CON CONSI DERAÇÕES ERAÇÕES SOBRE SOBRE DESCARTE DESCARTES S Al exan exandr e Koyr Koyr é CONSI DERAÇõES ERAÇõES s OBRE BRE DESCARTES 2a edi edi ção Edi t or i al Pr esen sença
TÍ t ul o or or i gi nal ENTRE TRETI ENS SU SUR DESCARTES TES ( cç) Copyr opyr i ght Zdi t i ons ons Gal Gal l i mar d, 1963 Tr adução adução de Hél der der Godi odi nho nho Reser ser vad vados t odos os di di r ei t os par par a a l í ngua po por t uguesa à Edi t or i al Pr esen sença, ça, LDa LDa. Rua August ugust o Gi l , 3535- A - 1000 1000 LI SBO SBOA
TÍ t ul o or or i gi nal ENTRE TRETI ENS SU SUR DESCARTES TES ( cç) Copyr opyr i ght Zdi t i ons ons Gal Gal l i mar d, 1963 Tr adução adução de Hél der der Godi odi nho nho Reser ser vad vados t odos os di di r ei t os par par a a l í ngua po por t uguesa à Edi t or i al Pr esen sença, ça, LDa LDa. Rua August ugust o Gi l , 3535- A - 1000 1000 LI SBO SBOA
1. O MUND UNDO I NCERTO CERTO
Tr ês sécul sécul os - e que sécul sécul os! - nos separ separ am de Descar t es e do do Di scur so do do Mét odo. Tr ês sécul sécul os é mui t o t empo: par a a hi st ór i a, par a a ci ênci a, par a a t écni cni ca. Mui t o t empo par a a vi da. E mui t o pouco ouco par a o pensament o f i l osóf osóf i co. A oso a, con con essam ssamo- l o ‘ f az poucos cos «pr ogr essos» ssos».. Ocu Ocup pa- se de coi coi sas sas si mpl es, mui t o si mpl es. Ocupacupa- se do do ser , do conhe conheci ci ment ent o, do hom homem. Coi sas s i mpl es e sem sempr e act act uai s. Por i sso as as r espo spost as dad dadas pel pel os gr andes f i l ósof sof os a est est as quest quest ões ões t ão s i mpl es per per manece anecem m i mpor por t ant ant es dur dur ant ant e s écul écul os, e mesmo dur dur ant ant e mi l har es dê dê anos. A act ual i dade f i l osóf sóf i ca vem vem de t ão l onge com como a. a. pr ópr i a f i l osof sof i a. E t al vez vez nã não haj a hoj e pensam sament o f i l osóf sóf i co mai s act act ual que o de Descar t es. Se não f or o de Pl at ão. Toda Toda a gent gent e conhe conhece ce o Di s cur s o: t odos odos o l emos. Temos a memór i a chei chei a das das sua s uass f r ases ases de descui dadas adas e encant cant ador ador as, che chei as de de bonom onomi a, de i r oni oni a e de sabe sabedor i a. Chei hei as t ambém bém de «bom «bom senso», daqu daquel el e «bom «bom. senso» que que,, e 9
Descar t es que não l eve a mal , ou, mai s exact ament e, de acor do com el e mesmo, é a coi sa mai s r ar a e mai s pr eci osa do mundo. Lembr amo@nos de que «o bom senso é a coi sa mai s bem - par t i l hada do mundo, por que t or dos pensam possuí - I a t ant o que mesmo os mai s di f í cei s de - cont ent ar em t udo o r est o não cost umam desej ar mai s que o que j á t êm». Apr eci ámos bem a i r oni a dest a demonst r ação. Sabemos que o que é i mpor t ant e «não é t er o espí r i t o bom mas. . . apl i cá- l o bem», e per gunt ámo- nos t odos como é que i sso er a possí vel . Recor damo- nos de que é pr eci so ser f i r me e r esol ut o - na acção. . . «i mi t ando ni sso os vi aj ant es que, est ando per di dos nal guma f l or est a, não devem cami nhar em ci r cul o. . . mas andar sempr e o mai s di r ei t o que possam par a o mesmo l ado. - - - por que dest e modo, se não vão dar exact ament e aonde desej am, chegar ão sempr e a al gum sí t i o onde ver osi mi l ment e est ar ão, mel hor que no mei o de uma f l or est a»; que «a l ei t ur a de t odos os bons l i vr os é como uma conver sa com as pess oas de bem dos sécul os pass ados», e que «não se poder i a i magi nar nada de t ão est r anho e de t ão pouco cr í vel que não t enha si do di t o por al gum f i l ósof o». Desde há t r ês s écul os que t odos somos, di r ect a ou i ndi r ect ament e, al i ment ados pel o pensament o car t esi ano, dado que, desde há t r ês sécul os j ust ament e, t odo o pensament o eur opeu, t odo o pensament o f i l osóf i co, pel o menos, se or i ent a e se det er mi na em r el ação a Descar t es. 10
Por i sso, é- nos ext r emament e di f í ci l dar mo- nos cont a da i mpor t ânci a e da novi dade da obr a , de Descar t es: uma das mai s pr of undas r evol uções i nt el ect uai s, e mesmo espi r i t uai s, que a humani dade j á conheceu, conqui st a deci si va do espí r i t o por si pr ópr i o, vi t ór i a deci si va na est r ada dur a e ár dua que l eva o homem à l i ber t ação espi r i t ual , à l i ber dade da r azão e da ver dade. Ai nda mai s di f í ci l , senão i nt ei r ament e i mpossí vel , é i magi nar mos a i mpr essão pr oduzi da pel o Di scur so nos que o l i am- há t r ês sécul os - pel a pr i mei r a vez. Tr ês s écul os, di gamo- l o de novo, é mui t o. E embor a os pr obl emas f i l osóf i cos sej am de f act o et er nos, não é menos ver dade que os i nt er esses espi r i t uai s dos cont empor âneos de Descar t es di f er i am pr of undament e dos nossos i nt er esses espi r i t uai s. Por i sso, o que el es pr ocur avam nesse l i vr o er a uma coi sa compl et ament e di f er ent e daqui l o que nós ai pr ocur amos. De r est o, o Di scur so do Mét odo que el es **p~uí am, o que sai u da i mpr ensa de J ean Ma r e, em Ley e, no ‘ a 5 e J un o o ano e 1637, er a mu t o er ent e o que nós l ei - nos hoj e. O Di scur so do Mét odo não er a par a el es o que é par a nós. Par a nós, o Di scur so do Mét odo é um l i vr i nho encant ador que cont ém sobr et udo e ant es de mai s uma aut obi ogr af i a espi r i t ual de Descar t es; as f amosas quat r o r egr as de que não sabemos que f azer e de que r et emos nomeada11
ment e as passagens sobr e as «i dei as cl ar as e di st i nt as», mandando- nos não t er por ver dadei r o senão o que vemos evi dent ement e sê- l o, e conduzi r as i dei as por or dem, começando pel as coi sas mai s si mpl es e mai s f ácei s; um pequeno esboço de mor al , bast ant e est ói ca e r azoavel ment e conf or mi st a; um pequeno t r at ado de met af í si ca, bast ant e abst r uso, com o f amoso «penso, l ogo exi st o» e uma exposi ção - apai xonant e par a o hi st or i ador mas mui t o abor r eci da par a o homem de bem dos nossos di as - de pesqui sas ci ent í f i cas f ei t as e a f azer . Sabemos, sem dúvi da, que o Di scur so possuí a ai nda um apêndi ce compost o por t r ês ensai os: Di ópt r i ca, Met eor os, Geomet r i a, que j á não l emos. As nossas edi ções cor r ent es, de r est o, j á não os t r azem. Par a os cont er r âneos de Descar t es as coi sas pass avam- se de out r a manei r a. O Di scur so do Mét odo ou, par a usar mos o t í t ul o exact o, o Di scur so do Mét odo par a bem conduzi r a r azão e pr ocur ar a ver dade nas ci ênci as, mai s a Di ópt r i ca, os Met eor os e a Geomet r i a, que são os Ensai os dest e mét odo, er a um vol umo eo - l i vr o - 527 pági nas* * i n- 4. O - que cont i nha t r ês t r at ados ci ent í f i cos de uma novi dade sur pr eendent e e de um i nt er esse capi t al : a Di ópt r i ca, ou sej a, um t r at ado de ópt i ca compr eendendo nomeadament e uma t eor i a da r ef r acção da l uz que, pel a pr i mei r a vez, dava a sua lei - a l ei do seno - , - assi m e~ um est udo dos novos i nst r ument os - o t el escópi o, o ócul o de 12
al cance - que acabavam de t r ansf or mar o nosso conheci ment o do Uni ver so; os Met eor os, ou sej a, um est udo dos f enómenos cel est es ou, mai s exact ament e, at mosf ér i cas: as nuvens, a chuva e o gr ani zo, o ar co- í r i s e os ** par él i os expl i cados pel os mei os mai s si mpl es e mai s nat ur ai s- o movi ment o da mat ér i a que enche o espaço, a r ef r acção f i a l uz nas got as de chuva. Enf i m, a Geomet r i a, ou sej a, um t r at ado de ál gebr a, que r evol uci onava a concepção r ecebi da das ci ênci as mat emát i cas ao est abel ecer uma comuni dade ent r e domí ni os t ão di f er ent es como os do espaço - quant i dade cont í nua - e do númer o - quant i dade di scr et a. Est a Geomet r i a t r azi a uma t eor i a ger al das equações com uma not ação nova - a mesma que ai nda empr egamos - e, ent r e out r as coi sas, uma sol ução el egant e, por mét odos al gébr i cos, do cél ebr e pr obl ema geomét r i co de **Pa4ppus. Al ém di ss o, o l i vr o cont i nha, compost o e mesmo pagi nado à par t e, um l ongo pr ef áci o, o Di scur so pr opr i ament e di t o que, al ém de uma exposi ção e de um pr ogr ama de pesqui sas ci ent í f i cas ext r emament e sugest i vo, of er eci a um esboço met af í si co mui t o cur i oso e ar r oj ado, um pequeno t r at ado de mét odo e, enf i m, uma aut obi ogr af i a espi r i t ual do aut or . Par a os cont empor âneos de Descar t es, e par a o pr ópr i o Descar t es, o Di scur so do Mét odo - i nt r odução a uma ci ênci a nova, anúnci o de uma r evol ução i nt el ect ual de que uma r evol ução , ci ent í f i ca ser á o f r ut o - é um pr ef áci o. Nós 13
esquecémo- l o. Não sem r azão, sem dúvi da, dado que os Ensai os ou t r at ados pur ament e ci ent í f i cos que o vol ume cont i nha est ão i r r emedi avel ment e ul t r apassados, envel heci dos, caducos, enquant o o Di scur so mant ém ai nda a sua f r escur a. No ent ant o, f oi aos Ema” que o Di scur so- pr ef áci o deveu - a f or t una, a i nf l uênci a e a r eper cussão. Os t r at ados de mét odo não er am r ar os na época car t esi ana. E o úl t i mo em dat a, o Novum Or ganum de Bacon 1, t r azi a, el e t ambém, um «Mét odo» novo. Um mét odo conduzi ndo a uma ci ênci a nova, ci ênci a act i va, «oper at i va», opost a por i ss o mesmo à ci ênci a pur ament e cont empl at i va do passado. Ess a ci ênci a nova, que devi a t r ansf or mar a condi ção humana e f azer do homem o «senhor e possui dor da nat ur eza», Descar t es anunci ava- a i gual ment e. Mas não se l i mi t ava a anunci á- l a: essa ci ênci a nova, el e t r azi a- a e dava- nos r esul t ados. O seu «mét odo» não er a desenvol vi do em abst r act o: r esumi a, f or mul ava, codi f i cava um uso r eal ment e exper i ment ado. E er a o uso, a apl i cação concr et a, que demonst r ava o seu val or e, por sua vez, er a a úni ca coi sa que per mi t i a compr eender o sent i do ver dadei r o e pr of undo das r egr as bast ant e vagas e banai s que o Di scur so dava. Quem é que, com ef ei t o, j á al guma vez pôs em dúvi da que o f i l ósof o, e%quant o t al , não 1 Novum Or ganum Sci ent i ar um, Londi ni , 1620. 14
devesse submet er - se soment e à evi dênci a da r azão? E quem é que - at é aos noss os di as, pel o menos- al guma vez negou o val or super i or da i dei a cl ar a sobr e a obscur a? Ni nguém. Como ni nguém nunca cont est ou o val or da or dem e a necessi dade de começar pel as coi sas mai s si mpl es e mai s f ácei s, e não, i nver sament e, pel as mai s di f í cei s e mai s compl i cadas. São l ugar es comuns da f i l osof i a. Mas qual é essa cl ar eza que devemos pr ocur ar ? Qual é essa or dem que devemos segui r ? Quai s são essas c~ si mpl es e f ácei s pel as quai s devemos começar ? n na r espost a a est as per gunt as que consi st e a r ef or ma car t esi ana. E ess a r espost a - ver dadei r a r evol ução - não é só no Di scur so mas t ambém nos Ensai os que a devemos pr ocur ar . O apar eci ment o do Di scur so do Mét odo f ez bast ant e bar ul ho ent r e os er udi t os. Por causa do seu cont eúdo, sem dúvi da. Mas t ambém por causa do aut or . O nome - dest e não apar eci a, é ver dade, na capa: Descar t es apr esent ava- se ao públ i co guar dando um anoni mat o or gul hoso. Mas os i ni ci ados, ou sej a, t odos os membr os da Repúbl i ca das Let r as, est avam bem ao cor r ent e. Toda a gent e sabi a que se t r at ava de Descar t es. Em 1637, Descar t es não er a, sem dúvi da, aqui l o em que se t or nou poucos anos mai s t ar de: o gr ande, o cél ebr e f i l ósof o, o pr i mei r o espi r i t o do seu t empo. A ef er vescênci a das i dei as ai nda 15
não t i nha começado nas al covas e não se di scut i am assunt os subt i s nos sal ões. Não er a, no ent ant o, pr opr i ament e um desconheci do. O mundo l i t er ár i o e sábi o * er a mai s pequeno. As pess oas conheci am- se mel hor . Descar t es t i nha vi vi do em Par i s, f r equent ado os mei os ci ent í f i cos, onde ai nda se l embr avam do homenzi nho , col ér i co e bi zar r o - não supor t ava a cont r adi ção, l evant ava- se t ar de e det est ava as vi si t as que se cost umava encont r ar em casa de Mer senne, de Bér ul l e, de Gi bi euf . Sabi a- se que el e t i nha br uscament e dei xado Par i s par a se i r ent er r ar em qual quer bur aco da Hol anda. Mas mant i ver a r el ações epi st ol ar es com Mer senne, essa cai xa de cor r ei o do mundo sábi o, segundo a qual i f i cação pouco amável de Huygens ( que não podi a com el e) , ou, se se pr ef er i r , esse pr ocur ador - ger al da Repúbl i ca das Let r as, como l he t i nha, mai s gent i l ment e, chamado Hobbes, que l he devi a mui t o. E o P. e Mer senne er a o úl t i mo homem capaz de guar dar qual quer coi sa só par a si . Sobr et udo uma novi dade. Ou uma car t a. E t oda a gent e sabi a que Descar t es er a um gr ande sábi o e um gr ande f i l ósof o, que pr epar ava um Mundo ou Tr at ado da Luz, que er a par t i dár i o do movi ment o da t er r a, - que t i nha pr omet i do a Bal zac a hi st ór i a do seu i t i ner ár i o * Nas Conf er ênci as sobr e Descar t es, sábi o t r aduzi r á sempr e, desde que não haj a i ndi cação em cont r ár i o, savant ( . X. T. ) 16
espi r i t ual . Por i sso, esper avam- na cem, i mpaci ênci a. O Di scur so do Mét odo, decer t o não desi l udi u as expect at i vas. A par t e ci ent í f i ca da obr a er a ver dadei r ament e mui t o bel a, or i gi nal e nova. Por i sso, ser á di scut i da com cal or : os sábi os e os mat emát i cos da época, Fer mat e Roí ber val , Beaugr an@d e Mydor ge, obj ect am, di scut em, compar am, l ançam- se pr obl emas, desaf i os e i nvect i vas. Desenvol ve- se uma pol émi ca epi st ol ar . Tudo par a gr ande al egr i a de Mer senne: est a al ma doce e cândi da do que. mai s gost ava er a de uma boa zar agat a l i t er ár i a. O Pr ef áci o - o nosso Di scur so, - pr ovocou, t ambém, , um i nt er esse mui t o, vi vo. E memo, um cer t o espant o. Repi t amos que nós est amos demasi ado acost umados ao Di scur so, a nel e ver um gr ande f i l ósof o cont ar - nos a hi st ór i a da sua vi da espi r i t ual . I sso par ece- nos nat ur al e nor mal . E j á não vemos quant o, pel o cont r ár i o, é i nsól i t o, si ngul ar , sur pr eendent e. Que um sábi o ou um f i l ósof o, hoj e em di a, t endo f ei t o al gumas bol as descober t as, nos exponha os cami nhos e mei os, os mét odos, que l he per mi t i r am obt ê- l as é absol ut ament e nat ur al e nor mal . Que um sábi o ou que um f i l ósof o, t endo descober t o um mét odo de pesqui sa novo, no- l o exponha e nos dê, al ém di sso, al guns exempl os - amost r as - das suas possi bi l i dades, do seu val or , t ambém é absol ut ament e nat ur al e nor mal . Mas que nos cont e a esse pr opósi t o a 17
sua bi ogr af i a - ai est á o que ser i a sur pr eendent e. I magi namos Ei nst ei n ou de Br ogl i e a cont ar em- nos a vi da - mesmo a vi da espi r i t ual ant es de nos expor em a t eor i a da r el at i vi dade ou a mecâni ca ondul at ór i a? Não, não é ver dade? Or a, Descar t es f á- l o. Por que é ent ão que se j ul ga obr i gado a f azê- l o? Por que é que se nos conf essa? É ver dade que no- l o di z. Mas as r azões que nos dá não me par ecem ser as ver dadei r as. Que nos di z el e, com ef ei t o? Que
t eve a
sor t e de descobr i r um «mét odo» que l he per mi t i u f azer gr andes pr ogr essos no est udo das ci ênci as e que expõe a f i m de que os l ei t or es o possam apr ovei t ar . De r est o, aqui vai o t ext o: «Penso que t i ve mui t a sor t e em me t er encont r ado desde a j uvent ude em cer t os cami nhos que me conduzi r am a consi der ações e a máxi mas com as quai s f or mei um Mét odo pel o qual me par ece que t enho possi bi l i dade de aument ar gr adual ment e * - meu conheci ment o e l evá- l o ao mai s al t o pont o * que a medi ocr i dade do meu espí r i t o e a cur t a dur ação da mi nha vi da poder ão per mi t i r - l he chegar ; [ . . . ] j á t i r ei del e t ai s f r ut os que, embor a no j uí zo que f aço de mi m pr ópr i o t r at e sempr e de me i ncl i nar par a o l ado da desconf i ança mai s que par a o da pr esunção, e que, ol hando com ol hos de f i l ósof o as di ver sas acções e empr esas de t odos os homens, não haj a quase nenhuma que não me par eça vã e i nút i l , não 18
- dei xo de r eceber uma ext r ema sat i sf ação dos pr ogr ess os que penso j á t er f ei t o na pr ocur a da ver dade e de conceber t ai s esper anças par a o f ut ur o que, se ent r e as ocupações dos homens pur ament e homens houver al guma que sej a sol i dament e boa e i mpor t ant e, ouso cr er que é a que eu escol hi . » Mas, no f i m de cont as, pode t er - se enganado e t er t omado cobr e e vi dr o por di amant es e our o. Por i ss o, di znos: <0 meu desí gni o não é ensi nar aqui o Mét odo que cada um deve segui r par a bem conduzi r a sua r azão, mas soment e f azer ver de que modo t r at ei de conduzi r a mi nha . . . não pr oponho est e escr i t o senão como uma hi st ór i a, ou, se pr ef er em, como uma f ábul a, na qual , ent r e al guns exempl os que se podem i mi t ar , se encont r ar á t al vez t ambém vár i os out r os que se f ar á bem não segui r , » E Descar t es acr escent a: «Esper o que el e ( est e escr i t o) venha a ser út i l a al guns, sem ser noci vo par a ni nguém, e que t odos apr eci ar ão a mi nha f r anqueza . . . » Que modést i a comovent e e encant ador a! Or a, se é cer t o que a sol i ci t ude, que o desej o , de aj udar os seus cont empor âneos, a humani dade i nt ei r a, é um dos mot i vos mai s poder osos, e na mai or par t e das vezes menospr ezado, da act i vi dade f i l osóf i ca de Descar t es - não é uma l ei , e mesmo a l ei supr ema da mor al , essa mor al da gener osi dade que Descar t es nos ensi na, «que nos obr i ga a pr ocur ar t ant o quant o de nós depende o bem de t odos os homens» ? - , ’ se é exact o que a descober t a do «mét odo» f oi con19
si der ada por el e como uma «sor t e», senão como uma gr aça, não é menos ver dade que a modést i a - nunca f oi o def ei t o pr i nci pal de Descar t es, desse homem que nunca j ul gou t er apr endi do, e mesmo poder apr ender , f osse o que f osse com al guém, desse homem que se pr opuser a r ef azer sozi nho o si st ema do mundo e subst i t ui r Ar i st ót el es nas escol as da cr i st andade. Quant o às r azões que al ega, par ecer ão r eal ment e suf i ci ent es? Pessoal ment e, j ul go que não. Di r - me- ão, sem dúvi da, que Descar t es, no f i m de cont as, sabi a mel hor que ni nguém aqui l o que f azi a, e por quê; que er a mesmo o úni co a ver dadei r ament e o saber . Com cer t eza. Mas Descar t es é um homem pr udent e e di ss i mul ado que pensa no que di z e não di z o que pensa. Ou, pel o menos, t udo o que pensa. Não escr eveu el e nas suas Cogi t at i o- nes pr i vat ae: l ar vat us pr odeo, cami nho mascar ado? E, a Mer senne, um dos doi s ou t r ês homens em quem t i nha pl ena conf i ança: bene vi xi t qui bene l at ui t *. Não l he l evemos a mal t omar pr ecauções. A avent ur a de Gal i l eu é ai nda mui t o r ecent e, e Descar t es não t em qual quer desej o de a ver r enovar - se à sua cust a. Or a, a mensagem que el e t r az ao mundo é bem mai s per i gosa - e Descar t es dá- se cont a di sso - que a do mat emát i co f l or ent i no. A ci ênci a nova, essa ci ênci a de que os ** Emai os nos t r azem amost r as, não se ** conBean vi veu quem bem se ocul t ou. ( N. T. ) 20
t ent a com t i r ar o homem, e i a Ter r a, do cent r o do Cosmo: esse Cosmo, quebr a- o, dest r ói - o, , ani qui l a- o ao abr i r em seu l ugar a i mensi dade sem l i mi t es do espaço i l i mi t ado. E quant o ao Mét odo, empr eendi ment o de r evi são si st emát i ca e cr í t i ca de t odas as nossas i dei as, que t ~ são - chamadas por el e a j ust i f i car em- se di ant e do t r i bunal da r azão, Descar t es por mai s que quei r a - mui t o si ncer ament e, sem dúvi da r est r i ngi r - l he o al cance, por mai s que nos assegur e que nunca qui s f azer out r a coi sa senão ref or mar as suas pr ópr i as i dei as, com as quai s, no f i m de cont as, é l i vr e de f azer o que l he apet ecer , não pode dei xar de se dar cont a que acaba de aper f ei çoar a mai s f or mi dável máqui na de guer r a - guer r a cont r a a aut or i dade e a t r adi ção - que o homem al guma vez poss ui u. E que os t emper ament os «conf l i t uosos e i nqui et os» não l i gar ão nenhuma às s uas r est r i ções del e, Descar t es, e que, apr opr i ando- se da ar - ma que acaba de f or j ar , não se det er ão nem di ant e da aut or i dade da I gr ej a, nem di ant e da r eal i dade do Est ado: doi s val or es t r adi ci onai s que el e bem t er i a quer i do sal vaguar dar . Por i sso, não t emos que nos basear na «f r anqueza» de Descar t es que, de r est o, a apr egoa demasi ado. Ent ão, o pr obl ema cont i nua i nt act o. Por que é que nos cont a a vi da ? Pr obl ema gr ave e que t oca no pr ópr i o f undo do pensament o de Descar t es. Cr ei o, por mi m, que el e o f az por r azões mui t o pr of undas. Exact ament e cont r ár i as, ai nda 21
par a mai s, àquel as, mui t o super f i ci ai s, que nos dá. Est as i mpl i car i am, com ef ei t o, que o mét odo car t esi ano, esse mét odo que ( segundo o t í t ul o pr i mi t i vo do Di scur so) Descar t es decl ar a ser capaz de «l evar a nat ur eza humana ao seu mai s al t o gr au de per f ei ção», só t er i a um val or est r i t ament e pessoal , subj ect i vo, i ndi vi dual . Bom par a uns, poder i a não o ser par a out r os! Or a, nada é menos car t esi ano que i sso. I mpl i car i am, em segui da, que, nest e mét odo, cada um pode escol her o que l he agr adar . Agar r ar umas coi sas e dei xar f i car out r as. Nada, de novo, é menos car t esi ano. O mét odo, mét odo da dúvi da e das i dei as cl ar as, f or ma um bl oco de que não se pode separ ar nada. E é o mét odo, ou sej a, o cami nho, o úni co cami nho capaz de nos l i ber t ar do er r o e l evar - nos ao conheci ment o da ver dade. Si m, sem dúvi da que o mét odo de Descar t es não é de apl i cação uni ver sal . O cami nho que segui u não ser ve par a t oda a gent e, e Descar t es não pr opõe como um model o que t oda a gent e devesse i mi t ar . - 2 que é mui t o penoso, mui t o l ongo, mui t o per i goso, e só apr ovei t a aos que t êm a f or ça necessár i a par a o segui r at é ao f i m. Par a t ol dos os out r os, par a t odos os que «j ul gando- se mai s hábei s que o que são, não se podem i mpedi r de pr eci pi t ar os seus j uí zos nem t êm paci ênci a suf i ci ent e par a conduzi r em por or dem t odos os seus pensament os ( . . . ) », t al como par a t odos os «que, t endo r azão bast ant e, ou modést i a, par a j ul gar em que são menos 22
capazes de di st i ngui r o ver dadei r o do f al so do que al guns out r os pel os quai s podem ser i nst r uí dos, devem pr ef er i vel ment e cont ent ar - se com segui r as opi ni ões desses. out r os em vez de pr ocur ar em el es pr ópr i os mel hor es», o exempl o car t esi ano não convém de manei r a nenhuma. Só poder i a ser - l hes pr ej udi ci al , por que « se al guma vez t i vessem t omado a l i ber dade de duvi dar dos pr i ncí pi os que r eceber am e de se af ast ar - do cami nho comum, nunca ser i am capazes de se mant er no at al ho que é pr eci so t omar par a se i r a di r ei t o e per manecer i am per di dos dur ant e t oda a vi da». Or a, «o mundo quase que é só compost o por [ est as] duas espéci es de espí r i t os . . . » Não é par a el es, não é par a a mul t i dão que Descar t es escr eve, mas par a os que t i ver em as f or ças necessár i as e f or em capazes de o segui r at é ao f i m. Também não er a par a a mul t i dão que Pl at ão compunha os s eus di ál ogos e que Sant o Agost i nho escr evi a a sua hi st ór i a: a hi st ór i a da sua conver são a Deus. Por que se no Di scur so, essas Conf i ssões car t esi anas, Descar t es nos cont a a hi st ór i a da sua vi da espi r i t ual , a hi st ór i a da sua conver são ao Espí r i t o, não o f &z par a no- l a dar a conhecer no ; que el a t em de i ndi vi dual , de pessoal , de si ngul ar . Cont a- no- l a, pel o cont r ár i o, par a nos f azer r ef l ect i r ser i ament e, par a nos f azer ver nessa hi st ór i a i ndi vi dual , pessoal , o r esumo, a expr essão da si t uação essenci al do homem do seu t empo, E par a nos l evar a r eal i zar ; com el e, os act os essenci ai s, os úni cos que per mi t em 23
ao homem super ar e vencer o mal do seu t empo. E do noss o. Esse mal do seu t empo, essa si t uação exi st enci al , podemos expr i mi - l os em duas pal avr as: i ncer t eza e conf usão. Est ados de al ma que se expl i cam, de r est o, f aci l ment e pel a hi st ór i a da época que pr ecede Descar t es. O sécul o Xvi f oi uma época de i mpor t ânci a capi t al na hi st ór i a da humani dade, uma época de um enr i queci ment o pr odi gi oso do pensament o e de uma t r ansf or mação pr of unda da at i t ude espi r i t ual do homem; uma época possuí da por uma ver dadei r a pai xão da descober t a: descober t a no espaço e descober t a no t empo; pai xão pel o novo e pai xão pel o ant i go. Os seus er udi t os desent er r ar am t ol dos os t ext os ent er r ados nas vel has bi bl i ot ecas monást i cas. Ler am t udo, est udar am, t udo, edi t ar am t udo. Fi zer am r evi ver t odas as dout r i nas esqueci das dos vel hos f i l ósof os da Gr éci a e do Or i ent e: Pl at ão e Pl ot i no, o est oi ci smo e o epi cur i smo, o cept i ci smo e o pi t agor i smo, o her met i smo e a cabal a. Os seus sábi os t ent ar am f undar uma ci ênci a nova, uma f í si ca nova e uma nova ast r onomi a; os s eus vi aj ant es e avent ur ei r os sul car am os cont i nent es e as mar es, e os r el at os das suas vi agens l evar am à concepção de uma geogr af i a nova, de uma nova et nogr af i a. Al ar gament o sem i gual da i magem hi st ór i ca, geogr áf i ca, ci ent í f i ca do homem e do mundo. 24
Fer vi l hament o conf uso e f ecundo de i dei as novas e de i dei as r enovadas. Renasci ment o de um mundo esqueci do e nasci ment o de um mundo novo. Mas t ambém: cr í t i ca, abal o, e enf i m di ssol ução e mesmo dest r ui ção e mor t e pr ogr essi va das ant i gas cr enças, das ant i gas concepções, das ant i gas ver dades t r adi ci onai s que , davam ao homem a cer t eza do saber e a segur ança da acção. De r est o, uma coi sa supõe a out r a: o pensament o humano é, na mai or par t e dos casos, pol émi co. E as ver dades novas est abel ecem- se, quase sempr e, sobr e o t úmul o das ant i gas. Sej a qual f or , de r est o, a val i dade dest a t ese ger al el a é ver dadei r a par a o sécul o xvi . Que , t udo abal ou, t udo dest r ui u: a uni dade pol í t i ca, r el i gi osa, espi r i t ual da Eur opa; a cer t eza da ci ênci a e a da f é; a aut or i dade da Bí bl i a e a ‘ de Ar i st ót el es; o pr est í gi o da I gr ej a e o do Est ado. Um amont oado de r i quezas e um amont oado de escombr os: t al é o r esul t ado dest a act i vi dade f ecunda e conf usa, que t udo demol i u e nada soube const r ui r , ou, pel o menos, acabar . Por i sso, pr i vado das suas nor mas t r adi ci onai s de j uí zo e de escol ha, o homem sent e- se per di do num mundo que se t or nou i ncer t o. Mundo onde nada é segur o. E onde t udo é possí vel . Or a, pouco a pouco, a dúvi da i nst al a- se. Por que se t udo é possí vel , é que nada é ver dadei r o. E se nada é segur o, só o er r o é cext o. Não sou eu quem t i r a est a concl usão pessi 25
mi st a do esf or ço magní f i co da Renascença. Tr ês homens, t r ês cont empor âneos, t i r ar a~a ant es de mi m: Agr i ppa, Sanchez e Mont ai gne. Desde 1530, depoi s de t er pass ado em , r evi st a t odos os domi nos do saber humano, Agr i ppa pr ocl ama a i ncer t eza e a vani dade das ci ênci as 2. Ci nquent a anos mai s t ar de, depoi s de t er submet i do a exame cr í t i co a humana f acul dade de conhecer , Sanchez r ei t er a, e mesmo, agr ava, o j ul gament o: Não se sabe nada, , . Nada se pode conhecer . Nem o mundo, vem nós pr ópr i os. Enf i m, Mont ai gne acaba e f az o bal anço: o homem nada sabe, por que o homem não é nada. O caso de Mont ai gne é mui t o par t i cul ar ment e i nst r ut i vo e cur i oso: est e gr ande dest r ui dor só o é, na r eal i dade, cont r a sua vont ade. O que el e quer i a demol i r não er a, de i ní ci o, senão a super st i ção, o pr econcei t o e o er r o, o f anat i smo da opi ni ão par t i cul ar que se f az passar por ver dadei r a e se j ul ga t al sem r azão. Não é por cul pa sua se a sua cr i t i ca l he dei xa as mãos vazi as: de f act o, nada é mai s que «opi ni ão» num mundo i ncer t o. Mont ai gne t ent a ent ão a manobr a socr át i ca, a manobr a cl ássi ca da f i l osof i a em desesper o. 2 Cf . HENRI CI CORNELI I AGRI PPA DE NETTESHI BI M: De I ncer t i t udi ne et vani t at e sci enf l ar um et ar t i um. - - - Col oni ae, 15SO. 3@ Cf . PP- kNOI SOI SANCHEZ: Tr act at us phi l osophi cus: Quod ni hi l sc@t ur . . , , Lugduni , 1581, 26
Por que a f i l osof i a t ent a sempr e dar - nos uma r espost a à dupl a quest ão: «o que é que é?» e «que sou eu?» ou, se se pr ef er i r : «onde est ou eu?» e «que sou eu?», eu que me ponho est a per gunt a. Nas épocas f el i zes, cl ássi cas, el a começa por aqui l o que é, pel o Mundo, o Cosmo, e é a par t i r do Cosmo que t ent a r esponder à per gunt a «que sou eu?» pr ocur ando o l ocal , o l ugar que o homem ocupa na «gr ande cadei a do ser », na or dem hi er ár qui ca do r eal . Mas nas épocas «cr í t i cas», épocas de cr i se, em que o Ser , o Mundo, o Cosmo se t or na i ncer t o, se desagr ega e est i l haça, a f i l osof i a vol t a- se par a o homem. Começa ent ão pel o «que sou eu?», i nt er r oga aquel e que põe as quest ões. n j ust ament e o que f az Mont ai gne. Abandonando o mundo ext er i or ( obj ect o i ncer t o da opi ni ão i ncer t a) , t ent a dobr ar - se sobr e si pr ópr i o e encont r ar em si o f undament o da cer t eza, os pr i ncí pi os f i r mes do j uí zo. Do j uí zo, ou sej a, do di scer ni ment o do ver dadei r o e do f al so. n est a a r azão pel a qual el e se est uda, se descr eve, se anal i sa, se esquadr i nha: no seu ser psí qui co «I nconst ant e e di ver so» pr ocur a o núcl eo f i r me e sól i do onde apoi ar a nor ma do j uí zo. Repi t amos que não é cul pa sua se, t ambém ai , não encont r a nada. Nada senão i ncer t eza e vazi o. Nada senão f i ni t ude e mor t al i dade. Di ant e desse vazi o, que f ar á ent ão Mont ai gne? Não f ar á absol ut ament e nada. Admi t e o f r acasso. Acei t a@se t al qual é, t al qual a sua anál i se o r evel ou a si pr ópr i o. 27
Que f azer , de r est o, onde não há nada a f azer senão r enunci ar à esper ança i mpossí vel , acomodar - se, acei t ar o que é? Vol t ar at r ás, r evol t ar @se num i mpul so de desesper o, t ent ar r ecoser o véu da i l usão que se r asgou? Par a chegar aí Mont ai gne é demasi ado honest o, demasi ado vi r i l , demasi ado l úci do. Os Ensai os não são um t r at ado de desesper o. São um t r at ado de r enúnci a. O cept i ci smo, t odavi a, não é uma at i t ude vi ável . A l ongo pr azo, é i nt ol er ável . Não t enhamos i l usões: «o f of o t r avessei r o da dúvi da» é mui t o dur o. O homem não pode r enunci ar def i ni t i vament e, sem esper ança, à cer t eza, à « segur ança do j uí zo», como di z Descar t es. Tem necessi dade del a par a vi ver . Par a se or i ent ar na vi da. Por i sso, desde o f i m do sécul o xvi , desenha- , se um movi ment o de r eacção: P. Char r on, Bacon e Descar t es - a f é, a exper i ênci a, a r azão. Pi er r e Char r on, a bem di zer , não t em nada par a opor a Mont ai gne. Sal vo o f act o de a si t uação r evel ada por el e ser , no sent i do pr ópr i o do t er mo, i nsupor t ável , e conduzi r - nos ao desesper o. Se a r azão não nos pode sal var , t ant o pi or par a el a! Ou t ant o mel hor : r est a- nos a f é. A cr i t i ca cépt i ca, a cr i t i ca de Mont ai gne, sem dúvi da que mi nou as bases da t eol ogi a escol ást i ca, da apol ogét i ca t r adi ci onal , das pr ovas habi t uai s da ver dade r el i gi osa. Mas, obj ect a Char r on, a cri t i ca cépt i ca dest r ói - se a si pr ópr i a. 28
As pr ovas poT n o va em na a, sem v a. Em cont r apar t a, as pr ovas cont r a n o t êm i gual ment e val or . Assi m, em f ace da i ncer t eza da r azão nat ur al , Char r on er gue a cer t eza sobr enat ur al da f é 4. O f i deí smo cépt i co de @Char r on t eve, é pr eci so conf ess á- l o, mui t o pouco sucesso. O que é - compr eensí vel : o « sent i ment o r el i gi oso» é uma coi sa quase desconheci da na sua época. O Deus do sécul o não é um Deus s ent i do Pascal ai nda não o i nvent ar a - é um Deus pr ovado. Or a, t al como mai s t ar de di r á Descar t es na sua Epí st ol a aos Dout or es da Sor bonne, «emboTa sej a absol ut ament e ver dade que é pr eci so acr edi t ar que há um Deus por que assi m é ensi nado na Sagr ada Escr i t ur a e, por out r o l ado, que é pr eci so acr edi t ar na Sagr ada Escr i t ur a por que el a vem de Deus ( . . . ) não se poder i a, t odavi a, **pr opí 541o aos i nf i éi s [ ou sej a, aos cépt i cos e aos l i ber t i nos] que poder i am achar que se comet i a com i sso o er r o que os Lógi cos chamam um ** ch4cuI o». Por i sso, a Sagesse de Char r on não det ém o movi ment o cépt i co: pel o cont r ár i o, t or na- se o seu br evi ár i o. Char r on é um homem. da I gr ej a. Bacon é um homem de Est ado. O que o pr eocupa a el e não é a cer t eza r el i gi osa, o dest i no et er no do homem no al ém: é o pr ogr esso das ci ênci as 4 PI er RE CHARRON: Les Tr oi s Vér i t és, Par i s, 1593; De I a sagesse, Par i s, 1601. 29
e das i nvenções út ei s, o dest i no t empor al do homem aqui em bai xo. Não é à beat i t ude que aspi r a: é ao bem- est ar . Por i sso, não é no passado mas no f ut ur o que pr ocur a um r emédi o par a os mal es do pr esent e. Bacon acei t a a cr i t i ca do cépt i co. Ni nguém mel hor que el e cl assi f i cou os er r os humanos; ni nguém mel hor do que el e r evel ou a sua or i gem, si mul t aneament e nat ur al e soci al ; ni nguém t em menos conf i ança que el e nas f or ças espont âneas e pr ópr i as da r azão. A r azão - a r azão t eór i ca - est á, sem dúvi da, doent e, i mpot ent e, chei a de qui mer as e de er r os. Bacon t oma ent ão uma deci são. O que l he i mpor t a, o que, segundo el e, i mpor t a ao homem não é a t eor i a, a especul ação, mas a acção, por que o homem é agent e ant es de ser pensament o. Por i ss o, é na acção, na pr át i ca, na exper i ênci a que se encont r am, par a o homem, as bases s egur as e cer t as do saber . A r azão t eór i ca é a l ouca da casa. Per de- se, l ogo que dei xa a exper i ênci a. O que é pr eci so, ent ão, é não a dei xar à sol t a. É pr eci so dar - l he um l ast r o, t r avá- l a com r egr as numer osas e pr eci sas, t r azê- l a à f or ça ao sol o f i r me do uso empí r i co. , A exper nc a - aqui est á o r emédi o de Bacon. O Novum Or ganum não t em out r a f i nal i dade: à i ncer t eza da r azão ent r egue a si mesma opor a cer t eza da exper i ênci a or denada. Bacon j ul ga t er si do bem sucedi do, e o l i vr o , ar dent e sobr e A Di gni dade e o Progresso das 30
Ci ênci as,
r esponde, at é pel o t í t ul o, - ao l i vr o desi l udi do, de Agr i ppa.
A sol ução de Bacon t eve um sucess o enor me. Sucesso pur ament e l i t er ár i o, de r est o. Por que est a ci ênci a nova - ci ênci a act i va, empí r i ca e pr át i ca- de que os seus l i vr os anunci avam o advent o, el e não a t i nha post o em pr át i ca. E ni nguém o f ez depoi s del e. Pel a si mpl es r azão de que er a i mpossí vel . O empi r i smo pur o não l eva * nada. Nem mesmo à exper i ênci a. Por que t oda * exper i ênci a supõe uma t eor i a pr évi a. I nt er r ogação da nat ur eza, a exper i ênci a i mpl i ca uma l i nguagem na qual sej a f or mul ada. E f oi por não o t er compr eendi do e por t er quer i do «segui r a or dem das coi sas e não a das r azões», t al como di sse Descar t es, que a r ef or ma baconi ana f oi um f r acasso. Foi por o t er compr eendi do e t er segui do o cami nho i nver so que a r evol ução car t esi ana, que l i ber t a a r azão em vez de a ent r avar , f oi um sucesso. Est a br eve di gr essão hi st ór i ca par ece- me necessár i a par a f i xar o l ugar hi st ór i co do Di scur so, o pano de f undo sobr e que é pr eci so pr oj ect á- l o par a o poder mos compr eender . Cr ei o, com ef ei t o, que se compr eende mal o Di scur so, e mesmo Descar t es, se não se vi r que sobr e s , Cf . F. BACON: On t he Pr of i ci ency and Advancement of Lear ni ng, London, 1605; em l at i m: De di gni t at e et augment i s sci ent i ar wn, Londi ni , 1623. 31
el es se est ende a sombr a poder osa de Mont ai gne. Os adver sár i os de Descar t es são, sem dúvi da, Ar i st ót el es e a escol ást i ca. Mas não são, t odavi a, os seus úni cos adver sár i os, t al como demasi adas vezes f oi di t o, t al como out r or a eu pr ópr i o o di sse ( a est es t r at a- se de os subst i t ui r e não de os combat er ) : o adver sár i o é t ambém, e t al vez sobr et udo, Mont ai gne. Or a, Mont ai gne é, - ao mesmo t empo, o ver dadei r o mest r e de Descar t es. A obr a dest r ui dor a e l i ber t ador a de Mont ai gne - a l ut a cont r a as «super st i ções», os «pr econcei t os», as «opi ni ões f ei t as», a f al sa r aci onal i dade escol ást i ca Descar t es pr ol onga- a e l eva- a at é ao f i m. A dúvi da t r ansf or mada em mét odo, apoi ada na cer t eza da ver dade r econqui st ada, t or na- se nas s uas mãos uma pedr a de t oque, um poder oso i nst r ument o de cr í t i ca, um mei o de di scer ni ment o do ver dadei r o, e do f al so. A i nver são socr át i ca, a vi r agem par a si mesmo Descar t es segue Mont ai gne, ul t r a- passa- o e l eva a anál i se at é ao f i m. A at i t ude cépt i ca de Mont ai gne- Descar t es combat e- a, l evando- a, t ambém a el a, at é ao f i m. P, ni sso, nesse r adi cal i smo i nf l exí vel e f i xo do seu pensament o - vi r t ude mui t o r ar a e que exi ge mui t o mai s que si mpl es qual i dades i nt el ect uai s, por mui t o gr andes que el as sej am, vi r t ude que exi ge audáci a, cor agem, que supõe a det er mi nação de não se dei xar f i car pel o cami nho, ant es per sever ar nel e cust e o que cust ar , não obst ant e os obst ácul os, não obs32
t ant e os absur dos apar ent es - é ni sso que consi st e a gr andeza de Descar t es. E por que f oi em t udo at é ao f i m, pôde sal var - se do l abi r i nt o do er r o e da dúvi da, e onde Mont ai gne não t i nha sabi do encont r ar nada, nada al ém de vazi o e de f i ni t ude, el e soube, el e, Descar t es, descobr i r a cl ar eza da l i ber dade espi r i t ual , r eencont r ar a cer t eza da ver dade i nt el ect ual e encont r ar Deus. É essa a ver dadei r a t ar ef a do Di scur so: r eencont r ar - se a si pr ópr i o, e, par a al ém da dúvi da que ar r ui na a «opi ni ão r aci onal », most r ar o cami nho par a a nat ur eza e par a a cer t eza do conheci ment o i nt el ect ual . O di scur so r esponde aos Ensai os. À hi st ór i a espi r I t ual de Mont ai gne, Descar t es opõe a sua pr ópr i a. Ã hi st ór i a de uma der r ot a, o rel at o de uma vi t ór i a. 33
2. O COSMO DESAPARECI DO
O Di scur so. . . que poder í amos chamar I t i ner ar i um ment i s i n ver i t at em, i t i ner ár i o do espi r i t o par a a ver dade, gost ar i a bem de poder coment á- l o pági na por pagi na, e mesmo f r ase por f r ase. Não ser i a demasi ado, de t al modo são r i cas e densas, chei as, de subst ânci a e de sumo. Gost ar i a bem. . . só que demor ar i a mui t o - t empo. Per cor r amos r api dament e as pági nas I do pr i nci pi o, onde Descar t es nos cont a. a hi st ór i a da pr i mei r a das suas cr i ~ espi r i t uai s: cr i se de j uvent ude ao sai r da escol a. Cr i se de dúvi da e de decepção. E- i st o o que nos di z mai s ou menos: desde a i nf ânci a f oi «al i ment ado pel as l et r as»; est eve numa das mel hor es escol as da cr i st andade: o gr ande col égi o r esul t a de La Rèche; t eve os mel hor es pr of essor es; f oi um excel ent e al uno; apr endeu t udo, t udo o que é cost ume apr ender - se par a se- ser «r ecebi do ent r e os er udi t os»; l eu t odos os l i vr os que vi er am par ar - l he às mãos; é «mai t r e és ar t s»; l i cenci ado em di r ei t o - e ei s que not a, aos vi nt e anos, que t udo i sso não val e nada, ou, pel o menos, gr ande coi sa. 37
Sent e- se por t ant o desi l udi do e enganado. Ti nham- l he ensi nado que er a pr eci so apr ender as l et r as e as ar t es, por que «por mei o del as se podi a adqui r i r um conheci ment o cl ar o e segur o de t udo oque é ú t i l à vi da». Acr edi t ou- o. Or a, ei - l o que se vê «embar açado de dúvi das e de er r os» e obr i gado a r econhecer «que não havi a nenhuma dout r i na no mundo que f oss e conf or me ao que ant er i or ment e l he t i nham f ei t o esper ar ». As coi sas que l he t i nham f ei t o apr ender não er am, decer t o, i nt ei r ament e sem val or . Assi m: «as l í nguas. . . são necessár i as par a a i nt el i gênci a dos l i vr os ant i gos. . . a gent i l eza das f ábul as avi va o espí r i t o. . . as acções memor ávei s das hi st ór i as f or t al ecem- no e. . . sendo l i das com di scer ni ment o, aj udam a f or - mar o j uí zo. . . a El oquênci a possui f or ças e bel ezas i ncompar ávei s. . . a Poesi a t em del i cadezas e doçur as mui t o encant ador as; a Mat emát i ca t em i nvenções mui t o subt i s. . . a Teol ogi a ensi na a ganhar o céu. . . a Fi l osof i a f or nece o mei o par a se f al ar ver osi mi l ment e de t odas as coi sas e par a nos f azer mos admi r ar pel os menos sábi os. . . a J ur i spr udênci a, a Medi ci na e as out r as ci ênci as t r azem honr as e r i quezas àquel es que as cul t i vam . . . » Tudo i st o, sem dúvi da, não dei xa de t er a sua ut i l i dade. Mas enf i m, t i nham- l he pr omet i do out r a coi sa: t i nham- l he pr omet i do conheci ment os cl ar os e cer t os; t i nham- l he anunci ado um saber i ndi spensável par a poder , sem er r o, j ul gar e conduzi r - se na vi da. Ti nham- l he, em suma, pr o38
met i do uma ci ênci a e uma sabedor i a ( sagess e) . E não l he t i nham dado nem uma nem out r a. Por que, de t udo o que l he t i nham ensi nado, nada er a. i ndi spensável . Nem mesmo út i l . E nada, al ém da mat emát i ca, er a cer t o. A l ei t ur a dos vel hos - - l i vr os, das f ábul as, das hi st ór i as. . . or nament a o espí r i t o, sem dúvi da. Mas pode t ambém i nduzi - l o em er r o, por que «as f ábul as f azem cr er possí vei s vár i os acont eci ment os que o não são», e «as hi st ór i as mai s f i éi s» nunca cont am as coi sas como el as f or am. Não podem, por t ant o, aj udar - nos a f or mar o j uí zo. Bem pel o cont r ár i o, apenas t endem a f azer - nos conf undi r «o ver dadei r o com o f al so». A El oquênci a e a Poesi a são, cer t ament e, coi sas mui t o bel as. Mas nem uma nem out r a se apr endem. Tr at a- se de dons do espí r i t o e não de f r ut os do est udo. E par a per suadi r as pess oas é pr eci so f al ar - l hes cl ar ament e a f i m de que vos possam compr eender , em vez de as conf undi r com as f i gur as de r et ór i ca. E quant o à Teol ogi a que ensi na a ganhar o céu. . . não é el a uma «ci ênci a» compl et ament e supér f l ua, uma vez que «o cami nho não est á menos aber t o aos mai s i gnor ant es que aos mai s @dout os»? Não é el a, na ver dade, uma pseudo- ci ênci a compl et ament e i mposs í vel , dado que «as ver dades r evel adas que a el a conduzem. . . est ão aci ma da nossa i nt el i gênci a» e que, vi si vel ment e, «par a empr eender exami ná- l as, e ser ni sso bem sucedi do ser i a necessár i o t er al guma assi st ên39
ci a ext r aor di nár i a do céu e ser mai s que homem» ? Só a Mat emát i ca mer ece al gum f avor aos al hos de Descar t es «por causa da cer t e- - a e da evi dênci a das suas r azões». Um f avor de r est o mui t o r el at i vo, poi s que, não compr eendendo a sua ess ênci a o o seu ver dadei r o uso ( que é al i ment ar a al ma com a ver dade e abr i r - l he o conheci ment o do Uni ver so) , j ul gando que el a só ser vi a par a as ar t es mecâni cas, o mundo pr é- car t esi ano não t i nha consegui do const r ui r nada sobr e f undament os não obst ant e ‘ f i r mes e sól i dos. Não f i ca por t ant o nada, ou quase nada, da ci ênci a escol ar . O que se compr eende, de r est o. Todas as ci ênci as, com ef ei t o, vão buscar os seus pr i ncí pi os à f i l osof i a. Or a, é est a que, pr i mei r ament e, é conf usa, i ncer t a e duvi dosa. Ass i m, do desmor onament o das suas pr i mei r as cer t ezas, Descar t es apenas sal var á as que não dependem da f i l osof i a: a cr ença em Deus e na mat emát i ca. Not emos i sso. n bast ant e i mpor t ant e. Com ef ei t o, a met af í si ca de Descar t es t ent ar á l i gar essas duas cer t ezas e apoi ar uma na out r a. Também nada f i ca da sabedor i a humani st a. Uma sabedor i a separ ada da ci ênci a não é mai s acei t ável par a Descar t es que uma ci ênci a separ ada da sabedor i a. Descar t es chegou por si mesmo ao est ado , de i ncer t eza e de dúvi da que o Di scur so nos 40
evoca? 2 possí vel . Ter á - sof r i do a i nf l uênci a dos l i vr os que l he t i nham i do par ar às mãos? I @ mui t o pr ovável . A do mei o de «pess oas de bem» no qual i ngr essa ao sai r da escol a? 19@ cer t o. Pouco i mpor t a, de r est o. O est ado de espí r i t o que Descar t es descr eve é o est ado de espí r i t o da época. O do homem de bem que l eu Pedr o Ramus e Mont ai gne, Pomponazz i e Car dan, Agr i ppa e Bacon, que est á f ar t o das «subt i l ezas escol ást i cas», que despr eza a «ci ênci a of i ci al » do seu t empo. Vi r a- l he as cost as e Descar t es f ar á como el e: «Assi m que a i dade me per mi t i u sai r da - suj ei ção aos meus pr of essor es, dei xei i nt ei r ament e o est udo das l et r as; e r esol vendo- me a não pr ocur ar out r a ci ênci a senão aquel a que poder i a encont r ar - se em mi m mesmo ou ent ão no gr ande l i vr o do mundo [ é Mont ai gne em est ado pur o] , empr eguei o r est o da mi nha j uvent ude a vi aj ar , a ver cor t es e exér ci t os, a cont act ar com pessoas de di ver sos humor es e condi ções, a r ecol her di ver sas exper i ênci as, a exper i ment ar - - - me a mi m mesmo nos encont r os que a f or t una me pr opunha, e por t odo o l ado a f azer r ef l exões s obr e as coi sas que se me apr esent avam de modo a poder t i r ar del as qual quer pr ovei t o. . . E t i nha sempr e um ext r emo desej o de apr ender a di st i ngui r o ver dadei r o do f al so, par a ver cl ar o nas mi nhas acções e cami nhar em segur ança nest a vi da 1. 1 Subl i nhado meu. 41
A quest o as v agens e Descar t es o out r or a mu t o scut a. Par a o r anc s casei r o do sécul o passado, par a o homem de l et r as que não podi a i magi nar que f osse possí vel vi ver f or a de Par i s, est a pr i mei r a vi agem de Descar t es que, aos vi nt e anos, vai par a a Hol anda par a se al i st ar num exér ci t o est r angei r o, par eci a mui t o est r anha. Por i sso, pr ocur avam- l he as causas, as r azões pr of undas e ocul t as. Bem er r adament e, como o sabemos hoj e. «As vi agens f or mam a j uvent ude» - est e adági o não dat a de ont em. E a vi agem, a vol t a à Eur opa f or mava uma par t e i nt egr ant e da educação do «homem. de bem» da época de Descar t es. Sem t er vi aj ado, f r equent ado os exér ci t os e as cor t es, obser vado os paí ses est r angei r os, - não se pode, com ef ei t o, adqui r i r «a exper i ênci a», «a pr át i ca do mundo» que di st i nguem o «homem, de bem». Que Descar t es t enha i do j ust ament e par a a Hol anda - t ambém ni ss o não há nada de espant oso. A Hol anda, gr ande pot ênci a mar í t i ma da época, al i ada da Fr ança, est ava chei a de f r anceses. Pr of essor es, est udant es, sol dados, j ovens nobr es que al i i am par a apr ender o of í ci o mi l i t ar no exér ci t o de Maur í ci o de Nassau, o pr i mei r o capi t ão do seu t empo. Descar t es, si mpl esment e, é um del es: pequena nobr eza e nobr eza de t oga, sem dúvi da. Mas nobr eza à mesma, que Descar t es f ar á val er usando um nome nobr e: s- i eur du Per r on. A vi agem, pel o menos a pr i mei r a vi agem de 42
Descar t es, é o segui ment o nat ur al e nor mal da escol a: é a escol a da vi da. E o que el e del a r et i r a é o mesmo que t oda a gent e: as vi agens abal am as suas úl t i mas cer t ezas, ou sej a, os seus úl t i mos pr econcei t os, mas dão- l he em t r oca um pouco mai s de aber t ur a de espi r i t o: «Apr endi a, di z- nos, a não acr edi t ar com demasi ada f i r meza em nada que não me t i vesse si do i ncul cado senão pel o exempl o e pel o cost ume; e assi m me l i vr ava pouco a pouco de mui t os er r os que podem of uscar a nossa l uz nat ur al e t or nar - nos menos capazes de escut ar a r azão. » At aqu t u o por t ant o. nat ur a e nor ma . E a s t r a e Des car t es a e cada um dos seus l ei t or es, de cada l ei t or «homem de bem»: t al como no- l a cont a, el a si nt et i za e r esume o est ado de al ma do seu t empo. Tr at a- se da cr i se de uma cul t ur a. Não de uma cr i se pess oal de Descar t es. At aqu est amos em Mont a gne. E Descar t es pr op e- se, um bel o di a, como Mont ai gne, est udar dai em di ant e em si mesmo e empr egar t odas as f or ças do seu espi r i t o a escol her os cami nhos que devi a segui r . É ent ão que a r upt ur a se dá. «Eu est ava ent ão 2 na Al emanha, cont a- nos, aonde a ci r cunst ânci a das guer r as que ai nda não acabar am me t i nha chamado» - t oda a 2 Du- Vant e o I nver no de 1619- 162Q. 43
gent e conhece o f amoso epi sódi o do «quar t o aqueci do» de Descar t es, mas não quer o t odavi a pr i var - me do pr azer de o ci t ar - «e quando vol t ava da cor oação do I mper ador par a j unt o das t r opas, o começo do I nver no obr i gou- me a f i car num acampament o onde, não havendo nenhuma conver sa que me di ver t i sse e não t endo, de r est o, f el i zment e, nenhuns cui dados ou pai xões que me per t ur bassem, f i cava t odo o di a f echado sozi nho num quar t o bem aqueci do onde t i nha t o- do o t empo par a me ent r et er com os meus pensament os: ent r e os quai s, um dos pr i mei r os f oi r epar ar que mui t as vezes não há t ant a per f ei ção nas obr as compost as por vár i as peças e f ei t as pel a mão de di ver sos mest r es como naquel as em que um só t r abal hou». E Descar t es concl ui dai : t al como uma casa const r uí da por um só ar qui t ect o ser á mai s bel a que aquel a na qual vár i os const r ut or es t r abal har am, t ambém uma ci dade const r uí da por ger ações s ucessi vas não t em t ant a or dem como a que f oi const r uí da de uma só vez. . . do mesmo modo t ambém as ci ênci as t endo si do const r uí das pouco a pouco não possuem nenhuma cer t eza e não ensi nam a or dem ver dadei r a das coi sas. Por i ss o, ser i a pr eci so que al guém empr eendesse, de uma vez par a sempr e, r econst r ui - l as, e pô- l as em or dem. Não nos i l udamos. 2 uma ver dadei r a r evol ução ci ent i f i ca que as f r ases r et i cent es e pr udent es do Di scur so, nos anunci am. Tr at a- se, mui t o si mpl esment e, de f azer t ábua r asa de 44
t udo o que se t i nha f ei t o at é ent ão, de começar de novo, de f i l osof ar «como se ni nguém o t i vesse ai nda f ei t o» , e de r econst r ui r , ou mai s exact ament e de const r ui r , pel a pr i mei r a vez, e de uma vez por t odas, o si st ema ver dadei r o das ci ênci as. O si st ema ver dadei r o do Uni ver so. Empr esa de t al modo gr andi osa que f i camos per pl exos di ant e da audáci a de Descar t es. Mas Descar t es pr ossegue t r anqui l ament e: «E assi m eu pensava que por que t odos f omos cr i anças ant es de ser mos homens e nos f oi pr eci so dur ant e mui t o t empo ser mos gover nados pel os nossos apet i t es e pel os nossos pr ecept or es, que er am mui t as vezes cont r ár i os uns aos out r os, e que nem uns nem out r os nos aconsel havam sempr e t al vez o mel hor , é quase i mpossí vel que os nossos j uí zos sej am t ão pur os ou t ão sól i dos como t er i am si do se t i véssemos t i do i nt ei r o uso da noss a r azão desde o nasci ment o e nunca t i véssemos si do senão conduzi dos por el a. » Sem dúvi da, ser i a mui t o bom se, desde o nasci ment o, f i cáss emos de poss e da r azão, de t oda a noss a r azão. Não da que de f act o possuí mos, hoj e, na i dade madur a, e que est á chei a de er r os, de pr econcei t os e de i dei as f ei t as, mas da que t er í amos possuí do ent ão, da r azão compl et ament e pur a, compl et ament e per f ei t a, da r azão essenci al , t al como a dever í amos t er t i do, t al como a t er i a t i do um homem que, como Adão, t i vesse si do cr i ado adul t o, com uma r azão di r ect ament e sal da das mãos da nat ur eza, ou 45
de Deus 8. Sem dúvi da que ent ão nunca a dei xar í amos cai r no er r o e nenhum pr econcei t o vi r i a of uscar a l uz nat ur al do nosso espí r i t o. A i dei a não é nova. Vem de Ci cer o que, segundo t odas as pr obabi l i dades, a. f oi buscar a al guém. Mas nenhum dos que a expr i mi r am, nem mesmo. Bacon que acabava de a r epr oduzi r , al guma vez a t omou a sér i o. Quer o di zer : ni nguém f ez dest a nost al gi a pl at óni ca um pr ogr ama de acção. Ni nguém, sal vo Descar t es que, o mai s ser i ament e possí vel , empr eendeu devol ver ao nosso espí r i t o a pur eza e a per f ei ção «nat i vas» ( e assi m l evar a nat ur eza humana ao seu mai s al t o gr au de per f ei ção) . E par a i sso, par a o desobst r ui r e desembar açar das escór i as que o at ul ham, par eceu- me, di z- nos, «que, em r el ação a t odas as opi ni ões a que at é agor a eu t i nha dado cr édi t o, mel hor - não podi a f azer que empr eender , uma vez por t odas, af ast á- l as, a f i m de em segui da pôr , no seu l ugar , ou out r as mel hor es ou as mesmas, depoi s de as t er aj ust ado ao ní vel da r azão». Revol ução i nt el ect ual , ou mel hor , r evol ução espi r i t ual que subt ende e que supor t a a r evol ução ci ent i f i ca e que, com um r adi cal i smo e uma audáci a i naudi t os, pr ocl ama o val or , a f or ça, a aut ocr aci a absol ut a da razão. Sem dúvi da, est a aut ocr aci a que acaba de a Todos os “l ógi cos, desde Gr egór i o de Ni za, são **coneof f i es em af i r mar a per f ei ção da i nt el i gênci a de Adão ant es da queda, 46
pr ocl amar , Descar t es pr ocur ar á rest r i ngi - l a, t or ná- l a i nof ensi va. Sem dúvi da di r - nos- á, e mui t o si ncer ament e, que a cr i t i ca da r azão não deve e não pode exer cer - se sobr e as ver dades r el i gi osas - as ver dades r evel adas - dado que el as, pel a sua pr ópr i a essênci a, são super i or es à r azão. Sem dúvi da t ent ar á l i mi t ar os est r agos e l avar as mãos de t odas as consequênci as desagr adávei s que poder i am, e que vão, pr oduzi r - se. Descar t es não t em nada de r evol uci onár i o pol í t i co e é mui t o si ncer ament e que se i mpor t a com a t r anqui l i dade e com a or dem públ i cas: necessi t a del as par a poder pr ossegui r as suas i nvest i gações ci ent í f i cas. I mpor t a- se sobr et udo com a sua pr ópr i a t r anqui l i dade. E não ser ei eu a censur á- l o por i sso. Er a f áci l par a Bossuet chamar - l he: «o demasi ado caut el oso f i l ósof o». Bossuet não ar r i scava nada. E não t r azi a gr ande coi sa. Descar t es t al vez não ar r i scasse gr ande coi sa. Mas t r azi a um t esour o. Não sur pr eende, poi s, que pr ocur e a segur ança’ . Por i sso se ant eci pa: pr ova mani f est a de que, mel hor que ni nguém, compr eendi a o al cance uni ver sal do seu mét odo. Não é o Est ado, di z- nos, que quer r ef or mar ; nem as gr andes i nst i t ui ções públ i cas; nem mesmo «a or dem das ci ênci as», ou sej a, os pr ogr amas das escol as. Nada di sso l he di z r espei t o. «Eu não poder i a, di z- nos, apr ovar de f or ma nenhuma esses t emper ament os conf l i t uosos e i nqui et os que, não sendo chamados nem pel o nasci ment o nem pel a f or t una à condução 47
dos negóci os públ i cos não dei xam de, em i dei a, est ar em sempr e a i nt r oduzi r nel es al e- uma nova r ef or ma; e se eu pensass e que nest e escr i t o havi a a mí ni ma coi sa pel a qual pudesse ser suspei t o dessa l oucur a, l ament ar i a mui t o t er consent i do na sua publ i cação. » Mas, no f i m de cont as, as suas i dei as, os seus pensament os, per t encem- l he e el e est á no seu di r ei t o de f azer del es o que qui ser . Descar t es di z- nos que não quer de modo nenhum i r mai s al ém. Nem mesmo quer r ef or mar as i dei as dos out r os: é às suas, e às suas s oment e, que se at ém. «Aquel es par a quem Deus f oi mai s gener oso na di st r i bui ção das suas gr aças, t er ão t al vez desí gni os mai s al t os» quant o a el e, Descar t es, o seu bast a- l he. Sem dúvi da. Ref or mar , ou mel hor , cr i ar compl et ament e uma l ógi ca, uma f í si ca e uma met af í si ca - t odo um mundo - chega par a est e homem t ão modest o. Det enhamo- nos aqui um i nst ant e, por que est amos no moment o deci si vo. 2 aqui que começa a f i l osof i a. Pel o menos segundo Descar t es: é por aí que começam as Medi t ações. O homem, t em necessi dade, uma vez na vi da ( e sem dúvi da a humani dade t em i gual ment e ess a necess i dade, e mai s do que uma vez) de se desf azer de t odas as i dei as ant er i or es e r ecebi das, de dest r ui r em si t odas as cr enças e t odas as opi ni ões, par a as submet er t odas ao cont r ol o e ao j ul gament o da r azão. Desf azer - se das i dei as, dest r ui r em si as 48
cr enças: não é t ambém l i ber t ar - se del as? E submet ê- l as ao j ul gament o da r azão não é af i r mar , I mpl i ci t ament e, a sober ani a absol ut a - e a l i ber dade, não menos absol ut a- dest a? Or a, é i esse o mét odo e o r emédi o car t esi ano. O mét odo, ou sej a, a vi a que conduz à ver dade. E o r emédi o que nos cur a da i ndeci são e da ‘ dúvi da. Pr eci samos de nos desf azer de t odas as i dei as, de t odas as cr enças r ecebi das, ou sej a, l i ber t ar mo- nos de t odas as t r adi ções, de t odas as aut or i dades , se qui ser mos uma vez r eencont r ar a pur eza nat i va da nossa r azão, chegar à cer t eza da ver dade. Com ef ei t o, o ** ~i w - quer o di zer : Mont ai gne - t em r azão em duvi dar . Não se def r ont a el e com opi ni ões i ncer t as, duvi dosas, e mesmo f al sas? Pode acont ecer que, por vezes, não t enha r azão, que ent r e as coi sas de que duvi da se encont r em i gual ment e, al gumas ver dadei r as. Mas como poder i a el - e, - e , COMO ser i a possí vel sabê- l o? Ser i a pr eci so poder j ul gá- l as, quer di zer , di scer ni r o ver dadei r o e o f al so. E como poder i a f azer - se i sso, com a cer t eza de não haver engano, enquant o per manecer no espi r i t o qual quer ‘ i dei a ou opi ni ão que, não t endo ai nda si do exper i ment ada, poder i a bem ser f al sa e vi ci ar assi m o j uí zo? Só há um mei o de sai r di sso: esvazi ar compl et ament e o espi r i t o. Como Descar t es o di r á um di a ao Padr e Bour di n: «Se t i ver um cest o de maçãs das quai s vár i as est ão podr es e, por ‘ i sso, envenenam o r est o, que f azer s enão esva49
zi á- - l o t odo e r et omar as maçãs uma a uma par a vol t ar a pôr as boas no cest o e dei t ar as más par a o l i xo . . . » Not emos que a oper ação se desenr ol a em doi s t empos: começa- se por esvazi ar o cest o; t odavi a, el e não f i ca vazi o, por que se vol t a a pôr l á maçãs, aquel as j ust ament e que não est ão podr es. Or a, como e por que mei o as pr eci so r ej ei t ar ou mant er , pr eci sament e por mei o dessa daqui em di ant e de t odas as
vamos exper i ment ar , a ess as opi ni ões que ser á segundo se aj ust em ou não «, ao ní vel da r azão»? Mas mesma r azão, essa l uz nat ur al que, desembar açada i dei as que a at r avancam, t er á r eencont r ado
a sua per f ei ção nat ur al e ser á por i sso mesmo capaz de di scer ni r o ver dadei r o e o f al s o. E como se pr oceder á? Também não é di f í ci l : nós duvi dámos das i dei as em que podemos di vi sar al guma coi sa de conf uso e de obscur o. I nver sament e, as i dei as que poder emos pôr em ‘ dúvi da cont er ão cer t ament e al guma coi sa de conf uso e de obscur o. Por i sso, vamos exper i ment á- l as pel a dúvi da. P, a pr ópr i a dúvi da que ser á a nossa pedr a de t oque: t oda a i dei a que est e ** &ci do, di ssol vent e puder cor r oer , most r ar - se- á, por i sso mesmo, i dei a f al sa, ou pel o menos de uma nat ur eza ou de um t í t ul o i nf er i or es. Maçã podr e. Dei t o- a por t ant o f or a, conser vando apenas as que «se apr esent assem t ão cl ar a e t ão di st i nt ament e ao meu espí r i t o que eu não t i vesse mot i vo al gum par a as pôr em dúvi da». 50
A v a a pe r a e t oque - da **ve~e, o áci do que **dí s, sc>l ve os er r os. Por i sso, ser - nos- á necessár i o t or ná- l a t ão f or t e quant o possí vel e duvi dar de t udo - sempr e que possí vel Só ent ão t er emos a cer t eza de apenas conser var o our o pur o da ver dade. o cépt i co ser á venci do pel as suas pr ópr i as ar mas. Duvi da. . . Poi s bem! Vamos, ensi nar - l he a duvi dar . A nossa dúvi da não ser á um est ado - est ado de uma i ncer t eza negl i gent e- ser á uma acção, um act o, l i vr e, Vol Unt ár i o, e que l evar emos às ul l t i mas consequênci as. Dúvi da- est ado, dúvi da- acção: a r upt ur a é pr of unda. E, no f undo, a Vi t ór i a - em pr i ncí pi o - est á j á al cançada. Por que a dúvi da, o cépt i co e Mont ai gne sof r em- na. Descar t es exer ce- a. Ao exer cê- l a ** l i vr e~e domí n<>u- a. E assi m se l i ber t ou del a, Possui ndo um cr i t ér i o, um ní vel , «uma r egr a» ( que Mont ai gne não t i nha) , poder á di st i ngui r o ver dadei r o e o f al so e no seu l ugar as i dei as que f or mar ão o uni ver so do ** eOPI r i t o. Poder á exer cer uma cr í t i ca, ou sej a, UM j uí zo, e uma escol ha. Mas quai s são essas i dei as de t al modo cl ar as e di st i nt as, ou mai s exact ament e, por que ** Ver o r est o da pági na 1 É- por um 5et Q t i vr e, que nos@deel di nws a «duvi dar », a «suspendei r o j uI zo» e a «r ecusar o cr @&, di t o» às i dei as que se nos c%l j pr esent em. n l i ~ment e que nos , deci di mos à r evi sãi o c@i í t i ea di as nossas Mel as. A f i l osof i a começa por t ant o por umi a af i r mação, ef ect i va da l i ber daI d@e_ : e pr essupõe- i aa. ‘ 51
aqui cada pal avr a t em a sua i mpor t ânci a, essas I dei as que se apr esent am ao espí r i t o de uma manei r a t ão cl ar a e t ambém t ão di sf i nt a, que j á não há r azão par a as pôr em dúvi da? Essas i dei as onde o espí r i t o nada descobr e de obscur o nem de conf uso, i dei as que est ão, de al l gum. modo, por si mesmas, «aj ust adas ao ní vel da r azão» e que, por i sso, f or mar ão o model o, a r egr a, o «ní vel » a que o espí r i t o dever á «aj ust ar » t odas as out r as? E qual é a r azão que vai pr oceder a est e «, aj ust ament o»? As e as o scur as e con usas que azem nascer a v a e que s o, por sua vez, dest r uí das: pel a dúvi da são as que nos vêm da t r adi ção e dos sent i dos. Quant o às cl ar as, às ver dadei r as, são ant es de t udo as i dei as mat emát i cas. E a r azão de que est amos a t r at ar é i gual ment e a r azão mat emát i ca. Por que é excl usi vament e na mat emát i ca que o espí r i t o humano chegou à evi dênci a e à cer t eza - e consegui u const i t ui r uma ci ênci a, uma di sci pl i na ver dadei r a, na qual pr ogr i de, em or dem e com cl ar eza, das coi sas mai s si mpl es par a, as const r uções mai s ** ~l i ' ~- . Por i ss o o mét odo car t esi i ano, esse mét odo que Descar t es nos di z t er **o~o t omando o que havi a de mel hor nas «t r ês ar t es ou ci ênci as que est udar a um pouco quando er a novo» - a Lógi ca, - a Anál i se dos Geómet r as e a ál gebr a - ser á essenci al ment e or denado a par t i r da mat emát i ca. Sem dúvi da, não se t r at ar á de i r buscar à mat emát i ca os seus modos de r aci ocí ni o e apl i 52
cá- l os, t al qual , a out r os domí ni os e a ~os obj ect os. Por que, embor a «ent r e t odos os que at é agor a pr ocur ar am a ver dade nas ci ênci as, só os mat emát i cos puder am achar al gumas demonst r ações, ou sej a, al gumas r azões cer t as e evi dent es», não é - menos ver dade que os s eus mét odos, ou mai s exact ament e i as suas t écni cas, per manecem est r i t ament e apr opr i adas às suas mat ér i as - «mat ér i as mui t o abst r act as e que par ecem não t er qual quer ut i l i dade@e» - e que «no, que r espei t a à Anál i se dos Ant i gos, e à ál gebr a dos Moder nos ( . . . ) , a pr i mei r a est á sempr e t ão l i mi t ada à consi der ação, das f i gur as que não pode exer cer o ent endi ment o sem f at i gar mui t o a i magi nação; e, quant o à ** úhi ma, houve uma t al suj ei ção a cer t as r egr as e a cer t os cál cul os que se f ez del a uma ar t e conf usa e obscur a que embar aça. o espí r i t o em vez de uma ci ênci a que o cul t i ve». Ser á ent ão necessár i o, ant es de mai s, r ef or mar a pr ópr i a mat emát i ca gener al i zando os sem mét odos ou, se se pr ef er i r , apr eender a pr ópr i a essênci a do r aci ocí ni o mat emát i co, o espí r i t o que ani ma o desenr ol ar «dessas l ongas cadei as de r azões si mpl es e f ácei s de que os geómet r as cost umam s~- se par a chegar às suas demonst r ações mai s ‘ di f í cei s. » Essa essênci a, esse espí r i t o dó r aci ocí ni o mat emát i co - mui t o di f er ent e do r aci ocí ni o pur ament e si l ogí st i co ou l ógi co- consi st e no f act o de o mat emát i co, quai squer que sej am os obj ect os par t i cul ar es do seu est udo, uma 53
equação al gébr i ca ou uma const r ução geomét r i ca, t ent ar est abel ecer ent r e el es r el ações ou pr opor ções pr eci sas e r el i gá- l os por sér i es de r el ações or denadas. I nvenção de r el ações e de uma or dem ent r e as r el ações, é est a a essênci a do pensament o mat emát i co, dess e pensament o par a o qual «r azão» mai s não si gni f i ca que pr opor ção ou r el ação; pr opor ção ou r el ação que, por si mesmas, est abel ecem uma or dem, e por si mesmas se desenvol vem, em sér i e. E são as l ei s desse pensament o que as r egr as do Di scur so nos ensi nam, pel o menos as t r ês úl t i mas 5, as que nos convi dam: «a di vi di r cada uma das di f i cul dades ( . . . ) ** @um t ant wpar cel as quant o f or possí vel e r equer i - do par a mel hor as r esol ver » [ o que si gni f i ca «di vi di r » t oda a r el ação ou pr opor ção compl exa em t ant as r el ações ou pr opor ções si mpl es quant as f or em possí vei s] ; a «, conduzi r por or dem os meus pensament os começando pel os obj ect os mai s si mpl es e mai s f ácei s de - conhecer , par a subi r pouco a pouco, - como por degr aus at é ao conheci ment o dos mai s ** co~t os. [ o que si gmi f i ca começar pel as r el ações eu equações mai s s i mpl es, as do pr i mei r o gr au, e daí subi r por degr aus e por or dem at é às r el ações ou equações de gr aus super i or es] , pr essupondo mesmo uma 5 A pr i mei r a r egr a, a que nos pr escr eve
or dem ent r e os que não pr ocedem nat ur al ment e um do out r o i - ou sej a, i nt er cal ando t er - mos ent r e os t er mos ext r emos da sér i e e supondo t odos os t er mos r el aci onávei s ent r e si por uma sér i e] ; e, enf i m, a «f azer em t odo o l ado enumer ações t ão compl et as e r evi sões t ão ger ai s que me assegur em de nada omi t i r » [ ou sej a, t er cui dado em não dei xar um dos t er mos ou uma das i ncógni t as do pr obl ema não r el aci onados com os out r os, e não escr ever menos equações que i ncógni t as] . Est á f or a de dúvi da que est e mét odo, , que est as r egr as que Descar t es pr et ende t er concebi do no seu quar t o aqueci do, só o f or am, de f act o, mui t o mai s t ar de, uma vez que apenas r esumem, e de manei r a um pouco obscur a, - os modos de r aci ocí ni os ut i l i zados pel a Di ópt r i ca@ e pel a Geomet r i a, mui t o par t i cul ar ment e a t écni ca de pôr em equação um pr obl ema al gébr i co. Mas a ál gebr a nova, e a apl i cação da ál gebr a à geomet r i a que- t or na est a i ndependent e da i magi nação e t r ansf or ma assi m o espaço numa ent i dade pl enament e i nt el i gí vel é, par a o pr ópr i o Descar t es, par a os seus cont empor âneos e sucess or es - pensemos em Mal ebr anche e Espi nosa - e par a nós, a sua mai or conqui st a i nt el ect u&l , aquel a que t or na possí vel a const i t ui ção de uma f í si ca t ~a, que per mi t e a Descar t es r esponder vi t or i osament e às cr i t i cas de Ar I st ót el es e passar o - ob~l o que det i ver a Pl at ão. Or a Descar t es, di ga el e o que di sser , most r a- nos a r ot a que é pr eci so segui r , e não aquel a, 55
chei a de desvi os e de i mPasses, que el e pr ópr i o segui u. Que i mpor t a, de r est o, que as suas descober t as t enham si do cl ar ament e f or mul adas em 1628 ou em 1636? O seu ger me, a pr i mei r a i nt ui ção f ul gur ant e, o pr i mei r o sonho de uma ci ênci a que sena uma sabedor i a, dat a cer t ament e de 1619, da época em que, sozi nho no seu quar t o aqueci do, se ent r et i nha com os seus pensament os. Com ef ei t o, quando no i ni ci o do I nver no de 1619 Descar t es se 1**~m no seu quar t h aqueci do, não t em apenas at r ás de si anos de vi agens e de f r equent ação o do mundo. Tem por det r ás * *cl &e doi s anos de t r abal ho e de descober t as. Não t i nha per di do t empo na Hol anda. Se apr endeu, segundo par ece, pouca coi sa do of í ci o mi l i t ar , descobr i u, em cont r apar t i da, , um mét odo de ** eU, eul l o que anunci a j á o cál cul o i nt egr al e apl âcou- o aos pr obl emas da f í si ca: **phyó- @co- mat hemat i cus consumado, chama@l he, desde ess a al t ur a, o seu ami go Beeckmann. El abor ou um mét odo de anál i se, de i ni ci o pur ament e geomét r i co, do géner o do de **~nat . Por f i m, est i mul ado por Beeckmann, que o exor t a a dei xar de se ocupar de mat emát i ca apl i cada e a consagr ar as f or ças do seu espí r i t o à mat emát i ca pur a, concebe a i dei a de gener al i zar os mét odos da, geomet r i a e de apl i car os mét odos de anál i se à ál gebr a ( i dei a de onde sai r á, mai s t ar de, a geomet r i a al gébr i ca, ou, como é hoj e chamada, a geomet r i a anal í t i ca, de Descar t es) . Cer t ament e que são apenas ensai os, t ent at i vas, e 56
par a que r esul t em Descar t es pr eci sar á de r ef or mar t oda a ál gebr a, a sua est r ut ur a e as suas not ações. No quar t o aqueci do, Descar t es est á ai nda l onge de o consegui r . Mas as duas i dei as mest r as que domi nar ão a sua ci ênci a e a sua f i l osof i a, a i dei a da uni dade di a mat emát i ca, e aquel a, mai s pr o- f unda e mai s i mpor t ant e ai nda, da uni dade das ci ênci as, de t odo o saber humano, f oi ent ão, sem qual quer dúvi da, que as concebeu. Não vou segui r aqui passo a passo a hi st ór i a do desenvol vi ment o pr ogr essi vo do pensament o de Descar t es. Vou segui r - l he o exempl o e apr esent á- l o t al como apar ece na época do Di scur so. A uni dade da mat enát i ca der i va do f act o de os mesmos mét odos - os mét odos al gébr i cos- se apl i car em em geomet r i a e em ar i t mét i ca, ao númer o t al como ao espaço. M~os mét odos: i ss o quer di zer mesmos passos do espi r i t o. E i st o por sua vez most r a- nos que o que é i mpor t ant e não são os obj ect os - númer os ou l i nhas - mas j ust ament e os pass os, as acções, as oper ações do espi r i t o que l i ga ent r e si esses obj ect os, est abel ece - ou encont r a - r el ações, as compar a umas com as out r as, as mede umas pel as out r as e assi m as or dena em sér i es. Or dem f ecunda e vi va - or dem di nâmi ca opost a à or dem est át i ca dos **gén~F, e das espéci es da l ógi ca es, ~@ca - , or dem de pr odução e não de cl assi f i cação, or dem na qual cada t er mo depende do que o pr ecede, e det er mi na, por sua vez, aquel e que o segue. Mi as se 57
assi m é, se, como j á o di ssemos, é a or dem e a r el ação que f or mam o f undo, a pr ópr i a essênci a da mat emát i ca, poder - se- á ent ão t r aduzi r não s 6 qual quer r el ação numér i ca em r el ação espaci al , mas t ambém qual quer r el ação, espaci al em r el ação numér i ca, t r ansf or mar númer os em l i nhas, l i nhas em númer os. Poder - se- á chegar a uma ci ênci a mui t o mai s ger al , ci ênci a j ust ament e das r el ações e da or dem. Ci ênci a pur ament e r aci onal e absol ut ament e cl ar a par a o espí r i t o, poi s que nel a o espí r i t o nada mai s est uda que as suas pr ópr i as acções, as suas pr ópr i as oper ações, as suas pr ópr i as r azões. Ni sso consi st i r á a mat emát i ca ver dadei r a, essa ál gebr a nova que Descar t es subst i t ui r á à anál i se dos ant i gos e à ál gebr a dos moder nos. E o espí r i t o’ poder á, dor avant e, desenr ol ar sem f i m «essas l ongas cadei as de r azões si mpl es e f ácei s» - equações ou r el ações- , uni - I as e combi ná- l as, e const r ui r - assi m numa or dem nat ur al e per f ei t a r el ações, ou sej a, obj ect os, cada vez mai s compl i cados e cada vez mai s r i cos. , Or a, se assi m é, se t oda a per f ei ção e t oda a f ecundi dade da mat emát i ca pr ovêm do f act o de o espí r i t o ai est abel ecer e combi nar r el ações e uma or dem ent r e os el ement os - númer os ou l i nhas, pouco i mpor t a- não s- e t or na cl ar o - par a Descar t es é- o - que sej a ni sso que consi st e o model o, e a essênci a, de qual quer ci ênci a humana, que é una como o espí r i t o é uno, por que a ci ênci a mai s não é que o espí r i t o humano di ver sament e apl i cado aos obj ect os? 58
Mas s e o es p r t o que cont a, e cl as si f i car e
e mane r a nen uma os o
ect os ,
r
cu o
di vi di r as ci ênci as segundo os seus obj ect os. E par a const r ui r o mundo do saber é pr eci so por t ant o - e i sso bast a - est abel ecer ou encont r ar uma or dem e r el ações i nt el i gí vei s e **el ar &s ent r e as mai s si mpl es i dei as do espí r i t o. E dai ascender , por or dem, às coi sas mai s compl i cadas. Por que «t odas as coi sas que podem f i car ao al cance do conheci ment o dos homens r el aci onam- - se da mesma manei r a e ( . . . ) cont ant o soment e que nos abst enhamos de r eceber por ver dadei r a al guma que o não sej a e que mant enhamos sempr e a or dem. necessár i a par a as deduzi r umas das out r as, não pode haver nenhumas t ão af ast adas - a que enf i m não se acabe por chegar , nem t ão escondi das que não se descubr am». E é assi m- começando pel as i dei as do espí r i t o e não pel a per cepção das coi sas, **5eguànd<) a or dem de composi ção i manent e ao espí r i t o e às suas i dei as- que se encont r ar á a - or dem ver dadei r a. das ci ênci as, essa or dem que agor a est á ocul t a e mascar ada, e que se poder á ver desenvol ver - se a ár vor e do saber , essa ár vor e de que a f i l osof i a é a r ai z, a f í si ca o t r onco e a mor al ) f r ut o. E f oi pr ovavel ment e por t er ent r evi st o est as consequênci as espant osas que Descar t es anot ar a no seu di ár i o í nt i mo que no di a 10 de Novembr o de 1619 se encheu de um gr ande ent usi asmo e começou a «compr eender os f undament os da ci ênci a mar avi l hosa», dessa ci ên59
ci a absol ut ament e ger al , mat emát i ca uni ver sal do saber de que acabo de expor a noção. Quai s er am, no ent ant o, esses «f undament os»? ul go, pel o meu l ado, que Descar t es no- l o di z numa out r a passagem das Suas COGI TATI ONES PRI VATAE: sunt i n nobi s semi na sci ent i ar um. M sement es das ci ênci as est ão em nós: o que quer di zer que a nossa r azão nã o é vazi a, não é «t ábua r asa» que deva r eceber t udo de f or a, como o j ul gam Ar i st ót el es e a escol ást i ca, por mei o da i magi nação e dos sent i dos; pel o cont r ár i o, t emos em nós mesnws mat er i al par a f azer a ci ênci a, t r azemos em nós os pr i ncí pi os do saber , e o nosso pensament o, r emer gul hado, em si mesmo e r est i t uí do a si pr ópr i o, poder á ent ão, segur o de sí , desenvol ver , sem sai r del e pr ópr i o, essas l ongas cadei as de r azões de que nos f al a o Di scur so. As s ement es das ci ênci as est ão em nós: ei s por que é que a empr esa car t esi ana não é qui mér i ca; ei s por que é que se pode, e se deve, t ent ar desembar açar a r azão de t udo o que l he vei o do ext er i or , de t udo o que el a pÔde adqui r i r e r eceber na vi da. Ess as ** ~ei nhes das ci ênci as», ou, como Descar t es as chamar á mai s t ar de, r eencont r ando assi m a pr of unda concepção de Pl at ão, i dei as i nat as», «ver dades et er nas», «ver dadei r as e i mut ávei s nat ur ezas, », essêndi as, pur ament e i nt el i gí vei s e i nt ei r ament e i ndependent es da cont r i bui ção da per cepção sensi vel , noções que a ascese r i gor osa da dúvi da met ódi ca, vol un60
t ár i a, r adi cal , r evel ar á na nossa al ma, ei s os f undament os, segur os e sól i dos que Mont ai gne não soube descobr i r - em que o homem poder á apoi ar o seu j ui zo. E Descar t es, chei o de al egr i a, quer , sem per ca de t empo, anunci ar ao mundo a boa nova da cer t eza r eencont r ada. «Por vol t a da Páscoa penso acabar o meu vol ume, escr eve a Beeckmann, e ent ão pr ocur ar ei o i mpr essor ». Esse vol ume nunca vei o à l uz. Ter á chegado a ser escr i t o? Ter á Descar t es i do al guma vez al ém do t i t ul o - St udi um bof t ae ment i s- e das poucas pági nas do i ni ci o? DuVi do mui t o. Por que, t al como di z Bai l I et , seu pr i mei r o bi ógr af o, Descar t es depr essa compr eendeu que não er a empr esa f áci l dest r ul i r em sí t odas as I dei as r ecebi das, que er a mui t o mai s f áci l quei mar uma casa, ou mesmo ar r asar uma ci dade. Quant o a r econst r ui r , Sem dúvi da, o Di scur so di z- nos que é f áci l : bast a começar pel así dei as mai s s i mpl es. . . Mas quai s s ão essas i dei as mai s si mpl es, mai s cl ar as e mai s f ácei s, essas ver dadei r as e i mut ávei s nat ur ezas, essas ver dades et er nas, el ement os absol ut os do uni ver so do espí r i t o? Ei s uma quest ão que est á l onge de ser si mpl es. É mesmo a mai s di f i ci l de t odasDescar t es, um bel o di a, conf essá- l o- á: se é segur o e cer t o que as nossas i dei as cl ar as são t odas ver dadei r as, é mui t o di f í ci l saber quai s são ao cer t o, essas i dei as. O f al hanço dest a pr i mei r a t ent at i va não det ém Descar t es. Pensa: Sou j ovem, Fi car á 61
par a mai s t ar de. E, f azendo da necesi dade vi r t ude, vol t a a par t i r em vi áagem. As vi agens de Descar t es dur am sei s anos. Sei s anos sobr e que não se sabe quase nada. Em 1622 encont r amo- l o em Fr ança; em 1621 em Veneza e depoi s em Roma. Em 1626 vol t a a Par i s. Que f ez el e dur ant e esses sei s anos? Sem dúvi da que cont i nuou a i nst r ui r - se, a obser var os usos e cost umes, a f azer por t odo o l ado r ef l exões út ei s. E sem dúvi da que pr ossegui u a sua gr ande t ar ef a: l i mi t ar a r azão e pr ocur ar essas coi sas si mpl es e f ácei s por onde ser á pr eci so começar . Em Par i s vol t a a encont r ar a at mosf er a de out r or a. Que se agr avou mesmo, ent r et ant o. O homem de bem é, dor avant e, f r ancament e cépt i co. J á não r espei t a nada. Tr oça de t udo. n l i ber t i no. Deí st a. Mer senne acha- l o mesmo at eu e cont a ci nquent a mi l em Par i s. O per i go é gr ande. Por i sso, t odas as f or ças da f é são mobi l i zadas par a a l ut a. Gar asse 6, Mer senne 7@ O R. P. FRANÇOI S GARASSE: La Doct i - me cur i euse de@s beaux espr i t s de ce t emps, i n- 4. , , pp. 10, 25, Par i s, 1624; La Somme t héol ogi que des vér i t és capi t al es de I a r el i gi on chr esti enne, i n- f ol . , pp. LXXI I , 973, Par i s, 1625, 7 P. MARI N MERSENNE: Quaest i ones cel eber r i mae i n Genesi m. - - - i n- f ol . , p. 956, Par i s, 1623; L' I mpi ét é des déi st es, i n- 8. 1, 2 vol . de 834 e 506 pági nas, mai s peças l i mi nar es, Par i s, 1624; La Vér i t é des sei ences cont r e l es scept i ques ou pyr r honi ens, i n- S. , , XC8 pági nas, mai s peças l i mi nar es, Par i s, 1625. 62
Si l hon 11, out r os ai nda: é uma i mensa l i t er at ur a a- pol ogét @, ca, mui t as vezes em i n- quar t o e em i n- f ol i o, que se abat e sobr e o pobr e at eu. Descar t es, de i ní ci o, não t omar á par t e nest a l ut a. A bem di zer , est á mui t o ocupado. Por que acabou por encont r ar «as coi sas si mpl es» por onde é pr eci so começar . São j ust ament e as noções, que os f i l ósof os sempr e achar am que er am as mai s di f í cei s - as noções de movi ment o, ext ensão, dur ação e, sobr et udo, a noção de ** i nf l nko- e est á a l ançar os f undament os da ci ênci a nova, ci ênci a que par t e da i dei a e não da coi sa e que segue a or dem das r azões e não a das mat ér i as. Escr eve a sua l ógi ca, as Regr as par a a di r ecção do espí r i t o, que à est er i l i dade da r ect i dão f or mal do si l ogi smo opõe a r i queza e a f ecundi dade da i nt ui ção i nt el ect ual da ver dade. Mas, al ém di sso, não est á de acor do com os campeões da r el i gi ão, Sem dúvi da que el e é cr ent e. n mesmo um homem pr of undament e r el i gi oso. sua manei r a, evi dent ement e. Mas quem nos di z que, não é ess a a boa manei r a? A sua r eúgi ão, não é cer t ament e a de Pascal ‘ , . Mas não é menos si ncer a. Nem mesmo menos pr of unda. Cr ê que o at ei smo é f al so, Não gost a dos cépt i cos, «os que duvi dam 63
por duvi dar ». Cr ê que há f or a dos mi st ér i os s agr ados da r el i gi ão r evel ada - uma ver dade r el i gi osa per f ei t amemt e acessí vel à r azão humana: - a exi st ênci a de Deus e da al ma; e que, el a pode e deve ser pr ovada. Um bel o di a, est i mul ado por Bêr uI l l e e Gi bi euf , i i nspi r ado pür Sant o Agost i nho, f á- l o- á. Mas como poder i a censur ar os cépt i cos e os l i ber t i nos ( por não se dei xar em! convencer pel as pr ovas e pel os ar gument os que são despej ados sobr e el es? Por que ( essas pr ovas não val em nada. I ss o sabe- o Descar t es. É o úni co, t al vez, que ver dadei r ament e o sabe. Os déf emsor es da f é não o sabem. E o que el es f azem não t em, por i ss o mesmo, qual quer espéci ê de val or . 10 que é que el es f azem, na r eal i dade? Que f az, por exempl o, Mer senne? É mui t o si mpl es. Recol hem t odas as pr ovas que os homens al guma vez i nvent ar am. Pr ovam Deus por t odos os mei os: pel a l ógi ca, pel a f í si ca e pel a met af í si ca. Ref er em t odas as t r adi ções, t odos - os f act os «mar avi l hosos» que demonst r em, a, exi st ênci a de uni sobr enat ur al . Mas esses f act os e essas t r adi ções são vi st os à : l uz de um espí r i t o- cr í t i co? De manei r a nenhuma. El es ( não são apenas cr ent es: são, ai nda mai s, cr édul os. Or a, Descar t es sabe bem que o pr i mei r o dos dever es do espí r i t o é j ust ament e j ul gar , medi r , cr i t i car t odos esses **«f - aot es» e t odas essas t r adi ções. E si e o f i zer , se - os «aj ust ar ão ní vel da r azão», nada f i ca al ém de f ábul as. A r azão, com ef ei t o, não pode admi t i r o que é cont r ár i o i a el a mes ma. 64
Quant o às pr ovas l ógi cas, f í si cas e met af í si cas, t ambém não val em nada. São t odas, ou quase t odas, caducas. Por que se basei am t odas, ou quase t odas, na ant i ga l ógi ca, na ant i ga f í si ca e na ant i ga, concepção do “mo. Or a, Descar t es dest r ui u quer a ant i ga l ógi ca, quer a ant i ga f í si ca, quer a ant i ga concepção do Cosmo. Com ef ei t o, à ant i ga l ógi ca dedut i va de Ar i st ót el es, l ógi ca da cl assi f i cação e do concei t o, l ógi ca do f i ni t o, el e acaba de opor , nas suas Regr as par a a di r ecção do espí r i t o, uma l ógi ca nova, i nt ui t i va, l ógi ca da r el ação e do j uí zo, baseada na pr i mazi a i nt el ect ual do i nf i ni t o. ant i ga f í si ca, que se basei a nos dados i medi at os dos sent i dos, na nossa per cepção quot i di ana do mundo col or i do e sonor o, o ~do do senso - comum no qual vi vemos, que nunca o úl t r apassa nos s eus r aci ocí ni os abst r act i vos e que per manece em t udo necess ar i ament e l i gada às noções de qual i dade e de f or ça, est á em vi as de subst i t ui r uma f í si ca dos i dei as cl ar as, f í si ca mat emát i ca que bane do mundo r eal qual quer dado sensí vel , que del e el i mi na qual quer «f or ma», qual quer f ~ e qual quer qual i dade, e que apr esent a uma i magem ( ou uma i dei a?) nova do Uni ver so, de um, uni ver so est r i t a e uni cament e mecâni co, i magem mul t o mai s est r anha e mui t o menos cr í vel que t udo o que os f i l ósof os al guma vez puder am i nvent ar . Mui t o mai s est r anha e menos ver osí mi l . E, no ent ant o, cer t ament e ver dadei r a. 65
Quant o ao Cosmo, ao Cosmo hel éni co, o Cosmo de Ar i st ót el es, e da ~e Médi a, esse ~o j á abal ado pel a ci ênci a moder na, por Copér ni co, Gal i l eu e Kepl er , Descar t es dest r ôi - o i nt ei r ament e. Não sei se t oda a gent e se dá cont a do que est a descober t a, ou mai s exact ament e est as descober t as, por que el as f or mam um f ei xe e const i t uem j unt as o que se chamou - a r evol ução car t esi ana, si gni f i cam par a a consci ênci a do homem do seu t empo. E t al vez, si mpl esment e, do homem. O Cosmo hel éni co, o Cosmo de Ar i st ót el es e da I dade médi a, é um mundo or denado e f i ni t o. Or denado no espaço, do mai s bai xo par a o mai s al t o em f unção do val or ou da per f ei ção. Hi er ar qui a per f ei t a, em que os pr ópr i os l ugar es dos seres cor r espondem aos gr aus da sua per f ei ção. Escal a que vai da mat ér i a par a Deus. Esse Cosmo é mui t o bel o. De uma bel eza esbél t i ca que desl umbr a a al ma do Gr ego e f az di zer ao Sal mi st a que o céu e a t er r a cl amam a gl ór i a do Et er no e l ouvam o t r abal ho das suas mãos. A sabedor i a di vi na r espl andece nest e mundo, onde t udo est á no seu l ugar , onde t udo est á o mel hor possi vel . Or dem per f ei t a, hi er ar qui a per f ei t a que a ci ênci a descobr e e r evel a. Por que ness e Cosmo t odas as coi sas t êm o seu l ugar ( det er mi nado segundo o gr au de val or ) e est ão t odas ani madas de uma t endênci a par a o pr ocur ar em 66
e nel e r epousar em. Descobr i r essas t endênci as nat ur ai s, é do que a f í si ca se ocupa. Al ém di sso - par a o cr i st ão, pel o menos, se não par a o f i l ósof o - esse Cosmo, de que a t er r a f or ma o cent r o, est á t odo const r uí do par a o homem É par a el e que o Sol se l evant a e que gi r am os pl anet as - e os ~. , E é Deus, f i m úl t i mo e pr i mei r o mot or , o cume da escal a hi ~quí ca**, que i nsuf l a a vi da, o movi ment o ao Cosmo. Num t al mundo, f ei t o par a si , senão compl et ament e à ** ww medi da, o homem encont r a- se na sua mor adi a. E a esse mundo penet r ado de r azão e de bel eza, o ‘ homem admi r a- o. Pode mesmo ador á- l o. Or a esse mundo, esse Cosmo, a f í si ca de Descar t es dest r ói u- o i nt ei r ament e. Que põe el a em seu l ugar ? A bem di zer , quase nada. Ext ensão e movi ment o. Ou mat ér i a e movi ment o. Ext ensão sem l i mi t es e = f i m. Ou mat ér i a sem f i m nem l i mi t es: par a Descar t es, é est r i t ament e a mesma coi sa 10. . E movi ment o sem t om nem som, movi ment os ~ f i nal i dade nem f i m. Dei xa de haver l ugar es pr ópr i os par a as coi sas: t odos os l ugar es, com ef ei t o, se equi val em per f ei t ament e; t odas as l o Par a Descar t es, com ef ei t o, a di st I nção ent r e o espaço e a mat ér i a que o encher i a é um er r o baseado na subst i t ui ção da r azão pel a i magi nação. A ext ensão car t esi ana, geomet r i a r ei f i cada, é, ao mesmo t empo, espaço e mat ér i a. 67
, coi sas, de r est o, se equi val em i gual ment e. São t odas apenas mat ér i a e movi ment o. E a t er r a j á não est á no cent r o do mundo. Não há cent r o. Não há «mundo». O Uni ver so não est á or denado par a o homem: não est á sequer «or denado» 11. Não exi st e à escal a humana, exi st e à escal a do ~r i t o. É o mundo ver dadei r o, não o que os nossos s ent i dos i nf i éi s e enganador es nos most r am: é aquel e que a r azão pur a e cl ar a que não se pode enganar r eencont r a em si mesma. O nasci ment o da ci ênci a car t esi ana é sem dúvi da uma vi t &i a deci si va do espi r i t o. 2, t odavi a, uma vi t ór i a t r ági ca: nest e mundo i nf i ni t o da ci ênci a nova j á não há l ugar nem par a o homem nem par a Deus. Do mesmo modo, j á não é no Mundo - esse si l ênci o et er no dos espaços i nf i ni t os - mas na al ma que pr eci samos de pr ocur ar Deus. É no est udo da al ma que a f i l osof i a vai dor avant e basear - se. - A est r ut ur a do mundo não i mpl i ca qual quer f i nal i dade e não se expl i ca por um f i m. Resul t a das l ei s mat emát i cas do movi ment o. 68
3. O UNI VERSO REENCONTRADO
As pr eocupaç es met a - «no
s cas, apar ecem ast ant e t ar e no pensament o,
e Descar t es
ent ant o ( . . . ) noi ve anos passar am, di z- nos, ant es que eu t i vesse t omado al gum par t i do em r el ação às di f i cul dades que cost umam. ser di scut i das ent r e os dout os, ou começando a pr ocur ar os f undament os de uma f i l osof i a mai s cer t a que a vul gar ». O pensament o de Descar t es segue a or dem cl ássi ca: depoi s da l ógi ca, a f í si ca. Depoi s da f í si ca, a met af í si ca, que r esponde ent ão a uma dupl a exi gênci a do seu pensament o: necess i dade de cer t eza r el i gi osa, necessi dade de cer t eza ci ent i f i ca. ** Neoe~ade de cer t eza r el i gi osa. O Uni ver so car t esi ano apr esent a ao homem ur na i magem desesper ant e: Uni ver so i nt ei r ament e mecâni co, mundo compost o uni cament e de ext ensão e de movi ment o, mundo onde j á não há l ugar nem par a o homem nem pi ar a Deus. Or a, Descar t es é um homem pr of unda e si ncer ament e r el i gi oso. Ter nos uma sér i e de t ext os seus mi l i t o cur i osos. Vej amos, por exempl o, um 71
t ext o da j uvent ude, da época do quar t o aqueci do. Tr i a mi r abi l i a f eci t Domi nus, escr eve nas COGI TATI ONES PRI VATAE: Res ex ni hi l o, l i ber um ar bi t r i um et Homi nem- Deum. Poder í amos coment ar l ongament e est a pass agem, a escol ha cur i osa das coi sas mar avi l hosas f ei t as por Deus: a coi sa a par t i r do nada, o Homem- Deus e o l i vr e ar bí t r i o. Poder í amos obser var que est as t r ês coi sas mar avi l hosas, ou sej a, esses t r ês f act os i r r aci onai s ou, mai s exact ament e, supr a- r aci onai s, cont êm al guma coi sa em comum: um encont r o do i nf i ni t o e do f i ni t o. O act o cr i ador de Deus, que põe o mundo a uma di st ânci a i nf i ni t a, d' El e mesmo, vence a i nf i ni t a di st ânci a que separ a o Nada do Ser ; u Encar nação une a i nf i ni dade di vi na à f i ni t ude humana; enf i m, a l i ber dade é uma r eal i zação do i nf i ni t o no f i ni t o. . . Vej amos um t ext o da i dade madur a. À pr i ncesa El i sabet h, Descar t es escr eve ( 15- 91645) : «A pr i mei r a e a pr i nci pal [ das i dei as i nat as] é que há um Deus de quem t odas as coi sas dependem, - cuj as per f ei ções são i nf i ni t as, cuj o poder é i menso, cuj os decr et os são i nf al í vei s . . . » Not emo- l o bem: a i dei a de Deus é uma i dei a i nat a, uma i dei a que per t ence à pr ópr i a nat ur eza do homem e é seu i nami ss í vel apanági o. Com ef ei t o, segundo Descar t es poder - se- i a def i ni r o homem como: o ser que possui uma i dei a de Deus. Vej amos um t ext o qui nze anos ant er i or . Ao seu ami go Mer senne, Descar t es escr eve em 72
15 de Abr i l de 1630: «. . . j ul go que t odos aquel es a quem Deus deu o uso da r azão são obr i gados a empr egá- l o pr i nci pal ment e em t r at ar em de o conhecer e de se conhecer em a el es mesmos. Foi por aí que t r at ei de começar os meus est udos. » É Sant o Agost i nho pur o: Deum et ani mam sei r e cupi o. . . Mas Descar t es não é um si mpl es cr ent e, é um cr ent e f i l ósof o. Não se cont ent a com acr edi t ar em Deus. Com t oda a sua época, el e acha que a exi st ênci a de Deus pode e deve ser pr ovada. Or a, a f í si ca car t esi ana dest r ui u a pr ópr i a base das pr ovas t r adi ci onai s- a concepção t r adi ci onal do Cosmo hi er ár qui co. E a l ógi ca car t esi ana dest r ui u a est r ut ur a l ógi ca dest as pr ovas, baseadas t odas na i mpossi bi l i dade de uma sér i e act ual ment e i nf i ni t a 1. 2 pr eci so pr ocur ar out r a coi sa, encont r ar pr ovas novas ou ent ão r et omar mesmo al gumas pr ovas ant i gas «depoi s de as t er mos aj ust ado ao ní vel da r azão». É a i sso que Descar t es vai dedi car o seu esf or ço, est i mul ado, di z- nos, pel o f act o de «que al guns f azi am j á cor r er o boat o de que eu j á o consegui r a. Não saber i a di zer , acr escent a 1 Todas as pr ovas ar i st ot él i cas e t omi st as - a pr ova pel o pr i mei r o mot or ou pel o f i m úl t i mo, a pr ova pel as gr aus di a per f ei ção t al cor no a pr ova pel os gr aus do ser - são baseadas na pr et ensa necess i dade dê nos det er mos, quer di zer , na i mpossi bi l i dade r eal de uma sér i e **act u) aJ ni ent e infinita. 73
modest ament e - em que é que baseavam essa opi ni ão; e se cont r i buí al guma coi sa par a i sso com os meus di scur sos, deve t er si do ao conf essar aqui l o que eu i gnor ava mai s i ngenuament e do que cost umam f azer os que est udar am al guma coi sa, e t al vez t ambém ao f azer ver as r azões que t i nha par a duvi dar de mui t as coi sas que os out r os achavam cer t as, mai s do que por me gabar de al guma dout r i na». Podemos pr eci sar as i nf or mações que o Di scur so nos dá. Os boat os t ão l i sonj ei r os que cor r i am acer ca de Descar t es não er am i nt ei r ament e sem f undament o. Sem dúvi da, el e ai nda não el abor ar a a sua met af í si ca. Mas desde há al gum t empo que est á a esboçar o pr ogr ama. Met af í si ca, mai s, l i vr e, menos di scur si va que a , da escol a; met af í si ca pr eocupada sobr et udo com. , a i nt ui ção i nt el ect ual dos pr i ncí pi os; met af í si ca que pr ocur ar á Deus na al ma, t al como out r or a o t i nha f ei t o Sant o Agost i nho; e que se esf or çar á por ut i l i zar a gr ande descober t A car t esi ana da pr i mazi a i nt el ect ual do i nf i ni t o. E não é uni cament e par a não desment i r a boa opi ni ão que os ami gos t êm del e que Descar t es vai l ançar - se ao t r abal ho. Os ami gos obr i gam- no a i sso. A segui r a uma r euni ão em casa do núnci o do papa, o car deal Bagni , em que Descar t es pr onunci a uma conf er ênci a, Bér ul l e, o f undador do Gr at ór i o, i nt i ma- o f or mal ment e a col ocar - se dor avant e sob o est andar t e de Deus. Não sabemos, exact ament e, o que di ss er am Bér ul l e e Descar t es. Mas podemos supor , sem 74
, gr ande r i sco de er r o, que não se l i mi t ar am a conver sar sobr e as vant agens que a f i l osof i a nova podi a t r azer à ci ênci a e à medi ci na, t al - como no- l o cont a Baf i l et , mas t ambém, sobr e os ser vi ços que podi a pr est ar à r el i gi ão. É ver osí mi l que t enham est ado de acor do acer ca do car áct er caduco da apol l ogét i ca cor r ent e, achado que a al i ança com Ar i st ót el es f oi um desast r e e que er a pr eci so dor avant e vol t ar at r ás e, par a al ém do t omi smo e da escol ást i ca, vol t ar * Sant o Agost i nho. Descar t es si nt oni za com o t om da época: * r et or no a Sant o Agost i nho est á na or dem do di a. Depoi s do agost i ni smo da Ref or ma, de Lut er o e de Cal vi no, um gr ande movi ment o agost i ni ano cat ól i co est á em pr epar ação. Est amos em vésper as do Or at ór i o e de Por t - Royal . O par ent esco ent r e o pensament o de Descar t es e o de Sant o Agost i nho sempr e f oi not ado pel as agost i ni anos. Desde a época, de Descar t es - l embr emo- nos de Ar naul d e de Mal ebr anche - at é aos noss os di as. A oposi ção ent r e os doi s pensador es f oi - o i gual ment e. Com ef ei t o, ser i a per f ei t ament e i nexact o f azer de Descar t es um si mpl es di scí pul o de Sant o Agost i nho, o por t a- voz l ai co de Bér ul l e. Por que a f r ase de Sant o Agost i nho que ci t ei há pouco - Deum et ani mam sei r e cupi o - t er mi na - por um gr i t o: ni hi l ne ~r Ni hi l omn@no: nada mai s? Absol ut ament e nada. E a passagem da car t a de Descar t es a Mer senne, de que ci t ei o pr i ncí pi o: «j ul go que t odos aquel es a quem 75
Deus deu o uso da r azão são obr i gados a empr egá- l o pr i nci pal ment e em t r at ar em de o conhecer e de se conhecer em a el es mesmos», cont i nua: «f oi por aí que t r at ei de começar os meus est udos; e, di r - vos- ei ' que não t er i a sabi do encont r ar os f undament os da f í si ca se não os t i vesse pr ocur ado por est a vi a. » A Sant o Agost i nho bast a conhecer o seu Deus e a sua al ma. Mas i sso de manei r a nenhuma bast a a Descar t es: pr eci sa de uma f í si ca, um conheci ment o do mundo par a poder agi r e conduzi r - se na vi da, par a dar ao homem o poder de or denar e det er mi nar , l i vr ement e, a sua exi st ênci a, e é par a consegui r ar r anj ar uma que f az uma met af i si ca e se vol t a par a Deus. I ss o l eva- nos à segunda exi gênci a do pensament o car t esi ano que menci onei há pouco: necessi dade de cer t eza ci ent í f i ca. Necessi dade de f undament ar , met af i si cament e, as bases da ci ênci a nova. I st o, à pr i mei r a vi st a, pode par ecer est r anho. A ci ênci a, a ci ênci a moder na pel o menos, não é opost a à met af í si ca? Não est á el a j us- ‘ t ament e or gul hosa da sua aut onomi a e, mesmo, da sua aut ocr aci a? Não o af i r mou el a desde a sua or i gem? E Descar t es não é um dos seus cr i ador es? Or a, mui t o l onge de pr ocl amar a i ndependênci a absol ut a da ci ênci a, Descar t es ensi na- nos exact ament e o cont r ár i o. Di z- nos que a ci ênci a t em necess i dade de uma met af í si ca. E at é, o que é ai nda mai s gr ave, di z- nos que el a deve começar por est a. 76
É mai s gr ave por que com i ss o Descar t es l ançava por t er r a j ust ament e essa «or dem das ci ênci as» na qual nos di sser a não quer er t ocar . */* Com ef ei t o, não er a assi m que se pr ocedi a nas escol as: a met af í si ca er a o cor oament o - e não o i ní ci o dos est udos. Pr i mei r a em si , er a, por i sso mesmo, úl t i ma par a nós. Qual é a r azão dest a nova r evol ução car t esi ana? O desej o de i novar ? Ou o f act o de, segui ndo a or dem das r azões e não a dasmat ér i as, e sabendo «que t odas as ci ênci as vão buscar os seus pr i ncí pi os à f i l osõf i a», Descar t es ent ender dever conduzi r as suas i dei as j ust ament e segundo ess a or dem? Sem dúvi da. Por que o pensament o de Descar t es, ou - o que quer di zer a mesma coi sa - o pensament o, par a Descar t es, deve ser pr ogr essi vo e não r egr essi vo. Vai das i dei as às coi sas e não das coi sas às i dei as; vai do si mpl es ao comt pl exo; avança, ao concr et i zar se, da uni dade dos pr i ncí pi os par a a mul t i pl i ci dade das di ver si f í cações; cami nha da t eor i a par a a apl i cação, da m, et af í si , ca par a a f í si ca, da f í si ca par a a t écni ca, par a a medi ci na, par a a mor al . Não par t e, como o de Ar i st ót el es e o da egeol ást i , ca, de um di ver so e de um Uni ver so dados, par a r emont ar daí à uni dade dos pr i ncí pi os e das causas que é o seu f undament o. Par a o pensament o’ car t esi ano, o dado é j ust ament e o obj ect o si mpl es, da i nt u: i ção i nt el ect ual , não os obj ect os compl exos da sensação, 77
Mas ex st e, a m t odo * val or @
sso, uma r az o ma s pr ec sa e que me par ece que não per deu
Com ef ei t o, como é que Descar t es ef ect uou * s ua r evol ução ci ent í f i ca, bani ndo do r eal l as qual i dades, as f or mas e as f or ças, as al mas veget at i vas, as pot ênci as vi t ai s, et c. , da f í si ca medi eval , e af i r mou no mundo ( f í si co) o r ei no uni ver sal do mecani smo? Excl ui u da ci ênci a, r ecor de- se, t udo o ; que não er a «i dei a el ar a», o que quer di zer , par a el e, qual quer : i dei a «abst r act a» do sensi vel , qual quer i dei a com a sua mar ca. Só é cl ar o, quer di zer , i nt ei r ament e acessi vel ao espí r i t o, aqui l o que a i nt el i gênci a - concebe sem nenhum concur so da i magi nação e dos sent i - dos. O que, pr at i cament e, quer di zer : só é cl ar o o que é mat emát i co ou, pel o menos, mat emat i SáVel 2 Mas que di r ei t o t e- mos nós de avançar da i dei apar a a coi sa, como pr et ende a l ógi ca car t esi ana? A cl ar eza de uma - i dei a conf er e- nos esse di r ei t o? Poder i a, no f i m de cont as, t er apenas um val or subj ect i vo, e a i dei a cl ar a, cl ar a par a nós, poder i a mui t o bem não t er com a r eal - i dade, a r eal i dade t al qual é nel a mesma, senão uma r el ação mui t o l ongí nqua, ou não t er mesmo nenhuma. Sobr et udo s- e, 7 A i dei a de vi da, não sendo cl ar a e di st i nt a, não t em l ugar na ci ênci a e a pr ópr i a vi da não t em, por co- nsequênci a, l ugar pr ópr i o no uni ver so car t - esi ano. Ent r e o pensament o e a ext ensão não há nada. 78
como Descar t es no- l o af i mi a, é no seu pr ópr i o f undo que o espí r i t o a encont r a. No f i m de cont as, a cl ar eza de uma i doi a é uma coi sa, * exi st ênci a r eal do seu obj ect o é out r a 3. A c ar eza e uma e a st ngue- a par a * ~sa r azão. Mas como poder emos est ar segur os de que o ser r eal se conf or ma às s uas exi , gA- n@ci as? E se, por acaso, o r eal f osse j ust ament e obscwo, i r r aci onal , i ncompr eensí vel e i mpenet r ável par a a r azão? Or a, é em vi r t ude do pr i vi l égi o das i dei as cl ar as que Descar t es excl u@i do mundo r eal , do mundo t al como exi st e em si mesmo, i ndependent ement e de nós e da nossa r azão, qual quer qual i dade sensí vel , qual quer f oTça vf t al , qual quer f or ma nat ur al , em r esumo, t udo o que não é mecâni co, e o r eduz a não ser r nai s que ext ensão e movi ment o. Ter á esse di r ei t o? Não é uma quest ão supéf f l ua. Nem mesmo u- l t r apassada. Tr at a- se do pr obl ema do j ust o di r el t o do mãt emat i smo. Um pr obl ema que est á bem na or dem do di a. Vej amos: Descar t es ensi na- nos que, par a bem conhecer o r eal , o r eal f í si co t al como s e 11 Podemos mui t o bem t er i dei as, r n~ cl ar as, de coi sas que, no ent ant o, não exi st em, e mes~ de coi sas que não podem exi st i r . Assi m, par a não f al ar dos obj ect os da geomet r i a, dos t r i ângul os, dos cí r cuI @os e das l i nhas, não t em@os nós uma i dei a mui t o cl ar a do @movi ment o r ect i l i neo? Or a, concl ui - se daí que t ai s movi ment os exi st em, no mundo r eal ? 79
encont r a em si i mesmo, t al qual se encont r a f or a de nós, pr eci samos ant es de t udo de r ecusar qual quer cont r i bui ção e qual quer i nf or mação que nos venham, ou nos par eçam vi r , de f or a, ou sej a, qual quer cont r i bui ção e qual quer i nf or mação que nos venham da per cepção sensí vel , que só nos poder i am i ncl uzi r em er r G; que pr eci samos de f azer t ábua r asa do nosso mundo habi t ual - o senso comum, aí est á o i ni mi go - e excl ui r do r eal t udo o que, comumment e, nos par ece p@er t encer - l h, e: a cor , o cal or , e mesmo a dur eza e o peso. Par a conhecer o r eal pr eci samos de começar por f echar os ol hos, t apar as or el has, r enunci ar ao t act o; pr eci samos, pel o cont r ár i o, ‘ de nos vi r ar par a nós mesmos, e pr ovur ar , no n~o ent endi ment o, i dei as que sej am cl ar as par a el e. Assi m se encont r am os f undament os da ci ênci a nat ur al e se deocobr e a l i nguagem que a nat ur eza f al a. E é nessa l i nguagem - a da mat emát i ca- que a nat ur eza r esponder á às per gunt as que, nas suas exper i ê nci as, a ci ênci a poder á ‘ f azer - l he. Não é um bocado est r anho? E mesmo ext r emament epouco cr í vel e par adoxal ? Não é de admi r ar que nenhum ser de bom senso t enha podi do adm) I t i - 4o. Sobr et udo Ar i st ôt el es. Er a pr e! c: i so ser Deocar t es, Gaf i l eu ou Pl at ão. Decer t o nunca ni nguém pôs em dúvi da, ser i ament e, o val or e a ver dade i nt r í nsecos da m&t emát i , ca, da geomet r i a. Toda a gent e - a começar por Ar i st ót el es - sempr e admi - t i u so
o seu r i gor e a sua cer t eza. Esse r i gor e essa cer t eza i mpl i cam, no ent ant o, que as l ei s da geomet r i a sej am t ambém as do mundo f í si co? E que se deva começar a f í j si ea, quer di ze- r , o est udo da nat ur eza, pci o da geomet r i a? De manei r a nenhuma. Ar i st ót el es di z- nos mesmo: pel o cont r ár i o. O r i gor e a exact i dão da geomet r i a expl i cam- sepr ecâsament e pel o f act o de essa ci ênci a só se ocupar de ser es abst r act os, de ser es de r azão. Os cí r cul os e as r ect as não são ser es f í si cos. E o espaço eucl i di ano, es; se espaço i nf i ni t o, é@ j ust ament e um espaço i r r eal , que só exi st e no nosso espí r i t o. Do mesmo modo, par a a t r adi ção - A@i úst ót el es e a escol ást i ca - a geomet r i a não pasi sa de uma ci ênci a «abst r act a». Abst r aí da do r eal que não é nem pr eci so nem exact o, mas que é, em cont r apar t i da, r i co e chei o de t odas as qual i dades que os sent f f i os ai apr eendem. Por i f f i o, a geomet r i a não poder á nunca expl i l car o r eal . As suas l ei s não domi nam o mundo f í si co: pel o cont r ár i o, não se l he apl i cam, nem bem nem mal . E mai s mal que bem. O est ado da geomet r i a não pr ecede assi m o da f í si ca. Vem a segui r . Uma ci ênci a do t i po ar i st ot él i co, que par t e do senso comum e se f undament a na per cepção sensí vel , não t em necessi dal de de se apoi ar numa met af í s, i ) ca. Con@duz a el a, em vez de par t i r del a. Uma ci ênci a do t i po car t esdano, que post ul a o val or r eal do mat emat i smo, que cons81
t r ói uma f í si ca geomét r i ca, não pode di spensar uma met af i si ca. E t em mesmo de começar por el a. Descar t es sabi a- o. E Pl at ão, que f or a o pr i mei r o a esboçar uma ci ênci a desse t i po, sabi a- o i gual ment e. Nôs esquecêmo- l o. A nossa ci ênci a avança sem se pr eocupar mui t o com os seus pr ópr i os f undament os. O sucesso bast a- l he. At é ao di a em que uma «cr i se» - uma «cr í se de pr i ncí pi os» - l he r evel e que l he f al t a quai l i quer ooása: nomeadament e, compr eender o que f az. Or a, Descar t es é um f i l ósof o. E compr eender o que f az i mpor t a- 4he aci ma de t udo. Vai ent ão t ent ar f undament ar a sua f í si ca, a sua ‘ l ógi ca, o seu «mét odo». E par a i sso, par a poder t r abal har t r anqui l ament e na sua met af i si ca, par t e de novo ( 1629) par a a Hol anda. A met af i si ca é a ci ênci a, do que é. E t ambém do nosso conheci ment o do que é. Par a se poder const r uí - I a, e par a, f undament ar assi m a f i si ca, como ci ênci a do r eal , pr eci samos de descobr i r um pont o - pel o menos um- onde o nosso saber se apoder e do r eal ou, mel hor ai nda, um pont o onde o nosso saber , o nosso j ui zo, coi nci da com o r eal . E par a i sso é necessár i o r et omar o mét odo da dúvi da, t or ná- l o, ai nda ma; i s sever o, e mai s vi r u- l ent o, que da pr i mei r a vez. Dessa pr i mei r a vez, quando t ent ámos f azer uma : r evi são, ger &l de t odas as noss as i dei as, det i veni o- nos di ant e das «i del i as cl ar as e di s82
t i nt a. s». A mat emát i ca encont r ou f avor es aos nossos al hos. Agor a, i r emos mui t o mai s l onge. A dúvi da engl obar á a pr ópr i a mat emát i ca. Vamos pr oceder com o mai s ext r emo, com o mai s i mpí edoso r i gor : um caso, mesmo uma si mpl es possi bi l i dade de er r o, f ar - nos- á condenar t odo um domí ni o do saber . Vamos condenar os sent i dos, vi st o que os sent i dos nos enganam al l gumas vezes. E pôr de par t e, de um modo ger al , a sua pr et ensão de apr eender em, ‘ de per ceber em o r eal , vi st o que a l oucur a ( a al uci nação) e o sonho i nf i r mam. o val or ger al dest a pr et ensão. , Vamos condenar o r aci ocí ni o e a pr ópr í a i nt ui ção i nt el ect ual , - dado que por vezes nos enganamos nas adi ções, nos cUcul os e nas demonst r ações da geomet r i a. Quem nos engana uma vez, bem poder i a enganar - nos s eni pr e! E vamos r ecusar a pr et ensão das i dei as Ol ar as e di st i nt as a um val or r eal , por que é essa a quest ão que j ust ament e est á em j ogo. Vamos r et omar t odos os vel hos ar gument os, dos cépt i - cos, e mesmo i nvent ar r azões novas par a duvi dar ; pôr a hi pót ese quase mani queí st a de um espí r i t o mal i gno e poder oso que nos enganar i a sempr e e por t odo o l ado. E, not êi no- 4o bem, é vol unt ar i &ment e, l i vr ement e, que admi t i mos est a hi pót ese; é vol unt ar i ament e, l i vr ement e, que nos deci di mos a duvi dar . á o di sse, mas não é i , nút @l r epet i 4o: é por uma deci são l i vr e, é por um act o de l i ber dade que a f i l osof i a car t esi ana começa. É por o 83
homem ser l i vr e que pode di zer não à t endênci a nat ur al que o l eva a cr er no que vê e ouve; que pode r ecusar - se a segui r a i mpr essão poder osa do sensí vel ; ar r ancar - se ao domí ni o do seucor po, dos seus hábi t os, da sua nat ur eza, numa pal avr a. A oso a e Descar t es n o Pr essupõe- na e
emonst r a a
er a@ e
a vont a e
umana.
«pr ova- a» pel a sua pr ópr i a exi st ênci a. Como out r or a Di ógenes «pr ovava» o r r . vi ment o camí nhando, Por que é uni cament e por qer mos l i vr es que podemos, l i ber t ando- nos do er r o, at i ngi r - l i vr ement e- a cl ar eza supr ema do espí r i t o i nt ei r ament e r est i t uí do a si mesmo. É, par a i ss o, j ust ament e, que nos ser ve, a ascese, a negação do cept i ci smo absol ut o. Com ef ei t o, l evemos a dúvi da e a negação oépi t hea às úl t i mas consequênci as. VamGs admi t i r que um espí r i t o mal i gno e poder oso nos engana sempr e e por t odo o l ado, , ou, o que é o mesmo, que nós nos enganamos sempr e e em t odo o l ado. Mas enf i m, mesmo se eu me engano se pr e e em t odo o l ado, em t odos os meus j ui zos e em t odas as mi nhas i dei as, é absol ut ament e necess ár i o que eu, eu que penso e, por t ant o, que me engano, eu sej a ou exi st a, j ust ament e par a poder enganar - me. E, por out r o l ado, admi t i ndo mesmo que as mi nhas i l dei as sej am t odas f al sas, é absol ut ament e cer t o que eu t enho essas i dei as. 81
A cer t eza o eu sou, a c ar eza o eu penso r es st em a t o os os es or ços a dúvi da. Ei s, por t ant o, esse our o pur o que o &ei do não pode , cor r oer . O j uí zo eu sou é ver dadei r o sempr e que eu o pr onunci e; t odas as vezes, i gual ment e, que eu f aça um j ui zo, qual quer que sej a; t odas as vezes que eu duvi de ou me engane. Por que el e se encont r a i mpl i cado, ou mel hor , envcl vi do em t odos os meus j uí zos, em t odos os meus pensament os, em t odos os meus act os ou est ados de consci ênci a. O pensament o i mpi l i , , ca o ser : o eu &ou é, a consequênci a i medi &t ado. eu penso. Descar t es no- l o di z: «Penso, l ogo exi st o. » Por t ant o, penso e sou. Mas que sou eu? J ust ament e um ser que pensa, e que duvi da, e que nega. I sso bast a a Des! car t - es. Por que um ser que pensa e que duvi da é um ser i mper f ei t o e f i ni t o. E, al ém di sso, é um ser que o sabe que se sabe i mper f e@t o, e f i ni t o. Or a, como poder i a el e sabêAl o, ou sej a, per ceber - e dI ar ament e - a sua pr ópr i a f i ni t ude essenci al e a sua i mper f ei ção, se não t i vesse, em si mesmo, uma i dei a de úguma coi sa i nf i ni t a e per f ei t a, ou sej a, comoi ) oder i a el e compr eender - se a si pr ópr i o sem t er ao mesmo t empo uma i dei a de Deus? Com ef ei t o, a l ógi ca car t esi ana ensi na- nos que a i dei a púsi l t i va e pr i mei r a, a i l dei a que o espí r i t o concebe em si mesmo, não é, como j ul ga o vul l go, - e a escol ást i ca - a i dei a do f i ni t o mas, mui t o pel o cont r ár i o, a de i nf i ni t o. Não é negando a l i mí t ação do f i ni t o que o 85
espí r i t o chega à noção de não- f i ni t ude. n, pel o , cont r ár i o, ao t r azer um l i mi t e, l ogo uni a negação, à i del a da i nf i ni t ude que o espi r í t o chega à concepção do finito. O vul go dei xa- @se enganar pel a l í ngua, que conf er e um nome negat i vo a uma i dei a posi t i va ( e i nver sament e) . Mas a l í ngua engana. É ao senso comum, de r est o, que el a se di r i ge, como é t ambém o senso comum que a f or ma. Pl ar a o senso comum, e par a a i maf f i nação, o i hf i ni , t o é, sem dúvi da, i mpossí vel de apr eender . O f i ni t o, par a esses, é dado pr i mei r o. O i nf i ni t o, em cont r apar t i da, nunca o é. Mas ni sso consi st e, j ust ament e, o er r o da ant i ga l ógi ca que vi , ci a t oda a f i l osof i a ant er i or : a i gnor ânci a de um pensament o l i ber t ado dos ent r aves da i magem; a i gnor ânci a, em suma, do úni co pensament o ver dadei r o. Par a est e, par a a r azão car t esi ana, a r el ação é i nver sa: concebe o per f ei t o ant es do i mper f ei t o, o i nf i ni t o ant es do f i ni t o, a ext ensão ant es da f i gur a. . . Compr eende que a i dei a cl ar a do f i ni t o i mpl i ca e engl oba a de i nf i ni t ude. Dai se condl ui que - - - l embr emo- nos da passagem da car t a à pr i ncesa El i sabet h. que ci t ei mai s aci ma- t emos ur na i dei a cl ar a de Deus. O vul go negá- l o- á, sem dúvi da. E não est ar á compl et ament e er r ado. Não t em, com ef ei t o, i dei as cl ar as, mas apenas uma mi st ur a conf usa de i magens e de noções abst r act as. Por i sso, l i ão t em uma i dei a cl ar a, de si pr ópr i o e não pode r eoponder à per gunt a: o que é que el e é? 86
E, no ent ant o, essas i dei as, a de Deus como i a de si pr ópr i o - a da al ma - , el e t em- nas. Mas est ão obscur eci das, r ecober t as dessa camada de noções conf usas que l he «of usi cam» a r azão, desse amont oado de escór i as que a dúvi da met ódi ca t eve j ust a- ment e a t ar ef a de kl est r ui r . Quant o a nós, que passámos pel a ascese cat ár t i ca da dúvi da, sabemos que, somos e t amI bém o que somos: um ser i mper f ei t o e f i ni t o; um ser que pensa; e mesmo: um pensament o exi st ent e, um ser cuj a nat ur eza i nt ei r a é pens, ar ; um ser que t em uma i dei a ol ar a de si pr ópr i o e de Deus. I st o bast a, pel o menos par a Descar t es. Po- ‘ der á, dor avant e, demonst r ar a exi st ênci a do seu Deus i nf i ni t o e - per f ei t o e de uma al ma i nt ei r ament e espi r i t ual . Não posso est udar aqui a est r ut ur a t êmi ca e as f ont es das pr ovas car t esi anas da exi st ênci a de Deus. Fi - l o, há t empo, num l i vr o de j uvent ude 1. n mui t o, demor ado e bast ant e compl i cado. E, , de r est o, sem mui t o i nt er esse. Por que , a base r eal dessas pr ovas, e o seu sent i do pr of úndo, é mui t o si mpI es - é o pr ópr i o Descar t es qui em o di z: a consci ênci a de si i ~ca a consci ênci a de Deus. O «eu p- enso» i mpl i ca: «penso Deus». Tenho del e, por t ant o, uma i dei a. E é 4 L' I dée de Di eu et l es pr euves de son exi st ence chez Descar t es, Par i s, 1923. 87
, mesmo uma i dei a i nat a, uma i dei a sem a qual somos í mpensávei s. Di ss e- o há pouco: o homem, par a Descar t es, não é mai s que o ser que t em uma i dei a de Deus. Essa i dei a - é si mpl es , e cl ar a; a mai s cl ar a, a mai s si mpl es de t odas , as nossas i dei as. De t al modo cl axa, de t al modo ‘ l umi nosa que envol ve a pr ópi r i a exi st ênci a de Deus. Ser per f ei t o, i nf i ni t o, não pode ser conI cebi do como não sendo. E el l e, é em vi r t ude da sua i nf i ni t a per f ei ção - - , , Est a i dei a do ser per f ei t o, t ão espl êndi da e t ão r i ca, é de t al modo super i or a nós que não pode pr ovi r de nós pr ópr i os que somos f r acos, f i ni t os, i mper f ei t os. Não pode pi r ovi r úe nenhum ser f i ni t o. Não nos pode vi r senão , de - Deus G. Ei s, por t ant o, uma segunda cer t eza, uma segunda i dei a cl ar a que é post a f or a de dúvi da, cuj o obj ect o, sem qual quer dúvi da, é r eal . Deus exi st e, por que eu exi st o, eu que t enho uma i dei a de Deus. l P, mui t o si mpl es, mui t o cl ar o, e mui t o segu@r o. E, no ent ant o, ext r emami ent e di f i ci l . Por - , que par a a compr eender mos bem, a est a pr ova 5 A exi st ênci a de Deus que se depr eende da sua noção é mai s cer t a, segundo Descar t es, que a exi st ênci a do meu cor po e do mundo ext er i oi r . i O uma ver dai de t ão evi dent e, e mui t omai s cer t a que as mai s s i mpl es pr oposi ções ar i t mét i cas. 6 Não pode pr ovi r , t ambém, de nenhum ser i nt er m, edi ár i o e, a f or t i or i , do espí r i t o mal i gno e enganador . 88
, t ão si mpl es, pr eci samos ant es de t udo de pur i f i car a r az@o e t or ná- l a capaz de apr eender as i dei as do espí r i t o. Enquant o o não t i ver mos f ei t o, enquant o a nossu l uz nat ur a, 1 est i ver ai nda «of uscada» por pseudo- i dei as que pr ovêm da t r adi ção, enquant o el a est i ver at r avaneada de noções conf usas e abst r act as do sen- , si vel , enquant o segui r a l ógi ca do f i ni t o, não poder á compr eender - se a à mesma e não t er á uma i dei a cl ar a de Deus. Épor i sso que pr eci samos de passar pel a dúvi da, ver dadei r o exer cí ci o espi r i t ual . Exer cí ci o mui t o demor ado e - mui t o di f i ci l , absol ut am" t e compar ável - e mesmo anál ogo - ao do mí st i co, que pr ec*, sa- , mos de r epet i r mui t o f r equent ement e. P, só agor a, só depoás de t er demonst r ado a exi st ênci a de Deus, que est ar nos i nt ei r ament e , l i ber t os da dúvi da. E da i ncer t eza. Deus exi st e, t emos a cer t eza. Gr a, f ol el e que nos deu o ser , é del e que pr ovêm as nossas i dei as. Mas um ser per f ei t o, como Deus, não poder i a enganar - nos: as nossas i dei as ci l ar as e si mpl es são - por t ant o ver dadei r as, ou sej a, podem f undament ar j uí zos de exi st ênci a e per mí t em passar da i dei l a ao obj eot o, As nossas i dei as cl ar as e si mpl es r evel amnos o r ea, l , como el e é, como Deus o cr i ou. Est a concor dânci a ent r e o ser e a i dei a, podemos dor avant e compr eendê- l o: é de Deus que el a pr ovém. Cr i ador da i dei a e do , ser , Deus aj ust a uma ao out r o. l @ por t ant o Deus que é o gr ande gar ant e da ver dade das I dei as i nat as à - mi nha al ma, t al como do al , can. ' Ce r eal 89
dos j uí zos zos que que ne nel as base baseii o. A con conf i ança r aci onal na no nossa r azão zão nã não - ) e ba basei sei a, par a Des- car t es, senão senão naqu aquel a, - i gual ment e r aci onal onal , que - t emos de de Deus. Um at eu não poder i a t er est a , con conf i ança, ça, não poder i a est ar cer cer t o de ~, , não poder i a por t ant o f aze zerr f í si ca. ca. Quant o a nós, cer t os de de Deus eus e da da nossa r azão, azão, apoi apoi ada ada na «ver «ver adi adi da& di vi na», a», p, , Aemos reordenar as i dei as e encon encontt r ar oval oval or Pel Pel l at i vo mesmo das das qu que não são mui t o cl ar as. Mesmo das que que, vi ndo do do sen sensí vel vel , são f r ancam cament e i ndi st i nt as e con conf usas. Pod Podemos comp~nder o seu pape apel e, assi m, pÔ- l as no no seu l ugar . . A ex st nc a e Deus gar ant e o va or as i dei as cl axas e si mpl es - as i dei as de ext ext ensão ensão e de movi ovi ment ent o- pel as qu quai s começám eçámos. A f í si ca, dor dor avan avantt e, est á f undament ada. ada. E t ambém a con consci ênci a de de si . Por Por que o f act o de de eu eu t er podi odi do, compmende~ ende~e no meu ser s er - e na mi nha ess ênci a sem s em nada conhecer ai nda do mundoundoext ensã o, demonst r a- me que que o meu eu, eu, ou a mi t h- a al ma, não depe depend nde e do mundoundoext ext ensão. ensão. Não sou ext ext enso enso em mi m mesmo. Ten Teni l i o um um cor po, mas não não sou um cor po. Sou a; l go de de mui t o mai s per per f ei t o qu que o espaço espaço i nf i ni t o qu que a mi nha r azão azão pe penet r a e com compr eende: por que eu sou l i ber dade e espí spí r i t o. Or a, o esp espii r i t o na nada t em de comum com a mat ér i a, ou sej a, com a ext ext ensão ensão.. Não há nad nada a qu que o l i gue a est a. E o mundo do espaço spaço i nf i ni t o j á não nos f az medo, a par t i r de agor agor a: pel o con cont r ár i o, r evel vel a a Descar scar t es o poder i nf i ni t o do seu seu Deus. 90
E ag agor a, que r est a de de t udo i sso, ss o, do esf esf or ço sobr sobr e- humano ano de de um um gél - ão? ão? O, O, que se qui ser : t udo ou ou nada. ada. Nada ada da da ob obr a con concr et a de de Descar t es. Tud Tudb do espí espí r i t o car car t esi ano. á não não r est a gr gr and ande coi sa da da m- et af i si ca de de Descar t es e as suas suas pr ovw ovw da exi st ênci a de de De Deus t i ver ver am o mesmo de dest i no qu que as pr pr ovas ovas de de Ar i st ót el es e de de S. Tom Tomás. E, no en ent ant ant o, a gr gr and ande descobe scober t a car car t esi ana, ana, a de descobe scober t a da da pr pr i mazi a i nt el ect ual do i nf i ni t o, per manece ver ver dade adei r a. Cont i nua a ser ver ver dade que o pensament o en envol vol ve e i mpl i i ca o i nf i ni t o, con cont i nua a ser ver ver dade qu que o pensament o f i ni t o - qual quer pensament o f i ni t o- não se pod pode e ap apr eend ender nem com compr eender senã senão a par t i r de um uma ‘ i dei a i nf i ni t a. É ve ver dade qu que é l i vr e e que é aut ónomo. Nada ada con cont i nua de de pé pé da da f í si ca de de De Descar t es. Pôd Pôde escr escr @ever ver - se, há un uns vi nt e anos, anos, que a ci ênci ênci a não não segu segue o cam cami nho qu que el e nos t r açar açar a. Há uns uns vi nt e anos, anos, i sso er er a ver ver dade. Hoj e é- - o mui t o menos. Por que, sem sem dúvi da, a f í si ca act ual , a f í si ca ei nst ei ni ana não r epet e de manei r a nenhuma a f í si ca de Descar t es. Tal Tal como est a não r epr odu oduzi a a f í si ca de Pl at ão. E no ent ant o, par a a hi st ór i a, a f í si ca de Descar scar t es f oi uma desf or r a de Pl at ão. A f í sàca de de Ei Ei nst ei n, que r edu eduz o r eal eal ao geo geom mét n. * I co, é, do mesmo modo, odo, uma desf or r a de de De Descar t es: pr ossegu ssegue, e em em cer cer t a medi da r eal i za, o ve vel ho son sonho de de Descar t es e de de Pl Pl at ão, o son sonho, da r edução ção do do f í si co ao ao ge geomét r i co. co. 91
2 de r est o por uma oper oper ação ação car car t esi ana, ana, por um vi r ar - se par par a si mesma, por uma anál i se cr í t i ca dos seus seus pr pr ópr i os pr pr i ncí pi os, sub submet i dos de de novo à pr ova da dúvi da, que a ci ci ênci a pôde sai r de um i mpasse. A nossa f i s- i ca j á nã não é a de Descar t es - é mai s car t esi ana ana qu que a sua, sua, é mai s car t es- i ana ana que nunca. Or a, não não há há dúvi dúvi da de que que o mét odo odo de de Descar Descar t es, o mét odo odo das das i dei dei as cl ar as e si mpl es não não pôd pôde e t r azer ao hom homem a segur segur ança ança da da cer cer t eza que que Descar t es esper esper ava dar - 4he. Não pôde ôde r econ const r ui r em or dem t odo odo o r eal . O r eal é mai s r i co do que Descar t es j u, l gou. ou. Não é senão senão ext ext ensão ensão e movi ovi ment ent o. Não exi exi st e num pl ano. ano. É cer t o. Do mesmo modo, odo, censur censur a- se mui t as vezes aos Fr anceses anceses o seu s eu car t , esi ani ani smo e di z- se- l hes f r equent ement e que o «pr «pr econc! conc! e@i t o» de cl ar eza e de di st i nção os l eva ao er r o e os f az menospr ospr ezar as f or ças t umul t uosas, osas, obscur obscur as e pr pr of undas da da vi da. Di z- sese- l hes i gual ment e que co com a mani a da das aná anál i ses ses cr i t i r as, com com a obst obst i nação ação de t udo pôr em dúvi dúvi da, pr i vam vam o homem dos seus seus mai or es ben bens, s, da paz e da oe oer t eza. za. n absol absol ut ament ent e ver ver dade dade.. O mét odo odo de de Desc Descar ar t es é mét odo de i nqui nqui et ude ude e de esf or ço. ço. A pr ocur cur a da cl ar eza é penosa, sa, di f í ci l - e mui t o l onga, vi st o que é i nf i ni t a. E, sem sem dúvi da, ar r ui na e dest r ói as an ant i gas t r adi çõe ções, as an ant i gas cer cer t ezas, os í dol os do do nosso pe pensament o. 2 o pr eço que sepag sepaga a par a at i ngi r o ver ver dade adei r o. Si m, sem dúvi da, da, a vi vi da é mui t o mai s com92
p; l exa exa qu que um uma f ór mul a al al gébr ébr i ca. Mas, enf enf i m, devem evemos s ubmet er - nos às s uas f or ças ças pr of undas e ob obscur scur as? Ou, pel o con cont r ár i o, com compr eendê- l as, penet r á- 4as de - l uz, - de r azão zão, e êl evá- l as à @el ar eza do espí spí r i t o? Pel Pel a mi nha par par t e, j ul go qu quea i nj unção @car - t esi ana, ana, que a mensage sagem car t esi ana ana nunca f or am t ão act u&i s como hoj hoj e, Hoj e, quer di zer , numa ép época em que o pensam pensament ent o hum humano, ano, r eneg enegan ando do o seu val val or e a sua di di gni gni dade dade,, se pr ocl ama si mpl es mani ani f est ação ação do soci al , ou ai nda, si m- , pl es f unção da vi da; numa época em que num num mundo undo que que de de novo novo se t or nou' nou' i ncer ncer t o, vemos o hom homem pr ocur ocur ar a t odo odo o pr eço uma nova nova cer t eza, paga pagand ndoo- a al al egr egr ement ent e com, a sua l i ber ber dade dade,, e com a da da sua pr ópr ópr i a r azão; azão; numa época ‘ de mi t o r enascen scent e e de au aut or i dade i nf al í vei vei s, pr eci samos mai s do qui e nunca nunca de obed obedecer ecer ao pr ecei ecei t o car t es`i es` i ano ano que que nos nos i mpede pede de adm admi t i r como ver ver dade adei r o ou out r a coí coí sa qu que não não sej a o que com t oda oda a evi dênci a ve vemos sêsê- l o; e per manece anecerr f i éi s à mensag ensagem em car t esi ana ana qu que, pr ocl amand ando o val val or supr supr emo da da r azão, e da da ver dade dade,, nos nos i mpede pede que que nos nos s ubm ubmet amos a uma aut aut or i dade dade qual qual quer quer , que não não sej a a r azão e a ver ver dade. ade. 93
1 N D 1 C E 1. O MUNDO I NCERTO
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2. O COSMO DESAPARECI DO 3. O UNI VERSO REENCONTRADO
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