com o estando acim a de todas as p artes, isto é, os partid os políticos e dos interes ses organizados. Com o poderia ser de outra form a para algu ém que afirm a encarnar o conjunto da nação?
N essa linha, vaticinava então o cientista político, outras in stitu i ções (C ongresso e Jud iciário) passam a ser incôm odos que acom pa118
Lenio Luiz Streck José Luis Bolzan dc Morais
i»h vim lag en s IntemdH m I n l ^ r n u c l o n d i » de u m p re s id e n te dem o irn tlc n m e n te eleito. A idélrt de o b rig a to rie d a d e d e pre star conlnn (
Freqüentem ente, as dem ocracias utilizam o artifício da eleiçAo em dois turnos, isto porque, se as eleições diretas não geram d ireta mente lima m aioria, essa maioria tem de ser criada para sustentar o mito da delegação legítim a. Mais ainda, a dem ocracia delegativa ^ fortem ente individualista, porém com um corte m ais hobbesiano do que lockiano, uma vez que pressupõe que os eleitores escolhem , independentem ente de suas identidades e filiações, a pessoa (e nSo o partido) que é mais adequada para cuidar dos destinos da nação. Por isso, as eleições em dem ocracias delegativas são um processo muito em ocional e que envolve altas apostas: vários candidatos con correm para saber quem será o ganhador, num jogo absolutam ente soma zero, da delegação para governar o país sem quaisquer outras restrições a não ser aquelas im postas pelas relações de poder nuas, quais sejam , não institucionalizadas. D epois das eleições, espera-se que os eleitores/delegantes retornem à condição de espectadores passivos, m as quem sabe anim ados, do que o presidente faz... Esse extrem o individualism o no momento de constituir o poder presid en cial com bina bem com o organicism o do Leviatã hobbesiano: a nação e sua expressão política "au tên tica", o "m o v im en to ", são postulados com o organism os vivos. A nação tem de ser curada e salva pela união de seus fragm entos dispersos em um todo harm ônico. A dele gação eleitoral/salvacionista inclui não o d ireito, mas m uito m ais a obrigação, de aplicar à nação rem édios am argos que "a cu rarão". Três países latino-am ericanos - Brasil, A rgentina e Peru - se encaixam perfeitam ente nesse m odelo de dem ocracia delegativa, d i zia 0 'D o n n e ll nos idos de 1991. Não é preciso recapitular e detalhar a p rofund idad e da crise que esses países herdaram dos regim es ditatoriais. U m a crise social e econôm ica é o terreno ideal para libe rar as propensões delegatívas. Uma crise com o essa gera um forte senso de urgência. Problem as e dem andas se acum ulam para os novos governos. Os presidentes se elegem prom etendo que - fortes e corajosos, acim a dos partidos e interesses, m achos — salvarão o país. O governo deles é um "governo de salvad ores". Logo, os "p a co tes" se seguem . Uma vez que as esperanças iniciais se dissipam , e os prim eiros "p aco tes" fracassam , o cinism o e o d esespero se tornam atitudes dom inantes. Os presidentes na A rgentina, na Bolívia, no Brasil, no Equador e no Peru foram eleitos prom etend o políticas Ciência Política e Teoria do FsLado
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neokeynesianas expansionistas e muitas outras coisas bons só que fizeram o oposto, assevera 0 'D o n n eIl. As políticas de ajuste acabam por p iorar os níveis dc bem -estar da população. Ao lado disso, a m nrginalizaçâo dos partidos políticos e do C ongresso das decisões m ais im portantes (afinal, uma das caracte rísticas da dem ocracia delegativa é o "d ccretism o ") que o país en frenta tem três conseqüências: a) aprofunda os próprios defeitos que são im putados a essas instituições; b) quando finalm ente e fatalm en te o Executivo precisa de apoio legislativo, está fadado a encontrar um C ongresso não apenas ressentido; ele enfrentará tam bém um C ongresso que não se sente politicam ente responsável por políticas públicas que com eçaram por ignorá-lo; e, c) essa situação, juntam en te com as críticas do Executivo à lentidão e "irresp on sab ilid ad e" de um C ongresso que recusa o apoio requerido, são um fator im portan te do acentuado d eclínio do prestígio de todos os partidos c políticos. O bserve-sc com o a análise de 0 'D o n n e ll se encaixa perfeita m ente no caso brasileiro (despiciendo lem brar a problem ática da A rgentina, onde o presidente M enem, à época, além de prorrogar seu m andato, aprovou em enda para perm itir sua reeleição, e o caso do Peru, do período Fujim ori). Saído de uma ditad ura, o prim eiro presidente eleito - Fernando C ollor - assum iu, com pom pa e circuns tância, a m issão de ser o salvador da pátria, acim a dos partidos políticos. Seu argum ento para a tom ada de rem édios am argos com o o congelam ento dos ativos financeiros - era o de que fora eleito por trinta e cinco m ilhões de votos. Sua relação com o C ongresso foi através de acordos ad hoc, circunstâncias que se repetiram nos gover nos Fernando H enrique e Lula - o prim eiro caracterizado pela com pra d c votos para a em enda constitucional da reeleição, e o segundo, pelo escând alo do m ensalão, am bos auto-explicativos e de conheci m ento de todos. R egistre-se que a crise gerada pelas experiências salvacionistas de Fernando C ollor acabaram por engendrar um terreno fértil para novas experiências de democracia delegativa, constatáveis facilm en te nos governos que lhe sucederam . Tam bém aqui se encaixam p er feitam ente os vaticínios de Guillerm o 0 'D o n n e ll. N inguém duvida que o presidente Fernando H enrique Cardoso não cum priu as prom essas de cam panha. Proem inente sociólogo, que sem pre defendeu o intevercionism o estatal com o form a de paí ses de capitalism o tardio saírem do atraso e do subdesenvolvim ento, desde o início de seu prim eiro m andato com eçou a im plem entar políticas que cam inham na contram ão de sua biografia pessoal/aca dêm ica (e tam bém política, porque seus discursos no Senado sem pre
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foram i i f H H í i llnhrt). Promoveu u continua prom ovendo - Intensn privatização. Em bora signatário toxto constitucional, porque constituinte eleito - desde o Início dc- seu prim eiro m andato em penha-se em reform ar a Constituição, por considerá-la retrógrada. Seu governo fora recordista em edição de m edidas provisórias (aquilo que 0 'D o n n e ll cham a de decretism o) até o governo Lula, em bora este, em razão das alterações constitucionais, ao final poderá ter ed itad o um núm ero absoluto m enor destes atos legislativos. Além disso, sua base de sustentação no C ongresso perm itiu que fosse aprovada em enda constitucional instituindo a reeleição do Pre sidente da República/ em processo que até hoje suscita críticas dos setores da oposição, em face da acusação de com pra de votos de deputados. No cam po ju ríd ico, vários juristas considera(ra)m a em enda da reeleição inconstitucional. Tais práticas colloridas foram m antidas pelos governos que se seguiram ... Com pequenas variações, a experiência brasileira pós-ditaturn dem onstra bem a tese esboçada por 0 'D o n n e ll: a transição de regi mes au toritários para governos eleitos dem ocraticam ente não encer ra a tarefa de construção dem ocrática. É necessária uma segunda transição, até o estabelecim ento de um regim e dem ocrático. A escas sez de instituições dem ocráticas e o estilo de governo dos presid en tes eleitos caracterizam um a situação em que, mesmo não havendo am eaças im inentes de regresso ao autoritarism o, é d ifícil avançar para a consolidação institucional da dem ocracia. A experiência do modelo d c dem ocracia dclcgativa m ostra que a delegação (caráter hobbesiano da dem ocracia) não deve prevalecer sobre a repre sentação (caráter lockiano da dem ocracia). A consolid ação do caráter lockiano (representativo) da demo cracia enfrenta enorm es dificuldades em nosso país, a com eçar por aquilo que se denom ina de "déficit de rep resen tativ id ad e", constatável a partir da própria com posição do C ongresso N acional. Isso fica claro n o que tange aos segm entos sociais ali representados - as ca m adas m edio-inferiores estão praticam ente ausentes - e pelo critério de d istribuição do núm ero de deputados federais por Estado fede rado, chegando-se ao absurdo de um eleitor do A cre ter a mesma representatividade dc 16 eleitores de São Paulo. Na feliz, análise de C elso C am pilongo,146 "incontestavelm ente a rep resen tativ id ad e é essen cial com o critério de leg itim ação d em o crá tica ". C ontudo, alerta com acu id ad e que o problem a "re sid e cm com p atibilizar o 146 Cfe. Cam pilongo, Celso. Representação Política e O rdem Jurídica: os dilem as dt\ d e m o c r a c ia lib era l. S ã o P a u lo , U S P , m im e o .
Ciência Política e Teoria d o Estado
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instituto com as tensões e conflitos inerentes nos sistem as sociais com plexos, com as exigências de segurança das expectativas e, prin cipalm ente, com os im perativos dc estabilidade c justiça sociais e participação p olítica". D iz m ais C am pilongo que "a heterogeneidade das sociedades de classe tem evidenciado os lim ites estruturais da dogm ática ju rí dica para responder com flexibilidade a este desafio. A ssim , a ciência do direito deve em preender seus esforços no sentido de superar os paradigm as tradicionais e perquirir por m ecanism os que superem a crise de legitim id ad e política e social do d ireito e da representação p o lític a ".147 Para com pletar, o autor cham a a atenção para o fato de que "a representação política é um a instituição em crise ": A repre sentação política e a ordem jurídica desenvolvidas a partir da dem o cracia liberal, especialm ente em países de tradição patrim onialista m ais acentuada e de im plantação artificial do ideário burguês, en frentam dilem as de árdiia superação.,4fl N ão se deve deixar de levar em conta o fato de que, nas dem o cracias de m assas das sociedades contem porâneas, os partidos polí ticos necessitam conviver com variadas form as dc representação. Deve ser frisado, porém , que, além da representação partidária - o governo é exercido por um ou m ais partidos - existem outras que Leôncio R odrigues cham a de corporativas, que envolvem segm entos de grupos profissionais entre si e deles com o governo. Elas levam a organizações tripartites, envolvendo em presas, sind icatos e auto ridades governam entais (com issões, câm aras setoriais, etc.). As ne gociações que se efetuam nesse âm bito interm edeiam interesses que m uitas vezes passam ao largo do sistem a partidário e do Parlam ento. Essa questão esteve na ordem do dia quando das ncgociaçõcs desen volvidas pelas centrais sindicais (CUT, CGT, Força Sindical) sobre as em endas constitucionais relativas à reform a da previdência social no C ongresso N acional. Sobre o lem a, o citado autor asseverou que, em bora o capital não tenha estado representado nas conversações; 147 O m esm o C am pilongo alerta para o fato de que, preocupados com a análise estrutural do Direito, os juristas nem sem pre fixam as devidas ligações entre os pressupostos teóricos norm ativistas e o contexto político que repetidam ente lhes nega eficácia. O m onopólio da representação política pelos partidos é seguidamenLe desm entido pelos fatos. Da mesma forma, a exclusividade da produção legislativa pelos organism os estatais sofre reveses significativos na m edida em que o Estado tende a dividir sua capacidade rcgulatória com o "podur p riv ad o". M ais ainda, lembra que a ordem jurídica sofre "calibragens" que escapam aos padrões im agina dos pelo positivism o. A representação política parlam entar passa a concorrer coin engenhos com o os '"anéis burocráticos" e os "arranjos corporativos". 14íJ Cfe. Cam pilongo, op- cit., p. 132.
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em bora o coeficiente de representatividade das centrais seja pequeno; e que, ainda que aceitem os que as centrais, social e politicam ente, representem "m ilh õ es", não detêm elas qualquer delegação burocrá tica, porém , à evidência, tanto governo com o os políticos e os pró prios dirigentes sindicais estão interessados em que se acred ite que essa representatividade exista. Assim, conclui, "estabelecid a a fanta sia, pode-se dizer que, <10 negociar diretam ente com as centrais, os laços entre o governo e a sociedade civil se fortaleceram , mesmo porque tam bém os partidos não são assim tão representativos do eleitorad o". 7.7. Uma "n o v a " dem ocracia. O su je ito d em o crático 14'' A dem ocracia, nestes parâm etros, em erge dogm atizada, estéril, disciplinada, esquecendo seu caráter m aterial. Surge, assim , uma dem ocracia descaracterizada como form a de governo de com p rom is so de seus aderentes. Fica-se, então, com um projeto acabado, dotado de uma estrutura inequívoca e im utável. Um processo paralisado, onde a cristalização de um m odelo dá "um toque fin al". N este quadro de idéias, parece-nos significativo aportar um outro olhar para a questão dem ocrática. Um olhar que privilegie, para além da form a, as estratégias de constituição do próprio vir-aser dem ocrático e de seus atores, o que passa, necessariam ente, pela interrogação acerca do universo de construção da socied ad e contem porânca. A dem ocracia nâo pode ficar sujeita a um "ad estram ento uni versal" na busca da Idade de O uro, onde "para haver com ida é preciso aceitar a pax oferecida pelo co n qu istad o r".150 N esta perspec tiva, a lógica dos "m od os dom inantes de tem p o ralização "151 atua com o m odelador da vida cotidiana, adquirindo, assim , um papel fundam ental no estabelecim ento de um quadro de passivid ad e total que "c r ia " m odelos obrigatórios de felicid ad e152 onde interagem as estruturas fundam entais de m anutenção e reprodução da sociedade industrial e de seu feitio de subjetividade. Tal m odelo, isto sim, l4'-' Esta temática foi desenvolvida mais aprofundadam enle em: Bolzan de Morais, José Luis. A Subjetividade do Tem po. Perspectivas transdisciplinares do direito e drt dem ocracia. Porlo A legre, Livraria do Advogado, 1998. 150 Cfe. Eco, op. cit., p. 63 e 64. ^ Cfe. C u attari, M icropolítica Cartografias do Desejo. 2. ed. Petrópolis, Vozes. 1987, p. 47.
152 Reutiliza-se a expressão de Eco por ser de exlrem a fidelidade à análise proposta. Ciência Política e Teoria do Estado
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assum e contornos de incom patibilidade com um processo que se assum e como dem ocracia. Aliás, é incom patível com a própria noçAo sem ântica de processo, desde que esta seja entendida com o "a to de proccd cr ... sucessão de estados ou de m udanças ... Fís. Seqüência de estados de um sistem a que se transform a, ev o lu çã o ".153 Vê-se logo que tipo de processo corresponde àquilo que está sujeito a alterações contínuas, nunca uma definição irrem ediável. Em razão disso, colocam -se im ediatam ente o(s) vínculo(s) de um quadro m odelizador dos espaços tem porais com a questão da dem ocracia. Este só pode com pactuar com um projeto que perceba a questão dem ocrática como um m odelo acabado, estabelecido a partir de um quadro refcrcncial definido e d efinitivo. N unca se po deria crer, nestes m oldes, em buscar com preender a dem ocracia com o um processo de construção diária c, por isso, inacabado; não se poderia vislum brá-la a partir da incerteza cotidiana, da invenção m om entânea. D esde que se pense a dem ocracia com o sentido de um vir-a-ser, a ruptura com o tem po instituído antepõe-se com o lim ite possibilitador. Um sentido de im previsibilidade não pode conviver com um tem po totalizado, previam ente estabelecido e instituinte cie um pro jeto de subjetivid ad e com prom etida com a passividade, a quietude, a apatia etc.; com um tem po heteronom am ente fixado, onde o "am or do cen sor" em erge com o condição básica da instituição deste ades tram ento u niversal.154 A ssim , a lógica do tempo de trabalho - própria do m odelo de produção capitalista - , que im pregna tam bém o tem po livre, é in com patível com uma dem ocracia que seja instituinte d o espaço po lítico. Aliás, ela sxirge com o im possibilitadora de um a tal percepção, desde o m om ento em que, como totalizadora dos espaços tem porais, im pede a diferença. V ivendo-se inserido em uma ordem tem poral que abrange to dos os espaços de convivência, im pondo um processo dc form ação de um a subjetividade adstrita à lógica interna das relações de pro d ução, torna-se inapreensível a possibilidade de escapar-se ao seu esquadrinham ento. A alienação torna-se com pleta, fazendo incom patível a prática dem ocrática com o ator dem ocrático disponível. E em razão disso que o anim al laborans aparece com o irreconciliável com um a dem ocracia que se inventa no dia-a-dia. A busca do 153 y er Ferreira, A urélio B uaique dc Holanda. N o vo Dicionário da Lín g u a Portuguesa, p. 1395. 154 Sobre o tem a, ver: Legendrc, Pierrc. O A m o r do Censor: ensaio sobre a ordem dogmática. Rio de Janeiro, Porense U niversitária/Colégio Freudiano. 1983. 124
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tempo pordido interage com a tentativa de im plem entação de uma dem ocracia com o sentido de um processo de autonom ia. t ) que fica claro, neste m om ento, é o aprofundam ento em relni.fio a um projeto de dem ocracia liberal entendido com o o "conjunto de valores e instituições que se traduzem em conhecidas regras de procedim entos (sufrágio universal, eleições periódicas, princípio da maioria num érica, d ireitos da m inoria, sistem a representativo de partidos políticos, divisão de função entre uma pluralidade de d e tentores form ais do poder do Estado, etc.) que regulam a obtençAo, o exercício e o controle do poder político, e das quais tam bém fazem parte os Direitos H um anos stricta sensu (liberdades civis e políticas do indivíduo-cidadão), com o lim itações não políticas externas à açflo do Estado. Q uer dizer, aquelas exigências c regras m ínim as que definem , em nível institucional, a racionalidade política inerente aos regimes de dem ocracia representativa p lu ralista ".155 Todavia, o que transparece m ediatizado dentro desta definiçflo ó o fato de "assegu rar o nexo contínuo entre o indivíduo-cidadão e o Estado, através da organização constante do conflito e da negocia çAo, da divisão e da unidade. Fm outras palavras, p erm ite-se o d e senvolvim ento do conflito social apenas na m edida em que ocorra sob as form as políticas de representação que asseguram a não per manência e a não universalidade do co n flito ".136 Assim , este aprofundam ento sugere uma reinterpretação refe rente mente à questão da democracia. Seja em face dos processos de transição para a democracia, seja nos países de capitalism o avançado, uma mudança interpretativa ocorre a partir da tomada de consciência, em especial nos países altamente industrializados, de que a "resoluçAo da maioria das necessidades materiais não tem o condão de colocar o homem a salvo, num novo patam ar de relações intersubjetivas, de vendo ocorrer uma transform ação das significações po líticas". N o que diz respeito aos países sujeitos a um processo de tran sição política e, com o regra, os do terceiro m undo, em bora a busca de uma dem ocracia form al seja uma necessidade prem ente e prim á ria, não sc pode esquecer de que "a tarefa de instalação-consolidaçáo do 'p iso m ínim o' de certezas (inerente à racionalidade formal da política) tende a converter-se no 'teto m áxim o' do processo de cons trução histórica e social da d em ocracia".1S7 ISS CTe. G om ez, José Maria. Direitos Hum anos e Redem ocratização n o Cone Sul, In Direitos Hum anos: um debate necessário, p. 91-92.; Santos Jr., Belisário. et ali. v.l. Sáo Paulo, Urasiliense, 1988. ,r>í> Idcm , ibidem , p. 92. ,r>7 Idcm , ibidem , p. 96 e ss. Ciência Política e I eoria do Estado
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Esta circunstância dem onstra o caráter essencial do imwi lom.nl.> em consideração dos aspectos sim bólicos insertos na atitude dem ocrá tica, cm especial quando se assume como referencial a introjeção, em escala planetária, cia estrutura do CM1 - capitalismo m undial integrado - ou, na linguagem usual, no processo de globalização econôm ica. Insere-se, nesta atitude, a assunção da dem ocracia com o incer teza, seja referencialm ente aos resultados da com petição eleitoral, seja nu que respeita ao conteúdo das soluções exigidas pelos proble m as públicos, pelas relações intersubjetivas, etc. A (esta) dem ocracia, no dizer de Claude Lefort, "inaugura a experiência de um a sociedade inapreensível, indom esticável, na qual o povo será dito soberano, certam ente, mas onde não cessará de questionar sua identidade, onde esta perm anecerá latente ..." .,S8 Ou ainda: Lefort afirm a que "o essencial da dem ocracia é que ela 'se institui e se m antém na dissolução das referências de certeza', inau gurando uma história em que 'os hom ens experim entam uma indeterm inação últim a com respeito ao fundam ento do Poder, da Lei e do Saber, e com respeito ao fundam ento dc um com o outro em todos os registros da vida so cia l!"159 D iante deste processo gestacional, a dem ocracia desfaz os v ín culos referentes a um projeto estabelecido e acabado, regrado de um a vez por todas dentro de padrões dogm atizados. D esfazem -se, outrossim , as sep arações estanques entre espaços p olíticos c não-políticos. Há uma em ersão do político no social, ou uma subm ersão deste naquele. Experim enta-se o desaparecim ento dc m odelos totalizadores do social, ou seja, não há representação de um centro e dos contornos da sociedade (da periferia): a unidade não poderia, d ora vante, apagar a divisão social. Sente-.se a dem ocracia com o um esp a ço .polifônico onde não há lugar para o estabelecim ento de um m odelo acabado de ser-estar no m undo, ela vai de encontro a uma história fixada definitivam ente. A dem ocracia "precisa ser sentida com o uma invenção constan te do novo. Ela se reconhece no inesperado que reside aos desequi líbrios dem asiadam ente sólidos de uma ordem de proibições, ou ainda, com o um a condição de significações que com anda nossos processos de autonom ia, abrindo-os à im previsibilidade de suas sig n ificaçõ e s".160 158 v e r Lefort, A Invenção Democrática: os lim ites do totalitarism o, p. 118. 159 Ver G om éz, op. cit., p. 106. Acerca das passagens de Leforl, o autor rem ete a: "L a Question de la Dém ocratie". In Essais sur Ic PoHtique, XIX - Xxcme, Sièeles, p. 29. 16D para estas noções, ver: W arat, Luis Alberto. A Ciência Jurídica e seu s Do/s M aridos, p. 106 e 70, respectivam ente. Ver, também, p. 28 e 29. Ainda, para a última passa gem , ver do m esm o autor: M anifesto do Surrealismo Jurídico, p. 64. 126
í.enw Luiz Streck José Luis liolzan de Morais
A retom ada da dem ocracia, agora com o invenção, com o vir-am*i', é totalm ente com patível com a crítica do m odelo de vida, em (v*|xvifi< o ao estereótipo de produção de uma subjetividade capitalíslii.i aglutinadora de um rcfcrcncial unívoco do tem po de viver, a partir da totalização im posta por uma racionalidade instrum ental, ligada ao m undo sistêm ico, bem como perm ite a abertura de cam i nhos alternativos. A concretização de uma "o rd em " dem ocrática que tenha, o que nAo poderia deixar de ser, como característica intrínseca a sua rea valiação cotidiana, não é incom patível com o delineam ento de um conjunto de "regras do jo g o " - usa-se, aqui, o termo utilizad o por N orberto Bobbio apenas referencialm ente - com o explicitado nos tópicos acima. É, contudo, característico que estas m esm as regras, as quais passarem os a nom inar, de ora em diante, por norm as,161 não assu mem o caráter de perenidade absoluta, sendo que o seti reequacionamento faz parte do próprio jogo democrático. Parece inconseqüente tal possibilidade, todavia, a partir do engajam ento - um com p rom is so social - no jo go , c dc se esperar que a transform ação de suns regras, produzida de form a consensual e com prom etida, surta efei tos no sentido positivo objetivado pelos jogadores. A final, dem ocra cia é , antes de tudo, um com prom isso assum ido com a liberdade. Portanto, não é crível, num a dem ocracia, que a perenidade for mal das regras (que deverão ser norm as) assum a contornos de muros que aprisionam os participantes em lim iles im peditivos do vislum bre do horizonte, onde o sol se põe de form a enigm ática, para um novo am anhecer. A estabilidade juríd ica, campo de estabelecim ento de normas conviviais, não pode significar o aprisionam ento, o congelam ento, de uma vez por todas, de seu conteúdo. N ão pode significar o fim da dem ocracia. A lteração, m udança, renovação constantes não significam caos. Ao contrário, conduzem ao engajam ento, à identificação, m as nunca À uniform ização. Q ue seja eterno enquanto dure, dizia o poeta, sobre o amor. O am or deve ligar o homem à dem ocracia, e suas regras (norm as) devem ter a estabilidade inerente à continuidade dem ocrá 11,1 Esta nom enclatura obcdece a um a opção tcórica, no sentido de diferenciar mo inentancam cnte os cam pos de aLuação do agir Instrum ental e do agir com unicativo Neste prism a, falar-se em regras daria a conotação de uma racionalidade tecnocrA lica. Ao contrário, na acepção de norm a, tem-se a vinculaçâo desde a esfera d« Interação e do agir com unicativo que pressupõe o debate na sua elaboração. Este v ié s se coloca m ais próxim o da perspectiva de dem ocracia, aqui assum ida, polft leinatiza criticam ente, desde a noção de razão c racionalidade a í em butidas. ( iéncia Política e t eoria do Estado
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tica, que ho lig.» A elobor.içAo da hipóteses «obro <>nprovoltflfneuto d.» desordem , entretanto nn lógica dn conflltualidade, quando então nascerá, ..., uma cultura da readaptação contínua, nutrida da uto p ia .162 Assim , o retorno às interrogações coloca-as sob novas dúvidas e anseios. Essa incerteza significa uma tomada de atitu d e responsá vel perante a vida. Im porta a responsabilização frente ao mundo e àqueles que nele estão. Diz respeito à tomada de posição, no sentido de conduzir a vida para a vida, c não para a m orte, seja esta tanto a m orte da vida, quanto a m orte em vida. Se se fosse bu scar algum referencial em I7. G uattari, dever-se-ia pressupor que um a tal transform ação exigiria a recuperação de uma esfera im prescindível para o sucesso deste "p ro cesso " de dem ocra cia; a esfera do desejo. Todavia, esta reapropriação im plicaria que se afastasse a im agem diabólica agregada a ela pela subjetividade capitalística. N ão se trata de recuperá-lo sob a form a de d isciplinam ento, m as acatá-lo com o m om ento de efetiva construção de algo, com o uma dim ensão de produção, não de destruição, de desordem , como na construção apresentada pelo CMI. N essa renovação dem ocrática fica evidenciado qu e, na afirm a tiva deste autor: "... essa oposição - de um lado desejo-pulsão, desejo-d esord em , desejo-agressão, e de outro, alteração sim bólica, poder centralizado em funções de Estado - parece-m e ser um referencial totalm ente reacionário. É perfeitam ente concebível que um outro tipo de sociedade se organize, a qual preserve processos de singula ridade na ordem do desejo, sem que isso im plique uma confusão total na escala da produção e da sociedade, sem que isso im plique uma violência generalizada e uma incapacidade de a hum anidade fazer a gestão da vida. É muito mais a produção de subjetividade capitalística —que desem boca em devastações incríveis a nível eco lógico, social, no conjunto do planeta - que constitui um fator de desordem considerável, e que, aí sim, pode nos levar a catástrofes absolutam ente d efin itiv as".163 Todavia, não se pode perder de vista a capacidade recuperativa do quadro capitalístico, frente aos processos de ruptura que possam surgir e que nos aconselham a ficar de braços cruzados diante das gesticulações histéricas, ou das m anipulações paranóicas dos tiranos locais c dos burocratas de toda a espécie. H á, assim , uma "p articip a ção " interna, em nível da form ação desejante que faz refluir todo o 162
v er i£COi 0p. cit., p. 99.
163 Cfe. G uattari, op. cit., p. 214-217. Para a citação, ver p. 217. Ainda, do m esm o autor: Revolução M olecular, p. 77 e 78 c 165. ss. 128
Lcnio Luiz Streck jo sé Luis Bolzati de Morais
potencial contes-tador, seja viã integração ao m odelo descjnnte, por interm édio de uma cum plicidade im posta, seja através de um "c o n sentim ento passivo" daqueles que estão sujeitos às influências do sistem a. Entretanto, ciesde essa esfera podcr-se-ia traçar os parâm e tros do uma sociabilidade dem ocrática pautada por uma norm ativldade não totalizadora.164 A diante, nesta trajetória, necessita-se vislum brar que, quando sr toma a perspectiva de um "p ro cesso " dem ocrático assum ido como in certeza,165 com o indefinição, onde o desejo não esteja definido, delim itado, norm alizado etc., aprioristicam ente, os perigos da (rc)instauração de um projeto autoritário não estão afastados, uma voz que: "N ão há receita algum a que garanta o d esenvolvim ento de um processo autêntico de autonom ia, de desejo, pouco im porta como o cham em os. Se é verdade que o desejo pode se reorientar para a construção de outros territórios, de outras m aneiras de sentir ns coisas, é igualm ente verdade que ele pode, ao contrário, se orientar em cada um de nós num a direção m icro fascista".166 Mas, a possibilidade dc ocorrência de m icrorrelações perpassa (.Ias por uma lógica fascistizantc não significa a necessária tran sfor mação de todo o espaço social intersubjetivo, a partir desta mesma lógica; não pressupõe a inviabilidade de um processo dem ocrático baseado na instituição cotidiana do espaço p olítico, na im provisibi lidade diária dos resultados da resolução de conflitos. Ao contrário de uma prática totalitária, onde a subjetividade está encurralada por um a in stitu ição tem poral total, a dem ocracia p ressup õe a quebra d esta "m o rtificação co tid ia n a " im posta a pnr lir da in tro jeção dos p arâm etro s da racionalidade do m undo sistf1 mico. O que deve ficar assentado, quanto aos perigos de m icrofaadumos e a conseqüente busca de segurança, via projetos de totalitnrl zação do social, através de um congelam ento dem ocrático, é que, a im previsibilidade dos negócios hum anos não é incom patível com a incerteza dem ocrática, ou seja, "com a experim entação de novas formas de viver ou com a crítica das form as de vida co n h ecid a s".,r''' li isto não significa o "fim dos tem pos", quiçá o início de novos, sob uma nova racionalidade. Cfe. G uattari, R eroluçãv Molecular, p. 183. Cfe. Adam Frzew orski, Ama a Incerteza e serás D em ocrático, in Novos Ettlldon CF.DRAP, p. 36-46, traça um referencial quanto à dem ocracia com o incerteza, o qual sorve com o panoram a de fundo para o sentido que buscam os aqui. 166 Cfe. F. G uattari, MicropoKiica, p. 236. K>7 c fe . Jurandir Freire Costa, op. cit., p. 168. (iê n c ia Política e Teoria do listado
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Uma vez que nfio há incom patibilidade entre n exptrlm entaçAo de novas form as de viver e a crítica das form as de vida conhecidas com a im previsibilidnde dos negócios hum anos, com o salientado acim a, a possibilid ad e da dem ocracia como criação cotidiana aparece com o perfeitam ente factível, desde que se trabalhe fora dos vínculos de uma "razão c ín ica ",1AB onde mais ainda tem os caracterizada a figura do "d eu s de p rótese" freudiano. Assim , deixa-se de cair na prática e elogio irresponsáveis da violência, desm oralizando a idéia de lei e de ideais sociais e nos conduzim os em um espaço onde o outro é inevitável, redescobrindo o âm bito de com prom isso social, de solidariedade, no qual está-se subm erso e, do qual se depende para buscar a saída desse im passe tecnoinstitucional por que passa m os ou som os levados a passar. A fuga do processo de tem poralização capitalístico-burocrático supõe-se im prescindível para que não se finja estar m orto - sob a figura do "im p o tente" - ou não se pense ser capaz de m atar os outros - sob a m áscara do "onip oten te" - com o fórm ulas de dom ínio do m edo da m orte, m as, para que, em realidade, não sejam os m ortosvivos e possam os com pactuar e contracenar com todos no "papel de fonte de desejo, prazer c dor, no jogo do convívio h u m a n o ".169 O im portante, aqui, é a quebra desse "u niverso de descom prom isso", no qual se convive no jogo do "salv e-se quem p u d er". En tretanto, a solid aried ade aqui engendrada não é, de m aneira algum a, aquela m ecânica possibilitada pelo Estado C ontem porâneo, para m anter e reforçar os padrões capitalísticos.170 A questão dem ocrática, assum ida com o incerteza, põe em evi dência os m esm os em bates colocados pela passagem do im aginário ao sim bólico, sendo que, "dessa passagem , ..., levam os um certo m edo do novo, do que é m utante, das certezas relativas desta vida - e um certo fascínio pelo abrigo 'segu ro ' dos códigos totalitários onde o narcisism o que 'pensa que sabe' não se vê continuam ente questionado pelas evidências de que tudo o que é tam bém pode não ser, depende ... Totalitarism o e narcisism o: associação existente não só no inconsciente do dom inador, mas tam bém no que se deixa d o m in ar".17’ 168 Jd e m , ib id e in , 167. R a z ã o cín ica: "é a q u e p ro c u ra fa z e r da re a lid a d e ex isten te, in s tâ n cia n o rm a tiv a da rea lid a d e id e a l."
169 Ibidem , p. 170-171. 170 Para esta noção, ver: Cittadino, Gisele. "R essocialização da Política e Repolitizaç io do So cial". In Presença, n° 9 , p. 156-164. 171 Cfc. Kehl, M aria R. M asculino/Fem inino: o olhar da sedução, in O O lh a r, p. 416. 130
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7 . H. I > i - i n o i i . K Í . t , (
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( •Inhdll/itçAo
Pensar ii questão dem ocrática eüntem poraneam ente im plica in serir o debate no contexto próprio S sociedade atual. Em tem pos de crise das fórm ulas organizacionais da m odernidade, a própria idéia do dem ocracia e, atrelada a ela a de cidadania, precisa ser contextuali/.ada. Q uem sabe poder-se-ia falar - hoje em dia a partir da lógica hum anitária (a partir da noção de d ireitos hum anos), em um pensa mento universal dem ocrático que ne te.nd pas à Ia diffusion d'un tnodèle niiiijiie, à partir d'un point imique, mais plutôt à V émergence cn divers points d'une ntême volonté de reconaitre des droits com m uns à tous Ira t'lrcs hu m ain s,m harm onizando e não unificando posições, perm itindo-se uma certa perenidade da experiência constitucional com o pro)eto de cultura com prom etido com o presente e o futuro.173 Ou seja, é necessário que percebamos que o espaço da democracia, em razão de um processo conjunto de desterritorialização e reterritorialização consectário da com plexidade das relações con tem porâ neas, se m ultiplica, não ficando m ais restrito aos lim ites geográficos do Estado-N ação, m as incluindo o espaço internacional, com u nitá rio, além das experiências locais - com o, e.g., no caso dos projetos de dem ocracia participativa. Isto faz com que a própria noção de cidadania seja revisitadn, não apenas em seus conteúdos - mas, e particularm ente, em seu» espaços dc expressão, em bora hoje prevaleça, ainda, um a noção de cidadania identificada com um elenco conhecido dc liberdades civis e políticas, assim com o de instituições e com portam entos políticos ■illamente padronizados, que possibilitam a participação form al do» membros de uma com unidade política nacional, especialm ente nn escolha de autoridades que ocupam os mais elevados cargos e fun ções de governo,174 estand o, tam bém ela, indissociável da idéia mo derna de território. Tais prem issas dem onstram a incom patibilidade das noçõo» clássicas de dem ocracia e de cidadania com a desterritorialização provocada pela globalização, o que coloca a necessidade de repen sarm os o conteúdo e a extensão de tais noções e práticas. 172 Ver: D elm as-M arty, M ireille. Op. cit., p. 25. 173 "N o es Ia Constitución sólo un texto jurídica o un entrainado d e regias normn livas sino tam bién expresión de una situación cultural dinâm ica, m edio de la autrepresenlación cultural de un pueblo, espejo de su legado cultural y fundam ento de sus esp eranzas”. In: H âberle, Peter. Liberlad, Iguatdad, Lralcrnidad, p. 46. 174 Cfe. G óm ez, Jose Maria. Polílica e Democracia em Tempos de Globalização, p. 90. (. iência Política e Teoria do Estado
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Q uanto ao conteúdo, 6 necessArlo que tenham os presente i|iie a questão da dem ocracia e da cidadania li<^ m uito ultrapassaram o seu viés político e ingressaram em outros setores, tais com o o social - nn perspectiva do Estado do Bem -Estar Social - o gênero, o trabalho, a escola, o consum o, os afetos, as relações jurídicas e jurisd icion ais m uito em bora neste últim o talvez seja aquele em que ocorra a maior defasagem . Poderíam os, tam bém , falar de uma cidadania atrelada às gera ções de direitos hum anos, onde teríamos uma cidadania da liberdade, vinculada às liberdades negativas, unia cidadania da igualdade, atre lada às liberdades p ositivas e às prestações públicas e uma cidadania da fraternidade/solidariedade, adrede aos novos conteúdos hum a nitários am bientais, de desenvolvim ento sustentável, de paz etc. Q uanto à extensão, é preciso saber conjugar e m aterializar as práticas e conteúdos da cidadania e da dem ocracia no tradicional espaço nacional da m odernidade e do Estado-N ação, com o espaço region al/ com u n itário, produto das aproxim ações integracionistas/com unitárias, além de expandi-las para o espaço supranacional, seja id entificand o-o com espaço das relações privad as, seja com o espaço das relações interestatais, bem com o com partilhar do esforço de forjar um esp aço local/participativo, onde haja uma transform a ção radical nas fórm ulas das práticas cidadãs e dem ocráticas, apro xim ando e au tonom izando autor e sujeito das decisões. O bserva-se, assim , o estabelecim ento de uma dem ocracia e de uma cidadania m ultifacetadas e m ultipolarizadas. Para além disso, diante deste contexto de com plexidade e de busca de concretização para os d ireitos hum anos, parece-nos, acom panhando o pensam ento de José M aria G óm ez, im portante pensar m os um a cidadania cosm opolita que vá além da sim ples extensão do conjunto de d ireitos civis, políticos c sociais e suas respectivas ga rantias para a seara internacional, m as que se constitua em deveres éticos para com os outros para além das fronteiras geográficas, ideo lógicas, raciais, cu lturais etc.175 Em sum a, para tanto é preciso "(...) prom over novas form as de com unidade política e novas concepções de cidadania que vinculem auto ridades e lealdades subestatais, estatais e transnacionais, em um ordenam ento m undial alternativo àquele hoje existente. Isto é: de articular um duplo processo de dem ocratização, de fortalecim ento m útuo, capaz de aprofundar a dem ocracia no plano dom éstico (abrangendo o Estado e as sociedade civil, política e econôm ica) c, ao m esm o tem po, de im pulsionar a am pliação radical de form as e 175 G óm ez, Jose Maria. Política c Democracia em Tempos dc Globalização, p. 71.
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prncuMHOH d e m o c r á t i c o s n o s â m b i t o s r e g i o n a l e g l o b a l ( g r i í o s n o s -
C orno diz Góm ez: "É preciso construir um projeto de dem ocraclíi cosm opolita, sustentado tanto nas garantias institucionais e n or m ativas que assegurem representação e participação de caráter regional e global, quanto em ações deliberativas e em rede que ex pandam e adensem um a esfera pública sobre as m ais variadas queslOos relevantes (direitos hum anos, paz, justiça distribu tiva, gênero, biosfera, saúde, e tc .)".177 Ou seja: não basta m ais serm os cidadãos da própria com unida de política. Há cidadanias m últiplas e diversas que se exercem em locais, sob form as e conteúdos variados.178
7.9. A an títese da dem ocracia: o to talitarism o A experiência do totalitarism o, pode-se dizer, faz parte da hislória contem porânea do Estado. Sua concretização vai se dar sob as experiências stalinista (U RSS), nacional-socialista (A lem anha) e fas cista (Itália), não podendo ser confundida com algum as expressões próxim as, porém diferenciadas, com o m uito bem destacou Hannah Arendt, em bora se possa ter um paradigm a prim eiro 110 Estado-polícia absolu tista (séc. XVIIH) - com o qual se identifica pela concen tração do pod er político, concentração da d ireção da econom ia, concentração das diretivas ideológicas e m anipulação da opinião pública via m eios técnicos e psicológicos - e na Prússia sob Frederico G uilherm e I. No Estado Totalitário, há uma tendência do poder p olítico para sc dilatar e se apoderar de tantos dom ínios da vida quanto possível, numa perspectiva de am oldam ento total da vida da com unidade e dos indivíduos. N o Estado totalitário m oderno devem ser invadidas pelas finalid ad es do Estado e postas ao serviço destas últim as, não só a econom ia, o m ercado do trabalho, a actividade p rofission al, mas tam bém a vida social, os ócios, a fam ília, as opiniões e costum es do povo.179 O totalitarism o está em oposição ao Estado Liberal, diferindo do autoritário - este significa que a soberania está fora do alcance c 176 G óm cz, Jo sc M a ria . Política e D emocracia em Tempos de G lobalização, p. 135. 177 Id. Ibid., p. 138. 178 Id. Ibid., p. 134. 179 Ver: Z ippelius, R cinhold. Teoria Geral do Estado, p. 135 e ss. Ciência Polílica e Teoria do Estado
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da vig ilâ n cia da mniorln r d o a u to crá tico e x e rcício d o p o d e r p o r d ireito próprio.
esti* entO ligad o ao
Na form a totalitária, há uma concentração de pod er nas mãos do Estado, sendo este detentor da verdade única, do d irecionam ento da vida dos cid ad ãos, não se dando, tão-só, via opressão m anifesta, direta, estritam ente violenta, m as também via introjeção de uma subjetividade qu e cria um(o) modelo de ser-estar no m undo - cria um m odelo obrigatório dc felicidade corno sugere U m berto Eco onde m ais do que reprim ir, produz a realidade e a verdade. O d ife rente passa a ser ilícito. A estrutura totalitária lim ite seria aquela capaz dc instaurar um clichê único para o hom em , adquirindo um a tendência a penetrar tão longe quanto possível cm todos os aspectos da vida da com unidade. P od em -se m encionar alguns elem entos que nos perm itiriam id entificar uma estrutura estatal totalitária, tais com o: a) D ogm atism o nas idéias acerca do m undo; b) Identificação do partido dom inante com a coletividade; c) Im posição do Estado pelo recurso aos agentes da força po lí tica e a um terror organizado a serviço daquele dogm atism o. Com H annah A ren d t,18u pode-se com preender o fenôm eno tota litário com o um a experiência do século XX alicerçado sobretudo na perspectiva da destruição da condição hum ana. C om o diz Paulo Sergio Pinheiro, além de im por um novo critério de julgam ento de regim es p olíticos, H annah Arendt m ostrou que para com preender o totalitarism o é preciso ir muito além da institucionalização do terror e do m edo. É preciso perceber que a ação totalitária visa a destruir todos os circuitos da convivência, da vida cotidiana, da sobrevivên cia, que constroem a solidariedade. O totalitarism o pretende elim i nar a espontaneidade, transform ando a personalidade hum ana em sim ples coisa. Para ela, o totalitarism o " é um a form a de dom ínio radicalm ente nova porqu e não se lim ita a destruir as capacidades políticas do hom em , ..., m as tende a destruir os próprios grupos e instituições que form am o tecido d as relações privadas do hom em , tornando-o estranho assim ao m undo e privando-o até dc seu próprio e u ".181 Assim , o totalitarism o, como diz Celso Lafer, apresenta-se como uma nova form a de governo baseada na organização bu rocrática de iso v e r desta autora o seu A s Origens do Totalitarism o. São Paulo, Cia d as Letras, 1990. 181 Ver: Stoppino, M ario. "V erbete T o talitarism o", In Bobbio, N orberto et ali. D icio nário lie Política, p. 1248, 134
Lenio Luiz Streck jo s é Luis Rolzan de Morais
marutnN o apo iad a 110 e m p re g o d o ivrror e da ideolog ia, a p a re ce n d o co m o a outra face da m o d e rn id a d e o c id e n ta l.182
Ou, com o diz Luis Alberto W arat, a im aginação totalitária ago no sentido do desfazim ento das diferenças, caracterizando-se como uma im aginação ornam ental dos estereótipos.183 Pode-se dizer, portanto e nesta perspectiva, que o fim do tota litarism o é a transform ação da natureza hum ana, a conversão dos hom ens em feixes de recíproca reação ... sendo que para atingir esta finalidade lança mão de uma dupla estratégia ideologia e p od er.184 Entende-se por ideologia totalitária aquela que pretende forjar uma explicação com pleta e definitiva o devir h istó rico 185 e, por terror totalitário o(s) instrum ento(s) utilizado(s) para tornar real a ideolo gia totalitária em face de seus inim igos reais ou im aginados. Resum indo o debate, pode-se bu scar entender o totalitarism o a partir de sua natureza - penentração e m obilização total do corpo social com a destruição de toda linha estável de distinção entre o aparelho político e a sociedade - e de seus elem entos constitutivos - que são a ideologia, o partido único, o ditador e o terror, como sugere M ario Stoppino. Em síntese, com o diz Chauí, totalitarism o significa Estado total, que absorve em seu interior e em sua organização o todo da socie dade e suas instituições, controlando-a por in teiro .186 A ssim , o totalitarism o “designa um certo modo extrem o de fa zer política, antecipando-se a uma certa organização institucional ou a um certo regim e; este modo extrem o de fazer política, que penetra e m obiliza uma sociedade inteira ao mesmo tem po que lhe destrói a autonom ia, encarnou apenas em dois regim es p olíticos tem poralmente circunscritos - nazism o e fascism o ".187
182 Ver contracapa do livro As O rigens do Totalitarism o. 133 Cfe. W arat. M anifesto do Surrealism o Jurídico, passim . 184 Ver Stoppino, Mario. Op. cit., p. 1248. 8 ’ Q ualquer sem elhança com doutrinas que pregam o fim da história não tí murn coincidência. 186 Cfe. C hauí, Convite à filosofia, p. 425. 187 Stoppino, M ario, op. cit., p. 1259. C iência Política e Teoria do Fstado
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8. As crises do Estado 8.1. C on sid erações gerais A pós este percurso, é preciso que (rc)pensem os o Estado, o que significa raciocinar acerca dc suas crises. No transcurso de sua história, o Estado M oderno, erigido como tal a partir do século XVI, viu-se envolto em um largo processo de consolidação e transform ações, passando nos dias de h oje por uma longa transform ação/exaustão. Ou m elhor, por várias crises interconectadas. Para pensá-las, im põe-se propor para o debate duas grandes versões de caráter genérico, agregadas a uma terceira vertente crítica de caráter institucional. A prim eira delas diria respeito à crise que atinge as suas características conceituais básicas, em particular a id éia de soberania. A outra atingiria não a idéia m esm a de Estado, mas uma de suas m aterializações, o W elfare State, ou Estado do BemEstar Social. Já a terceira se projeta por sobre a fórm ula m oderna de racionalização do poder, ou seja, o Estado C onstitucional, sem descurarm os de um a quarta vertente que atinge a tradição da separação funcional do podeT estatal. Aquela poderia ser discutida sob duas variantes: uma, pelo surgim ento de pretensões universais da hum anidade, referidas pela em ergência dos direitos hum anos; outra, pela superação da su pre m acia da ordem estatal por outros loci de poder, tais com o as orga nizações supranacionais e, particularm ente, pela ordem econôm ica privada ou pública. A segunda diria respeito à evolução do m odelo de Estado do Bem -Estar Social e as barreiras que enfrenta para a sua perm anência. Os entraves que aqui se colocam são de três ordens distintas: fiscalfinanceiro, id eológico c filosófico. N este ponto, em erge como contra-
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Lenio L u i z Streck jnsé Lu is Bolzan de Morais
nontn o projoto neollberal,lw que busca nas insuficiência» do Êhil 11 tu retorno a um m odelo reduzido de ordem estatal. |ri ■> nova crise, que ora propom os seja pensada, significa n fragilização dos instrum entos juríd ico-p olíticos de ordenação do po der político e de organização estrutural da sociedade a partir da |ui'idici/,açào hierarquizada da política por interm édio do conhecido I slado C onstitucional nascido do projeto liberal revolucionário, cu |os contornos foram sendo ajustados ao longo do dois últim os sécu los, desde as C onstituições m odernas - americana e francesa - de perfil liberal até o constitucionalism o social oriundo da segundn década do século vinte. São a estas três grandes vertentes que pretendem os dirigir nossa alenção neste trabalho, atrelando-as às interrogações que circundam o debate político-constilucional na perspectiva hum anitária. I’nrn lunto, ocupar-nos-em os prim eiram ente daquilo que nom inarem o» crise conceitual para, depois, atentarm os para sua crise estrutural t>, por fim , ao que cham arem os crise institucional, sem pretenderm os atribuir-lhes um perfil estanque, na m edida em que se interpenetram e, m uitas vezes, se confundem em suas bases c projeções, deixando, entretanto, anotada aquela que cham am os desde já crisc funcional, cujo conteúdo será apenas sugerido, para que possam os ter assente o quadro no qual se coloca o debate relativo aos d ireitos hum anos e seus vínculos com a dem ocracia e a cidadania, o que nos conduz
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8.2.1. A questão da soberania A idéia de soberania, antiga conhecida dos lidadores no cam po da teoria do Estado, é um conceito que em erge e se consagra já nos anos 1500. De lá para cá, o tema tem sofrido transform ações sign ifi cativas, especialm ente no que tange ao seu conteiído, para adaptarse às novas circunstâncias históricas im postas pelas m utações por que passaram os Estados, bem como pelos novos laços que os unem nas relações interestatais. Tendo em ergido com o uma característica fundam ental do Esta do M oderno, a soberania c tratada teoricam ente por prim eira vez em Les Six Livres de Ia Republique, de Jean Bodin, no ano de 1576. Antes disso, a construção deste conceito vem -se form ando, em bora não apareça, ainda, perm eada pela idéia que lhe será fundante, como poder suprem o, o que irá acontecer já no final da Idade M édia, quando a suprem acia da m onarquia já não encontra poder paralelo que lhe faça som bra - o rei tornara-se, então, d etentor de uma von tade incontrastada em face de outros poderes, ou m elhor, de outros poderosos, e. g., os barões ou os senhores feudais nos lim ites de sua propriedade. O u seja, deixa de existir uma concorrência entre pod e res distintos, e ocorre um a conjugação dos m esm os cm m ãos da m onarquia, do rei, do soberano. O poder que se conjuga neste m om ento reflete a idéia de sua absolutização e perpetuidade. A bsoluto, pois não sofre lim itações sequer quanto à sua duração, por isso tam bém perpétuo. Resta, ape nas, adstrito às leis divinas e naturais. Com Rousseau, a soberania sai das m ãos do m onarca, e sua titularidade é consubstanciada no povo, tendo com o lim itação, ape sar dc seu caráter absoluto, o conteúdo do contrato originário do Estado, ti esta convenção que estabelece o aspecto racional do poder soberano. A vontade geral incorpora um conteúdo de m oralidade ao mesmo. Todavia, o desenvolvim ento histórico do conceito de soberania prossegue, atribuindo-se-a à burguesia, à nação para, já no século XIX, aparecer com o em anação do poder político. Posteriorm ente, será o próprio Estado, com o personalidade jurídica, que deterá a titularidade da m esm a, acrescentando-a como uma de suas peculia ridades. Assim , a soberania caracteriza-se, historicam ente, com o um p o der que é juridicam ente incontrastável, pelo qual se tem a cap acida de dc definir e decidir acerca do conteúdo e aplicação das norm as, im pondo-as coercitivam ente dentro de um determ inado espaço geo138
Lenio Luiz Streck José Luis Bolzun de M orais
Urrtflco, bem l o m o fazer frnntr n c*vrnlunis injunçOes externa». líla é, assim , tradicional m e n te tldn c o m o una, indivisível, inalien áv e l o im prescritível.
Por outro lado, o que nos importa aqui 6 salientar a transform aVflo que vai se operar no conteúdo m esmo do poder soberano que, nascido e criado sob a égide de poder suprem o em sua relação com as dem ais forças, aparece no campo das relações internacionais, ao lado de seus hom ólogos, como colocado no m esm o plano horizontal e a eles igualado nas suas relações. Entretanto, a im bricação dos poderes soberanos na ordem internacional im plica uma revisão em muitos dos seus postulados, favorecendo uma revisão de seu concei to mais tradicional com o poder s u p e r i o T . C onsidere-se, p o r óbvio, que aqui não referirem os o problema relativo aos cham ados micro estados. M uito embora a soberania permaneça adstrita à idéia de insubm issão, independência e de poder suprem o jurid icam ente organiza do, d eve-se atentar para as novas realidades que im põem à mesma uma série de m atizes, transform ando-a por vezes. Falar em soberania, nos dias que correm , com o um poder irres trito, m uito em bora seus lim ites juríd icos, parece m ais um saudosis mo do que um a avaliação lúcida dos vínculos que a circunscrevem . Destes, m uito já sc falou de seus parâm etros d em ocráticos que im plicam um efetivo controle conteudístico de sua atuação. O ra, se o Estado caracteriza-sc por uma organização dem ocrática, é evidente que a sua atuação fica vinculada inexoravelm ente ao conteúdo m es mo da dem ocracia e a tudo o m ais que isto im plica relativam ente a controles públicos, limites procedim entais, garantias cid ad ãs etc. M as, ao lado de tais circunscrições, outras assum em relevância. N este viés, pode-se apontar, além dos vínculos criad os pelo Estado C onstitucional, a crise do Estado M oderno em apresentar-se como centro único e autônom o de poder, sujeito exclusivo da política, único protagonista na arena internacional.1®9 O que se percebe neste m ovim ento é que, ao lado do aprofun dam ento dem ocrático das sociedades, o que ocasionou um descom passo entre a pretensão de um poder unitário e o caráter plural das m esm as, ocorre um a dispersão nos centros de poder. Pode-se vis lum brar com o que uma atitude centrífuga, de dispersão dos loci de atuação política na sociedade, seja no âm bito interior, seja no exte rior. -89 Cfe. Bobbio, Dicionário de Política, op. cit., Verbete Soberania, em especial, p. 1187-1188. Ciência Política e Teoria do Estado
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No plano interiiacion.il, om especial, obsorvn se fenôm eno se m elhante relacionado ao caráter dc independência ilos Matados so beranos, corno cap acidad e de autodeterm inação. A interdependência que se estabelece contem poraneam ente entre os Estados aponta para um cada vez m aior atrelam ento entre as idéias de soberania e de cooperação ju ríd ica, econôm ica e social, o que afeta drasticam ente a pretensão à autonom ia.190 Por m ais que se argum ente no sentido de que esta colaboração só é possível em razão da própria soberania, a qual perm itiria a um Estado vincular-se a outro(s) em questões que lhe interessem ou para fazer frente a situações paradigm áticas, o que se observa na prática e a revisão radical dos postulados centrais da mesma. A s cbam adas com unidades supranacionais - C om unidade E co nôm ica Européia/C EE/U nião Européia, N A FTA , M FR C O SU L etc. particularm ente a prim eira, im puseram uma nova lógica às relações in tern acionais e, conseqüentem ente atingiram profundam ente as pretensões de unia soberania descolada de qualquer vínculo ou li m itação. O que se percebc, aqui, é uma radical transform ação nos poderes dos Estados-M em bros, especialm ente no que se refere a tarifas alfandegárias, aplicação de norm as juríd icas de d ireito inter nacional sujeitas à apreciação de Cortes de Justiça supranacionais, em issão de m oeda, alianças m ilitares, acordos com erciais etc.191 Sob o aspecto das organizações econôm icas, não se pode olvidar o papel jogado pelas cham adas em presas transnacionais que, exata m ente por não terem nenhum vínculo com algum Estado em p arti cular e, m ais ainda, por disporem de um poder de decisão, em especial financeiro, que pode afetar profundam ente a situação de m uitos países, especialm ente aqueles débeis econom icam ente, ad quirem um papel fundam ental na ordem internacional e, em espe cial, im põem atitud es que não podem ser contrastad as sob o argum ento da soberania estatal. Devc-se ter presente que, com o diz 19U ( ) term o autonom ia não está utilizado, aqui, 1 1 0 seu contraste à soberania, com o capacidade que têm os entes federados de um determ inado País de se auto-organizarem , mas com o seu sinônim o. 191 N este ponto, poder-se-ia levantar a questão de até que ponto a em ergência e consolid ação destas novas realidades não significam também uma radical transfor m ação na idéia m esm a de Estado N acional. Todavia, tal debate fugiria aos propósi tos d este estudo. Deve-se, contudo, lembrar que situações im portantes surgiram , apontando para tal problem ática: veja-sc, e.g., a cham ada "guerra do cam em bert", na qual os produtores de tal tipo de queijo na França colocaram em d cbale a construção da unidade européia face à im posição de que o m esm o fosse elaborado a partir de leite pasteurizado, o que acabaria com uma tradição francesa de fazô-lo com leite cru. 140
Lenio Luiz Streck. José Luis Bolzan de Morais
K«*iuito Jitnlne Ribeiro, "o sério crescim ento do poder econôm ico, .1 ponto de escapar ao controle dos governos nacionais e até de órgãos m ultinacionais, com o a União Européia, esvazia de poder as autorida des eleitas, deixando-as mesmo sem comporem um Poder de Estado". NAo Iní mais a quem se queixar. Diz ele ainda: "o poder efetivo está tão confiscado por esses circuitos mais ou menos anônimos, quase inidenlilii .ivei.s de poder financeiro, que a aiitonomia do F.stad o pratica mente se desfez e, com ela, as instâncias de atendimento a a g ra v o s".192 O utro agente fundam ental neste processo de transform ação de eclipse, para alguns - da noção de soberania são as O rganizações N üo-G overnam entais (ON Gs). Estas entidades, que podem ser en quadradas em um espaço interm ediário entre o público, repre sentado pelos organism os internacionais, e o privado, representado pelas em presas transnacionaís, atuam em setores variados, tais como: ecologia (G reenpeace), direitos hum anos (A nistia In tern acio nal), saúde (M édicos Sem Fronteiras) etc. O papel das m esm as vemse aprofundando, sendo, nos dias que correm , m uitas vezes im prescindíveis para que certos Estados tenham acesso a program as internacionais de ajuda, possam ser adm itidos em determ inados acontecim entos da ordem internacional, etc. Tais vínculos, incon gruentes com a idéia de poder soberano, são uma realidade da contem poraneidade onde os relatórios destas entid ad es podem significar reconhecim ento ou repúdio cm nível internacional, com reflexos inexoráveis na ordem interna de tais países, em especial naqueles que dependem cia "aju d a" econôm ica internacional. V oltand o-se ao âm bito do próprio Estado, d eve-se referir que a em ergência e a consolidação de novas relações sociais, tendo como protagonistas sujeitos outros que não os indivíduos isolad os, im pli caram um açam barcam ento por tais atores de funções trad icion al mente públicas. A ssim , os sindicatos e as organizações em presariais, além dc outros m ovim entos sociais, passaram a patrocinar d eterm i nadas atividades e produzir certas decisões que caracteristicam ente se incluiriam no rol do poder soberano do Estado. A inda, deve-se referir a transform ação mesma do Estado como outro aspecto relevante a considerar. A passagem do m odelo de estado m ínim o ao feitio liberal clássico para o tipo de Estado de Bem -Estar Social im põe a reconsideração do fenôm eno da soberania. In q u an to o m odelo liberal incorporava um a idéia de soberania como poder incontrastável, próprio a uma sociedade de "in d iv íd u o s livres e iguais" para os quais im portava apenas o papel de garantidor da 1,2 C onsultar R ibeiro, Renato Janine. Um Adeus à D em ocracia, Folha de São Paulo, IS. 10.95, p. 5-3. í. iência Política c Teoria do Estado
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paz social atribuído .to Lístndo, o m odelo dt* tuelftirt' stntc adjudica n idéia de uma com unidade solidária onde .10 poder público cabo a tarefa de produzir a incorporação dos grupos sociais aos benefício» da sociedade contem porânea. Nesta função de patrocínio tia igual dade transfere-se ao Estado um novo atributo que contrasta com este poder ordenador, qual seja a solidariedade. O caráter solid ário do poder estatal, para m uitos, substitui a sua característica soberana para incorporá-lo na batalha cotidiana de superação das desigualda des e de prom oção do bem -estar social, percebido com o um benefício com partilhado pela hum anidade toda.1’ 3 Não se olvide, por fim, o papel niarcantem ente interventivo assum ido por alguns organism os internacionais que acabam por res paldar, sob as alegações as mais variadas, ações contrad itórias às p ossibilidades de atuação desvinculada dos Eslados, o que tanto pode gerar situações de interferência d ireta,194 com o tam bém tomada de atitud es por organism os públicos dos F.stados centrais que afetam direta ou ind iretam ente interesses de algum (ns) p a ís(es).l9S E fetivam ente, o quadro esboçado im põe que repensem os o ca ráter soberano atribuído ao Estado contem porâneo. Percebe-se, já, que não se trata m ais da constituição dc uma ordem todo-poderosa, absoluta. Parece, indubitavelm ente, que se cam inha para o seu esm aecim ento e/ou transform ação com o elem ento caracterizador do poderio estatal. Em nível de relações externas, m ais visivelm ente, p ercebe-se a construção de uma ordem de com prom isso(s), e não de sob eran ia(s),196 m uito em bora, para alguns, a p ossibilid ad e de cons truir aqueles esteja assentada nesta. 193 Esta idéia se fará presente novam ente quando nos debruçarm os na problem ática dos direitos hum anos. 194 lJor evidente que possa parecer a necessidade de se pôr fim a certas situações paroxísticas no contexto internacional, não sc pode negar a contradição que tal atitud e im plica com respeito à idéia mesma de soberania. Pense-se, e.g., na Guerra do G olfo, na Ex-Iugoslávia, no Panamá, no Haiti, na Colôm bia e, recentem ente, no lraqueli, evidentem ente que todos eles dentro de suas especificidade». 195 No caso brasileiro, há um exem plo característico. Anos atrás, um .relatório do D epartam ento de Trabalho do governo norte-am ericano, dando conta da utilização de trabalho de crian ças em determ inado ram o industrial no Brasil, gerou uma política dc boicote à im portação de calçados, o que afetaria drasticam enle o fatura m ento nâo só de em presas exportadoras com o do próprio Estado através do recuo das tarifas de exportação e nas entradas de divisas internacionais. 196 pareCe qu e o m aior risco que se pode correr nesta trajetória é que alguns Estados perm aneçam soberanos, cnquanLo outros fiquem sujeitos a tal poderio. O u seja, que a cooperação nada m ais seja do que a imposição do m ais - único - forte. Parece ser este o papel pretendido pelos EUA, ou seja, guardião m ilitarizado de um a ccrta (a sua) ordem.
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/ow l.uis Bolzaii de Morais
hAo I.ih,
No dizer de G ustavo Zagrebelsky, pode-se resum ir esta corrodti noção de soberania estatal a partir de quatro vertentes distinporóm não excludentes,197 quais sejam : 1. O pluralism o político-social interno, que se opõe à própria idéia de soberania e de sujeição; 2. Form ação de centros de poder alternativos e concorrentes com o Estado que operam no cam po político, econôm ico, cultural e religioso, freqüentem ente em dim ensões total mente independentes do território estatal; 3. A progressiva institucionalização de "co n tex to s" que inte gram seus poderes em dim ensões supraestatais, subtraindoos à d isponibilidade dos Estados particulares e; 4. A atribuição de direitos aos indivíduos, os quais podem fazê-los valer perante jurisdições internacionais em face dos Estados a que pertencem .
Dessa form a, pode-se dizer, com N icolás López C alera, que "(...) en este final de siglu el destino de las naciones no está en ser un Hstado, sino en colaborar a la dem ocratización de los existentes para que lo particular y la diferencia tengan su digno lugar, pero sobre todo colaborar a la construcción de entidades supraestatales, que son los nuevos Estados dal siglo XXI, desde la igualdad*y la libertad, desde la solidaridad y la diferencia, que envuelva a más indivíduos y a más grupos sociales en niveles de justicia más p e rfe cto s".198 (grifo nosso)
8.2.2. A questão dos direitos humanos Perseguindo um outro viés analítico, devem os privilegiar neste estudo o aspecto relativo aos direitos hum anos que, por sua im por tância, m erece tratam ento apartado. São os direitos hum anos, a nos so ver, um dos aspectos fundam entais para que entendam os privilegiadam ente o quadro das relações internacionais contem porâ neas, em especial no que diz respeito ao problem a da soberania. Parece-nos fundam ental a com preensão não só do estabeleci mento m as, em especial, do conteúdo dos ditos direitos fundam en tais, assim com o do processo de transform ação por que passam com a em ergência de novas realidades. 197 Yer: Zagrebelsky, Gustavo. El D erecho Dúctil. 3" ed. Mactrid: T rotta, 1999, p. 11-12. 198 Ver: C alera, N icolás López. "N acionalism o y D erechos H u m anos". In: GARCÍA,
José A ntonio López e REAL, J Alberto dei (eds.>. I/>s D crechos: entre la ética, el i/el derecho, p. 86.
poder
Ciência Política e Teoria do Eslado
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Com o diz José Antonio López Gnreín, "(...) una buenn numero de estud iar los D erechos hum anos, al monos desde el siglo XIX hantn nuestros dias, consiste en verios en conexión com la historia dei Estado M o d ern o ,"199 e, agregaríam os, com suas crises, com o propos to na Parte I deste trabalho. Neste sentido, é m ister que tracem os breves considerações a respeito do tem a, na tentativa de lograr o estabelecim ento de uma com preensão m ínim a acerca do papel reservado aos direitos hum a nos. Para tanto, é preciso que se tenha desde logo a aceitação de que os d ireitos hum anos, com o tais, não form am um conjunto de regras cujo conteúdo possa ser adquirido e construído de um a vez por todas. N ão são direitos elaborados a paTtir da com preensão do que seja uma dada "n atu reza" inerente à pessoa hum ana, com o fora pensado em determ inados m om entos históricos - veja-se o caso de John Locke, para quem , com o dcsvelam ento do conteúdo desta "n atu reza" seria viável a elaboração dos próprios direitos hum a nos.200 O que se deve ter como assente, portanto, é o caráter fund a m entalm ente circunstan cial, o que não significa necessariam ente efêm ero, destes. Em razão mesmo deste caráter de historicidade que deve ser posto sob evidência no trato dos d ireitos hum anos, observa-se a total inadequação da tentativa de se estabelecer qualquer sentido de absolutização na definição dos m esm os. Tal assertiva pode ser corroborada inapelavelm ente pela trans form ação que se percebe nos próprios direitos fundam entais desde a sua form ulação mais festejada no transcurso do século XV11I. Per cebe-se neste percurso a transposição dos cham ados direitos de pri meira geração201 (direitos da liberdade), circunscritos às liberdades negativas com o oposição à atuação estatal, para os de segunda gera ção (direitos sociais, culturais e econôm icos), vinculados à positivi19 9 y er; G arcia, José A ntonio López. "L o s Dercchos: entre la ética, el poder y el d erech o". In: G arcia, Jo sé Antonio López e Real, J. Alberto dei (eds.). Los Derechos: en tre Ia ética, el poder y el derecho, p. 26. 20 0 KI0 caso de Locke, o que sc percebe é que a "n atu reza" hum ana ã qual estão vinculados os direitos hum anos é aquela própria de um determ inado segm ento da sociedade, qual seja, a burguesia. 201 Com o sc pode perceber do texto, optam os por não introduzir o debate, neste m om ento, acerca da nom enclatura a ser utilizada para dar nom e à coisa - direitos hum anos e direitos fundam entais - , bem com o n o que concerce ao seu caráter m utante - gerações e dim ensões - , para o que rem etem os a: Sarlet, ingo W. A Eficácia dos Direitos Fundam entais. Porto Alegre, Livraria do A dvogado, 1998. Acerca da questão histórica, ver: Com parato, Fábio K.onder. A Afirm ação H istórica dos Direitos H um anos. São Paulo, Saraiva, 1999. Sobre a questão brasileira, ver: Leal, Rogério G esta. Os Direitos H um anos no Brasil. Porto A legre, Livraria do A dvogado, 1997.
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ilíiilr ilrt nçrto estnt.il o preocupmtoa com a questrto da igunldndi1, aparecem com o pretensão n uma atuação corretiva por parte dos listados e, posteriorm ente, os de terceira geração, que se afastam consideravelm ente dos anteriores por incorporarem , agora sim , um conteúdo de universalidade não com o projeção, mas com o com pactunção, com unhão, com o direitos de solidariedade, vinculados ao desenvolvim ento, à paz internacional, ao meio am biente saudável, à com unicação. Fala-se, já, de uma quarta geração de direitos que incorporariam novas realidades, tais com o aquelas afetas às conse qüências, e.g., da pesquisa genética, ou, ainda, de uma quinta gera ção, vinculada às questões surgidas em face do desenvolvim ento tecnológico da cibernética.202 Tal "ev o lu ção " na construção dos direitos hum anos não deixa dúvida quanto ao seu caráter de historicidade. Com o diz Bobbio, "...o s direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aum ento do poder do homem sobre o hom em - ... - ou cria novas am eaças à liberdade do indiví duo, ou perm ite novos rem édios para as suas indigências ..." .203 D eve-se ter presente que tais questionam entos devem acom pa nhar as transform ações que se operam nos conteúdos tidos como próprios dos m esm os - e aqui observam os que, com o adverte Norberto Bobbio, cm seu "A Fra dos D ireitos",204 os direitos hum anos não nascem todos de uma vez, eles são históricos e se formulam quando e com o as circunstâncias sócio-histórico-politicas são propí cias ou referem a inexorabilidade do reconhecim ento de novos con teúdos, podendo-se falar, assim , em gerações205 dc direitos hum anos, cuja prim eira estaria ligada aos direitos civis e políticos - as liberda des negativas - , uma segunda geração atrelada aos conteúdos das liberdades positivas, com o os econôm icos, sociais e culturais, e uma terceira vinculando as questões que afligem os hom ens em conjunto, com o os relativos à paz, ao desenvolvim ento, ao meio am biente etc. Há, ainda, quem os identifique por interm édio do v alor privi legiado em seus conteúdos. A ssim , teríam os os direitos de liberdade, os de igualdade c os de solidariedade, acom panhando as diversas gerações com o acima explicitadas. Ver, neste sentido: O liveira Jr., José A lcebíades dc. O novo em Direito e Política. P orto A legre, T.iv. do Advogado, 1997. 203 Consultar Bobbio, Norberto. A Erà dos Direitos. Kio de Janeiro, Campus, 1992, p. 6. 204 Para este debate, há uma literatura significativa, podendo-se m encionar, parn além da obra consagrada de N orberto Bobbio, em A Era dos D ireitos, o trabalho dc Ingo Sarlct. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 205 Há autores que preferem falar em dim ensões, em vez de gerações, com o é o caso de Ingo Sarlet, op. cit., passim ., com o que não nos preocuparem os no momento.
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Por outro Indo, temos n necessidade* de d ar-lhes efetividade prática, podendo-se agregar, neste aspecto, com José Eduardo Fa ria,206 a idéia de que às diversas gerações pode-se atrelar o maior com prom isso de uma das funções do Estado - à cidadania civil e política ( I a geração) atrelava-se, de regra, a ação legislativa, pois bas taria o seu reconhecimento legal para a sua concreção por tratarem-se de liberdades negativas cuja intenção privilegia o caráter de não-im pedim ento das ações por parte do Estado; à cidadania social e eco nôm ica (2a geração), a ação executiva através de prestações públicas, im plicando necessárias ações políticas promocionais; à cidadania pósm aterial (3° geração), a ação jurisdicional em sentido amplo, garantindo a efetividade de seus conteúdos, através de uma atitude herm enêutica positiva e concretizante dos conteúdos constitucionalizados.207 Ou seja, os D ireitos Hum anos são universais e, cada vez mais se projetam no sentido de seu alargam ento objetivo e subjetivo, m an tendo seu caráter de tem poralidade. São históricos, não definitivos, exigindo a todo o instante não apenas o reconhecim ento de situações novas, com o tam bém a m oldagem de novos instrum entos de res guard o e efetivação. Prefirim os dizer que se generalizam - ou difun dem - na m edida em que sob as gerações atuais observam os, muitas vezes, um aprofundam ento subjetivo, a transform ação ou a renova ção (e.g. função social) dos conteúdos albergados sob o m anto dos d ireitos fundam entais de gerações anteriores, além da especificação de novas dim ensões.21’8 Ou seja, da I a geração com interesses de perfil individual passam os a, na(s) últim a(s), transcender o ind iví duo com o sujeito dos interesses reconhecidos, sem desconsiderá-lo, obviam ente209 - coletivos e difusos. 206 José Eduardo Faria. Direitos Humanos e Globalização Econômica. N otas para uma discussão. Ta) postura não pode significar que as dem ais funções do Estado não tenham nenhum tipo de com prom etim ento na m edida em que, e.g., o desrespeito a qualquer deles enseja a utilização de rem édios procedim entais construídos para dar conta destas situações, tais com o Habeas Corpus, M andado de Segurança, M andado de Injunção. A ção C ivil Pública, Ação Popular etc. 207 É de ver que não há, também neste aspecto, uma uniform idade conceitual, podendo-se referir autores que m ultiplicam as gerações de direitos hum anos, a partir de concepções prim árias díspares. 208 No âm bito deste trabalho, é suficiente adotarm os uma distinção sim plificada para entenderm os os direitos fundam entais com o sendo o catálogo positivado dos d ireitos hum anos em uma ccrta ordem jurídica, o que, ao m esm o tempo que os identifica, pode d iferenciá-los cm razão da extensão quantitativa d c uns c de outros. V er adiante a questão da dialcitca entre internacionalização d os direitos hum anos e constitucionalização do direito internacional. 209 Assim é que se pode falar, nos dias que passam, de uma multiplicação de gerações em razão de novos conteúdos próprios ao universo dos direitos hum anos, tais com o 146
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O que se percebe nesta seara r que muito dos conteúdos básicos ain m uitos lugares sequer foi im plem entado ou m uitos são sonega dos o ao m esm o tempo precisam os dar conta de situações novas cada vez m ais com plexas, im pondo-se ao jurista uma form ação qu alifica da qui' lhe perm ita enfrentar com petentem ente os con flitos surgidos neste m eio, sem esquecer o fundam ental que são as estratégias pró prias ao Estado de D ireito com o Estado D em ocrático de D ireito.2I<> Resum idam ente, poderíam os dizer, então, que os direitos hu manos, com o "con ju nto de valores históricos básicos e fundam entais, que dizem respeito à vida digna ju ríd ico-p olítico-p síquico-física e afetiva dos seres e de seu habitat, tanto daqueles do presen te quanto daqueles do porvir, surgem sem pre com o con d ição fund ante da vida, im pondo aos agentes político-jurídico-sociais a tarefa de agi rem no sentid o de perm itir que a todos seja consignada a possibili dade de u su fru í-lo s em benefício próprio e com um ao mesmo tem po". Assim com o os direitos hum anos se dirigem a todos, o com prom isso com sua concretização caracteriza tarefa d c todos, em um com prom etim ento cornum com a dignidade com um . Pode-se dizer, então, que: "L os D erechos hum anos expresan así aquello qxie es natural, com ún o universal a todos los indivíduos. C onstituyen una construcción teórica (principalm ente teórico-jurídica) basad a eii un m odelo de sujeto (dc D crccho) que se abstrae dc aquelas relacionadas com as questões am bientais, a paz, o desenvolvim ento e, mal» recentem ente, aquelas ligadas à pesquisa genética - que dá origem a um novo ramo do direito, reconhecido com o o biodireito - e à cibernética, o qu e só confirm a « hipótese bobbiana da historicidade destas m atérias, bem corno de uma ccrta inde pendência de um as em relação a outras na m edida em que o aparecim ento de uma nova g eração não im plica o desaparecim ento de algum a das prcccd cntes, embora possa red efini-la, com o já expresso. A este respeito, ver Bolzan de M orais. Do Direito Social aos Interesses Transindividuais. O Estado e o D ireito na ordem contem porânea. 2IÜ Ver art. I o da CFB/88. Sobre o conceito de Estado Dem ocrático de D ireito, ver: Bolzan de M orais, D o D ireito Social aos Interesses Transindividuais, em especial cnpítulo I. O E stado D em ocrático de Direito, com o já dito, tem um conteúdo transfor m ador da realidade, não se restringindo, com o o Estado Social de D ireito, a uma adaptação m elhorada das condições sociais de existência. Assim , o seu conteúdo ultrapassa o aspecto m aterial de concretização de uma vida digna ao hom em e panHrt a ag ir sim bolicam ente com o fom entador da participação pública qu and o o dem o crático qualifica o F.stado, n que irradia os valores da dem ocracia sobre todos os seu» elem entos constitutivos e, pois, também sobre a ordem jurídica. E m ais, a idéia dc dem ocracia contém e im plica, necessariam ente, a questão da solução d o problem a das condições m ateriais de existência. Dito dc outro m odo, o Estado Democrático é plus norm ativo em relaçao às formulações anteriores. Vê-se que a novidade que apre senta o Fstado Dem ocrático de Direito é muito mais cm um sentido teleológico de sun normaiividade do que nos intrumentos utilizados ou m esm o na m aioria de seus conteúdos, os quais vêm sendo construídos de algum a data. Ciência Política e Teoria do listado
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Ias particularid ad es juridicam ente irrelevtinles de onda eunl para scnalar las sim ilitu des relevantes de to d o s".2,1 Ou, com o diz Antonio Enrique Pérez-Lufto: "(...) los derechos hum anos o son universales o no son. No son derechos hum anos, podrán ser derechos de grupos, de entidades o de determ inadas personas, pero no derechos que se atribuyan a la hum anidad en su conjunto. La exigencia de universalidad, en definitiva, es una condición necesaria e indispensable para cl reconocim iento de unos d ere chos inherentes a todos los seres hum anos, m ás allá de cualquier exclusión y m ás allá de cualquier d iscrim in ación ".212 T od avia, esta universalização não significa uma hom ogeinização dos indivíduos ou seus cotidianos, pois: "E n prim er lugar, por que hablar dei sujeto de los Derechos hum anos, un su jeto universal y abstracto, no im plica hablario todo dei sujeto real cuya identidad m oral le sigue perteneciendo en exclusiva. Y, en segundo lugar, porque sobre lo que versan los D erechos hum anos es sobre Ia relación de cada indivíduo con los dem ás y, sobre todo, versan sobre la relación de cada individuo con la form a institucional surgida dcl pacto con los dem ás: el Estado. A la postre, es en relación con el Estado donde tienen sentido los D erechos h u m an o s".213 8.3. C rise estru tu ral A com preensão das crises que atingem o Estado C ontem porâ neo, sob a form a de Estado do Bem -Estar, im põe o entendim ento prévio acerca d o próprio m odelo sob análise. 8.3.1. O Estado do bem -estar2íi A construção de um Estado com o Welfare. state está ligada a um processo histórico que conta já de m uitos anos. Pode-se di/.eT que o m esm o acom panha o desenvolvim ento do p rojeto liberal transfor 211 Ver: G arcia, Jo sé A ntonio López. !.os D erechos: entre la ética, c l poder y el derecho. In: GA RC ÍA , op. cit., p. 22. 212 Ver: Pérez-Lufto, A ntonio Enrique. "L a Universalidad de los Derechos H um a n o s". In: G arcia, José A ntonio López e Real, J. A lberlo dei (eds.). Los D erechos: entre Ia ética, cl poder y el derecho, p. 66. 213 Id. Ibid., p. 22. 214 É im portante salientarm os que nào farem os distinção entre as diversas expres sões do m odelo do W elfare State em suas vertentes am ericana, européia setentrional c m eridional, em particular. 148
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mado cm listado do Bem -Estar Social no transcurso das prim eiras décadas do século XX. A história desta passagem , de todos conhecida, vincula-se em especial na luta dos m ovim entos operários pela conquista dc uma regulação para a convencionalm ente cham ada questão social. São os direitos relativos às relações de produção e seus reflexos, com o a previdência e assistência sociais, o transporte, a salubridade pública, .1 m oradia etc., que vão im p u lsion ara passagem do cham ado Estado M ínim o - onde lhe cabia tão-só assegurar o não-im pedim ento do livre desenvolvim ento das relações sociais no âm bito do m ercado para o Estado Intervencionista - que passa a assum ir tarefas até então próprias à iniciativa privada. N este ponto, algum as circunstâncias precisam ser aclaradas: A - o processo de crescim ento do Estado não beneficiou unica m ente as classes trabalhadoras com o asseguram ento de d e term inados direitos. A atuação estatal em m uitos setores significou tam bém a possibilidade de investim entos em es truturas básicas alavancadoras do processo produtivo in d ustrial - pense-se, aqui, por cx., na construção de usinas h idrelétricas, estradas, financiam entos etc.; B - a d em ocratização das relações sociais significou, por outro lado, a abertura de canais que perm itiram o crescim ento das dem andas por parte da sociedade civil. Este fato será, pos teriorm ente, um dos obstáculos críticos ao próprio d esen volvim ento do Estado do Bem -Estar Social se pensarm os que, com o aum ento da atividade estatal, crescia, ta_mbém, a sua burocracia, como instrum ento de concretização dos serviços e, com o sabido, dem ocracia c burocracia andam em cam inhos com sentidos opostos.215 D eve-se salientar, por outro lado, que um aspecto assum e gran de im portância, qual seja, o de que desaparece O caráter assistencial, caritativo da prestação de serviços, e estes passam a ser vistos como direitos próprios da cidadania. O m odelo constitucional do W elfare State principiou a ser cons truído com as C onstituições Mexicana de 1917 e de W eim ar de 1919, contudo, não tem uma aparência uniform e. O conteúdo próprio d es ta form a estatal se altera, se reconstrói e se adapta a situações diver sas. A ssim é que não se pode falar em " o " Estado do Bem -Estar, dado 215 Podc-so dizer, sinteticam ente, que enquanto a dem ocracia tem um a trajetrtrin ascendente, a burocracia faz o seu percurso inversam ente, ou seja, descendente. Ver: Bobbio. O fu tu r o da D em ocracia, op. cit. Ciência Política e Teoria do Estado
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que sua apresentação, por ex., am ericana do Norte*, clnro nu diferencia daquela do É lat-P rovidence francês. Todavia, 6 correto pre ten d er que há um caráter que lhe dá unidade, a intervenção do Estado e a prom oção de serviços. Ou seja, o Welfare State seria aquele Estado no qual o cidadão, independente de sua situação social, tem direito a ser protegido contra dependências de curta ou longa dura ção. Seria o Estado que garante tipos m ínim os de renda, alim entação, saúde, habitação, educação, assegurados a todo o cidadão, não com o caridade, m as com o direito p olítico.216 Há um a garantia cidadã ao bem -estar pela ação positiva do Estado com o afiançad or da qualidade de vida do indivíduo. Tod avia, algum as situações históricas prodxiziram um novo conceito. O Estado D em ocrático de D ireito em erge com o um apro fundam ento da fórm ula, de um lado, do Estado de D ireito e, de outro, do W elfare state. Resum idam ente, pod e-sc dizer que, ao m es m o tem po cm que se tem a perm anência cm voga da já tradicional questão social, há com o que a sua qualificação pela questão da igual dade. A ssim , o conteúdo deste se aprim ora e se com p lexifica, posto que im põe à ordem juríd ica e à atividade estatal um conteú do utó pico de transform ação do status quo. Produz-se, aqui, um pressup os to teleológico cujo sentido deve ser incorporado aos m ecanism os p róprios ao Estado do Bem -Estar, construídos desde há m uito. E é este o conceito que, vindo estam pado no texto constitucional (art. 1“),217 d efine os contornos do Estado brasileiro, a partir de 1988, tendo-se presente que o constituinte nacional foi bu scá-lo em C ons tituições prod uzid as cm situações sim ilares à nossa, com o é o caso da C onstituição portuguesa pós-Revolução dos C ravos e da C onsti tuição espanhola seguinte à derrubada do regim e fran qu ista, ou seja, docum entos legislativos produzidos no in terior de processos de redem ocratização. 8.3.2. A s crises de um m odelo218 A h istória deste projeto não é sem obstáculos. Pelo contrário, a in stitucionalização deste m odelo, seja com o aprofundam ento do li2,6 Cfe. Bobbio, D icionário, op. cit., Verbete Lstado do Bem -Estar, em esp ecial, p. 416. 217 Art. 1" CFB —A República Federativa do Brasil, form ada pela união indissolúvel dou Estados, M unicípios e do D istrito Federai, constitiü-se em E stado Dem ocrático de Direito. 218 Sobre este tem a, ver: Rosanvalon, Pierrc. La C rise de YElat P rovidence, de 1981, e La N ouvelle Q u estio n S ociale, de 1995, am bos publicados po r Ed. du Seuil. Tam bém : G arcia-Pclayo, M anuel. Las Transform aciones dei Estado Cotem poráneo, op. cit. 150
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InM.illhino, so|a com o sua rgfnrmuIflçAo/noHUÇíU»,21'’ earncterl/.a-si* por i'rir«"( C rise.s estas que podem advir il.i reação do seus opositores ovi do no 11 próprio desenvolvim ento contraditório. Hntrctanto, 6 rem arcada constantem ente uma delas. A crise fi nanceira - ou de financiam ento - do Estado parece estar por trás de todas, ou da m aioria das críticas que sc fazem a ele e das propostas do sua revisão tendentes a um retorno atrás. A ssum im os, antecipadam ente, que estam os diante de um ponto do não-retorno. Não há com o se pensar em uma volta às bases do I .Btado M ínimo. Este é um cam inho fechado. Isto não significa, con tudo, que não estejam os sujeitos a ver m inguadas algum as de suas características mais m arcantes2211 - o que é perceptível nas políticas om voga nos anos 1980, cm especial com os governos Reagan e M. Iliatcher, m as que, m esm o estes não alcançaram plenam ente a (des)construção da totalidade dos m ecanism os de w elfare produzidos ao longo dos últim os 50 anos, principalm ente. Os problem as de caixa do W elfare state já estão presentes na década de 1960, quando os prim eiros sinais de que receitas e d esp e s a s estão em descom passo, estas superando aquelas, são percebidos. Os anos 1970 irão aprofundá-la, na m edida em que o aum ento da atividade estatal e a crise econôm ica m undial im plicam um acrésci mo ainda m aior de gastos, o que im plicará o crescim ento do déficit público. M uitas das situações transitórias, para solução das quais o m odelo fora elaborado, passaram , dadas as conjunturas internacio nais, a ser perm anentes - o caso do desem prego nos países centrais exem plifica caracteristicam ente este fato. Para superá-la, duas perspectivas são apontadas: atim ento nn carga fiscal ou redução de custos via dim inuição da ação estatal. O s anos 1980 irão trazer à tona uma nova crise. Será, então, uma crise de legitim ação que irá atingi-lo. A dúvida quo se estabelece, então, é quanto às form as de organização e gestão p róprias ao Estado do Bem -Estar. O corre, então, uma crise ideológica patrocinada pelo em bate antes m encionado entre dem ocratização do acesso e burocratização do atendim ento. Por fim , é hora de atentarm os para um terceiro questionam ento. Talvez este seja, m esm o, um a conseqüência do aprofundam ento das crises anteriores. A crise filosófica atinge exatam ente os fundam en 219 Há quem proponha a questão de até que ponto se pode m axim izar o papel do Estado e continuar-se falando em Fstado T.iberal. Ou seja: há um m om ento de ruptura da ordem liberal com o avanço do projeto do bem -estar? 220 Aqui se poderia inverter a questão e perguntar: até que ponto sc pode "enxu g ar" o W elfare State e, assim m esm o continuarm os com sua presença? Ciência Política e Teoria do listado
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tos sobre os quais se assenta o m odelo tio bem -estar. Eísln crise aponta para a desagregação da base do Estado do Bem listar, calcada na solidariedade, im pondo um enfraquecim ento ainda m aior no con teúdo tradicional dos direitos sociais, característicos deste Estado. O que se coloca neste m om ento é o enfrentam ento das crises. Por um lado, o projeto neoliberal - particularm ente depois de suas experiências am ericana e inglesa - parece encontrar terreno fértil em terra brasilis. N este sentido, c im portante que se observe que o debate proposto pelo m esm o leva em consideração apenas a porção quantifíc.ável das m esm as. É a partir de um discurso econôm ico que se busca alcançar a inviabilidade da perm anência de uma ordem legislativa, não m aterial ou substantiva, tenha-se presente - de bemestar. Todavia, por outro ângulo, deve-se ter claro que não é sufi ciente que sc discuta a (in)eficiência econôm ica do m odelo, pois ele projeta algo m ais do que um arranjo econôm ico-contábil. Com o alerta Arruda Jr.,221 a globalização neoliberal já nasce autoritária, pois sua gênese explicita uma reação progressiva face aos efeitos da luta de classes desde a década de quarenta. Findando a segunda guerra, prevaleciam na ordem econôm ica m undial as po líticas do i\Vcy D eal c do estado Social, tendentes à afirm ação do seu aprim oram ento, na forma do W elfare State. A tese da presença do Rstado nas questões sociais (saúde, ensino, trabalho, ctc.) c flagrante ruptura com o liberalism o clássico, contra o qual já se insurgira Keynes. Tal tese responde tam bém às lutas operárias travadas desde o final do século XIX e também soa com o uma resposta da direita esclarecida aos vaticínios de M arx sobre a inexorabilidade da revo lução proletária, engendrada no bojo da insuperável contradição fundante da ordem social capitalista: a socialização na produção de riquezas e a apropriação privada das m esm as por parte de um grupo seleto de proprietários dos m eios de produção. O que preocupava aquele que pode ser considerado o fundador do neoliberalism o, Friedrich Hayek, era exatam ente o avanço das lutas políticas sindicais c os com prom issos advindos do W elfare State com as classes trabalhadoras. Já cm 1943, quando H ayek escreve O Cam inho da servidão, estão presentes as idéias relativas a quaisquer óbices à liberdade, concebida sem pre em interação com e com o con dição do m ercado livre. Essa reação contra o avanço da luta de classes, expressado por significativas vitórias ju ríd icas, é uma reação política, alçada aos planos teórico e filosófico desde o célebre encon221 Cfe. A rruda Jr, Edm undo Lima de. "O s cam inhos da globalização: alienação e em ancipação". In: Globalização, N eoliberalismo e o M undo do Trabalho. Edm undo Lim a de Arruda Jr e A lexandre Ram os (org.). C uritiba, Edibej, 1998, p. 16 e segs.
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Iro em Mnnt Pulòrin (Suíçíi), m m >i participação do M ilton I’rledrunn <• Knrl 1’oppor. O com prom isso capital/trabalho foi colocado cm qucstAo. A idéia de privatizaçflo, carro chefe das políticas neolibernis, objetiva a redução do deficil fiscal, aplicando para tal o receituário do C onsenso de W ashington. Os cortes incidem sobre gastos sociais, seguidos de com pulsiva venda de patrim ônio público a pre ços desvalorizados. N esse sentido, o Brasil representa um contun dente exem plo (venda da Vale do Rio Doce, U sim inas, entre tantas outras em presas públicas).222 Parece-nos, pois, que por trás da m oldura do bem -estar vislum bra-se um projeto sim bólico dc rearranjo das relações intersubjetivas que está calcado não só no consenso dem ocrático, m as, tam bém , na idéia de um viver com unitário, onde os interesses que atingem os indivíduos produzem inevitavelm ente benefícios ou prejuízos com partilhados. P or outro lado, devem os estar atentos às transform ações concei tuais que atingem a com preensão tradicional da idéia de Estado, assentada sobretudo no seu poder incontratável: a soberania. São várias as im plicações em ergentes das novas configurações m undiais, seus atores etc. 8.4. C rise co n stitu cio n al (in stitu cio n al) Parece inevitável que, com o consectário das crises anteriorm en te referidas, tenham os a fragilização do instrum ento que, na m oder nidade, serviu com o locus privilegiado para a in stalação dos conteúdos políticos definidos pela sociedade. D eve-se ter claro que a C onstituição, com o docum ento juríd icopolítico, está subm ersa em um jogo de tensões e poderes, o que não pode significar, com o querem alguns, a sua transform ação em pro gram a de governo, fragilizando-a com o paradigm a etico-juríd ico da sociedade e do poder, ao invés de este se constitucionalizar, pondo em prática o contcúdo constitucional.223 Com o diz José Eduardo Faria, no lim iar do século XXI, contudo, a idéia de constituição cada vez mais é apontada com o entrave ao funcionam ento do m ercado, com o freio da com petitividade dos agentes econôm icos e com o obstáculo à expansão da econom ia, ape sar de, segundo este autor, resultante do projeto juríd ico-p olítico 222 Idem , ibidem. 323 Exem plo disto pode ser observado na história político-eonstitucional brasileira recente. Ciência P olítica c leo ria do F.stado
liberal-burguês, com eçar o néculo XX encarado com o nlnônlmo de segurança e legitim idade, delim itando o exercício dos m ecanis m os de violência m onopolizados pelo Estado, institucionalizando seus procedim entos decisórios, legislativos e adjudicatórios, estabe lecendo as form as de participação política e definindo o espaço so berano da palavra e da ação em contextos sociais m arcados pelo relativism o id eológico c em cujo âm bito o poder do Estado depende de critérios externos aos governantes para ser aceito com o v á lid o ".224 Assim , o que tem os vislum brado na prática é o reforço desta postura, quando as C onstituições dos Estados N acionais e o próprio constitucionalism o m oderno são revisitados, na m edida em que o prevaleeim ento da lógica m ercantil e a já m encionada contam inação dc tocias as esferas da vida social pelos im perativos categóricos do sistem a econôm ico, a concepção de um a ordem constitucional subor dinada a um padrão político e m oral se esvanece,223 perdendo-se o que D alm o D allari226 cham a de padrão objetivo do ju sto, m uito em bora tenha-se que relativizar esta objetividade, tratando-a como um referencial ctico-ju ríd ico que busca garantir conteúdos m ínim os de convívio social. Para esta em preitada, pretendem os abordar alguns tópicos que nos parecem essenciais para a reflexão constitucional contem porâ nea. A ssim é que passarem os pelo debate acerca d c o que é? e por quê? C onstituição - m uito embora já sc possa supor nossa posição pelo que se disse acim a - para, após, explicitarm os alguns aspectos que se refletem na teoria e na prática constitucionais destes dias, quais sejam a globalização, repercutindo não apenas na econom ia, como tam bém nos direitos hum anos e nos processos de regionalização sob o m odelo unionista, e a m utação constitucional, cuja experiência da ju rispru d encialização ou tribunalização dos conteúdos constitucio nais, bem com o da sua executivização/adm inistrativização precisam ser consideradas com relevância. Por fim , apresentarem os algum as perspectivas ao constitucionalism o, tendo presente, com o já explici tado, o papel inafastável deste docum ento juríd ico-p olítico. P or tudo isso, nossa proposta poderia ser classificad a como com ponente do que poderia ser nom inado como sociologia constitu cional ou da C onstituição, preocupados que estam os em refletir os vínculos entre o constitucionalism o e as relações sociais em sentido 234 Ver: Faria, José Eduardo C. de O liveira, Prefácio, in Cittadino, G isele. Pluralismo, Direito e Justiça DUtributiva. Elem entos da Filosofia Constitucional Contem porânea. 2* ed. Rio de Janeiro: Lum en Juris. 2000, p. XV. 225 Td. lbid., p. XVII. 226 Ver, do autor, o seu Constituição e Constituinte. São Paulo: Saraiva. 1980. 154
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am plo o contexto Rociojurídlco contem porâneo cm eapocinl cm um período crítico com o o que se passa atualm ente. Algo que nflo 6 novo,2:17 mas que precisa ser constantem ente refletido para que pen sem os acerca do esgotam ento da história constitucional - do Estado C onstitucional - e, por conseqüência, da própria dem ocracia, como verem os na segunda parte deste trabalho. 8.5. C rise Funcional Para com pletarm os, provisoriam ente, este debate, parece-nos, com o jâ apontado, im prescindível que apontem os o que nom inam os crise funcional do Estado, entendida esta na esteira da perda de exclusividade sentida pelos órgãos incum bidos do desem penho de funções estatais, aos quais são atribuídas tarefas que lhes são ineren tes. Esta perda de exclusividade, aqui, não pode ser pensada apenas em seus aspectos internos, na seqüência do d esenvolvim ento do debate próprio à Teoria G eral do Estado/C iência Política, ou seja, a dialética da separação/harm onia das funções estatais. Pelo contrário, e preciso que a vejam os tam bém cm seu viés externo, onde se observa, além de uma m udança no perfil clássico das funções estatais produzida pela transform ação m esm a da insti tuição estatal, a fragilização do Estado em suas diversas expressões quando perde concorrênciaIm ente diante de outros setores - p riv a dos, m arginais, nacionais, locais, internacionais etc. - a sua capaci dade de decidir vinculativam ente a respeito da lei, sua execução e da resolução de conflitos. N esta perspectiva, são significativos os trabalhos que apontam para um certo pluralism o de ações e um pluralism o funcional, sejam legislativas, executivas ou jurisd icionais, quando o ente público es tatal, no reflexo de sua fragilização/fragm entação com o espaço ptí blico de tom ada dc d ecisões, com o autoridade pública, se coloca ao lado de outras estratégias de diversos m atizes e procedências, como apontado acima. 227 Já liu i Barbosa alertava: "A Constituição está em destroços e o que nos ameaço agora ... é com a últim a ruína das nossas liberdades, a perda total de n ós mesmos. Não é a C onstituição que se acha em perigo; é a P átria, o Brasil, a nossa integridade, a nossa coletividade, tudo o que somos, tudo o que éram os, tudo o que aspiramos a ser, a nossa existência m esm a nos seus elem entos m orais, em todas condições da sua realidade e d e seu valor, da sua atualidade e do seu futuro, da sua duração p da sua honra, do seu préstim o e do seu destino. Se não nos erguerm os num grande m ovim ento de reabilitação, a falência da nossa nacionalidade estará declarada". Cicncia Política e Teoria do Estado
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