A Política Perdida – Ordem e Governo antes da Modernidade
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Antônio Manuel Hespanha
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A Política Perdida – Ordem e Governo antes da Modernidade
A POLÍTICA PERDIDA
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CONSELHO EDITORIAL DA COLEÇÃO “BIBLIOTECA DE HISTÓRIA DO DIREITO”: Prof. Andrei Ko Koerner (U (UNICAMP) Prof. Antonio Carlos Wolkmer (UFSC) Prof. Prof. Airton Airton Cerqueira Cerqueira Leite Seelaender Seelaender (UFSC) (UFSC) Prof. Arno Dal Ri Júnior (UFSC) Prof. Prof. Gilbe Gilberto rto Bercov Bercovici ici (USP (USP e Macken Mackenzie zie)) Pro Prof. Jos José Ramó Ramónn Narv arváez áez (Univer iversi siddad Nacional Nacional Auton Autonoma oma do México México)) Profª. Joseli Nunes Mendonça (UFPR) Prof Prof.. Luis Luis Fer Ferna nand ndoo Lope Lopess Pere Pereir iraa (UFP (UFPR) R)
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A Política Perdida – Ordem e Governo antes da Modernidade
António Manuel Hespanha Professor de Direito da Universidadade Nova de Lisboa - Portugal
A POLÍTICA PERDIDA
Curitiba Juruá Editora 2010
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PREFÁCIO Há mais de quinze anos encontrámo-nos, eu e Bartolomé Clavero, um querido companheiro de armas de algumas batalhas historiográficas, num colóquio sobre “razão de Estado”, organizado pelo I stitu to de Studi F il osofi ci de Nápoles ( l ’Istituto dell’Avvocato Marotta , como era geralmente conhecido entre os taxistas que me levavam e traziam). Logo na conversa inicial, chegámos à conclusão, com divertida surpresa, que íamos tratar do mesmo tema. Não sendo ambos nem peritos nem apaixonados pela “razão de Estado”, tínhamos ambos resolvido virar o tema do avesso. Eu levava um textozinho intitulado: “Les autres raisons de la politique. L'économie de la grâce”1; Bartolomé uma comunicação que era já o embrião do seu livro, hoje um clássico Antidora. Antr opol ogía católica de la economía moderna (1991)2. Dois anos depois, Pipo agenciou a edição deste e de outros textos em que era glosado, a vários propó sitos, o mesmo tópico do carácter pluralista da ordem jurídica do Antigo Regime num livro a que chamámos L a gracia del derecho 3 , e que teve a sorte de ter 4 , estando hoje esgotado há anos. A linha de reflexão histórica que aí bonne presse abri frutificou em desenvolvimentos, mas também em perplexidades e críticas5. 1 2 3 4
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Depois publicado em Pierangelo Schiera (a cura di), Ragion di Stato e ragione dello Stato (secoli XV- XVII), Napoli: Istituto Italiano di Studi Filosofici, 1996. p. 38-67. Milano. Giuffrè, 1991. Madrid. Centro de Estudios Constitucionales, 1993. p. 351 La gracia del derecho. Economía de la Cultura en la Edad Moderna . Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993. p. 351 (recensões: Journal of modern history , 67(1995), p. 758-759 (J. Kirschner). Comentários: José Ignacio Lacasta Zabalza, “ Antiformalismo jurídico ‘Fin de siglo’: su gracia e inconvenientes. Contraponto jurídico y moderadamente formalista al ideario plenamente antiformalista de Antonio Hespanha”, Ius fugit , 3/4 (1994-1995), 437-456; Carlos Petit, “Estado de Dios, gracia de Hespanha”, Quaderni fiorentini per la st. del pensiero giuridico moderno , 1998. (também em Initium. Revista Catalana d'Història del Dret. 1 [Homenatge al prof. Josep M. Gay i Escoda] (1996); Javier Barrientos ( Revista chilena de historia del derecho , 17, Santiago, 1992-1993. p. 225-226); Javier Barrientos Grandon, “ La Gracia del Derecho. Economía de la Cultura en la Edad Moderna, Madrid, 1993, por Antonio Manuel Hespanha”, en Revista Chilena de Historia del Derecho , 17, Santiago, 1992-1993. p. 225-226. Disponível em: . Refiro, apenas, em Espanha, o livro de um querido amigo, Salustiano de Dios. Graça, mercê e patronazgo real . La Camara de Castilla entre 1474-1530 . Madrid, C.E.C., 1944 e, em Por-
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Não se justifica muito que reeditemos hoje esse livro. Já tenho deixado cair outros. Por razões idênticas: estamos sempre a aprender mais, a enriquecer e complexificar as ideias simplórias que de início nos surgem. Hoje doume claramente conta, que o papel normativo da graça era parte de uma questão muito mais vasta e, mutatis mutandis , ainda actual – a da dimensão pluralista das ordens que nos comandam, umas superiores, outras alheias, outras, paradoxalmente, de nós mesmos. E, para além disso, também me resulta muito claro que aquele pluralismo normativo fazia parte de uma matriz antropológico -cultural, características das sociedades modernas da Europa do Sul, bem como das suas extensões ultramarinas. Com diferenças, mas também com identidades centrais. Com o tempo, fui estudando isso a vários propósitos, alguns menos próximos dos meus temas usuais de estudo. E, quando o Ricardo Marcelo Fon seca, um querido colega da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, me sugeriu a reedição, em português, de L a Gracia del Derecho , eu lhe propus que, explorando um acrescento ao título original, que Pipo Clavero então me sugeriu (“Economía de la Cul tura en la Edad M oderna ”), pegássemos agora o tema grande, aproveitando para reformatar o conjunto dos textos a reunir. E assim se fez. Primeiro, reuni um texto mais teórico sobre a questão geral das cate gorias, como formas de organização do mundo geral 6 , e um outro, de âmbito mais local, sobre as categorias antropológicas da sociedade moderna7 . Em seguida, os textos começam a particularizar os temas, inventariando “geometrias da alma”, “gramáticas da mente” e “ordens do discurso” características de universos epistémicos submersos ou em submersão. As exigência normativas do universo dos amores8 , estreitamente ligado a esse mundo em que as atracções e solicitudes geradas por um sentido ex-
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tugal e em França, respectivamente, os traços que deixou, por exemplo em Fernanda Olival (As Ordens Militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789), Lisboa: Estar, 2001) e em Jean-Frédéric Schaub ( Portugal na Monarquia Hispânica (1580-1640) . Lisboa: Livros Horizonte, 2001). “Categorias. Uma reflexão sobre a prática de classificar ”. Análise social, 38.168 (2003), p. 823-840. Com alguma modificação. “ Las categorías del político y de lo jurídico en la época moderna”. Ius fugit, 3-4(1994-1995), p. 63-100. “ La senda amorosa del derecho. Amor e iustitia en el discurso jurídico moderno”. Carlos Petit. (Ed.). Pasiones del jurista. Amor, memoria, melancolía, imaginación . Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 23-74. Rec.: Emanuele Conte, Rechtshistorisches Journal, 17(1998), p. 53-59.
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celente da ordem melhoram o mundo, mais impessoal e neutro, da justiça9; nesta altura, não resisti a incluir um texto mais actualista, imaginando no que daria, hoje, essa justiça dirigida pela solicitude e cuidado pelo Outro10. A pluralidade das ordens, desde a ordem familiar 11 à ordem nobiliárquica12; desde a ordem do cálculo financeiro13 até a ordem do direito dos rústicos14 ou à ordem... das cores15. E, no final, as técnicas de acomodação desta “governabilidade” préestatal pelos técnicos do governo e da ordem – os juristas –, no âmbito de uma complexa arte de ponderação de múltiplos ordenamentos a que se chamou o direito comum ( iu s commune )16 . Hoje, quando o que está em submersão já visível é a cultura da modernidade, e rememoração das formas profundas da sensibilidade pré-moderna tem suscitado interesse. Esse interesse não se justifica, seguramente, por algum projecto de reconstituir sentidos antropológicos irremediavelmente perdidos e nem pelos mais eruditos sequer suficientemente entendidos. Por muito que se 9
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“ Les autres raisons de la politique. L'économie de la grâce”, em J.-F. Schaub (ed.), Recherches sur l'histoire de l'État dans le monde ibérique (15e.-20e. siècles) , Paris, Presses de l'École Normale Supérieure, 1993. p. 67-86; também em Pierangelo Schiera (a cura di). Ragion di Stato e ragione dello Stato (secoli XV-XVII). Napoli: Istituto Italiano di Studi Filosofici, 1996. p. 38-67. “Que espaço deixa ao direito uma ética da pós-modernidade?”. Themis , VII.14 (2007); tam bém em Phronesis. Revista do Curso de Direito da FEAD , 4 jan./dez. 2008. p. 9-26.; versão francesa: “Le droit face à une éthique post-moderne”. In: Studi in ommaggio di Paolo Prodi . Bologna, 2008. “O estatuto jurídico da mulher na época da expansão”, In: O rosto feminino da expansão portuguesa. Congresso internacional , Lisboa. Comissão da Condição Feminina, 1994, p. 5464; “Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos histórico-antropológicos da família na época moderna”. Análise social , 123/124.I (1993), 951-974. “ A nobreza nos tratados jurídicos dos sécs. XVI a XVIII ”. Penélope, 12(1993), p. 27-42. A ordem moral da fazenda”, adaptado de A. M. Hespanha, “O cálculo financeiro no Antigo Regime”, In: Actas do Encontro Ibérico sobre história do pensamento Económico . Lisboa: CISEP, 1993; também em: “Cálculo financiero y cultura contable en el Antiguo Régimen”. In: PETIT, Carlos (Ed.); Del ius mercatorum al derecho mercantil . Madrid: Marcial Pons, 1997. p. 91-108. 2003_Orality and law Tromso (text) – “The everlasting return of orality”, paper presented to Readings of Past Legal Texts. International Symposium in Legal History in Tromsø, 13th and 14th June 2002, In: Dag Michalsen (Ed.). Reading past legal texts , Oslo: Unipax, 2006, p. 2556.; versão portuguesa em Sequência. Revista do Curso de Pós-Graduação em Direito da UFSC, Santa Catarina (Brasil), 25(2005)47-107. ou “ Savants et rustiques. La violence douce de la raison juridique”. Ius commune, Frankfurt/Main, 10(1983) 1-48; recensão: Révue d'histoire du droit , 1984. (A.-J. Arnaud); versão portuguesa, Revista crítica de Ciências Sociais. 25/26 (1988) p. 31-60. “ As cores e a instituição da ordem no mundo de Antigo Regime”. In: Philosophica. Filosofia da Cultura, 27(2006), p. 69-86. “Os juristas como couteiros”. Análise Social. 161 (2001), p. 1.183-1.209.
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aposte na nossa capacidade hermenêutica, há sentidos hoje irrecuperáveis, mesmo quando restos das fórmulas, das palavras ou das instituições que os suportavam, pode parecer que ainda subsistem. Um pouco de bom senso e de rigor arqueológico rapidamente destruirá essas ilusões. Mas como um novo paradigma não está ainda claramente desenhado e quando muitos apostam que, realmente, a história parece que parou na estação da modernidade, um olhar estranhado para este mundo perdido, de valores, de imagens e de práticas não deixará de nos ensinar que, se há algo de natural no ser humano, é justamente o fato de ele ter muito pouco de natureza.
An tóni o M anuel H espanha
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SUMÁRIO CATEGORIAS – UM POUCO DE TEORIA DA HISTÓRIA DO IMAGINÁRIO SOCIAL .................................................................................................................................15 1 – AS CATEGORIAS DO DIREITO: O DIREITO DO INÍCIO DA ERA MODERNA E A IMAGINAÇÃO ANTROPOLÓGICA DA ANTIGA CULTURA EUROPEIA ..................41 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 1.6
Sujeitos e Objetos...................................................................................................42 Substância e papéis – indivíduos e status ...............................................................45 Substância e papéis – uma propriedade multiforme ...............................................46 Ritos e emoções......................................................................................................47 Vontade livre e ordem social ..................................................................................49 A doutrina jurídica como fonte da antropologia histórica do Antigo Regime ........53
2 – O AMOR NOS CAMINHOS DO DIREITO: AMOR E IUSTITIA NO DISCURSO JURÍDICO MODERNO ...............................................................................................57 2.1 2.2 2.3 2.4 2.5 2.6 2.7 2.8 2.9 2.10 2.11 2.12 2.13 2.14
Introdução ..............................................................................................................57 Os sentimentos como objeto de estudo...................................................................58 Os “estados de espírito” como princípios de ação..................................................60 “Estados de espírito”, contextos, práticas e representações....................................61 A tradição literária teológico-jurídica como habitus social ....................................63 Textos ideológicos e textos descritivos ..................................................................65 Política e paixão .....................................................................................................66 Modelo de amor .....................................................................................................67 Amor e prática política ...........................................................................................68 Amor e ordem.........................................................................................................71 Amor e unidade ......................................................................................................73 O amor concreto: a amizade ...................................................................................75 Amor, amizade e justiça .........................................................................................78 A reconstituição do amor e a função dos juristas....................................................82
3 – AS OUTRAS RAZÕES DA POLÍTICA: A ECONOMIA DA “GRAÇA” ..............85 4 – QUE ESPAÇO DEIXA AO DIREITO UMA ÉTICA DA PÓS-MODERNIDADE? ...111
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5 – O ESTATUTO JURÍDICO DA MULHER NA ÉPOCA DA EXPANSÃO ............ 131 5.1 5.2 5.3 5.4 5.5
Mulheres .............................................................................................................. 132 Menos dignas....................................................................................................... 134 Frágeis e passivas................................................................................................. 140 Lascivas, astutas e más ........................................................................................ 141 Portugal................................................................................................................ 144
6 – “CARNE DE UMA SÓ CARNE” – PARA UMA COMPREENSÃO DOS FUNDAMENTOS HISTÓRICO ANTROPOLÓGICOS DA FAMÍLIA NA ÉPOCA MODERNA ................................................................................................... 147 6.1 6.2 6.3 6.4 6.4 6.5 6.6 6.7 6.8 6.9 6.10 6.11 6.12 6.13 6.14
Uma comunidade natural ..................................................................................... 147 Carne de uma só carne ......................................................................................... 148 Uma comunidade fundada no amor ..................................................................... 151 As hierarquias do amor ........................................................................................ 152 A família, comunidade generativa ....................................................................... 153 A economia dos deveres familiares...................................................................... 154 Obediência e liberdade pessoal ............................................................................ 155 Política das famílias e política da república ......................................................... 157 Uma comunidade de bens e de trabalho............................................................... 158 Marido e mulher: uma igualdade de geometria variável ...................................... 158 A perpetuação da unidade: primogenitura e indivisibilidade sucessória do património familiar .............................................................................................. 160 Entre a unidade da família e a igualdade dos filhos ............................................. 161 Outras fidelidades domésticas.............................................................................. 162 A força expansiva do modelo doméstico ............................................................. 164 Orientação de leituras ......................................................................................... 165
7 – A NOBREZA NOS TRATADOS JURÍDICOS DOS SÉCULOS XVI A XVIII ..... 169 7.1 7.2 7.3 7.4 7.5 7.6 7.7
Direito e Classificações Sociais ........................................................................... 169 Natureza das Classificações ................................................................................. 170 O Imaginário Nobiliárquico ................................................................................. 175 Títulos de Aquisição ............................................................................................ 176 Prova.................................................................................................................... 181 Categorias ............................................................................................................ 182 Efeitos.................................................................................................................. 185
8 – A ORDEM MORAL DA FAZENDA: O CÁLCULO FINANCEIRO DO ANTIGO REGIME ..................................................................................................... 187 8.1 A teoria financeira do Antigo Regime ................................................................. 187 8.2 Constrangimentos do cálculo financeiro .............................................................. 191
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9 – O CONTÍNUO REGRESSO DA ORALIDADE .........................................................205 9.1 9.2 9.3 9.4 9.5 9.6 9.7 9.8 9.9
Da Oralidade à Escrita..........................................................................................205 Lembranças da juventude.....................................................................................206 A decadência do diálogo ......................................................................................211 Suporte comunicativo e estratégias discursivas....................................................212 Oralidade e escrita no direito contemporâneo ......................................................215 Narrativas da Galáxia pós-Gutenberg...................................................................216 Velhos papéis de um novo direito ........................................................................218 De volta para a dogmática jurídica(?)...................................................................220 A Pluralidade de Narrativas no direito Continental Europeu................................222
10 – AS CORES E A INSTITUIÇÃO DA ORDEM NO MUNDO DO ANTIGO REGIME.....................................................................................................................225 11 – OS JURISTAS COMO COUTEIROS: A ORDEM NA EUROPA OCIDENTAL DOS INÍCIOS DA IDADE MODERNA ..................................................................243 11.1 11.2 11.3 11.4 11.5 11.6 11.7 11.8
A modernidade, antes e depois ............................................................................243 Os juristas medievais como couteiros..................................................................248 Uma constelação de ordens normativas ...............................................................249 Flexibilidade por via da graça..............................................................................251 Flexibilidade por via da equidade ........................................................................254 Legisladores coloniais..........................................................................................256 Conhecimento imperial........................................................................................258 A graça impeditiva: império, humanidade e decência enquanto limites ao autogoverno .........................................................................................................260 11.9 Uma questão prática ............................................................................................261 11.10 Conclusão – Voltando a Bauman: flexibilidade e ética contemporânea ..............264
ÍNDICE ALFABÉTICO .....................................................................................................269
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CATEGORIAS – UM POUCO DE TEORIA DA HISTÓRIA DO IMAGINÁRIO SOCIAL “Você conhece o meu método, meu caro Watson. Parte da observação das coisas insignificantes”. Sir Arthur Conan Doyle, The Bascombe Val ley M istery , 1891,
O tema deste texto é “categorias”. Podia chamar-lhes “imagens”, “re presentações” ou “conceitos”. Escolho a primeira palavra propositadamente. Categoria remete, na reflexão sobre o conhecimento, para a ideia de modelos de organização das percepções, da “realidade”, se quisermos. Ou seja: conota uma capacidade activa, estruturante, criadora ( poiética) na modelação do conhecimento. E este é um sinal metodológico que queria deixar desde já, o de que pressuponho que estas entidades a que me referirei têm essa capacidade de criar conhecimento (se não – adianto já toda a provocação... – de criar realidade). Nisso “categoria” leva vantagem sobre as restantes palavras, nomeadamente sobre “imagem”, ou “representação”. Tradicionalmente, “imagem” ou “representação” eram palavras que denotavam alguma passividade. A imagem era a cópia, ou representação, de uma coisa. Representar , em termos jurídicos, era “estar em vez de”. Já em termos teatrais – e políticos, no Antigo Regime – era um tanto mais do que isso: era antes, apresentar algo escondido, mesmo inevitavelmente escondido; com o que “representar” podia constituir a primeira visão de uma coisa, uma “apresentação”, como quando apresentamos – tornamos conhecidas pela primeira vez – pessoas. Do mesmo modo, o reino, como corpo místico, via-se pela primeira vez (apresentava-se) nas Cortes 17. Com isto, já havia alguma novidade e criação. Hoje em dia, os historiadores – mesmo aqueles que não se confessam de bom grado como construtivistas – fazem dos termos “imagens”, “imaginário” e “representação” um uso que lhes realça, além do aspecto arbitrário, o seu aspecto poiético. Ou seja: por um lado, sublinham que a imagem não mantém nenhum vínculo forçoso com a “realidade”, antes
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Hasso Hofmann: Repräsentation – Studien zur Wort – und Begriffsgeschichte von der Antike bis ins 19. Jahrhundert. Habilitationsschrift. Schriften zur Verfassungsgeschichte, CAPPELLINI, Paolo. Berlin, 1974. v. 22. Rapresentanza in Generale – Diritto Intermedio, In: Enciclopedia del Diritto . Milano: Giuffrè, 1987. v. XXXVIII.
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sendo criações autónomas dos sujeitos (colectivos, prefere-se hoje pensar). Por outro lado, realçam que, uma vez instalados, estes imaginários modelam as percepções, as avaliações, os comportamentos. Com esta revisão, o termo convémme e, por isso o usarei por vezes, para evitar a monotonia do discurso. Em todo o caso, “categoria” tem uma vantagem suplementar – a de realçar o carácter orgânico, arrumado, destes quadros mentais. O facto de eles constituírem con juntos tendencialmente coerentes entre si, com lógicas internas de organização e de desenvolvimento. Para além de que, apesar de tudo, me parece mais forte a evocação da sua natureza activamente organizadora. Esta remissão para a lógica de organização existe também na palavra “conceito”. Na sua etimologia está o verbo latino capere, que significa agarrar, tomar; tal como, no correspondente alemão ( Begriff ), está o verbo greifen, com a mesma conotação activa, ao passo que ao sinónimo Auffassung subjaz o verbo fassen, agarrar, apanhar, tomar. O que me afasta da palavra é o facto de estar muito embebida por concepções racionalistas; por insinuar um esforço mental consciente e reflectido, típico dos pensadores e dos filósofos, gente de que não me vou ocupar muito, enquanto tais, ou seja, enquanto produtores conscientes e individualizados de ideias. Temo que, se optasse por falar de “conceitos” se confundisse o meu trabalho com uma empresa de “história das ideias”, concebida como história de ilusres pensadores e dos seus intencionais pensamentos. E não é disso que vou tratar. Qualquer grande pensador que aqui apareça aparece sem galões, reduzido a um soldado raso (eventualmente mais eloquente) de um grande exército anónimo. É certo que a ideia de uma “história dos conceitos” 18 foi relançada por Reinhardt Koselleck intenções muito semelhantes às que ex primi19. Em todo o caso o peso da palavra “conceito” ainda é, nos discursos usuais, demasiado para que se utilize sem a preocupação de ser mal entendido, aproximando-nos à força de uma história individualista, subjectivista, intencionalista das construções intelectuais. O projecto de uma história das categorias tem que combater em duas frentes. 18
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BÖDEKER, Hans Erich. (Ed.), Begriffsgeschichte – Diskursgeschichte – Metapherngeschichte, com contributos de Reinhart Koselleck, Ulrich Ricken, Hans Erich Bödeker, Jacques Guilhaumou, Mark Bevir, Rüdiger Zill und Lutz Danneberg, Göttingen: Wallstein Verlag 2001 (publ. do Max-Planck Institut für Geschichte). Já o Archiv für Begriffsgeschichte, ed. por Gunter Scholtz, em colaboração com Hans-Georg Gadamer e Karlfried Gründer (desde 1955), tinha a intenção de constituir um ponto de partida para um dicionário dos conceitos filosóficos. Cf. KOSELLEK, Reinhardt. Le futur passé. Contribution à la sémantique des temps historiques. Paris: Éditions de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1990.; Koselleck, Reinhart. Practice of Conceptual History : Timing History, Spacing Concepts. Stanford University Press, 2002 (com prefácio de Hayden White). Fora da Alemanha, uma proposta semelhante tem sido avançada por J. G. A. Pocock, Q. Skinner [James Tully (ed.), Meaning and Context: Quentin Skinner and His Critics, Princeton University Press, 1989. p. 370); Giuseppe Duso: La logica del potere. Storia concettuale come filosofia politica. Laterza. Biblioteca di cultura moderna, 1999, M. Barberis, Libertà, Bologna, Il Mulino, 2002. Introdução.