agustina bessa-luís
A RONDA DA NOITE romance
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CAPÍTULO I DIA DE FINADOS
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aquele ano coube a Martinho Dias Nabasco acompanhar o que restava duma família numerosa e abastada, ao cemitério da terra natal. Ainda havia muitos descendentes no estrangeiro, mas a casa em que se reuniam objectos e memórias mais presentes estava praticamente desabitada. Com o mau humor que caracteriza os jovens ao ter que prote ger publicamente os velhos, Martinho Ma rtinho deu a mão à avó para ela não tropeçar nos seixos levantados da calçada. Um mar de automóveis cobria a estrada. Uns em movimento, outros procurando um lugar mesmo diante dos portões e entradas que prometiam não ser frequentadas na manhã austera de Finados, as carrocerias brilhavam ao sol aberto. O cemitério, que Martinho conhecera ainda meio rural, com alguns jazigos de capela elevando-se sobre as campas de terra, alargara-se, apinhado de sepulturas recentes; os mármores e o granito polido davam ao campo-santo um aspecto de cozinhas bem arrumadas, alegradas por braçadas de flores. Entre a massa de crisântemos, despontavam orquídeas claras. Era um luxo, uma glória prestados aos mortos. E que mortos! Martinho admirava os rostos patéticos em caixilhos dourados e as letras também douradas nas lápides novas em folha.
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— Parece que morreram todos ao mesmo tempo — disse, ainda a segurar a mão da avó, fria e de dedos esqueléticos e bonitos. — Tem compostura e sobretudo não me faças rir. — Eu? A avó é que se ri de tudo sem compaixão. Sabe bem que sim. Como o nosso jazigo está estragado! Mas tem dignidade assim como está. — O fio da sua camisola pegou-se à balaustrada do jazigo que fora inovador no seu tempo. Era cercado por troncos fingidos de cimento, o que na época devia representar o máximo, se não de bom gosto, pelo menos de ousadia. Começava a época do betão, e o velho engenheiro, de quem Martinho mal sabia o nome, deixava ali a sua marca desafiadora. Era avô do avô, o que para Martinho vinha a dar um parentesco distante e labiríntico. Pelos retratos, via-se que era um homem elegante, no seu fato de pied- -de-poule cinzento e a barba que provavelmente lhe escondia o queixo fraco. O mesmo que Martinho herdara, um pouco fugidio, o que fazia sobressair o nariz avançado e estreito. Um nariz de judeu, e está tudo dito. Não deixava por isso de ser bonito, o jovem Martinho. Era doce como o açúcar quando queria e paciente como Cristo. Se bem que, também como Cristo, tivesse súbitas cóleras que só a avó compreendia. — Isto vai passar. É um homem e os homens são impre visíveis — dizia ela à mãe de Martinho, a sua filha Paula, uma morena de olhos soberbos, quase verdes, e que não tinham perdido ainda o brilho. A avó passara o cabo dos cinquenta anos com alguma dificuldade, e um fibroma que se desenvol vera nessa idade diminuía-a a ponto de a pôr nervosa e pronta a desfazer-se em lágrimas. Consultou em Paris um médico velho e compassivo; passou-lhe uma receita que ela aviou Praça da Ópera, indo depois comer ostras entre desenganada
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e ligeira de sentimentos. Como Proust, Martinho Dias Nabasco crescera entre duas mulheres que o amavam. Era um amor sujeito a mudanças, como tudo na vida. Nesse ano, Paula Nabasco demorou mais tempo as férias em Biarritz e não pôde ir florir a campa dos mortos, cada vez mais distante na província que fora o berço dos Nabasco e que se urbanizara até ficar irreconhecível. O que ligava Paula a Biarritz era uma velha história de família; o exílio dos Nabasco nos tempos da República e também a fortuna de que dispunham para se fazerem respeitar sem se olhar ao nome ou à origem. Duma irmandade de muitos irmãos, que mais parecia convento do que lar de proporções normais, os Nabasco tinham-se corrompido a ter poucos filhos, depois da guerra de 14, quando a vida se tornou bizarra e divertida. Ter só um filho ou um «casalinho» tornou-se um capricho da burguesia bem nascida. O tempo do avô Nabasco, o do jazigo em betão armado, fora o último da procriação natural sem o recurso ao preservativo e ao coito interrompido. Teve nove filhos, dos quais três eram deficientes mentais, de instintos matreiros e pirómanos, e assim por diante. Mas Maria Rosa Nabasco, a avó de Martinho, limitou-se a dar à luz um rapaz e uma rapariga a quem pôs o nome de Paula, nome que ainda não existia na família e que ela, a avó, achava indispensável numa genealogia católica. S. Paulo era, entre outros, o seu amigo preferido por razões que ela dificilmente abordava mas que não eram as mais canónicas. Até aos nove anos, Martinho Nabasco esteve convencido que o mundo era partilhado por pessoas inteligentes, inventi vas e criadoras. Quando se apercebeu que havia muita gente «parada», como a avó Maria Rosa dizia, isso perturbou-o. Numa família em que até os deficientes mentais eram bem servidos de massa cinzenta que dava origem a anedotas, ditos
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de espírito e calembures geniais, o facto de se perceber que aquilo não era tudo e que podia haver verdadeiras hordas de brutos e de melancólicos activos e passivos, teve grande efeito em Martinho. Até os Cunhas, que eram por tradição criados dos Nabasco, constituíam uma elite de gente apurada de gostos e de entendimento. Os Cunhas eram sete irmãos e uma irmã chamada Ana. Muito feia, ao contrário dos outros, que eram elegantes e bonitos rapazes, ela detinha o espírito mais elevado e a graça correspondente. Nunca casou e Maria Rosa chamava-a muitas vezes para lhe alegrar o coração, que era dado a súbitas apreensões, como o rei David. — Acho que somos parentes. Também eu gosto de música como remédio e não como prazer — dizia. Os Cunhas eram bons tocadores de viola e cavaquinho, sabiam cantigas completamente graciosas e cozinhavam muito bem. Durante duas gerações foram presentes na casa dos Nabasco e contribuíram para a felicidade dos dias que nem sempre eram de aproveitar. Atrás de Maria Rosa e do neto Martinho ia uma herdeira dos Cunhas e que carregava as flores do dia de finados. Simples crisântemos, novelo, brancos e redondos como nuvens brancas e redondas. A Elisa era uma mulher robusta que vestia um uniforme azul-marinho, ou o que ela fazia parecer um uniforme, com colarinho e um gilet cizento a completar. O efeito era sóbrio mas parecia uma extravagância numa época em que os costumes eram ditados pelos espaços de pronto-a-vestir. Ela orgulhava-se de não se converter aos jeans , se bem que ao preferir as saias de pregas estava a valorizar o porte de matrona. — Ainda havemos de ver o dia em que os homens usem saias. São mais cómodas e mais arejadas — dizia. Estabeleciam-se grandes discussões em volta de questões pequenas, e
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aquilo despertava o espírito e tornava-o incandescente. Na hora perto do jantar, quando se entrava na cozinha para destapar as panelas e provar os molhos, acontecia aquela variada conversa sobre palavras, hábitos e o que os explicava. Martinho já não conhecera a casa da Rua de Belomonte que tinha a cozinha e a sala de jantar no terceiro andar voltado ao rio. Ao que parecia, era uma casa mítica. Às seis horas da tarde abria-se a porta do quintal aos cães e eles subiam pelas escadas como um esquadrão da guarda. Iam para a cozinha, derrubando cadeiras, abanando as caudas como chicotes. Ganindo de alegria. Eram cães de caça; e embora não houvesse mais caçadores em casa, alimentava-se essa tradição com os setters bonitos, cor de fogo cujo pêlo luzia ao lume do fogão de lenha. Porque até muito tarde se cozinhava a lenha e se usava a lenha para os fogões de sala. Ouvia-se o crepitar das achas secas como um ruído de bom augúrio na manhã enevoada. O rio tinha ainda humores de estação, crescia no Inverno e acumulava nas margens laranjas e traves partidas; e algum cabrito morto vinha na corrente, rápido na flor das ondas já invadidas pelo mar aberto. Tudo isso Martinho não tinha conhecido. Nem a mãe dele, Paula, que se distinguia por ser dessas mulheres enclausuradas ainda, e que aprendem equitação para o caso de ir viver em grande estilo com um senhor das lezírias ou com um lorde inglês. Imaginações que se desvaneciam ao primeiro baile de debutantes, já em declínio mas ainda consultoria de casamentos. Martinho apertou, sem querer, o braço da avó ao ter diante dos olhos a pesada pedra do túmulo. Era de facto terrí vel, com as argolas de ferro enferrujadas e o musgo negro que a cobria. “Não vou deixar que a metam aqui” — pensou, desolado. E um toque de pó-de-arroz na face dela, junto à orelha esquerda, enterneceu-o como o rasto duma mulher bonita.
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“Até ao fim somos amantes uns dos outros” — pensou, triste. A educação de mulheres dera-lhe um descaramento ritual, sem nada de perverso, só amadurecido pela reflexão. Deteve-se a olhar para as campas cobertas de inscrições saudosas, de flores caras, de candeeiros vermelhos dentro dos quais uma chama curta ia sucumbindo. A morte tinha-se tornado uma vaidade mais, uma festa de anos em que só faltava o «parabéns a você» mas não a mesa abundante. — Tem frio, avó? — perguntou. — Não, só um pouco de fome. Mas, espera: não é fome, talvez não seja. A morte é excitante. Esta gente toda vai comer demais e enrolar-se na cama com peúgas e tudo. Não se devem frequentar lugares destes na minha idade. São lúbricos e quase mal afamados. Um dente dela abanava quando ela falava, e Martinho podia distinguir um ligeiro ciciar da voz que dantes não tinha. “Pronto, a velhice está a bater-lhe à porta. Não vamos pensar nisso, não quero pensar nisso. Pronto, acabou, pensamentos vagabundos!” Beijou-a, a rir-se, e notou que os cabelos dela tinham um cheiro de ferro frisado. Os cabelos. De repente as mulheres puseram-se a usar franja e Nietzsche disse que era para esconder a testa e o que ela presume: inteligência, independência de vida, sexo, gerência dos negócios e outras coisas. Por mais que olhasse para todos os lados, as mulheres não pareciam diferentes. Quer dizer: talvez se adaptassem com mais dificuldade a um destino de donas de casa e mães de cinco filhos ranhosos e impertinentes. A verdade estava à vista, a crueldade era uma forma de razão prática, mas isso sempre existira entre as mulheres e os homens também. Só uma educação muito rígida as controlava. Casavam-se por amor, mas o amor incluía tudo o que se pode imaginar como na história do Humpty Dumpty. Cascas
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de ostras e peles de raposa ou daquelas águas de Colónia estafadas cujos frascos eram sempre uma ralação pois não pertenciam a nenhum lugar: nem ao lixo nem a uma colecção, nem para encher outra vez. Paula Nabasco disse que outra vez que lhe dessem um frasco desses o mandava de volta de presente para outra pessoa. — Eu só gosto de lavanda. Mas quando fiquei grávida do Martinho enjoei a lavanda e nunca mais a pude suportar. Isto deve ter um sentido, não sei. Paula penteava os compridos cabelos pretos. Tão pretos quanto podiam ser, com reflexos metálicos. Há coisas que se lêem nos livros mas que, nem por isso, deixam de ser assim. Negro asa de corvo existia. Eram os cabelos de Paula. “Aí está uma coisa que não se desfaz depressa. O cabelo” — pensou Martinho. Pôs-se a olhar para a cabeça das pessoas que enchiam o cemitério e ficou desconcertado. Pareciam todas como as dos condenados à guilhotina ou ao machado, pontas cortadas ao acaso segundo o critério do barbeiro da prisão. Os pensamentos dele voaram noutra direcção, conduzidos por uma curiosidade que o fazia memorizar os momentos menos interessantes da vida. Coisas de que nin guém se lembrava saíam da memória como ratos dum queijo gigantesco. Era uma ideia tola mas divertida como as crianças costumam gostar. A avó apoiou-se ao gradeamento da campa e ficou um instante recolhida depois de fazer o sinal da cruz. Martinho tomou um ar compungido, se bem que com a avó não se podia ter a certeza de nada. Decerto estava a pensar em coisas completamente alheias à ocasião e que tinham que ver com necessidades básicas, pequenas compras ou contactos com as ami gas. Tinha poucas, grande parte delas tinham morrido, o que a não a afectara muito. Os velhos são para morrer e as capoeiras
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devem ser remoçadas, com o cacarejo alegre das novas frangas. Sempre o galo de plumas ruivas e brilhantes a fazia rir. — Parece um mosqueteiro com esporas e tudo! — Ela ajuntou as pregas do vestido e endireitou-se como se lhe fossem tirar uma fotografia. Odiava que a fotografassem. Tinha, como muitos povos antigos, um receio de que a fotografia lhe levasse a alma, o que não deixava de ter algum fundamento. Martinho pensou que ela tinha a pose perfeita para ser retratada, tendo aos pés, até à cintura, a massa de crisântemos brancos e enormes. Era uma mulher linda, mais ainda do que fora em nova. Paula tinha muitos ciúmes dela, passara o tempo a imitá-la, rastejando em volta dela como um cãozinho que implorasse carinhos. A avó era parca em beijos e afagos. — “Dão-me volta ao estômago, as crianças felizes dispensam-nos muito bem” — dizia. Cabelos pretos. A primeira vez que Martinho verificou o indestrutível dos cabelos foi quando abriram o túmulo de Patrícia Xavier para procederem a reparações de alvenaria. Os cabelos estavam intactos. Enrolados debaixo da cabeça reduzida a caveira completamente descarnada, pareciam uma almofada. Martinho estava presente porque o jazigo pertencia aos Nabasco e, por deferência, estando o túmulo dos Xavier ocupado pelos sucessivos mortos desta família, Patrícia ficou sepultada numa antiga capela do cemitério da Lapa, duas vezes assaltada depois da Revolução dos Cravos. Tinha as proporções majestosas dum andar de boa área, um T1, digamos assim. Velhas rendas pingavam do altar, donde os candelabros de prata tinham sido roubados; e, por terra, jaziam alfaias do culto, o suporte do Evangelho e umas galhetas com borras de vinagre. O lampadário, que viera de Veneza, também faltava. O ar era húmido, havia infiltrações e os ratos tinham roído papéis, talvez pagelas com a vida dos santos ou
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restos de bouquets amarrotados como lixo e deixados a um canto. E os cabelos. Espessos, abundantes, como tantas vezes Martinho vira em Patrícia. Ela ia jogar bridge com Maria Rosa Nabasco, às quartas-feiras. Ao todo, quatro mulheres vestidas a rigor e que calçavam luvas de suède e tomavam chá na confeitaria Oliveira, uma vez por outra, quando saíam para compras. Eram mulheres em que se sentiam os hábitos caros, que não perguntavam o preço das coisas, que se limitavam a «mandar a casa». Não estavam dependentes do orçamento e, praticamente, eram seguras do marido que tinham e da modista que as vestia. O género de mulheres de que Maria Rosa Nabasco era a última, como relíquia dum tempo acabado, tempo de privilégios que tinham a sua moda, como os chapéus e as receitas de pastelaria e os pudins sem um pó de farinha. Patrícia Xavier fora a primeira «a faltar», como se dizia. Era alta, sempre bem calçada e com meias tão finas que era preciso vesti-las com luvas, como se recomendava sempre na embalagem de origem. Não se podia imaginar que ela morrera dum aborto mal sucedido, mas foi assim. O espanto varrera as salas descobrindo o segredo mais do que era permitido. Mas, para Paula, que tinha doze anos, aquilo ficou encoberto e ela não sofreu nenhum prejuízo no seu Natal em que tudo correu normalmente; sem faltarem os presentes de Patrícia Xavier, coisas de preço como era costume ela dar, caxemiras e estojos para as unhas de pele de qualquer bicho raro, ventre de aligator ou assim. Patrícia foi sepultada na capela dos Nabasco, não porque não houvesse lugar no jazigo de família dela, mas porque se levantou uma resistência muito dura devido às causas da morte. Um aborto não era tão extraordinário e sobretudo depois dos quarenta anos as mulheres recorriam aos médicos para se recomporem dum acidente que, na verdade, tinham
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previsto mas não acautelado. Patrícia disse apenas a Maria Rosa o que tencionava fazer. — O Rogério Conceição, em oito segundos, resolve isto. Oito segundos é o recorde dele. Maria Rosa olhou para ela com inquietação. Não a censurava, mas tudo aquilo lhe parecia parte duma maldição que pesava sobre as mulheres. Alguém lhe tinha dito que o mundo só tinha salvação quando as mulheres deixassem de ter filhos e os sexos fossem um só. Era inconcebível, mas talvez se chegasse lá um dia. — Onde ouviste isso? — disse Patrícia. Aquilo parecia-lhe um atentado à sua dignidade, embora ela visse, nesse momento, a sua dignidade bastante comprometida. — Não sei. — Comigo não faças mistérios. — Não faço mistérios, não sou pessoa para isso. Foi uma coisa que li. — O que andas tu a ler, menina? Depois da Lady Chaterley julguei que já tinhas lido tudo. E agora vens-me com essa do sexo único. Fazes ideia do que estás a dizer? — Faço. Já não te metias em sarilhos nem ias parar a uma clínica onde te remexem nas entranhas como se estivessem a abrir um cofre em oito segundos! Já é ser perito de arrombamento! Fazes-me rir e chorar ao mesmo tempo. — Tu nunca choras, Maria Rosa. — Às vezes. Chorei um dia, quando tinha quatro anos e me cortaram o cabelo à rapaz. Dei gritos tamanhos que até se ouviram nos vizinhos. E não era pequena distância; nós vivíamos num chalé dentro dum jardim grande. — Não querias parecer um rapaz. — Não sei. Era uma grande pena. Nunca me senti tão infeliz depois disso. Às vezes pensava no que me fez chorar
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tanto e não encontro o motivo. Morreu-me um filho em pequenino mas não é a mesma coisa. Estás certa que sermos mulheres é a origem de todo o mal? O desejo dos homens, o prazer com que convencem o desejo, são coisas horríveis, se lhes pintarmos toda a sorte de maldades que são o excitante necessário. Já agora que falaste de Lady Chaterley, essa mulher tremenda e sem compaixão. Sem compaixão, o sexo é uma batalha vulgar, um crime como não há outro igual. — Deixas-me arrasada. Agora não sei se hei-de fazer o aborto ou não. Dizes bem: aquele burro do Lawrence não percebeu nada das mulheres. Ou só percebeu o que era para perceber por ele próprio. Não houve o primeiro Adão mas a primeira Eva. Dá-me mais uma pinga de chá. Onde compras o chá? A mamã comprava-o numa loja de modas, era chique. Nunca percebi a diferença do que é chique e do que não é chique. Disse-me o Mariano, que é professor na Universidade: “Porque é que o amarelo não há-de dizer com o rosa?” Depois as cores psicodélicas ficaram na moda. É uma questão de votos e não de gostos? O que é que faz o voto? — Tem pena de mim. Choveu todo o dia e a chauffage avariou. O voto é uma inveja compulsiva, aí tens. Passados dias Patrícia Xavier morreu e aquilo entendeu-se como um desastre. Os médicos calaram-se no diagnóstico, o que levantou mais suspeitas, tanto mais que ela tinha recorrido a uma parteira e não teve a assistência do tal experiente arrombador de cofres. Maria Rosa afastou do espírito a ideia de que a amiga se achara invulnerável e que não era possível acontecer-lhe nada. Não viu o perigo, quando o perigo nos rodeia por toda a parte e não nos dá tréguas. Há quinhentos milhões de anos éramos mais espertos, quer dizer, o crocodilo dos pântanos com o seu olho que não se sabe se está a dormir ou acordado. Talvez não dormisse nunca e os seus quatro comandos
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cerebrais estivessem sempre alerta. Sendo assim, não nos temos aperfeiçoado, mas sim a natureza cometeu erros uns atrás dos outros. Que vida! Patrícia Xavier ia impecavelmente penteada quando foi para o caixão; e parecia bem, que era o que ela mais desejava. O velho «pardieiro» dos Nabasco, como lhe chamava o doutor Horácio Assis, merecia agora o nome. O estradão que lhe dava acesso a cavalo tinha sofrido derrocadas tais que era um perigo frequentá-lo. Diferente das outras propriedades cuja casa se encontrava a meia-encosta, aquela fazia-se notar porque se erguia no cimo duma colina. A cor amarela, na tradição vienense, tinha desbotado a ponto de parecer parda. Rodeava-a uma série de planos que iam até um pátio que justificava em tempos a entrada principal e que guardava a beleza primitiva, húmida, musgosa e tranquila. E dentro, como acomodações, havia três salas consecutivas com retratos de família e canapés de jacarandá. O mais estranho era uma cópia nas dimensões naturais da Ronda da Noite de Rembrandt. Ocupava toda uma parede da sala de jantar, e os pés do capitão Banning Cocq e do seu lugar-tenente tocavam o chão. Para prevenir qualquer avaria, um dos famosos canapés protegia a parte baixa do quadro. O que durante os anos de infância de Martinho, lhe causava terror e curiosidade. Os Nabasco viveram sempre de heranças, de pecúlios de tios e tias, da chegada de arcas com enxovais intactos, de loiças, livros e mais retratos de damas rígidas e feíssimas. Nos Nabasco a beleza chegou tarde com os casamentos que já não eram com primas, mas bonitas passeantes de Carreiros, na Foz do Douro. Dantes, o casamento planeava-se desde o berço; depois passou a ser mais inspirado e insubmisso.
(...) A
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cap. II (...)
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sofrimento e imaginava possuir dons extraordinários, de transformação em pessoas prodigiosas capazes de voar e de vencer grandes perigos. Isto era, em parte, resultado dos filmes que via e que lhe provocavam uma excitação sombria. Aparentemente era obediente e amável para toda a gente, mas guardava uma soma de ideias maliciosas que um dia talvez se iriam libertar. Sobretudo o facto de haver na sala de jantar um quadro que era a cópia da Ronda da Noite de Rembrandt. Na sua vaidade mística que não admitia contradição, Maria Rosa habituara-se a não duvidar. Para ela a Ronda da Noite era autêntica e tudo o mais que pudesse assemelhar-se era pura falsificação. Bastava um só olhar para ver que Rembrandt não lhe pusera a mão. Mas o mesmo se diz do quadro que com tanta fama se pode ver no Rijksmuseum. Filipe Nabasco, não tinha uma ideia muito clara de quem era o pintor, nem isso lhe interessava. Bastava-lhe acumular na honra da família o factor duma celebridade. Entre os amigos de Martinho havia dois irmãos que não se impressionavam com A Ronda da Noite . Tiveram mesmo a ideia destruidora de apagar uma figura a que chamavam o quarto mosqueteiro. Nos dois anos em que frequentaram a casa dos Nabasco, tomaram como entretenimento fazer pequenas alterações no quadro como se faz nos enigmas «quais as diferenças». Ninguém ia descobrir, tanto mais que A Ronda da Noite , como a tela era conhecida, nunca foi observada com atenção. Mas isso ficou gravado tão profundamente em Martinho que sonhava amiúde com A Ronda da Noite , como uma cena que estivesse por detrás dum portão chapeado de ferro e impossível de mover. No entanto, ele abria-se lentamente e A Ronda da Noite ganhava vida. Como na realidade, tratava-se da preparação dum desfile onde todos
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procuravam o lugar certo, fazendo daquela agitação uma festa ou preparativos para uma festa. Os amigos de Martinho depressa cresceram e esqueceram A Ronda da Noite e os seus pequenos vandalismos. Mas Martinho não. De tempos a tempos, tinha aquele sonho, nítido e sem alterações nos seus pormenores. Constava que Filipe Nabasco tinha vendido o quadro, porque vendia tudo sem o mais pequeno remorso e mesmo sem precisar de dinheiro. A fortuna deu-lhe até ao fim da vida e Maria Rosa quando ele morreu teve algumas surpresas desagradáveis. Tinham desaparecido algumas jóias de família, dessas que não são usadas pela falta de ocasião adequada, que eram os bailes da corte, no tempo da rainha Maria Pia. Na família Nabasco houve duas açafatas cujos vestidos de gala estavam ainda guardados dentro de folhas de papel de seda. A educação que Maria Rosa (Maria Rosa Firmina, era o nome dela) dava a Martinho era ainda um resíduo desse passado que não tinha nada de austero e onde a educação literária era reputada como pedantaria. Com a viuvez da soberana D. Amélia fez-se um concerto beato entre a corte e o clero e chamaram-lhe a santa Amélia. Foi depois da implantação da República que a família se dividiu, ficando o núcleo monárquico dos Nabasco, imigrando no Brasil na época mais agitada, e tomando o rumo da esquerda os que tinham sido afectos à burguesia intelectual de inclinação republicana. No Brasil, o Nabasco desse tempo apanhou hábitos francamente vagabundos, jogava e valia-se da sua estirpe europeia para exercer influência numa sociedade opulenta e ainda ancorada nos costumes da escravatura. O hábito de presentear com ouro as criadas e que durou até aos meados do século vinte em Portugal, era, ou parecia ser, um capítulo da casa de engenho, onde as escravas se adornavam com ouro em abundância. Fosse como fosse, os Nabasco antigos trouxeram, quando vol-
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taram do exílio, uma criada preta chamada Esperança que foi lendária, pelo lado mau, na família. Maria Rosa teve a parte mais favorável da história porque se casou com o Nabasco enriquecido não se sabe porque combinações de negócios de guerra e expropriações, ou coisa pior ainda. Foi nessa altura que A Ronda da Noite entrou em casa, pela janela, ou seja, por uma varanda envidraçada das traseiras, porque pela porta não cabia. O facto de ter havido parentes que foram embaixadores em Berlim e Amsterdão dava um pouco de crédito à autenticidade de Rembrandt. Os dias mais felizes de Martinho decorreram no campo, na propriedade que ficou a chamar-se a Ronda . Porque o quadro lhe serviu de estudo antes que soubesse ler e contar. Com a saúde do avô avariada, foram para a cidade, onde havia melhores recursos médicos. E a Ronda da Noite ficou na parede, travada pelo sofá de jacarandá. O Nabasco durou pouco. Martinho lembrava-se de que o caixão deu problemas para sair de casa, que tinha uma escada de caracol íngreme como tudo. Era a Casa do Cão , assim chamada pelas suas dimensões apertadas no meio dum parque luxuriante. De qualquer modo, os amigos da casa mais acreditados em coisas de arte, afiançavam que se tratava duma falsificação. Ou, quando muito, duma obra do atelier de Rembrandt mas dum dos seus discípulos. Havia, ao que diziam, pinturas originais e outras espúrias que se reconheciam porque não tinham mãos ou estas se encontravam dobradas para vencer a dificuldade de as desenhar. A Ronda da Noite dos Nabasco sofria desse defeito ou digamos que evasiva do seu autor. Mas o quadro abandonado na casa da Ronda continuou a estar presente nos sonhos de Martinho. Adormecia, e lá estava A Ronda da Noite com os seus cavaleiros a tomar medidas
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para incorporar um cortejo mas pouco dispostos a colaborar, só a gozar a sua liberdade. Martinho acabou por tomar o sonho como uma premonição e isso aumentou a confiança nele próprio. Acreditava que lhe estava destinado um papel no mundo e que, como Cristo, nascera num lugar desconhecido para melhor formular um pensamento original. Era, aos doze anos, um rapaz de paixões e que facilmente se entregava a desvairadas crises de irrealidade ou de ambição contida. A Companhia do Capitão Frans Banning Cocq , como se deve chamar A Ronda da Noite , um homem rico e futuro presidente da câmara de Amesterdão, é uma composição atrevida duma cena que não reflecte o passado. Não é a pose de qualquer coisa que deve ser lembrada na sua imobilidade académica, mas um momento em que acção se junta com uma espécie de entusiasmo fogoso. Não é o que aconteceu que lá está, mas um acontecimento em vias de se produzir. Por isso é que, tão inesperadamente, como o símbolo da inspiração, aparece a menina luxuosamente vestida, como uma figura de procissão mas à qual não foi distribuído o seu papel. Martinho reflectiu nisto, ou seja, na Companhia do Capitão Frans Banning Cocq , como numa charada que lhe fosse proposta a ele somente. Como lhe explicou um amigo da avó, provavelmente alguém que a tinha amado quando era nova, A Ronda da Noite não significava nada de militar, mas talvez uma confraria que se prepara para se juntar em dia de festa, tendo à frente o capitão Cocq e o seu lugar-tenente, vestidos para o luxuoso retrato em proporções grandiosas. Tão grandiosas que não coube na parede da câmara de Amesterdão. Quando o capitão foi eleito presidente, ou burgomestre, quis dar ao quadro o lugar conveniente; só que não cabia. Então mandou cortar o tambor e uma parte à esquerda, sem prejuízo da cena, ao que ele julgava. As suas relações com Rembrandt,
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que era íntimo dos burgomestres e os pintava com grande respeito e sofisticação (quem paga tem direito à minúcia e até a um olhar desvanecido) favoreceram o estilo do quadro. Um estilo eufórico, próprio duma alegre parada que se prepara na melhor das intenções, simulando gente armada mas, de facto, sem movimento bélico. Martinho lembrava-se de que quando Maria Rosa punha o colar de pérolas, Bento Webster, que tinha tido numa trajectória pelas casas de vinhos, a visitava. Pelo aspecto que ele tinha, tendo já dobrado os sessenta anos, fora um elegante cavalheiro que fazia poesia e agradava às mulheres. Usava ainda luvas de camurça clara e Maria Rosa tratava-o com deferência, como se ele fosse parente da rainha de Inglaterra. O bigode loiro e a corpulência majestosa, faziam supor que fosse um filho do rei D. Carlos. Também havia a hipótese de Bento dever a paternidade ao Infante D. Afonso, a quem chamavam o arreda porque passeava em Lisboa a conduzir os seus Mercedes com mão mais inábil do que segura. De qualquer modo, Bento Webster Soares era um homem de sociedade, casado com uma senhora da província, do tempo em que a província tinha pequenas cortes lindamente servidas de jovens e de peixe assado. Ele enganou-a sempre, porque um poeta é sempre um Eros faminto de emoções novas. Cultivava a dor imaginária e a nostalgia dos emigrados, ainda que nunca tivesse saído do Porto nem isso lhe fizesse falta. Só depois dos anos cinquenta, mais precisamente depois da segunda Guerra Mundial é que as pessoas começaram a querer viajar, mais por curiosidade sexual do que por espírito de aventura. Maria Rosa, só depois de casar saiu do país e foi ao Louvre conhecer a Mona Lisa, que estava, muito vulnerável, à altura dos olhos de qualquer estudante.
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No geral, só os ricos iam para a neve, em Saint Moritz, e davam a primeira queda antes dos vinte anos. Maria Rosa, aos trinta e seis anos era o que se chama uma mulher que apetece elogiar, justamente porque não se tem a ideia de casar com ela. Era culta, polida, inteligente; e tinha muitos apaixonados, casados e solteiros, e sobretudo daqueles rapazes em vias de ficar solteirões por excesso de bom gosto e pela faculdade, que alguns têm, de antecipar as coisas, como a felicidade improvável no casamento. As mulheres costumam respeitar os incasáveis e permitem-lhes que entrem nas casas delas como se fossem maridos platónicos. Bento Webster Soares pensou em tirar uma mulher dos braços dum marido, senão por algumas horas, ao fim da tarde. O adultério tem o seu horário, como o calista e as provas na modista tinham o seu. Já não há calistas, no Porto creio que tem dois ou três; foram substituídos pelas manicuras, o que não é a mesma coisa, nem se lhe compara. — Um calista era uma arte, uma manicura é uma profissão — disse Maria Rosa, que tinha estranhos diálogos com Bento Webster. Como poeta, como homem, como tudo, ele estava fora de moda. Era destes homens de quem se tem ver gonha de ser vista a almoçar no restaurante, mas que se con vida para jantar. Fica bem à mesa e não se embaraça com os talheres. Do seu trato com ingleses, tinha uma sombria simpatia pela jardinagem; depois de regar o jardim (havia muitos jardins no Porto) vestia o smoking nem que fosse para comer uma talhada de vitela fria que já tinha três dias de frigorífico. Nunca desejara ser rico, isso pertencia a um mundo que a alma viril não habita. Detestava as mulheres muito novas e os pickles de conserva. — Ambos são legumes avariados — disse Webster. Martinho ouviu isto, tinha oito anos, e pensou que Bento
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Webster Soares era de desconfiar. Desconfiava das pessoas adultas como se fossem ladrões ou chantagistas em potência. Um dia o colar de pérolas da avó desaparecia e só ele sabia quem o tinha levado no bolso do sobretudo. O colar de pérolas que servira várias vezes como caução, quando as finanças estavam por baixo e não havia dinheiro senão para as despesas elementares. Para comprar um bonito par de pérolas cinzentas, não havia; nem para trazer para o salão o espelho de Veneza com aquela moldura de flores de cristal, não havia. O supérfluo, o que envolve o prazer sensível na sensação dum objecto belo, arrastava-os como a paixão do jogo. Os Nabasco jogavam por prazer e não por vício. De resto, tinham a ideia de que podiam suspender de repente uma vasa, levantarem-se e ir embora só porque o táxi chegara. Não era verdade mas — que importa? A verdade era uma coisa prescindível e não de todo se podia avaliar. Só os ricos sabem o valor do dinheiro, dizia o Nabasco, fumando a sua cigarrilha que lhe dava o prazer dum beijo. Como Maria Rosa odiava aquela cigarrilha! Ele fumava como se fizesse sexo, com uma lentidão mascada, uma visível audiência dada ao prazer. Nunca a beijara daquela maneira; com aquele contido ardor, o silencioso pasmo de se achar possuído. “Nem eu queria” — disse ela. E veio ao de cima um vómito, como se tomasse consciência da sua violação, qualquer coisa que a segurava à terra e punha dentro dela um insecto a que era preciso dar um nome e uma identidade. — Que querem de mim? — disse ela. A ideia de que um dia não daria à luz, nem teria prazer nem dor, agiu nela como um sedativo. Libertação do desejo e da morte. Era decerto isso que estava na Ronda da Noite . Gente que se preparava para um festejo, a sua liberdade; mas estava armada e vestida como se de antemão lhe destinassem um
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papel que não tinham escolhido. O burgomestre vestido para presidir à sessão solene com a sua faixa de gala e os sapatos de laços das grandes ocasiões; o lugar-tenente, segurando a acha com que daria sinal para a audiência começar. O chapéu com plumas brancas não podia ser mais adequado. As botas acima do joelho, as galochas a meia-perna. A casaca bordada com arabescos e os cabelos ondulados como que com ferro de frisar. E atrás dele as armas aperradas, os piques alçados, risos e exclamações. O tambor-mor, o tal que ficou mutilado porque não cabia na parede; um belo cavaleiro de gola frisada como só se frisava em Amesterdão; os cascos, as mãos toscas, a bandeira, um negro ou um gnomo que foge por entre a multidão. A criança luminosa e feliz, tão à vontade no meio dos homens que vão desfilar e não combater. De repente, tudo pode mudar e todos tomam um lugar diferente na parada. As expressões mudam, aquele que está escondido atrás dum braço estendido, adianta-se. É um espião, o que sabe qual o rumo a tomar? O burgomestre sabe alguma coisa, tem um olhar surpreendido, vai tomar a palavra. Terá tempo para isso ou é apenas um gesto teatral, ensaiado, inofensivo? Pode ser mal interpretado e o capitão Cocq está em riscos de fazer da sua Companhia um montão de cadáveres. Não está previsto e tudo está em movimento. O desfecho? A menina não conta com nenhum desfecho e tem o rosto inocente e está à vontade no meio da gente que ela conhece bem, todos familiares e que lhe prometeram um lugar importante no desfile. Nos seus sonhos, Martinho, quando tinha sete anos, gostaria de se vestir como a menina, a pequena Saskia, uma herdeira rica. Punha uma camisa da avó, do tempo em que se usavam as baby-doll , e dançava abrindo os braços, sem parar. Maria Rosa surpreendeu-o mais de uma vez e bateu-lhe. Arrependeu-se logo porque Martinho não perce( ... )
CAPÍTULO IV O QUE AS TELHAS ESCONDEM
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ara começar, as coisas passam-se normalmente. As casas são seguras, quando uma torneira pinga não se demora a consertá-la; se a gata deu à luz seis crias, afogam-se quatro; se um pobre bate à porta, como dantes fazia, dá-se uma esmola, pequena, para não se ficar sem trocos. Pede-se sempre um abatimento nas lojas, e isso funciona em todas as longitudes, tanto no Cairo como numa aldeia perto do Lago Maggiore. É uma cortesia, não equivale a outra coisa senão a uma cortesia. Os saldos são o cerimonial do comércio que dantes ocorria de maneira muito imaginativa. — Não é muito caro? — Faço um abatimento por ser para si. Um silêncio em que se trocava a linguagem do afecto; gratidão e parentesco de bairro. Depois o embrulho feito com sentimento e precaução, o fio atado em cruz e rematado com um pequeno toro de madeira, para não magoar os dedos. Maria Rosa lembrava-se disso, mas não se lembrava dos preços. Não perguntava, apenas dizia: — Mande a casa, senhor Alves. Posso vir trocar? O senhor Alves olhava para ela com ternura. Merecia um beijo aquela graça de menina, com cinta firme e pernas bem feitas. O que ele não sabia é que no Verão ela não trazia calcinhas e o vento da tarde lhe beijava as partes íntimas. Bem
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melhor do que se o senhor Alves, neto duma aristocrata, lhe aflorasse o rosto nem que fosse para retirar uma formiga. Uma formiga nos cabelos? Porque não? Tudo são bons pretextos para conviver com aquela beldade de frente e de costas, uma beldade circular. Os rapazes que estavam a trabalhar numa obra diziam uma obscenidade quando ela passava. Maria Rosa gostava e ofendia-se, as duas coisas. Era o tempo mais bonito da sua vida, cheio de doces encontros prometidos à felicidade. Gostava de rapazes de bom parecer, não só os que jogavam hóquei e que passavam ao domingo no passeio fronteiro; mas também de operários, de cabelos soltos e mal cortados, com a caixa das ferramentas e talvez um pão com queijo de bola, ou um pouco de fiambrino. Melhor do que a cama era aquele olhar trocado em que ia o desejo honesto de corromper a usura da confissão. Amavam-se em poucos segundos, deixavam-se com a satisfação de se merecerem em cinco segundos. E, contudo, ela desviava os olhos, sem dissimular a atracção. Era incontável a felicidade desses encontros. Chegava a casa, a mãe achava-a estranha. — Que fizeste? Não respondia. E Margô, a que se casou com o irmão de Maria Rosa, já tinha invadido a casa, às quatro horas, quando vinha do Instituto Inglês e descia a escada aos saltos para lhe dar as boas-vindas. Era grande, sabia línguas e o pai dela era um médico de grande nome na capital. — Onde andaste? Compraste alguma coisa? Iam merendar pão com manteiga e tinham por prémio, não sempre, uma noz de chocolate, que acabaram; já ninguém as vê nas confeitarias. Só éclairs gigantes para pobres gulosos. O sol descia, levantavam-se os estores à tardinha. E até ao jantar Maria Rosa parecia meio sonâmbula, toda metida no gozo dos encontros compadecidos, com amantes que nunca se vol-
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tavam a ver, e não respondia à eterna pergunta: — Que fizeste? Teve um período de anorexia, ficou tão definhada que lhe desapareceu o período. Chorava sem razão, chegaram a temer pela saúde dela, e o pai disse que era preciso distraí-la. Atravessava uma crise de dinheiro e na mesa isso era bem visível. Os belos rodovalhos grelhados com grãos de pimenta a eriçar-lhes a pele, já não apareciam. Nem as peças de caça, faisão ou perdiz que se vendiam gravemente com um pouco da solenidade do que é raro; como uma jóia em veludo negro. E, todavia, o pai pôs de parte a avareza que lhe raiava os olhos de sangue, quando lhe pediam para ir de férias ou dar um presente a uma amiga; punha de parte essa raiva de homem de não cumprir com o seu dever de fazer a casa farta e a mulher contente entre lençóis. Vendeu, pediu a usurários, empenhou o seu Patek-Phillipe e Maria Rosa teve rosas e anéis, o que quer dizer que tudo se preparou para a alegrar como a idade dela pedia. Dezoito anos, olhos de azeite à flor da água. Começava a comer melhor, perdoou ser tão impertinente e sofrer por coisas que não aconteciam. Perdoou alguns sonhos maliciosos, como quando uma noite acordou e viu o irmão no quarto, a olhar para ela, sem se mover. Às vezes, mesmo estando de costas, percebia aquele olhar. E o pai também, tinha dias. Ela indignava-se mas, antes disso, sabia que estava culpada, que era ela quem começava com o despudor duma inocência que é o pior pecado. Inocência que espreita como um dragão, e se esconde como o sal na neve fria. E o pai esteve prestes a arruinar-se completamente por ela, a fingir que tudo estava na maior prosperidade, mandou-a estudar para Inglaterra e conhecer pessoas, tudo. E até o
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irmão se queixou porque não teve um carro de corrida que tanto queria e não teve. — Para outra vez — disse o pai. O caso ficou arrumado. Se nesse tempo a Ronda da Noite já estivesse por perto, tinha-a negociado ao desbarato para cobrir as dívidas às quais dava nomes, como a «dentuça» ou a «movediça»: uma porque a trazia ferrada na perna, outra porque o atolava cada vez mais. Quando a Ronda da Noite foi atribuída a Filipe Nabasco, numa dessas heranças que constavam no seu cadastro de parente presente apenas na árvore geneológica, ele nem sequer a quis ver. Nem tinha muitas luzes sobre arte e dava mais atenção a um negócio de volfrâmio (onde, de resto, perdeu muito dinheiro por multas e vários danos) do que a um Museu do Louvre todo inteiro. Só o que podia comprar e vender num prazo curto que envolvesse uma conversa de café, era o que lhe interessava. A Ronda ficou enrolada como um tapete velho na parte de cima das antigas cavalariças, muito maiores do que a Casa do Cão. Filipe Nabasco, não tendo onde estender a Ronda em todo o seu tamanho (como não houve largura suficiente na câmara de Amesterdão e por isso foi mutilada), deixou-a na cavalariça onde dormia o feitor. Nessa altura Maria Rosa desviou os seus problemas íntimos para a maldição da Casa do Cão e falou na mudança. Quando a Ronda foi mostrada em toda a sua extensão (3,63m por 4,37m), fez-se um silêncio. Na cavalariça, banhada pela luz fraca da porta meio encostada, o Capitão Frans Banning Cocq, senhor de Purmerland e de Ilpendam, parecia um tanto recomposto da surpresa por ter visto o seu tenente Van Ruytenburch, vestido com tanto luxo. Para não se confundir com ele, deu um passo (de modo quase imperceptível) para diante, o que faz com que se notem os pés calçados com
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sapatos de laços, tendo à altura dos joelhos também laços abundantes. Podia estar tranquilo o capitão Cocq porque o fato de veludo preto, a faixa traçada no peito, de seda cor-de-cravo, além da luva de camurça que segura o bastão, serem prova evidente da sua categoria. Contudo, ele não deixa de ter um olhar de preocupação e procura não reparar na figura do seu tenente. Mas é difícil não reparar. Todo ele é luminoso, a nota mais luminosa da tela, se exceptuarmos a pequena, e doce, e divertida menina que está a tentar atravessar a companhia do capitão ainda desprendida da ordem de marcha, ainda entregue a uma despiciente desordem. O tenente sobressai pelas galochas de cano largo sobre as botas com joelheiras bordadas. Devem-lhe ter custado um mês de soldo, ou mais, assim como o chapéu emplumado. O nosso tenente quis fazer boa figura e não se poupou a despesas. Não é todos os dias que se posa para o mestre Rembrandt que está afogado em lutos e provavelmente em dívidas. Ele acaba a Ronda da Noite quando Saskia morre. Não será a alma de Saskia que se con verte num duende para romper caminho pelo meio da companhia do capitão? Uma criatura tenebrosa, coroada de folhas de carvalho, parece estorvar-lhe o passo. O carvalho, pela sua dureza e resistência, estava relacionado com a ideia de imortalidade. É possível que Rembrandt quisesse simbolizar na figura macabra a morte, um condutor da alma feliz e infantil de Saskia, ou da pequena Cordélia morta de pouca idade. O sentimento pagão e delirante vai impregnar a Ronda da Noite que é terminada em 1642, ano em que morre Saskia, depois da filha Cordélia; é a segunda Cordélia, a primeira morre em 1638. O estado moral e mental do pintor seria precário, e é isso que dá profundidade à Ronda da Noite . Pinta como se falasse com ele próprio, indiferente em desatinar, levado por um escrúpulo apenas quanto ao destino que continuamente lhe marca en-
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contro. Interroga-se, enquanto pinta. Os contínuos auto-retratos dizem que se preocupa consigo mesmo. É um lunático, um homem que persegue honras e uma vida de luxo e estabilidade, como qualquer judeu de Amesterdão? Não é, com certeza, um judeu. Os judeus são maus pintores, mas pode-se dizer que Rembrandt é um bom pintor? Dos seus oito discípulos, ou colaboradores, há quem pinte melhor do que ele. Mas não há quem recolha, dum só traço, aquele olhar, sempre o mesmo, que se alimenta dum vazio que há na vida, vazio da cultura e do amor, em tudo. Era este olhar que Martinho achava ser-lhe dirigido. Aos poucos sentiu-se visado pelo autor da Ronda . A última colocação do quadro, no cimo da escadaria principal e numa sala que era suposto ser o átrio, não foi o mais favorável. A Ronda ficou na penumbra e a única coisa que sobressaiu nela foi a rapariguinha e o tenente com as suas galochas novas e o ar de primeira figura, o galã da cena. Tudo o mais ficava mergulhado na sombra, como que velado por um reposteiro espesso. Pintar é para ele um ganha-pão, mas significa também um pedido de explicações. Pede à obscuridade que se abra e tome a palavra; os momentos culminantes, como a ressurreição de Lázaro, são momentos profusamente iluminados, correspondem a um desejo que sai do mais profundo da alma. A rapariguinha da Ronda que avança entre a multidão, distraída e sem orientação, parece dizer: “Segue-me e saberás porquê”. O quadro chegou a ter, para Martinho, o sentido dum livro de adivinhas. Tinha que o ler e interpretar. Escondia, em grande parte, a sua fascinação pela Ronda, a ponto de falar em vendê-la para cobrir as dívidas da casa. Mas fazia isso, como aqueles que estão perdidamente apaixonados e fingem desprendimento para não serem alvo de atenção particular e
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que, com ela, lhes seja arrancado o segredo. O melhor do amor é o segredo. A sua aparente rendição a ponto de se tornar diáfano e vulgar, serve apenas para preservar o segredo. Não é uma coisa a que se renuncie abertamente; apenas se pode misturar com outros sentimentos para não ter que o beber em estado puro, o que causaria a morte, como às vezes acontece. “Felizes os que não amam senão a sombra das coisas”, disse Martinho. Tinha subido a alta escadaria, cujos muros estavam cobertos de azulejos verdes, e respirava com dificuldade. Judite estava a falar com alguém na sala nobre, quase despojada de móveis e com um piano de cauda a marcar a importância desse lugar; embora ninguém tocasse piano, ele impunha-se, parecia pedir o seu concertista, alguém que o amasse e não apenas decifrasse os seus sons. Martinho estava perto de fazer dez anos de casado, data considerada de crise para o casal. Isso talvez explicasse os pequenos e quase teatrais empenhos que Judite mostrava em agradar-lhe: — Amo-te tanto! — dizia ela. Como Cordélia dizia ao pai, o rei Lear. Mas isso não significava que o amasse deveras. Era mais astuta do que as irmãs, apenas isso. Porque o amor, como as cenas obscuras de Rembrandt, é assim obscuro, toldado como a água escura dum lago ou dum poço muito profundo. Martinho, que ia refazendo as casas arruinadas da família, tendo, para isso, conferências com os arquitectos e mestres-de-obras, pensava que as pessoas não ocupavam na sua vida nada de comparável. “Porque é que hei-de amar as pessoas? Basta ser-lhes grato, se for caso disso, ou gratificá-las se também for caso disso. Mas amá-las é fora de questão. O amor é como se diz de Deus: “Não devemos jurar o seu santo nome em vão”, pensava ele.
A RONDA DA NOITE …cap. VI I
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se ria dele e era o que o irmão mais temia. Tinha sido educado como um príncipe da Renascença, e quando estava sentado no cadeirão de couro, à cabeceira da mesa, parecia um príncipe da Renascença ou coisa que o valha. Para nada lhe servia tanta sabedoria e o dinheiro que tinha. Porque Paula dizia constantemente, a ponto de aborrecer toda a gente lá em casa, como eram opulentos os Nabasco e como tinham seis solares vazios no Nordeste e Maria Rosa dormia com um colar que valia milhões. Era uma lenda e era uma chatice. Não era possível atribuir-lhe anedotas como aos alentejanos, que esses mesmos estavam mudados e constituíam um feudo à parte. A primeira vez em que Bernardo teve a consciência de que as coisas tinham mudado e que a frustração marcara encontro com a política, foi quando, estava ele no Chiado, começou a chover. No meio daquele trânsito de repente caótico, um carro cinzento-claro (não prateado mas só dum cinza frio) parou bem no meio da rua e um homem alto, indiferente, confiante, saiu; abriu a mala do carro, com vagar mas sem mostras de provocação, e, depois de encontrar o que queria, voltou a fechá-la. O motorista não se tinha mexido do lugar. A um sinal que Bernardo não pôde ver, o carro arrancou como se fosse entrar num cortejo e em poucos segundos desapareceu. Parecia uma imagem recortada num espaço que não lhe era atribuído; um cenário corrido sobre outro que continuou a funcionar na tarde chuvosa, bonita tarde de luzes que se acendiam demasiado cedo como por comando dum funcionário mal disposto. Foi uma cena muito breve, desses instantes que parecem roubados a outro circuito de acontecimentos sem data e sem história. Mas Bernardo teve tempo para o localizar: “São os novos feudais”.
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Vinham, sem se demorarem, da província. O seu temperamento resoluto, sem mesquinhez, feito duma memória de reinado local, não consente que lhes façam resistência, o que na política é uma dificuldade maior. Os feudais não chegam ao poder pela falta de paciência com os parceiros da capital, para com as suas manhas, palavras desditas e retomadas, alianças, semi-alianças e camaradagem de Assembleia e de pose para a fotografia. O riso com que se alivia a tensão das preocupações é partilhado com os novos feudais. Eles não frequentam cartomantes, não se fazem manejar, depilar e arredondar a barba, ou pintar o cabelo. São homens inteiros, aliados das suas mulheres que os gratificam com filhos belos e que na moldura duma porta parecem retratos de si mesmos. Odeiam a política, odeiam a globalização, os fins-de-semana, a imitação da riqueza, as unhas tratadas e os banhos de imersão. Bernardo gostaria de os frequentar e de ser recebido nas suas herdades vigiadas por guarda-costas e câmaras fotográficas. E de pretender as suas jovens que ele não saberia como tratar, porque são fogosas sem ser levianas e se destinam a criar uma família igual à sua. Tradicional na intimidade e cínica com os estranhos. João, o irmão mais novo, saiu-lhe melhor com os novos feudais. Começou por cultivar os mais velhos, falando pouco e sorrindo sobriamente com as suas piadas, a sua informação, a sua ideia de eficácia. Tornou-se um desses hóspedes bem recebidos a quem não se fazem perguntas porque não estão ali senão para ilustrar os belos dias em que se acentua o valor dal guma coisa como um convidado especial; este pode ser um ás do futebol, um ex-presidente americano, um músico de renome mas ligeiramente ultrapassado. É preciso cuidado com as novidades, os infiltrados que depois resultam serem caçadores de escândalos ou sedutores das raparigas da casa.