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Direito Comercial ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO SEBENTA
葡京法律的大学 | 2015/2016 | 我想你学得太好了!
Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016
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Desejando boa sorte, cabe-me alertar para o facto de a sebenta ter, certamente, pequenas imprecisões que, por lapso e sem intenção, nela perpassaram. Leiam criticamente, como tudo em ciência! E não dispensem a consulta dos manuais (só por si excelentes, na brilhante academicidade e cientificidade do autor, excecionais!).
Não contém:
Garantias bancárias (e é importante: tem bancário apenas); Direito dos Seguros.
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1.º - O Direito Comercial1
Aproximação; Direito privado: o Direito Comercial é definido ora como o Direito privado especial do comércio ora como o Direito dos comerciantes ou dos comerciantes e das empresas. A doutrina atual aproxima e complementa largamente essas noções, ainda que respeitando as fórmulas. Vamos decompô-las, nos seus termos. O Direito comercial é Direito privado. Integra uma área normativa dominada por vetores de igualdade e de liberdade: os diversos sujeitos apresentam-se sem poderes de autoridade e podem, em princípio, desenvolver todas as atividades que a lei não proíba. Pelo contrário: no Direito público deparamos com entidades dotadas de ius imperii as quais só podem agir quando uma lei o permita. Mais importante do que estas fórmulas tendenciais é o conjunto das valorações envolvidas que cumpre recordar: Valorações culturais, o Direito Comercial radica na tradição românica e assenta em receções sucessivas do Direito Romano. O moderno Direito comercial tem sido derivado de estatutos e práticas medievais e não do Direito Romano – numa postura não incontroversa; todavia, as suas categorias têm, no essencial, uma conceção românica, tendo sido justamente o seu tratamento, à luz dos quadros pandetísticos, que lhe assegurou sobrevivência e modernidade; Valorações teóricas, o Direito Comercial reporta-se a relações interindividuais de nível profundo; contrapõe-se, tal como o civil, ao sistema de Direito Público que se ocupa do relacionamento com o Estado e de certos esquemas dirigistas de distribuição de bens; Valorações práticas, o Direito Comercial é cultivado por privatistas, surge no prolongamento lógico de múltiplas conceções civis e é aplicado em conjunto com os mais diversos institutos comuns; Valorações significativo-ideológicas, o Direito Comercial, tal como o civil, dá corpo ao sentir profundo da sociedade em que surja. Previne intervenções arbitrárias do poder e assegura, aos particulares, um plano de livre desenvolvimento das suas personalidade. A integração do Direito Comercial no seio das disciplinas privatísticas deve ser sublinhada. Este posicionamento é muito rico em consequências: basta ver que o Direito Comercial é, em boa parte, fragmentário, tornando-se operacional apenas graças à presença permanente das regras civis. Além disso, a sua natureza privada é essencial para demarcar o Direito Comercial do Direito do Comércio Internacional e do Direito Público da Distribuição dos Bens. A natureza privada do Direito Comercial revela-se apenas a nível de sistema. Se considerarmos isoladamente algumas das suas áreas, depararemos com regras de Direito Público, regras essas que podem mesmo abranger capítulos inteiros.
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Cordeiro, António Menezes; Direito Comercial; 3.ª edição; Almedina Editores; 2012.
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Direito especial: o Direito Comercial é considerado especial. Assim se distinguiria do Direito Civil: Direito comum. A relação de especialidade ocorre quando, perante um complexo normativo que se dirija a uma generalidade de situações jurídicas, um segundo complexo, mais restrito mas mais intenso, contemple uma situação que, de outro modo, respeitaria ao primeiro, dispensando-lhe um tratamento particularmente adequado. A adequação pode resultar de normas diferenciadas que estabeleçam situações diversas ou de regras complementadoras que precisem soluções deixadas em aberto pelo Direito comum. Prosseguindo, poderemos afirmar que a especialidade é relativa: impõe-se quando, perante duas áreas normativas, seja possível estabelecer uma relação geral/especial. O Direito Comercial seria especial em relação ao civil: mas surgirá geral em relação ao Direito Bancário, ainda mais especial. A afirmação de natureza especial do Direito Mercantil permite justificar a aplicação subsidiária do Direito Civil. Também aqui teremos de observar que a relação de especialidade se obtém, apenas, a nível do sistema. O Direito Comercial apresenta-se muito heterogéneo. Citando Oetker (que retoma Canaris), podemos falar, a seu respeito, em variações sobre temas civis. Mas podemos ir mais longe: há áreas comerciais importantes que não têm, subjacente, qualquer regra civil. As próprias sociedades comerciais e os denominados grupos de sociedades apresentam regras que transcendem o Direito Civil. A especialidade resulta, então, de níveis reguladores mais gerais e, sobretudo, da própria materialidade das regras consideradas.
Direito do Comércio ou dos comerciantes: o Direito Comercial será, por fim, o Direito do Comercio ou dos comerciantes. Tecnicamente, o comércio – que engloba, em Direito, a indústria – é a atividade lucrativa da produção, distribuição e venda de bens. O termo “comércio” pode aplicar-se a qualquer dos segmentos do circuito que une produtores a consumidores finais e, ainda, às atividades conexas e acessórias. A questão de saber se estamos perante um Direito do Comércio – conceção objetiva – ou dos comerciante, depois alargados às empresas – conceção subjetiva – corresponde a uma colocação do problema considerada superada desde os anos 30 do século XX. Qualquer ramo jurídico, para mais especial, pode ser sempre configurado num sistema subjetivo: regulando o comércio, regulam-se os comerciantes. O problema em aberto é, antes, as proposições jurídico-comerciais diferenciam-se por se dirigirem a quem, em que circunstâncias e segundo que critérios? É a este nível que se repõe a contraposição entre o objetivismo (Direito do Comércio) e o subjetivismo (Direito dos Comerciantes).
Condicionamentos histórico-culturais e dogmáticos: o modo de ser do Direito Comercial e a estrutura básica da Ciência Jurídica a ele subjacente implicam um conjunto de informações históricas e comparatísticas de alguma extensão. O Direito Comercial não pode ser compreendido se não ponderarmos as suas origens, a sua evolução e o papel que, mau grado inúmeros constrangimentos, ainda hoje se lhe atribui. Adiantando elementos, podemos antecipar que o Direito Comercial moderno – mormente o português – não tem unidade dogmática. Além disso, apresenta uma fraqueza sistemática marcada. As suas relações com o Direito Civil variam imenso, consoante as áreas consignadas. Os critérios – ora objetivos, ora subjetivos – para a sua abordagem são múltiplos: dependem dos institutos em jogo. Em suma: o Direito Comercial não provém de qualquer definição lógica pré-elaborada. Como (boa) disciplina jurídico-privada, ele apresenta-se fruto de condicionamentos histórico-culturais complexos. A própria dogmática mercantil lhe sofre as consequências ainda que – ou não seria Direito! – intente, até aos confins do possível, oferecer reduções coerentes e soluções harmónicas para os problemas.
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Capítulo 1 – A Evolução do Direito Comercial 2.º - Das origens aos primeiros códigos comerciais 4 Génese e Direito Romano: o aparecimento do comércio terá, provavelmente, decorrido da própria hominização. Enquanto atividade autónoma e organizada, ele documenta-se desde a Antiguidade mais recuada, acompanhando o uso da escrita em cuja origem terá, por certo, tido papel decisivo. Logo que surgiu, o comércio teve regras: nenhuma atividade humana que implique relacionamentos estáveis pode viver sem elas. Encontramos normas comerciais na Mesopotâmia, no antigo Egipto, na Fenícia e na Palestina e na Grécia. Particularmente na Grécia, haveria mesmo um corpo separado de regras comerciais: um tanto à semelhança do moderno Direito Comercial e ao contrário do que sucederia em Roma. Tais regras visavam o tráfego marítimo e terrestre e dispunham de tribunais especializados para a sua aplicação2. A existência de um Direito Comercial em Roma dá azo a alguma controvérsia. Roma teve, na origem, relações comerciais complexas que se estabeleceram entre a Etrúria e a Magna Grécia. A existência, desde o início, de regras legitimadoras foi inevitável. E esse facto mais se terá intensificado com a expansão romana: na Península Itálica e, depois, em toda a bacia do Mediterrâneo. Sabemos que, sob o Império, foi estabelecida uma rede de estradas, entre todas as províncias, que apenas seria alcançada, de novo, no século XIX. O tráfego marítimo no Mediterrâneo era intenso, trazendo a Roma todo o tipo de produtos: desde o estanho da Britânia, ao trigo da Hispânia e de África, ao marfim e às especiarias da Ásia. Nada disto é pensável sem códigos de conduta desenvolvidos e sem instâncias capazes de dirimir convenientemente os inevitáveis litígios. Surpreendentemente tais códigos de conduta comercial não se documentam. Existe, na comercialística, uma tradição radicada em Pardessus e em Goldschmidt, segundo a qual o Direito Comercial teria sido estranho ao Direito Romano: apenas viria à luz nos burgos medievais. Tal afirmação deve ser reconduzida a certas proporções, vindo a ser abertamente contestada, nos inícios do século XXI. Para além de institutos especializados claramente comerciais, deve ter-se em boa conta que o Direito Romano, mormente após a criação dos bonae fidei iudiciae, nos finais do século II a.C., justamente em obediência às necessidades do comércio, dotou-se de contratos consensuais, flexíveis, equilibrados e acessíveis a cives e a peregrini. A essa luz, poderemos afirmar que todo o Direito Romano, designadamente no campo das obrigações e dos contratos, era Direito Comercial. Formou-se por oposição ao velho ius ciuile, consubstanciado nas legis actiones e inadaptável ao comércio, pela sua rigidez e pelo seu formalismo. Suscita dúvidas a afirmação, patente em diversos autores, de que o espírito do Direito Romano, de base igualitária, não se coadunaria com corpos de regras diferenciadas, para 2
Demonstrada por Ugo Enrico Paoli, L’autonomia del diritto commerciale nela Grecia classica, RDComm XXXIII (1935) I, 36-45; na Grécia clássica, o Direito da polis aplicar-se-ia apenas nas relações entre cidadãos; para as relações mercantis, desenvolvidas fora do polis entre cidadãos e estrangeiros, surgiram normas consuetudinárias particularmente adaptadas, a aplicar por tribunais especializados; com o tempo, o Direito comercial exerceu um papel de mutação no Direito interno da polis.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 certas categorias de cidadãos. Numa sociedade esclavagista, tal afirmação parece pouco rigorosa. De facto, exigências particulares do comércio, como certas presunções de solidariedade, como a onerosidade das relações comerciais, como os juros (foenus) e como a simplificação do processo eram contempladas no Direito Romano. Além disso, certas categorias mais delicadas como a dos argentarii (banqueiros) ou determinadas áreas mais sensíveis, como as do tráfego marítimo ou do controlo e segurança das transações tinham regras especiais. O Direito Romano facultou-nos institutos a desenvolver o tráfego comercial e a profissão de comerciante. Tais institutos não foram articulados em sistema uma vez que o próprio Direito Romano não era sistemático. Não reside aí, porém, nenhuma particularidade adversa ao Direito Comercial. Finalmente: o Direito Romano deixou-nos uma ciência – a Ciência do Direito – que tornaria possível, muito mais tarde, a articulação de um verdadeiro Direito Comercial.
Do ius mercatorum às leis comerciais modernas: o Direito Comercial terá assumido uma configuração mais característica nas cidades medievais, especialmente em Itália. O antigo comércio mediterrâneo nunca terá desaparecido por completo. Mas foi drasticamente reduzido: a feudalização do Império, as invasões e, por fim, a vaga islâmica isolaram o Ocidente, dando azo a uma economia de tipo fechado. A partir do século XI, uma certa estabilização militar e a subsistência do Império de Bizâncio propiciaram em Itália, o aparecimento e o desenvolvimento do comércio. Os mercadores, por via consuetudinária ou através dos seus organismos, criaram e aperfeiçoaram normas próprias, para reger a sua profissão e os seus interesses. São particularmente referidos estatutos de Génova, de Florença e de Veneza, as guildas do Norte da Europa e o Consolat del Mar no Direito Marítimo Catalão. A necessidade e o êxito do ius mercatorum não é hoje explicada com recurso à (mera) luta de classes. Cumpre recordar que o Direito Romano, retomado após a formação das universidades, não era já o complexo maneável do praetor e dos iurisprudentes. Surgia, antes, como um conjunto muito complexo de regras, de conhecimento e interpretação difíceis. O Direito Romano da receção não tinha – pelo menos logo nos séculos XIII e XIV – condições para reger a vida comercial. Houve que fixar regras: algumas mais não faziam do que retomar proposições romanas, como as que impunham o respeito pela boa-fé e pela palavra dada; outras, como as referentes às aquisições a non domino, correspondem a novas necessidades e económico-sociais. Torna-se importante reter os esquemas histórico-culturais que permitiram, ao ius mercatorum, surgir nos Estados modernos3. Em primeira linha, ele foi incluído nas fontes doutrinárias, através de uma adequada integração nos quadros semânticos. Chegou-se, assim, a um Direito “comum” europeu comercial, assente numa crescente Ciência do Direito Comercial. Importantes tratadistas permitiram o acolhimento do Direito Comercial nas doutrinas nacionais. Decisiva seria, porém, a recuperação que, dos estatutos e regras hanseáticas, fizeram os grandes Estados territoriais dos séculos XVII e XVIII. Adotando-os e aperfeiçoando-os, os Estados lograram preservar o fundo sócio-cultural que o ius mercatorum representava, evitando a sua diluição no Direito Comum. Foi, designadamente, o que sucedeu em França através das Ordonnance du Commerce (1673) e Ordonnance de la Marine (1681). Estes importantes diplomas, preparados sob as ordens de Colbert por Jacques Savary (1622 – 1690), comerciante de Paris, acolheram muitas das regras estatutárias de origem italiana e neerlandesa. Além disso, eles vieram uniformizar, em todo o Reino, o Direito Comercial e isso numa altura em que o Direito Civil, particularmente diferenciado entre o Norte, costumeiro e o Sul, de Direito escrito, apresentava uma feição caleidoscópica. Foram justamente 3
Estados modernos – tal como leis modernas – não se confundem com Estados contemporâneos, recorde-se.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 estas leis comerciais dos Estados modernos, com um relevo especial para as ordenanças de Luís XIV, que permitiram conservar, como corpo autónomo, o ius mercatorum medieval. Os juristas mantiveram o hábito de lidar, de modo separado, com o Direito Civil e o Direito Comercial. Preservou-se a cultura comercialística, dando-lhe uma base moderna: o poder soberano do Estado. Em Inglaterra, onde tais leis não surgiram, o Direito Comercial definhou e acabou por desaparecer, integrado na Common Law, no século XVIII.
O Code du Commerce de 1807; influência: a obra legislativa de Napoleão alargou-se ao Direito Comercial: trata-se de uma orientação que assegurou a sua sobrevivência, até hoje, nos diversos ordenamentos do Continente. O Code du Commerce foi aprovado e promulgado em 1807. Materialmente, o Code du Commerce acolheu as Ordonnace de Colbert tendo, nessa medida, sido relativamente pouco inovador4. Aquando da sua preparação, ainda foi sondada a hipótese de incluir a matéria comercial no Código Civil. Todavia, prevaleceu o hábito, então já radicado nos juristas franceses, de trabalhar em separado com a matéria comercial: justamente os códigos colbertianos. Na grande viragem que representou a codificação napoleónia, esta opção preservadora de um fenómeno tipicamente francês permitiu, até hoje, a sobrevivência do Direito Comercial, como realidade autónoma. Recorde-se que, pela mesma altura e na Inglaterra, campeã do comércio da época, o Direito Comercial perdia a sua autonomia. O Código de comércio francês beneficiou de ter sido precedido pelo Código Civil, de 1805. Pôde simplificar a matéria, atendo-se às questões mais diretamente comerciais. Ele não tem sido considerado uma grande obra, ao contrário do Código Civil. Elaborado de modo apressado, ele ressentir-seia, ainda, de ter precedido a revolução industrial: esta exigiria quadros jurídicos bem mais flexívei. De todo o modo e formalmente, ainda hoje, o Código se mantém em vigor; todavia, dos seus iniciais 648 artigos, apenas pouco mais de 100 não foram revogados; e ainda desses, somente 33 subsistiam, em 1994, na sua redação original. Em 2000 a Ordenança veio introduzir, no Código de Comércio, diversa legislação, como relevo para o Código das Sociedades de 1966: através de uma renumeração de preceitos. O Código de Comércio daqui resultante foi objeto de diversas críticas. Designadamente: a) Não tem uma conceção lógica de comércio, seja ela objetiva ou subjetiva; b) Mistura matérias comerciais e não-comerciais; c) Consagra desenvolvimentos amplos a profissionais cujas atividades são civis. Depois da recompilação de 2000, sucederam-se reformas e alterações. O Direito Comercial chegava ao século XIX como o Direito dos Comerciantes. A tradição anterior tinha uma base nitidamente pessoal, atribuindo-lhes jurisdição própria. A Revolução Francesa não podia contemporizar com esse tipo de privilégio. Mas como a autonomia do Direito Comercial era vivida enquanto dado ontologicamente irrecusável, houve que remodelar: a competência dos tribunais de comércio seria ditada não pela qualidade das partes, mas pelo facto que dê azo ao litígio. Resultou daí a adoção do sistema dito objetivo: o Code visava os atos de comércio, indicando depois, num sistema fechado, que atos seriam esses, para efeitos de jurisdição
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O código de Napoleão tem sido criticado: seria mesmo o menos perfeitos dos códigos napoleónicos; efetivamente, houve uma certa precipitação no seu aprontamento: Napoleão pretendeu enfrentar uma onda de falências, provocada pela guerra com a Inglaterra.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 comercial5. E os próprios comerciantes vinham definidos por referência aos atos de comércio. Segundo o artigo 1/1, do Code du Commerce: «São comerciantes aqueles que exercem atos de comércio e disso fazem a sua profissão habitual». A objetivação do sistema comercial tinha, implícitos, os germes da sua diluição, no Direito privado. Efetivamente, a especialidade de um ato mercantil ou de um contrato comercial, quando postos à disposição de qualquer interessado, não é superior à de múltiplos contratos altamente diferenciados e que ninguém iria retirar do Direito Civil. Todavia, o Direito Comercial francês sobreviveu. Desde logo: mau grado o teor geral acima relatado, ele não é inteiramente objetivo. Integra um status de comerciante, com regras específicas e que interferem, depois, no regime dos atos objetivos. Particularmente importante era, a esse propósito, a existência de uma jurisdição especial para os comerciantes. Mas sobretudo: a mera existência de um Código de Comércio, firme na longa pré elaboração que o antecedeu, com relevo para os códigos colbertianos, manteve uma cultura comercialística que prolongaria, até hoje, como autónomo, o Direito Comercial. A codificação comercial francesa implicou, ainda, uma outra opção de fundo: optou pela natureza privada da regulação do comércio. Teria sido possível um modelo alternativo: uma série de deveres de tipo público, dimanados pelas corporações ou pelo Estado, dariam o recorte da atuação comercial. O Antigo Regime apontaria nesse sentido. A opção decidida pelo privatismo foi, então, realizada. Pensamos que ela seria crucial, na subsequente evolução das sociedades ocidentais. O Código de Comércio francês teve uma influência marcada, nos diversos países. Curiosamente, essa influência precedeu a do próprio Código Civil: vingou a ideia de que regras claras e simples tinham um papel determinante no desenvolvimento do comércio e da indústria. Ou, pelo menos: seriam de mais fácil conceção. De entre os códigos comerciais imediatamente influenciados pelo Code du Commerce francês conta-se, logo, o primeiro Código de Comércio espanhol, de 1829. Trata-se de um diploma sensivelmente mais extenso do que o Código do Comércio francês, alcançando os 1219 artigos. O que bem se compreende: faltava, na altura e em Espanha, um Código Civil: o legislador comercial era obrigado a suprir essa falta. Também o Código de Comércio holandês (de 1838) se inscreve neste âmbito. Muito significativa foi, ainda, a influência do Código de Comércio francês em Itália6. Desde logo, em diversas regiões particularmente dominadas por Napoleão, a legislação francesa foi posta em vigor. Entre as subsequentes iniciativas italianas, cumpre referir o Código de Comércio para os Estados Sardos ou Código de Comércio de Albertino, de 1842. Considerado como dos mais significativos códigos pré unitários, o Código Albertino, com 723 artigos, seguia a ordenação do Code du Commerce francês. Após a unificação, surgiu, em 1865, o primeiro Código de Comércio italiano. Moldado sobre o Código Albertino – e, assim, fortemente aparentado ao modelo francês. Temos, de novo, o modelo francês. O diploma foi, todavia, enriquecido com elementos mais atualizados e, designadamente, com leis francesas entretanto surgidas. Verificaremos adiante como o Código de Comércio francês teve, também, uma particular influência em Portugal. Sem prejuízo pela existência de uma tradição nacional, que foi respeitada e por uma certa elaboração dos nossos juristas, o Código Francês teve um papel especial no aprontamento, por Ferreira Borges, do nosso primeiro Código Comercial, de 1833.
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Segundo Pirovano, Introduction critique cit., 226-227, o Código disfarçou a sua verdadeira intenção: a de tratar os comerciantes. 6 Perdeu-se, assim, e de certa forma, a conexão com a comercialística italiana dos séculos XVI e XVII.
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A evolução alemã e o Código Geral de 1861: a codificação comercial francesa foi possibilitada pela centralização derivada da Revolução e do Império. No mesmo período, na Alemanha, a fragmentação política dificultava iniciativas codificadoras gerais. A forte capacidade produtiva alemã obrigou a doutrina e a jurisprudência a transcender as carências legislativas. Algumas iniciativas parcelares tiveram importância. Assim, a Lei Geral dos Estados Prussianos – ALR -, de 1794, continha regras de Direito Comercial, considerando-o um Direito especial para comerciantes7. Tratava-se de uma conceção subjetiva, diversa da que, em 1807, seria adotada pelo Code francês. O ALR tinha, ainda, subjacente, uma ideia de tratamento alargado do Direito; o Código Civil austríaco de 1811, pelo contrário, ocupar-se-ia, apenas, do Direito Civil. Durante a primeira metade do século XIX, o aperfeiçoamento do Direito Comercial, que não podia, perante a industrialização nascente, aguardar pela unificação política, ficou entregue aos juristas e aos tribunais. Necessidades comerciais prementes levaram a que, logo em 1815, as quatro cidades livres do Ocidente alemão – Lubeque, Hamburgo, Bremem e Francoforte – estabelecessem, com sede em Lubeque, um tribunal superior de apelação comercial, com jurisdição sobre os tribunais comerciais das cidades em causa: o OAG Lübeck. Este Tribunal superior foi obrigado a decidir as mais delicadas questões comerciais, sem apoio em leis modernas. Perante isso, baseava-se ora no Corpus Iuris Civiles, ora na doutrina, ora em diplomas estrangeiros, ora nos usos comerciais, ora, finalmente, na boa fé. A jurisprudência do OAG Lübeck teve a maior importância no Direito Comercial contemporâneo. Desde logo, ela manteve viva a ideia de uma autonomia do Direito Comercial, assente em valores específicos e numa cultura própria. De seguida, graças às suas decisões, que se encontram publicadas, ela foi sedimentando soluções depois acolhidas aquando da realização de codificações gerais. As tentativas de unificação legislativa alemã principiaram pelo domínio comercial. O primeiro passo ocorreu no domínio dos títulos de crédito: a convite da Prússia, teve lugar, em Leipzig, uma conferência cuja comissão preparou um projeto de Lei Geral Almeã Cambiária – ADWO. Este projeto chegou a ser aprovado como lei em 1848, aquando do Congresso Nacional de Francoforte; todavia, o fracasso da iniciativa apenas permitiu que, subsequentemente, os diversos Estados alemães a fossem adotando, através de leis próprias. O Governo provisório de 1848, pró unitário, tentou também a unificação do Direito Comercial e Marítimo. Foi designada uma comissão cujos trabalhos foram interrompidos pela queda do regime. A iniciativa foi retomada, noutros moldes, e 1857, com a conferência de Nuremberga. Após várias vicissitudes, acabaria por ser aprovado, pelo Congresso – que não tinha poderes legislativos elaborando, tão só, recomendações – o Código Comercial Geral Almeão – ADHGB – de 1862. A matéria tem um tipo de arrumação que dá já conta da importância relativa que as matérias iriam assumir, no futuro. O ADHGB introduz a disciplina regulativa em termos diretos e que fazem apelo, desde logo, às origens do Direito Comercial e aos seus antecedentes imediatos, no pensamento da jurisprudência alemã. Segundo o seu artigo 1.º, «Nas questões comerciais aplicam-se, sempre que este Código não contenha qualquer disposição, os usos do comércio e, na sua insuficiência, o Direito Civil geral».
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Segundo o seu §475, «É considerado comerciante aquele que prossiga a sua principal atividade través do comércio com mercadorias ou valores».
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Prenunciando determinadas evoluções subsequentes, o ADHGB adotou um sistema misto, objetivo e subjetivo. Ele parte, no seu artigo 4.º, do conceito de comerciante, um tanto ao jeito do ALR: postula, para ele, regras especiais. Simplesmente, nos seus artigos 271.º e 307.º8, ele considera comerciais determinadas situações a título puramente objetivo, e portanto: podendo as respetivas e comerciais regras aplicar-se a não comerciantes. O ADHGB padeceu, ainda, na falta de um Código Civil. Compreende, por isso, inúmeras regras civis, cuja ausência, na época, ele teve de suprir. O movimento tendente à unificação do Direito Comercial alemão prosseguiu. Muito importante foi a entrada em funções, em 1869, do Tribunal Comercial Superior da União – BOHG – em Leipzig. Com a proclamação, por Bismarck e na sequência da vitória sobre a França, na Guerra de 1870-71, do Segundo Império, o BOHG foi convertido no Tribunal Comercial Superior do Império, o ROHG, em 1871. A manutenção – ainda que apenas por algum tempo9 – destes tribunais supremos de competência comercial foi importante, para a preservação da autonomia da disciplina. A experiência alemã e a sua evolução, ao longo da primeira parte do século XIX, documentam raízes histórico-culturais do Direito Comercial, sedimentadas em moldes diversos dos da experiência francesa. Enquanto, nesta, o Direito Comercial alcançou uma identidade apoiado na autoridade do Estado e, mediante, na cultura dos juristas, na Alemanha, esta jogou em primeira linha. A ausência de codificações com poder legislativo foi suprida pelos cientistas do Direito e por tribunais livremente organizados. Além disso, a codificação comercial antecedeu largamente a civil, ao contrário da experiência napoleónica10. No fundo, poder-se-ia proclamar que a cultura dos juristas está sempre subjacente à autonomia comercial: em França como na Alemanha. Neste último caso, todavia, o fenómeno é mais marcado, tendo tido consequências no desenvolvimento subsequente das disciplinas comerciais. Mas a existência de leis nunca é indiferente. O próprio ADHGB teve um papel de relevo: permitiu cristalizar uma cultura difusa, dando azo ao aparecimento dos primeiros grandes tratados comerciais. O ADHGB foi muitas vezes criticado nalgumas das suas soluções. Ele foi particularmente tímido no capítulo das sociedades comerciais, mantendo a exigência da concessão estadual da personalidade jurídica para as anónimas. Não houve, de facto, condições políticas para adotar soluções avançadas. Em moldes científicos, o ADHGB foi decisivo, orientando toda a evolução subsequente. Paralelamente, mantiveram-se muito ativas uma doutrina e uma jurisprudência que, desde cedo, trabalharam o Direito Comercial em termos universalistas.
3.º As codificações tardias e a unificação do Direito privado
As codificações oitocentistas tardias: após a primeira vaga de códigos comerciais do século XIX, seguiu-se uma segunda leva, menos pioneira e mais elaborada, a que chamaremos codificações oitocentistas tardias. Temos em mente, desde logo, o Código Comercial italiano de 1882. Assente numa doutrina comercial elaborada, entretanto surgida, o segundo Código Comercial italiano foi preparado com cautela. Para além, naturalmente, do seu antecessor, de 8
O artigo 271.º enumera negócios comerciais; o artigo 307.º alarga determinadas regras a não comerciantes. 9 A competência do ROHG foi transferida para o Reichsgeriht – RG. 10 Recorde-se que o BGB alemão só surgiu em 1896: quase quarenta anos depois do Código Geral de 1861.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 1865, cuja estrutura geral conservou, o Código Comercial italiano de 1882 atendeu ao AGHGB e à forte doutrina alemã, dele decorrente. O Código de Comércio italiano de 1882 desenvolveu a matéria com mais cuidado, designadamente na área dos contratos comerciais. Foram tratados negócios antes ausentes, como o reporte, as sociedades cooperativas, o cheque, a contra corrente, o mandato comercial, o seguro terrestre e os depósitos em armazéns gerais, entre outros. Além disso, foram aperfeiçoadas figuras já inseridas no Código de 1865, com relevo para as obrigações comercias em geral, a compra e venda, a sociedade, os títulos de câmbio, a comissão, o transporte e a falência. Um tanto na mesma linha, podemos referir o Código Espanhol de 1885. Deve notar-se que o Código de Comércio espanhol teve influência, em diversos aspetos, no Código Veiga Beirão. O segundo Código Comercial português ou Código Veiga Beirão de 1888 e ainda em vigor, surgiu neste ensejo. O século XIX fechou da melhor maneira com o Código Comercial alemão (HGB) de 1897, aprovado para entrar em vigor com o BGB, em 1900. Ambos os diplomas foram preparados em paralelo e com o tempo, tendo-se ainda em conta, particularmente nas sociedades, a dinâmica adveniente da industrialização. O HGB pretendeu adequar a legislação comercial ao novo Direito privado potenciado pelo BGB. As múltiplas disposições civis, que o ADHGB de 1861 fora obrigado a conter, tornaram-se supérfluas, podendo ser eliminadas. Na contraposição entre o sistema objetivo e subjetivo, o HGB optou, em linhas gerais, pelo segundo modelo: fixou um “Direito de comerciantes”, livre já dos pruridos pós revolucionários franceses. Os diversos contratos, precisamente pelo cotejo, agora possível, com as figuras civis, adquiriram um perfil mais claro e completo. Múltiplos aperfeiçoamentos ditados pela doutrina e pela jurisprudência fizeram a sua aparição. Particularmente importantes, na sua preparação, foram as obras surgidas à sombra do ADHGB, onde avultam nomes como Cosack, Goldschmidt e Thöl. Aquando da preparação do BGB e do HGB, a manutenção do Direito Comercial como disciplina autónoma foi ponderada. A figura de Goldschmidt, bem como, naturalmente, toda a evolução anterior, foram decisivas, nessa conservação. Ela exigiu, contudo, a adoção de um esquema subjetivo: de outra forma, as figuras comerciais não seriam algo de especial, paralelo ao Direito Civil mas, antes, figuras próprias, a classificar dentro do Direito privado. Anote-se, por fim, que o HGB, mau grado muitas e profundas alterações, sobretudo no domínio das sociedades, continua em vigor. As codificações oitocentistas tardias surgiram como o ponto alto do Direito mercantil, enquanto disciplina jurídica privada especial. De certo modo, elas pretenderam justamente cristalizar esse tipo de entendimento. E assim, assistimos, nos vários códigos, à duplicação de diversas figuras: contratos como a compra e venda, o depósito ou o mandato, como exemplos, regulados na lei civil, recebem agora, nos códigos mercantis, versões especiais. É evidente que isso só é possível com um sistema subjetivo ou misto: donde a aparente recaída no que se poderia chamar um Direito de classe e que atingiu a sua manifestação máxima no HGB. A base dogmática da autonomia subjetiva do Direito Comercial é frágil. Além disso, ela vem contundir com princípios constituintes do Direito privado moderno e aos quais, quase um século antes, os juristas de Napoleão já haviam sido sensíveis. O Direito comercial aparentava uma fraqueza que se iria traduzir, no século XX, em movimentos integracionistas.
Institutos comerciais sensíveis; evolução científica: antes de analisar a evolução do Direito Comercial na primeira metade do século XX, cumpre relatar alguns institutos comerciais sensíveis, isto é: institutos que, ao longo do século XIX, originaram discussões e movimentos de reforma. Trata-se de um ponto particularmente percetível em França, justamente pela conservação, até hoje, do Code du Commerce de 1807. As alterações significativas deram corpo
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 a distintas leis extravagantes. A grande batalha do Direito Comercial, na primeira metade do século XIX, teve a ver com o triunfo do liberalismo. Este exigia, entre outros aspetos, liberdade de empresa e, daí, liberdade na constituição de sociedades comerciais, particularmente as anónimas. Esse princípio, em França, só foi alcançado em 1867. O liberalismo e a industrialização requereram, depois, a proteção da propriedade intelectual. A evolução doutrinária e legislativa daí decorrente acabaria por originar uma área comercial autónoma. Cheques e outros títulos de crédito mantiveram medidas legislativas: dentro e fora dos códigos comerciais. A partir daí, assistiu-se a um conjunto de evoluções no Direito das sociedades comerciais, designadamente quando, no século XX, se processou a sua democratização. A defesa da concorrência, a intervenção do Estado na economia e o tema das falências originaram iniciativas significativas, ainda que periféricas, em relação ao cerne mercantil. Novos contratos fazem a sua aparição, com especial relevo para o Direito Bancário e para os sectores da distribuição. Podemos considerar que o Direito Comercial, como bom Direito privado que é, vai evoluindo lentamente, ao sabor do progresso científico cultural da matéria, disciplinando soluções já experimentadas. A evolução do Direito Comercial assentou, sobretudo, numa evolução científica, fonte de releituras e de novas sistematizações.
O século XX e a unificação do Direito privado: a autonomia do Direito Comercial é uma resultante histórico-cultural. Mas mais: ela não obsta a consequências dogmáticas, antes as potenciando. Compreende-se, de toda a forma e a essa luz que, quando uma codificação comercial coincida com uma civil, se ponha de imediato o problema da manutenção de um dualismo no Direito Privado. A primeira experiência a reter, neste domínio, é a Suíça, de 1907. O Direito Comercial, a propósito da elaboração do Código Civil Suíço, foi integrado no Direito das Obrigações. Mesmo âmbitos normativos como os das sociedades comerciais e cooperativas, do Direito da firma e dos títulos de crédito tiveram esse destino. O Código Civil Suíço conserva regras próprias para os comerciantes. De todo o modo, na forma como em substância, desapareceu o Direito Comercial clássico. O exemplo suíço foi particularmente defendido em Itália, por Vivante 11 . No fundamental, este Autor explica que a existência de um Direito Comercial, como corpo normativo autónomo, fazia sentido quando o comércio era exclusivamente exercido por comerciantes inscritos em corporações. Numa sociedade moderna, os atos de comércio são acessíveis a qualquer interessado, seja ele comerciante, seja ele um interessado ocasional. Assim sendo, o Direito Comercial torna-se parte do Direito privado. Todas as relações privadas podem ser objeto de uma mesma e única teoria, tal como é diariamente comprovado pelos tribunais ingleses e norte americanos e, naturalmente, pela (então) recente experiência suíça. No próprio Direito italiano, nessa altura dividido entre o Código Civil de 1865 e o Comercial de 1882, a supressão de juízos comerciais teve um efeito aglutinador: os juízes ordinários, ao aplicar promiscuamente ora o Código Civil, ora o Comercial, com um único processo, acabam por desenvolver um critério uno para decidir controvérsias civis e comerciais. Vivante vai, todavia, ainda mais longe. O Código de Comércio estabelece regimes mais favoráveis para os comerciantes. Esse aspeto opera, naturalmente, aquando dos contratos entre comerciantes e não comerciantes, prejudicando assim a grande maioria da população. Além disso, o Código de Comércio admitia a prevalência dos usos comerciais, mesmo nas relações entre comerciantes e não comerciantes. Vivante comenta este preceito como atribuindo, aos 11
Na sequência do ADHGB, chegou a pensar-se na elaboração de um Código Comercial Suíço, tendo mesmo sido preparado um projeto, por Munziger, em 1864; simplesmente, em 1868, essa ideia foi abandonada, a favor de um Direito das obrigações suíço.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 comerciantes, uma parcela do poder legislativo. A discussão sobre a natureza civil ou comercial de certos atos, profundamente inútil, tolhe e complica a aplicação da Justiça. A duplicação de institutos prejudica a harmonização de preceitos e de soluções. A presença de dois códigos dificulta o processo científico: é – será – evidente a natureza puramente descritiva de muitas obras de Direito Comercial. As considerações de Vivante são ponderosas. É importante sublinhar que não se trata de fazer desaparecer o acervo histórico do Direito comercial, nem de pôr em causa os institutos jurídico-mercantis. Apenas se questiona a sua arrumação como lex specialis, em paralelo com institutos homólogos do Direito civil. O Direito Comercial deveria ser preservado como um sector particular do Direito privado, à disposição de todos, tal como qualquer instituto privatístico, por definição, se encontra. Quando muito, poderíamos admitir disciplinas especiais, para certo tipo de organizações. E assim, este entendimento foi acolhido aquando da preparação do Código Civil italiano, de 1942. Este imporante Código veio tratar unitariamente todo o Direito privado, substituindo o antigo Código de Comércio, de 1882 e o velho Código Civil, de 1865. No Livro IV – Das obrigações, aparece um título III – Dos contratos singulares, onde são versados diversos contratos comerciais, lado a lado com os civis. Por seu turno, no livro V – Do trabalho, surgem títulos sobre as sociedades, as empresas cooperativas e mútuos de seguros, sobre a associação em participação e sobre a concorrência. Aqui tempos um sugestivo exemplo quanto à unificação do Direito privado. A unificação do Direito privado, levada a cabo em Itália, causou algum choque, na comercialística local. NA verdade, o Direito Comercial moderno viera à luz nas cidades italianas. E em Itália surgiram muitos estudiosos comercialistas consagrados. Parece-nos patente, em diversos autores que se pronunciaram no período da reforma ou logo depois dela, uma certa nostalgia pelo perdido Código de Comércio. De resto, a decisão de unificação foi tomada com a reforma já avançada e, também, por alguma preocupação política: tratava-se de introduzir a “empresa” na lei civil, para assim dar corpo ao novo Direito corporativo italiano. As tentativas imediatas surgiram no sentido de sedimentar um “novo Direito comercial”, assente em ideias institucionalistas e, deste modo, materialmente autónomo. A essa luz, a própria existência de um Código Comercial autónomo seria dispensável. A experiência italiana da unificação, até pela relativa proximidade que a respetiva doutrina tem, nalguns pontos, com a lusófona, constitui um excelente campo de meditação, antes de qualquer reforma do Direito privado, entre nós. A melhor doutrina italiana continua hoje a defender os pontos de vista de Vivante. Mesmo as mais atualistas visões transalpinas do Direito Comercial como Direito das empresas comercias e das suas operações – para tentar evitar o escolho representado pelas conceções subjetivistas, de sabor corporativo – não lograram princípios próprios nem, sobretudo, aprontar um sistema diferenciado. Em suma: o Direito Comercial poderia conservar uma autonomia expositiva e didática, ficando contudo claro tratar-se de uma parte do todo jurídico-privado. Todas estas considerações parecem ajustadas. Todavia, o Direito Comercial tem uma autonomia histórico-cultural que se impõe, ainda hoje.
Elementos subsequentes: a defesa da autonomia do Direito Comercial, subsequente à forte argumentação de Vivante e ao seu êxito no Código Civil italiano de 1942, foi viva, mas pouco profunda. A afirmação de que existe uma vida comercial intensa, que exigindo celeridade, eficácia e tutela da boa fé, não se compadeceria com as delongas da vida civil, desconhece dois pontos essenciais: A generalidade dos atos comerciais é praticada por não comerciante – os consumidores finais – pelo que, quantitativa e qualitativamente, o Direito Comercial é o Direito de todos e do dia-a-dia;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 O Direito Civil mantém-se como a instância científica inovadora onde os conceitos e as soluções mais avançadas devem ser procuradas: a tutela da confiança no comércio, por exemplo, é legitimada pela boa fé… civil. Devemos estar prevenidos contra um tipo de desenvolvimento linguístico que, a partir da palavra comércio esquece a realidade sócio-cultural. No dia a dia, são celebrados mais negócios comerciais do que civis: nenhuma razão há para pretender, do Direito Comercial, fazer uma camada de elite ou de exceção. Uma verdadeira autonomia do Direito Comercial teria de ser procurada num plano científico: o Direito Comercial disporia de princípios autónomos, métodos próprios e esquemas diferenciados de realização do Direito. Salvo o que abaixo se dirá sobre a Ciência do Direito Comercial, desde já adiantamos que não é assim. O Direito Comercial não se distingue por especiais procedimentos científicos ou concretizadores. A autonomia do Direito Comercial ou existe ou é indefendível. Estamos no campo do Direito: Ciência – sim – mas Ciência da cultura e do espirito. Por múltiplos acidentes históricos, os ordenamentos romanogermânicos desenvolveram um corpo de regras ditas comerciais ou mercantis, tendo-se habituado a trabalhar com elas. Não é a única saída; e poderá mesmo não ser a mais racional nem a mais conveniente. Mas existe e, com os elementos disponíveis, no tempo e no lugar onde opera, afigura-se a mais diferenciadora de situação, a mais rica em termos culturais e humanos e, nessa medida, a mais justa. A existência de codificações civis e comerciais separadas é fundamental para a preservação dos dados ontológicos que, ao Direito Comercial, conferem a sua autonomia. Tem-se afirmado que as experiências unitárias suíça e italiana não conduziram, nos respetivos espaços, ao desaparecimento do Direito Comercial. Não é rigorosamente exato. É verdade que a um tipo de problemática ligada à vida dos negócios – portanto: situações jurídicas nuclearmente empresariais, muito mais restritas do que o tradicional Direito Comercial –, um tanto à semelhança do atual merchant law anglo-saxónico, adquire um tratamento em conjunto, sob o título Direito Comercial. Porém, os clássicos desenvolvimentos jurídicocomerciais, patentes em qualquer manual alemão, francês ou português, perderam-se. O manual típico italiano ocupa-se da empresa, das sociedades, das marcas e de contratos comerciais, ignorando as muitas centenas de páginas que eram dedicadas aos comerciantes e aos seus atos do comércio… O Direito comercial mantém-se – até por osmose com as experiências vizinhas e por um evidente peso da tradição –, mas é qualitativa e quantitativamente diferente: mais fraco, menos coeso e mais sujeito a fracionar-se em múltiplas disciplinas autónomas. A autonomia do Direito Comercial manteve-se, pois – e salvo quanto ficou dito – nos diversos países. Ao longo o século XX, a sua evolução foi marcada pelo aparecimento de leis especiais crescentemente aperfeiçoadas e pela progressiva afirmação de disciplinas comerciais especializadas. Mas a autonomia comercial e o âmbito das suas normas dependem sempre do peso da tradição e dos hábitos que os juristas transmitem, de geração em geração. Quando, na segunda metade do século XX, os negócios em massa, comerciais por excelência, exigiram regras especiais quanto à sua celebração e ao seu conteúdo, foi o Direito Civil que se manifestou: as leis sobre cláusulas contratuais geras são civis: não comerciais. Não há razões lógicas conhecidas. Finalmente, é sintomático o facto de o Código Civil holandês de 1991 – a última codificação europeia do século XX – ter também procedido à unificação do Direito privado, enquanto o Código Civil brasileiro de 2002 – a primeira grande codificação do século XXI – fez opção idêntica. As dificuldades de reforma do Código Comercial de Veiga Beirão encontram justificações, também neste plano. Este ou existe, pelo peso da tradição, ou mais não seria do que uma compilação de regras diversas. Mas não há regras absolutas, no campo
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 cultural. E assim, particularmente no espaço lusófono, encontramos códigos comerciais novos: Macau (1999) e Moçambique (2005).
4.º - A experiência Anglo-Saxónica
Evolução geral: a experiência anglo-saxónica, no tocante ao Direito Comercial, é bem ilustrativa do relevo que a história e a Cultura assumem na configuração do Direito das Sociedades modernas. A origem do Direito Comercial inglês – Law Merchant – é considerada obscura. Ela assentou na prática comercial: particularmente desenvolvida, em Inglaterra, mercê da liberdade transfronteiriça assegurada aos comerciantes pela própria Magna Carta. Durante a Idade Média, e um tanto à semelhança do sucedido noutros espaços europeus, assistiu-se a uma dualidade de jurisdições: os comerciantes dispunham de instâncias próprias para aplicação da justiça. No final da Idade Média, este esquema entrou em decadência, mercê da força que foi ganhando a jurisdição comum. Esta evolução consumou-se com a integração do Direito Comercial no Common Law, nos finais do século XVIII; esta integração foi levada a cabo, dogmaticamente, por William Murray Mansfield (1705 – 1793). Na atualidade falta, em Inglaterra, qualquer codificação do Direito Comercial ou, sequer, qualquer Direito Privado especialmente dirigido ao comércio ou aos comerciantes e que seja distinto do que rege a generalidade das pessoas. Comparatistas sublinham que a receção do Law Merchant no Common Law foi possibilitada, antes de mais, pelo facto de este último se ter mantido muito flexível. Este estado de coisas sofre algumas alterações recentes. Surgem normas especiais para os comerciantes e até, por imposição europeia, áreas inteiras correspondentes ao Direito Comercial do Continente, com tónica na concorrências e na tutela do consumidor. Mas esses elementos não permitem ressuscitar um Direito Comercial digno desse nome.
Tendências atuais; a experiência norte-americana do Uniform Commercial Code: na atualidade surgem-nos, na Grã-Bretanha, múltiplos manuais de Business Law, Commercial Law ou Mercantile Law. Recorrendo no seu conteúdo, verificamos que o Business Law apresenta maior extensão: abrange descrições da organização judiciária, dos contratos em geral, dos diversos contratos incluindo, lado a lado, figuras que no Continente se diriam civis e comerciais e Às quais se adita o contrato de trabalho, sociedades, falências e, nos mais recentes, a concorrência e a tutela do consumidor. Os manuais de Commercial Law são mais comedidos: embora com um conteúdo muito variável de obra para obra, eles concentram-se nas diversas figuras contratuais, incluindo muitas comerciais. Do ponto de vista continental, eles não obedecem a qualquer sistematização: antes correspondem à capacidade empírica dos seus autores de transmitir conhecimentos. Como foi referido, fazem a sua aparição, no Direito Comercial, temas de tutela do consumidor e de concorrência, através do influxo comunitário. Não obstante, a diversidade técnica, conceitual e sistemática mantém-se: trata-se de uma riqueza cultural do Velho Mundo, que deve ser preservada. A experiência norte-americana merece uma referência especial. As colónias britânicas no Continente Norte-Americano mantiveram o Direito da Metrópole e, designadamente, a separação entre o Common Law e o Mercantile Law. A receção deste último pelo primeiro não operou com a clareza britânica; daí resultou uma complexidade, agravada com a dispersão das regras entre os vários estados federados. Nos finais do século XIX, o desenvolvimento extraordinário do comércio
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 interestadual e a industrialização do Continente Norte-Americano exigiam regras claras, simples e cognoscíveis para todos. Assim, veio a ser instituída a National Conference of Comissioners on Uniform State Laws, que foi preparando sucessivos diplomas relativos a áreas comerciais. Estes diplomas foram sendo recebidos pelos diversos estados federados. Em 1940, a Conference reuniu para estudar alterações ao Uniform Sales Act. Foi então proposto o abandono do esquema dos diplomas parcelares uniformes, até então existentes, a favor de um único estatuto: tal a conceção do Uniform Commercial Code ou UCC. Em 1942, foram nomeadas inúmeras comissões de individualidades, especialmente magistrados, para preparar o que se anunciava como gigantesca tarefa, numa iniciativa conjunta do American Law Institute e da National Conference. Ambas essas institituições aprovaram, em 1952, o texto do UCC, o qual surge também apoiado pela House of Delegates of the American Bar Association. O UCC foi sendo adotado pelos diversos estados federados. Foi instituído o Permanent Editorial Board, para analisar e preparar uniform amendments. O UCC é uma referência obrigatória, em matéria comercial. Trata-se de um texto extenso, complexo e preciso: de acordo com a técnica anglosaxónica, surge minucioso, estando ainda cheio de particularidades relativas aos diversos Estados. Tem excelentes provas dadas.
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Capitulo 2 – A Experiência Portuguesa 5.º - Das origens ao século XVIII
O comércio e as primeiras leis: a História do Direito Privado lusófono está, ainda hoje, por investigar; apenas certos aspetos sectoriais têm merecido a atenção dos autores. Este estado de coisas atinge, naturalmente, o Direito Comercial. Convém ter presente que muito da sua feição atual deve ser procurado na evolução histórica. Os elementos que se seguem têm, assim, natureza puramente ilustrativa. As relações comerciais referentes à Terra Portucalent datam desde a Fundação, tendo-a antecedido. E desde cedo surgiram leis nacionais tendentes a defendê-las e a regulá-las. Entre as mais antigas conta-se uma lei atribuída ao primeiro ano do Reinado de D. Afonso II12, «Como el Rey manda aos seus almoxarifes que nom leuem nenhua cousa daqueles a que acaeçe prigoo no mar»13 Todavia, já anteriormente surgiam, em certos forais, normas relativas ao tráfego naval. Nos restantes aspetos, saliente-se o facto de ocorrerem medidas tendentes a proteger o comércio, designadamente em face de abusos cometidos por nobres. Também cedo surgem disposições legislativas referentes à usura. D. Afonso I, em 1211, proíbe a certos funcionários seus que deem14: «(…) dinheiros a husura pea sy nem para outrem». A matéria foi retomada por D. Afonso IV, sempre em moldes restritivos. No tempo de D. Afonso II havia já corretores. O fretamento de navios encontra regras lusófonas desde o princípio do século XIV. D. Fernando fez lei «acerca dos Mercadores Estrangeiros, como houvessem de comprar e vender as mercadorias nos seus Reinos»; esta lei está inserida nas Ordenações
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Esta lei passou, depois, às Ordenações Afonsinas, Liv. II, título XXXII. «Stabeleçemos que nenhuu nom leue coousa aaqueles que acaeçer prijgoo no mar assy dos da nossa terra come dos das outras se acaeçer per britamento da naue ou de naujo algua cousa que andasse na naue ou no nauio que aportasse na Ribeyra ou en alguu porto mais os ssenhores dessas cousas aiam nas todas en paz assy que os nossos almoxarifes nom leuem deles cousa nem aqueles que de nos as terras teuerem nem nenhuu outro Ca ssem Razom parece que aquele que he atormentado das lhj homem outro tormento Se peruentuyra alguu contra esta nossa costetiçom quiser hir Reteendo lhi o sseu auer leuando dos dauandictos algua cousa fecta primeiramente entrega das cousas que lhe filharom ou perderom perça quanto ouuer». 13
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«Stabelecimento per fecto da husura «Querendo nos deytar as maldades da nossa terra estabelecemos que nenhuu nosso mordomo nem nosso conventual. (sic) enquanto teuer nossa terra ou oueença, ou teuer em ssy o nosso auer en seu nome ou nosso nom de dinheiros a husura pera sy nem pera outrem. E se peruentura alguu contra esta nossa defesa quiser hir perdera quanto ouuer»
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Afonsinas, em conjunto com outras similares. Datam ainda do período inicial as primeiras regras sobre seguros. Nos finais do século XIII, o comércio marítimo tinha, no país, bastante significado. Os negociantes interessados estabeleceram, por compromisso entre si, que na Flandres e em Portugal tivessem sempre a soma de cem marcos de prata para acorrerem a despesas exigidas pelo comércio. Para o efeito, seriam cobrados vinte soldos no frete de todas as barcas de mais de cem toneis que carregassem em portos portugueses para Flandres, Inglaterra, Normandia, Bretanha e Arrochella15; nos de lotação inferior, cobrar-se-iam dez soldos. D. Dinis confirmou o ato, em 10 de Maio de 1293. D. Fernando instituiu, em Lisboa e no Porto, uma bolsa, para a qual contribuíam todos os navios com mais de cinquenta tonéis e que serviria para acudir em caso de naufrágio. Subsequentemente, documentam-se numerosas medidas régias destinadas a incentivar a construção de navios e o tráfego marítimo. Cumpre ter presente que as descobertas portuguesas resultaram da execução minuciosa de um plano pensado e facultado pelo Estado. Não foram obra nem de súbita inspiração, nem do acaso.
As Ordenações; aspetos gerais do antigo Direito Comercial português : com os antecedentes apontados, o antigo Direito português era bastante rico em regras comerciais. Tomando como base as Ordenações do Reino, desde logo cumpre destacar a existência de uma magistratura especificamente comercial: a dos almotacés. O almotacé – ou almotacel16 - era, à partida, um funcionário eleito, encarregado de zelar pela igualdade dos pesos e medidas; podia, ainda, impor taxas, verificar a correção das transações e promover distribuições de géneros. Junto da Corte funcionava o Almotacé Mor, que providenciava o abastecimento do séquito real e tinha, ainda, diversas funções de polícia e de magistratura económicas. Nos concelhos, operavam os juízes almotacés, a quem cumpria a fiscalização económica e o julgamento da violação de posturas que fosse perpetrada por comerciantes, artesãos e industriais. Além da interessante figura do almotacé, as Ordenações previam o Juiz da Índia, Mina e Guiné e o Ouvidor da Alfândega da Cidade de Lisboa. O Juiz da Índia, Mina e Guiné tinha uma completa jurisdição marítima e o Ouvidor dispunha também de competência marítima relativa a causas que não pertencessem ao Juiz da Índia. A jurisdição comercial específica é clara. A sua existência não é prejudicada pelo facto de a distinção entre os poderes, jurisdicional e administrativo, não estar, então, totalmente efetuada. As Ordenações regulavam ainda diversos aspetos do estatuto de comerciante e contratos comerciais. As Ordenações – aliás completadas por diversa legislação extravagante com relevo comercial – não eram verdadeiras codificações científicas, no sentido atual do termo: permanentemente se entrelaçam, nelas, regras civis, administrativas, penais e processuais. De todo o modo, elas compreendem regras comerciais e, designadamente:
Preveem ou pressupõem o status de comerciante; Estabelecem uma jurisdição comercial específica; Regulam diversos atos de comércio; Determinam sobre a falência.
A substância comercial era conhecida, embora lhe faltasse uma tradição de autonomia. E isso desde logo porque, mercê de centralização política e administrativa ditada, primeiro, pelas necessidades de reconquista e, depois, pela expansão ultramarina, nunca chegou a verificar-se uma cultura estatutária urbana independente do Rei. Além disso, faltaram as codificações
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Trata-se do porto francês de LA Rochelle. Expressão que nos veio do árabe almohtacel, do verbo haçaba, contar, calcular.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 colbertianas que, em França – e provavelmente, mais tarde, na Europa – asseguraram, até hoje, a autonomia do Direito Comercial.
A doutrina comercial lusófona: para além das iniciativas legislativas cumpre ainda mencionar a doutrina comercial lusófona. Por vezes mais do que a própria lei, a doutrina é decisiva para a manutenção dos ramos do Direito. Deve ser feita uma menção particular a Pedro de Santarém – Petrus Santerna – 17 autor do Tractatus perutilis et quotidianus de assecurationibus et sponsioribus ou, em língua portuguesa: Tratado muito útil e quotidiano dos seguros e promessas dos mercadores, cuja 1.ª edição terá sido publicada em 1552. Trata-se de uma obra muito clara e precisa e que não pode deixar de ser interpretada como um resultado da rica tradição dos seguros, existente no País. Lamentavelmente, o tema não foi, de imediato, retomado entre nós. Apenas quase três séculos volvidos podemos apontar uma obra comercial de relevo vinda do Brasil: os Princípios de Direito Mercantil, de José da Silva Lisboa, Visconde de Cayrú (1756 – 1835): um escrito extenso que recai, sobretudo, sobre a matéria dos seguros. A nível de obras gerais, é importante, já no final do período, referir Pascoal de Melo. Nas suas Instituições e no Livro I reportado ao Direito público, Melo dedicava o Título VIII ao comércio, acrescentando-lhe, ainda, o Título IX, sobre as leis náuticas. Quanto ao comércio, Pascoal de Mello referia diversas figuras contratuais em geral, a usura, o câmbio, as sociedades mercantis, os falidos e a moeda. No toante às leis náuticas, surgem-nos diversos pontos relativos ao Direito do Mar e ao comércio marítimo, desde os primórdios.
As reformas comerciais do Marquês de Pombal: no século XVIII, o Direito lusófono apresentava uma feição pouco animadora. Disperso entre as Ordenações, há muito desatualizadas, as múltiplas leis extravagantes, as decisões dos tribunais e o Direito Romano, o sistema português não oferecia a diferenciação harmónica e a previsibilidade que se requeriam a qualquer ordenamento moderno. A situação era particularmente gravosa no comércio, tanto mais que se atravessava um período de expansão, decisivo para a evolução subsequente Cumpre verificar algumas medidas tomadas pelo reformismo de Pombal, para obviar à situação apontada. Na tradição das Ordenações, o comércio era uma atividade degradante: estava mesmo vedado, como vimos, às classes nobres. Decorria, daí, uma cultura contrária ao desenvolvimento, que o Marquês tentou contrariar. O alvará de 7 de junho de 1755, que estabeleceu a Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão, determinou que o comércio a ela inerente não prejudicaria a nobreza herdada e seria mesmo meio próprio para alcançar a nobreza adquirida. Numa Lei de 30 de Agosto de 1770, obrigava-se ao registo na Junta do Comércio de todos os comerciantes; para alcançarem a correspondente matrícula, era necessário que obtivessem a aprovação na Aula do Commercio. O problema das falências foi disciplinado por alvará de 13 de novembro de 1756, o qual criou o cargo de Juiz Conservador Geral da Junta do Commercio. No fundamental, procurava-se um reforço da boa fé e da estabilidade nas relações de comércio, distinguindo com clareza o mercador infeliz do fraudulento. A magistratura comercial foi repartida por vários juízes, de modo a permitir a celeridade e a precisão. A atuação de Pombal teve ainda um grande relevo no domínio das
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Pedro de Santarém viveu no reinado de D. Manuel. Não se conhecem os anos do seu nascimento e da sua morte. Morou em Itália, mais precisamente em Florença e em Liorne, já se tendo suscitado a hipótese de ser um cristão novo. O seu tratado foi, em especial, estudado por Amzalak e por Domenico Maffei.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 companhias comerciais. Sob a confusão das fontes, os usos e as práticas comerciais tinham um relevo conhecido. Borges Carneiro dizia, a tal propósito, citando um alvará de 1771: «Especialmente os negócios mercantis se decidem mais pelo conhecimento das máximas, usos e costumes do maneio do Commercio, que pelas regras de Direito e doutrinas dos jurisconsultos».
6.º - Os Códigos comerciais oiticentistas 19 Antecedentes; a Lei da Bora Razão (18 agosto de 1769): a complexodade das fontes do Direito, em vigor no século XVIII, requeria uma simplificação radical. Não estando ainda reunidas as condições jurídico-científicas para uma codificação de fundo, procedeu-se a uma arrumação abstrata da matéria. Tal foi o papel da Lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1769, que procedeu à reorganização das fontes e do Direito subsidiário. No tocante ao Direito Mercantil, a Lei de 16 agosto de 1769 remetia para «(…) aquella boa razaõ, que se estabelece nas Leys Politicas, Economicas, Mercantîs, e Marítimas, que as mesmas Nações Christãs tem promulgado com manifestas utilidades, do socego publico, do estabelecimento da reputação, e do aumento dos cabedais dos Póvos, que com as disciplinas destas sabias, e proveitosas Leys vivem felizes á sombra dos Thronos, e debaixo dos auspícios dos seus respectivos Monarcas, Principes Soberanos: Sendo muito mais rationavel, e muito mais coherente, que nestas interessantes matérias se recorra antes em cazo de necessidade ao subsidio procimo das sobreditas Leys das Nações Christãs, iluminadas e polidas, que com ellas estão resplandecendo na boa, depurada, e sãa Jurisprudencia;» O assento da Casa da Suplicação, de 23 novembro 1769, veio complementar que as obrigações dos comerciantes e suas formas, não havendo sido reguladas pelas leis do Reino, devem regerse pelas leis marítimas e comerciais da Europa e pelo Direito das Gentes e prática das nações comerciais. Decorridas algumas décadas de vigência de tal esquema, os litigantes haviam-se tornado hábeis na citação de leis estrangeiras, sem se atender à falta de unidade daí decorrente e à pura e simples inadequação de muitas delas. A situação era tanto mais gravosa, quanto é certo que, nos domínios comerciais, é bem importante a previsibilidade das decisões jurídicas. O Direito e a Jurisdição comerciais chegaram, assim, a um estado lamentável. Quanto ao modo por que eram tidas e sentidas as leis mercantis, à luz da Lei da Boa Razão, dê-se a palavra a Corrêa Telles: «As Leis Mercantis são todas as que respeitão ao negocio: taes como as que tratao das qualidades, que devem ter os Negociantes e Mercadores; dos seus privilégios; dos seus livros de negocio, e prova que fazem; das Sociedades, e Companhias, Balanços e Contas; das Letras de Cambio, e seus Protestos; das quebras dolosas, e de boa fé; dos Corretores, Comissionários, e Carreteiros; dos contrabandos & C. Como as nossas Leis sobre taes assumptos não bastem para formar hum Còdigo regular de Commercio, justamente ordenou a nossa Lei, que nos casos omissos
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 recorrêssemos ás Leis das Nações civilizadas da Europa, com preferência às Romanas, porque o s Romanos sobre estes artigos tiveram vistas muito curtas. Porém podendo, e devendo com justa razão ter-se por civilizadas todas as Nações da Europa, so se excetuarmos a Turquia; e tendo cada huma os seus Estatutos; muitas vezes nos acontece o acharmos disposições encontradas sobre o mesmo caso. Eus aqui aberta a porta ao arbitrário dos julgadores, que podem conformarse a esse ou aquelle Estado, como lhes parecer. E sendo tantas as Nações da Europa, e tão diversas as línguas, he muito difícil, por não dizer impossível, que os nossos julgadores possão compreender tantos e tão vários Estatutos, dos quaes apenas temos em ligoagem os poucos que inseriu nos seus princípios de Direito Mercentil jose da Silva Lisboa. Melhor fora talvez, que a uma Lei nos casos omissos mandasse recorrer ás Leis Mercantis, e Marítimas de tal ou tal Nação (…)». Nestas condições, o advento do liberalismo tornou premente a reforma do Direito Comercial.
O Código Ferreira Borges: a elaboração de um Código Comercial, exigida ainda pelo estado do País, representava, porém, problemas muito sérios. Embora, à primeira vista, aquém das dificuldades postas pelo Código Civil18, a codificação comercial deparava com obstáculos quase insuperáveis. Por definição, a regra comercial é ordenada em função da civil: trata-se de uma consequência direta da sua especialidade. Teoricamente, parece impensável uma codificação comercial, sem a civil. A tarefa só se tornou possível pela navegação à vista possibilitada pelo Códe Napoléon. O primeiro Código Comercial português deve-se a um jurista de génio: José Ferreira Borges 19 , o qual ainda hoje é considerado o maior comercialista português. NA elaboração do Código, Ferreira Borges deparou com as maiores dificuldades. «Depois de lançar as primeiras linhas do meu edifício por vezes desisti, porque me ocorria que a falta d’escriptos commerciaes em nossa lingoagem, a falta d’ensino do direito mercantil em nossas escolas tornaria a minha obra inútil por ininteligível. Era logo necessário que precedesse +a obra um diccionario portuguez de direito comercial. Na compilação deste código tive á vista não só todos os códigos commerciaesd’Talia, o código d’HEspanha, e as leis comerciais da Inglaterra, e o direito da Escocia, mas tãobem as ordenações da Russia e quasi todas as muitas parciais d’Allemanha (…)».
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É certo que a Alemanha, através do ADHGB, conheceu uma situação de antecipação comercial, semelhante à portuguesa. Simplesmente, a Ciência civil, através da pandetística, atingiria, aí, um grau de sedimentação, que permitia superar a falta do Código Civil. 19 José Ferreira Borges nasceu em 1 junho 1786, filho de um armador. Cursou humanidades e formou-se em cânones. Advogou no Porto. Colaborou com os franceses, mas defendendo o interesse nacional. Em 1812, foi nomeado secretário da Junta Geral da Companhia de Agricultura das Vinhas do Alto Douro. Criou, com Manuel Fernandes Tomás, o Synhedrio, alma da Revolução de 1820. Deputado ativo, Ferreira Borges emigrou para Londres, após a Vilafrancada de 26 maio 1823. Publicou, então, as Instituições de direito cambial português e iniciou os estudos que levariam ao Código Comercial. Após a tomada do poder por D. Miguel – 1828 – emigrou, de novo, tendo ficado em Paris e em Londres, até Setembro de 1833. Foi neste período que Ferreira Borges escreveu dois trabalhos fundamentais: o Diccionario Jurídico-Comercial e o Codigo Commercial Portuguez. Regressando ao País, Ferreira Borges ainda desenvolveu alguma atividade política, curando, particularmente, de defender o Código contra os ataques que lhe foram desferidos. Morreu pobre, em 14 novembro 1838.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A obra legislativa de Ferreira Borges teve, a rodeá-la, estudos comerciais aprofundados e alargados. Uma codificação não se improvisa: assenta em estudos meticulosos. Com os antecedentes apontados, o Código Ferreira Borges, num total de 1860 artigos, ocupava duas partes, relativas, respetivamente, ao comércio terrestre e ao comércio marítimo. Antes de Ferreira Borges, o único jurista português que «… em nossa lingoagem ilustrou a Jurisprudencia Mercantil…» fora José da Silva Lisboa. Ao realizar, apenas com os antecedentes da sua própria obra, um Código Comercial abrangente, Ferreira Borges fez algo de teoricamente impossível: uma codificação sem substrato. Tal foi tornado possível mercê da receção da ciência jurídica napoleónica, receção essa que, no entanto, teve em conta particularidades do País e mercê, sobretudo, da obra alargada do próprio Ferreira Borges. Envolvido na política do seu tempo, Ferreira Borges foi denegrido na sua pessoa e na sua obra, por contemporâneos despeitados, mesquinhos ou, simplesmente, incapazes de apreciar, para além do contingente. O fenómeno não se acantonou, infelizmente, na primeira metade do século XIX. A História ditou a sua justiça sendo, ontem como hoje, comum o reconhecimento do mérito da obra do velho liberal. Aliás, o próprio relatório que antecedeu a proposta de lei do que viria a ser o Código Veiga Beirão teve, para com ele, palavras de apreço. O Código Comercial de 1833 foi censurado por conter múltiplas regras civis e por se preocupar com definições de compêndio. Há resposta: faltava um Código Civil e uma ciência jurídico-mercantil; deste modo quedava, ao legislador, suprir ambas as falhas. Num balanço sereno sobre as vantagens e desvantagens do Código de Ferreira Borges, Caeiro da Matta, após uma valoração globalmente positiva, aponta: como vantagens a liberdade comercial consagrada, o fim do arbítrio ocasionado pela Lei 18 agosto 1769 (Lei da Boa Razão), a explicitação dos direitos e deveres dos comerciantes e a precisão do foro mercantil; como desvantagens, assinala o casuísmo, o excesso de definições e de repetições, a falta de clareza, a consagração de soluções antiquadas e a presença de contradições, derivadas da multiplicadade das leis usadas, na elaboração do diploma 20 . O Código Comercial de 1833 teve, ainda, um importante papel no futuro do Direito Comercial português: habituou, desde cedo, os juristas portugueses a trabalharem, em separado, com os Direito civil e comercial. Antecedendo o próprio Código de Seabra, o Código Ferreira Borges deu, aos comercialistas portugueses, uma base teórica, prática e cultural para um labor especializado. Trata-se de um aspeto que, embora aparentemente formal, teria consequências significativas, até nos nossos dias antes de Ferreira Borges, e antecipando uma discussão que só muito mais tarde surgiria na Europa, Cardozo da Costa defendera a unidade do Direito Civil e Comercial.
O Código Veiga Beirão (1888): a discussão da reforma do Código Comercial começou, de imediato, após a aprovação do Código Ferreira Borges. Pensamos não ser indiferente ao surto comercialista registado no século XIX, em Portugal, a criação, em 1836, da disciplina, no 4.º ano jurídico, de Direito Comercial e Marítimo21. Logo em 1834, o deputado Larcher preconizou a reforma do código Comercial. Pouco depois, o deputado José Ferreira Pinto dos Santos propôs a supressão da “suprema magistratura do comércio”, supressão essa que, mau grado a oposição de Ferreira Borges, foi aprovada, em 1836. Seguiram-se múltiplas leis extravagantes. Houve, ainda, iniciativas mais diretas de reforma. Em 13 julho 1859, foi nomeada, por Decreto de iniciativa de Martens Ferrão, Ministro da Justiça, uma comissão encarregada de rever todo o 20
Explicitava, ainda, mais duas desvantagens: a de acumular, num único corpo, Direito substantivo e Direito adjetivo e a de conter disposições de Direito Civil. Vários destes óbices seria, porém, desculpáveis. 21 Decreto de 5 dezembro de 1836, eu criou a Faculdade de Direito.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Código. Os trabalhos não foram muito produtivos, tendo-lhe sido, em 1866, agregado o lento Diogo Pereira Forjaz de Sampaio e mais três juristas. A Comissão chegou ao artigo 745.º do Código Ferreira Borges, tendo publicado um resumo dos seus trabalhos; em 1868, foi dissolvida, por improdutividade. Em 17 junho 1870, sendo considerada indispensável e urgente a reforma do Código Comercial, para mais após a aprovação e entrada em vigor do Código Civil de Seabra, foi nomeada uma nova Comissão. Estava-se, então, sob a ditadura de Saldanha e era Ministro da Justiça José Dias Ferreira. Nada ele fez, outro tanto sucedendo com nova Comissão, nomeada em 1881. Com estes antecedentes pouco brilhantes, caberia a Veiga Beirão, Ministro da Justiça sob o primeiro Governo progressista de Luciano de Castro, retomar a ideia com uma metodologia diversa: pedir a personalidades individualmente tomadas a elaboração de parcelas determinadas do futuro Código. Como diretriz para todos os intervenientes assentou-se, previamente, que seriam quanto possível conservadas as disposições anteriores; nas reformas a introduzir seguir-se-iam os códigos comerciais estrangeiros mais recentes, com relevo para o espanhol e o italiano, mas sem esquecer os usos e tradições nacionais. Tudo isto é interessante; por um lado, mantém-se a tradição pombalina do recurso aos Direitos dos povos civilizados e cultos da Europa; por outro, inicia-se, ainda que de forma lenta, a emancipação do modelo napoleónico, já envelhecido. O Código Comercial de 1888, oi Código Veiga Beirão, ficou, assim dotado de trabalhos preparatórios, através dos quais é possível seguir a génese de muitas das suas soluções. Paradoxalmente, esta facilidade veio incentivar uma interpretação exegética, de tipo subjetivista, que marcou a comercialística subsequente, deixando curiosos rastos até aos nossos dias. O Código Veiga Beirão está dividido em três livros: I – Do comércio em geral; II – Dos contratos especiais do comércio; III- Do comércio marítimo.
7.º - A comercialística dos séculos XX e XXI
A evolução legislativa subsequente ao Código Comercial; a) Alterações ao Código: quando foi aprovado pela Carta de Lei de 28 de junho de 1888, o Código Comercial pretendeu abranger, em definitivo, toda a matéria do comércio. Por isso, veio dispor no seu artigo 4.º «Toda a modificação que de futuro se fizer sobre matéria contida no Código Comercial será considerada como fazendo parte dele e inserida no lugar próprio, quer seja por meio de substituição de artigos alterados, quer pela supressão de artigos inúteis, ou pelo adicionamento dos que forem necessários». Este preceito não foi cumprido: simplesmente não houve decisão política de o executar. E assim, com o tempo, verificou-se uma acumulação considerável de diplomas extravagantes. Dos 749 artigos que, inicialmente, tinha o Código Comercial, foram revogados mais de 450 artigos, encontrando-se, todavia, ao facto de o legislador ter optado por dispersar a matéria comercial em diplomas extravagantes, em vez de – como
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 se impunha – ir alterando o Código sempre que necessário. O Código Veiga Beirão mantém-se, ainda assim, como bússola sistematizadora do Direito Comercial Português. b) Leis complementares: um primeiro e fundamental núcleo de leis complementares ao Código Comercial é o que resulta de diplomas que substituíram ou alteraram várias das suas disposições. Além disso, cumpre referir a existência de múltiplos diplomas sobre sociedades comerciais submetidas a regimes específicos. Temos, depois, diplomas sobre diversas estruturas organizadas para a prática do comércio. Além disso, há a registar diversa legislação específica relativa a sociedades, a entidades financeiras e a seguradoras. Os importantes sectores comerciais da banca e dos seguros têm, hoje, toda uma vasta legislação especial. Além disso, há que lidar com muitas dezenas de diplomas complementares e com diversa legislação comunitária. Todo o Direito do consumidor poderia, à partida, ser comercial. Inclui dezenas de diplomas. Toda esta matéria passaria para o Código do Consumidor cujo anteprotejo foi posto em discussão pública. Todavia, não teve seguimento. No entanto, razões científicas e o progressivo desaparecimento, em diversos países, dos códigos comerciais têm levado esta matéria para o Direito Civil. Também a defesa da concorrência é matéria comercial. A matéria sobre concentração de empresas poderia, ainda, ser aqui chamada à colação. O processo comercial dispôs, durante décadas, de leis especiais: havia toda uma tradição nesse sentido. O primeiro Código de Processo Comercial data de 2 março 1895, seguindo-lhe um outro, de 13 maio 1896. A matéria teve ainda diversas flutuações, até ser abolida a dualidade de processos, em 1939: o Código de Processo Civil absorveu, então, o comercial.
A doutrina: a situação legislativa permite apenas uma primeira aproximação à comercialística portuguesa dos nossos dias. Torna-se muito importante proceder ao levantamento da situação doutrinária. Deve adiantar-se que a doutrina comercial portuguesa é bastante mais extensa do que por vezes se julga: assume uma dimensão proporcionalmente superior à civil. Na sequência, porventura, da produção de Ferreira Borges e assentes, para mais, no facto de ter sido comercial o primeiro código português, surgiram, no último terço do século XIX, múltiplos estudos jurídicomercantis. Cientistas e homens públicos, da maior craveira, iniciaram as suas carreiras, com estudos de Direito comercial. Vasta citar Theophilo Braga, Hintze Ribeiro, Guilherme Moreira e José Alberto dos Reis. Trata-se, em geral, de obras precisas, corretas, mas pouco densas. Significativos foram os comentários, aos códigos de comércio, e as críticas de política legislativa. Decisivo, contudo, afigura-se-nos o escrito de José Tavares, Das sociedader comerciais que, apesar de apresentado como dissertação inaugural foi, de facto, uma obra geral, que influenciaria toda a comercialística portuguesa do século XX. A Ciência Jurídico-comercial estava, pois, bem viva. Teriam faltado compêndios abrangentes: sem a unidade sistemática, por eles propiciada, o Direito Comercial soçobra, com facilidade, numa multiplicação de temas aparentemente estanques. As condições para que tal sucedesse eram, porém, excelentes. O século XX começou da melhor forma, dominado pelo Curso de Direito Comercial de José Tavares. O Curso esteve, manifestamente, na origem das importantes lições de Caeiro da MAtta, José Gabriel Pinto Coelho, de Veiga Beirão e de Mário de Figueiredo. Curiosamente, estas obras, partindo de interessantes análises históricas, foram amparando um tipo de pensamento jurídico subjetivista. Uma referência particular deve ser feita às lições de Barbosa de Magalhães. Todos estes escritos ficaram, por natureza, vinculados à sua origem pedagógica, sendo evidente que a sua multiplicação traduz mais o espirito individualista dos universitários portugueses, do eu uma
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 verdadeira reformulação nos métodos e nos resultados. Resulta claro, do teor das obras, que o entusiasmo presente nos escritos de José Tavares e de Caeiro da Matta, foi esmorecendo, vindo a ser substituído pelas sebentas dos alunos, pragmáticas e pouco aprofundadas. Faltou, claramente, o coroar de todo o esforço anterior: tratados aprofundados e abrangentes de Direito Comercial, comparáveis aos que vinham vendo a luz, noutras latitudes. A segunda metade do século assistiu a uma concentração de esforços privatistas, no Direito Civil. Era natural, se tivermos em conta o relevo assumido pela reforma civil e, depois, pelo próprio Código de 1966, pela revisão deste e pela sua aplicação. De todo o modo, houve um esforço de revitalização do Direito Comercial, lançado por Ferrer Correia, logo no segundo pós guerra, através da importante monografia sobre sociedades unipessoais e depois coroado por sucessivas e influentes lições universitárias. Paralelamente, Fernando Olavo, além de monografias importantes, manteve a tradição das lições cuidadas, elaboradas pelo próprio. A literatura jurídica do Direito das sociedades tem sido dominada, da melhor forma, por Raúl Ventura. O Direito Comercial só em data recente viria a ser objeto de monografias de fôlego, sendo de referir, como exemplos, Paulo Sendin e as de Evaristo Mendes. A produção geral foi retomada por Oliveira Ascensão, em meados da década de 80 do século XX. Nos princípios de 2012, cabe assinalar o livro de Pedro Pais de Vasconcelos, de cunho didático. Neste momento, a comercialística nacional debate-se entre lições pragmáticas e as monografias dispersas. À atração exercida, sobre os espíritos, pelo Código Civil de 1966, sucedeu outra, não menos explicável, derivada do Direito da economia e do Direito das empresas públicas. A regressão de ambos permitiu isolar sectores mais consistentes, como o Direito das sociedades comerciais, o Direito da concorrência: outros tantos pólos que concentram as pesquisas e enfraquecem a comercialística tradicional. A manutenção e o progresso da comercialística nacional, como em qualquer outro sector jurídico-científico, terão de ser assegurados por uma articulação entre tratados abrangentes, que deem um mínimo de unidade a uma disciplina estruturalmente fragmentária e monografias aprofundadas, que não percam as ligações com a moderna metodologia e com o atual Direito Civil.
8.º - Outras experiências lusófonas
Brasil: após a independência de 1822, o Brasil manteve as leis anteriormente em vigor, com relevo para as Ordenações do Reino. No plano jurídico-científico, conservou-se a tradição de fazer estudar, em Coimbra, os jovens candidatos a juristas: assim se assegurou, num primeiro momento, uma especial proximidade dos Direitos português e brasileiro. As condições específicas reinantes na grande nação, dobradas por uma evolução política própria e epla criação e funcionamento de prestigiadas Faculdades de Direito (S. Paulo e Olinda/Recife), facultaram uma Ciência Própria que acabaria por dar frutos em grandes codificações privadas. Num paralelo com o Direito de Aquém-Atlântico, a primeira codificação brasileira foi o Código Comercial de 25 junho 1850. De resto, a Constituição Brasileira, de 1824, previa, expressamente, a rápida elaboração de um Código Civil e Criminal, o que não foi, no imediato, cumprido: o Código Civil surgiu em 1916. As exigências do comércio não se compadeciam já com as velhas Ordenações, dobradas por inúmeras leis avulsas. Quanto ao Código: foi, grosso modo, retido o modelo napoleónico, sendo ainda manifesto o conhecimento do Código Ferreira Borges. O
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Código Comercial Brasileiro de 1850 repartia-se por três partes: comércio em geral, comércio marítimo e quebras. O Código Comercial sentiu-se na necessidade de desenvolver matéria geral: faltava, à época, um Código Civil para se apoiar. Todavia, ele representou um considerável avanço, indo além, como lhe competia, do Código Ferreira Borges. Registe-se, por fim, que ele teve um certo relevo no estrangeiro. A partir de meados do século XIX, o Direito brasileiro encetou uma complexa migração: abandonou a área de influência napoleónica e aproximou-se da alemã. Essa solução levaria a uma confluência num sistema lusófono, hoje claramente dotado de características próprias. Neste quadro deve ser entendido o primeiro Código Civil brasileiro. Preparado durante cerca de 62 anos, está redigido num excelente português, manifestando caminhos próprios, com uma elaborada influência alemã, em clara emancipação do modelo napoleónico. Estudado e aprofundado por grandes tratadistas e por inúmeras decisões judiciais, o Código ressentir-se-ia da forte evolução da sociedade e da economia brasileiras. Impunhamse novas reformas codificadoras. Em 1976, foi adotada uma lei autónoma para as sociedades anónimas. Desenhava-se um novo Código Civil, cujo anteprojeto veio à luz em 1975. Seguiramse prolongadas revisões, vindo a ser adotado o Novo Código Civil de 10 de janeiro 2002, em vigor um ano após a sua publicação. Foram revogados o Código Civil de 1916 e a primeira parte do Código Comercial de 1850. Como se vê, consumou-se a unificação do Direito privado, com a exceção das sociedades anónimas, dotadas de lei própria: nos casos omissões, aplica-se, porém, o Código Civil. O novo Código Civil Brasileiro dispõe, já, de vasta literatura. Trata-se de um diploma de elaboração própria, com influencias italianas. Procedeu a uma certa unificação do Direito Privado. Ficaram de fora o Direito das Sociedades anónimas, o Direito do Trabalho e o Direito do consumo, matérias que têm uma significativa tradição de estudo autónomo, no Brasil. Aguardamos, agora, um aprofundamento dos estudos de Direito privado, cujo fluxo já se faz sentir. Conserva-se, ainda, um importante intercâmbio jurídico-científico.
Angola: Angola, com as suas riquezas naturais, o seu vasto território e as suas gentes, tem um grande potencial económico. O restabelecimento da paz civil deixa esperar um período de intenso desenvolvimento. Tem, pois, o maior interesse seguir a evolução do seu Direito Comercial. A receção dos princípios de uma economia de mercado foi fixado pela Lei das privatizações. Quanto ao Direito Comercial propriamente dito, temos a assinalar a Lei das Sociedades Comerciais. Trata-se de um diploma de grande Fôlego no qual, com adaptações, é patente a influência do Código das Sociedades Comerciais de 1986. Por essa via, o Dirieto Angolano das Sociedades mantém uma firma ligação ao Direito Continental de filiação germânica. Esse diploma foi antecedido pelo decreto que criou o Ficheiro Central de Denominações Sociais (FCDS). No domínio dos contratos comerciais, temos três importantes diplomas a assinalar: A Lei sobre as cláusulas contratuais gerais dos contratos; A Lei sobre os contratos de distribuição, agência, franchising e concessão comercial; A Lei sobre os contratos de conta em participação, consórcios e agrupamento de empresas. Em todo estes diplomas é patente a integração no sistema lusófono, com as alterações que o legislador angolano entendeu convenientes. Temos, ainda, a assinalar um desenvolvimento especial do Direito dos petróleos, com características mistas: públicas e privadas. A experiência angolana surge sustentada: não se procurou proceder a uma codificação ad nutum, patrocinada
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 por alguma instituição internacional. Antes se tem avançado por fases, apoiadas na jovem doutrina jurídica de Angola.
Cabo Verde: o Direito de Cabo Verde mantém em vigor parte do Código Veiga Beirão. Todavia, abrigou uma importante reforma no Direito das Sociedades. Veio aprovar um denominado Código das Empresas Comerciais, seguindo-se o Registo das Firmas. O Código das Empresas Comerciais de Cabo Verde mostra que, na sua elaboração, foi tida em conta a produção legislativa lusófona mais recente, em especial para o Código das Sociedades Comerciais. Todavia, houve o cuidado de contemplar algumas especialidades nacionais, atendo-se, ainda, a críticas doutrinárias. Trata-se de uma experiência a seguir.
Guiné: a evolução do Direito Comercial na Guiné (ou Guiné Bissau) é marcada pela sua adesão à OHADA (Organisation pour l’Harmonisation en Afrique du Droit des Affaires): criada pelo Tratado relativo à harmonização do Direito Comercial em África, assinado a 17 de outubro de 1993 em Porto Luís (Ilha Maurícia). Hoje, abrange 16 países. A OHADA tem elaborado atos uniformes, particularmente no domínio comercial. Uma vez vertidos em Língua Portuguesa, tais atos devem conformar as leis internas, substituindo a anterior legislação. Nessa linha, foi já adotado o Acto uniforme relativo ao Direito das Sociedades Comerciais e do agrupamento complementar de empresas, seguindo-se atos sobre garantias, arbitragem, insolvência, ação executiva e Direito Comercial em geral, aos quais a Guiné tem vindo a aderir, a partir de 1998. A experiência da OHADA, fortemente marcada pela influência francófona e com grande apoio francês, implica uma inflexão para a órbita gaulesa. Os atos uniformes, elaborados nessa esfera, apresentam uma grande dificuldade conceitual. A Guiné. Como único País aderente portador de uma Ciência Jurídica de tipo germânico, terá excelentes condições para liderar o processo de estudo dos atos uniformes. Para já, é essencial proceder a uma adequada transposição interna, que não sacrifique a sua tradição jurídica própria. É fundamental que o Estado português dê um apoio lúcido à cooperação interuniversitária.
Macau: em Macau, a Administração Portuguesa curou, antes da entrega do Território à China, de elaborar leis envolventes. Entre outras, surgiu assim um Código Civil e um Código Comercial, publicado em versões chinesa, portuguesa e inglesa. Após a entrega de Macau à China, ele foi conservado, cm pequenas alterações. Na sua preparação foram tidas em conta as leis portuguesas e diversas referências doutrinárias. A codificação comercial de Macau tem um grande contorno. Apoiada no Direito português, ela empreendeu a sedimentação de diversos contratos que, entre nós, são conhecidos apenas como tipos sociais. Terá, de resto, sido uma preocupação da Administração Portuguesa: a de deixar obra codificada. Para além disso, verifica-se que, em várias oportunidades, o legislador de Macau introduziu melhorias nos textos adaptados dos portugueses. Em compensação, não poderemos deixas de lastimar algumas alterações terminológicas: existe um português jurídico universal, que deve ser respeitado.
Moçambique: também Moçambique procedeu à codificação do seu Direito Comercial. A experiência não começou da melhor maneira: foi aberto concurso internacional, financiado pelo Banco Mundial, para a preparação, entre outros diplomas, do Código Comercial. A corrupção reinante nos meios onde se decidiu a matéria levou a um adjudicação a uma entidade sul africana não habilitada, a qual subcontratou uma entidade brasileira ignota. Daí resultou um texto totalmente inaproveitável, que acabou sendo recusado pelo Parlamento Moçambicano. Numa segunda tentativa, fez-se apelo a juristas que já haviam tido intervenção na feitura do
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Código Comercial de Macau. A Assembleia da República de Moçambique autorizou o Governo a introduzir alterações no Código Comercial. O Código Comercial de Moçambique apresenta-se mais simples do que o de Macau: não regula, designadamente, tantos tipos contratuais. Além disso – mas aqui tal como o modelo macaense – foi acolhida matéria de inspiração lusófona, com correções que relevam o conhecimento da doutrina subsequente. Todavia, surgem lapsos flagrantes.
São Tomé e Príncipe: a legislação de São Tomé e Príncipe tem vindo a evoluir na base de reformas sectoriais. Para além de diplomas relativos à banca, aos seguros e à promissora indústria petrolífera, temos um interessante filão marcado por regras de extraterritorialidade. Optou-se, em São Tomé e Príncipe, por reformas comerciais sustentadas especialmente dirigidas para o desenvolvimento do País. Trata-se de uma experiência a acompanhar com atenção, sendo manifesto que, do seu funcionamento, podem resultar úteis ensinamentos.
Timor: A experiência timorense tem alguns contornos muito particulares: um verdadeiro caso de estudo. Na sequência da invasão de 1975, foi posta em vigor, na então província de Timor, a legislação indonésia. Trata-se de uma situação de facto, uma vez que a independência fora proclamada em 20 novembro 1975 e a ocupação indonésia nunca chegou a ser reconhecida pela comunidade internacional. A legalidade acabaria por ser reposta na sequência da intervenção das Nações Unidas e do referendo que deu larga maioria à independência. Seguiu-se a Constituição de 2002. Qual o Direito em vigor? A Lei n.º2/2002, de 7 agosto, veio dispor «A legislação vigente em Timor-Leste em 19 de maio de 2002 mantém-se em vigor, com as necessárias adaptações, em tudo o que se não mostrar contrário à Constituição e aos princípios nela consignados». Mas qual era a legislação vigente em 19 de maio de 2002? Logicamente, seria a portuguesa, uma vez que a ocupação indonésia nunca foi reconhecida, nem pela ONU, nem pelo povo de Timor. E nesse sentido, chegou a ser decidido pelo Tribunal de Recurso, em Dili. As confusões daí resultantes, em conjunto com um persistente Direito consuetudinário, levaram o Parlamento de Timor a aprovar uma lei interpretativa: cujo artigo 1.º dispunha: «Entende-se por legislação vigente em Timor-Leste em 19 de maio de 2002, nos termos do disposto no artigo 1.º da Lei n.º2/2002, de 7 de agosto, toda a legislação indonésia que era aplicada e vigorava “de facto” em Timor-Leste, antes do dia 25 de outubro de 2009, nos termos estatuídos no Regulamento n.º 1/1999 da UNTAET». No campo comercial foi, pois, (re)posta em vigor a Lei indonésia. Estão em preparação leis importantes, verdadeiramente timorenses, e que merecem a maior atenção. A instabilidade política tem retardado a sua preparação. No entanto, foi aprovada a Lei “sobre sociedades comerciais”. Trata-se de um verdadeiro código das sociedades comerciais, de forte influência portuguesa, mas que traduz, em diversos pontos, significativas adaptações à realidade local.
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Capítulo 3 – Coordenadas Atuais do Direito Comercial 9.º Características gerais 28 A “comerciabilidade”: o Direito comercial foi apresentado como o Direito privado especial do comércio ou dos comerciantes. Conforme foi referido, a discussão clássica de saber se o Direito Comercial haveria de reger os comerciantes ou os atos de comércio encontra-se, materialmente, superada: existe uma implicação evidente entre as duas noções, de tal modo que ao regular comerciantes, o Direito regerá a sua atividade e os eus atos. Quanto a determinar se um preciso Direito Comercial positivado inicia a construção da matéria por alguma das vertentes em presença, é questão a responder perante cada experiência jurídico-comercial. O Código Veiga Beirão, preocupado com o que ainda parecia uma efetiva opção de fundo, enveredou por um sistema misto, pensadamente ambíguo. No seu artigo 1.º, fez uma profissão de fé objetivista, proclamando reger os atos de comércio, sejam ou não comerciantes as pessoas que neles intervenham. Mas logo no artigo 2.º, vem considerar como comerciais, além dos atos regulados especialmente no Código, os praticados pelos comerciantes, nessa qualidade. O subjetivismo é patente. Existe, entre os juristas, a convicção de que a comercialidade aqui em jogo equivale a um predicativo jurídico: recorrer à economia para esclarecer o tema iria desde logo contundir com a natureza histórica do Direito Mercantil. A doutrina atual mostra-se muito cética quanto à possibilidade de isolar uma comercialidade em sentido substantivo: isso pressuporia uma característica marcante, presente nas normas comercias e que as distinguiria das restantes o que não é realista. Recorrendo à História e ao Direito Comparado, ficam-nos três hipóteses: Ou partir de uma ideia material de comerciante; Ou partir do modo por que se apresente certa atividade humana, para ser comercial; Ou partir do modo por que certa atividade humana seja preparada e desenvolvida. O comerciante é a pessoa que pratica atos jurídicos patrimoniais em termos profissionais, isto é, que dirige a sua atividade económica nesse sentido: tal a noção do artigo 13.º, n.º1. Num sistema aberto, qualquer pessoa o poderá fazer, ocasional, sazonal, duradoura ou permanentemente. Além disso, estaríamos a escamotear o essencial: o comerciante seria o profissional… do comércio, continuando tudo por definir. Fica-nos, pois, como hipótese, a formalização do conceito: comerciante é aquele que, como tal, se encontre inscrito no registo comercial. Chegaríamos, por esta via, a um verdadeiro estatuto profissional de tipo corporativo, o que parece inaceitável: inconstitucional, mesmo. Dadas as dificuldades em partir da noção de comerciante, surgiu outra pista: a de usar o modo por que se apresente certa atividade humana lucrativa. A ideia, que remonta a Heck, é bastante simples: o que caracteriza o ato comercial não é o ser praticado por um comerciante: este pode praticar atos não comerciais, enquanto o não comerciante pode realizar atos comerciais em sentido próprio: o ato comercial define-se, antes, por ser pensado e modelado como ato de massa, isto é, como parte de um procedimento
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 destinado a ser repetidamente levado a cabo. Daí que, sempre segundo Heck, no Direito Comercial, as práticas e os usos do tráfego assumam um maior relevo do que no Direito Civil. Haverá aqui, como nota Canaris, uma parcela de verdade. Mas não obtemos um conceito operacional: temos ato de massa não comerciais e atos comerciais pensados para operar isoladamente. Não se podendo progredir com base no modo por que se apresente certa atividade humana, fica-nos a forma da sua preparação: o ato comercial provém de uma organização de meios destinada a facultá-lo, o que é dizer: de uma empresa. A ideia de empresa tem, no Direito Comercial como no Direito em geral, uma aplicação difusa que dificulta a sua dogmatização: isso lhe dá o seu especial interesse. Podemos, todavia, ponderar desde já a hipótese de a utilizar como elemento aglutinador do Direito Comercial. O recurso à empresa para isolar o Direito Comercial tem raízes que remontam aos finais do século XIX. Todavia, seria na vertente antiliberal dos anos trinta do século XX que, ligada a um pensamento institucionalista, a empresa veio ocupar um espaço explicativo. Desde cedo, porém, se verificou que dificilmente o Direito Comercial seria o Direito da empresa: esta não é sujeito de Direito, tão pouco esgotando o objeto do comércio: A empresa operaria apenas com um referencial: o comércio seria todo aquele que dispusesse de uma empresa ou, noutros termos: o empresário. A hipótese nunca deixou de ser prejudicada pela ambiguidade do termo empresa e pelo facto de esta ser usada como um programa de reforma ou de reativação jurídico-comercial. O debate em torno da utilidade da empresa, para surpreender o Direito Comercial, é muito extenso. Fica a ideia de que a empresa não dá fronteiras seguras para a comercialidade.
O problema da autonomia: não conseguimos apontar um conceito dogmático claro de comercialidade. Fica-nos, pois, a ideia de Direito Comercial como algo de históricoculturalmente propiciado. Teremos aqui a base para a construção jurídica subsequente? Quando se pretenda determinar um Direito Comercial em moldes centrais, isto é, aprioristicamente assentes em princípios norteadores ou numa comercialidade substantiva, acaba por se pôr em crise a sua autonomia. Não foi outro o percurso de Vivante. Na literatura alemã. Nussbaum já havia chegado a essa conclusão. Na doutrina francesa, Marty explica que boa parte das especialidades comerciais foram, afinal, acolhidas no Direito Civil; a unificação seria um facto, surgindo, como áreas autónomas, o Direito Profissional e o Direito do Consumidor. Entre nós, o problema pôs-se aquando da preparação do Código Civil de 1966. O Decreto-Lei n.º 33:908, de 4 setembro 1944, que autorizou o Ministro da Justiça a promover a elaboração de um projeto de revisão geral do Código Civil, não tomou posição sobre o problema da unificação. Por seu turno, a Portaria n.º 10:756, 10 outubro 1944, que nomeou uma comissão para curar da reforma, determinou que ela se ocupasse primeiro do Direito Civil, ficando para ulterior decisão a hipótese de fusão com o Direito Comercial. No período de reflexão subsequente, Galvão Telles pronunciou-se a favor da autonomia comercial, enquanto Barbosa de Magalhães pugnou pela teoria da unidade. A aprovação do Código Civil, a 25 de novembro de 1966, consagraria, em definitivo, a autonomia legal do Direito Comercial. A realizada ronda pela doutrina, em busca de uma comerciabilidade material, permite confirmar as asserções já obtidas, acima, a propósito da evolução histórica. A autonomia do Direito Comercial parece ser ontologicamente inegável, na sequência dos diversos episódios que, desde o século XVII, o animam. Mas é uma autonomia ditada pela tradição e pela cultura: não por postulados científicos. É certo que as normas e os institutos comerciais – ou alguns deles – há de acolher valorações próprias às quais, de modo impreciso mas, apesar de tudo, significativo, se chama comerciais. Trata-se, todavia, de um aspeto a ponderar, norma a norma e caso a caso.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016
A especialidade: à partida, a especialidade deveria ser constatada em cada regra. Apenas uma operação de cotejo entre uma norma geral e a possível norma especial permitirá descobrir uma relação de especialidade. Nestas condições, não admira que a afirmação da natureza especial do Direito Comercial, obrigatoriamente inserida à cabeça dos manuais e tratados dessa disciplina, seja posta em dúvida. Na verdade, boa parte do Direito das Sociedades Comerciais e do Direito dos grupos de empresas não tem equivalência no Direito Civil: não são especiais em relação a coisa nenhuma. O mesmo sucede com o Direito dos títulos de crédito. Quedaria o núcleo tradicional do Direito Mercantil, onde dominam as dúvidas. Como regras especiais do comércio apontam-se, com frequência: a tutela da confiança, a celeridade e a desformalização. Trata-se, porém, ou de vetores que vêm claramente do Direito Civil ou de parâmetros que ocorrem sempre que alguém se dirige ao público. A existência de um Direito Comercial poderia analisar-se num mero conjunto de leis complementares ao Direito Civil, com o seu âmbito próprio de aplicação jurídica. No fundo, a especialidade derivaria de não se incluir, in toto, no sistema padetístico. A afirmação do Direito Comercial como Direito especial só é possível a nível de sistema e com indício de ordem geral. Sendo Direito privado, o Direito Comercial é uma disciplina mais restrita e mais particularizada do que o civil. Posto isto, encontramos no Direito Comercial: Áreas que não têm correspondência no Direito Civil; Áreas que têm regras civis mas que ou surgem muito incipientes ou se dirigem a problemas diversos; Áreas que se poderiam considerar civis ou que têm, pelo menos, aplicações civis; Áreas efetivamente especiais. Com as limitações apontadas, a natureza especial do Direito Comercial corresponde, ainda hoje, a uma representação presente nos juristas e no legislador. Ela terá, por certo, consequências no plano da realização do Direito, ainda que elas devam ser ponderadas caso a caso.
A aplicação analógica do Direito Comercial: ocorre colocar aqui o problema da possibilidade de, por analogia, aplicar normas comerciais no campo civil ou, em geral, fora dos casos por elas visados. A questão é universal: não é admissível que, hoje em dia, uma questão desta natureza obtenha resposta perante as particularidades contingentes de qualquer lei. No Direito comum do século XVI, entendia-se que o ius generale não admitia aplicação extensiva: na linguagem da época, significava isso que ele não admitia aplicação analógica. Simplesmente, o ius singulare era Direito excecional e não especial. À partida, o Direito Comercial não é excecional: as suas regras não contrariam os princípios gerais do Direito Civil. Apenas poderemos dizer que, nalguns casos, elas traduzem desvios em relação ao que resultaria do regime civil geral. A possibilidade de, por analogia, aplicar normas comerciais a questões civil implicará um conjunto de requisitos:
A presença de uma lacuna no Direito Civil; A existência de uma norma comercial que vise um caso análogo a esse; A ausência de uma norma civil nas mesmas circunstâncias; Um juízo de dispensabilidade do comerciante (ou do comércio) para o funcionamento da norma comercial em causa.
Tudo visto, nada impede a aplicabilidade analógica de regras comerciais: haverá, todavia que, caso a caso e norma a norma, ponderando a história e a ratio do preceito em jogo, determinar
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 se procedem os requisitos próprios da aplicação analógica de normas22. A aplicação analógica de normas comerciais não se confunde, em termos metodológicos, com o recurso à analogia para qualificar uma determinada situação jurídica, em globo, como comercial. Tal operação – caso possível – seria, depois, a origem da aplicabilidade de numerosas outras regras comerciais. A jurisprudência alemã e parte da doutrina respondem pela negativa: não caberia aos tribunais substituir-se ao legislador na enumeração do atos comerciais ou do elenco de comerciantes. Também alguma doutrina nacional depõe nessa linha23: não seria possível recorrer à analogia para qualificar um ato como comercial sob pena de contrariar a intenção normativa de, nessa sede, indicar com precisão e pela positiva quais os casos sujeitos a tratamento especial. Tudo dependerá de saber se o regime comercial pode ser alargado por analogia. Pode: desde que se verifiquem os competentes requisitos, a ponderar norma a norma.
A natureza fragmentária e a dependência científica: o Código Comercial vigente surgiu depois de aprovado e em vigor o Código Civil de Seabra, de 1867. Pôde, assim, descongestionar as suas normas: não havia que regular toda a matéria comercialmente relevante mas, apenas, aquela que justificasse um tratamento diferenciado. O resto cairia no Direito Civil. O Direito Comercial não se apresenta, desta forma, como um tecido contínuo: ele sofre repetidas interrupções, ante assumindo uma configuração insular. O Direito Comercial, tomado como um todo regulativo, desenvolveu-se em torno de alguns polos, sem preocupações de unidade. Tradicionalmente, podemos apresentar cinco vértices desse tipo:
O ato comercial e os deveres do comerciante; As sociedades comerciais; Os títulos de crédito; O comércio marítimo; A falência.
Em rigor, eles deveriam surgir como cerne de outras tantas disciplinas autónomas e não como capítulos de uma área unitária. Aliás, há tendências claras no sentido de uma crescente depuração do Direito Comercial, progressivamente reduzido a um conjunto de resíduos. Cientificamente, assim é. O Direito Comercial apresenta-se como uma disciplina lassa, à qual apenas uma tradição histórico-cultural dá o mínimo de estável unidade. Fica-nos, tudo visto, tão pouca matéria que se torna difícil proceder, neste momento, a uma codificação comercial. A natureza do Direito Comercial manifesta-se ainda na sua dependência científica.. O Direito Comercial progride e trabalha usando conceitos e construções civis. Por vezes, afeiçoa-as; noutros casos – a generalidade – isso não ocorre: ou não é possível, ou não é necessário. O risco do comercialismo é, muitas vezes, o de trabalhar com instrumentação arcaica. E porque, justamente e por direito próprio, a comercialística recorre à Ciência Jurídica privada – que, de resto, ela tem contribuído para aperfeiçoar – o Direito Comercial e a sua doutrina assumem, em todas as literaturas, uma feição essencialmente descritiva. Em regra, o Direito Comercial traduz a necessidade de examinar e explicar mecanismos específicos: não a de reparar conceitos,
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Naturalmente: pode a aplicação dos fatores apontados levar a concluir ou que não há analogia de situações ou que não há lacuna ou que a norma comercial candidata é excecional: nessa altura, in concreto, a possibilidade de aplicação analógica. 23 Oliveira Ascensão.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 indagar valorações ou construir novos esquemas explicativos. A defesa do nível dos escritos comerciais deve, pois, estar sempre presente.
Natureza histórico-cultural: em múltiplos momentos da exposição antecedente, viemos sublinhando a natureza histórico-cultural do Direito Mercantil. O Direito Comercial do de tipo continental é fruto de múltiplos acasos históricos, de que recordamos os mais significativos: Os estatutos medievais, simples e diretos, por oposição ao Direito Romano de receção; Os Códigos Savary; O Code du Commerce de Napoleão; Os Tribunais comerciais alemães da primeira metade do século XIX; O ADHGB alemão; A doutrina comercialística do século XIX. Todos estes passos corresponderam, como é evidente, a necessidades do comércio. Mas estas mesmas necessidades poderiam ter sido enfrentadas com recurso a um Direito comum alargado e, pontualmente, a leis especialmente adaptadas. Basta recordar a experiência inglesa. Apenas uma indiscernível complexidade histórica levou a que fosse trilhado este caminho. Nestas condições, o Direito Comercial aparece-nos marcado por forte tradição. Desta deriva, além da própria existência do Direito Comercial, o fundamental da sua configuração sistemática. Submetê-lo a mera reflexão teorética conduz, inevitavelmente, a conceções unionistas do Direito Privado: documentaram-no cem anos de reflexão, desde Vivante a Fikentscjer. Será esse o futuro? Não é, de todo o modo, o presente. A autonomia do Direito Comercial, radicado na sua tradição, é um facto de tal modo irresistível que vem sobrevivendo a gerações de pensadores. Apesar do irracionalismo básico em que assenta, ele servirá valores de monta. Destacamos alguns aspetos: O estatuto profissional do comerciante, com os seus deveres e com alguns – ainda que não declarados privilégios; A existência de áreas especializadas, ligadas à produção e à circulação dos bens enquanto preferencialmente visadas para o produtor ou distribuidor; A necessidade de uma linguagem universal em termos de comércio; este aspeto surge, todavia, muito prejudicado pela natureza histórico-cultural do comércio; Nas dimensões de aprendizagem e da realização, o Direito Comercial tem todos os condimentos para contribuir para constituir uma disciplina autónoma. Mau grado a sua natureza fragmentária e descritiva, o Direito Comercial vem a adquirir uma coesão pedagógica, fruto de uma aproximação de soluções e, daí: de tendências niveladoras quando elas se apresentem injustificadamente diferentes e de tendências diferenciadoras sempre que ocorram arbitrariamente iguais. Em suma: um espaço histórico-cultural dá azo, apesar de todas as fraquezas, a um espaço científico e académico próprio e, daí, a vias específicas de realização do Direito. O tipo de Ciência Jurídica praticada no Direito Comercial tem diferenciações. O Código Veiga Beirão filia-se num pensamento de tipo napoleónico. Embora estivesse, e curso importantes antecedentes, não ocorrera ainda, em 1888, a receção maciça do pensamento alemão, levada a cabo por Guilherme Moreira, a partir de 1902 e que, no espaço de duas gerações, tornaria quase irreconhecível o Direito Civil. Resulta daqui e para o Direito Comercial,
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 um lastro de tradicionalismo científico que, defrontando um Direito Civil mais atual, dará lugar a novas e criativas sínteses-
Internacionalismo e pequeno comércio: o internacionalismo do Direito Comercial era uma referência constante nos manuais clássicos da especialidade. O Direito Comercial teria uma forte parecença nos diversos países, ao contrário do que sucederia no Direito Civil, mais diferenciado. Trata-se de uma afirmação lógica: todavia – e surpreendentemente – sucede o contrário. Temos aqui a contraprova da natureza histórico-cultural do Direito Comercial. Se compararmos o Código Civil de 1966 com o BGB alemão, com o Código Civil italiano – descontando as áreas comerciais – e com o próprio Código Napoleão, notaremos as semelhanças. Quer pela distribuição das matérias, quer pela linguagem, quer pelas soluções, vê-se que estamos perante uma mesma Ciência, com matizes nacionais. Idêntica operação levada a cabo com os códigos comerciais dá uma imagem inversa. Sem uma prévia iniciação, o comercialista formado à luz do Código Veiga Beirão não conseguirá vogar no HGB, no Codice Civile ou, mesmo, no que resta do Code du Commerce. O Código Civil de 1966 é muito mais internacional do que o Código Comercial. Assenta em doutrinas mais recentes e numa receção especialmente cuidada da Ciência Jurídica alemã. Vê-se, por aqui, o risco das repetições estereotipadas, na base de meras aportações acríticas, realizadas a partir de obras clássicas. O que nos resta do Código Comercial é fortemente nacional. E na verdade, ele aplica-se ao pequeno comércio, pouco preocupado com implicações internacionalistas. O grande comércio obedece, hoje, a disciplinas comerciais autónomas, marcadas pela conformação de novos tipos contratuais e por elementos europeus, muito longe dos quadros mercantis de Veiga Beirão. A banca, os seguros ou os valores mobiliários documentam-no, a saciedade. Além disso, agita-se o Direito do Comércio internacional, fortemente contratualizado. As próprias tendências universalizadoras da primeira metade do século XX, de que as leis uniformes são o mais conhecido exemplo, soçobraram em manifestações nacionais. No comércio internacional, os títulos de crédito só por exceção são hoje utilizados. O moderno Direito Bancário oferece esquemas mais rápidos e seguros de transferências de fundos, de meios de pagamento e de garantias. A dogmática alemã dos títulos de crédito distancia-se da francesa, muito mais, por exemplo, do que o que sucede com o s respetivos Direitos das sociedades comerciais. E nenhum operador lusófono iria trabalhar com doutrinas alemãs ou francesas relativas a obrigações cartulares e isso apesar de nos três países vigorarem as leis uniformes. Nas áreas que requerem efetivo internacionalismo, têm ocorrido tendências integradoras. Tal o caso do Direito das Sociedades Comerciais, com as sucessivas diretrizes aí surgidas. Mas tudo isso constitui, hoje, uma disciplina autónoma. O Direito Comercial tradicional é, hoje, o Direito do pequeno comércio, fortemente nacional. Também por isso merece respeito, estudo e preservação. De todo o modo, esse papel não minimiza o interesse científico: ele faculta quadros mentais depois aplicáveis a áreas internacionalizadas. E assim permite, mesmo nesse campo, a defesa da identidade do Direito lusófono.
10.º - A autonomização de disciplinas comerciais
Dados legislativos; Direito Comercial amplo e Direito Comercial residual : o Direito Comercial caracteriza-se por uma abundante produção de diplomas extravagantes. O fenómeno é natural se tivermos em conta que rege um Código Comercial de 1888: ora, de então para cá,
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 as mudanças sociais e económicas são incontáveis. Importantes contratos comerciais – hoje pertença do Direito Bancário – como a locação financeira ou a cessão financeira, que em países como a Alemanha assentam em normas consuetudinárias e na prática das cláusulas contratuais gerais, têm disfrutado, em Portugal, de sucessivos regimes aprovados por lei. A hiperprodução legislativa não deve esconder o facto de algumas áreas comerciais terem obtido regulações científicas de fôlego. Algumas destas áreas apresentam princípios gerais marcantes e, sobretudo, obedecem a técnicas específicas de realização do Direito. Têm uma literatura própria, com manuais e revistas especializados e dispõem de juristas habilitados, que lhes dominam os contornos e o conteúdo. Há uma interligação segura entre o surgimento de codificações separadas de matéria comercial e a autonomização das inerentes disciplinas: ambos os fenómenos se potenciam mutuamente. A autonomização de disciplinas comerciais parece, hoje, irreversível. Todavia, reputamos importante que o Direito Comercial tradicional mantenha contactos com as disciplinas em diáspora. Propomos, por isso, as distinções que se seguem. Um Direito Comercial amplo abrange toda a matéria tradicionalmente comercial e que, grosso modo, é a que, inicialmente, Veiga Beirão incluíra no Código Comercial. O Direito Comercial residual é o que resta depois de terem sido autonomizados ramos como o Direito das Sociedades Comerciais, o Direito da Concorrências, o Direito dos títulos de crédito, o Direito da propriedade industrial, o Direito mobiliário, o Direito Bancário e o Direito dos Seguros.
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II – Doutrina Comercial Geral Capítulo 1 – Comércio e comerciantes Secção I – Dos atos de comércio 13.º - Atos de comércio
O sistema do Código Comercial: segundo o artigo 1.º, a lei comercial rege os atos de comércio. A expressão “ato de comércio” é muito discutida. A doutrina tradicional entendia que a expressão “ato”, quando reportada ao comércio e nas palavras do legislador comercial, tinha um sentido alargado. Designadamente, ficariam abrangidos: Os contratos: boa parte do Código Comercial – Livro II, artigos 96.º e seguintes – lhe é reportada; Os negócios unilaterais: a constituição de uma sociedade comercial unipessoal; Os atos jurídicos em sentido estrito, isto é: enformados, apenas, pela liberdade de celebração: tal sucede com o endosso de um cheque, que deve ser puro e simples; Os factos ilícitos: assim a abalroação com culpa. Dando mais um passo, Fernando Olavo veio sustentar que atos comerciais abrangeria os próprios factos jurídicos stricto sensu, isto é, aqueles que já não se analisassem em atuações humanas, mas apenas em eventualidades que desencadeassem efeitos de Direito: tal sucede com o sinistro causal que ocasione o funcionamento do contrato de seguro. Contra veio depois diversa doutrina. A questão tem interesse por via metodológica: trata-se de estabelecer o sistema do Código Comercial ou, pelo contrário, de, à luz da atual terminologia, afeiçoar uma ideia aceitável de ato de comércio? Neste domínio, releva a primeira opção: definições rigorosas de “factos”, “atos” e “negócios” é tarefa da parte geral do Direito Civil, operada com base em quadros teóricos adequados e não em vetustos textos comerciais. O sistema do Código Comercial é o de regular factos jurídicos em sentido lato – abrangendo contratos, negócios unilaterais, atos não negociais e factos stricto sensu –, e, ainda, diretamente – isto é: independentemente dos factos que os originem – efeitos jurídicos. Di-lo o próprio Código, no seu artigo 2.º, quando afirma: «Serão considerados atos de comércio (…) todos os contratos e obrigações dos comerciantes». É evidente que uma obrigação não é um ato; o Código Veiga Beirão, assumidamente, recorre a esta fórmula para explicar que iria reger toda a matéria comercial: os factos e os seus efeitos ou, se se quiser, os factos e a situações jurídicas que eles originem, retratadas como obrigações.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Tendo fixado este alcance amplo para atos de comércio, o Código passa a refereciá-los, no seu artigo 2.º. Recorre, aí, a dois critérios distintos: Um critério objetivo: o tratar-se de atos especialmente regulados neste Código; Um critério subjetivo: o serem atos de comerciantes. O primeiro critério origina atos objetivos; o segundo, os subjetivos. Cumpre analisá-los separadamente.
Atos de comércio objetivos: são atos de comércio objetivos, nas palavras do artigo 2.º, 1.ª parte,
36 «todos aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código».
Esta fórmula pretende evitar os riscos de uma definição geral de atos de comércio e as dificuldades de uma enumeração explícita, recorrendo a um enunciado implícito: um levantamento de atos comerciais objetivos seria, de todo o modo, possível. Porém, na sua aparente clareza, coloca logo dois problemas: São comerciais todos os atos regulados no Código? São comerciais apenas os atos nele regulados? A primeira questão obtém resposta negativa. A lei não diz «todos os atos regulados neste Código» mas todos os que o sejam especialmente, isto é, com desvio em relação ao regime geral. A especificidade resulta, sempre, de um juízo de pertença ao sistema especial. Só serão comerciais os atos regulados no Código e nos quais aflore a característica da especialidade. Esta advém de uma valoração feita perante a correspondente regra civil ou, pelo menos, da sua integração num conjunto que, perante o equivalente conjunto civil, mereça o epíteto “especial”. Surge, porém, um embaraço, o Código Comercial qualifica, por vezes, certos atos como comerciais sem para eles, prever a aplicação de regimes especiais. É o que sucede com as operações de banco (362.º), remetidas para os respetivos contratos (363.º) ou com o aluguer mercantil (481.º), reenviado para a lei civil (482.º). Cumpre distinguir. Ou a qualificação como ato comercial permite a aplicação de um regime especial e o ate será efetivamente comercial ou isso não sucede e a qualificação legal, por não ter dado azo a qualquer norma de conduta, perde-se. Ora não se presume a presença de normas inúteis (artigo 9.º, n.º3 CC). A qualificação legal remete, assim, para as regras comerciais gerais, em termos a ponderar caso a caso. A segunda questão obtém, também, resposta negativa: haverá atos comerciais que não estão regulados no Código Comercial. Assim: São comerciais os atos regidos por diplomas que vieram substituir normas do Código Comercial mantendo-se, todavia, como extravagantes; São comerciais os atos tratados em normas extravagantes que se assumam comerciais. Em ambos os casos mantém-se a necessidade de se tratar de atos especialmente regulados, isto é: com o desvio de especialidade em relação à lei civil. Segue; atos comerciais por analogia? Coloca-se, por fim, a questão da possibilidade de considerar comerciais atos que não surjam nem no Código Comercial, nem em leis que alteraram o Código Comercial, nem em leis que se assumam, elas próprias, como comerciais. Isso
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 implicaria o recurso à analogia para qualificar, como comercial, um certo ato. A doutrina portuguesa, dividiu-se quanto a esta matéria: contra analogia na qualificação de atos comerciais pronunciaram-se Guilherme Moreira, Caeiro da Matta, Fernando Olavo, Ferrer Correia e Oliveira Ascensão; a seu favor votam José Benevides, Cunha Gonçalves, Barbosa de Magalhães e Lobo Xavier. Outros autores, como Azevedo e Silva e Eduardo Saldanha preferem falar no caráter taxativo da enunciação dos atos de comércio objetivos, o que equivale, parece, à exclusão do seu alargamento por analogia. No campo oposto surge uma denominada teoria do acessório, segundo a qual seriam comerciais os atos acessórios de outros, objetivamente comerciais. Tratase de uma figura presente em Cunha Gonçalves e Barbosa de Magalhães. A doutrina dominante reconduz esta teoria a uma fórmula de analogia. O problema da qualificação de certos atos como comerciais, com recurso à analogia, representa um exercício teórico de interpretação e de construção jurídicas: tal sucede, de resto, com a interpretação de todo o artigo 2.º do Código Comercial. Em termos práticos, o problema não se tem posto dada a envolvência da 2.ª parte do artigo 2.º e dada a escassez de aplicações analógicas ocorridas nos nossos tribunais. Na verdade, os atos que não sejam comerciais por estarem especialmente regulados no Código – ou em diplomas equivalentes – e que tenham relevo económico, são praticados por comerciantes assim acedendo à comerciabilidade. Quanto à analogia: muito debatida nos manuais teóricos, ela está ausente da jurisprudência. A proliferação e normas, de princípios e de conceitos indeterminados juiz encontrar soluções para os problemas sem percorrer o clássico caminho da determinação e da integração de lacunas. Não parece de todo possível discutir a possibilidade do uso de analogia na qualificação de atos como comerciais sem saber quais as implicações em jogo. As regras envolvidas em tal qualificação são decisivas. Tudo depende, pois e desde logo, do regime em jogo. O debate da possibilidade do recurso à analogia na qualificação de atos de comércio corresponde a uma inversão metodológica. A qualificação não é causal do regime: antes decorre deste. 24 Não se deve, a priori e em abstrato, qualificar (ou não) qualquer ato como comercial. O caminho correto é o inverso: perante um ato, há que lhe determinar o regime; conhecido este: se se tratar de um regime comercial, o ato é comercial, sob pena de inutilidade do próprio conceito. Proclamar um ato como comercial é um esquema expedito de dizer que se lhe aplicam determinadas regras: de outra forma, o Direito nem seria manuseável. Mas havendo dúvidas, há que descer ao fundamento da qualificação. As regras de Direito Comercial são especiais: à partida, não são excecionais. Comportam pois, como vimos, aplicação analógica. Posto isto, podemos assentar no seguinte: Perante um ato que não esteja “especialmente regulado neste Código” – ou situação equivalente –, há que verificar se o seu regime é comercial e especial; sendo a resposta positiva, o ato é comercial; Perante um ato lacunoso, há que lhe apurar o regime: seja pela analogia, seja pela norma que o interprete criaria; na integração da lacuna, podem ser usadas normas e princípios comerciais – desde que não excecionais – de acordo com as regras gerais aqui aplicáveis; perante o resultado obtido, se chegarmos à conclusão que o ato ficou como que especialmente regulado neste Código, ele é comercial. Digamos que, por esta via, é teoricamente possível que um ato deva ser considerado comercial, por força de aplicação analógica (ou da norma que o intérprete criaria) das normas de que a 24
Trata-se, aliás, do esquema geral que deve presidir Às qualificações, seja no Direito interno, seja no Direito internacional provado; vide o artigo 15.º do Código Civil.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 qualificação dependa. Pode ainda ocorrer um ato neutro, isto é: um ato não lacunoso e cujo regime, uma vez apurado, não permita descobrir nem comercialidade, nem ausência dela. Nessa altura, o ato é civil, já que não se mostra qualquer especialidade. Alguma doutrina poderia contrapor um obstáculo: o artigo 3.º, que fixa o critério de integração das «questões sobre direitos e obrigações comerciais» pressupõe, antes da integração, a qualificação da figura. Sem a intervenção da moderna teoria da realização do Direito, o artigo 3.º é um círculo inextrincável: não sabemos qual o regime de uma questão, como decidir se ela é civil ou comercial? A norma é um todo e, tal com a interpretação, a integração e a aplicação, faz parte de um processo unitário. A questão decidida pelo Direito Comercial é comercial. E comercial será a resolvida pelo espírito da lei comercial, por aplicação analógica do Direito Comercial ou, até, pelo Direito Civil, mas numa ambiência ou confluência de valores que permitam julgar este como de mera aplicação subsidiária. Evidentemente: se mercê de valorações seguras já sedimentadas, soubermos de antemão que determinado ato merece o epíteto de comercial, poderemos seguir, na prática, por esse atalho, dele decorrendo o regime. A via da investigação é, porém, sempre a inversa. Segue; o problemas das empresas do artigo 230.º: no tocante à determinação de atos de comércio objetivos, deparamos com o artigo 230.º. Perante o seu teto, encontramos, frente a frente, duas grandes linhas de interpretação: a da empresa-atividade, que entende estarem em causa das atuações ou conjuntos de atos anunciados no focado artigo 230.º, seguida por Guilherme Moreira, por Lobo Xavier e por Coutinho de Abreu; a da empresa-organização, que julga tratar-se das entidades singulares ou coletivas, que desenvolvam depois as referenciadas atividades; era a orientação de José Tavares, de Adriano Anthero, de Cunha Gonçalves, de Barbosa de Magalhães e de Paulo Sendin. A questão tem interesse pelo seguinte: na primeira hipótese, o artigo 230.º permitiria enunciar novos atos como objetivamente comerciais; na segunda, seriam referenciados comerciantes, autores de hipotéticos atos comerciais, mas agora em sentido subjetivo. Surgem, ainda, opiniões mistas ou conciliadoras, como a de Fernando Olavo, Oliveira Ascensão e Pupo Correia: a lei enunciaria empresas comerciais – portanto: comerciantes – mas pela via de considerar comerciais as respetivas atividades. Mas não se pode evitar o problema: se o artigo 230.º, seja qual for a via seguida, tomar por comerciantes as pessoas que nele se perfilem, todos os atos por eles praticados, que não caiam na exclusão da 2.ª parte do artigo 2.º, seriam comerciais. A interpretação do artigo 230.º coloca um curioso problema geral da interpretação. Esta, de acordo com os cânones hoje dominantes, deve preferencialmente ser atualista e objetivista. A doutrina que vê na empresa do artigo 230.º, um empresário é, em especial, sugestionada pela referência legal a «singulares ou colectivas». Lêse, aí «pessoas singulares ou coletivas». Porém, em 1888, a expressão «pessoa coletiva» era desconhecida na doutrina portuguesa; ela apenas surgiria em 1907 – e portanto – quase 20 anos depois – pela pena de Guilherme Moreira, sendo genuinamente nacional: nem no Brasil ela é usada. O artigo 230.º não tinha em vista quaisquer sujeitos, singulares ou coletivos: antes se reportava a atuações (empreendimentos) levadas a cabo por uma única pessoa – singulares – ou concretamente por várias pessoas – coletivas. Por seu turno, a palavra “empresa” tinha, então, o sentido de atividade, tarefa ou empreendimento25; não o de organização de meios, tipo sujeito. A locução «que se propuseram» significa “que visarem” ou que “tenham como objetivo”: trata-se de definir o tipo de atividade em jogo e não as intenções futuras seja de quem for. Portanto e categoricamente: em 1888, o artigo 230.º visava classificar com comerciais 25
Empresa vem do latim in + preheso, agarrar, procurar obter, solicitar ou se candidato a.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 determinadas atividades ou conjuntos de atos, a desenvolver por uma pessoa só ou por várias. Saber se o autor dessa atividade é ou não comerciante será assunto a decidir nos termos do artigo 13.º Atualmente, os termos “singulares ou coletivas” e “empresas” têm – pelo menos em Direito – outros significados. “Singulares ou coletivas” esgotam o universo dos sujeitos jurídicos, enquanto “empresas” traduzem organizações de meios humano e materiais com vista a uma atuação economicamente racionalizada. Haverá elementos sistemáticos ou teleológicos que, somados às condições em que a lei venha a ser explicada, recomendem uma interpretação que descubra, no artigo 230.º, uma listagem de comerciantes? Entendemos que não. Interpretar o artigo 230.º como um elenco de comerciantes iria contundir com o artigo 13.º: o artigo 230.º não se reportaria a sociedades (!) nem a comerciantes profissionais (!) que já seriam comerciantes por aquele mesmo preceito; apenas ao remanescente… e que fosse empresaAlém disso, essa interpretação ficaria francamente fora do espirito do Código Comercial, que regula atos de comércio, sejam ou não comerciantes os seus autores – artigo 1.º. O elemento sistemático da interpretação depõe contra a subjetivação ou empresarialização do artigo 230.º. Em termos teleológicos, tão pouco essas duas saídas seriam de encarar. Classificar uma entidade como comerciante (só) por causa de um empreendimento conduziria a um Direito de classe estranho ao pensamento dos nossos dias, artificializando a noção, desmesuradamente alargada. Finalmente, a empresa não é sujeito de Direito nem realiza atividades; a evolução jurídica dos nossos dias mantém-na num lugar à parte, fora dos quadros jurídicos estritos. Donde o seu interesse. Mal estaríamos se se recorresse a ela, num aspeto tão marcadamente conceitual: um ponto a confirmar, quando analisarmos a ideia de empresa. O artigo 230.º tem ido alongado por diversa legislação extravagante que refere empresas comerciais. Caso a caso e diploma por diploma, haverá que ver se se qualificam novas atividades como comerciais – entenda-se, como conjuntos articulados de atos comerciais – ou se é dos respetivos sujeitos – em regra, sociedades – que se trata.
Atos de comércio subjetivos: o artigo 2.º do Código Comercial fixou os atos de comércio objetivos, isto é, os que o são por si e em si mesmos. São «todos aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código», com os alargamentos e as delimitações acima apurados. Prossegue a sua 2.ª parte26: «e além deles, todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio ato não resultar». São os atos comerciais subjetivos: a comercialidade deriva do sujeito. A referência a “contratos e obrigações” como atos já cima foi enfrentada: ela permite concluir que atos traduz, no sistema do código, todo e qualquer facto jurídico comercialmente relevante. A expressão “…além deles…” permitiria afastar a hipótese de haver, com referência aos atos subjetivos, uma mera presunção de comercialidade. A lei determina, em definitivo, que os contratos e obrigações dos comerciantes sejam considerados atos de comércio. “Dos comerciantes” pode, sem dificuldade, ser reportado À definição de comerciante que resulta do artigo 13.º. Para serem comerciais, os 26
O artigo 2.º surge como uma curiosa bissetriz da doutrina da época; enquanto a 1.ª parte foi retirada do Código Comercial Espanhol, a 2.ª, agora em causa, adveio do Código de Comércio Italiano de 1882. As alterações cifram-se no seguinte: a fórmula “reputam-se” foi suprimida, ficando apenas “além deles”; o advérbio “essencialmente” foi substituído por “exclusivamente”. Todas estas subtilezas têm sido, entre nós e ao longo de gerações de comerciallistas, objeto de leituras específicas e fonte de apuramentos diversificados.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 contratos e obrigações, dos comerciantes não devem ser de natureza exclusivamente civil. Uma doutrina tradicional, alicerçada nos trabalhos preparatórios e subscrita por Guilherme Moreira entende que a natureza “exclusivamente civil” assiste aos atos regulados apenas no Código Civil. O envelhecimento do Código Civil – entenda-se: o de Seabra – levou a que surgisse matéria civil fora dele; além disso, os estudiosos aperceberam-se de que o próprio Código Civil poderia ter matéria comercial. Assim, a doutrina tradicional evoluiu, assumindo uma feição negativa, patente em Fernando Olavo: teriam natureza exclusivamente civil os atos não especialmente contemplados no Código Comercial, não integrados num género de que uma espécie estivesse tratada nesse C´digo nem, finalmente, integrados no núcleo do artigo 230.º. Uma curiosa evolução desta mesma orientação surge-nos em Oliveira Ascensão: o ato exclusivamente civil é o que não possa ser regulado pelo Código Comercial. A esta orientação contrapõe-se uma outra que mergulha diretamente na interpretação, feita pela doutrina italiana, do artigo 4.º do revogado Codie di Commercio de 1882: seriam atos de natureza exclusivamente civil os que pela sua natureza, não são conexionáveis com o exercício do comércio. Tal a opção de Alves de Sá, Barbosa de Magalhães, de Ferrer Correira, de Lobo Xavier, de Olavo Cunha. A referência a atos que não tenham natureza exclusivamente civil corresponde a um recorte ou a uma delimitação objetiva no seio dos atos subjetivamente comerciais. Estão em causa situações jurídicas que, embora encabeçadas por comerciantes, não podem ter natureza comercial. Porquê? A História dá várias leituras, ora mais legalistas (porque só constam do Código Civil ou porque não podem constar do Código Comercial) ora mais valorativas (porque não se podem conexionar com o comércio), mas todas em torno da mesma ideia. Uma fórmula mais abrangente e atualista tomará como exclusivamente civis os atos que, no momento considerado, não sejam regulados pelo Direito Comercial: esta a noção. Não nos parece viável dar um critério universal para tais atos: caso a caso teríamos de discutir se, perante as valorações em presença, o ato em jogo ainda se poderia submeter a regras comerciais. Admitimos, pois, que possa haver atos conectados com o exercício do comércio. Não serão, pois, atos de comércio. O artigo 2.º, 2.ª parte, conclui com uma fórmula pitoresca (Oliveira Ascensão): «se o contrário do próprio ato não resultar». Aquando da apresentação do projeto, Veiga Beirão propendia para conectar esta fórmula À 1.ª parte do artigo 2.º: o ato (subjetivamente) comercial já não o seria se, dele próprio, resultasse o contrário. A doutrina rejeitou com unanimidade tal asserção: se do próprio ato objetivamente comercial resultasse que o não era, o problema nunca se poria, para ter de ser excecionado. A doutrina acolheu-se, então, ao entendimento de Manara, desenvolvido em Itália a propósito de idêntica fórmula constante do Codice di Commercio: o ato praticado pelo comerciante só será comercial se não resultar de si próprio ou de circunstâncias que o acompanhem que não tem a ver com o giro comercial. O comerciante que pratique atos que não sejam de natureza exclusivamente civil terá pois o encargo de deles fazer constar que não se inserem o seu manejo comercial; de outro modo, terão natureza mercantil. Como é evidente: à medida que toda a atividade comercial venha a ser levada a cabo por sociedades comerciais, este final do artigo 2.º perde o alcance prático.
Os atos mistos: na tradição comercial, fala-se em atos. Todavia, é sabido que tais atos são, na sua grande maioria, contratos. A razão radica na eventualidade de atos subjetivos de comércio. Nessa eventualidade, quando um ato bilateral (contrato) seja comercial relativamente a uma das partes (comerciante) e não comercial em relação à outra (não comerciante), que regime aplicar? Trata-se dos denominados atos mistos: comerciais em relação a uma das partes e não comerciais em relação à outra. O Direito Comercial permite, numa especialidade não conhecida
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 no Direito Civil, cindir um contrato em dois atos, de modo a que opere como comercial, apenas, para uma das partes. Haverá, então, que discernir, por via do artigo 99.º: As regras que, pela sua natureza, forem aplicáveis apenas à parte comerciante, funcionam em relação a ela; à outra parte, aplica-se o Direito comum; Não sendo possível fazer essa destrinça, ambas as partes ficam sujeitas à lei comercial.
Síntese; a Lei n.º 3/99, 13 janeiro; perspetivas: o desenvolvimento anterior constitui uma rubrica clássica do comercialismo português. Todos os autores intervêm e o debate agita diverso vetores do Direito Comercial. O atos subjetivamente comerciais têm o regime que lhes advém da lei: seja do Código Comercial seja – hipótese cada vez mais frequente – de leis extravagantes. A sua identificação depende do concreto regime que a cada um assista: nunca de prévias fórmulas conceituais abstratos. Os atos subjetivamente comerciais que não coincidam com os primeiros apenas se distinguem dos correspondentes civis por escassos aspetos. Outrora, a distinção era decisiva uma vez que dela dependia o foro competente: o atos comerciais eram julgados em tribunais comerciais, com uma composição específica e regras processuais próprias; os civis seguiam o foro comum. Após 1932, o foro foi unificado. E com o Código de Processo Civil de 1939, desapareceu o próprio processo criminal. Muitas questões correm, nos nossos tribunais, sem que tenha de se decidir se os atos nelas discutidos têm natureza civil ou comercial. De todo o modo, vamos sintetizar as conclusões a que chegámos: Os atos comerciais são factos jurídicos lato sensu e, ainda, as situações jurídicas deles decorrentes, que se rejam pelo Direito Comercial; A comercialidade desses atos pode resultar de, independentemente do sujeito que os encabece, lhes ser aplicável um regime especial historicamente dito mercantil (atos objetivamente comerciais); Ou de tal regime lhes competir por terem sido levados a cabo por comerciantes, no exercício do comércio (atos subjetivamente comerciais). É esta a interpretação que resulta, hoje, do artigo 2.º do Código Veiga Beirão.
14.º - Regime geral dos atos de comércio Sistema de fontes; analogia e princípios comerciais: os atos de comércio, isto é, na linguagem do Código Comercial, o conjunto das situações jurídicas comerciais, regem-se pelas normas competentes de Direito Mercantil. A natureza deste sector normativo, dita especial, leva ao estabelecimento de um particular sistema de fontes. Dispõe o artigo 3.º: «Se as questões sobre direitos e obrigações comerciais não puderem ser resolvidas, nem pelo texto da lei comercial, nem pelo seu espírito, nem pelos casos análogos nela previstos, serão decididas pelo direito civil». O artigo transcrito tem a ver com todas as situações jurídicas comercias. O artigo 2.º recorrera à locução «contratos e obrigações dos comerciantes»; desta feita, surgem-nos os «direitos e obrigações comerciais», num conjunto de flutuações que transmitem a conceção normativa de
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 todo o universo comercial. O artigo 3.º remete, em primeiro lugar, para o «texto da lei comercial» e, de seguida, para o «seu espírito». Encontramos a letra e o espírito da lei, que o Código Civil, no seu artigo 9.º, ainda manteve passado quase um século. Não se trata, apenas, da letra e do espírito da lei comercial mas, simplesmente, do Direito Comercial diretamente aplicável. O próprio artigo 3.º fala em lei comercial e, não, em Código Comercial: prova de que se deve trabalhar com todo o conjunto das fontes comerciais. O preceito em análise parece ainda pressupor, como questão previamente assente, a classificação dos direitos e obrigações em jogo como comerciais: só depois de termos arrumado esse ponto poderíamos passar à aplicação da lei comercial. Como vimos, ocorre aqui uma construção ainda conceitualista da realização do Direito. Em termos valorativos e, até, gnoseológicos, a qualificação e aplicação da lei comercial operam em conjunto. Justamente por, a determinada situação da vida, se dever aplicar a lei comercial é que constatamos estar-se perante um ato de comércio. Feita esta precisão, nenhum inconveniente existe em, para efeitos de análise, manter a ficção da separação do processo de realização do Direito em várias fases. Determinada uma lacuna, o artigo 3.º manda recorrer aos «casos análogos nele prevenidos». Remete-se, pois, para a analogia, mas dentro do Direito Comercial. A ideia é a seguinte: o Direito Comercial tem uma lógica intrínseca; aplica-se perante conjunções de interesses e de valores a que, historicamente, se chame vida comercial. Quando ocorra uma confluência de interesses e de valores, em tudo semelhante a uma situação comercialmente regulada, temos um caso análogo que deverá conhecer a mesma solução. Também no Direito Comercial se conserva a ideia de que, na Ordem Jurídica, há que tratar o igual de modo igual e o diferente de modo diferente de acordo com a medida da diferença. Aparentemente, teríamos aqui quatro operações distintas:
A qualificação de uma situação como comercial; A constatação de uma lacuna na lei comercial; O apuramento de um caso análogo na lei comercial; A integração aplicativa.
Não é assim: esta separação de operações apenas tem interesse analítico para efeitos de exposição universitária; ela não corresponde à realidade do processo de realização do Direito, tal como hoje o conhecemos. Desde logo, a integração de uma lacuna e a sua determinação operam, muitas vezes, em simultâneo: justamente por uma norma reclamar a sua própria aplicação fora do campo que, à partida, lhe caberia, é que podemos apurar a presença do caso omisso. Em suma: as regras comerciais têm a potencialidade de se aplicar às situações que prevejam e, ainda, às denominadas situações análogas. Na falta de casos análogos e antes de passar ao Direito subsidiário, poderíamos recorrer aos princípios comerciais? A doutrina tradicional distinguia entre a analogia legis e a analogia iuris: na primeira, passar-se-ia diretamente da norma par a situação análoga; na segunda, isso seria possível apenas através da mediação de um princípio. Sempre segundo essa doutrina, a analogia iuris surgiria ainda como analogia. Diferentemente de ambos é o recurso a princípios gerais: ai já não há o estabelecimento de situações análogas mas, somente, a constatação da presença de valorações sensíveis aos mesmos vetores jurídicos. Havendo um princípio comercial aplicável, há que recorrer a ele antes de passar ao Direito subsidiário. Trata-se de uma interpretação atualista do artigo 3.º, em parte facilitada pelo teor do artigo 2.º do CSC. Impõem-se, porém, duas precisões: Os princípios verdadeiramente comerciais, dada a natureza fragmentária deste ramo do Direito, serão raros e difíceis de distinguir dos princípios civis;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Existe, no recurso a princípios comerciais, como na própria hipótese de analogia, sempre uma sindicância do Direito Subsidiário: o Direito Civil. Noutros termos: a insistência na busca intracomerial de uma solução, depois de se ter apurado a falta de norma diretamente aplicável, ocorre porque, mercê dos fatores de realização do Direito em presença, a aplicação da lei civil se mostra insatisfatória. E aqui temos mais uma confirmação da unidade do processo.
O Direito subsidiário; também Direito público? Esgotadas as buscas de solução à luz do Direito Comercial e do seu sistema, manda o artigo 3.º recorrer ao Direito Civil. Na fase mais marcadamente exegética que se seguiu à publicação do Código de Seabra e do Código Veiga Beirão, entendeu-se que Direito Civil era o Código Civil. Orientação abandonada: valem, para efeitos de Direito subsidiário, quaisquer fontes civis. O tratamento do Direito Civil como mero Direito subsidiário implica que se lhe recorra apenas na certeza de exauridas as soluções comerciais. Digamos que o recurso à lei civil é natural, por estarmos perante um Direito especial, sendo ela o comum; mas justamente por isso, apurada a especialidade do caso que exigiria um tratamento comercial, só perante a falha do sistema se cai no campo civil. Uma prevenção: tudo isto é razoável; todavia, devemos ter em conta que mercê da natureza fragmentária do Direito Comercial, o seu relevo é mais teórico do que prático. No Direito Alemão, as relações de subsidiariedade entre os Direitos Civil e Comercial foram estabelecidas de modo inverso27. A doutrina deduz que o Direito Comercial recebe em regra uma aplicação conjunta com o Direito Civil. Resulta uma estruturação aparentemente mais frágil do Direito Comercial: embora admitindo a aplicação analógica das regras comerciais, a doutrina recai mais facilmente no Direito Civil. Trata-se de uma decorrência da conceção do Direito Comercial como Direito especial dos comerciantes; uma construção de tipo objetivista é levada, naturalmente, a conceber o sistema comercial em moldes mais fechados. O Direito Civil, quando chamado a resolver questões comerciais, mantém a natureza civil. Parece-nos legítimo colocar hoje uma questão mais ampla: o Direito Civil será apenas Direito Civil em sentido técnico ou abrangerá, antes, todo o Direito comum, mesmo público? Há áreas importantes do Direito Comercial que relevam mais do Direito Público do que do privado. Pense-se na escrituração mercantil, no registo comercial e nas diversas áreas instrumentais. Temos ramos especializados do Direito Comercial, como o Direito Bancário e o Direito dos Seguros, que comportam níveis públicos. Ora nesses casos, o Direito subsidiário será constituído pelo Direito público comum – portanto: pelo Direito Administrativo –, só na falha deste se regressando ao Direito Civil.
Princípios materiais: o sistema de fontes do Direito Comercial dá-nos apenas um quadro abstrato das suas regras aplicáveis. Fica em aberto a questão magna de saber se é possível a elaboração de princípios comerciais materiais. Como representativa das atuais enumerações de princípios elaborados pela Ciência do Direito, vamos partir da de Karsten Schmidt 28 , completando-a. Descobrimos os seguintes:
27
Segundo o artigo 2.º da Lei de Introdução do Código Comercial – o EGHGB - «nas questões comerciais os preceitos do Código Civil só recebem aplicação na medida em que no Código Comercial não esteja determinado diversamente». 28 Este autor não refere diretamente princípios mas sim “características” das normas comerciais. ClausWilheim Canaris refere, por seu turno: o alargamento da autonomia privada, a tutela da confiança e do tráfego e o progresso. Tobias Letl elenca a rapidez e a simplicidade, a segurança e a clareza do tráfego jurídico, a autoresponsabilização dos comerciantes e a natureza complementadora perante a lei civil.
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A internacionalidade; A simplicidade e a rapidez; A clareza jurídica, a publicidade e a tutela da confiança; A onerosidade.
No tocante à internacionalidade, verificamos que, para além das leis uniformes e da integração comunitária, o saldo é magro: a nível internacional fica a esperança na lex mercatorum e nos esforços da UNCITRAL ou da UNIDROIT enquanto, a nível interno, vale o labor dos universitários e da Ciência do Direito, como placa giratória para a formação de uma comercialística universal. A simplicidade e a rapidez manifestam-se em regras já tradicionais. Assim, cumpre reter:
A liberdade de escrituração, salvo quanto ao livro de atas – artigo 30.º; A liberdade de língua – artigo 96.º; A liberdade de forma do mandato geral – artigo 249.º; A possibilidade de provar o empréstimo mercantil por qualquer modo – artigo 396.º; A possibilidade de celebrar penhor com entrega meramente simbólica da coisa empenhada – artigo 398.º, § único.
A clareza jurídica, a publicidade e a tutela da confiança aflorariam em diversos institutos, com relevo para:
O valor probatório dos livros dos corretores – artigo 98.º; A aplicação da lei comercial aos atos apenas unilateralmente comerciais – artigo 99.º; A regra da solidariedade nas obrigações comerciais – artigo 100.º; A solidariedade do fiador – artigo 101.º; O registo comercial, hoje constante de um Código próprio, com relevo para a proteção dos terceiros de boa fé – artigo 22.º, n.º3 CRC; A proteção do portador de título de crédito, de boa fé – artigo 16.º/II da LULLiv e artigo 21.º da LUCh; O regime especial do artigo 1301.º do Código Civil, no tocante a coisa comprada de boa fé a um comerciante; Múltiplas regras do Direito das Sociedades Comerciais. Por vezes, os autores falam, a propósito de algunss destes vetores, em tutela do crédito; tal tutela resulta, porém, de regras e princípios que comportam um tratamento analítico diferenciado. Digaos que a tutela do crédito é o efeito e não a regra para lá chegar. Por fim, a onerosidade é uma regra lógica e normal no comércio: trata-se de um Direito profissional subordinado à ideia da obtenção de lucros. A onerosidade aflora: Na possibilidade de uma taxa supletiva de juros moratórios a favor de créditos de comerciantes – artigo 102.º, §3; Na presunção de que o mandato comercial é remunerado – artigo 232.º contrastante com uma presunção de princípio de sinal contrário, no Direito Civil – artigo 1153.º do Código Civil; Na regra de que o empréstimo mercantil é sempre retribuído – artigo 395.º -, contra a simples presunção de onerosidade do mútuo civil – artigo 1145.º, n.º1 do Código
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Civil – e contra a regra da gratuitidade do comodato – artigo 1129.º do mesmo Código29; Na fixação de juros comerciais supletivos superiores aos civis: portarias n.º 262/99 e n.º 263/99, ambas de 12 de abril, para os uros comerciais (12%) e civis (7%); Na regra da gratificação do depositário mercantil – artigo 404.º - contra a presunção de gratuitidade civil – artigo 1186.º do Código Civil, que remete para o artigo 1158.º do mesmo Código. As normas apontadas deixam-nos, efetivamente, uma imagem do Direito Comercial como uma disciplina virada para a circulação de bem e de serviços, mais estritamente aderente às realidades económicas. O Direito Comercial tentaria, assim, diminuir os custos negociais das transações na linguagem da teoria económica do Direito, facilitando a forma dos contratos e a sua prova. A autonomia privada teria um papel acrescido, de modo a que, por contrato, melhor se possam encara quaisquer novas necessidades. Além disso, o Direito Comercial reforçaria o crédito de garantia mais eficazes e da tutela da boa fé. Finalmente, tudo no comércio estaria virado para o lucro. Impõe-se, tudo no comércio estaria virado para o lucro. Impõe-se, contudo, uma dupla ressalva: os apontados vetores não são estranhos ao Direito Civil, designadamente quando patrimonial; por outro lado, o próprio Direito Comercial não os concretiza uniformemente: eles vão surgindo ao sabor de institutos históricos e culturalmente condicionados.
29
O empréstimo, na linguagem do Código de Seabra que é a de Veiga Beirão, abrange, efetivamente, quer o comodato, quer o mútuo, consoante a natureza não-fungível ou fungível das coisas envolvidas.
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15.º - Os usos comerciais
Aspetos gerais: os usos comerciais estão na origem do Direito Mercantil. As exigências do comércio medieval originaram, nas cidades italianas e, mais tarde, nas do Norte da Europa, regras que serviam todos os interessados e que, por isso, eles voluntariamente subscrevam. Pergunta-se, todavia, porquê os usos e não costumes? Na tradição civil, diz-se costume a prática social reiterada, acompanhada da convicção da sua obrigatoriedade. O uso seria, simplesmente, acompanhada da convicção da sua obrigatoriedade. O uso seria, simplesmente, uma prática reiterada, sem esse elemento subjetivo. Esta conceção deve ser abandonada: a convicção da obrigatoriedade só surge… depois de haver costume. Por isso, a distinção entre o uso e o costume não pode ser endossada à denominada “convicção de obrigatoriedade”, presente, apenas, neste último. A distinção será outra: o costume traduz regras de tipo imperativo. Pelo contrário, o uso é supletivo. Só adere a um uso quem pretender beneficiar do que ele comporte; em compensação, o costume traduz uma conduta imperativa, sob cominação de sanções. Compreende-se, a esta luz, porque razão, no Direito Comercial, operam os usos e não, em regra, o costume: as regras em jogo são supletivas. E já assim era nos inícios. O desenvolvimento do Direito Comercial, na Alemanha e durante a primeira parte do século XIX operou, em boa parte, na base dos usos. Por isso e em homenagem às origens, os códigos comerciais do século XIX – com relevo para o ADHGB e pra o Codice di Commercio de 1882 – davam um especial papel aos usos. A evolução subsequente levou a que muitos dos usos comerciais fossem acolhidos nas leis. Dada essa recuperação do Direito Comercial pelo Estado, pouco sentido faria a manutenção de um especial papel dos usos: difíceis de conhecer e de impor, eles constituiriam sempre um fator de complicação e de incerteza. Sensível a esta problemática, o Código Comercial não os inclui entre os seus esquemas de integração, previstos no artigo 3.º. Perante o silêncio do Còdigo Comercial, quanto a um valor genérico dos usos, cabe recorrer ao Código Civil. Este nada dispõe, em geral, quanto ao costume. Mas no que respeita aos usos, contém um pequeno subsistema regulador. No seu artigo 3.º, epigrafado «valor jurídico dos usos», dispõe: «1. Os usos que não forem contrários aos princípios da boa fé são juridicamente atendíveis quando a lei o determine; «2. As normas corporativas prevalecem sobre os usos». No anteprojeto de Manuel de Andrade, o mesmo n.º1 era expresso em termos de maior elegância30. Não foi feliz o “revisor ministerial”, ao mutilar a fórmula de Manuel de Andrade. Substituiu “boa fé” por “princípios da boa fé” e isso quando a voa fé equivale, por si, a um princípio; e trocou “têm relevância jurídica” por “são juridicamente atendíveis”: fica-se sem saber de que poderá depender tal atendibilidade, depois de haver, para eles, uma remissão legal. A fonte inspiradora de Manuel de Andrade foi o artigo 8.º das disposições preliminares do Código Civil italiano 31 . Segundo o artigo 1.º das referidas disposições preliminares, os usos 30 31
Os usos não contrários À boa fé têm relevância jurídica quando assim esteja determinado na lei. Sob a epígrafe “usos”, dispõe esse preceito: «1. Nas matérias reguladas pelas leis e pelos regulamentos, os usos só têm eficácia quando sejam reclamados por eles.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 surgiam, entre as fontes, em quarto e último lugar (depois das leis, dos regulamentos e das normas corporativas). O artigo 9.º admitia usos públicos em recolhas oficiais de entes e de órgãos ara tanto autorizados: presumir-se-ia a sua existência, até prova em contrário. Ao elaborar o seu anteprojeto, Manuel de Andrade acolheu as ideias que os usos só valeriam quando a lei para eles remetesse e de que eles cedem perante as normas corporativas. Quanto à boa fé: esse Autor reconhece que se inspirou em Enneccerus/Nipperdey e, logo, no Direito Alemão. Ennecceus/Nipperdey, relativamente aos usos e às práticas do comércio ocupam-se do tema. Segundo esses Autores, os usos, quando concordes com a boa fé, seriam aplicáveis nas hipóteses seguintes: «a) na interpretação dos negócios jurídicos: de facto, o §157 do BGB determina que os contratos sejam interpretados segundo a exigência da boa fé, com consideração pelos costumes do tráfego; «b) sempre que, para eles, as partes remetam; «c) no âmbito do §242, do BGB: o devedor fica obrigado a efetivar a prestação como o exija a boa fé, com consideração pelos costumes do tráfego; «d) quando a lei especificamente pera eles apele». Manuel de Andrade restringiu, no seu anteprojeto, a relevância dos usos à quarta situação de Enneccerus/Nipperdy. Mas acrescentou: «Resta advertir que nos lugares próprios deve considerar-se a relevância dos usos no tocante à interpretação dos contratos (ou outros negócios de natureza patrimonial), à execução de quaisquer prestações devidas, e ainda que as partes podem remeter para eles, de modo expresso ou tácito, quando estipulem sobre matérias não subtraídas à sua disponibilidade». O legislador, particularmente o então Ministro da Justiça, Antunes Varela, não considerou esta recomendação. O Código Civil não se refere aos usos em matéria de interpretação (236.º a 238.º) ou de integração de negócios (239.º), nem no tocante à execução das obrigações (762.º, n.º2). Tão pouco se lhes reporta como hipótese de remissão das partes. Como se vê, o Código Civil, a versão final, restringiu em extremo o papel dos usos. Recorreu, em simultâneo, aos modelos italiano e alemão para multiplicar as restrições. Subjacente está uma evidente desconfiança, em relação aos usos. Além disso, manifesta-se a não sensibilidade dos seus ilustres Autores ao Direito Privado, no seu todo, designadamente ao Direito Comercial.
Elementos e natureza; confronto com o costume: o uso traduz-se numa prática social reiterada. Temos, como elemento: Atuação social; tal atuação deve ter uma extensão mínima, sendo adotada por diversos membros da comunidade: condutas isoladas ou restritas não dão corpo a usos; A atuação repetida: só o reiterar da conduta permite identificar um uso; Uma certa antiguidade: a própria repetição implica estabilidade nas condutas. «2. As normas corporativas prevalecem sobre os usos, ainda que reclamados pelas leis e pelos regulamentos, salvo se dispuserem diversamente».
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A reflexão sobre os usos juridicamente relevantes permite apurar um outro requisito: a sua patrimonialidade. Por certo haverá usos não patrimoniais. Mas tais usos não são juridicamente relevante. Em compensação, os usos relativos a contratos internacionais de transporte (inconterms) e de compra e venda (trade terms, como exemplos) e os usos bancários (contrato de abertura de conta, como exemplo), têm natureza comercial e, logo, patrimonial. Em compensação, o requisito da espontaneidade levanta dúvidas. Num primeiro momento (o do proto-uso), haverá espontaneidade, quer na criação quer, pelo menos, na adoção. Mas desde o momento em que o uso se generalize e, para ele, apontem ou a lei ou a jurisprudência, perdese esse fator. O uso deve ser aprendido, para poder funcionar. O confronto habitual entre o costume e os usos explica que o primeiro tem, em si próprio, o fundamento da jurídicapositividade. Seja pela opinio iuris vel necessitatis, seja pela especial matéria que sobre ele recaia, seja pelo fenómeno da positivação, o costume tem uma capacidade de autoafirmação que falece ao uso. Daí resulta quando se aplique um costume lida-se com uma norma imperativa. O recurso ao uso traduz uma simples norma supletiva: funciona quando as partes para ela remetam ou, pelo menos, quando não a afastem.
Os usos no Código Civil; os usos como estalões (Standards): os usos são objeto de remissão, pelo Código Civil, em oito grupos de situações: Na conclusão do contrato, quanto à dispensa de aceitação (234.º); Nas obrigações em geral, quanto ao anatocismo (560.º, n.º3) e à realização da prestação (763.º, n.º1 e 777.º, n.º2); Na compra e venda, designadamente nas modalidades mais marcadamente comerciais (885.º, n.º2, 919.º, 920.º, 921.º, n.º1, 922.º, n.º2, 924.º, n.º2, 925.,º, n.º2, 937.º); Na locação, de forma moderada (1037.º, n.º1 e 1039.º, n.º1); Na parceria pecuária, contrato de tipo agrário (1122.º, n.º1 e 1128.º); No mandato, particularmente nas vertentes comerciais (1158.º, n.º2, 1163.º e 1167.º); No achamento (1323.º, n.º1); No campo das doações, da família e das sucessões, designadamente no que tange a donativos e certas despesas: 940.º, n.º2, 1682.º, n.º1, 2110.º, n.º2 e 2326. Temos, ainda, a proibição de remeter para usos, no artigo 1682.º, n.º4. Em termos práticos, a área civil qua mais atenção tem merecido, aos tribunais, é a do anatocismo (juros de juros). A existência de um uso bancário que permita o funcionamento alargado do anatocismo é afirmado por várias jurisprudência. Nos termos gerais (348.º), quem invocar a existência de um uso deve prova-lo. O tema do anatocismo veio perder acutilância judicial porque passou a ser contemplado nas cláusulas dos contratos bancários. Ele é ainda objeto de um especial esclarecimento, ao consumidor. O controlo pelo sistema (a boa fé do artigo 3.º, n.º1) deve ser efetivo, particularmente na área em jogo. Os usos podem também ter um papel significativo no tocante à concretização de certos conceitos indeterminados. Por exemplo: a remissão do artigo 487.º, n.º2 para o bom pai de família, na determinação da culpa, e na base da qual se pode extrapolar um critério de diligência, em geral. Fixar, em sectores específicos, qual o grau de diligência exigível pode implicar o conhecimento das práticas ou das boas práticas, na área em causa. Estamos perante um elemento no qual os usos podem ser úteis, falando-se, ainda, em estalões (standards). Estes funcionam como fontes mediatas, no sentido de atuarem no âmbito
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 da concretização de tais conceitos, fontes primárias. Finalmente: os usos podem ter um papel no pré entendimento do juiz e interferir, nessa medida, em toda a sequência de realização do Direito. O controlo desse processo implica, deste modo, a sensibilização da Ciência do Direito para os usos.
Os usos no Código Comercial e no Direito Mercantil: no próprio Código Civil, o essencial da remissão para os usos opera em áreas materialmente comerciais. Cumpre, agora, levantar as referências feitas, a seu propósito, no Código Comercial:
Artigo 232.º, §1.º; Artigo 238.º; Artigo 248.º; Artigo 269.º; Artigo 373.º, § único; Artigo 382.º; Artigo 399.º Artigo 404.º, § único; Artigo 407.º.
Os diplomas extravagantes, que têm vindo a substituir as rubricas do Código Comercial não referem, em geral, os usos comerciais. De um modo geral, o Direito codificado não joga com os usos. Os usos valem, quando as partes, ao abrigo da sua autonomia privada, para eles remetam. Nessa altura, terão a força vinculativa dos próprios contratos. Trata-se de uma ocorrência que, quando alcançada através de cláusulas contratuais gerais predispostas por comerciantes a não comerciantes, exige um especial esclarecimento dos particulares. Ela é bastante frequente no domínio do Direito Bancário. E é ainda no Direito Bancário que se documenta algum apelo judicial aos usos. Uma aplicação relevante dos usos ocorre nos tipos sociais de contratos. Diz-se contrato típico aquele cujas cláusulas nucleares constam da lei. As partes não são, em regra, obrigadas a observá-las: trata-se de esquemas legais disponíveis: as partes podem desviar-se deles, estipulando as cláusulas que, em concreto, mais lhe convenham. Apesar de meramente supletivos, os tipos legais de contratos têm um duplo interesse: Representam, no termo de longa evolução histórica, tendencialmente, as soluções mais justas e equilibradas; Dispensam as partes, quando queiram contratar, de (re)elaborar todo um complexo articulado. Tipos legais de contratos são os constantes do Codigo Civil: dezasseis, desde a compra e venda À transação ( artigos 874.º a 1250.º). São ainda tipos contratuais legais outras figuras constantes do Código Comercial e de diversos diplomas avulsos. Ao lado dos tipos contratuais legais temos tipos sociais: encadeamentos de cláusulas habitualmente praticadas em determinados sectores, muitas vezes dotados de designação própria e que, mau grado e não formalização em lei, traduzem composições equilibradas e experimentadas. Tipos sociais muito importantes são, por exemplo, os contratos de abertura de conta (bancária) e de concessão comercial. O tipo social, mau grado a falta do selo oficial, pode funcionar em moldes de se repetir em lugares comuns, ao mesmo tempo que afeiçoa as soluções historicamente mais equilibradas. Noutros ordenamentos, como no alemão, os tipos sociais dão azo a regras consideradas consuetudinárias. Entre nós, a lesteza do legislador, que tudo regula com prontidão, confere
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 pouca margem aos tipos sociais: transforma-os em legais, como sucedeu com a locação financeira e com a cessão financeira. Verifica-se, ainda, que os tipos sociais são, com frequência, alvo de pequenas codificações, deitas em cláusulas contratuais gerais. Haverá, então, que proceder ao sue controlo material, através da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais. O artigo 3.º, n.º1 do Código Civil, como vimos, dá relevância aos usos quando, para eles, a lei remeta. No Direito Bancário português existe uma remissão geral para os usos. Segundo o artigo 407.º do Código Comercial «Os depósitos feitos em bancos ou sociedades reger-se-ão pelos respetivos estatutos em tudo quanto não se achar prevenido neste capítulo e mais disposições legais aplicáveis». A referência a “estatutos” reporta-se, na realidade, aos usos 32 . O depósito bancário surge, muitas vezes, integrado em séries negociais complexas, que incluem, como exemplos, a abertura de conta, a convenção de cheque, a concessão de determinados créditos e, ainda, a prestação de certos serviços. Podemos admitir a vigência, ex lege, de usos que abarquem todo esse negócio complexo, por interpretação extensiva e atualista do artigo 407.º do Código Comercial. Caso a caso se procederá à sindicância ex bona fide. Os nossos tribunais acolhem por vezes e sem sobressalto, usos bancários. Finalmente, temos uma relevância dos usos no domínio do ius mercatorum e dos contratos internacionais de transporte.
Natureza, a boa fé: os usos traduzir-se-iam em meras práticas sociais. Só por si, não dariam azo a normas jurídicas, isto é, a proposições capazes de resolver casos concretos. Como foi dito, por aí se distinguiriam do costume o qual teria, em si, essa potencialidade. O artigo 3.º, n.º1, do Código Civil, é demasiado restritivo, como é hoje pacífico: coloca-se em contra corrente relativamente ao conjunto do Direito privado atual. A ser tomado à letra, erradicaria os usos comerciais, que alimentam áreas nobres do ordenamento. Os usos podem adquirir relevância prescritiva por uma das três vias: Através da lei, que para eles remeta; tal a mensagem do artigo 3.º, n.º1, nessa eventualidade, a lei poderá fazê-lo totalmente, de modo que os usos assumam uma função regulativa; mas pode remeter para eles apenas para auxiliarem na interpretação de negócios jurídicos ou para complementarem a sua integração; a lei portuguesa não documenta, todavia, estas duas últimas hipóteses; Através do costume: caso o uso funcione como norma interpretativa a se, manifesta-se uma fonte autónoma do Direito. Através da autonomia privada: as partes, quando celebrem livremente os seus contratos, podem fazê-lo estipulando cláusulas ou remetendo, simplesmente, para as práticas habituais no sector. Em qualquer dos casos, os usos são fontes de Direito: são eles que permitem a revelação de normas jurídicas. E fazem-no diretamente: por isso, contra a qualificação legal, eles não podem deixar de surgir como fontes imediatas do Direito. Se bem atentarmos nas figuras dos usos comerciais consagrados e nos tipos contratuais sociais, verifica-se que a juridificação dos usos, 32
“Estatutos” corresponde à expressão usada no artigo 310.º do Código de Comércio Espanhol, fonte do citado artigo 407.º. No preceito espanhol, eles designam os usos. Como “estatutos”, em sentido português, nem fariam sentido: o banqueiro individual não tem estatutos enquanto os das sociedades não se ocupam dos depósitos, como é evidente.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 que eles consubstanciam, acaba por ser imputada ao sistema, no seu conjunto. Eles são sistema, independentemente da possibilidade de os intercalar na pirâmide kelseniana. Fica-nos, pois, a saída dos usos como fontes de Direito, para integração do sistema. O artigo 3.º, n.º1 exige, para a aplicabilidade dos usos, que os mesmos não sejam «contrários à boa fé». Vimos a sua origem, de resto confessada por Manuel de Andrade: ela reside na conexão entre Treu un Glauben e Verkehrssitte, a qual remonta à jurisprudência comercial alemã do século XIX. E entre nós? Já se tem visto, na sindicância ex bona fide, uma exigência de racionalidade, uma forma de combater os “usos manhosos” e um conceito ético-moral (sic), a apreciar em cada caso pelo julgador. Esta última solução, vinda dos ilustres autores do Código Civil, nesta área, surpreende: afastou-se o costume pela insegurança que poderia ocasionar e permite-se que o julgador decida, caso a caso, em função de bitolas éticas para as quais não se dá qualquer critério? A boa fé tem, hoje, um sentido estabilizado: não se compreenderia que, ao propósito de cada uma das suas diversas manifestações, os autores se afadigassem a montar um sistema ad hoc, sem terem em conta de que estamos perante uma das áreas mais densificadas, em termos de jurisprudência e de doutrina, do Direito Civil. A boa fé opera como um princípio do sistema jurídico, desdobrado em dois subprincípios: o da tutela da confiança e o da primazia da materialidade subjacente. Assim, não são atendíveis usos que defrontem aquilo com que, legitimamente, os interessados poderiam contar (confiança). E tão pouco são operativos os usos que desvirtuem a função socioeconómica do instrumento de cuja concretização se trate. Nada temos, aqui, de muito diferenciado: a própria lei que contradite esses vetores será paralisável por abuso do direito.
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Secção II – Dos Comerciantes 16.º - A ideia geral de comerciante
Relevância; os atos de comércio unilaterais: as exposições de Direito Comercial português comportam sempre uma rubrica de média extensão consagrada aos comerciantes. O Código Comercial principia, no seu artigo 1.º, cum uma profissão de fé objetivista: declarar reger atos de comércio, sejam ou não comerciantes as pessoas que neles intervenham. Porém, logo no artigo 2.º, prevê a especial categoria dos atos subjetivamente comerciais, isto é, daqueles que o são por serem praticados por comerciantes ou por a estes respeitarem. É certo que toda a pessoa civilmente capaz de se obrigar pode praticar atos de comércio – artigo 7.º. Mas nem todo o que pratica atos de comércio é comerciante. Na verdade e segundo o artigo 13.º: «São comerciantes: «1.º As pessoas que, tendo capacidade para praticar atos de comércio, fazem deste profissão; «2.º As sociedades comerciais». A profissão do comércio é proibida a determinadas entidades referidas no artigo 14.º, havendo ainda que contar com diversa legislação especial. A decisão de considerar uma pessoa como comerciante tem relevo para a determinação dos atos de comércio subjetivos. Além disso, ela torna os visados incursos em obrigações especiais. Segundo o artigo 18.º: «Os comerciantes são especialmente obrigados: «1.º A adotar uma firma; «2.º A ter escrituração mercantil; «3.º A fazer inscrever no registo comercial os atos a eles sujeitos; «4.º A dar balanço e a prestar contas». Outras obrigações surgem em diplomas extravagantes. Apesar da linguagem legal, as obrigações dos comerciantes apresentam-se, muitas vezes, como encargos. A sua inobservância pode não ter sanções diretas: apenas os impede de beneficiar plenamente do estatuto mercantil. Todavia, somente caso a caso se torna possível fazer um juízo sobre a natureza das obrigações dos comerciantes. A qualidade de comerciante confere, ainda, determinados privilégios. Tais privilégios prendem-se com o desfruto de diversos aspetos da lei comercial que tutelam a sua atividade – e cujos princípios materiais acima deixámos expressos. Mas prendem-se, sobretudo, com o regime dos chamados atos de comerciais, já acima aludidos a propósito dos atos mistos. Em termos históricos, o Direito Comercial era o Direito da classe dos comerciantes. A Revolução Francesa combateu esse ponto de vista, originando sistemas objetivos de Direito Comercial: este regulará o comércio, independentemente da intervenção de comerciantes. O Direito Português conservou, todavia, o resquício dos atos comerciais subjetivos. Trata-se de uma prerrogativa dos
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 comerciantes: a de comercializarem os atos em que toquem. Quando essa comercialização valesse nos atos concluídos apenas por comerciantes, tudo se passaria entre eles. O problema põe-se quando um comerciante se relacione com um não comerciante: de Direito aplicar? Quando o ato seja subjetivamente comercial, o Direito a aplicar é, naturalmente, o comercial. Quando o ato seja cindível e surja objetivamente comercial apenas por uma das partes e não para a outra, o regime aplicável é, de novo, o comercial. É este o regime que se extrai do artigo 99.º, assim concebido: «Embora o ato seja mercantil só com relação a uma das partes será regulado pelas disposições da lei comercial quanto a todos os contratantes, salvo as que forem aplicáveis àquele ou àqueles por cujo respeito o ato é mercantil, ficando, porém, todos sujeitos à jurisdição comercial». A exceção da 2.ª parte do preceito é relativa aos atos cindíveis. Mas, na prática, tem a ver com as obrigações específicas do comerciante, seriadas no artigo 18.º ou outras equivalentes. O comerciante pode, pois, impor a “sua” lei aos não comerciantes. Vê-se, por aqui, que a qualificação de uma pessoa como comerciante não é uma questão interna de uma classe ou categoria profissional: dela resultam consequências para todos. Aliás, a própria ideia de cindibilidade de certos atos comerciais apenas para um dos lados é artificiosa: os atos são unos, destinando-se a sua cisão apenas a deixar a ideia do predomínio comercial. A contraprova está no regime aplicável: o mercantil.
Comerciante e empresário: a expressão comerciante – que engloba, também, o industrial – era a fórmula técnica correta para designar o sujeito que atua no Direito Comercial, com os atributos do artigo 13.º. Na linguagem corrente a expressão comerciante assume uma conotação menos relevante, quando não mesmo: pejorativa. Assim, ela tem sido substituída por empresário, locução prestigiada. Outras designações específicas de comerciante vêm sendo trocadas; o estalajadeiro será o empresário de hotelaria e o merceeiro empresário da indústria alimentar… Alguma doutrina e o próprio legislador contribuem para este insólito substituindo, sem critério, comerciante por empresário ou por empresa. Sucede, porém, que empresário é aparentemente, o detentor de uma empresa. A locução só se adapta a pessoas singulares e não tem rigor jurídico: tanto é empresário o comerciante ou industrial proprietário direto de uma empresa assim como o é o acionista de uma sociedade que, por seu turno, detenha a empresa, desde que exerça funções de administrador. Além disso, o comerciante pode não deter qualquer empresa. A expressão empresário não lhe poderia, pois, ser aplicável. Não obstante estes óbices, o Decreto-Lei n.º 339(85, 21 de agosto, que veio regular o acesso à atividade comercial, não referia o comerciante: mencionava, pessoas coletivas e empresários em nome individual. Esse diploma foi revogado e substituído pelo Decreto-Lei n.º 48/2011, de 1 abril, que mantém essa mesma terminologia. Além disso, fixa diversas exigências (simplificadas) para o exercício do comércio, sem referir comerciantes ou as velhas categorias comerciais. Devemos ainda estar prevenidos perante a utilização, com um sentido autónomo, da expressão empresário no Direito Civil do consumo e no das cláusulas contratuais gerais. Aí, empresário contrapõe-se a consumidor final. Sendo assim, empresário surgirá, tecnicamente, como qualquer agente económico-jurídico que ocupe uma posição como produtor ou como distribuidor. E isso independentemente de surgir como comerciante ou de deter qualquer empresa. Este conceito de empresário que se presta, de resto, a dúvidas e a objeções, não pode ser nem extrapolado para o Direito Comercial, nem equiparado a comerciante.
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A reforma do Código Comercial alemão de 1998: as vicissitudes do legislador nacional têm, todavia, uma certa justificação de fundo. Há muito o Direito Comercial iniciou uma deslocação da ideia de comerciante para a de empresa. Sem êxito: a empresa não suporta uma dogmatização operacional. Daí o quedar-se por posturas ambíguas, como a de empresário. O fenómeno não é nacional: ele tem sido enfrentado, com êxitos diferentes, pelas diversas doutrinas. A essa luz, parece-nos ter o maior interesse referir a tentativa levada a cabo pelo moderno Direito Comercial alemão de, através de corajosa reforma legislativa, efetuar uma bissetriz razoável entre as ideias de comerciante e de empresa. A reforma do HGB de 1998 veio tocar nos pontos seguintes: No conceito de comerciante; No regime da firma, de modo a torna-lo mais operacional perante a concorrência europeia; No Direito das Sociedades Comerciais de pessoas, atualizando-o; No processo contencioso do registo comercial, aperfeiçoando-o e facilitando-o; No domínio da proteção das marcas; No tema da proibição da concorrência pós contratual, em função de exigências constitucionais. Após 1998, as alterações cifraram-se, essencialmente, no seguinte: o §I/II perdeu a enumeração que o enformava, sendo substituído por esta fórmula: «Considera-se profissão comercial todo o empreendimento profissional, a não ser que a empresa, pelo seu tipo ou âmbito, não exija um empreendimento negocial erigido em moldes comerciais». Precisando conceito, temos, à cabeça, a noção de profissão comercial. Esta tem componentes racionais e histórico-culturais, sendo definida como autónoma, remunerada, dirigida para um número indeterminado de negócios e com uma atuação virada para o exterior, com exceção das profissões artísticas ou científicas, tal como das profissões liberais. O exercício de uma profissão deve sê-lo em nome próprio. O núcleo da noção de comércio acaba assim por ser a “necessidade de um empreendimento negocial erigido em moldes comerciais”. Não se trata de uma definição, reclamando Canaris, para o seu funcionamento, indícios ordenados em função de um sistema móvel. Tal empreendimento exige, pois, um mínimo de organização, em moldes qualitativos ou quantitativos, a determinar de acordo com juízos de normalidade. A apontada reforma do HGB implicou ganhos em adequação: pôs cobre ao anterior sistema de enumeração de atividades comerciais, considerada antiquada. Provocou, todavia, todas as incertezas das cláusulas gerais. A doutrina aplaude a supressão das antigas categorias de comerciantes, substituída pela faculdade, reconhecida aos pequenos empreendimentos, de assumirem, pelo registo, natureza comercial. Preparada com cuidado já sob o signo da transposição para a empresa, o novo conceito de comerciante parece adotar nessa direção. Mas a tarefa é difícil: para além dos óbices da teoria da empresa encontramos, ainda, a polissemia resultante de, nas leis do consumo, empresário ter um sentido diferente.
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O sistema do Código Comercial: o Código Comercial dedicou os Títulos II e III do seu Livro I, respetivamente, à capacidade comercial e aos comerciantes. Aparentemente, haveria uma inversão lógica, depressa desmentida pela consideração do ideário objetivista do Código: a capacidade reporta-se à prática de atos de comércio – artigo 7.º; e é na base dessa prática que se alcança a ideia de comerciante – artigo 13.º No tocante ao capítulo relativo a comerciantes, encontramos seis artigos, com o seguinte teor geral: Artigo 13.º: indica quem se considera comerciante; Artigo 14.º: proíbe a profissão do comércio a certas entidades; Artigo 15.º: dívidas comerciais do cônjuge comerciante; Artigo 17.º Estado e outras entidades públicas; Artigo 18.º: obrigações específicas dos comerciantes. O esquema tinha uma indubitável lógica de conjunto. Cumpre agora verificar como resistiu ao assalto do tempo. O artigo 13.º contrapôs, aparentemente, pessoas singulares – n.º1 – a pessoas coletivas – n.º2. Mas não: logo no artigo 14.º, proíbe a profissão do comércio às associações ou corporações que não tenham por objeto interesses materiais: prova (segundo alguns) de que, na linguagem de Veiga Beirão, as pessoas coletivas podem fazer do comércio profissão, caindo assim no âmbito do artigo 13.º, n.º1. Ser-se comerciante é fazer profissão do comércio, desde que, naturalmente, se tenha capacidade para isso. A prática profissional de atos de comércio pode ser classificada com recurso a quatro vetores: É uma prática reiterada ou habitual: o profissional do comércio – com qualquer profissional – não se limita a praticar atos ocasionais ou isolados: realiza-os em cadeia, articuladamente e em grande número; É uma prática lucrativa: a linguagem não comporta uma ideia de doador ou benemérito profissional, ainda que felizmente os haja; uma atuação profissional é sempre uma atuação que visa angariar meios, isto é, que procura um lucro; É uma prática juridicamente autónoma: o comerciante atua em nome próprio e por sua conta; se se tratar de um trabalhador subordinado, cai no regime do contrato de trabalho, muito diversa do Direito Comercial; É uma prática tendencialmente exclusiva: embora o comerciante possa ter outras profissões e outros profissionais também possam ser comerciantes, há limites práticos: ninguém pode ter um número elevado de profissões, uma vez que não é possível acumular, indefinidamente, práticas reiteradas de atos de diversa natureza; a lei comercial não exige a exclusividade; no entanto estabelece regras que inculcam uma afetação total do património do comerciante ao seu comércio e, daí, uma ideia de dedicação tendenciamente exclusiva. O sistema do Código Comercial está claramente assente em atos de comércio e não na empresa. Teoricamente, seria possível intentar um modelo em que o comerciante fosse o detentor da empresa – o empresário –, ou dispusesse de uma organização mínima, um tanto à semelhança do reformado Direito Comercial Alemão e do Direito Italiano. Num cenário desse tipo, seria mesmo possível alargar, depois, o regime do empresário, pelo menos nalguns pontos, ao
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 pequeno comerciante ou ao profissional sem empresa. Não é esse o esquema da lei. Por um lado a ideia de empresa é imprecisa no que, de resto, lhe dá o seu atrativo. Por outro lado, não foi essa a escolha do legislador. Não podemos, nessa base, (re-)construir o sistema do CÒdigo Veiga Beirão.
17.º - O comerciante pessoa singular 56 O acesso ao comércio: as pessoas singulares podem ser comerciantes: basta que tenham capacidade para praticar atos de comércio e façam, deste, profissão. A Constituição garante a liberdade de trabalho – artigo 47.º, n.º1 – e a liberdade de empresa – artigo 61.º, n.º1. Inferimos daí que a possibilidade de abraçar a profissão de comerciante e, dentro do comércio, de escolher qualquer ramo ou domínio tem cobertura constitucional. No tocante à atividade industrial – que, juridicamente, se integra no comércio –, a liberdade de acesso é afirmada pelo artigo 1.º, n.º1 do Decreto-Lei n.º 519-I 1/79, 29 dezembro. Este diploma destinava-se a revogar os resquícios do chamado condicionamento industrial 33 vigente no Estado Novo: nos termos desse condicionamento o estabelecimento de qualquer industria exigia uma autorização do Estado.
A capacidade para praticar atos de comércio: segundo o artigo 13.º, n.1, para se ser comerciante é necessário ter capacidade para praticar atos de comércio. Capacidade de gozo ou capacidade de exercício? A doutrina encontra-se dividida. Entende a maioria dos autores que está em causa a capacidade de exercício; assim Adriano Anthero, Cunha Gonçalves, Barbosa de Magalhães, Fernando Olavo e Lobo Xavier. Uma posição minoritária, inicialmente lançada por Mario de Figueiredo e retomada por Ferrer Correia e por Pereira de Almeida, entendia bastar a simples capacidade de gozo. Oliveira Ascensão tenta uma terceira via que nos parece aderente à posição maioritária: o incapaz não poderia, por si, praticar atos de comércio e logo ser comerciante; mas já poderia sê-lo quando os competentes atos fossem praticados por representantes legais, devidamente autorizados. O Código Comercial distingue entre a capacidade para praticar atos de comércio – artigo 7.º - e os requisitos para se ser comerciante – artigo 13.º, n.º1. Cumpre manter estes dois planos distintos, sendo certo que apenas o primeiro tem a ver com a capacidade comercial em si. Segundo o artigo 7.º: «Toda a pessoa nacional ou estrangeira, que for civilmente capaz de se obrigar, poderá praticar atos de comércio, em qualquer parte destes reinos e seus domínios, nos termos e salvas as exceções do presente Código».
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Trata-se de um esquema que requeria, para a instalação de qualquer nova industria uma licença especial do Estado considerada, ao mesmo tempo, como um ato de polícia económica, um instrumento de controlo tecnológico da produção e uma providencia de fomento. Eram consultados os concorrentes já instalados. Ao abrigo do condicionamento industrial, importantes iniciativas empresariais foram retardadas durante muito tempo: bloqueadas, mesmo, num aspeto que dificultou o desenvolvimento do País.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Este preceito equivale a uma remissão para a lei civil. As regras sobre capacidade de gozo e de exercício das pessoas singulares e coletivas, fixadas pela lei geral, têm plena aplicação no Direito Comercial. No essencial, elas são as seguintes: As pessoas singulares têm capacidade de gozo pleno – artigo 67.º do Código Civil; As pessoas coletivas têm a capacidade de gozo necessária ou conveniente à prossecução dos seus fins: artigos 160.º, n.º1 CC e 6.º, n.º1 CSC, sendo de notar que a doutrina atual interpreta latamente estes preceitos, pondo em causa o princípio da especialidade. No tocante às pessoas singulares, os menores não têm, em princípio, capacidade de exercício – artigo 123.º CC; a incapacidade daí resultante é suprida pelo poder paternal e, subsidiariamente, pela tutela – artigo 124.º. Quanto às pessoas coletivas, são as mesmas representadas pelos titulares dos competentes órgãos: artigos 163.º, n.º do Código Civil e 192.º, n.º1, 252.º, n.º1 408.º, n.º2, 474.º e 478.º, todos do CSC. Tudo isto é aplicável, por força do artigo 7.º, à pratica de atos comerciais. O artigo 7.º não refere “toda a pessoa capaz de se obrigar, pessoal e livremente”. Ora, os incapazes obrigam-se pelos seus representantes. As próprias pessoas coletivas, embora não sejam incapazes, também são representadas para agir. Entendemos, pois, que o artigo 7.º remete globalmente para a lei civil, quer quanto à capacidade de gozo, quer quanto à capacidade de exercício. Mercê dessa regra, há atos de comércio que são acessíveis a menores, mesmo sem representação. Quanto a estrangeiros, deve ter-se presente que rege a lei pessoal, tratando-se de pessoas singulares – artigo 25.º - e a lei da sede principal e efetiva da sua administração, perante pessoas coletivas – artigo 33.º, ambos do Código Civil.
A situação dos menores: o artigo 7.º, de acordo coma interpretação acima proposta, determina a aplicação, no Direito Comercial, das diversas regras civis: quer quanto à capacidade de gozo, quer quanto à capacidade de exercício. É a saída mais natural e que corresponde precisamente aos valores em presença. Esta orientação pode ser confirmada com recurso à situação dos menores. O artigo 123.º do Código Civil retira aos menores a capacidade de exercício. Fá-lo, porém, aparentemente. Convém reter o artigo 127.º do mesmo Código. Perante esse preceito e desenvolvendo uma ideia do Professor Gomes da Silva, verificamos que a incapacidade dos menores é, desde logo, aparente: as exceções são mais extensas do que a regra. Na verdade: Os negócios da vida corrente, do menor como do maior, são acessíveis a todos; apenas se exigirá que o menor entenda o que está a fazer, o que é de apreensão imediata por qualquer envolvido; O menor de dezasseis anos pode ser autorizado a exercer profissão, arte ou ofício: nessa altura pode praticar não apenas os atos relativos à atividade em causa como , ainda, administrar e dispor de bens assim adquiridos34. Temos, de seguida, um aspeto da maior importante: o regime dos atos praticados pelos menores. Tais atos são (meramente) anuláveis – artigo 125.º do Código Civil – o que é dizer: produzem todos os seus efeitos, podendo ser impugnados, apenas, pelo representante do menor ou pelo próprio menor e, mesmo então, com diversos condicionamentos. O menor pode, pois, praticar 34
Vide, também, o artigo 1888.º, n.º1, alínea d) do Código Civil.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 inúmeros atos comerciais: quer por serem da vida corrente, quer por corresponderem a uma profissão que o menor tenha sido autorizado a exercer, quer, finalmente, por porem em jogo apenas bens conseguidos no exercício dessa profissão. Pergunta-se, todavia, se a prática de atos comerciais por menores não vai instilar insegurança no meio mercantil. Não há perigo: trata-se de negócios da vida corrente, normalmente pagos de imediato. Em suma: só por ironia se poderia apresentar como perigosa a prática de atos comerciais por menores. A lei faz depender de autorização a prática de certos atos comerciais ou com relevância comercial, por parte dos menores. Assim, os pais necessitam de autorização do Tribunal – agora: do Ministério Público para – artigo 1889.º, n.º1, alínea c), do Código Civil –: «Adquirir estabelecimento comercial ou industrial ou continuar a exploração do que o filho haja recebido por sucessão ou doação». A alienação do estabelecimento também carece de autorização: cai no âmbito geral do artigo 1889.º, n.º1, alínea a), do Código Civil. Tudo isto opera também quanto ao tutor, nos termos do artigo 1938.º, n.º1, alínea a), do mesmo Código. O esquema é ainda aplicável ao interdito – artigo 139.º - e ao inabilitado – artigo 154.º - com as necessárias adaptações.
A profissão de comerciante; proibições, incompatibilidades, inibições e impedimentos: fixada a capacidade para a prática de atos de comércio, o Código Comercial vem definir quem entende por comerciante. O artigo 13.º, n.º2, reporta-se a sociedades pelo que cumpre relevar o n.º1 desse preceito, segundo o qual é comerciante a pessoa que, tendo capacidade para praticar atos de comércio, faça deste profissão. Ora parece totalmente razoável e coerente que a lei fixe regras mais estritas para a prática habitual de atos de comércio do que para a sua efetivação ocasional ou, simplesmente, não profissional. O artigo 13.º é, apenas, um introito: apresenta uma noção de comerciante para, depois, poder prescrever regras quanto ao seu acesso. O próprio artigo 14.º, n.º2, ao dispor que a profissão de comércio é proibida aos que, por lei ou disposições gerais, não possam comerciar, vem remeter para legislação extravagante. A profissão de comerciante está aberta a todas as pessoas (singulares). Só por exceção surgem, depois, casos em que ela é verdade. Podemos distinguir: Proibições gerais; Incompatibilidades; Inibições Impedimentos. As proibições gerais resultam de normas que vedem a toda e qualquer pessoa singular certo tipo de comércio. A proibição geral visa ordenar a estrutura comercial do País, pelo menos no tocante ao concreto setor visado. As incompatibilidades impedem determinadas pessoas singulares, colocadas em certas posições ou envolvidas em determinadas situações jurídicas, de exercer o comércio. É o que se passa com os magistrados judiciais, nos termos do artigo 13.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais. Ocorrem esquemas similares com os magistrados do Ministério Público, com militares, com titulares de órgãos de soberania, de outros cargos políticos e de altos cargos públicos ou equiparados. As incompatibilidades atingem determinadas pessoas não por si, mas em função de cargos que exerçam. Vedam qualquer exercício comercial e não podem ser afastadas por nenhuma autorização: apenas com a cessação da ocorrência que lhe deu
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 origem. As inibições atingem seletivamente determinadas pessoas, por factos que elas hajam perpetrado ou por situações nas quais se achem incursas. A inibição é diversa da incompatibilidade: não está em causa o exercício de nenhum cargo, mas uma ocorrência relativa, própria do inibido. Ao contrário da incompatibilidade, ela não desaparece com a cessação do exercício de quaisquer funções mas apenas, de acordo com certos mecanismos legais. Os impedimentos adstringem as pessoas neles incursas a não praticar determinado tipo de comércio, salvo autorização. É o que sucede com o gerente de comércio, previsto no artigo 253.º. Este impedimento dá corpo a uma proibição de concorrência; encontramos figuras deste tipo nos artigo 180.º, 254.º, 398.º, n.º3 e 428.º do Código das Sociedades Comerciais. O impedimento atinge a pessoa em virtude de um cargo; mas ao contrário da incompatibilidade, não é geral e pode cessar com uma autorização.
18.º - O comerciante pessoa coletiva Sociedades comerciais: recordamos o artigo 13.º, que considera comerciantes: «1.º As pessoas que, tendo capacidade para praticar atos de comércio, fazem deste profissão; «2.º As sociedades comerciais». Passando à categoria do comerciante pessoa coletiva, logo encontramos, como entidade de qualificação segura, a sociedade comercial. Sucede, todavia, que a própria sociedade comercial é definida, nessa qualidade, em função de atos de comércio. Segundo o artigo 1.º, n.º2 CSC: «São sociedades comerciais aquelas que tenham por objeto a prática de atos de comércio e adotem o tipo de sociedade em nome coletivo, de sociedade por quotas, de sociedade anónima, de sociedade em comandita simples ou de sociedade de comandita por ações». Os atos de comércio aqui visados só poderão ser atos objetivamente comerciais: os restantes pressuporiam a prévia qualificação do seu autor como comerciante. Segundo o artigo 1.º, n.º2 CSC, as sociedades que tenham por objeto a prática de atos de comércio devem adotar uma das formas referidas no n.º2; não pode haver sociedades comerciais sob forma civil. Resta concluir que todas as sociedades comerciais que tenham por objeto a prática de atos comerciais assumem uma das formas tipificadas no CSC e são comerciantes. A lei não exige, para a qualificação como comercial, que o objeto social se reporte exclusivamente ou, sequer, predominantemente, à prática de atos comerciais. Trata-se de um ponto importante e que estabelece já a ponte para as sociedades civis sob forma comercial: estas regem-se pelo Direito Mercantil. As sociedades comerciais adquirem a personalidade no momento do registo definitivo do ato constitutivo – artigo 5.º CSC. Resta concluir que se tornam comerciantes nesse momento. Teoricamente pode, pois, haver comerciantes que nunca tenham praticado qualquer ato comercial: a sua comercialidade, prevista na lei, tem o sentido de uma aptidão de princípio para os praticar. As sociedades que tenham por objeto, exclusivamente, a prática de atos não comerciais são sociedades civis. Elas podem seguir o esquema dos artigo 980.º e seguintes do
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Codigo Civil: são as sociedades civis sob forma civil (ou sociedades civis puras). E podem, nos termos do artigo 1.º, n.º4 CSC, adotar um dos tipos legais de sociedades comerciais: são as sociedades civis sob forma comercial. Embora civis, elas regem-se pela lei das sociedades comerciais – artigo 1.º, n.º4, in fine CSC. Só não são operacionais para dar azo a atos subjetivamente comerciais – artigo 13.º,n.º2, 2.ª parte.
Associações e fundações: o exercício do comércio por parte de pessoas coletivas exige cautelas: para defesa dos próprios envolvidos o substrato e no funcionamento das pessoas coltivas em causa, para tutela dos terceiros que, com elas, contratem e para defesa do próprio mercado. Justamente as fórmulas mais conseguidas, no presente momento histórico, para prosseguir tal objetivo, são as sociedades comerciais. Seria, pois, de esperar que todas as pessoas coletivas que se dedicassem ao comércio incorressem em normas paralelas às do artigo 1.º, n.º3 do CSC: devessem assumir a forma de sociedades comerciais, adotando um dos tipos previstos no referido Código. Isso não sucede. Por duas razões: A formação fragmentária do Direito privado: há esquemas de pessoas coletivas não societárias, que se dedicam com mais ou menos intensidade ao comércio e que, por tradição consignada na lei civil, não obtêm a forma societária; A falta, no Direito Comercial, de tipos de pessoas coletivas que correspondam aos interesses geridos pelas associações e pelas fundações e mais precisamente: de um tipo comercial igualitário tipo associação e de tipo comercial fundacional. Há, pois, que admitir que pessoas coletivas não societárias, designadamente as associações e as fundações civis, possam praticar atos de comércio (objetivos). De resto é o que resulta do princípio geral do artigo 7.º. Poderão ser comerciantes? Partindo do artigo 13.º, n.º1 – portanto: são comerciantes as pessoas que, tendo capacidade para praticar atos de comércio, fazem deste profissão – , encontramos duas posições: Esse preceito reportar-se-ia, apenas, a pessoas singulares: Fernando Olavo, Ferrer Correia; Esse preceito reportar-se-ia, também, a pessoas coletivas: assim opinam Barbosa de Magalhães e Oliveira Ascensão. Também a jurisprudência de dividiu. Uma interpretação atualista e integrada não pode deixar de partir da lei vigente. Ora, quanto a isso, não parece haver dúvidas de que o Código Veiga Beirão, no seu artigo 13.º, só previu como comerciantes: As pessoas singulares que, do comércio, façam profissão; As sociedades. Seria, por demais, bizarro que se fossem contrapor pessoas singulares e coletivas, às sociedades comerciais. É certo que o artigo 14.º, no seu n.º1, proibia a profissão de comércio: «às associações ou corporações que não tenham por objeto interesses materiais». Simplesmente, tais associações ou corporações esgotam o universo das “pessoas morais” que não fossem sociedades, como demonstra Fernando Olavo, apenas com a exceção das entidades públicas, excluídas depois no artigo 17.º. Devemos ter presente que, em 1888, a doutrina da
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 personalidade coletiva estava ainda muito incipiente. Pergunta-se, agora, se houve uma evolução dos interesses e dos valores que recomende, em nome de uma “interpretação atualista”, a ampliação do n.º1. Se sim, sustentaremos todavia que tal interpretação não deve fazer-se em detrimento dos conceitos comerciais já alcançados, forçando as palavras e as próprias valorações a eles imanentes. Como foi referido, deve entender-se que profissão tem intuitos lucrativos; e seguramente os terá a profissão comercial. Não vemos qualquer vantagem em dirigir o Direito Comercial, supostamente (mais) aderente às realidades da vida e aos valores em presença, para semelhantes irrealismos: o Direito Civil atual rejeitá-los-ia categoricamente. Assim sendo – e assim é – não são comerciantes as associações e as fundações (civis): as primeiras não têm por fim o lucro económico dos associados – artigo 157.º do Código Civil e artigo 182.º, n.º1, alínea b), do mesmo diploma; as segundas têm interesse social – o citado artigo 157.º - não podendo ser reconhecidas se isso não acontecer – artigo 188.º do Código Civil. Também não poderia considerar comerciantes as cooperativas: dado o artigo 2.º, n.º1 CCoop, não têm fins lucrativos. A profissão de comércio implica necessariamente um fim lucrativo. É certo que as associações e as fundações devem dispor de rendimentos próprios. Para isso, ou vivem de donativos ou têm de desenvolver atividades lucrativas. Quando isso suceda, haverá que aplicar, até onde a materialidade das situações o permita, normas comerciais. Não inferimos daí que se trate do exercício profissional do comércio. De iure condendo, quando o comércio atinja uma dimensão considerável, o ente não lucrativo em causa deveria constituir uma sociedade autónoma para o efeito; esta, sim, seria comerciante.
Pessoas coletivas públicas e entidades de solidariedade social: o artigo 17.º veda a profissão de comerciante às pessoas coletivas públicas de base territorial. Assim, segundo o seu corpo, «O Estado, o distrito, o município e a paróquia não podem ser comerciantes, mas podem nos limites das suas atribuições, praticar atos de comércio, e quanto a estes ficam sujeitos às disposições deste Código». Na primeira parte deste preceito, pouco se adiantou: o artigo 13.º já só admitia, como pessoas coletivas comerciantes, as sociedades comerciais: qualidade que, por certo, as pessoas coletivas públicas de base territorial – o Estado, o distrito, o município e, hoje, a freguesia – não têm. O importante é, pois, a segunda parte da regra: «podem (…) praticar atos de comércio, e quanto a estes ficam sujeitos às disposições deste Código». O §único do artigo 17.º manda aplicar a mesma regra às misericórdias, asilos e demais institutos de benemerência e caridade. Hoje estão em causa as instituições particulares de solidariedade social.
Associações desportivas e duas federações: as associações desportivas ou clubes são pessoas coletivas de Direito privado e tipo associativo: não podem ter intentos lucrativos. Também as federações desportivas não podem ter fins lucrativos. As associações desportivas não se confundem com as sociedades desportivas. As sociedades desportivas, que devem ter, na firma ou denominação social, a sigla SAD, assumem a forma de sociedade anónima. A título subsidiário, é-lhes aplicável o Direito das Sociedades Anónimas. São, seguramente, comerciantes.
Empresas Públicas: tem havido alguma discussão sobre a natureza comercial das empresas públicas. Nenhuma razão existe para as discriminar em relação às empresas privadas. Desde o
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 momento que, no seu objeto, caia, ainda que a título acessório, a prática do comércio, elas serão comerciantes.
Institutos públicos e associações públicas: os institutos públicos pertencem à administração descentralizada do Estado. Caem no artigo 17.º: não podem ser comerciantes, embora possam praticar atos de comércio. As associações públicas caem na mesma alçada. Embora previstas por lei, elas têm base associativa, assumindo determinados poderes de autoridade. A certas associações mais antigas dava-se a designação de ordens. Mais tarde, a designação generalizouse, tendo vindo a surgir de modo repetido. Estas entidades não podem ser comerciantes. Todavia, poderão praticar determinados atos de comércio objetivos.
19.º Pessoas semelhantes a comerciantes
A categoria “pessoas semelhantes a comerciantes”: as exposições de Direito Comercial comportam uma rubrica relativa a figuras de qualificação controversa: o mandatário comercial, os gerentes, auxiliares ou caixeiros, os comissários, o mediador, os corretores, o agente comercial, os sócios de responsabilidade ilimitada, os farmacêuticos e os artífices. Deixamos de parte as situações típicas da agência e da mediação. Perante as realidades práticas e dogmáticas do Direito Comercial, não é possível proceder a qualificações rigorosas das figuras em jogo. Elas pressuporiam sempre uma análise do regime aplicável. Acresce ainda que o Direito Comercial não é um todo coerente e sistemático. Além disso, as suas normas não são, à partida, excecionais: podem aplicar-se sempre que ocorram situações que o justifiquem. Chegamos, assim, à ideia de “pessoa semelhante a comerciante”: uma entidade que não sendo comerciante em si, suscita, não obstante, a aplicação das diversas regras do Direito Comercial. Três critérios enformam as “pessoas semelhantes a comerciantes”, para além do facto de, naturalmente, não se poderem considerar de imediato comerciantes, por via das categorias do artigo 13.º: São autónomas, o sentido de não se encontrarem ao serviço de outra entidade, por via de um contrato de trabalho; Praticam, em série, atos jurídicos com fins lucrativos; Dispõem de uma organização mínima, ainda que rudimentar, figurativa de uma empresa. Quanto às regras comerciais aplicáveis torna-se sempre necessário ponderar cada figura, cada situação e cada norma. Os atos objetivamente comerciais não dependem de discussão; os subjetivamente comerciais são escassos; finalmente, os deveres aplicáveis dependem, hoje, de estreita legislação especial: escapam às qualificações genéricas do velho Direito Comercial. De todo o modo, a figura tem interesse: flexibiliza a ideia de comerciante permitindo alarga-la de acordo com a evolução dominante, numa orientação particularmente importante em face de orientações subjetivas.
O mandatário comercial; os gerentes, auxiliares, caixeiros e comissários: há mandato comercial quando alguma pessoa se encarregue de praticar um ou mais atos de comércio por mandado de outrem – artigo 231.º. O mandato comercial é uma modalidade de mandato –
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 artigo 1157.º e seguintes do Código Civil – o qual, por seu turno, é uma prestação de serviço – artigo 1155.º do mesmo Código. Nessa qualidade, ele implica o dever de praticar atos jurídicos - : «um ou mais atos de comércio» - artigo 231.º, corpo – por conta do mandante. O mandato comercial envolve poderes de representação, ao contrário do civil que pode, ou não, implicalos. Como modalidade de mandatário comercial surge o gerente de comércio – artigos 248.º e seguintes . O gerente tem mandato geral e trata e negoceia em nome do seu proponente – artigos 249.º e 250.º. Também mandatários, no sentido do Código Veiga Beirão, são, em certos limites, os auxiliares – 256.º - e os caixeiros – 259.º. Finalmente, a comissão corresponde a um mandato comercial sem representação – artigo 266.º. Pergunta-se se estas pessoas são comerciantes. A doutrina tem respondido pela negativa, impressionada pelas regras da representação: afinal, quanto fizesse o mandatário comercial – ou o beneficiário de qualquer das subfiguras que lhe possam ser reconduzidas – repercutir-se-ia, por força da representação, ana esfera do representado. As demais figuras reduzir-se-iam a trabalhadores subordinados. Apenas o comissário, quando exerça profissionalmente as suas funções, seria o comerciante. A qualificação destas figuras é facilitada com a admissão da categoria de pessoa semelhante a comerciante. Quando alguém exerça profissionalmente as funções de mandatário comercial, de gerente de comércio, de caixeiro ou de comissário, o faça com autonomia e disponha de uma organização para o efeito, haverá que lhe aplicar as regras do comércio, como princípio. Caso a caso se tomaria uma opção cabal.
Profissionais liberais: os profissionais liberais não são considerados comerciantes. É certo que, na generalidade, eles dirigem empresas de pequena ou média dimensão. Por razões de tradição a que o Direito Comercial, como Direito privado, não deixa de ser sensível, os profissionais liberais não são considerados comerciantes. Entre nós, são seguramente profissionais liberais os que trabalham com autonomia no âmbito de profissões enquadradas por ordens profissionais. Todavia encontramos profissionais liberais que dirigem autênticas empresas, em moldes próximos dos comerciais. Quando isso suceda estaremos perante “pessoas semelhantes a comerciantes”. Torna-se possível aplicar-lhes determinadas normas comerciais: tudo depende da natureza da situação considerada. Queda acrescentar que a referencia crescente, em diversa legislação, a empresários não permite transpor, para estes, a lógica do comerciante. Antes teremos de, caso a caso, verificar o âmbito atribuído pelas normas em jogo a empresários.
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Tira satírica de Laerte Coutinho, vide http://manualdominotauro.blogspot.pt
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Dos atos de comércio em geral36
Introdução: os atos de comércio são parte essencial da matéria mercantil. Hoje, o regime especial comum aos atos de comércio em geral revela-se sobretudo no seguinte: em regra, nas obrigações comerciais nas obrigações resultantes de atos mercantis – os co-obrigados são solidários (artigo 100.º CCom); segundo o artigo 15.º CCom, as dívidas dos comerciantes casados derivadas de atos mercantis presumem-se contraídas no exercício dos respetivos comércios; o artigo 102.º CCom estabelece um regime com uma outra particularidade para os juros relacionados com atos comerciais. Por outro lado, a qualificação como comerciais de atos em geral importa ainda para qualificar de mercantis outros atos que daqueles sejam acessórios, bem como para qualificar sujeitos como comerciantes (artigo 13.º CCom). Deixemos aqui umas linhas mais acerca do referido artigo 102.º CCom. O corpo do artigo 102.º CCom refere-se a juros convencionais (estabelecidos em negócios jurídicos) e legais (diretamente resultantes de preceito de lei), remuneratórios (rendimentos de bens de capital) ou moratórios (reparação ou indemnização pela falta de cumprimento tempestivo de obrigação). Os juros (comerciais) legais são devidos nos casos previstos no CCom ou em outras leis ( quando «for de direito venceremse») – desde que, nesta última hipótese, estejam também em causa, em regra, atos comerciais. Quando sejam devidos juros comerciais – legais ou convencionais, remuneratórios ou moratórios – e a taxa respetiva não seja fixada pelos intervenientes no ato de comércio, vale a taxa legal-supletiva. Se for taxa requerida (maior ou menor), ela tem de ser fixada (ainda que o ato de comércio respetivo não exija forma escrita), sob pena de nulidade (e aplicação da taxa supletiva) – é esta a interpretação do §1.º do artigo 102.º CCom. O artigo 102.º, §2.º CCom proíbe, ainda, estipular-se tava de juros que exceda a taxa de juros legais aplicáveis em mais de 3% ou 5% (para os juros remuneratórios) ou em mais de 7% (para os juros moratórios), conforme exista ou não garantia real. O §3.º do artigo 102.º CCom determina que a taxa supletiva dos juros moratórios, legais ou convencionais, relativos a créditos de que sejam titulares empresas comerciais é fixada em portaria conjunta dos ministros das finanças e da justiça. Todavia, nesta fixação têm de ser respeitados limites mínimos. Relativamente a créditos resultantes de transações comerciais sujeitas ao Decreto-Lei n.º 62/2013 – artigos 2.º, 3.º, alínea b), 4.º e 5.º do diploma, a taxa supletiva não pode ser inferior à taxa de referência do BCE acrescida de oito pontos percentuais (§5.º). Relativamente a outros créditos das empresas comerciais, designadamente os resultantes de negócios com consumidores (artigo 2.º, n.º2 do diploma), aquela taxa não pode ser inferior à taxa de referência do BCE acrescida de sete pontos percentuais (§4.º). Tendo em contra também os artigos 3.º, alínea d), 4.º, n.º1, 5.º n.º1 e 5 e 11.º do Decreto-Lei, as empresas comerciais, singulares ou coletivas, aparecem no §5.º em sentido subjetivo: sujeitos ou entidades que exercem atividade económica juridicamente qualificada de mercantil (suportada ou não em empresas em sentido objetivo). Os juros em causa são somente os moratórios (não os remuneratórios). Além de assim indicar a letra do §3.º, aponta no mesmo sentido o escopo do Decreto-Lei n.º 62/2013: reagir contra os atrasos (a mora) nos pagamentos. Importa, ainda, notar que por força dos artigo 4.º, n.º1 e 5.º, nº.1 e 5 DecretoLei n.º 62/2013, o regime dos juros oratórios previstos nos §3.º e 5.º do artigo 102.º CCom é
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Abreu, Jorge Manuel Coutinho de; Curso de Direito Comercial, volume I; Almedina Editores.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 igualmente aplicável a créditos de que sejam titulares empresas não comerciais – veja-se também o artigo 3.º, alínea b) e d) do Decreto-Lei n.º 62/2013.
Noção de ato de comércio: norma delimitadora básica dos atos de comércio é o artigo 2.º CCom. Do seu enunciado resultará a impossibilidade de um conceito unitário, homogéneo ou genérico de ato de comércio. Há atos considerados mercantis por estarem previstos, segundo critérios heterogéneos (fruto de várias etapas de uma evolução capitalista multissecular), na lei comercial – e que podem em regra ser praticados por comerciantes ou não comerciantes – e atos considerados mercantis por, antes do mais, serem praticados por comerciantes e, além disso, serem conexionáveis com o comércio e estarem – embora não necessariamente – conexionados com a atividade mercantil dos seus autores. Todavia, por cá e além fronteiras têm sido defendidos conceitos unitários de atos de comércio. Para isso, tem-se alcançado mão principalmente de três critérios: finalidade especulativa (é comercial o ato praticado com escopo lucrativo); interposição nas trocas ou na circulação das riquezas; existência de uma empresa (são comerciais os atos praticados por uma empresa e/ou no quadro de uma empresa). Ora, nenhum destes critérios (isolada ou conjugadamente) possibilita um conceito unitário de ato de comércio. Por outro lado, os atos e atividades mercantis não têm de ser realizados com fins lucrativos. Por outro lado, ainda, o próprio CCom admite explicitamente atos de comércio sem qualquer escopo especulativo (artigo 404.º CCom). Por sua vez, o critério da interposição nas trocas é insuficiente também. O CCom considera comerciais certos atos que não têm de realizar ou facilitar interposições nas trocas. Finalmente, a existência de empresa e a empresarialidade não são critérios servíveis para a construção de um conceito unitário de ato de comércio. Por várias razões: a comercialidade de diversos atos esporádicos ou ocasionais prescinde da existência de empresa; a empresarialidade (o próprio das empresas ou o relativo às empresas) não é algo unívoco, captável através de um critério único; há empresas civis, tendo obviamente também que ver com a empresarialidade – e os atos a elas pertinentes não são comerciais (e desenharse-ia um círculo vicioso se se pretendesse definir a comercialidade pela empresarialidade comercial). Os atos de comércio são sobretudo contratos. É, alias, sintomático que o Livro II do CCom seja intitulado «Dos contratos especiais de comércio». Mas, além dos negócios jurídicos bilaterais, podem ser atos mercantis negócios jurídicos unilaterais. E, fora do domínio dos negócios mas dentro ainda dos factos jurídicos voluntários, é possível encontrar simples atos jurídicos como atos comerciais. Os próprios factos jurídicos ilícitos não estão excluídos da qualificação, em certos casos, como atos comerciais. Desde logo quando estejam previstos na lei mercantil. Já os factos jurídicos não voluntários ou naturais parecem não qualificáveis como atos de comércio. Adora o facto de o regime especial comum aos atos comerciais não ser aplicável a tais factos naturais, dificilmente se concebem atos que não sejam factos voluntários de sujeitos de direito – o próprio artigo 1.º CCom parece confirmar a ideia. Dito isto, podemos para já dizer que são atos de comércio os factos jurídicos voluntários especialmente regulados em lei comercial e os que, realizados por comerciantes, respeitem as condições previstas no final do artigo 2.º CCom.
Atos de comércio objetivos e subjetivos: na classificação básica dos atos de comércio, estes aparecem-nos ou como objetivos ou como subjetivos. Utilizando por ora os dizeres do artigo 2.º CCom, os primeiros são «todos aqueles que se acharem especialmente regulados nesse Código»; os segundos «todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio ato não resultar». Assim entendida, a classificação é exata ou cientifica. Pese embora o facto de um ou outro ato especialmente regulado, e de os
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 atos dos comerciantes, para serem considerados atos de comércio subjetivos, terem de cumprir as duas condições objetivas previstas no final do artigo 2.º CCom. As classificações são convencionais; necessário é que se explicite o respetivo significado…
1. Atos de comércio objetivos: a. Interpretação da 1.ª parte do artigo 2.º CCom: recorde-se a primeira parte do enunciado do artigo 2.º: é uma definição de atos de comércio objetivos por enumeração ou catálogo (uma definição em extensão e não em compreensão) – por enumeração implícita, mais precisamente (o preceito não explicita os atos, remetendo antes para outras disposições normativas). Prevê o CCom, no estado atual, variados atos. Relativamente à maioria desses atos, o Código estabelece disciplina específica (regras próprias de cada um deles). Tal não se verifica relativamente a alguns. Nem por isso, como é evidente, desmerecem o qualificativo comerciais. Quer isto dizer, portanto, que são atos de comércio os atos concretamente caracterizados pelas notas caracterizadoras ou requisitos previstos no CCom. Assim sendo, mesmo os atos comerciais para os quais o Código não estabelece disciplina específica ficam sujeitos às regras especiais comuns aos atos de comércio em geral. São atos de comércio objetivos apenas os «especialmente regulados neste Código» Comercial? Esta formulação faria algum sentido em 1888- Não é, contudo, razoável petrificar um catálogo de atos num código datado; há-de ser possível leis posteriores, acompanhando a evolução económica, preverem novos atos comerciais. Por isso se entende pacificamente que a expressão neste Código deve ser interpretada extensivamente de modo a abarcar outras leis comerciais. O próprio CCom fala em lei comercial nos artigos 1.º e 3.º. Mas quando pode uma lei ser qualificada, para estes efeitos, de comercial? Há que atender a três hipóteses: A lei substitui normas do CCom: a lei substituta será em princípio comercial, os atos nela regulados serão mercantis. Seria estranho considerar comerciais atos previstos no CCom e considera-los não comerciais quando previstos fora do Código. Confrontando esta ideia, está tamvém o quase sempre ignorado artigoo 4.º da Carta de Lei de 28 junho 1888: «Toda a modificação que de futuro se fizer sobre matéria contida no Código Comercial será considerada como fazendo parte dele e inserida no lugar próprio, quer seja por meio de substituição de artigos alterados(…)»; No entanto, nem todas as leis substitutas de artigos do CCom serão comerciais e, por isso, qualificadoras de atos mercantis. Parece ser o caso do Capítulo II Decreto-Lei n.º 231/81, 28 julho, relativo ao contrato de associação em participação e que revogou os artigos 224.º e seguintes CCom, sobre a conta em participação. Ora, o artigo 21.º, n.º1, do citado DL define a associação em participação como «associação de uma pessoa a uma atividade económica exercida por outra, ficando a primeira participar nos lucros ou nos lucros e perdas que desse exercício resultarem para a segunda».
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Não se exige, agora, portanto, que o associante seja comerciante nem que a atividade dele seja comercial. Por outro lado, o regime estabelecido no DL é unitário e não parece ser de direito privado especial; mais: o artigo 22.º,n.º1, estatui que, «Sendo várias as pessoas que se ligam, numa só associação, ao mesmo associante, não se presume a solidariedade dos débitos e créditos daqueles para com este». Por conseguinte, a associação em participação não é ato objetivo de comércio – podendo ser, porém, ato subjetivo de comércio, nos termos da 2.ª parte do artigo 2.º CCom; A lei auto-qualifica-se comercial (ou, mais precisamente, qualifica – direta ou indiretamente – atos como comerciais: o CC, no Capítulo da locação, contém disposições especiais do arrendamento para fins não habitacionais. Entre esses fins conta-se (também) o comércio. E a locação de estabelecimento comercial ou industrial e o trespasse de estabelecimento comercial ou industrial merecem aí algumas egras específicas. Ora, sendo embora certo que em tal comércio ou industria podem caber atividades sem cabimento no comércio em sentido jurídico, certo é também que é este o visado primordialmente. Em consequência, devem considerar-se atos objetivos de comércio, porque especialmente regulados em lei comercial, a locação e o trespasse de estabelecimentos comerciais; Nenhuma destas hipóteses anteriores se verifica: na maioria dos casos, as leis não se auto-qualificam explicitamente (de modo direto ou indireto) como comerciais, civis, etc. Como saber, então, se estamos perante uma lei mercantil, prevendo de algum modo atos (objetivos) de comércio? Não parece suficiente remetermos vagamente para as necessidades ou interesses do comércio (lei mercantil seria a que disciplina atos tendo em vista satisfazer necessidades do comércio). Por um lado, porque não existe um conceito unitário ou in genere de comércio – o comércio (em sentido jurídico) integra setores e subsetores variados de atividade económica, com necessidades diferenciadas entre eles e dentro de cada um deles. Por outro lado, porque as leis comerciais (com o CC à cabeça) regulam também atos de comércio ocasionais (não integrados no comércio-atividade). Para saber se as leis em questão são comerciais, parece necessário, pois, ver se elas disciplinam matéria análoga à disciplinada no CCom ou em outras leis classificadas como comerciais. b. Significado do artigo 230.º CC no quadro dos atos de comércio: qual o alcance de a lei qualificar estas empresas de comerciais? Uma corrente doutrinária entende que as empresas aí previstas significam o mesmo que empresários ou, mais concretamente, comerciantes; as empresas seriam as pessoas, singulares ou coletivas, que se propusessem praticar os ato de comércio enumerados no artigo. Para uma outra corrente, tais empresas não são mais que séries ou complexos de atos comerciais (objetivos). Enquanto outros atos regulados n Código são considerados isoladamente (são mercantil mesmo que praticados
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 ocasionalmente), os previstos no artigo 230.º são comerciais porque praticados em série, em repetição orgânica. O enunciado normativo em causa sugere, na verdade, o sentido de pessoa ou empresário para empresa. Neste domínio, as pessoas ou são comerciantes ou não comerciantes. Comerciais serão os atos ou as empresas (atos ou atividades). Todavia, outros elementos de interpretação (o histórico, o sistemático e o teleológico) revelam-se menos favoráveis àquela tese. Norma delimitadora da matéria mercantil é a do artigo 1.º CCom: «A lei comercial rege os atos de comércio sejam ou não comerciantes as pessoas que neles intervêm». E esses atos são logo os previstos no CCom (artigo 2.º, 1.ª parte CCom). Por outro lado, havendo no livro I um Capítulo estabelecendo que é (e quem não é) comerciante, mal se compreende vir depois o artigo 230.º CCom atribuir diretamente essa qualidade a certos empresários. Aliás, pode haver pessoas (coletivas) a explorar empresas previstas no artigo 23.º CCom, sem que por isso adquiram a qualidade de comerciantes (artigos 14.º e 17.º CCom). Inclinamonos, por conseguinte, a ver as empresas do artigo 230.º Ccom como conjuntos ou séries de atos (atividades) objetivamente comerciais enquadradaos organizatoriamente (atos praticados no quadro de organizações de meios pessoais e/ou reais). Mas quais atos objetivos? Tão-só os contratos em que o exercício da empresa tipicamente se traduz, ou todos os atos praticados na exploração dessas organizações empresariais? Dir-se-á: tão-somente aqueles, pois são eles que patentemente se revelam nos vários números do artigo; os restantes serão subjetivamente comerciais, nos termos da 2.ª parte do artigo 2.º CCom. De resto, acrescentar-se-á, é isto que sucede com relação às empresas não previstas no artigo 230.º cuja atividade se traduz em atos regulados no Código. Contudo, propendo para a segunda alternativa. Por um lado, o nosso artigo parece basear a tipificação de algumas empresas em factos não jurídico-negociais: as empresas transformadoras (n.º1), as empresas de espetáculos públicos (n.º6). Nestes casos, quais os atos que merecem o qualificativo de objetivamente comerciais, e quais os atos a considerar subjetivamente mercantis? Por um lado, a visão orgânica dos diversos atos em que o exercício das empresas (previstas na norma) se traduz favorecerá igualmente esta tese. Tal como poderá ainda confortá-la o facto já assinalado de as empresas referidas no artigo 230.º poderem ser exploradas por não comerciantes – não havendo então lugar para os atos subjetivamente comerciais… c. Qualificação de atos de comércio por analogia: a enumeração implícita dos atos de comércio constante da 1.ª parte do artigo 2.º CCom é exemplificativa ou taxativa? Atos nãoo regulados legislativamente, ou previstos em leis cujo caráter (comercial ou outro) não é declarado (direta ou indiretamente) podem ser qualificados comerciais por analogia com atos previstos em lei mercantil? Eis um problema que tem divido marcadamente a doutrina portuguesa. Uma primeira precisão. O problema não se resolve recorrendo ao artigo 3.º CCom. Esta norma admite o recurso à analogia para regular atos já qualificados como comerciais. A nossa questão diz respeito a lacunas de qualificação, não imediatamente a lacunas de regulação. Os defensores da tese da
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 inadmissibilidade da qualificação de atos mercantis por analogia invocam três argumentos principais. Primeiro: a letra da lei. «Serão considerados atos de comércio todos aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código, e, além deles(…)» - é um enunciado que, além dos atos subjetivos de comércio, apenas permitiria como atos comerciais os «especialmente regulados» em lei mercantil. Segundo: razão histórica. A 1.ª parte do nosso artigo 2.º foi inspirada no 2.º parágrafo do artigo 2.º Código de Comércio Espanhol de 1885 («Serán reputados actos de comercio los compreendidos en este Código y cualesquiera otros de naturraleza análoga») – e a parte final deste parágrafo foi deliberadamente afastada da nossa lei. Por outro lado, vão no mesmo sentido o relatório ministerial que precedeu a proposta de lei para a aprovação do Código Comercial e a discussão nas Câmaras dos deputados e dos pares sobre o projeto do CCom. Terceiro argumento: certeza e segurança jurídicas. Dado o regime especial e as implicações dos atos de comércio, seria atentar contra o valor jurídico da segurança permitir a analogia na determinação de atos mercantis. É uma argumentação insubsistente. Primeiro, porque a letra do artigo 2.º não é concludente. Segundo, porque está perimida desde há muito a conceção subjetivista-histórica da interpretação das leis. Terceiro, porque o argumento da certeza jurídica já pesou muito mais do que agora e, doutro lado, porque o valor da justiça ou razoabilidade há-de sobrelevar – no fértil campo económico-jurídico vão-se gerando instrumentos que, por serem análogos a outros já registados no Direito Comercial, neste se hão-de filiar também. Para qualificar atos como comerciais, é legítimo, portanto, recorrer à analogia. Analogia legis e/ou analogia iuris? Na perspetiva que adotamos, a admissibilidade do recurso à analogia legis não levantará grandes dúvidas. Já o mesmo se não dirá quanto à analogia iuris. Com efeito, esta significa (tradicionalmente) a disciplina dos casos omissos através da aplicação de princípio gerais obtidos através de induções lógico-generalizadoras de uma série de normas legais. Ora, quem defenda a existência de um conceito unitário de ato de comércio coerentemente defenderá o recurso à analogia iuris (extraído do sistema normativo mercantil o princípio geral – conceito unitário de ato de comércio, há que aplica-lo aos casos omissos). Vimos atrás (no seu n.º2), porém, a irrealidade (objetiva) do conceito unitário de ato de comércio. Sendo assim, é compreensível que alguns se oponham à analogia iuris. Contudo: rejeitando embora um conceito unitário de ato comercial, não será possível extrair vários princípios gerais de vários grupos de normas qualificadoras (por razões idênticas ou similares) de diversos atos como atos de comércio – possibilitando, pois, o recurso à analogia iuris? Penso que sim37. O n.º2 do artigo 230.º CCom trata das empresas que fornecem em épocas diferentes, géneros, quer a particulares, quer ao Estado, mediante preço convencionado. Uma primeira curiosidade: enunciado normativo deste n.º parece ter sido copiado de um autor francês (Riviére); mas a cópia foi imperfeita – omitiu-se «ou outros 37
O n.º6 do artigo 230.º CCom, refere-se às empresas de construção, somente, de casas. Não são então comerciais as empresas construtoras de edifícios no mais amplo sentido, bem como de outras obras? Não há razões substanciais para se lhes negar tal qualidade. Por conseguinte, a norma deve ser estendida analogicamente (analogia legis) Àquelas outras empresas de construção.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 objetos» a seguir a «géneros». Segunda curiosidade paradoxal: já se defendeu que não havia qualquer necessidade de especificar no artigo 230.º CC estas empresas de fornecimentos; não obstante, a norma do n.º2 tem sido a mais fértil fonte para, através de interpretação extensiva ou de integração por analogia legis, se reconhecer a comercialidade de uma série de espécies empresariais. Tem-se entendido – com base em interpretação extensiva – serem comerciais as empresas fornecedoras de água, gás ou eletricidade. Tal como se tem entendido – agora com base na analogia – considerar mercantis uma multiplicidade de empresas de fornecimento de serviços. Raciocina-se assim: a consideração que impressionou o legislador e o levou a qualificar de comerciais as empresas mencionadas no n.º2 foi a de haver aqui um certo risco, originado pelo facto de interceder sempre um período de tempo mais ou menos longo entre o momento da fixação do preço e o dos múltiplos atos sucessivos de fornecimento; por conseguinte, devem ser abrangidas por aquela disposição todas as empresas que, apesar de não serem de fornecimento de géneros (estes, de facto, abrangerão bens materiais, não bens imateriais ou serviços), se traduzam no exercício de uma atividade económica desenvolvida dentro do condicionalismo referido. Então como qualificar essas empresas (de prestação) e serviços que têm crescido consideravelmente nos último decénios mas que não são análogas às previstas no n.º2, ou noutros, do artigo 230.º CCom, nem às incluíveis noutras normas do CCom, nem às consideradas comerciais em diplomas posteriores? Já podem sê-lo pelo recurso à teleologia imanente ao sistema legal mercantil, ao seu espirito, à analogia iuris portanto. Na verdade, o facto de a lei, quer no CCom, quer em diplomas ulteriores, considerar comerciais muito variadas empresas de serviços conduz-nos a esta conclusão (haverá, pois, um princípio geral de direito comercial segundo o qual as empresas de serviços são, em regra, comerciais). Recorrendo mais uma vez à analogia iuris, diremos, pois que os negócios sobre empresas comerciais são atos objetivamente comerciais. Até 1986 o contrato de agência era negócio atípico. E questionava-se a sua comercialidade. Afirmada claramente nos casos em que o contrato é concluído no âmbito de uma empresa dedicada a agenciar negócios – agora por virtude de analogia (legis) com o mandato e comissão comerciais (artigo 231.º e 266.º CCom). A comercialidade do contrato de agência deve continuar a ser afirmada. Mas com argumentos parcialmente diversos. O comércio em sentido económico é, já o referimos, atividade de interposição nas trocas ou intermediação na circulação dos bens. O comércio em sentido jurídico, sendo embora mais que isso, é evidentemente também isso. Colhe-se, pois, um princípio geral segundo o qual as atividades (e certos atos) de interposição nas trocas pertencem ao comércio em sentido jurídico. Ora, o agente exerce uma atividade (“estável”) de intermediação nas trocas. O Decreto-Lei n.º 178/86, disciplinando matéria jurídico-comercial. É portanto uma lei comercial e o contrato de agência e os atos que por virtude dele o agente pratica são atos de comércio objetivos. Concessão comercial é o contrato de caráter duradouro pelo qual o concedente se obriga a vender (sucessivamente) bens por si produzidos ou distribuídos ao concessionário, obrigando-se este a comprá-los e a promover, nas condições acordadas e em
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 nome e por conta própria, a respetiva revenda. É claro que as vendas dos concedentes são comerciais, tal como são comerciais as compras (para revenda) efetuadas pelos concessionários (artigo 463.º, n.º2 CCOM). Porém, o contrato de conceção comercial não se confunde com o contrato de compra e venda: aquele tem caráter duradouro; é fonte da celebração de vários e sucessivos contratos de compra e venda caracteriza-se por um conjunto de direitos e obrigações mais complexo que o do simples contrato de compra e venda. Contudo, pode dizer-se que o contrato de concessão comercial consubstancia um ato de interposição nas trocas ou, mais precisamente, é pressuposto necessário de uma atividade de intermediação nas trocas. Por isso se deve qualificar tal contrato, recorrendo à analogia iuris, como ato de comércio. Posto isto, aqui fica uma definição de atos de comércio objetivos: os factos jurídicos voluntários (ou os atos simplesmente) previstos em lei comercial e análogos. 2. Atos de comércio subjetivos: utilizando os dizeres da 2.ª parte do artigo 2.º CCom, atos de comércio subjetivos são «todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio ato não resultar».
É uma fórmula com ares esotéricos, e com ingredientes e combinação transalpinos. Decompõe-se a fórmula em três partes. Os atos subjetivos de comércio começam por ser atos dos comerciantes. Registe-se, entretanto, o enunciado do artigo 13.º CCom. Mas o n.º2 não fala simplesmente de atos dos comerciantes; fala de contratos e obrigações dos comerciantes. É uma formulação no mínimo pouco harmónica. Com efeito: nem só «os contratos (…) dos comerciantes» são atos dos comerciantes – e o artigo 2.º começa e acaba referindo-se a atos; as obrigações não são atos (ou factos jurídicos) – sendo sim consequência de atos; nos contratos, um comerciante não pode ser simultaneamente ambas as partes – e um contrato pode ser mercantil relativamente a uma das partes e não mercantil com respeito à outra. Por conseguinte, seria mais coerente referir-se o enunciado normativo a «todos os atos dos comerciantes» em vez de a «todos os contratos e obrigações dos comerciantes». Não obstante, poderemos adivinhar algum efeito útil da menção às obrigações. Na verdade, em todas as obrigações comerciais dos comerciantes derivam – ao menos imediatamente – de atos comerciais por eles praticados. Tenham-se em conta as obrigações previstas no artigo 18.º CCom, ou a obrigação de indemnizar resultante da responsabilidade objetiva de comerciantes-comitentes. Ora, a afirmação da comercialidade, nos termos do artigo 2.º, de tais obrigações pode conduzir à aplicação, por exemplo, do artigo 15.º CCom (conjugado com os artigos 1691.º, n.º1, alínea d) e 1695.º, n.º1 CCom). Para serem (subjetivamente) comerciais, os atos (e obrigações) dos comerciantes não podem ser de natureza exclusivamente civil. Segundo o entendimento tradicional, seriam de natureza exclusivamente civil os atos apenas (“exclusivamente”) regulados na lei civil (máxime, CC); não possuiriam tal natureza os atos incluíveis num género de que o CCom(ou outra lei mercantil) regula uma ou mais na lei comercial. Patenteia-se esta conceção no já citado relatório do ministro Veiga Beirão:
«Não se acha o ato regulado especialmente no codigo de commercio, e foi praticado por um simples cidadão? Não é commercial. Foi praticado por um commerciante? Se tal ato se acha exclusivamente
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regulado no codigo civil, será civil. Se se acha regulado n’elle e no commercial, e do proprio ato não resulta que seja o contrario d’um ato mercantil, o ato será commercial». O preceito refere-se a atos que não forem de natureza exclusivamente civil, não a atos que não estejam regulados exclusivamente na lei civil. Por outro lado, a norma do artigo 2.º, depois de visar na 1.ª parte os atos regulados na lei comercial, há-de visar na 2.ª parte sobretudo os atos dos comerciantes nessa mesma lei não previstos. Além disso, há atos omissos, não regulados nem n lei civil nem na comercial, aos quais pode não repugnar a comercialidade. Por outro lado ainda, é razoável que o preceito pretenda sujeitar ao regime do Direito Comercial atos (e obrigações) conexionáveis com o comércio profissional – ainda que não previstos na lei mercantil. Entendemos pois serem atos (E obrigações) de natureza exclusivamente civil os que, por sua natureza ou essência, não são conexionáveis com o exercício do comércio, não se concebendo (juridicamente) nem dirigidos a auxiliar, promover ou levar a cabo o exercício do comércio, nem a deste dependerem. São portanto atos de natureza exclusivamente (ou essencialmente) civil os atos de caráter extrapatrimonial como o casamento, a perfilhação, a designação de tutor pelos pais. Conexão com o comércio podem ter também os factos jurídicos ilícitos, geradores de responsabilidade civil extracontratual. Acontece com efeito comerciantes, no exercício do respetivo comércio, lesarem ilicitamente terceiros, com dolo ou mera culpa. Tais factos ilícitos não têm natureza exclusivamente civil, resultam do exercício do comércio, podem ser atos subjetivamente mercantis. Por fim, um ato (ou obrigação) de natureza não exclusivamente civil de um comerciante é (subjetivamente) comercial «se o contrário do próprio ato não resultar». Na linha (direta ou colateral) da interpretação oferecida pela doutrina italiana, os autores portugueses têm feito equivaler (e bem) aquela enigmática proposição a estoutra: se do próprio ato não resultar a não ligação ou conexão com o comércio (do comerciante autor do ato ou, acrescentemos, sujeito de certa obrigação). Assim, se do próprio não resultar a não ligação com o comércio, o ato é comercial; se do próprio ato não resulta a não ligação com o comércio, o ato é igualmente comercial; se do próprio ato resulta a não conexão com o comércio, o ato não é mercantil. «Próprio ato» significa não apenas o facto jurídico em si mas também as circunstâncias concomitantes que auxiliem na sua compreensão (não relevam, pois, as circunstâncias posteriores conducentes, eventualmente, a outra compreensão). A 2.ª parte do artigo 2.º contém ou não uma presunção legal? Tal como aconteceu em Itália, também por cá se tem discutido a questão. Segundo alguns autores, a norma revela uma presunção (os atos dos comerciantes presumem-se comerciais) – presunção iuris tantum para uns, iuris et de iure para outros. Segundo outros autores, a norma é imperativa. Acompanho os últimos autores. «Presunções são ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido» (artigo 349.º CCom). Ora, do facto de se saber que determinado sujeito é comerciante não se conclui que os atos por ele praticados são comerciais. Aquela norma estabelece a comercialidade de atos (e obrigações) que respeitem três requisitos (um positivo e dois negativos – que hão-de ser provados): serem de comerciantes; não serem de natureza exclusivamente civil; nem deles resultar não estarem conexionados com o comércio dos respetivos comerciantes. Para terminar: atos de comércio subjetivos são os factos jurídicos voluntários (ou os atos, simplesmente) dos comerciantes conexionáveis com o comércio
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 em geral e de que não resulte não estarem conexionados com o comércio dos seus sujeitos.
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Capítulo 1 – Dos Contratos Comerciais em Geral Secção 1 – Princípios gerais 42.º - Autonomia das partes
Numerus apertus; o poder do mercado: o Direito Comercial dos contratos, enquanto Direito privado, é dominado pelos princípios comuns e, em especial, pela autonomia privada, genericamente consignada no artigo 405.º, n.º1 CC. As partes podem, pois, celebrar os contratos que entenderem e, designadamente: Escolher um tipo legal previsto na lei; Eleger um tipo social que, embora sem previsão legal específica, esteja consagrado pelos usos e pela prática do comércio; Remeter pura e simplesmente para um modelo estrangeiro ou consagrado na prática estrangeira, ainda que submetendo-o, no que as partes não regulem, à lei nacional; Associar, num mesmo contrato, regras provenientes de dois ou mais tipos legais ou sociais; Inserir, junto de cláusulas típicas, proposições inteiramente novas, de sua lavra; Engendrar figuras contratuais antes desconhecidas; Adotar contratos comerciais apenas consignados em leis estrangeiras, quando as normas de conflitos o permitam. Tanto basta para se considerar que, no Direito Comercial, de resto numa manifestação simples de uma regra de Direito privado, vigora um postulado de numerus apertus: o número de atos mercantis teoricamente possíveis é ilimitado. Da vigência de um numerus apertus negotiorum decorrem dois corolários significativos: As descrições legais relativas a contratos comerciais não são contratualmente típicas: trabalhamos com conceitos de ordem, os quais permitem a juridificação de elementos a eles alheios; As regras comerciais são suscetíveis de aplicação analógica, mesmo quando especialmente previstas para um determinado tipo; essa aplicação é, de resto, possível, como vimos, dentro e fora do Direito mercantil. A existência de um numerus apertus de contratos comerciais e o progressivo envelhecimento do Código Veiga Beirão conduzem a que muitos dos atos hoje praticados não se revejam nele. Entre nós, País de legislação fácil e contínua, há, antes de mais, que lidar com numerosos diplomas extravagantes. A multiplicação destes não deve, todavia, fazer esquecer a regra básica da autonomia privada, que domina o conjunto. A referência, no Direito Comercial, a um numerus apertus de figuras e à autonomia privada, dados os fins assumidamente em jogo (os do lucro)
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 levam a colocar o tema do poder juridificador do mercado. Desde o momento em que este se encaminhe para certas figuras ou para determinadas soluções, não caberá ao Direito aceitá-las e assegurar a sua efetiva prossecução? Qualquer resistência, no presente período de globalização, apenas irá determinar uma fuga de operadores e de capitais para praças mais permissivas. Todavia, mesmo aceitando o papel do mercado, este deve ser delimitado: qualquer atuação ilícita não deixará de o seu, por obedecer às leis do mercado. Há regras juridicamente necessárias.
Contratos mistos; a natureza comercial: as partes têm a possibilidade de juntar num único contrato cláusulas provenientes de diversos tipos contratuais ou, ainda, de reunir, também no mesmo instrumento, cláusulas típicas e cláusulas novas. Os híbridos daí resultantes podem, de resto, configurar-se como tipos comerciais sociais: basta que apresentem uma certa estabilidade ditada pela prática mercantil. Em qualquer dos casos, há que lidar com as regras sobre contratos mistos. Em rigor, de acordo com os quadros civis, seria possível distinguir: Contratos típicos: aqueles cuja regulamentação geral consta da lei; Contratos mistos em sentido estrito: aqueles que resultem da junção, num único instrumento contratual, de cláusulas retiradas de dois ou mais contratos típicos; Contratos mistos em sentido amplo: aqueles que correspondam a um conjunto de cláusulas próprias de tipos contratuais legais e de cláusulas engendradas pelas partes; Contratos atípicos (em sentido estrito): aqueles que surjam como total criação da vontade das partes. Em sentido amplo, todos os contratos mistos são atípicos. Uma vez que resultam da autonomia privada, os contratos mistos podem-se multiplicar até ao infinito. No entanto, é comum apontar algumas das suas configurações mais habituais. Assim: Contratos múltiplos ou combinados: uma das partes está vinculada a prestações específicas de vários tipos contratuais enquanto a outra está obrigada a uma prestação própria de um único tipo; Contratos de tipo duplo ou geminados: uma das partes está ligada à prestação típica de um contrato enquanto a outra deve realizar a prestação própria do outro; Contratos mistos em sentido estrito, indiretos ou cumulativos: as partes escolhem um certo tipo contratual mas utilizam-no de tal modo que, com ele, prosseguem o escopo próprio de outro; Contratos complementares: a obrigação própria de um contrato é acompanhada por obrigações retiradas de tipos contratuais diferentes. Estas modalidades clássicas operam, se bem se atentar, nos contratos mistos em sentido estrito. No entanto, seria fácil proceder ao seu alargamento de modo a obter todos os contratos mistos. De facto, quando decidem utilizar a sua autonomia de modo a compor novas fórmulas contratuais, as partes não podem, em regra, limitar-se a juntar, unicamente, cláusulas provenientes de vários tipos contratuais: seria necessário engendrar cláusulas de adaptação que, para além de contemplarem casos concretos, assegurassem ainda a concatenação entre as várias parcelas. Muitas vezes, os contratos assim compostos são inominados. Por isso, as diversas manifestações de contratos mistos tenderão sempre a apresentar-se como complexos integradores de cláusulas totalmente atípicas. Os contratos regem-se, em princípio, pelas regras
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 pretendidas pelas partes. Deve entender-se que apenas por exceção a lei interfere na liberdade contratual associando, aos negócios por elas celebrados, cláusulas ou regras de sua autoria. Nos contratos mistos, esse princípio é, ainda, mais ponderoso. Não obstante, pode suceder que as partes estabeleçam um contrato misto, mas sem prever, para ele, um particular e explícito regime. Nessa ocasião, poderá ser necessário recorrer à lei, ainda que a título supletivo. Faz então sentido procurar fixar, em abstrato, o regime correspondente ao contrato em jogo. Historicamente, são três as teorias apresentadas para explicar o regime aplicável aos contratos mistos: Teoria da absorção: haveria que determinar, em cada contrato misto concretamente surgido, qual o elemento tipicamente prevalente; esse elemento ditaria, depois, o regime do conjunto; Teoria da combinação: impor-se-ia uma dosagem entre os regimes próprios dos diversos tipos contratuais em presença; todos eles contribuiriam para fixar o regime final do contrato misto a integrar; Teoria da analogia: considerar-se-ia que o contrato misto, por definição, seria um contrato não regulado na lei; assim sendo, lidar-se-ia com uma lacuna que não poderia deixar de ser integrada, nos termos gerais. Todas estas teorias, quando tomadas de modo isolado, levantam dúvidas e prestam-se a críticas. A teoria da absorção pode desvirtuar alguns dos contratos mistos reduzindo, excessivamente, a autonomia privada. Na verdade, um contrato misto será sempre mais do que, apenas, um dos seus elementos, por dominante que se apresente. A teoria da combinação também teria o seu quê de limitador; de facto, o contrato misto tem um valor de conjunto que transcende a soma das meras parcelas que o formem: o seu regime não pode, pois, ser um somatório de elementos preexistentes. Além disso, verifica-se que a teoria da combinação não dá a forma de articulação dos diversos regimes nem exprime o peso relativo que cada um deles deverá ter na solução final. De todo o modo, quando o contrato considerado tenha cláusulas de origem bem marcada, ela é operacional, ainda que sempre sob sindicância. A teoria da analogia por fim, ignora a vontade das partes e é puramente formal: não esclarece qual o critério para considerar análogos casos integráveis nos diversos tipos contratuais. A doutrina obrigacional clássica aponta soluções mais moderadas: a teoria da combinação aplicar-se-ia a contratos múltiplos e aos geminados, ficando a da absorção para os contratos cumulativos e para os complementares. Como pura indicação tradutora da vontade normal das partes, esta orientação pode ser acolhida; mas pouco mais. Na verdade, o essencial terá de residir sempre na autonomia privada: quando esta seja omissa, impõe-se recorrer aos princípios gerais de integração dos negócios jurídicos, com relevo para a vontade hipotética das partes e para a boa fé. As partes, ao contratar, ainda que através de composições mistas, terão tido em vista algum ou alguns efeitos primordiais. Tais efeitos impregnam o contrato. Eles irão constituir o centro de gravidade do conjunto, propiciando a aplicação das regras dirigidas, justamente, aos aspetos preponderantes. As necessidades de normalização, de simplicidade e de rapidez levam a que, as partes, mesmo quando acrescentem determinadas cláusulas atípicas, tenham em vista um determinado padrão a que, apesar de tudo, ainda seja possível reconduzir o contrato. As regras típicas mais próximas serão, assim, aplicáveis, quando, in concreto, não se imponham outros esquemas. É também a teoria da absorção, na fórmula acima apontada do centro de gravidade, que permite delucidar a natureza objetivamente comercial ou não comercial dos contratos mistos. Com efeito, como qualificar o contrato atípico que reúna em si cláusulas retiradas de figuras comerciais, ao lado de cláusulas
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 civis ou indefinidas? Não sendo possível uma qualificação subjetiva, haverá que determinar o âmbito em que cai o essencial do contrato. Seja ele mercantil e comercial será o contrato, no seu todo.
As coligações de contratos: nos Direitos codificados, o contrato é tratado como uma figura isolada. Cada negócio contratual surge como um espaço insular e bem delimitado; ele apresenta-se como uma figura autónoma e inteiramente desligada, quer em termos de celebração, quer no regime, de quaisquer outros negócios circundantes. O tráfego comercial faculta um cenário efetivo bastante diferente. Muitas vezes os contratos encadeiam-se, uns nos outros, de tal modo que surge toda uma série de interações relevantes para o regime aplicável. O recurso a vários contratos devidamente seriados e articulados é particularmente indicado para enquadrar situações complexas: temos, então, coligações ou uniões de contratos. Os contratos em coligação distinguem-se dos contratos mistos: nos primeiros, diversos negócios encontram-se associados em função de fatores de diversa natureza, mas sem perda da sua individualidade; nos segundos, assiste-se à presença de um único contrato que reúne elementos próprios de vários tipos contratuais. Nas uniões de contratos distinguem-se: A união externa: dois ou mais contratos surgem materialmente unidos, sem que entre eles se estabeleça um nexo juridicamente relevante; A união interna: dois ou mais contratos surgem conectados porquanto alguma das partes – ou ambas – concluem um deles subordinadamente à conclusão de outro ou em função desse outro; A união alternativa: a concretização de um contrato afasta a celebração do outro. Este quadro afastaria a relevância jurídica das uniões externas; pelo contrário, nas uniões internas e nas alternativas, haveria uma interação capaz de interferir no regime das figuras em presença. Outros autores apresentam quadros ordenados segundo linhas diversas: Conexões funcionais: verifica-se uma união entre dois ou mais contratos para melhor prosseguir certo fim; Conexões causais: um dos contratos estabelece uma relação donde deriva, depois, o outro; Conexões unitárias: uma figura aparentemente una revela, a uma análise mais atenta, vários negócios. Francesco Messineo contrapõe, no essencial: Situações de dependência ou de interdependência; Conexões genéticas ou funcionais; Conexões económicas. Numa tentativa mais abrangente, é possível apresentar um novo quadro. Deixando de parte as uniões externas e as alternativas, verifica-se, no tocante às internas, que elas podem ser arrumadas em função de vários critérios. Assim, podem-se distinguir: Uniões processuais: ocorrem quando vários negócios se encontrem conectados para a obtenção de um fim; Uniões não-processuais: nos restantes casos.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 De acordo com o conteúdo, surgem: Uniões homogéneas: os vários contratos em presença são do mesmo tipo; Uniões heterogéneas: eles reconduzem-se a tipos diferentes. O modo de relacionamento entre os contratos coligados permite apurar: Uniões hierárquicas: um segundo contrato encontra-se subordinado a um primeiro, porquanto encontra neste a sua fonte de legitimidade; Uniões prevalentes: um contrato especifica o objeto, o conteúdo e o regime de um certo espaço jurídico o qual irá, depois, ser retomado, por remissão, pelo segundo; são frequentes nas situações em que um contrato de base seja servido por vários contratos instrumentais ou, simplesmente, em que tal contrato seja concretizado por outros; também se podem chamar a estas uniões com subordinação; Uniões paritárias: vários contratos surgem conectados internamente, mas em pé de igualdade. O tipo de articulação, por fim, permite distinguir: Uniões horizontais ou em cadeia: vários contratos conectam-se na horizontal, celebrados em simultâneo ou sem que, entre eles, se estabeleçam espaços de tempo relevantes; Uniões verticais ou em cascata: os contratos articulam-se na vertical, dependendo uns dos outros ou justificando-se, nessa linha, entre si, de modo a dar corpo a uma ideia de sucessão. As diversas classificações, acima apresentadas, podem interprenetrar-se. Assim, uma união poderá ser processual, heterogénea, prevalente e vertical. Os elementos coligidos não têm um alcance meramente descritivo. Na verdade, eles ganham relevo por traduzirem ou implicarem um determinado regime. As combinações possíveis são tão numerosas que não seria possível proceder a uma completa explanação do tema. Algumas precisões são, no entanto, desejáveis. Desde logo, impõe-se deixar claro o fundamento do regime das coligações de contratos ou, se se quiser, das interações relevantes, em termos jurídicos, que delas derivem a autonomia privada. As partes são, por certo, livres de contratar e, fazendo-o, de inserir nos contratos as cláusulas que lhes aprouver. Simplesmente, quando através de uma associação contratual ou de contratos previamente celebrados, eles optem, livremente, por um certo tipo de soluções, cabe-lhes honrar a palavra dada, salvo impedimento ou justificação legais. Para além da autonomia privada há que lidar, em certas conjunturas, também com limitações de ordem jurídica. Bem pode suceder que o legislador, conhecendo os efeitos úteis ou nefastos de certas conexões contratuais, dimane normas destinadas a incentivá-las ou proibi-las. Como é de esperar, podem ocorrer múltiplas soluções de meio termo.
Segue; os seus efeitos: passamos a apontar alguns aspetos jurídicos em que as coligações de contratos relevam. Desde logo, no domínio da validade. Nas uniões verticais, pode suceder que os contratos posteriores vejam a sua validade dependente da dos anteriores. E isso por uma de três vias: A da legitimidade; A do vício na formação da vontade;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A da ilicitude. Uma coligação de contratos pode estruturar-se de tal modo que a legitimidade para a celebração de um segundo contrato dependa da idoneidade de um primeiro. Numa segunda combinação, verifica-se que, em certos casos, um dos contratos é celebrado na convicção da existência válida de outro; uma falha a nível deste último abre brechas no primeiro, por vício na formação da vontade. Um terceiro caso traduz ocorrências nas quais um primeiro contrato inviabilize a celebração de certos negócios. As coligações relevam, depois, no conteúdo. E isso por algum dos três caminhos seguintes: Por remissão; Por condicionamento; Por potenciação. Há remissão quando um contrato, de modo implícito ou explícito, apele para outro, no tocante às regras que estabeleça. Há condicionamento nos casos em que um contrato não possa, na sua regulamentação, ir além de certos limites prescritos em contrato anterior ou, muito simplesmente, deva seguir vias por elas pré determinadas. Há potenciação sempre que os contratos unidos sejam necessários para a obtenção de objetivos comuns, os quais ficarão perdidos na falha de algum deles. Por fim, as uniões têm um papel na interpretação. Perante contratos unidos, em cadeia ou em cascata, a interpretação das declarações em jogo deve ter o conjunto em conta. Um declaratário normal pode ser levado a dar, às declarações negociais que porventura receba, sentidos diferentes consoante os contratos antecedentes que, com elas, se apresentem conectados. Estes diversos aspetos podem estar interligados: apenas por razões de estudo e de análise se procedeu, aqui, à sua destrinça. Em qualquer dos casos, havendo união, os diversos contratos não podem ser tratados separadamente, quer aquando da interpretação, quer no momento da aplicação.
Consensualidade e normalização: a liberdade de forma dos atos jurídicos, genericamente prevista no artigo 219.º CC, é ainda um corolário do princípio da autonomia privada. Assim, as partes podem obrigar-se livremente, pela via que bem escolherem, salvo regra em contrário. De um modo geral, podemos considerar que, no Direito Comercial, as exigências formai são menores. Por isso, encontramos derrogações na forma exigida para certos atos: normas comerciais específicas prescrevem, para certos atos, um formalismo menos exigente do que o requerido no Direito Civil. A propósito de cada ato dotado de consagração legislativa, haverá que indagar a solução vertida na lei. A desformalização dos contratos comerciais é aparentemente contraditada pelas necessidades de rapidez e de segurança que reinam no mundo dos negócios. Um tanto paradoxalmente, o consensualismo retarda a prática de certos atos: implica que as pessoas se conheçam, troquem mensagens preambulares e, depois, se ponham de acordo quanto ao negócio pretendido. Não pode ser. A prática das cláusulas contratuais gerais conduz a uma normalização da vida comercial, particularmente em áreas sensíveis como a da banca, a dos transportes e a dos seguros. Essa tendência agrava-se pela necessidade de, rapidamente, com eficácia e sem dúvidas, exibir a prova dos atos celebrados. Tal prova colocaria imensos problemas, quando se reportasse à prática oral de atos. Podemos concluir que as necessidades de normalização da vida comercial implicam uma certa reformalização dos contratos mercantis. Os compromissos comerciais modernos tendem a ser celebrados por escrito. O recurso intensivo a cláusulas contratuais gerais permite aproveitar textos já impressos em formulários adequados, nos quais o consumidor ou o pequeno
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 comerciante se limitam a assinalar a sua vontade em determinadas quadriculas, mediante a aposição de cruzes. Através de cláusulas contratuais gerais, as partes estipularam, ainda e muitas vezes, a sua vontade de, apenas por escrito e mediante determinados canais, convencionarem novas alterações. A própria defesa do consumidor requer, muitas vezes e até por exigências legais explícitas, o recurso à forma escrita. Esta torna mais consciente o pequeno contratante permitindo, depois, um controlo a posteriori. A exteriorização da vontade através de computador constitui, ainda, um modo de consensualizar, reformalizando, o Direito Comercial dos nossos dias. Sempre nos termos de diversas cláusulas contratuais gerais, as partes acordam em manifestar a sua vontade, quanto à prática futura de atos, através da introdução de elementos em autómatos, por forma preestabelecida. Tal introdução, eventualmente autenticada pelo uso de um número pessoal secreto, ao qual apenas o cliente tem acesso, exprime uma vontade juridicamente relevante, com todas as consequências e sem alternativas de formulação.
A delimitação negativa; a deontologia comercial: a autonomia das partes que domina o Direito Comercial encontra, na sua frente, diversos vetores injuntivos que provocam a sua delimitação negativa. Os requisitos gerais do negócio jurídico são aplicáveis aos contratos comerciais. Assim, estes devem respeitar o artigo 280.º CC sendo, em especial:
Possíveis, quer física quer juridicamente; Determináveis, ainda que indeterminados, no momento da conclusão; Lícitos; Conformes com os bons costumes e a ordem pública.
Poderia parecer que alguns destes fatores teriam, no Direito Comercial, uma eficácia mais lassa. No comércio, em nome do lucro, seria possível ir mais longe do que no campo civil, atenuando os rigores das leis e negociando, até às fronteiras do engano (dolus bonus), com os particulares. Trata-se de uma conceção que tem, subjacente, uma ideia de degradação social e moral do estatuto do comerciante, própria de certa tradição nacional. Há que bani-la. O exercício do comércio tem a sua deontologia. Poder-se-ia tolerar que o ocasional caia na barganha e procure, num negócio, faturar vantagens extraordinárias. Mas a um profissional isso não é permitido. Margens de lucro exorbitantes jogam, a prazo, contra o mercado e contra os seus operadores. Um comerciante não pode enganar o seu cliente: isso equivale a erradicar novos negócios e, no limite, a esterilizar um segmento do mercado. Vamos pois manter que os requisitos dos negócios, particularmente as exigências de atuação segundo os bons costumes – onde se inclui a deontologia do comércio – assumem, no Direito Comercial, uma feição ainda mais exigente do que no civil. Estará presente uma especial filosofia do mercado. Os atos devem ser praticados com celeridade e eficiência. A sua justiça e o seu equilíbrio intrínsecos serão um fator suplementar de rapidez e proficuidade.
43.º - Princípios e regras comerciais
Os chamados princípios comerciais materiais: quando ponderámos as fontes e o regime geral dos atos de comércio, referimos a possibilidade, correntemente usada pela doutrina especializada, de construir princípios comerciais materiais; localizámos:
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A internacionalidade; A simplicidade e a rapidez; A clareza jurídica, a publicidade e a tutela da confiança; A onerosidade.
Neste momento interessa, fundamentalmente, considerar os princípios e as regras mais especificamente virados para o Direito dos contratos comerciais. Será esse o sentido da presente rúbrica.
A liberdade de língua: entrando na matéria pela ordem do Código Comercial, encontramos, como primeira regra comercial para todos os contratos, a do artigo 96.º: a regra da liberdade de língua. «Os títulos comerciais são válidos qualquer que seja a língua em que estejam exarados». O artigo 365.º CC, reconhece a validade dos documentos passados no estrangeiro. Podemos daí retirar: exarados em língua estrangeira. Por outro lado, e mercê de legislação especial, os atos públicos praticados em Portugal, mesmo no domínio comercial, devem sê-lo em português: artigos 139.º, n.º1 CPC, quanto a atos judiciais e 58.º do CNot, quanto a atos notariais. O registo comercial admite documentos escritos em língua estrangeira quando traduzidos nos termos da lei notarial; em certos casos e após a reforma de 2006, aceita documentos em francês, inglês ou castelhano, desde que o funcionário domine a língua em causa – 32.º, n.º2 CRC. E quanto a atos civis particulares praticados em Portugal? Não conhecemos nenhum preceito que obrigue ao uso do português. A liberdade de língua é de regra, no Direito privado, exceto nos atos públicos onde, salvo o que se disse quanto ao registo comercial, se deve usar o português. O artigo 96.º não tem alcance especial: reafirma uma regra hoje comum. Vale como profissão de fé no universalismo do Direito Comercial. O uso de línguas estrangeiras é permitido nos contratos comerciais. Impõem-se, todavia, algumas delimitações e restrições. Nos contratos comerciais internacionais, os usos tendem a impor a língua inglesa. Nada impede, contudo, que as partes recorram a qualquer outra língua, que ambas dominem. Nos contratos comerciais concluídos em Portugal, com recurso a cláusulas contratuais gerais, a língua portuguesa impõe-se. Com efeito, segundo o artigo 7.º, n.º3 da Lei .º 24/96, 32 julho (Lei de Defesa do Consumidor) a informação ao consumidor é prestada em língua portuguesa. Por seu turno, o Decreto-Lei n.º 238/86, 19 agosto, determina que – artigo 1.º – «as informações sobre natureza, características e garantias de bens ou serviços oferecidos ao público no mercado nacional…» Sejam prestadas em língua portuguesa, enquanto o artigo 3.º dispõe: «Sem prejuízo de conterem versão em língua ou línguas estrangeiras, os contratos que tenham por objeto a venda de bens ou produtos ou a prestação de serviços no mercado interno, bem como a emissão de faturas ou recibos, deverão ser redigidos em língua portuguesa». O Decreto-Lei n.º 62/88, 27 fevereiro, obriga ao uso da língua portuguesa no tocante às – artigo 1.º, n.º1:
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 «(…) informações ou instruções respeitantes a características, instalação, serviço ou utilização, montagem, manutenção, armazenagem, transporte, bem como as garantias que devem acompanhar ou habitualmente acompanhem ou sejam aplicadas sobre máquinas, aparelhos, utensílios e ferramentas (…)». De todos estes preceitos, retiramos a regra de que, perante consumidores finais – e logo, sempre, tratando-se de cláusulas contratuais comuns – deve ser usada a língua portuguesa. A regra é aplicável a bens e aa serviços, o que é dizer: comércio, no seu todo. Dadas as finalidades da lei, não é possível recorrer a qualquer outra língua latina, mesmo próxima: muitas vezes, palavras estrangeiras aparentemente semelhantes às nossas, escondem diferenças de sentido que podem induzir em erro o consumidor. Os preceitos que impõem o uso do português têm a ver com a tutela do consumidor: não com a validade dos atos. Assim, a violação do Decreto-Lei n.º 238/86 não é sancionada com a nulidade dos contratos prevaricadores, mas a título de contraordenação. Havendo danos, ela pode dar azo a deveres de indemnizar por violação de normas de proteção, nos termos do artigo 483.º, n.º1, 2.ª parte CC. Inferir uma nulidade por via do artigo 294.º CC pode redundar num dano maior para o consumidor, que se pretende proteger. O uso de língua estrangeira nos contratos comerciais, celebrados em território nacional, põe em crise o cumprimento dos deveres de informação que possam surgir a favor do consumidor. Tratando-se de cláusulas contratuais gerais, o uso de língua estrangeira pode ainda implicar, nos termos do artigo 8.º LCCG, a sua não inclusão nos contratos singulares, com o subsequente recurso às regras supletivas que pretenderam afastar. Nos restantes casos, seja com apelo à regra geral do uso do português para a tutela do consumidor, seja por via da boa fé, o recurso a uma língua estrangeira, por parte do comerciante, faz correr, contra este, o risco linguístico de quaisquer mal-entendidos. Não se trata de uma defesa nacionalista da língua portuguesa mas, antes, da proteção do comércio intra muros, o tal pequeno comércio a que hoje se aplica (ainda), em especial, o Direito Comercial tradicional. A situação dos pequenos operadores ficaria mais precarizada quando, no próprio território nacional, irrompesse o jargon dos negócios em língua inglesa ou – porventura pior ainda – qualquer outro menos normalizado.
As comunicações à distância: o artigo 97 do Código Comercial fixava o valor da correspondência telegráfica. Em síntese, era o seguinte: Os telegramas cujos originais houvessem sido assinados pelo expedidor ou mandados expedir por quem figure como expedidor valem como documentos particulares; O mandato e toda a prestação de consentimento, transmitidos telegraficamente com a assinatura reconhecida são válidos e fazem prova em juízo. O preceito acrescentava ainda a regra de que a alteração ou a transmissão de telegrama seria imputáveis, nos termos gerais, a quem as tivesse causado; que o expedidor que houvesse respeitado os regulamentos se presumiria isento de culpa e que, finalmente, a data e hora exaradas se presumiam exatas. O artigo 97.º em causa surgiu logo no início das telecomunicações. Hoje, o telégrafo está em desuso. As leis vieram a adaptar-se. O Decreto-Lei n.º 28/92, 27 fevereiro, admitiu o uso de telecópia – normalmente dita telefax – na prática de atos processuais. Na fixação das regras relativas a comunicações negociais à distância, cumpre distinguir entre a prática do ato em si e a sua prova. Um documento escrito e assinado não deixa de o ser pelo facto de ser enviado por cópia à distância. Assim, e retomando em termos
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 atualistas o velho artigo 97.º CCom, vamos entender que os documentos telecopiados, cujos originais tenham sido assinados pelo próprio, valem como documentos particulares. Satisfazem, ainda, a exigência de forma escrita. Documentos autênticos ou autenticados remetidos por telecópia valem, enquanto atos; a telecópia é um documento particular que atesta a sua existência, podendo ser exibidos, em juízo, os originais, para se fazer prova plena ou melhor prova. Finalmente: de acordo com o artigo 26.º Decreto-Lei n.º 7/2004, 7 janeiro, as declarações eletrónicas com suporte adequado satisfazem a exigência legal de forma escrita, valendo a assinatura eletrónica. O uso da internet tem vindo a ser oficializado, especialmente no campo do registo e das sociedades.
A solidariedade: o artigo 100.º estabelece a regra supletiva da solidariedade passiva, nas obrigações comerciais. Recorde-se que no Direito Comum, por via do artigo 513.º CC, vigora a regra inversa. O §único do artigo 100.º afasta essa regra, nos contratos mistos (com o sentido que a expressão aí tem), quanto aos não comerciantes: aí, a exigibilidade in totum et totaliter terá de ser convencionada, nos termos do artigo 513.º CC. Resta acrescentar que, nas relações comerciais, são frequentes as convenções de solidariedade. O artigo 101.º estabelece uma solidariedade do fiador de obrigação mercantil, mesmo que não comerciante. Desde logo, temos uma manifestação da natureza acessória da fiança: esta será comercial quando a obrigação principal o seja. De seguida, ocorre um afastamento do benefício da excussão previsto no artigo 638.º, n.º1 CC. Desenha-se, aqui, no entanto, um tipo contratual próprio: o da fiança comercial.
O regime conjugal de dívidas: as obrigações comerciais originam um regime especial, no tocante à responsabilidade dos cônjuges. Segundo o artigo 1691.º, n.º1, alínea d) CC ambos são responsáveis: «(…) pelas dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal, ou se vigorar entre os cônjuges o regime da separação de bens». Este preceito permite evitar a comunicabilidade das dívidas comerciais através da elisão da presunção de proveito comum: maior equidade e menor segurança para o comércio. O ónus da elisão compete, nos termos gerais, ao cônjuge interessado em não arcar com a responsabilidade pela dívida comercial em causa. Tudo depende, todavia, de o credor demonstrar a qualidade de comerciante do devedor. O artigo 10.º vinha afastar a moratória prevista inicialmente no artigo 1696.º, n.º1 CC, «quando for exigido de qualquer cônjuge o cumprimento de uma obrigação emergente do ato de comércio, ainda que este o seja apenas em relação a uma das partes». Mantinha-se, pois, também a este nível, um esquema que tutela o crédito comercial, em comparação com o comum. O artigo 4.º Decreto-Lei n.º 329-A/95, 12 dezembro, veio alterar o artigo 1696.º, n.º1 CC suprimindo, em geral, a moratória. A matéria atinente à solidariedade comercial e ao regime de responsabilidade por dívidas dos cônjuges apresenta alguma subtileza, com dúvidas na execução. O ónus da prova da comercialidade cabe ao interessado, o que mais agrava a situação. O comércio não se compadece com tal situação. Assim, é frequente os operadores comerciais, particularmente a banca, quando deparem com regimes de comunhão geral ou de adquiridos, exigirem a vinculação de ambos os cônjuges, em termos de solidariedade.
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Responsabilidade por dívidas comerciais contraídas por cônjuge comerciante 39 : são da responsabilidade de ambos os cônjuges – quando casados sob o regime da comunhão de adquiridos ou da comunhão geral de bens as dívidas contraídas por qualquer deles no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal (artigo 1691.º, n.º1, alínea d) CC). Por tais dívidas (artigo 1695.º, n.º1 CC): «respondem os bens comuns do casal, e, solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges» É um regime primordialmente tutelador do comércio. Na verdade, os credores (comerciantes, normalmente) dos que exercem o comércio não têm de provar (ao contrário do que sucede nos casos previstos na alínea c) do n.º1 do artigo do 1691.º CC) que as dívidas contraídas nesse exercício o foram em proveito comum do casal; por outro lado, respondendo por tais dívidas o património de ambos e de cada um dos cônjuges, facilitada fica a obtenção de crédito pelos que exerçam o comércio, facilitado fica o exercício das atividades mercantis. Contudo, não descura a lei os interesses do cônjuge de quem contrai as dívidas e da comunidade familiar. Porquanto pode um ou outro cônjuge (ou ambos) provar que elas não foram contraídas em proveito comum do casal. Sendo ambos os Cônjuges comerciantes por mor da administração de uma mesma empresa, é claro que a maioria das obrigações previstas no artigo 18.º CCom e em outras normas são duplicadas.
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Tutela do crédito comercial: a prática comercial dos nossos dias revela um certo laxismo na observância do que deveria ser uma estrita deontologia profissional. É sabido que, perante um incumprimento temporário (mora), o credor prejudicado hesitará em recorrer às vias judiciais: irá encarecer a operação, ficando dependente de medidas e da diligência de terceiros. O 38
Vide nota 35 Abreu, Jorge Manuel Coutinho de; Curso de Direito Comercial, volume I; Almedina Editores. 40 Vide nota 35 39
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 devedor pode contar com esta derrapagem, retardando sistematicamente os seus pagamentos. Tal situação acabou por se tornar uma prática corrente, principalmente no Sul da Europa, sendo levada a cabo por grandes empresas, em detrimento das pequenas e das médias. Além disso, empresas de grande porte impõem, nas suas cláusulas contratuais gerais, prazos de pagamento alongados: sessenta ou, mesmo, noventa dias. Tudo isto origina insolvência e desemprego. O problema apontado veio ainda assumir uma dimensão gravosa no plano da concorrência. Os países do norte da Europa, com elevadas taxas de juros (no início do século) e sistemas judiciais mais dinâmicos, apresentam, por sistema, prazos mais curtos de cumprimento do que os países do Sul, com circunstancialismos inversos. As vítimas são as pequenas e médias empresas que, assim, subsidiam, a título gracioso, as grandes empresas e o próprio Estado. No fundo, estamos em face de um Diktat imposto pelo mais poderoso, mas com danos para toda a economia. Em face deste estado de coisas, as instâncias comunitárias decidiram intervir. A Comissão Europeia, através da sua recomendação n.º 95/198, 12 maio, relativa aos prazos de pagamento nas transações comerciais, convidou os Estados Membros: «(…) a tomar medidas jurídicas e práticas necessárias para fazer respeitar os prazos de pagamento contratuais nas transações comerciais e para assegurar prazos de pagamento melhores nos contratos públicos». Ocorriam outras indicações, nomeadamente a fixação, a título subsidiário, de taxas de juro suficientemente altas para serem dissuasivas perante os maus pagadores. Seguiu-se a Diretriz n.º 2000/35, 29 junho, que estabelece medidas de luta contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais. As definições são importantes, precisando o âmbito de aplicação do diploma. Elas enfrentam um problema tipicamente comunitário: dada a diversidade existente entre Ciências Jurídicas nacionais, não bastaria apelar para os conceitos habituais. Entre as definições adotadas conta-se a de transação comercial: qualquer transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração (artigo 2.º, n.º1, 1.ª parte). Subjacente, perante nosso Direito estará, como é natural, a ideia de ato comercial. A Diretriz n.º 2000/35 foi transposta pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, 17 fevereiro 41 , substituído pelo Decreto-Lei n.º 62/3013, 10 maio: não totalmente, uma vez que várias regras inseridas naquela Diretriz já vigoravam no nosso Direito. Visada foi, em especial, a temática do atraso nos pagamentos. E as medidas tomadas foram, no essencial, as seguintes: Sempre que do contrato não constem prazos, são devidos juros, automaticamente, 30 dias após a data de receção da fatura ou da receção dos bens (artigo 4.º, n.º2 e 3); São nulos os prazos excessivos contratualmente fixados para o pagamento (artigo 8.º, n.º1), podendo, quando assentes em cláusulas contratuais gerais, ser objeto de ação inibitória (artigo85.º, n.º5); O artigo 102 CCom recebeu uma redação que permite a fixação de juros moratórios mais elevados (artigo 11.º); O atraso nos pagamentos permite o recurso ao regime da injunção (artigo 10.º).
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Alterado, no seu artigo 4.º pela Lei n.º 3/2010, 27 abril.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 O problema enfrentado pela lei exige uma efetiva mutação nas mentalidades e na praxe comercial. Note-se que o Decreto-Lei n.º32/2003, 17 fevereiro, não se aplica a relações com os consumidores.
A prescrição presuntiva de dívidas: ainda como especialidade do comércio, devemos assinalar a prescrição presuntiva bienal prevista no artigo 317.º, alínea b) CC. As prescrições presuntivas, tipicamente latinas, fundam-se na presunção de cumprimento das dívidas envolvidas. Entre o elenco das situações previstas com esse alcance contam-se, nos termos da referida alínea: «Os créditos dos comerciantes pelos objetos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efetuado, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor;». O conteúdo deste preceito, no tocante ao comércio, coloca um encargo: o de uma especial diligência na cobrança de dívidas, particularmente no relacionamento com não-comerciantes. Visa-se um andamento rápido dos negócios, com segurança para os participantes no mercado.
Secção II – A contratação comercial 44.º - Culpa in contrahendo
Deveres pré contratuais mercantis: a culpa in contrahendo é um instituto geral do Direito Privado. Dada, porém, a sua concretização preferencial através de deveres de informação, ela apresenta-se, cada vez mais, como um instituto vocacionado para atuar no campo dos serviços e, dentro deste, dos serviços comerciais. A propósito da formação do contrato, e fosse qual fosse o esquema então seguido, uma doutrina radical, hoje abandonada, entendia que, nas negociações preliminares, não havia Direito aplicável: as partes seriam inteiramente livres, podendo assumir as atitudes arbitrárias que entendessem. Não é, contudo, assim. Nas negociações preliminares, as partes devem respeitar os valores fundamentais da ordem jurídica, pautando-se pela boa-fé. O Código Civil português di-lo, de modo expresso, no seu artigo 227.º. A sua aplicação é decisiva no campo comercial. Como figura assente num conceito indeterminado – o de boa-fé – a responsabilidade pré-negocial carece de um processo concretizador, a operar perante cada problema real. O conhecimento e a ponderação das decisões jurisprudênciais que a consubstanciam têm, pois, o maior interesse teórico e prático. Uma sistematização operada com base na jurisprudência mais rica do domínio da culpa in contrahendo – a alemã – permite afirmar que ela ocorre quando, na fase preparatória dum contrato, as partes – ou alguma delas – não acatem certos deveres de atuação que sobre elas impendem. E tais deveres analisam-se em três grupos:
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Deveres de proteção: nos preliminares contratuais, as partes devem abster-se de atitudes que provoquem danos nos hemisférios pessoais ou patrimoniais umas das outra; quando não, há responsabilidade; Deveres de informação: num processo destinado à procura do consenso contratual, as partes devem, mutuamente, prestar-se todos os esclarecimentos e informações necessários à celebração de um contrato idóneo; ficam, em especial, abarcados todos os elementos com relevo direto e indireto para o conhecimento da temática relevante para o contrato, sendo vedada quer a omissão do esclarecimento, quer a prestação de esclarecimento falsos, incompletos ou inexatos; as doutrina e jurisprudência da atualidade conferem uma intensidade particular aos deveres de esclarecimento, a cargo de uma parte forte e a favor da fraca; Deveres de lealdade: a necessidade de respeitar, na sua teleologia, o sentido das negociações preparatórias não se esgota num nível informativo; podem surgir deveres de comportamento material, com o mesmo sentido de evitar, nos preliminares, atuações que se desviem da busca honesta dum eventual consenso negocial; tais deveres englobam-se na ideia de lealdade; subcaso típico e clássico de deslealdade in contrahendo reside na rutura injustificada das negociações. Mas outras situações surgem, com relevo para a prática, nos preliminares ou lateralmente, de atos de concorrência desleal. Em termos gerais, o instituto da culpa in contrahendo, ancorado no princípio da boa-fé, recorda que a autonomia privada é conferida às pessoas dentro de certos limites e sob as valorações próprias do Direito; em consequência, são ilegítimos os comportamentos que, desviando-se duma procura honesta e correta dum eventual consenso contratual, venham a causar danos a outrem. Da mesma forma, são vedados os comportamentos pré-contratuais que inculquem, na contraparte, uma ideia distorcida sobre a realidade contratual. A receção, em Portugal, da culpa in contrahendo iniciou-se logo com Guilherme Moreira. Depois de algumas hesitações iniciais, numa aproximação à boa-fé, na linha germânico-românica acima apontada, acabou por ter um acolhimento formal no Código Civil de 1966. Este dispõe, no seu artigo 227.º, n.º1: «Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte». O dispositivo legal em questão, sendo expresso, confere, à velha culpa in contrahendo, a maior extensão; merece um aplauso generalizado por parte da literatura da especialidade. Através dele devem considerar-se em vigor os aludidos deveres pré-negociais de informação e de lealdade.
A jurisprudência comercial: a jurisprudência comercial portuguesa, dada a sua dimensão, tem, efetivamente, concretizado a culpa in contrahendo. E fê-lo, com especial acuidade, no domínio dos deveres de lealdade pré-negociais, e no do dever, também pré-negocial, duma completa e exata informação. O sentido geral da jurisprudência é bastante claro; deve, no entanto ser precisado. Em princípio – e salvo a presença de normas legais aplicáveis que a tal conduzam – não há, nas negociações preliminares, um dever de celebrar o contrato visualizado. Mas há, por certo, um dever de negociar honestamente. Isso implica, desde logo:
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Que a parte que não tenha a intenção de levar por diante as negociações o deva, de imediato, comunicar à contraparte, de modo a não provocar, nela, esperanças vãs, que induzam danos; Que a parte eu detenha, nas negociações, informações vitais para a outra parte as deva, também de imediato, comunicar à contraparte, de modo a evitar contratos distorcidos e, posteriormente, danos; se não o quiser fazer, basta-lhe não contratar. Como se vê, mesmo as hipóteses de deslealdade, particularmente claras na rutura injustificada das negociações, há sempre, ainda que mediatamente, um dever de informação subjacente, que não foi cumprido.
Sentido e consequências; a natureza comercial: a violação do artigo 227.º, n.º1 CC, dá lugar a consequências que importa referir. A pessoa que cometa tal violação está a pôr em causa deveres específicos de conduta, de base legal. Assim, a responsabilidade é obrigacional e não, apenas, aquiliana: foram violadas obrigações legais e não, somente, o dever genérico de respeito, implícito no artigo 483.º, n.º1 CC. Sendo obrigacional, presume-se a culpa, sempre que ocorra uma inobservância (objetiva) da boa-fé: dispõe, nesse sentido, o artigo 799.º, n.º1 CC. A culpa envolve, aqui, a ilicitude e a causalidade, na linha do que vimos ser o sentido hoje assumido pela responsabilidade obrigacional. A natureza obrigacional da responsabilidade derivada da culpa in contrahendo é essencial para se entender a aplicação do instituto pelos tribunais. Existe um dever genérico de não causar danos a outrem. Quem, faltando à verdade ou por outro meio idóneo, com culpa, lesar o direito de outrem, causando danos, responde, nos termos gerais do artigo 483.º, n.º1 CC. Tal sucederia se alguém convencesse outrem a lesar o património próprio. Se a culpa in contrahendo viesse dizer isso mesmo, a propósito da conclusão dum contrato, seria escasso o progresso. Historicamente, a culpa in contrahendo surgiu, precisamente, para suprir as insuficiências da responsabilidade aquiliana. Firmando a existência de obrigações legais de informação e de lealdade, ela permite fazer funcionar os esquemas da responsabilidade obrigacional, mais eficazes. Consumada a violação, há um dever de indemnizar por todos os danos verificados. Já houve conceções ligadas ao denominado interesse negativo e que deve ser situado historicamente. A ideia de que, por culpa in contrahendo, haveria que responder, apenas, pelos danos negativos, i. é, pelos danos num entendimento da responsabilidade pré-negocial como fruto de um contrato tácito, não cumprido, entre as partes. A limitação perdeu, hoje, a sua base de apoio, dado o consenso existente em que a culpa in contrahendo deriva da violação do princípio legal da boa-fé. O artigo 227.º, n.º1 CC, não faz qualquer limitação; por isso deve entender-se que, violada a boa fé in contrahendo, devem ser ressarcidos todos os danos causados. Ficam envolvidos tanto os danos emergentes como os lucros cessantes. Os deveres de atuação próprios da fase pré-contratual e as dívidas ocasionadas pelo funcionamento da culpa in contrahendo na celebração de contratos comerciais têm, elas próprias, natureza comercial. Desde logo elas terão natureza comercial subjetiva, sempre que provenham de comerciantes no exercício da sua profissão. Mas além disso, teremos de lhes emprestar o regime comercial próprio das obrigações definitivas, por se verificar precisamente o mesmo conjunto de razões que, a estas, conecta aquele. Será pois um bom exemplo de situação jurídica comercial por analogia.
O conteúdo do dever de informar: um dos deveres por que se concretiza o instituto dito culpa in contrahendo é o de informar. Trata-se, mesmo, de um dever envolvente: a própria deslealdade analisa-se, afinal, numa falta de informação. O dever de informação in contrahendo
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 assume as mais diversas configurações: tudo depende do contrato em jogo. De todo o modo, será possível referenciar vetores abstratos atuantes, aquando da concretização. À partida, o dever de informação tenderá a abranger tudo quanto, pela natureza da situação considerada, não seja conhecido pela contraparte. Assim, ele será tanto mais intenso quanto maior for a complexidade do contrato e da realidade por ele envolvida. Em termos descritivos, o dever de informar poderá recair: Sobre o objeto do contrato: há que evitar que, por ação ou por omissão, a contraparte cia em erro quanto ao objeto material do contrato, nos termos latos que essa realidade comporta; Sobre aspetos materiais conexos com esse objeto: por vezes, o contrato releva não apenas pelo objeto estrito sobre que recai, mas ainda por determinados aspetos a ele ligados; Sobre a problemática jurídica envolvida: os contratos em estudo assumem, por vezes, implicações jurídicas conhecidas por uma das partes e, designadamente, pela proponente: há que levá-las ao conhecimento do parceiro nas negociações; Sobre as perspetivas contratuais ou sobre condutas relevantes de terceiros: aquando da contratação e de acordo com as circunstâncias, há que transmitir, à outra parte, dados corretos sobre o futuro do contrato e sobre condutas relevantes de terceiros; Sobre a conduta do próprio obrigado: a pessoa adstrita à informação deve esclarecer a outra parte sobre a sua intenção de contratar e, designadamente, sobre o seu emprenho em levar a bom termo a contratação. O dever de informar não é, apenas, conformado pelos elementos objetivos acima enunciados. A doutrina e a jurisprudência têm vindo a focar o relevo da pessoa da contraparte nessa conformação. Ou seja: o dever de informar é tanto mais intenso quanto mais inexperiente ou ignorante for a contraparte. A culpa in contrahendo tem vindo a ser usada, com certo êxito, como instituto destinado a tutelar a parte débil e a prevenir a conclusão de contratos injustos. E justamente, da culpa in contrahendo relevam, neste domínio, os deveres de informação. Embora a tutela do contraente débil seja matéria de Direito Civil, ela é também compartilhada pelo Direito Comercial: a unidade do sistema assim o exige.
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Capítulo 2 – Empresa e Estabelecimento Secção I – A Empresa 90
20.º - Evolução histórico-comparatística da empresa Aspetos gerais; a necessidade de enquadramento cultural : a expressão “empresa” apresenta uma utilização avassaladora, em diversos setores normativos. Também a linguagem corrente usa empresa em termos de grande amplitude. E fá-lo em detrimento de outras locuções que vão mesmo caindo em desuso. Tentando ordenar este uso caudaloso, podemos adiantar que, quer perante numerosas leis, quer em face da linguagem corrente, a expressão “empresa” traduz, conforme o contexto: Um sujeito que atue e que, nessa qualidade, é suscetível de direitos e de obrigações; Um complexo de bens e direitos capaz de suportar a atuação de interessados; Uma atividade; esta última aceção, tradicional, tende a cair em manifesto desuso. Numa primeira leitura, a “empresa” pareceria querer abarcar a própria ideia de comerciante, incluindo o singular (a “empresa individual”) e, em simultâneo, a de estabelecimento ou unidade produtiva. É manifestamente demais: o fenómeno deve ser reduzido a dimensões mais apropriadas. A evolução semântica vulgar teve reflexos na dogmática jurídica, particularmente na comercial. O desenvolvimento, ao longo do século XX, do conceito de personalidade coletiva e a tipificação das sociedades comerciais conduziu a um inevitável formalismo que deixou os juristas insatisfeitos. Afinal, o que se abrigava por detrás das fórmulas jurídicas abstratas aí envolvidas? Também a figura da fábrica produtiva, com as coisas, móveis e imóveis, que a compõem, com os seus trabalhadores, com os seus quadros, com a sua clientela, o seu knowhow, as suas patentes e licenças e sua inserção no tecido produtivo, não se podia analisar num somatório de direitos, deveres e contratos. Como tratar tudo em conjunto? Exigia-se um conceito novo, envolvente, capaz de dar corpo a esta realidade. A “empresa” poderia corresponder ao pretendido. E assim, logo no início do século XX a doutrina começou a recorrer à “empresa” tentando conquistar-lhe uma dimensão dogmática. Justus Wilheim Hedemann previa, em 1919, que a empresa se iria tornar no conceito dominante na reconstrução da ordem jurídica privada. Os estudiosos italianos que possibilitaram o Código Civil de 1942 previram um papel aglutinador para a empresa, no campo laboral e no comercial. Ao longo de todo o século XX, sucederam-se as tentativas de reconstruir o Direito Comercial em torno da ideia de empresa, em detrimento dos envelhecidos atos de comércio ou comerciante. Adiantamos já que, por razões de ordem diversa essas tentativas não tiveram êxito. Todavia, deixaram marcas
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 importantes na dogmática comercial e enriqueceram a Ciência Jurídico-mercantil com novos instrumentos de análise e de valoração.
A tradição germânica; do negócio à “empresa em si”: na análise histórico-comparatística da ideia de empresa, cumpre distinguir a tradição germânica da tradição latina. A primeira tomou a empresa como uma realidade objetiva, capaz de substituir a ideia de estabelecimento. Ela seria objeto de negócios podendo mesmo, no limite, abarcar as próprias sociedades, tornando-se num sujeito de direitos. A segunda partiu da empresa como uma atividade comercial: ela seria o produto da atuação e das intenções dos comerciantes. Nesta vertente, a empresa iria absorver a ideia de ato de comercio. Mais tarde as duas tradições aproximar-seiam. A utilização jurídico-científica de empresa, na tradição alemã, iniciou-se pela pena de Wilhelm Endemann, em 1867: fez da empresa uma pedra angular do seu sistema de Direito Comercial. Segundo este Autor, o Geschäft tinha, no início, apenas o escopo de dar lucro ao seu dono e de desenvolver a produção. Mais tarde, o negócio ganharia a sua vida própria. O dono é, com frequência, apenas a cabeça ou a alma do negócio. Às vezes, nem isso: o negócio funciona por si. O Geschäft tem características específicas suas, não dependendo arbitrariamente do dono. Os auxiliares dedicam as suas forças ao negócio. Este faz o comerciante e não o contrário. O negócio é o verdadeiro suporte do crédito, surgindo como um organismo, que supera as pessoas que lhe deram origem. Estariam abertas as portas à subjetividade jurídica. Pouco depois verificou-se uma inflexão na ideia de empresa. Em vez de se elaborar uma doutrina que a tornaria a empresa concorrente da personalidade coletiva, optou-se por aprofundar a sua capacidade para constituir um objeto (unitário) de negócios e de outras vicissitudes jurídicas. Nesse sentido foram importantes, logo no princípio do século XX, os austríacos von Ohmeyer e Pisko. Assim, admitiu-se a possibilidade de transacionar a empresa no seu conjunto e a de aplicar, à venda da empresa com defeitos não aparentes, as regras dos vícios da coisa vendida. Ficou ainda em aberto a possibilidade de ver, na empresa, um núcleo autónomo de interesses específicos. Trata-se de uma linha herdeira das primeiras posições de Endemann. Ela foi retomada por Müller-Erzbach, dando origem a vetores ainda hoje presentes na doutrina. A defesa da personalidade coletiva clássica, perane a transformação da empresa em sujeito de direitos, fora imediatamente lançada, contra Endemann, por Laband. Talvez por isso o estudiosos que tinham em mente uma ideia da empresa como sujeito tentaram um esquema menos claro: o de apurar interesses próprios da empresa. Na verdade, a empresa, a ser jussubjetivada, ofereceria, aos juristas, o que a personalidade (normalmente) coletiva já dava, menos o seu nível significativo-ideológico. Havia, pois, que reforçar indiretamente o poder figurativo e conformador da empresa, o que seria tentado através da doutrina, algo sibilina, do Unternehmen na sich: a empresa valeria por si. A doutrina da “empresa em si” tem sido imputada, entre nós a Rathenau. Ele sublinhou eu a empresa não representava, apenas, a soma dos interesses dos seus acionistas, antes surgindo como um fator em si. A ideia foi criticada por Fritz Hausmann, aí aparecendo a “empresa em si”. Repare-se: as duas grandes novidades, que a empresa poderia trazer, residiam ou na alternativa à personalidade coletiva, ou na descoberta de um centro de interesses – ou de valores – diferente do dos seus suportes humanos. O papel da empresa enquanto centro autónomo de interesses ou o que quer que, com isso, se verifique, teria de apresentar reflexos no regime. Trata-se do aspeto subsequente. De todo o modo, ninguém, hoje e na sua terra de origem, eleva a ideia de empresa em si a categoria operacional. Ligada às tentativas antiliberais do entre-guerras alemão, ela já foi mesmo incluída na galeria dos horrores jurídicos.
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Continuação; a possível dogmática da empresa: no subsequente desenvolvimento da empresa, a doutrina alemã tentou o afinamento possível da sua dogmática. Passow adiantou a contra posição entre Betrieb, Unternehmen e Konzern42: o Betrieb traduziria um complexo de fatores unitário e destinado a desenvolver uma atividade económica duradoura o Unternehmen exprimiria um Betrieb autónomo; o Konzern, finalmente, daria corpo a um conjunto de empresas, civilmente autónomo. Passow explica, ainda, que o património da empresa é uma realidade diversa: trata-se do património que serve para a atividade da empresa. Jacobi aperfeiçoou os dois primeiros termos: O Betrieb seria determinado por escopos técnicos, enquanto o Unternehmen pudesse abranger vários Betriebe. Deve sublinhar-se que Betrieb veio aproximarse de um original conceito de fábrica, próprio da industrialização, acabando, mercê das leis relativas à co-gestão, por adquirir, no Direito do trabalho, um sentido preciso, que se mantém; já o Unternehmen, próprio da comercialística, conserva, até hoje, irredutível indeterminação. Ainda nos anos trinta do século XX, veio-se a debater a possibilidade de, em torno dela, erguer normas e princípios, no Direito das empresas: tal o caso de Jessen. Trata-se de um filão tocado, ainda, por Jrause e por Fechner. Este último vem afirmar a necessidade de construir um conceito unitário de empresa, a que associa grande importância, no momento histórico então atravessado. Para o efeito contrapõe, aos tradicionais, os conceitos gerais-concretos, de tipo neo-hegeliano, recentemente introduzidos, na época, por Karl Larenz. Mau grado esta colocação promissora, Fechner acabaria por apresentar uma noção complexa e pouco manuseável. Numa outra linha dogmática, iniciara-se, entretanto, a utilização do termo “empresa”, para, com o adjetivo, designar a empresa pública. Esta, porém, veio a adquirir um sentido técnico preciso, acentuadamente formal, não dependendo do que se venha a encontrar, para empresa tout court.
Continuação; a evolução na segunda metade do século XX: a empresa, tal como sucedeu em geral, com a teoria da instituição, foi usada pelas ideologias antiliberais do século XX para combater uma ideia de Direito, assente na pessoa humana. Ela ressentiu-se: resultou, daí, um certo preconceito que a prejudicou no imediato. Após a Guerra de 1939-1945, o tema foi retomado, de modo prudente, por Julius von Gierke. A prudência tem a ver com a ideia de que a empresa tende – ou pode tender – a ocupar o lugar da pessoa. Von Gierke reata a ideia de que não há um conceito unitário de empresa, a qual nos terá advindo de economia; de todo o modo, ele intenta surpreendê-la, com recurso a três naves mestras: a atividade, as coisas e as posições jurídicas – incluindo vinculações – para tanto necessárias e a comunidade de pessoas que a servem. Trata-se de pontos retomados por Ballersted, que releva a rentabilidade, o capital e o trabalho e por Hubmann, que releva, ainda, a circulabilidade das empresas e a tutela de que beneficiam. De então para cá, a empresa veio sendo trabalhada, em várias frentes, sem que, dela, se possa dar uma imagem dogmática concatenada. A doutrina está de acordo quanto ao facto de a empresa poder apresentar diversas formas jurídicas, incluindo a de pessoa singular, a de sociedade de pessoas, a de cooperativa e mesma a de fundação. Em todo este período, manteve-se uma certa discussão teórica, em torno da ideia de empresa, com uma expressa ressalva do monismo dos interesses subjacentes, embora não esteja definitivamente adquirido. Em termos dogmáticos, a empresa surge no âmbito do Direito dos grupos de sociedades – onde, de resto, é usada para cobrir as diversas formas societária – no Direito da Concorrência desleal 42
Poder-se-ia propor a tradução de Betrieb, por estabelecimento, de Unternehmen, por empresa e de Konzern, por grupo de empresas; a situação doutrinária portuguesa não permite, porém, ainda, tal afinação.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 e no domínio do Direito do Trabalho, ainda que aí predomine o conceito técnico de Betrieb. Por vezes, a empresa é referida como sujeito de direitos, embora em linguagem menos rigorosa, mantendo-se a ideia da noção pré-jurídica e, em todo o caso, ampla. Por fim, a empresa vem a objetivar-se. Ela é tratada como objeto de negócios em modernas exposições de Direito Comercial, aproximando-se do nosso estabelecimento. Finalmente, a última reforma comercial do século XX – a do HGB, de 1998 –, avançou quanto pôde no sentido da empresa sem, dela, lograr fazer um centro autónomo de imputação de interesses.
A tradição francesa: a tradição francesa das empresas pode ser fixada no artigo 632.º do Code du Commerce, com raízes da Ordennance, de 1673- A empresa era, aqui, a atividade mercantil ou o conjunto das atuações comerciais. Para além do enunciado do artigo, essa asserção é confirmada pela estatuição: a empresa é, aí, considerada ato de comércio. Verifica-se, ainda, que é anterior à experiência alemã. Como explica Escarra ela tem, subjacente, uma ideia, rica, mas pouco praticável, de Direito Comercial, assente em profissões de comerciantes e não em atos isolados. Acompanhando, depois, uma evolução semântica a que não foi estranha a prática dirigista da organização das profissões, no segundo pós-guerra, a empresa veio a traduzir não já a atividade em si, mas a própria organização necessária para o desenvolvimento da atividade. Reclamando uma origem económica para o conceito de empresa, Yvonne Lambert-Faivre propõe, como definição jurídica de empresa, a de «quadro no qual capital e trabalho são postos em ação por um chefe de empresa, com vista a um fim económico». Em 1967, a propósito da preparação da (antiga) lei das falências, houvera uma tentativa gorada de, daí, definir a empresa, cada vez mais objetivada, na linguagem económica e de gestão. Curiosamente, seria no moderno Direito da Falência e, mais precisamente, na Lei de 1985, que a empresa ganharia novo fôlego e, mesmo, uma definição jurídica. De facto, esse diploma definia a empresa como centro de atividades, suscetível de exploração autónoma. Trata-se de uma noção que pouco tem auxiliado a doutrina mas que, de todo o modo, permite tornar operacional a lei francesa das falências. Esse diploma assume um papel muito particular por ter, de forma direta, inspirado o CPEF português, de 1993. Por esta via algo sinuosa, a empresa francesa vem a aproximar-se da atual prática alemã.
A tradição italiana: o Código de Comércio italiano, de 1882, pelo prisma dos atos de comércio – artigo 3.º, n.º 6 e seguintes. A intervenção destes preceitos suscitava dúvidas e teorias, parecendo prevalecer a que detetava, neles, o exercício de uma atividade complexa, com uma repetição de atos singulares, relativos a determinada atividade. A influência da cultura jurídica alemã jogaria, depois, acelerando a objetivação da empresa e intentando, dela, perante as invocadas realidades do comércio, fazer um conceito-chave no Direito Comercial. Parece inevitável considerar que todo este movimento foi auxiliado, pela doutrina do corporativismo, então oficial, sob a ditadura do partido de Mussolini: a vários títulos, a reificação da empresa e a sua sobrevalorização permitiriam combater, quer o liberalismo, quer o socialismo. Todo este forte movimento, de entre as guerras, deu frutos relativos, no Código Civil de 1942. Na verdade, este diploma compreende um Livro V, dedicado ao trabalho, que trata, sucessivamente e noutros tantos títulos, da disciplina das atividades profissionais, do trabalho na empresa, do estabelecimento. Como se vê, o plano era ambicioso. Falhou: hoje, está adquirida a repartição de toda essa matéria em disciplinas perfeitamente autónomas, com cultores e dogmáticas
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 próprios. As empresas surgiam, nos artigos 2082.º e seguintes. Era dececionante: o Codice limitava-se, naquele preceito, a definir empresário (imprenditore): «(…) aquele que exerce profissionalmente uma atividade económica organizada, com vista à produção ou à troca de bens e serviços». No artigo 2986.º dispunha-se que o empresário é o chefe da empresa, dele dependendo hierarquicamente os seus colaboradores. De todo o modo, o Código Civil italiano de 1942 representa o momento mais alto, no Ocidente, da teoria da empresa. Ele acabaria por ser uma influência tardia nalguns códigos lusófonos: sem que um prévio desenvolvimento jurídicocientífico o possa justificar. O fracasso daquilo que, à partida, pareceria ser a consagração da empresa como instrumento jurídico-chave, no Direito Privado italiano, tem uma explicação científica. O legislador de 1942 optou, na verdade por consagrar a empresa, enquanto realidade objetiva. Simplesmente, e por falta de desenvolvimentos científicos mínimos, não lhe foi possível prescindir de conceitos concorrentes, como o de sociedade comercial e, até, o de estabelecimento (azienda). Nestas condições, o espaço normativo deixado à empresa seria pouco mais do que verbal. No pós-guerra, a empresa vem a ser definida como o exercício profissional de uma atividade económica organizada, com fins de produção ou de troca de bens ou serviços. Houve que afirmar a sua sobrevivência, mantendo-se, depois, a sua definição, como atividade. Nos manuais mais recentes, mantêm-se as definições de empresário ou de empresa, coladas à da lei, sem que, daí, se retirem especiais consequências dogmáticas. Paralelamente, e para além do uso de empresa em temas comunitários, essa locução surge em empresas públicas; tem, aí, contudo, um sentido técnico preciso.
21.º - A empresa na experiência portuguesa
A tradição de Ferreira Borges e de Veiga Beirão: a empresa surge, no Direito moderno português, como forma de delimitar o âmbito comercial. O Código Ferreira Borges dispunha: «34. Os empresários de fabricas gozam dos privilégios dos comerciantes em quanto respeita á direção d’ellas, e venda dos artigos fabricados. «35. Commerciante é voz genérica, que compreende os banqueiros, os seguradores, os negociantes de comissão, os mercadores de grosso e retalho, e os fabricantes ou empresários de fabricas na aceção dada». Portanto: empresário era o detentor de fábricas, sendo equiparado a comerciante. No Código Veiga Beirão, o mesmo objetivo, de inspiração napoleónica, de melhor definir o universo dos atos de comércio ou da atividade comercial, manteve-se. Segundo o seu artigo 230.º, «Haver se-hão por comerciantes as empresas, singulares ou colectivas, que se propuzérem:…»; seguia uma lista, que veio a ser alargada por sucessiva legislação posterior. Perante este articulado, parte da doutrina entendeu, na sequência de José Tavares, que a empresa era, aí, a
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 pessoa, singular ou coletiva, que pretendesse praticar os atos em jogo. Não era esse o entendimento correto: de todo o modo, ele marca um início subjetivista.
A objetivação da empresa: acompanhando uma imparável evolução semântica, surgiram, logo no início do século XX, orientações de tipo objetivista que, na empresa viam um organismo productor collectivo que se propõe realizar uma série de actos destinados a uma especulação económica. Apesar de certos esforços destinados a reanimar a empresa, enquanto fator relevante do Direito comercial, podemos considerar que a comercialística portuguesa não está, nesse domínio, mais avançada do que as suas congéneres francesa, alemã e italiana, aqui tomadas como exemplares. Um reforço particular, para a ideia de empresa, adveio do Direito da Economia, tomado latamente enquanto normas e princípios ordenados em função de pontos de vista jurídico-económicos. Diversos diplomas com incidência económica dimanam normas diretamente dirigidas a empresas. Coroando esta evolução – e sob manifesta influência da experiênci francesa – o CPEF, hoje revogado, veio aplicar-se a empresas. O Código, adiantava, mesmo, como definição: «Considera-se empresa, para o efeito do disposto no presente diploma toda a organização dos fatores de produção destinada ao exercício de qualquer atividade agrícola, comercial ou industrial ou de prestação de serviços». ~Mesmo limitando a noção ao próprio CPEF, poderíamos pensar que este vinha personalizar todas as empresas, fosse qual fosse a sua fórmula jurídica. Mas não o CPEF, veio excluir, da declaração de falência, as associações, comissões especiais ou sociedades sem personalidade jurídica. Resta concluir que, embora para efeitos restritos, seria possível, no domínio falimentar, uma dogmática da empresa; esta não substitui, contudo, a personalidade jurídica. Todavia, entre nós como na experiência dadora francesa, não havia uma dogmática da empresa, minimamente desenvolvida, capaz de permitir uma codificação complexa que a tivesse por cerne. Este estado de coisas foi reconhecido pelo CIRE de 2004, que veio revogar o CPEF. É certo que o artigo 5.º do novo Código não resistiu: definiu de novo a empresa, desta feita nos termos seguintes: «Para efeitos deste Código, considera-se empresa toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica». Ao longo do CIRE não surgem, todavia, consequências práticas: nem da noção prodigalizada, nem de qualquer outra ideia de empresa. Poderemos concluir que, no nosso Direito como noutras experiências europeias, com relevo para a alemã, a empresa é uma locução disponível para o legislador, sem se embaraçar com uma técnica jurídica precisa, indicar destinatários para as suas normas, designadamente as de natureza económica. E em paralelo documenta-se uma sua utilização com o sentido de estabelecimento.
Os interesses da empresa: com os elementos obtidos, vamos agora verificar se a empresa inflete, por si, normas jurídicas, de modo a poder considerar-se como um centro autónomo de interesses. Em sentido subjetivo, o interesse traduz uma relação de apetência entre o sujeito e as realidades que ele considere aptas para satisfazer as suas necessidades ou os seus desejos; em sentido objetivo, interesse traduz a relação entre o sujeito com necessidades e os bens aptos a satisfazê-las. Finalmente, podemos apontar um sentido técnico-jurídico: interesse será a realidade protegida por normas jurídicas de tal modo que, quando atingidas, se origine um dano.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A noção de interesse só terá algum relevo quando se defira, ao próprio sujeito, a função de definir quais os interesses e como os prosseguir. De outra forma, a lei mandaria, ad nutum, adotar certa atuação: seria uma mera norma de conduta, sem necessidade de a completar através da intermediação dos enigmáticos interesses. Mas se o próprio define os seus interesses, também pouco se adianta: bastará dizer que existe um direito subjetivo (uma permissão normativa específica de aproveitamento) que o beneficiário exercerá como entender. De novo a referência a interesses se converte em dispensável complicação linguística. Temos de ser realistas: a noção de interesse não é dogmaticamente aproveitável, no estado atual da Ciência do Direito. Falta a instrumentação necessária para, dele, fazer um conceito atuante e útil. Assim sendo e por maioria de razão: não é viável falar num interesse da empresa; à indefinição de um iríamos somar a do outro, em moldes que representariam um completo retrocesso. Isto dito: alguma doutrina, por pura inércia, mantém referências a interesses coo se, com isso, lograsse referir uma realidade a se, dotada de relevo dogmático.
22.º - A empresa e o Direito Comercial português Os desenvolvimentos linguísticos e a sua refutação: a noção de empresa, pela sua omnipresença e pela sua imprecisão, representa um campo de eleição para desenvolvimentos linguísticos. Bastará recordar as profecias de Hedemann que via, na empresa, uma noção nuclear no então futuro Direito Privado. Entre nós, orientações deste tipo surgiram pelas penas de Orlando de Carvalho e de Oliveira Ascensão: o primeiro quando, da empresa, pretendeu fazer o cerne objetivo da atividade comercial e o segundo ao apontar as empresas como verdadeiros sujeitos da vida social e até da vida política, que controlariam. Pois bem: a toada algo épica destes autores não tem depois repercussões no plano dogmático. Uma verdadeira teoria da empresa não pode ser deduzida, em termos centrais, de umas quantas afirmações indemonstradas, tidas por dogmas. O caminho teria de ser o inverso: estudar os diversos institutos onde a empresa tenha uma efetiva projeção a nível de regime e, depois, procurar reconstruir uma ideia geral. E justamente aí reside o drama: os institutos concretos reportados às empresas, quando analisados com alguma profundidade, decompõem-se em noções jurídicas mais precisas: sociedades, organizações individuais, estabelecimentos e conjunções várias de meios humanos e materiais. É certo que muitas dessas noções jurídicas isoladas não apresentam, por si, a projeção económica e social que alcançam quando articuladas em empresa. A empresa tem, assim, o seu papel. Mas ela não pode substituir os institutos dogmáticos de base. A empresa destina-se a introduzir uma nota de realismo em organizações de meios humanos e sociais que, de outra forma, surgiriam como somatórios desgarrados de peças soltas. As considerações acima efetuadas são particularmente importantes perante o Direito Português. Aí verifica-se que o legislador faz um apelo ao termo empresa sem precedente nos diversos ordenamentos europeus. Além disso, tem-se mantido, na nossa literatura, um manifesto fascínio pelos escritos italianos e alemães da primeira metade do século XX: os desenvolvimentos alemães dos finais desse século, que procuram esgotar as potencialidades dogmáticas da empresa e que, de certo modo, culminaram na reforma do Código Comercial alemão de 1998, são pura e simplesmente ignoradas. E isso sucede quando o Direito Português, justamente pela sua posição de charneira, aberto a vários ordenamentos e tradições e
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 fortalecido com uma insipiente produção legislativa, estaria em excelentes condições para explicar, em termos jurídico-científicos – e logo: dogmáticos e realistas – o verdadeiro papel da empresa.
A empresa como noção-quadro: a comercialística de diversos quadrantes aceita hoje que a empresa não é uma pessoa coletiva, nem um mero conjunto de elementos materiais. Podemos entende-la como um conjunto concatenado de meios materiais e humanos, dotados de uma especial organização e de uma direção, de modo a desenvolver uma atividade segundo regras de racionalidade económica. Os seus elementos, muito variáveis, poderiam assim agrupar-se: Num elemento humano: ficam abrangidos quantos colabores na empresa, desde trabalhadores aos donos, passando por quadros, auxiliares e dirigentes; Num elemento material: falamos de coisas corpóreas, móveis ou imóveis, seja qual for a fórmula do seu aproveitamento e de bens incorpóreos; saber-fazer, licenças, marcas, insígnias, clientela, aviamento e inter-relações com terceiros, normalmente outras empresas; Numa organização: todos os elementos, humanos ou materiais, não estão meramente reunidos ou justapostos; eles apresentam-se numa articulação consequente, que permite depois desenvolver uma atividade produtiva; Numa direção: trata-se do fator aglutinador dos meios envolvidos e da própria organização; a empresa é algo que funciona, o que só é pensável mediante uma estrutura que determine o contributo de cada uma das parcelas envolvidas. Cada um destes elementos pode variar até ao infinito. A empresa não é prévia ao Direito. Apenas um ordenamento jurídico mínimo permite a existência e o funcionamento de uma empresa. Sem regras não é possível, sequer, o aparecimento de vários dos fatores essenciais à empresa; muito menos organizá-los; e sobretudo: dirigi-los. A imensa versatilidade da empresa torna-a numa locução de uso fácil e apetecido. O Direito português, através de inúmeras leis, reportase-lhes em duas aceções: Subjetiva, quando refere os direitos, os deveres ou os objetivos das empresas; Objetiva, quando dirige a certas pessoas regras de atuação para com as empresas. Na primeira aceção empresa visa designar, em geral, todos os sujeitos produtivamente relevantes: pessoas singulares, sociedades comerciais, sociedades civis, associações, fundações, cooperativas, entidades públicas e organizações de interesses não personificadas. Evita ao legislador o ter de embrenhar-se em distinções e qualificações de redução impossível e transfere, para o momento da aplicação e à luz da lógica global do sistema, a função de determinar o preciso alcance das normas envolvidas. Na segunda aceção – a objetiva – a empresa tem a vantagem de permitir cominar deveres aos responsáveis por todas as entidades acima referidas, o que seria impensável sem esse apoio linguístico. Voltamos a frisar: sem o arrimo da empresa, seria totalmente inviável explicitar num diploma e a cada passo, todo este uno diversificado e variável. Além disso, a empresa permite ao legislador determinar medidas em relação às organizações produtivas, sem ter de explicitar tratar-se de conjuntos articulados e dirigidos de meios humanos e materiais. As hipóteses são tantas que apenas um conceito-quadro como o de empresa permite fazer trabalho útil. Não deve, daqui, inferir-se uma qualquer desvalorização da
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 ideia de empresa. Ela exprime, num plano de efetividade, o funcionamento dos mais diversos institutos jurídicos, que não substitui nem pretende substituir. Ela transcende, de resto, o Direito Comercial. Finalmente, verifica-se que qualquer definição de empresa, por bem aprontada que se apresente, lhe retiraria o seu papel de enquadramento, assente, precisamente, numa (certa) indefinição. A empresa, particularmente nas economias abertas do Ocidente, tem toda uma carga valorativa e ideológica. Ela traduz, pelo menos, uma preocupação do uso racional dos meios disponíveis, de modo a minimizar custos e ampliar resultados. E ela implica uma dimensão social e humana já que falar em empresas é referir o elemento pessoal que ela sempre inclui. Em compensação e precisamente pela sua imensa variabilidade, a empresa não serve como elemento sistematizador do Direito Comercial ou, sequer, como suporte de um denominado Direito das Empresas. Ela iria defrontar, sem grande glória, toda uma sedimentada tradição jurídico-mercantil e iria oferecer quadros rígidos – e, como tal irreais – deitando a perder a grande vantagem significativa que apresenta. A empresa traduz, por fim, um espaço privilegiado para seguir e discutir toda uma interessante evolução histórico-cultural.
Concretização: fixámos a empresa como um conceito-quadro: disponível para o legislador e para a prática jurídica, sempre que caiba referir realidades produtivas sem pormenores técnicos. Podemos ir mais longe e abordar as grandes linhas da sua concretização. Temos: A empresa-sujeito e a empresa-objeto; O Direito das Empresas; A empresa como sublinguagem comunicativa; A empresa como conceito geral-concreto. A empresa-sujeito equivale ao conjunto de destinatários de normas comerciais: pessoas singulares, pessoas coletivas e pessoas rudimentares. A empresa-objeto reporta-se ao estabelecimento dotado de direção humana. Apenas a interpretação permitirá, caso a caso, determinar o preciso sentido em jogo, bem como o seu alcance. O Direito das Empresas, usado em sentido amplo, abrange o Direito das Sociedades e, ainda, todos os setores normativos que se aplicam às sociedades. Em sentido estrito, o Direito das Empresas não tem consistência, mercê das dificuldades acima apontadas. Ao falar em empresa, a lei, os estudiosos e os operadores do Direito podem ter em vista transmitir como que uma mensagem subliminar destinada a enfatizar: a capacidade produtiva, a ideologia do mercado ou a prevalência das realidades económicas. A capacidade produtiva articular-se coma ideia de organização: um filão integrador da empresa, hoje clássico, mas sempre útil. Quanto à ideologia do mercado: uma linguagem empresarial dá um toque de modernidade. Ela vem sendo adotada, de modo naïf, por circunspectas obras de talhe tradicional, surgindo em diplomas como alienígenas (vide o CIRE!). A prevalência das realidades económicas recorda que as sociedades são, no fundo, uma forma jurídica sob a qual algo se abriga – ou pode abrigar. Faz-se como que um apelo ao substrato e ao que ele representa. Finalmente, a empresa tem sido reconstruída com base na dialética hegeliana. Temos presente o desenvolvimento de Herbert Wiedemann, o qual intenta enquadrar os contrários que enformam a empresa-indivíduo/sistema social; efetividade económica/efetividade social; estabilidade/dinâmica; direção/colaboradores e a direção da organização social. A matéria é inesgotável.
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Secção II – O estabelecimento 23.º - Noção e elementos do estabelecimento
Aceções e noção geral: a empresa surge como um conceito-quadro de grande extensão e particular versatilidade. Torna-se pouco adequada para transmitir regimes jurídicos concretos. Compreende-se, assim, que o Direito português tenha elaborado, a seu lado, um outro conceito particularmente apto para traduzir o objeto unitário de determinados negócios: o de estabelecimento. No Código Comercial, o estabelecimento surge em duas aceções: Como armazém ou loja: artigos 95.º, §2.º, e 263.º, §único; Como conjunto de coisas materiais ou corpóreas: artigo 425.º. Curiosamente, a noção geral adotada de estabelecimento já não se encontra no Código Comercial, aflorando noutros lugares normativos, com relevo para o Código Civil. Assim, cumpre relevar, todos do Código Civil: artigos 316.º, 317.º, 495.º, n.º2, 1559.º, 1560.º, n.º1, alínea a), 1682.º-A, n.º1, alínea b), 1938.º, n.º1, alínea f), 1940.º e 1962.º, n.º1. Esta aceção ocorre ainda nos artigos 1109.º e 1112.º RAU. O estabelecimento traduz, aí, um conjunto de coisas corpóreas e incorpóreas devidamente organizado para a prática do comércio. Digamos que corresponde grosso modo a uma ideia de empresa, sem o elemento humano e de direção.
Elementos do estabelecimento: o estabelecimento comercial abrange elementos bastante variados. Em comum têm apenas o facto de se encontrarem interligados para a prática do comércio. Pode distinguir-se, no estabelecimento, o ativo e o passivo: o ativo compreende o conjunto de direitos e outras posições equiparáveis, afetas ao exercício do comércio; o passivo corresponde às adstrições ou obrigações contraídas pelo comerciante, por esse mesmo exercício. À partida, o passivo inclui-se no estabelecimento embora seja frequente, em negócios de transmissão, limitá-los ao ativo. No respeitante ao ativo, o estabelecimento abrange: Coisas corpóreas; Coisas incorpóreas; Aviamento e clientela. No que tange a coisas corpóreas, ficam abarcados os direitos relativos a imóveis, particularmente: os direitos reais de gozo, como a propriedade ou o usufruto e os direitos pessoais de gozo, como o direito ao arrendamento. Seguem-se os direitos relativos a móveis. Ficam, pois, abrangidas quaisquer coisas que, estando no comércio, sejam, pelo comerciante, afetas a esse exercício. No tocante a coisas incorpóreas, distinguimos: as obras literárias ou artísticas que se incluam no estabelecimento, os inventos (portanto: as patentes) e as marcas. Podemos ainda acrescentar o direito à firma ou nome do estabelecimento e outras aspetos que, embora à partida não-patrimoniais, consintam todavia uma comercialidade limitada. Aquando da negociação de um estabelecimento, é evidente que os referidos fatores incorpóreos poderão ser determinantes para encontrar um valor. Há estabelecimentos que vale, sobretudo, pelo
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 nome que tenham ou pelas marcas ou patentes que acarretem. Também quando a coisas incorpóreas, há que incluir os direitos a prestações provenientes de posições contratuais. Assim sucede desde logo com os contratos de trabalho; seguem-se-lhe outros contratos de prestação de serviço, contratos com fornecedores, contratos de distribuição, de publicidade, de concessão comercial, de agência, de franquia e mesmo contratos relativos a bens vitais: água, eletricidade, telefone, ligação à internet e gás. Encontramos, depois, o aviamento e a clientela: o aviamente corresponde, grosso modo, à mais-valia que o estabelecimento representa em relação à soma dos elementos que o componham, isoladamente tomados: ele traduziria, deste modo, a aptidão funcional e produtiva do estabelecimento. A clientela, por seu turno, equivale ao conjunto, real ou potencial, de pessoas dispostas a contratar com o estabelecimento considerado, nele adquirindo bens ou serviços. O aviamento e a clientela não constituem, como tais, objeto de direitos subjetivos. Eles correspondem, não obstante, a posições ativas e são objeto de regras de tutela.
O critério da sua inclusão: perante o enunciado de elementos acima efetuado, pergunta-se qual o critério da sua inclusão no estabelecimento. A questão é importante; não obstante, repousa em construções doutrinárias, ainda que com bases legais dispersas e consagração jurisprudencial. O critério do estabelecimento assenta em duas ordens de fatores: Um fator funcional: apela ao realismo exigido pela própria vida do comércio. Sob pena de nos perdermos em inúteis abstrações, devemos, pela observação, verificar como se organiza efetivamente um estabelecimento e como ele funciona. Procurar reduzi-lo a coisas corpóreas, po muito que isso depois facilite o seu regime, é escamotear a realidade: o estabelecimento existe e é autonomizado pelo comércio e pelo Direito precisamente por organizar as coisas corpóreas, em conjunto com as incorpóreas, num todo coerente para conseguir angariar clientela e, daí, lucro. A análise dos factos diz-nos que, em regra, o estabelecimento gira sob um nome, tem insígnias, usa marcas e patentes, disfruta de colaboradores, etc.; Um fator jurídico: explica-nos que, em homenagem a essa realidade que ele traduz, o Direito concede, ao conjunto de elementos referidos, um regime especial, inaplicável in solo43.
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A origem do reconhecimento do estabelecimento como realidade autónoma qualitativamente diferente dos elementos que o componham reside nas leis sobre o arrendamento. À partida, é importante ter presente que, muitas vezes, particularmente nos grandes centros, os comerciantes instalavam os seus estabelecimentos em locais arrendados. Esses locais, justamente quando neles exercessem comerciantes ordenados e de prestígio, viam o seu valor aumentar. O próprio comerciante poderia ser levado a realizar investimentos de relevo. Todavia, no sistema liberal do Código de Seabra, o senhorio poderia, praticamente a todo o tempo, pôr cobro aos arrendamentos em vigor. A mais-valia conquistada pelo comerciante perder-se-ia, em conjunto com numerosos investimentos por ele levados a cabo. Além disso, o senhorio poderia receber, de volta, um local valorizado pelo trabalho alheio. Estas e outras considerações acabaram por pesar junto do legislador. Assim, um Decreto de 12 novembro 1910 veio dispor que o arrendatário comerciante ou industrial que tivesse valorizado o local arrendado teria, caso fosse despedido, o direito a uma indemnização pela clientela que poderia ir até dez vezes a renda anual- Além disso, os prédios onde estivessem instalados estabelecimentos comerciais ou industriais poderiam ser sublocados – de facto: trespassados – sem autorização do senhorio. Seguiu-se, em 1919, o regime em que o comerciante arrendatário despejado poderia ter direito a uma indemnização de clientela correspondente a até vinte vezes o valor da renda anual. Além disso, havendo
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Do regime específico do estabelecimento, destacamos: O direito ao arrendamento, quando se inclua no estabelecimento, pode ser transmitido , em conjunto com este, independentemente de autorização do senhorio – artigo 1112.º CC; A transmissão de firma só é possível em conjunto com o estabelecimento a que ela se achar ligada – artigo 44.º RNPC; O trespasse do estabelecimento fazia presumir a transmissão do pedido de registo ou de propriedade da marca – artigo 211.º, n.º1 CPI de 1995; no CPI vigente, desaparece a presunção mas mantém-se o regime. Dispõe o artigo 297.º deste último diploma: «Na transmissão do registo do nome ou da insígnia devem observar-se as formalidades legais exigidas para a transmissão do estabelecimento de que são acessórios». A transmissão do estabelecimento implica a transferência da posição jurídica de empregador para o novo adquirente, relativamente aos contratos de trabalho dos trabalhadores a ele afetos – artigo 285.º, n.º1 CT; No caso de expropriação por utilidade pública que envolva um estabelecimento. O estabelecimento, para além de direitos reais relativos a coisas corpóreas, envolve posições contratuais, como o direito ao arrendamento, ou o contrato de trabalho e posições incorpóreas, como o direito à firma e a marca ou o pedido do seu registo. Além disso, o aviamento e a clientela são valorados para efeitos de expropriação por utilidade pública, prova de que existem e são tidos em conta pelo Direito É certo que algum destes elementos – e muitos outros, com destaque para o passivo e para os contratos que, por definição, impliquem uma prestação do comerciante e logo, a esse nível, um passivo – só se transmitem plenamente com o consentimento do terceiro cedido: trata-se do regime que emerge dos artigo 424.º, n.º1 e 595.º CC. Essa necessidade tão pouco põe em crise os aspetos funcionais ou o tipo social que representa a transmissão, em bloco, de todos os elementos integrantes do estabelecimento. Finalmente: o aviamento e a clientela valem, insofismavelmente, para efeitos indemnizatórios. Logo existem e são valorados pelo Direito.
trespasse do estabelecimento, considerar-se-ia nele incluído, sem necessidade de autorização do senhorio, a sublocação do prédio ou da parte onde o mesmo estivesse instalado. Em 1924, veio adotarse que os trespasses de estabelecimento, que incluem a transferência do arrendamento sem autorização do senhorio, exigem escritura pública. Paralelamente, permite-se o despejo quando o local, tendo sido dado em arrendamento para comércio ou industria, se mantenha encerrado durante mais de um ano. Esta vertente acentuou-se em 1948: o trespasse do estabelecimento exige a manutenção do mesmo comércio ou indústria e, ainda, que a transmissão seja acompanhada dos diversos elementos do estabelecimento. Trata-se de uma regra similar à que consta do artigo 1112.º do Código Civil.
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24.º - O regime e a natureza do estabelecimento
A negociação unitária; o trespasse: o ponto mais significativo do regime do estabelecimento é a possibilidade da sua negociação unitária. Em princípio, perante um conjunto de situações jurídicas distintas, funciona a regra da especialidade: cada uma delas, para ser transmitida, vai exigir um negócio jurídico autónomo. Estando em causa um acervo de bens e direitos, a lei e a prática consagradas admitem que a transferência se faça unitariamente. Trata-se de um aspeto que abrange não apenas as coisas corpóreas articuladas, suscetíveis de negociação conjunta através das normas próprias das universalidades de facto – artigo 206.º CC – mas, também, todas as realidades envolvidas, incluindo o passivo. Repare-se: não deixa de haver transmissão unitária pelo facto de, para a perfeita transferência de alguns dos elementos envolvidos, se exigir o consentimento de terceiros. É o que vimos suceder com o passivo, com os contratos de prestações recíprocas e é o que sucede, como veremos, com a própria firma. O trespasse do estabelecimento que tudo englobe continua a fazer-se por um único negócio, com todas as facilidades que isso envolve. É certo eu o comerciante que pretenda fundar um estabelecimento constituirá uma sociedade comercial mais ou menos (des)capitalizada, que irá encabeçar o acervo de bens e de deveres a inserir no estabelecimento. Querendo alienar a sua posição, o comerciante em causa, muito simplesmente, transferirá as suas posições sociais – quotas ou ações – para o adquirente. Formalmente, não há qualquer modificação a nível do sujeito. Este fenómeno apenas documenta uma certa perda de importância relativa que velho Direito Comercial vem a acusar, a favor dos ramos comerciais mais novos, como o Direito das Sociedades. Não obstante, a transferência do estabelecimento, enquanto tal, continua a apresentar um interessante marcado: basta ver a multiplicidade de casos judicialmente decididos. O trespasse do estabelecimento, mormente para ter eficácia no ponto nevrálgico do arrendamento, devia ser celebrado por escritura pública. Todavia, o Decreto-Lei n.º 64-A/2000, 22 abril, alterou esta regra: passou a bastar forma escrita, explicitando (inutilmente) o novo n.º3 do artigo 115.º: «sob pena de nulidade». O atual artigo 1112.º, n.º3 CC já não contém esse insólito. Deve tratar-se de um estabelecimento efetivo, isto é: que compreenda todos os elementos necessários para funcionar e que, além disso, opere, em termos comerciais. O artigo 1112.º CC exprime essa ideia pela negativa; não haverá trespasse: «a) quando a transmissão não seja acompanhada de transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento; «b) quando, transmitido o gozo do prédio, passe a exercer-se nele outro ramo de comercio ou indústria ou quando, de um modo geral, lhe seja dado outro destino». O trespasse exige, pois, uma transmissão do estabelecimento no seu todo ou como universalidade: é insuficiente aquela que incida sobre apenas alguns dos seus elementos. Por certo que as partes, ao abrigo da sua autonomia privada, poderão, do estabelecimento, retirar os elementos que entenderem. O trespasse não deixará de o ser até ao limite de o conjunto transmitido ficar de tal modo descaracterizado que já não possa considerar-se um estabelecimento em condições de funcionar: trata-se do chamado estabelecimento incompleto. Além da transmissão, o estabelecimento deve manter-se como tal. Daí o não poder passar-se a exercer, no local, comércio diferente. A lei especifica, a propósito da transmissão do
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 arrendamento, que o trespasse deve abarcar instalações, utensílios, mercadorias e outros elementos. Não oferecerá dúvidas reportar que, como vimos, outros elementos abrangerá os fatores incorpóreos, com relevo para diversos direitos de crédito, nome, patentes e marcas. Perante um trespasse de âmbito máximo, que englobe, pois, o passivo, teremos de distinguir os seus efeitos internos dos externos. Quanto aos internos, o trespassário adquirente fica adstrito, perante o trespassante, a pagar aos terceiros o que este lhes devia. Quanto aos externos: o alienante só ficará liberto se os terceiros, nos termos aplicáveis à assunção de dívidas e À cessão da posição contratual, o exonerarem ou derem acordo bastante. O trespasse é, apenas, uma transmissão definitiva do estabelecimento. Só por si, não nos diz a que título. Quer isso dizer que o trespasse pode operar por via de qualquer contrato, típico ou atípico, que assuma eficácia transmissiva: compra e venda, dação em pagamento, sociedade, doação ou outras figuras diversas. O regime do trespasse dependerá do contrato que, concretamente, estiver na sua base. Para o tema aqui em causa, relevará apenas o seu efeito transmissivo de um estabelecimento. Apesar de ser esse o núcleo, cumpre apontar outras decorrências típicas do trespasse: O artigo 1112.º, n.º4 CC, retomando o artigo 116.º RAU, atribui ao senhorio um direito de preferência, na hipótese de trespasse por venda ou dação em cumprimento; O trespassante poderá ficar investido num dever de não-concorrência em relação ao trespassário. Tem aplicação, em tudo o que a lei comercial não prescreva diretamente, o regime geral das preferências legais. Designadamente: salvo situações de abuso do direito, a preferência não funciona quando o estabelecimento seja usado para a realização de capital social. A preferência do senhorio fora instituída em 1924 vindo, mais tarde, a desaparecer. O RAU restabeleceu-a com duas finalidades essenciais: Permitir ao senhorio uma vantagem potencial, aquando da transmissão do estabelecimento instalado no objeto da sua propriedade (à preferência funciona no arrendamento comercial; não no arrendamento para o exercício de profissões liberais; vide TC n.º421/99, 30 junho, Proc. 93/98); Facultar um certo controlo da sociedade civil sobre as simulações operadas no tocante a trespasses. A preferência em causa, após a reforma de 2006, encontrou guarida no novo artigo 1112.º, n.º4 CC, ainda que a título supletivo. O direito de preferência conferido ao senhorio não é um direito de resgate da coisa, de modo a conseguir desmantelar o estabelecimento, só para reaver o objeto da sua propriedade. Trata-se de uma preferência na venda ou dação em cumprimento do estabelecimento. O senhorio interessado não pode agir na hipótese de qualquer trespasse mas, apenas, na de venda ou dação. Além disso, ele terá de adquirir todo o estabelecimento, mantendo-o em funções, nas precisas condições em que o faria o trespassário interessado. Resulta ainda daí que a preferência do senhorio só seja possível quando, este próprio, esteja em condições de, licitamente, adquirir o estabelecimento. Além disso, não cabe preferência no caso de integração, com o estabelecimento, de quota social: em princípio não há aqui venda ou dação em cumprimento, ficando todavia ressalvada a hipótese de abuso do direito. O dever de nãoconcorrência do trespassante perante o trespassário, quando não seja expressamente pactuado, poderá ser uma exigência da boa fé. Impõe-se, ex bona fide e como dever pós-eficaz, uma
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 obrigação de não concorrência, a qual apenas pode ser ponderada caso a caso. A sua violação pode acarretar deveres de cessar a concorrência indevida e de indemnizar o lesado, reconstruindo a situação que existiria se não fosse a violação perpetrada.
A cessão de exploração e a locação do estabelecimento: na locação de estabelecimento (artigo 1109.º CC) há uma cedência temporária do estabelecimento comercial. Em rigor, haveria que distinguir: a cessão de estabelecimento seria a transferência temporária do estabelecimento, efetuada a qualquer título (incluindo o comodato); a locação de estabelecimento implicaria a cessão titulada por um negócio decalcado da locação, designadamente com uma obrigação iódica de pagamento de retribuição, tipo renda ou aluguer. O interesse da autonomização da cessão de exploração é o do próprio reconhecimento do estabelecimento como objeto de negócios: Permitiria a cedência temporária do estabelecimento como um todo, sem necessidade de negociar, uma a uma, todas as realidades que o componham e viabilizando ainda o cômputo de elementos sem autonomia, como o aviamento e a clientela; Possibilitaria atender à verdadeira realidade em jogo no estabelecimento, afastando normas comuns aplicáveis a outras figuras contratuais como, por exemplo, o arrendamento. A possibilidade de, na locação de estabelecimento, afastar o regime restritivo do arrendamento, obriga a uma delimitação mais cuidada dos seus contornos. À partida, pode dizer-se que deve haver, como objeto do negócio, um estabelecimento comercial: é a presença deste, com a sua lógica própria e os seus valores particulares, que conduziu à autonomização prática e conceitual da figura. Antunes Varela justifica a exclusão, na então cessão de exploração, dos esquemas injuntivos do arrendamento, acentuando: A inexistência das razões que justificam o protecionismo do inquilinato comercial ou industrial; O facto de, ao cedente, se dever a iniciativa da criação ou a manutenção do estabelecimento, em cujo património ele se integra e continua; O facto de o cessionário não ter criado o estabelecimento, limitando-se a fruir o que temporariamente lhe foi cedido; A assimilação da cessão de exploração ao trespasse, caso tivesse aplicação o esquema da renovação automática estabelecida para o arrendamento. Em bom rigor, a cessão de exploração é um negócio atípico. Cabe às partes desenvolver o regime que entendam adotar. O último dos pontos referidos tem um peso relativo: a semelhança com o trespasse ocorreria, apenas, pelo prisma do cedente; além disso, o regime restritivo vigente para o arrendamento aproxima-o da pura transmissão do imóvel sem que, daí, se extraiam consequências dogmáticas. O novo regime do arrendamento urbano, de 2006, procurou clarificar a terminologia: sobre a qual, de resto, não havia quaisquer dúvidas. O artigo 1109.º, versão atual, CC, passou a falar diretamente em locação de estabelecimento, esclarecendo que, quando instalado em local arrendado, ela não carece de autorização do senhorio (1109.º, n.º2), embora lhe deva ser comunicada no prazo de um mês. A jurisprudência sobre cessão de
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 exploração tem vindo a fixar os contornos da figura. Desde logo ela exige um estabelecimento, sob pena de ser arrendamento “puro”. Quando ela envolva um local arrendado, ficou entendido não ser necessária a autorização do senhorio: um ponto que, em 2006, passou para a lei expressa. Já parecia razoável exigir que, nos termos gerais do artigo 1038.º, alínea g) CC, a operação seja comunicada ao senhorio, mau grado alguma divisão da jurisprudência. Como vimos, a lei vigente cortou quaisquer dúvidas, dando, ao tema, uma resposta positiva. Quando a cessão seja declarada nula, a retribuição acordada é devida pelo cessionário ao cedente, enquanto subsistir a exploração. Segundo o artigo 111.º RAU a cessão de exploração deve constar de documento escrito. Finalmente, haverá que reconduzi-la à figura geral da locação: seria locação produtiva caso essa figura tivesse sido autonomizada pelo Direito português. Não operam, como vimos, as regras vinculísticas do arrendamento.
O usufruto do estabelecimento: sobre o estabelecimento comercial pode recair o direito de usufruto. Nessa altura e nos termos gerais, o usufrutuário poderá aproveitar plenamente o estabelecimento, sem alterar a sua forma ou substância – artigo 1439.º CC. Os elementos corpóreos podem, por definição, ser objeto de usufruto, enquanto os incorpóreos o serão por via dos artigos 1463.º a 1467.º CC e dos princípios que deles emergem. No domínio dos poderes de transformação do usufrutuário, pensamos que, tratando-se de um estabelecimento, estes devem ir tão longe quanto possível. De outro modo, iremos bloquear a atualização e a renovação do estabelecimento, enquanto durar o usufruto: haverá danos para o comércio e para todas as pessoas envolvidas, incluindo o titular da raiz.
O estabelecimento como objeto de garantia: para além de poder ser globalmente transferido, a título definitivo (trespasse) ou temporário (locação ou cessão de exploração), o estabelecimento comercial pode, ainda, ser dado em garantia ou, genericamente: pode operar como objeto de garantia. O estabelecimento pode ser dado em penhor, pelo seu titular. Em termos analíticos, teríamos um misto de penhor de coisas e de penhor de direitos. Relevante é aqui, todavia, o penhor global sobre o conjunto. Em regra tratar-se-á de um penhor mercantil, sendo pois suficiente, nos termos do artigo 398.º §único, uma entrega simbólica. O que tem aqui a maior importância prática: o estabelecimento dado em garantia poderá continuar a funcionar normalmente, numa situação fundamental para o bom decurso da operação. O estabelecimento comercial pode ainda ser objeto de penhora. Trata-se de uma operação que não afeta a relação locatícia que, eventualmente, nele se inclua e que, como em qualquer situação relativa ao estabelecimento, o atinge, no seu conjunto.
A reivindicação e as defesas possessórias: o estabelecimento não é composto apenas por coisas corpóreas. Não obstante, estas, para além de poderem ter um papel dominante, emprestam ao conjunto um teor característico. Basta ver que o estabelecimento, na multiplicidade dos seus elementos, surge como algo de percetível pelos sentidos, enquanto o exercício de poderes sobre ele comporta, por si, uma publicidade espontânea. Deste modo, a doutrina e a jurisprudência têm-se inclinado para a aplicabilidade, ao estabelecimento, das defesas reais. Em primeiro lugar, o estabelecimento pode ser reivindicado. Embora se trate de uma ação primacialmente dirigida a efetivar o direito de propriedade sobre os elementos corpóreos, os restantes fatores acompanharão, automaticamente, os primeiros. De seguida, temos as ações possessórias. Estas assistem ao seu titular. Mas também o trespassário poderá utilizá-las para tornar efetiva a posse que tenha recebido por via contratual. Vale o afirmado
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 quanto à compleitude do estabelecimento e quanto à possibilidade de atingir, por essa via, elementos não corpóreos.
A natureza: a questão da natureza do estabelecimento comercial tem-se prestado, na História e no Direito Comparado, a uma especulação donde resultam inúmeras teorias. Se colocarmos o problema perante o Direito positivo português, a questão resulta grandemente simplificada. À partida, devemos entender que o estabelecimento não se confunde com a empresa. Esta e um conceito-quadro que ora se reporta a um sujeito de direitos, ora abrange uma organização produtiva com a sua direção. Já o estabelecimento surge, no Direito Português, objeto de negócios e de direitos. Tanto basta para afastar as teorias que intentem a sua personificação. Mais delicada surge a recondução do estabelecimento À categoria de património autónomo ou de afetação: a unidade surgiria apenas perante determinados negócios ou ações, sendo impensável fora deles. Trata-se de uma construção que deve ser reconduzida à particular conceção que, de personalidade coletiva, nos deixou Brinz. Segundo esta orientação, a própria ideia de personalidade coletiva deveria ser substituída pela de património de afetação, razão pela qual, quando aplicada ao estabelecimento, não é diferenciadora. Os primeiros dogmáticos da empresa descobriram, na titularidade desta, um direito global autónomo. Aplicada ao estabelecimento, esta doutrina redundaria em apresenta-lo como o objeto de um específico direito subjetivo: o direito ao estabelecimento. Vem esta orientação contraditada pelo Direito positivo, pelo menos em parte: dado o princípio da especialidade as diversas situações jurídicas incluídas no estabelecimento não perdem a sua autonomia. Temos, seguramente, uma multiplicidade de direitos, ainda que, sobre o conjunto, surja algo que cumpre explicar. As dificuldades encontradas por estas tentativas de explicação mais elaboradas levaram a doutrina, particularmente a italiana, a reconduzir o estabelecimento ao universo das coisas: mais precisamente às coisas compostas ou universalidades, discutindo-se, dentro destas, se se trata de universalidade de facto ou de universalidade de direito. Apelando Às regras jurídico-positivas já apuradas, parece fácil avançar: o Direito Civil português atual não admite – de resto à semelhança do italiano –, a figura das universalidades de direito; por outro lado, o estabelecimento não pode dar corpo a uma universalidade de facto, por duas razões, qualquer delas definitiva: Abrange ou pode abranger o passivo; Abrange ou pode abranger coisas incorpóreas. O Direito dispensa um tratamento unitário às coisas compostas ou universalidades de facto, sem prejuízo de se conservarem direito autónomos a cada uma das coisas simples que as componham. Este regime não deve ser considerado como de absoluta exceção. Outras leis poderão, em certos casos, determinar tratamentos unitários para elementos que, de outra forma, andariam dispersos. E a própria autonomia privada, respeitando os limites injuntivos, poderá fazer outro tanto: recorde-se que estamos em pleno Direito Privado. O estabelecimento comercial é uma autêntica esfera jurídica e não, apenas, um património: inclui ou pode incluir o passivo e toda uma série de posições contratuais recíprocas. Trata-se, todavia, de uma esfera jurídica afeta ao comércio ou a determinado exercício comercial. Tem, pois, a natureza de esfera jurídica de afetação, sendo delimitada pelo seu titular em função do escopo jurídico-comercial em jogo. Teremos, assim, de admitir, ao lado dos patrimónios especiais há muito conquistados pela doutrina, a ideia de esferas jurídicas especiais, de modo a incluir o passivo. A unificação poderá dar-se em função de qualquer ponto de vista unitário. Não é necessário que esfera de
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 afetação implique qualquer regime preferencial de responsabilidade por dívidas: há outros fatores possíveis de unificação. Em qualquer dos casos, é inaceitável qualquer opção que, querendo reconduzir o estabelecimento comercial a conceitos mais rígidos, proceda, para o efeito, a uma amputação de todos os elementos que perturbem a geometria ambicionada.
O estabelecimento individual de responsabilidade limitada: o exercício do comércio implica riscos. No caso do estabelecimento comercial, recordamos que ele se encontra na titularidade de um interessado; este responde com todo o seu património pelas dívidas ocasionadas através de exploração comercial. Constitui um desafio clássico ao Direito Comercial o apurar esquemas que, sem colocarem em risco a segurança do comércio e a fidedignidade das transações, permitam limitar a responsabilidade individual dos operadores. Essa preocupação foi, em grande parte, alcançada pelas sociedades comerciais de responsabilidade limitada. Quid Iuris todavia, quando se tratasse de um comerciante em nome individual, que não desejasse associar-se? Uma primeira via, classicamente encetada, foi a de admitir sociedades unipessoais, isto é, sociedades com um único sócio. Pelas dívidas da sociedade responderia apenas o património desta, assim se conseguindo a procurada limitação. Este caminho acabaria por ser seguido pelo legislador português, permitindo sociedades unipessoais de quotas. De todo o modo e como primeira tentativa limitadora, a lei portuguesa, através do Decreto-Lei n.º 248/86, 25 agosto, veio permitir a figura do estabelecimento individual de responsabilidade limitada ou EIRL. A ideia é a seguinte: o interessado afeta ao EIRL parte do seu património, o qual constituirá o capital inicial do estabelecimento – artigo 1.º, n.º2. O EIRL constitui-se por escrito, salvo se for exigida uma forma mais solene para a transmissão dos bens que representem o capital inicial do estabelecimento (2.º, n.º1), com todas as especificações do artigo 2.º, n.º2, devendo ser inscrito no registo comercial e procedendo-se à publicação no Diário da República – artigo 5.º : a partir daí, produz efeitos perante terceiros – artigo 6.º. Pelas dívidas resultantes de atividades compreendidas no objeto do EIRL, respondem apenas os bens a este afetados, salvo se o titular não tiver respeitado o princípio da separação dos património – artigo 11.º. O ato constitutivo pode ser alterado, designadamente através de aumentos ou de reduções do capital, com as cautelas especificadas na lei – artigo 16.º a 20.º. O EIRL é, de facto, um estabelecimento comercial, colocado numa situação especial que permite a responsabilidade limitada. Há traços do seu regime que refletem bem os progressos obtidos no tratamento do tema: veja-se o artigo 21.º, n.º1. A situação especial em que se coloca o EIRL e a necessidade de proteger terceiros e o comércio em geral levaram o legislador a formalizar alguns aspetos do estabelecimento em jogo. Designadamente: os bens que o componham não são, ad nutum, os que sejam afetados ao comércio mas antes aqueles que constem do título constitutivo. Tal como o estabelecimento comercial, também o EIRL constitui uma esfera jurídica de afetação: no fundo, este tenderia, à partida, a ser uma modalidade daquele. Não bastará considera-lo como um património autónomo, uma vez que também abrange o passivo.
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Negócios sobre empresas45: 1. Trespasse: a. Noção; forma: com referência a estabelecimentos, é muito antigo na legislação portuguesa o emprego da palavra trespasse. Esse emprego verifica-se em diversos atos legislativos atuais, cumprindo destacar o CC (artigo 1112.º) e o CSC (artigo 152.º, n.º2, alínea d)). Todavia, nenhuma destas leis define o trespasse; nem se colhe nelas (individual ou coletivamente consideradas) um regime global do mesmo. Não admiram, portanto, os desencontros doutrinais e jurisprudenciais no domínio da compreensão e alcance do conceito de trespasse. Contudo, dos preceitos assinaladas é possível retirar já algumas conclusões: i. Objeto de trespasse é um estabelecimento: mas que não tem de ser comercial (em sentido jurídico). Comercial, apenas, terá de ser para efeitos dos artigos 100.º e 145.º CDA; o estabelecimento «comercial ou industrial» do artigo 1112.º CC abarca também empresas não jurídicomercantis; e o artigo 152.º, n.º2, alínea d) CSC é aplicável às diversas espécies empresariais; ii. O trespasse traduz uma transmissão com caráter definitivo, é transmissão da propriedade de estabelecimento: resulta isto, nomeadamente, do facto de a divisória entre o trespasse e as disposições temporárias do estabelecimento estar suficientemente marcada no CC (artigos 1112.º, 1109.º), no CSC (artigo 152.º, n.º2, alínea d)). Tal transmissão pode por conseguinte ser efetuada através de negócios variados, tais como a compra e venda, amistosa ou executiva (incluindo a realizada em processo de insolvência – artigos 161.º, n.º3, alínea a) e 162.º CIRE), a troca, a dação em cumprimento; iii. Para alguns efeitos, o trespasse traduz-se em negócios necessariamente onerosos: é assim para efeitos do direito de preferência do senhorio (artigo 1112.º, n.º4 CC) e da liquidação da sociedade (artigo 152.º, n.º2, alínea d) CSC). As razões da disciplina fixada nas restantes normas citadas valem tanto para os negócios onerosos como para os gratuitos; a doação pode, portanto, operar um trespasse; iv. O trespasse aparece em todos os preceitos acima assinalados significando negócios inter vivos: com efeito, o n.º1 do artigo 1112.º CC, 44 45
Vide nota 35 Abreu, Jorge Manuel Coutinho de; Curso de Direito Comercial, volume I; Almedina Editores
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 começa com «é permitida a transmissão por ato entre vivos», e o n.º4 aplica-se apenas à venda e à dação em cumprimento. Em suma: o trespasse é definível como transmissão da propriedade de um estabelecimento por negócio inter vivos. Este conceito é suficientemente elástico e preciso para representar o trespasse como conjunto de figuras negociais diversas – conjunto de composição variável, consoante a teleologia das diferentes normas – e, simultaneamente, para exprimir (em face do normativo por ora pertinente) as notas essenciais e comuns que, para lá das diferenças, congregam as diversas figuras negociais sob uma mesma designação (com correspondente sujeição a uma disciplina em parte comum). Deve entender-se que o simples escrito é a forma necessária. É verdade que o n.º3 do artigo 112.º CC refere-se, literalmente, à transmissão da posição de arrendatário (prevista no n.º1 do artigo). Mas porque o atual artigo 1112.º CC (ao invés das normas antecessoras correspondentes) abrange também a transmissão da posição de arrendatário para continuação do exercício de profissão liberal (justificando isto, em alguma medida, a mudança na formulação do n.º3), e porque há que atender a outras normas do sistema, deve o preceito do n.º3 do artigo 112.º CC ser interpretado extensivamente no sentido da exigência de escrito para o trespasse. A transmissão de firma – que não pode ser feita sem a transmissão do estabelecimento – exige escrito (artigo 44.º, n.º1 e 4 RNPC); a transmissão de marca ou de logótipo – envolvida naturalmente na transmissão do estabelecimento – exige escrito (artigos 31.º, n.º5 e 6 e 304.º-P, n.º3 CPI). Seria estranho que a transmissão destes elementos (acessórios) requeresse escrito e não o requeresse a transmissão do conjunto, o negócio (unilateral) de trespasse do unitário estabelecimento (com ou sem aqueles elementos). Por outro lado, a transmissão da posição de arrendatário do trespassante deve ser comunicada ao senhorio (parte final do n.º3 do artigo 1112.º CC). Esta comunicação precisará normalmente de ser acompanhada de cópia ou exemplar do contrato de trespasse. Pressupõe isto, bem se vê, escrito enformando tal contrato. b. Âmbitos de entrega: num concreto negócio de trespasse, gozam as partes de liberdade para excluírem da transmissão alguns elementos do estabelecimento. Todavia, tal exclusão não pode abranger os bens necessários ou essenciais para identificar ou exprimir a empresa objeto do negócio. Desrespeitando-se o âmbito mínimo (necessário ou essencial) de entrega (constituído, portanto, pelos elementos necessários e suficientes para a transmissão de um concreto estabelecimento), impossibilitado fica o trespasse; objeto do negócio translativo serão então singulares bens (ou conjuntos de bens) de um estabelecimento, não o próprio estabelecimento. Dizer a priori ou em abstrato quais os elementos integrantes do âmbito mínimo é, dissemo-lo já, inviável. Pode dar-se o caso de um determinado trespasse não poder dispensar a transmissão (juntamente com outros bens mais ou menos prescindíveis) de uma firma, ou uma marca, ou uma patente, ou um prédio, ou certas máquinas, ou certo know-how, etc. Fazem parte do âmbito natural de entrega os elementos que se transmitem naturalmente com o estabelecimento trespassado, isto é, os meios transmitidos ex silentio, independentemente de estipulação ad hoc; tais bens, não havendo cláusulas a excluí-los, entram na esfera jurídica do trespassário. Com maior ou
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 menor segurança, é possível enumerar diversos elementos que integram normalmente este âmbito de entrega. Vejamos primeiros os meios empresariais cuja propriedade pertença ao trespassante. O artigo 304.º-P, n.º3 CPI é claro quanto à transmissão natural dos logótipos (com ressalva do previsto no artigo 31.º, n,º5 CPI). Poe concluir-se do n.º5 do artigo 31.º CPI a inclusão da marca no âmbito natural de transmissão. Diz ele: «Se no logótipo ou na marca figurar o nome individual, a firma ou a denominação social do titular (…), é necessária cláusula para a sua transmissão». Quer dizer, se na marca figurar o nome, etc., do titular, ela é transmitida naturalmente com o respetivo estabelecimento, não precisando cláusula ad hoc. Quanto a outros elementos, o silêncio das partes é acompanhado pelo silêncio da lei. Sabemos no entanto que o estabelecimento é organização de meios ou elementos para o exercício de uma atividade de produção destinada à troca. Sejam ou não essenciais para a existência da empresa, todos esses bens contribuem para a organização e são parte do estabelecimento. Sabemos também que ele é bem jurídico complexo-unitário, e coisa. O mais razoável será, portanto, que aqueles elementos sobre que pesa o silêncio se transmitam naturalmente; trespassado o estabelecimento, fica o trespassante obrigado a entregar o complexo de bens que o compõem. Entre esses bens contam-se, por exemplo, máquinas, utensílios, mobiliário, matérias-primas, mercadorias, inventos patenteados, modelos de utilidade, desenhos ou modelos. E os prédios? Os prédios têm suscitado mais controvérsia. Entendia tradicionalmente a jurisprudência que, na falta de estipulação específica, o trespassante não implica a transmissão do prédio (do trespassante) onde o estabelecimento funciona. Na doutrina, a pertinência dos imóveis ao âmbito natural é afirmada por uns e negada por outros Não descortino razões que validem um tratamento diferenciado do prédio em face de bens que, tal como ele, fazem parte do estabelecimento, são seus elementos. Tanto mais quanto é certo não ser em geral desprezível a importância dos imóveis. Para já não falar dos estabelecimentos absolutamente vinculados, o peso dos imóveis na estrutura organizatório-exploracional das empresas é em muitos casos determinante. O trespasse coenvolve naturalmente a transmissão da propriedade de todos os elementos que a esse título pertenciam ao trespassante – podendo todavia nalguns casos um ou mais desses elementos não se transmitir, ou seja, nos casos em que a exclusão resulta de uma disposição legal, ou é consequência mediata de uma cláusula negocial, ou corresponde à vontade real e concordante das partes (apesar de não ter correspondência no texto do respetivo documento). Vejamos agora os elementos empresariais na disponibilidade do trespassante a título obrigacional (o trespassante tem o gozo desses bens por ser titular de direitos de crédito). Por força da lei, as prestações laborais a que os trabalhadores subordinados se haviam obrigado perante o trespassante continuam a contar-se entre os elementos do estabelecimento trespassado. Prescreve com efeito o artigo 285.º, n.º1 CT: «Em caso de transmissão, por qualquer título, da titularidade de empresa, estabelecimento ou ainda de parte da empresa ou
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 estabelecimento que constitua uma unidade económica, transmitem-se para o adquirente a posição do empregador nos contratos de trabalho dos respetivos trabalhadores». Por sua vez, outro enunciado normativo – o do n.º, alínea a) do artigo 112.º CC – tem o seguinte teor: é permitida a transmissão por ato ente vivos da posição do arrendatário, sem dependência da autorização do senhorio, no caso de trespasse de estabelecimento comercial ou industrial. A menos que o prédio (arrendado) pertença ao âmbito mínimo, o trespasse não implica necessariamente a transferência do prédio por via de transmissão da posição do arrendatário ou por via de tipo obrigacional. Mas não envolverá naturalmente o trespasse a transmissão da posição do arrendatário= Estou com aqueles que respondem afirmativamente. Dissemos, já, que certas situações de facto com valor económico – nomeadamente o saber-fazer – podem ser elementos de uma empresa. Pois bem, apesar de o saber-fazer (bem como de contornos algo difusos) não dever ser considerado coisa objeto do direito de propriedade ou de outros direitos reais, ele deve ser comunicado-transmitido pelo trespassante ao trespassário – sendo tal dever um efeito natural (quando não essencial) do negócio de trespasse. No âmbito convencional de entrega incluem-se os elementos empresariais que apenas se transmitem por mor de estipulação ou convenção (Expressa ou tácita) entre trespassante e trespassário. Nele se integram a firma (artigo 44.º, n.º1 RNPC): «O adquirente, por qualquer título entre vivos, de um estabelecimento comercial pode aditar à sua própria forma a menção de haver sucedido na firma do anterior titular do estabelecimento, se esse titular o autorizar, por escrito»; O logótipo e a marca quando neles figure nome individual, firma ou denominação do titular do estabelecimento (artigo 31.º, n.º5 CPI). Os créditos do trespassante ligados à exploração da empresa mas cujos objetos não sejam meios do estabelecimento não devem considerar-se elementos ou meios empresariais. Todavia, podem ser transmitidos juntamento com o estabelecimento desde que trespassante e trespassário nisso concordem; farão então parte do âmbito convencional de entrega. É o que resulta dos artigo 577.º CC – por acordo (expresso ou tácito) entre trespassante-credor e trespassário, pode o primeiro ceder simples créditos ao segundo, «independentemente do consentimento do devedor, contanto eu a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor» (artigo 577.º, n.º1; sobre a eficácia da cessão relativamente ao devedor, vide o artigo 583.º CC). Os contratos (rectius, posições contratuais do trespassante) ligados à exploração da empresa mas cujos objetos (imediatos) não sejam elementos do estabelecimento, bem como os débitos resultantes da exploração do estabelecimento, também não devem ser considerados, recorde-se, elementos ou meios empresariais. Mas podem igualmente ser transmitidos juntamento com o estabelecimento trespassado. Contudo, tais posições contratuais e débitos não fazem parte, em regra, de qualquer dos âmbitos de entrega (caracterizados nos termos vistos); nem sequer do âmbito convencional – pois (ainda em regra), a respetiva transmissão exige a
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 intervenção de terceiros (não bastando a convenção entre trespassante e trespassário). É o que resulta das normas legais gerais. Assim, para os contratos, e ressalvadas hipóteses previstas na lei, valem as regras dos artigos 424.º e seguintes CC. Mais debatida que a cessão de posições contratuais ou de créditos tem sido a transmissão singular de dívidas. De um lado, os interesses dos credores do trespassante reclamando a transmissão das dívidas ou, de preferência, a responsabilização de trespassante e trespassário – uma vez que pode o trespasse envolver diminuição da garantia patrimonial dos créditos (concedidos, as mais das vezes, tendo em vista o estabelecimento) e ser a impugnação pauliana impossível (artigos 610.º e seguintes CC, máxime alínea b) do artigo 610.º e a 1.ª parte do n.º1 do artigo 612.º CC). Do outro lado, os interesses do trespassário (para já não falar dos seus credores) reclamando a não transmissão dos débitos (Que ele pode até desconhecer), pelo menos contra a sua vontade. São, pois, aplicáveis as regras gerais do Direito Civil. Na vigência do atual CC, a jurisprudência e a doutrina dominantes negam a transmissão automática das dívidas. Com razão. De harmonia com o artigo 595.º CC, a transmissão a título singular de dívidas referentes a estabelecimento só pode verificar-se por acordo entre trespassante e trespassário, ratificado pelos credores (isto é, com aprovação ou assentimento destes), ou por acordo entre o trespassário e os credores, com ou sem consentimento do trespassante; em qualquer dos casos, a transmissão dó exonera o trespassante havendo «declaração expressa» dos credores – respondendo ele solidariamente com o trespassário caso não haja essa declaração. Por conseguinte, ainda que num escrito se diga (como às vezes se diz) que o estabelecimento é trespassado «com todo o seu ativo e passivo», esse facto, por si só, não significa assunção pelo trespassário das dívidas do trespassante relativas ao estabelecimento; a transmissão dos débitos exige o consentimento dos credores. Excecionalmente, porém, o trespassário pode ter de responder por dívidas anteriores ao trespasse. É assim nos casos regulados pelos artigos 285.º, n.º1 e 2 CT. c. Obrigação implícita de não concorrência: obrigação de não concorrência decorrendo implicitamente dos negócios de alienação das empresas (sem necessidade, portanto, de qualquer estipulação ad hoc) é desde há muito reconhecida pela jurisprudência e doutrina de largo número de países, tendo sido recebida, também, entre nós. O trespassante de estabelecimento (e, eventualmente, uma ou outra pessoa mais) fica em princípio obrigado a, num certo espaço e durante certo tempo, não concorrer com o trespassário (e sucessivos adquirentes) – nomeadamente, fica vinculado a não iniciar atividade similar à exercida através do estabelecimento trespassado. Têm sido avançados variados fundamentos para a obrigação: princípio da boa fé na execução dos contratos, princípio da equidade, usos do comércio, concorrência leal, garantia contra evicção, dever de o alienante entregar a coisa alienada e assegurar o gozo pacífico dela. Este último fundamento, com alguma tradição entre nós, parece ser o preferível. A empresa que o trespassante tem de entregar é um bem complexo, com certos valores de organização (em regra) de exploração. Normalmente, o alienante (ou os seus representantes) conhece as características organizativas da empresa e mantinha relações pessoais com financiadores,
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 fornecedores e clientes. Seria pois particularmente perigosa a concorrência por ele exercida; essa concorrência diferencial poria em risco a subsistência da empresa alienada, impediria uma efetiva entrega da mesma ao adquirente. Assim fundamentada, a obrigação implícita de não concorrência não se imporá ao trespassante que desconheça as especificidades organizativas da empresa e/ou (Quando a organização empresarial é rudimentar e o estabelecimento tenha já valores de exploração) desconheça os clientes, fornecedores, etc. O único autor, parece, que entre nós nega a obrigação implícita de não concorrência é Nuno Aureliano: recorre, para isso, à analogia com o artigo 9.º do Decreto-Lei 178/86, 3 julho (após a cessação do contrato de agência, o agente somente ficará obrigado a não concorrer se tal for acordado por escrito), ao paralelo que deve ser feito com a situação do trabalhador subordinado (artigo 136.º CT) – após a cessação do contrato de trabalho, a atividade do (ex-)trabalhador somente poderá ser limitada havendo acordo escrito – e à liberdade de iniciativa económica privada constitucionalmente consagrada (artigo 61.º, n.º1 CRP). Ora, quanto ao agente e ao trabalhador, a questão colocase a propósito da cessação dos contratos respetivos; relativamente ao trespassante, o problema surge (normalmente) por causa da celebração de um contrato. Depois, o agente e o trabalhador, deixando de o ser, não ficam obrigados a entregar qualquer estabelecimento; por efeito do negócio de trespasse, é obrigação do trespassante entregar efetivamente o estabelecimento. Por sua vez, o direito de iniciativa económica privada não é constitucionalmente ilimitado (não é direito absoluto). O trespassário tem direito a receber devidamente o estabelecimento que adquiriu e a usá-lo e fruí-lo nos termos permitidos pelo direito de propriedade (constitucionalmente consagrado também: artigo 62.º, n,º1 CRP). E o trespassante fica longe da situação da impossibilidade de atuar economicamente. Além do trespassante, outras pessoas podem ficar vinculadas pela obrigação implícita de não concorrência. É o caso do cônjuge do trespassante (sendo relativamente indiferente para a questão o regime de bens do casamento e a qualidade de bem comum ou próprio do estabelecimento eventualmente a adquirir pelo cônjuge). Afora o facto de o trespassante poder intervir na administração de empresa adquirida pelo cônjuge ( artigos 1678.º, n,º2, alíneas f) e g), n.º3 e 1679.º CC) e de as dívidas provenientes da exploração de tal empresa poderem responsabilizar ambos os cônjuges (artigos 1691.º, n.º1 e 1695.º CC), o cônjuge do trespassante beneficiaria normalmente dos conhecimentos deste relativos à organização, clientes, fornecedores, etc. do estabelecimento trespassado (a sua concorrência seria, por isso, diferencial ou particularmente perigosa para o trespassário). É o caso, também, dos filhos do trespassante, quando com ele tenham colaborado na exploração da empresa transmitida. A obrigação implícita de não concorrência pode intervir na generalidade dos negócios incluíveis no conceito de trespasse: na venda (voluntária, executiva e falencial), na troca, realização de entrada social, dação em cumprimento, doação. Além do trespassante, outras pessoas podem ficar vinculadas pela obrigação implícita de não concorrência. É o caso do cônjuge do trespassante (sendo relativamente indiferente para a questão o regime de bens do casamento e a qualidade de bem comum ou
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 próprio do estabelecimento eventualmente a adquirir pelo cônjuge). Afora o facto de o trespassante poder intervir na administração de empresa adquirida pelo cônjuge (artigos 1691.º, n.º1 e 1695.º CC), o cônjuge do trespassante beneficiaria normalmente dos conhecimentos deste relativos À organização, clientes fornecedores, etc. do estabelecimento trespassado (A sua concorrência seria, por isso, diferencial ou particularmente perigosa para o trespassário). É o caso, também, dos filhos do trespassante, quando com ele tenham colaborado na exploração da empresa transmitida. Entre os sujeitos ativos ou credores da obrigação implícita de não concorrência conta-se não apenas o primeiro trespassário mas também (enquanto a obrigação dever durar) os eventuais sucessivos trespassários (cada um deles será credor do primeiro sujeito passivo da obrigação, bem como de outros trespassários-trespassantes, enquanto for proprietário do estabelecimento transmitido). Esta obrigação de não concorrência tem, é claro, limites. Ela justifica-se apenas na medida em que seja necessária para uma entrega efetiva do estabelecimento trespassado. Tem de ter, por conseguinte, limites objetivos, espaciais e temporais. De contrário, haveria violação do princípio da liberdade de iniciativa económica (artigo 61.º CRP) e das regras de defesa da concorrência. Os sujeitos passivos da obrigação não ficam evidentemente proibidos de exercer qualquer atividade económica. Não podem é reiniciar o exercício (de modo sistemático ou profissional) de uma atividade concorrente com a exercida através da empresa trespassada, de uma atividade económica no todo ou em parte igual ou sucedânea. Todavia, estes sujeitos não ficam impedidos tão-somente de adquirir (para exploração) estabelecimento com objeto similar ao do alienado. Depois, a obrigação implícita de não concorrência tem limites espaciais e temporais: vale apenas nos lugares delimitados pelo raio de ação do estabelecimento trespassado, e durante o tempo suficiente para se consolidarem os valores de organização e/ou de exploração da empresa transmitida na esfera de um adquirente-empresário razoavelmente diligente. Se os obrigados a não concorrer violarem a obrigação, pode o trespassário exercer os direitos previstos nas normas respeitantes ao não cumprimento das obrigações. Assim, pode, designadamente, exigir indemnização por perdas e danos (artigo 798.º CC), ou resolver o contrato de trespasse (artigo 801.º, n.º1 CC), ou intentar ação de cumprimento (artigo 817.º CC) e requerer sanção pecuniária compulsória (artigo 829.º-A), ou exigir que o novo estabelecimento do obrigado seja encerrado (artigo 829.º, n.º1 CC). Notese, por último, que a obrigação implícita de não concorrência pode ser afastada por estipulação contratual (o sujeito dos interesses patrimoniais tutelados pela obrigação é o trespassário, que deles pode dispor livremente). Significa a cláusula de livre concorrência a inexistência de um verdadeiro trespasse (havendo simples alienação de elementos empresariais), ou uma efetiva transmissão do estabelecimento (ainda que desvalorizado)? Só a análise dos concretos casos permitirá responder… d. Trespasse de estabelecimento instalado em prédio arrendado: «A cessão da posição contratual do locatário está sujeita ao regime geral dos artigos 424.º e seguintes, sem prejuízo das disposições especiais deste capítulo»
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 (artigo 1059.º, n.º1; vide artigo 1038.º, alínea f); ambos CC). O artigo 1112.º,, cujo n.º1, alínea a) CC estabelece que em caso de trespasse de estabelecimento comercial ou industrial instalado em prédio arrendado, o trespassantearrendatário pode ceder a sua posição de arrendatário ao trespassário sem necessidade de autorização do senhorio. É uma norma expressiva da tutela ou defesa da circulação negocial dos estabelecimentos e, eventual e concomitantemente, da própria manutenção deles – dada a importância dos prédios, a necessidade de autonomização do senhorio («regime geral») conduziria muitas vezes (Quando a mesma fosse recusada) À quebra da referida defesa. Significa isto, seria escusado dizê-lo, que se protege o interesse dos trespassantes em transmitirem, sem entraves dos senhorios, estabelecimentos integrando direito de arrendamento, bem como o interesse dos trespassários em adquirir em presas o mais possível valiosas e funcionais, e ainda o interesse económico-geral (que o direito não deve ignorar) na continuidade e desenvolvimento das empresas. Diz o n.º2 do artigo 112.º CC que «Não há trespasse: «a) quando a transmissão [da posição de arrendatário] não seja acompanhada de transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento; «b) quando a transmissão vise o exercício, no prédio, de outro ramo de comércio ou industria ou, de um modo geral, a sua afetação a outro destino». Interpretando à letra aquela alínea a), concluir-se-ia que o trespasse de um estabelecimento exige a transferência de todos os seus elementos, bastando a falta de um deles para que de trespasse não pudesse falar-se; inexistindo trespasse, a cessão da posição de arrendatário seria ilícita sem o consentimento do senhorio e (não concedido o mesmo) fundamento de resolução do contrato de arrendamento (artigo 1083.º, n.º1, alínea e) CC). Ora, já sabemos que o estabelecimento existe e como tal se transmite quando existem os elementos do seu «âmbito mínimo» e se transferem esses mesmos elementos. Havendo estabelecimento e sendo transferidos (ao menos) os bens constituintes do âmbito essencial de entrega, não há como infirmar, por aí, o trespasse. Portanto, e de outra perspetiva, para que o n.º1 do artigo 112.º CC não tenha aplicação, não é suficiente que (nomeadamente) o senhorio prove não ter sido transmitido um ou mais elementos componentes do estabelecimento; terá de provar que sem esses elementos não subsiste aquele concreto estabelecimento, que o mesmo não pode ter sido efetivamente negociado, tendo havido antes simulação de trespasse (dissimulando cessão da posição de arrendatário). Com a alínea a) do nº.2 do artigo 1112.º CC fica agora mais claro que se considera não haver trespasse quando, no momento do negócio, havia a intenção de dar outro destino ao prédio; o cessionário da posição de arrendamento tinha em vista (com ou sem conhecimento de cedente), não a continuação do mesmo estabelecimento (trespassado, na qualificação das partes), sim a constituição, no mesmo prédio, de estabelecimento novo (com eventual aproveitamento de bens daquele) ou a aplicação do imóvel a fins não comerciais ou industriais. A intenção
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 de mudança de destino pode ser revelada logo por declarações constantes no escrito do negócio (de trespasse) – hipótese pouco verosímil – ou por declaração (do cessionário, nomeadamente) externas mas concomitantes. Contudo, o artigo 112.º CC termina com um enunciado normativo perturbador (sem antecedentes legislativos). Nos termos do n.º5, «quando, após a transmissão, seja dado outro destino ao prédio (…), o senhorio pode resolver o contrato». Defendeu-se já que essa norma não cria uma causa autónoma de resolução e/ou seria dispensável: se a mudança de destino significa que não houve trespasse, a situação está já prevista no n.º1, alínea b); se, apesar da mudança, houve trespasse, não há fundamento de resolução (n.º1, alínea a)), salvo se o contrato de arrendamento (em que agora é parte o trespassário) não permitiria destinar o prédio a outro fim – caso em que o fundamento de resolução se encontra já no artigo 1083.º, n.º2, alínea c) CC. Também considero que a norma é criticável. Mas entendo que ela cria fundamento autónomo de resolução. E não é prejudicada pela norma da alínea b) do n.º2 do artigo 112.º (os campos de aplicação respetivos não coincidem necessariamente); o alcance prático desta fica, isso sim, diminuído. Por outro lado, há diferenças de regime consoante se aplique uma ou outra norma. A ratio (frouxa) da norma será: a lei concede ao trespassante e ao trespassário o benefício consagrado no n.º1, alínea a) do artigo 1112.º (não interferência do senhorio na cessão da posição de arrendatário) a fim de facilitar a transmissão negocial do estabelecimento de um para o outro; se este estabelecimento, cuja circulação de promoveu, não se mantiver, deverá então o senhorio poder interferir na relação arrendatícia, resolvendo o contrato. Além destas normas de caráter geral, o CC, contém outras mais específicas relativamente ao dever de comunicação da cessão da posição de arrendatário em caso de trespasse e ao não cumprimento do mesmo. O n.º3 do artigo 1112.º repete-se (escusadamente) que a transmissão da posição do arrendatário, sem dependência de autorização do senhorio, deve ser comunicada a este. Sendo ineficaz relativamente ao senhorio a cedência da posição de arrendatário não comunicada atempadamente (pelo trespassante ou pelo trespassário), aquele, se não tiver reconhecido o cessionário como tal (artigo 1049.º CC), pode resolver o contrato de arrendamento, de acordo com o previsto no artigo 1083.º, n.º1, alínea e) CC (cessão ineficaz). Mas, normalmente, a resolução não será decretada pelo tribunal (artigo 1084.º, n.º2 CC) pelo simples facto de a comunicação não ter ocorrido no prazo de quinze dias. É necessário, como se diz no proémio do nº.2 do artigo 1083.º CC, que o incumprimento, «pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte [o senhorio, neste caso] a manutenção do arrendamento». Interessa, evidentemente, ao senhorio que lhe seja comunicada a cessão da posição de arrendatário: tem o direito de saber quem aparece como novo inquilino (com quem passará a comunicar) e de verificar se houve ou não trespasse válido que lhe imponha novo inquilino. Mas, havendo trespasse válido, o senhorio não tem poderes para recusar o trespassário como arrendatário. Pelo que, repita-se, para conduzir à resolução, não será em geral suficiente uma pequena ultrapassagem do citado prazo de quinze dias.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 2. Locação de estabelecimento: a. Noção e (algum) regime: a locação de estabelecimento (comercial – em sentido jurídico – ou não comercial) é definível como o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de um estabelecimento, mediante retribuição. Esta noção ajusta-se perfeitamente à noção de locação (em geral) do artigo 1022.º CC (apenas estabelecimento substitui coisa – e vimos já que os estabelecimentos são coisas). Pretendemos com isto sublinhar três pontos: os estabelecimentos podem ser locados; a locação do estabelecimento é contrato nominado – tanto na doutrina como na lei; tal contrato também é típico, isto é, está regulado na lei. Sob a epígrafe «locação de estabelecimento», o artigo 1109.º, n.º1 CC, prescreve que tal contrato «rege-se pelas regras da presente subsecção, com as necessárias adaptações». Vejamos, então, as normas desta subsecção VIII aplicáveis e sondemos as «necessárias adaptações». Nos termos do artigo 1110.º, n.º1 CC, «as regras relativas à duração, denúncia e oposição à renovação dos contratos de arrendamento para fins não habitacionais são livremente estabelecidas pelas partes, aplicando-se, na falta de estipulação, o disposto quanto ao arrendamento para habitação». Portanto, as partes na locação de estabelecimento estipulam livremente a duração do contrato (prazo certo ou duração indeterminada). Contudo, se nada tiverem estipulado a respeito, não se aplica o disposto quanto ao arrendamento para habitação (vide artigo 1094.º, n.º3 CC), antes se considera o contrato celebrado com prazo certo, pelo período de cinco anos – assim determina o n.º2 do artigo 1110.º CC. O regime da denúncia do contrato de locação de estabelecimento é estabelecido livremente pelas partes; na falta de estipulação, aplica-se em princípio o disposto para o arrendamento habitacional (artigo 1110.º, n.º1 CC). Assim, tendo o contrato sido celebrado com prazo certo, na falta de regime convencional para a denúncia, vale o previsto no artigo 1098.º, n.º3, 4 e 5 CC, exceto se o prazo certo de duração for o supletivo (cinco anos), caso em que não poderá o locatário denunciar o contrato com antecedência inferior a um ano (artigo 1110.º, n.º2 CC). Se o contrato tiver sido celebrado por duração indeterminada, o regime supletivo da denúncia (pelo locatário e, agora, também pelo locador) será o constante dos artigo 1100.º e 1101.º, alínea c) CC (por remissão do artigo 1110.º, n.º1 CC). O artigo 1110.º, n.º1 CC, refere-se também «à oposição à renovação» (rectius, prorrogação), tendo em vista os contratos com prazo certo. O que supõe, já se vê, a possibilidade de prorrogação (renovação). Quanto a esta possibilidade, aquela norma não remete para o artigo 1096.º, n.º1; aplicar-se-á (aos arrendamentos para fins não habitacionais) o artigo 1054.º. Ora, nenhuma destas normas (mais claramente a do artigo 1096.º, n.º1 CC) se aplicará ao contrato de locação de estabelecimento. Que, não sendo contrato de arrendamento, caducará findo o prazo (artigo 1051.º, alínea a) CC). Porém, podem as partes prever a prorrogação do contrato. Bem como regras
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 relativas à oposição à renovação – se o não fizerem, deverá aplicar-se o artigo 1055.º CC. Segue-se o artigo 1111.º CC, relativo a obras de conservação. Dado que estão aí em causa obras em prédios e relações entre senhorio e arrendatário, e porque a locação de estabelecimento não é arrendamento de prédio, nem as partes nela são, enquanto tais, senhorio e arrendatário, aquele artigo é inaplicável, à locação de estabelecimento. Quanto à forma do contrato de locação de estabelecimento, é aplicável (com adaptação similar à que registámos a propósito do trepasse) a primeira parte do n.º3 do artigo 1112.º CC: sob pena de nulidade, deve o contrato ser celebrado por escrito. O n.º2 do artigo 1112.º CC, igualmente adaptado, tem também alguma utilidade. Por exemplo: pertencendo ao locado do estabelecimento o prédio onde ele funciona, não há locação de estabelecimento se não forem incluídos no negócio elementos do âmbito mínimo da empresa (alínea a) do n.º2) ou se as partes visarem o exercício, no prédio, de outro ramo de comércio ou indústria ou, de modo geral, a sua afetação a outro destino (alínea b) do n.º2) – havendo, sim, contrato de arrendamento; pertencendo o prédio a terceiro (senhorio), também não há locação de estabelecimento se se verificarem aquelas condições – havendo agora subarrendamento, que será ilícito sem autorização do senhorio (artigos 1038.º, alínea f), 1049.º, 1083.º, n.º2, alínea e), e 1109.º, n.º2 CC). Por último, é aplicável o artigo 1113.º CC. A locação de estabelecimento não caduca por morte do locatário, podendo embora os sucessores renunciar à transmissão.
b. Âmbitos de entrega: tal como nos casos de trespasse, a locação de estabelecimento não pode prescindir dos elementos necessários ou essenciais para a identificação da empresa objeto do negócio; o âmbito mínimo tem de ser respeitado. Salvo quando outra coisa resulte da lei ou do contrato, é de entender que os elementos empresariais se transferem naturalmente para o locatário. É que, além do mais (dito já a outros propósitos), o estabelecimento locado transmite-se (por definição) a título meramente temporário (vai para o locatário para regressar ao locador) e, enquanto é explorado pelo locatário, mantém-se ligado ao locador e está adstrito à satisfação de necessidades de um e outro. Assim, integra-se no âmbito natural de entrega a generalidade dos meios empresariais pertencentes em propriedade ao locador. E também o logótipo e as marcas – artigos 31.º, n.º5 e 304.º-P, n.º2 CPI. É certo que estes artigos supõem a transmissão do estabelecimento, não pode deixar de ser abrangida (transmitindo-se aqueles sinais, claro, temporariamente também). Atendamos agora aos elementos empresariais que se encontrem na esfera jurídica do locador a título obrigacional. A posição de empregador decorrente dos contratos de trabalho para o locador transmite-se, pelo período da locação, para o locatário. É o que decorre designadamente do n.º3 do artigo 285.º CT. Quando o estabelecimento funciona em prédio arrendado, há-de entender-se que se transmite naturalmente para o locatário da empresa o gozo do prédio. Coisa semelhante deve valer para os bens empresariais detidos pelo locador de estabelecimento a título de locação financeira ou de simples aluguer – o cedente de exploração da empresa continua locatário dos bens, e o gozo destes transferese temporariamente (sem título negocial autónomo – a locação do
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 estabelecimento é negócio unitário e sobre objeto unitário) para o cessionário da empresa, sem necessidade de convenção das partes nem de autorização do locador dos referidos bens. E coisa semelhante deve ainda valer para as patentes, modelos de utilidade, desenhos ou modelos e marcas objeto de licença de exploração (o direito obtido por meio de licença não é alienado para o locatário do estabelecimento, não exigindo portanto consentimento escrito do licenciante – artigo 32.º, n.º8 CPI). Tal como no trespasse, as situações de facto com valor económico elementos da empresa (nomeadamente o saber-fazer) incluem-se normalmente no âmbito natural de entrega. Em face do artigo 44.º, n.º1 RNPC, há-de entender-se que a firma integra-se no âmbito convencional de entrega. Dissemos que, com a locação de um estabelecimento, diversos elementos empresariais de propriedade do locador se transferem para o locatário. A que título se dá essa transferência? Fica o locatário com a propriedade deles (designadamente, dos bens constituintes do capital circulante – matérias-primas, produtos, mercadorias –, que ele pode consumir ou alienar), com um direito locatício sobre eles, ou com um outro poder jurídico? Deve entender-se que – salvo estipulação estabelecendo diferentemente – a propriedade dos meios empresariais fica com o locador, não se transmite para o locatário. O negócio da locação incide sobre o estabelecimento unidade jurídica-coisa, não sobre singulares elementos seus; o direito locatício sobre o todo com que fica o locatário não pode logicamente implicar direitos de propriedade sobre as partes. Por outro lado, a propósito de um dos elementos da empresa – o prédio (que pode sem dúvida pertencer em propriedade ao locador) –, o artigo 1109.º, n.º1 CC não parece dar azo a hesitação ao falar de transferência temporária do gozo do mesmo. Com que direito, então, o locatário transforma e/ou aliena bens constituintes do capital circulantes (ou, dizendo de outra forma, os consomem) e aliena bens do capital fixo que é necessário substituir? Este poder ou direito de disposição sobre os meios empresariais não se funda no direito de propriedade, mas sim no poder-dever de exploração do estabelecimento. Na verdade, o locatário tem não apenas o direito de explorar-gozar o estabelecimento mas também o dever de o fazer – sob pena de a empresa sofrer diminuição no seu valor económico ou mesmo extinguir-se (Se, portanto, o locatário arbitrariamente encerrar, total ou parcialmente, temporária ou definitivamente, a empresa, ele viola o contrato de locação e o locador pode requerer resolução – artigo 1047. CC). Pois bem, o exercício de tal poder-dever implica necessariamente os referidos consumo e alienação de elementos empresariais. c. Obrigações de não concorrência: enquanto durar a locação de estabelecimento, o locador (e, eventualmente, outras pessoas) está obrigado a não concorrer num determinado espaço com o locatário – está obrigado, designadamente, a não iniciar atividade igual ou semelhante à exercida através do estabelecimento locado. Tal obrigação não é implícita. Ela resulta de expressas disposições legais – artigos 1031.º, alínea b) e 1037.º, n.º1 CC (é obrigação do locador assegurar ao locatário o gozo da coisa locada para os fins a que ela se destina, não lhe sendo permitido praticar atos que impeçam ou diminuam esse gozo). E pode o locatário, na vigência do contrato de locação, iniciar o exercício de uma atividade concorrente com a exercida através da empresa locada e no espaço delimitado
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 pelo raio de ação desta, sem o consentimento do locador? A resposta deve ser negativa. Tal comportamento provocaria, pelo menos, uma diminuição do valor do estabelecimento locado – e significaria, portanto, a violação do dever de manutenção e restituição da coisa a cargo do locatário (artigo 1043.º CC). Terminado o contrato, e na ausência de um possível pacto de não concorrência, fica o ex-locatário obrigado a não concorrer com o ex-locador? As resposta têm sido diversificadas. Entendendo que o ex-locatário fica livre para concorrer. Princípio, recorde-se, é o da liberdade de iniciativa económica e de concorrênciaé certo que o ex-locatário pode aproveitar conhecimentos sobre a clientela e a organização empresarial adquiridos durante a locação. Mas compete ao locador tomar em devida conta esse risco. Também os simples assalariados de um empresário podem, extinta a relação labora, aproveitar-se igualmente de tais conhecimentos para se estabelecerem – sendo pacífico que eles gozam (salvo pacto dispondo diversamente) de liberdade de trabalho (artigos 136.º CT) e de empresa. Depois, os citados conhecimentos, além de terem sido adquiridos pelo locatário no decurso de uma exploração pela qual ele pagou ao locador, eram também pertença deste ou estavam ao seu alcance (alínea b) do artigo 1038.º CC) e podem continuar a ser usados na exploração do estabelecimento restituído. d. Locação de estabelecimento e arrendamento: a locação de estabelecimento, mesmo quando envolve (como naturalmente envolve) prédios, não é contrato de arrendamento (artigo 1023.º CC). Apesar de o artigo 1109.º, n.º1 CC afirmar que ela se rege pelas regras da subsecção VIII. O mesmo artigo logo acrescenta «com as necessárias adaptações». E verificámos serem aplicáveis em maior número as normas da locação não específicas dos arrendamentos prediais. Também não é um contrato misto. O enunciado do artigo 1109.º, n.º1 CC sugere em alguma medida essa perspetiva. Não obstante, a locação de estabelecimento prevista no artigo 1109.º CC é negócio unitário com objeto (mediato) também unitário: o estabelecimento, feito embora de elementos vários. O gozo do prédio-elemento do estabelecimento é transferido para o locatário a título não autónomo (absorvido no negócio locativo global), não há específico negócio incidindo no prédio (ou em outros elementos); o prédio não é dado em arrendamento nem subarrendamento (salvo acordo em contrário) – o locador de estabelecimento e proprietário do imóvel não passa a senhorio (com referência ao prédio), o locador de estabelecimento e arrendatário do imóvel não cede a sua posição arrendatícia nem subarrenda. Questão muitas vezes discutida nos tribunais e nos papéis de doutirna era a necessidade, ou não, de o senhorio autorizar a cedência do gozo do prédio arrendado aquando da locação de estabelecimento nele instalado. Paulatinamente, foi-se tornando dominante a tese da desnecessidade de autorização do senhorio. Andou bem o NRAU ao consagrar no artigo 1109.º, n.º2 CC a desnecessidade de o senhorio autorizar a cedência do gozo do prédio (tal como no trespasse, a promoção da circulação negocial e, eventual e concomitantemente, da própria manutenção dos estabelecimentos enquanto valores económico-sociais aconselha esta solução). Apesar de o ter feito sem rigor linguístico: o que não carece de autorização do senhorio não é a transferência temporária e onerosa de estabelecimento instalado em local arrendado (o estabelecimento é do locador, qua não tem de
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 obter ou deixar de obter autorização de terceiro para o negociar), é sim a transferência do gozo do prédio (pertencente ao senhorio) integrado no estabelecimento. Também aqui o artigo 1109.º, n,.º2 CC consagrou a solução mais acertada (ainda que com impropriedade linguística): a transferência do gozo do prédio deve ser comunicada ao senhorio no prazo de um mês (o senhorio tem, na verdade, interesse legítimo em averiguar se houve ou não locação de estabelecimento – só quando ela exista é que a cedência do gozo do prédio não carece de autorização sua). Faltando a comunicação no prazo referido, a cedência do gozo do prédio é ineficaz em relação ao senhorio. Que poderá, por isso (salvo se tiver reconhecido o beneficiário da cedência como tal – artigo 1049.º CC), resolver o contrato de arrendamento (que o liga ao locador do estabelecimento): artigo 1083.º, n.º2, alínea e) CC. Mas, como dissemos a propósito do trespasse, a falta de comunicação tem de, pela sua gravidade ou consequências, tornar inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento.
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Vide nota 35.
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Da transmissão das obrigações 22.º - A transmissibilidade das obrigações
Generalidades: em sentido muito amplo, podemos dizer que uma situação jurídica se transmite quando, produzindo ela, em determinado momento, efeitos em relação a uma pessoa, passe, num segundo tempo, a produzir efeitos em relação a outra. A nível mais estrito, encontramos a transmissão dos direitos subjetivos. Esta verifica-se quando uma permissão normativa de aproveitamento de determinados bens, dirigida a um sujeito, passe a ser reportada a outro. Quando o bem em causa seja uma prestação, deparamo-nos com a transmissão de um crédito. Paralelamente, podemos definir a transmissão do débito, como a ocorrência pela qual o dever de prestar que assista a uma pessoa passe a caber a outra. Na transmissão, a situação em causa efetua uma movimentação da esfera do transmitente para a do transmissário. Na transmissão stricto sensu, a situação em causa, sem prejuízo da sua identidade, pode sofrer alterações nas suas características circundantes.
A transmissibilidade geral das obrigações: o Direito das obrigações é um Direito tendencialmente patrimonial. As situações obrigacionais podem-se incluir, em princípio, na ideia de propriedade. O princípio da transmissibilidade geral das obrigações tem, desta forma, proteção constitucional: o artigo 62.º, n.º1 CRP. A nível infra constitucional, o princípio da transmissibilidade geral das obrigações está consagrado, no tocante à transmissão inter vivos, no Capítulo IV, Título I, do Livro II do Código Civil.
Fundamentação da transmissibilidade das obrigações: a possibilidade de transmitir as obrigações pressupõe uma dogmática compatível e um desenvolvimento sócio económico considerável. Uma sociedade estática, de base fundiária, não requer, no seu tráfego jurídico, a transmissibilidade das obrigações. O desenvolvimento das economias pressiona, no entanto, uma viragem para a circulação dos créditos. E isso: Pelo empolamento do fenómeno obrigacional; Pelo aumento do tráfego jurídico; Pela necessidade de garantir os créditos. O crédito é, fundamentalmente, um direito a uma prestação; trata-se, porém, de uma prestação despersonalizada, suscetível de ser tomada e valorizada em sentido objetivo, isto é, assumida como bem. O mesmo crédito deve – agora pelo prisma do seu titular – ser considerado como um objeto da responsabilidade patrimonial e como objeto do trânsito jurídico. O crédito tornase, também, objeto da responsabilidade patrimonial isto é: quando se diga que, pelos débitos, responde o património do devedor, respondem, também, os créditos nele inscritos. A evolução está consumada: o crédito pode ser um direito a uma atividade particular de uma pessoa; porém, uma vez constituído, traduz um valor patrimonial – económico – objetivado no seio da sociedade e, como tal, suscetível de circulação, em todos os sentidos. A imagem dos direitos reais está bem
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 presente. A cessão pode ainda ser usada como um esquema de financiamento; temos a cessão financeira.
Formas de transmissão e fontes de transmissão: a obrigação integra uma realidade complexa que engloba posições de dois sujeitos. Daí que o fenómeno transmissivo possa revelar-se, quanto a ela, por formas diversificadas. A transmissão respeita ou à posição do credor, ou à posição do devedor ou, ainda, a uma posição complexa crédito-débito quando, em virtude de um contrato sinalagmático, os sujeitos estejam, simultaneamente, investidos em direitos e adstritos a obrigações. As diversas transmissões assim isoladas podem seguir vias diferentes, em obediência ao processamento da sua concretização. Em obediência ao quid obrigacional transmitido e ao modo de processamento da transmissão, o Código Vaz Serra recebeu expressamente as seguintes formas de transmissão: A cessão de créditos e a sub-rogação; A assunção de dívida; A cessão de posição contratual. Da forma de transmissão deve ser cuidadosamente separada a sua fonte. De acordo com as regras gerais das vicissitudes das obrigações, uma qualquer forma de transferência só opera quando tenha ocorrido um evento ao qual o Direito associe a transmissão. Esse evento é o facto jurídico (lato sensu) dotado de eficácia transmissiva, isto é, o facto transmissivo ou a fonte da transmissão. Temos pois de isolar dois níveis de regulamentação atinentes à transmissão das obrigações: o nível das fontes e o nível da forma de transmissão. Podemos classificar as transmissões de obrigações não só em obediência às suas formas mas, também, de acordo com as fontes respetivas. Pode ser chamada ao caso qualquer das classificações conhecidas de factos jurídicos, uma vez que a fonte é sempre um facto. Teremos: Transmissões contratuais; Transmissões unilaterais; Transmissões legais. Consoante a fonte da ocorrência seja um contrato, um ato unilateral ou um facto jurídico stricto sensu. A regra, na nossa Ordem Jurídica, é a de que não pode haver transmissões de obrigações desacompanhadas de fonte idónea, ou na linguagem comum: as transmissões devem ser causais e não abstratas. No domínio do Direito Comercial ocorrem as transmissões abstratas.
23.º - Cessão de créditos
Generalidades; requisitos; âmbito: a cessão de créditos é uma forma de transmissão do direito de crédito, no todo ou em parte, que opera por acordo entre o credor e o terceiro (artigo 577.º, n.º1). Os requisitos específicos da cessão são os seguintes: Um acordo entre o credor e o terceiro;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Consubstanciado num facto transmissivo (fonte da transmissão); A transmissibilidade do crédito. A cessão é uma ocorrência em regra voluntária. Como tal, ela exige o assentimento do cedente – o antigo credor – e o cessionário – o terceiro que, pela cessão, vai ser elevado a novo credor. Pelo contrário, não se exige que, para a cessão, o devedor cedido manifeste o seu acordo. Para o devedor, a cessão é tendencialmente indiferente. Contudo, este pode, em determinadas circunstâncias, ter um efetivo interesse na manutenção da identidade do credor, isto é, um interesse na manutenção da identidade do credor, isto é, um interesse na não realização da cessão. A lei respeita essa eventualidade apenas quando seja objetivamente detetável e através da técnica de cominar a não credibilidade do crédito visado. Os outros dois requisitos redundam na exigência de fonte e na não intransmissibilidade do crédito. Importa averiguar o âmbito da cessão de créditos. Em princípio, esse âmbito circunscreve-se ao que for determinado pela vontade das partes, na fonte respetiva. Especialmente dirigida aos créditos, a cessão pode, contudo, aplicar-se à transmissão «de quaisquer outros direitos não excetuados por lei» (artigo 588.º). Que outros direitos? A questão deve ser apreciada caso a caso. Manda o artigo 588.º que as regras da cessão de créditos se apliquem à transferência legal e à transferência judicial de créditos. Transferência legal e aquela que pera por simples facto jurídico, não voluntário, a que a lei associe tal efeito. Transferência judicial é a que tem por fonte uma decisão dessa natureza. Ainda a propósito da problemática do âmbito da cessão, há que referir transmitirem-se, supletivamente e com o crédito, «as garantias e outros acessórios do direito transmitido» (artigo 582.º, n.º1). As garantias englobam quer as chamadas garantias reais – penhora e hipoteca – quer as garantias pessoais – fiança. A transmissão do penhor implica, dada a natureza real do respetivo contrato, a entrega da coisa (artigo 582.º, n.º2), devendo a cessão de créditos hipotecários subordinar-se ao prescrito no artigo 578.º, n.º2.
O regime; necessidade de fonte idónea (causalidade): nos termos do artigo 578.º, n.º1: «Os requisitos e efeitos da cessão entre as partes definem-se em função do tipo de negócio que lhe serve de base». «O tipo de negócio que lhe serve de base» é o que atrás apelidamos de fonte de cessão. Verificase que a mesma se orienta pelas regras do facto transmissivo. Isso sucede quer no tocante À forma, quer no tocante ao conteúdo. A cessão tem de ser acompanhada de fonte idónea (ou deve ter causa, na linguagem comum), para produzir efeitos. Em princípio, essa causa redunda num contrato; mas pode ser qualquer outro facto, nas chamadas cessões legais. Cingimo-nos, agora, a cessões contratuais, diremos que as mesmas são inválidas: Quando o contrato-fonte seja, ele próprio, inválido; Quando não existe, pura e simplesmente, qualquer fonte que legitime a cessão
Intransmissibilidades: em princípio, na linha competente determinação constitucional, todos os créditos, como direitos patrimoniais, são livremente cedíveis. A lei exceciona, no entanto, certos casos, que consubstanciam intransmissibilidades. De acordo com a sua providência, as intransmissibilidades derivam: Da natureza da prestação: gera intransmissibilidade quando, nos termos do artigo 577.º, n.º1, ela esteja ligada á pessoa do devedor. A lei, preocupada em não
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 dificultar o trânsito jurídico dos créditos, paralela para um critério objetivo – a natureza da prestação; Da vontade das partes: as portes podem, ao abrigo da sua autonomia privada, convencionar, no momento da constituição dos créditos, a sua intransmissibilidade (artigo 577.º, n.º1); Da lei: o caso mais notável é o da proibição da cessão de direitos litigiosos feita, diretamente ou por interposta pessoa (artigo 579.º, n.º2) –, a juízes ou magistrados do Ministério Público, funcionários de justiça ou mandatários judiciais (artigo 579.º, n.º1). Nos termos do n.º3 do mesmo artigo, entende-se por direito litigioso o que tiver sido contestado em juízo contencioso. Caso seja efetuada uma cessão em contravenção a esta intransmissibilidade, determina o artigo 580.º, além da obrigação de reparar danos, uma nulidade sui generis do negócio de transferência: a especialidade deriva de que, ao reverso do que sucede no regime geral das nulidades, arguíveis por qualquer interessado, ela não pode ser invocada pelo cessionário (artigo 580.º, n.º2). O artigo 581.º consagra exceções à intransmissibilidade em causa, ela própria já excecional. Trata-se de casos em que se encontra salvaguardado o fim prosseguido pela lei, quando proíbe a cessão de direitos litigiosos.
Efeitos; a posição do credor: ocorrida uma cessão de crédito, opera, imediatamente, a transferência do direito à prestação do cedente para o cessionário, com todas as faculdades que lhe sejam inerentes. A própria lei prevê a hipótese de ser cedida apenas parte de um crédito (artigo 577.º, n.º1). Esta eventualidade, só possível quando a prestação seja divisível, implica já uma modificação, por desdobramento do crédito. Verificada uma cessão, o devedor tem de ser informado da ocorrência, para que cumpra não já frente ao cedente, mas ao cessionário. Prevê a lei, no artigo 583.º, n.º1, que a cessão produza efeitos em relação ao devedor, mesmo sem a notificação, quando seja por ele aceite; o artigo 583.º, n.º1, que a cessão produza efeitos para com o devedor a partir do momento da notificação (denunciato), a qual pode ser judicial ou extrajudicial. Admite ainda o Código que a cessão produza efeitos em relação ao devedor, mesmo sem a notificação, quando seja por ele aceite; o artigo 583.º, n.º2, por seu turno, estabelece que, independentemente da notificação ou aceitação, quando o devedor cumpra em facto de cedente ou com ele celebre qualquer negócio modificativo ou extintivo do crédito, nem o negócio nem o cumprimento sejam oponíveis ao cessionário se este provar que o devedor tinha conhecimento da cessão. Conhecido este regime, podemos referir uma questão discutida: a de saber a partir de que momento se consubstancia a cessão: A cessão produziria efeitos desde a sua celebração. Efetivamente, não devemos, em rigor, perguntar quando se produzem os efeitos da cessão mas antes a partir de que momento opera a fonte da cessão. Ora esta, nomeadamente quando redunde num contrato, produz efeitos imediatos, nos termos gerais. Apenas esses efeitos não se manifestam face ao devedor de boa fé (artigo 583.º). A contraprova é fácil: se o devedor estiver de má fé, a cessão produz efeitos. Com base em quê? Só pode ser com fundamento no contrato. Outro resultado da cessão, desta feita em relação ao próprio cedente, reside no dever em que este fica investido de entregar ao cessionários «os documentos e outros meios probatórios do crédito, que estejam na sua posse e em cuja conservação não tenha interesse
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 legítimo» (artigo 586.º). Por outro lado, o crédito passa ao cessionário no estado em que estava no poder do credor, com as suas vantagens próprias e com os seus defeitos. Por isso pode devedor opor, ao cessionário, todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, ainda que aquele os ignorasse, exceto, naturalmente os que advenham depois do conhecimento da cessão (artigo 585.º). Em compensação, o cedente assegura ao devedor a existência e a exigibilidade do crédito ao tempo da cessão (artigo 587.º, n.º1) não garantindo, no entanto e a título supletivo, a solvência do devedor (artigo 587.º, n.º2). Finalmente, se um credor ceder o mesmo crédito a várias pessoas: nos termos do artigo 584.º, prevalece a cessão que for primeiro notificada ao devedor.
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24.º - A sub-rogação
Noção; generalidades: a sub-rogação, tal como vem regulada nos artigos 589.º e seguintes, é uma forma de transmissão de créditos que opera a favor de terceiro que cumpra a obrigação do devedor ou cujos meios a obrigação seja cumprida pelo próprio devedor. A pessoa colocada na posição do primeiro credor diz-se sub-rogada.
Modalidades; requisitos: tradicionalmente, a sub-rogação cinde-se em voluntária e legal: voluntária quando provocada pelo acordo entre o sub-rogante e o sub-rogado ou entre este e o devedor; legal quando deriva de cominação jurídica, associada à adveniência de qualquer outro evento (Artigo 592.º).. A sub-rogação voluntária diz-se pelo credor, quando resulte de acordo entre o sub-rogado (o novo credor) e o antigo credor (artigo 589.º); pelo contrário, é dita pelo devedor quando esse acordo se firme entre o sub-rogado e o devedor (artigo 590.º). No primeiro caso, podemos dizer que o sub-rogante é o credor inicial; no segundo, o sub-rogante é o devedor. A sub-rogação voluntária pelo devedor pode ser, por seu turno, direta ou indireta, conforme advenha de um acordo nesse sentido ou emerja da utilização, pelo devedor, de meios do subrogado, para realizar o cumprimento (artigo 591.º). Em obediência a um critério diferente, a sub-rogação pode ser total ou parcial: total quando o sub-rogado assuma inteiramente o crédito do credor inicial; parcial quando tal só suceda em relação a uma parcela do mesmo crédito. Dissemos que a sub-rogação voluntária pelo credor deriva de acordo entre este e o sub-rogado. Esse acordo pode, contudo, ser simplesmente implícito, derivando da conjugação de dois requisitos explicitados na lei, aos quais se pode acrescentar um terceiro, de ordem temporal. Assim (artigo 589.º): O sub-rogado deve prestar ao credor; O qual tem de, expressamente, sub-rogá-lo na sua posição; Até ao momento do cumprimento da obrigação. A prestação efetuada deve ser fungível, a fim de poder ser efetuada pelo não devedor. A necessidade de declaração expressa deriva da vantagem em evitar dúvidas quanto à efetiva ocorrência da transmissão de crédito. Finalmente, a sub-rogação tem de operar até ao momento do cumprimento da obrigação; efetivamente, o cumprimento provoca a extinção tendencial da obrigação: qualquer transmissão seria, então impossível. O acordo requerido para a sub-rogação
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 voluntária direta pelo devedor emerge, também de um acordo de vontades ainda que implícito. Os requisitos são, nos termos do artigo 590.º: O cumprimento de uma obrigação por um terceiro (o sub-rogado), A vontade de sub-rogar, expressamente manifestada pelo devedor; Até ao momento do cumprimento da obrigação. A estes requisitos é aplicável, sem dificuldades mas com necessárias adaptações, tudo quanto atrás se disse acerca da sub-rogação voluntária pelo credor. Na sub-rogação voluntária indireta, também pelo devedor, a especialidade reside em que o cumprimento, em vez de ser efetuado pelo sub-rogado (terceiro) é-o pelo próprio devedor, mas com dinheiro ou outra coisa fungível pertencente àquele (artigo 591.º, n.º1). Apenas se requer que o destino dos aludidos dinheiro ou coisa fungível conste de declaração expressa, outro tanto sucedendo com a vontade de subrogar (artigo 591.º,n.º2). A sub-rogação leal implica, também, um cumprimento efetuado por um não devedor, isto é, pelo terceiro sub-rogado. Simplesmente, em vez da declaração expressa do credor ou do devedor, exige-se apenas que o sub-rogado (artigo 592.º, n.º1): Tenha garantido o cumprimento da obrigação; ou Tenha, por outra causa, interesses direto no crédito.
Efeitos: o efeito primordial da sub-rogação é a transmissão do crédito para o sub-rogado. Neste ponto, há que atinar no âmbito da sub-rogação: caso esta seja total, isto é, quando o sub-rogado cumpra a totalidade do débito em jogo ou quando, com os seus meios, se tenha verificado um cumprimento cabal, transmite-se a globalidade do crédito; quando, pelo contrário, a subrogação seja parcial, apenas se transmite a parte efetivamente cumprida (artigo 593.º, n.º1). Havendo sub-rogação parcial, o crédito fraciona-se, encontrando-se o devedor em face de dois credores: o sub-rogado e o credor inicial. Põe-se, nessa altura, a questão de saber se ambos os credor se encontram em pé de igualdade, quando hajam de concorrer ao património do devedor ou se o credor inicial goza de preferência. O Código português recebeu a regra napoleónica da preferência do primitivo credor exclusivo, embora supletivamente: é o que resulta do seu artigo 593.º, n.º2. Esta regra implica que, salvo estipulação em contrário de todos os interessados, o credor inicial se possa ressarcir pelo património do devedor, em caso de incumprimento, quedando ao credor sub-rogado apenas o remanescente. Havendo vários sub-rogados, estes estão em pé de igualdade entre si (artigo 593.º, n.º 3). Havendo sub-rogações, transmitem-se, para o sub-rogado, conjuntamente com o crédito, as suas «garantias e outros acessórios», nos termos do artigo 582.º, aplicável pela força do 594.º. Tratando-se de uma transmissão, pela subrogação, o sub-rogado vai receber o crédito que assistia ao credor inicial, com todas as suas qualidades e defeitos. Por isso, tal como se transmitem as «garantias e outros acessórios», assim também o devedor vai poder usar, contra o credor primitivo. O Código Civil não o diz expressamente, uma vez eu não manda aplicar à sub-rogação o artigo 585.º, que nada tolhe. Tal privação seria, de resto, nula dado o artigo 809.º. Suscita-se, depois, o problema da eficácia da sub-rogação em relação ao devedor que, por não ter tomado parte na sua verificação, não seja, ab initio, submetido aos seus efeitos, ou seja: qual a situação do devedor quando haja subrogação pelo credor, ou quando ocorra uma sub-rogação legal? Na sub-rogação pelo credor, a sub-rogação produz efeitos em relação ao devedor «desde que seja notificada ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite», nos termos do artigo 583º, n.º, aplicável ex vi
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 artigo 594.º. De qualquer forma, a sub-rogação verifica-se assim que tenha lugar competente pagamento, independentemente do momento em que produza efeitos em face do devedor. Na sub-rogação legal, quando, mercê da sua génese, não haja intervenção do devedor, deve ser aplicado regime idêntico. Pelo contrário, na sub-rogação pelo devedor, não se suscitam especiais questões perante o credor inicial. Não obstante este não ter participado no ato subrogatório, o facto de ele ter recebido a prestação devida, ou parte dela, já o coloca numa situação de não poder ser prejudicado pela ignorância da situação.
Natureza: tem sido debatida a questão da natureza da sub-rogação. A solução considerada tradicional e que, pelo menos formalmente, mereceu acolhimento no Código Civil, entende que a sub-rogação consubstancia uma hipótese de transmissão do crédito. O problema põe-se, no entanto, porque a sub-rogação implica, na sua verificação, o cumprimento da obrigação. Ora sendo o cumprimento uma forma de extinguir obrigações, como pode transmitir-se algo que já não existe? Entendemos, contudo, que, pela sub-rogação, há uma efetiva transmissão do crédito. Na verdade, deve-se contestar o pressuposto de que o cumprimento extingue a obrigação. O cumprimento extingue a obrigação quando é feito pelo devedor. Não é isso que sucede, como sabemos, na sub-rogação, onde, em rigor, nem sequer há cumprimento, o qual corresponde à efetivação, pelo obrigado, da prestação devida. Não se extinguindo a obrigação, subsiste o débito – tanto mais que o devedor nada cumpriu – e, naturalmente e por imperativo lógico –, também o crédito, uma vez que aquele não faz sentido sem este. Simplesmente, como o credor inicial já viu satisfeita a sua prestação, à custa do sub-rogado, dá-se, a favor deste, um comum fenómeno de transmissão do crédito, ou seja: a permissão normativa que, ao primeiro, conferia a utilização do bem-prestação passa a imputar-se ao segundo.
25.º - Assunção de dívidas Noção: a assunção de dívidas é a transmissão da posição jurídica do devedor, isto é, do débito Modalidades; requisitos: com base no artigo 595.º, n.º1, é possível distinguir três modalidades de assunção de dívidas: A assunção derivada de contrato entre o antigo e o novo devedor, (assuntor) ratificado pelo credor (artigo 595.º, n.º1, alínea a) ); A assunção derivada de contrato entre o novo devedor e o credor, com consentimento do antigo devedor; A assunção derivada de contrato entre o novo devedor e o credor, sem consentimento do antigo devedor (artigo 595.º, n.º1, alínea b) ). Estas modalidades distinguem-se em função da estrutura jurídica revestida pelos fenómenos de transmissão que consubstanciam. Outra distinção desta feita em obediência às consequências da transformação, é a que separa a assunção liberatória da assunção cumulativa, compreendidas no artigo 595.º, n.º2. No tocante aos requisitos da assunção de dívida, podemos distinguir:
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A existência de uma dívida efetiva; O acordo do credor; A idoneidade do contrato de transmissão. A existência de uma dívida é, naturalmente, condição necessária para ocorrência de qualquer transmissão de débito. A expressão “dívida efetiva” destina-se a explicitar que a relação obrigacional onde aquela se integra deve respeitar os ditamos que, pelo Direito, lhe sejam imputados. O acordo do credor é um requisito imprescindível para a transmissão da dívida. O acordo do credor deve traduzir-se numa declaração expressa de que libera o antigo devedor do seu débito (artigo 595.º, n.º2). Não basta a participação de credor no próprio ato transmissivo, com a intervenção do devedor e do terceiro adquirente ou a só com aquele. Também não é suficiente a ratificação da assunção pelo credor; esta, que deve ser dada no prazo fixado por qualquer das partes, sob pena de se considerar recusada (artigo 596.º, n.º2) apenas tem por efeito o tornar a transmissão irrevogável, por acordo entre o devedor e o adquirente do débito (artigo 596.º, n.º1). Claro está, a declaração expressa a que alude o artigo 595.º, n.º2 implica, de modo implícito, a ratificação, embora o inverso não se verifique. Esta construção, como resulta do cotejo entre os artigos 595.º, n.º2 e 596.º, é necessária para dar substância ao regime da assunção cumulativa. O contrato de transmissão, celebrado entre o novo devedor e o credor ou entre o primitivo devedor e o transmissário, consoante os casos, deve ser idóneo, nos seus diversos aspetos. Caso esse contrato seja anulado ou declarado nulo, mantém-se o débito na esfera do devedor inicial (“renasce” a obrigação deste, na expressão do artigo 597.º).
A abstração: ao contrário do que sucede com a cessão de créditos, a assunção de dívidas não requer, para a sua subsistência, a idoneidade da fonte de que provenha. Em princípio, qualquer transmissão de dívida tem sempre, na sua génese, além do acordo transmissivo em si, o contrato referido no artigo 595.º, n.º1 e no artigo 597.º, um qualquer ato, normalmente um contrato, donde promana a transmissão. Ninguém transmite um débito por transmitir. A assunção de dívida estará, assim, normalmente, integrada em facto jurídico mais vasto. Mas a existência normal de uma fonte originante da assunção não é necessária para a subsistência desta. Entende o Direito que, uma vez celebrada a transmissão da dívida, não seria justo sujeitar o credor que, fiado nas aparências, deu o seu assentimento, às vicissitudes possíveis na relacionação verificada entre os devedores, inicial e posterior. Desde que o contrato transmissivo em si seja idóneo, «o novo devedor não tem direito de opor ao credor os meios de defesa baseados nas relações entre ele e o antigo devedor», como claramente proclama o artigo 598.º. A assunção de dívidas é, pois, um ato abstrato: subsiste independentemente da existência ou validade da sua fonte (“causa”).
Efeitos; a “assunção” cumulativa: a assunção perfeita, isto é, aquela que reúna todos os requisitos atrás apontados, tem por efeito primordial a transmissão do débito do património do devedor inicial para o do devedor subsequente. Esta assunção tem, do ponto de vista do devedor primitivo, o efeito de o liberar da dívida que sobre ele recaía: donde a designação assunção liberatória. Com o débito transmitem-se, também, as obrigações acessórias do antigo devedor, exceto as que sejam inseparáveis da sua pessoa (artigo 599.º, n.º1). Da mesma forma, mantêm-se as garantias do crédito, com a exceção constante do artigo 599.º, n.º2. Estes dispositivos são, no entanto, supletivos, o que é de norma em Direito das Obrigações. Como, porém, o débito se transmite com as suas características próprias, o novo devedor pode opor
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 ao credor os meios de defesa resultantes das relações desse como antigo devedor (artigo 598.º). A assunção perfeita desliga, sempre supletivamente, o devedor inicial de qualquer relação com o credor. Desta forma, se o novo devedor se mostrar insolvente, o credor já não pode, contra o primeiro, movimentar o seu direito de crédito ou qualquer outra garantia. A assunção pode, contudo, não ser perfeita, nomeadamente por carência de algum dos seus requisitos, isto é: Pela invalidade da transmissão; Pela ausência da concordância do credor. A invalidade da transmissão tem como consequência o “renascer” da obrigação do devedor inicial (artigo 597.º); em compensação, extinguem-se as garantias prestadas pelo terceiro, exceto se este se encontrar de má fé, nos termos do artigo citado. A expressão renascer é tão só a constatação de que, afinal, a transmissão não operou. A outra hipótese de imperfeição da assunção de dívida pode advir da ausência de ratificação, quando disso seja caso ou da declaração expressa de concordância com a assunção de que fala o artigo 595.º, n.º2. A ausência de ratificação torna, como vimos, a assunção livremente revogável pelas partes (artigo 596.º, n.º1). Mais complexa é a hipótese da falta de declaração expressa do credor no sentido de exonerar o antigo devedor. Dispõe, nessa altura, o artigo 595.º, n.º2 que o antigo devedor responda solidariamente com o novo obrigado: é a chamada “assunção” cumulativa. Na realidade, não podemos considerar que a “assunção” cumulativa transmita quaisquer débitos ou seja, sequer, assunção. Pelo seguinte: Na “assunção” cumulativa, o devedor primitivo mantém o seu débito, uma vez que continua a responder pela obrigação (artigo 595.º, n.º2); O novo devedor não é, pois, transmissionário; como, porém, ele passa a responder, também, pela prestação, resta-nos concluir que operou, em relação a ele, a constituição de nova obrigação.
26.º - Cessão da posição contratual
Noção; generalidades: a cessão da posição contratual é, como se infere do artigo 424.º, n.º1, a transmissão a um terceiro do acervo de direitos e deveres que, para uma parte, emergem de determinado contrato. Esse acervo de direitos e de deveres é designado “posição contratual”, em homenagem à sua origem. Analiticamente, verifica-se que, por essa figura, se transmitem em globo e indiferentemente, direitos e deveres. No conjunto, resulta claro que é a própria qualidade de contratante que muda de esfera.
Requisitos; âmbitos: a cessão da posição contratual requer, para a sua compleição, a conjugação dos seguintes requisitos: A existência de um contrato; A transmissão de uma posição do contrato aludido; Uma fonte de onde emerja a transmissão em causa.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A existência de um contrato cuja posição se visa transmitir é, logicamente, requerida para a verificação de qualquer cessão de posição contratual. O artigo 424.º parece exigir, para o contrato em causa, determinadas características. A transmissão de uma posição do contrato aludido opera por acordo entre uma das partes (o cedente) e o terceiro (o cessionário). Simplesmente, a especial natureza da figura envolvida requer, para que haja transmissão, o acordo do cedido (artigo 424.º). O consentimento do cedido pode ser prestado antes ou depois (e logo durante) do acordo celebrado entre o cedente e o cessionário. A cessão da posição contratual deve ter, como fonte, um contrato que lhe esteja na base. A cessão da posição contratual exige uma fonte (“causa”) seja ela qual for. Não é, por isso, um negócio abstrato. Esta conclusão infere-se: Da regra geral vigente no nosso Direito, segundo a qual os efeitos jurídicos estão intimamente ligados à existência e validade dos factos donde dimanam, isto é, da regra da causalidade ou da não abstração, que nenhuma disposição afasta, neste caso; Do artigo 425.º, que estabelece uma nítida conexão entre a cessão e o negócio-base. Assim sendo, caso falte, de todo em todo, uma fonte ou, ainda, quando esta seja inválida, a cessão da posição contratual não opera validamente. Por isso se exige que o acordo do cedido, o qual, antes de o conceder, deve indagar da regularidade da situação.
Regime; efeitos; relevâncias invalidades ocorridas no contrato de cessão: nos termos do artigo 425.º do Código Civil, verifica-se que a cessão deve, como é natural, seguir o negócio base, isto é, da fonte da transmissão. O paralelo com o artigo 578.º, n.º1, que comina idêntico regime em relação à cessão de créditos, é evidente. Portanto, quando a cessão emerja de compra e venda, aplicam-se as regras da compra e venda, como exemplo. O Código estabelece que o cedente deva garantir ao cessionário, a existência – e caracterização – da posição contratual transmitida, nos termos aplicáveis ao negócio, gratuito ou oneroso, em que cessão se integra (artigo 426.º). Reforça-se, desta forma, o disposto no artigo 425.º. Em compensação, o cumprimento das obrigações implicadas só deve ser garantido quando convencionado (artigo 426.º, n.º2). A cessão da posição do contratante, como evento trilateral, produz efeitos em relação ao seus três intervenientes. No que toca ao cedente, verifica-se ficar este liberado dos seus deveres e perder os seus direitos. O cessionário, por seu turno, vai receber os direitos e assumir os débitos que ao cedente assistiam. O cedido deixa de ter como contraparte o primeiro interveniente – o cedente – substituído pelo cessionário. Cedido e cessionário vão poder exigirse mutuamente, o cumprimento das obrigações respetivas. O acervo de direitos e obrigações compreendido na posição contratual transferida conserva as suas qualidades e defeitos próprios. Por isso, pode o cedido opor ao cessionário os meios de defesa provenientes do contrato transmitido, mas não outros, salvo consignação em contrário (artigo 427.º). Põe-se o problema da relevância de eventuais invalidades ocorridas na celebração da cessão. Importa, no entanto, distinguir esta questão de duas outras, a saber: Das invalidades ocorridas na própria celebração do contrato cedido; os direitos potestativos de invocar as referidas invalidades mantêm-se, nos termos gerais, e transmitem-se, naturalmente, com a posição contratual (conforme, aliás, o artigo 427.º);
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Das vicissitudes referentes a obrigações com a cessão, mas que respeitem, apenas, ao cedente e ao cessionário. O problema que nos ocupa é, precisamente, o de saber quais os efeitos de invalidades verificadas na formação do contrato-fonte de cessão. Como vimos, no nosso Direito, a cessão da posição contratual não é um negócio abstrato. A regra geral tem, pois de ser a de relevância geral das invalidades ocorridas na fonte da cessão, com o efeito primordial de, verificadas estas, se desfazer a transmissão viciada.
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Capítulo III – O estatuto geral dos comerciantes Secção I – A firma e a denominação 25.º - A firma e a sua evolução
Ideia geral, origens e consagração legislativa: cada ser humano é único: em termos biológicos, psicológicos, pessoais, espirituais, sociais, económicos e jurídicos, não há qualquer indiferenciação. Resulta, daí, uma identidade, dada pela natureza das coisas e à qual o Direito deve emprestar consequências de relevo. Uma dessas consequências é o reconhecimento, a cada pessoa singular, de um nome: uma designação, simples ou composta, inconfundível, e que permita, em termos fonéticos e gráficos, identificar de imediato a pessoa que esteja em causa. Quando, em contactos sociais menos profundos ou em escritos, se pretenda invocar ou mencionar alguém, isso faz-se por referência ao nome. A pessoa, sobretudo à medida que o tempo passe e que se desvaneçam as memórias que dela haja, deixa de o ser: confundir-se-á com a sua obra ou, no limite, com o seu nome. No termos de uma curiosa evolução, o nome acaba por ser a persona (a máscara) através da qual atuamos no palco da vida. Quanto ficou dito tem aplicação no domínio do comércio. Aí, os diversos operadores singulares contactam regularmente entre si e com os seus clientes. Têm de reconhecer-se e ser reconhecidos. Surgem, agora num contexto comercial, a necessidade do recurso ao nome e as consequências que daí derivam: a personificação do nome em causa. O nome passa a valer por si. A firma é originalmente o nome comercial: o nome que o comerciante utiliza no exercício do seu comércio. O uso do nome, em comércio, remonta à Antiguidade: aí ocorreria já o signum mercatorum, que traduzia a designação sob que se realizava determinado comércio e cuja chancela marcava a assunção de obrigações. Na evolução subsequente, o tema da firma foi regido pelo costume. O aparecimento de operadores comerciais coletivos – portanto: de sociedades comerciais – no século XIII, levou a que estas tivessem uma designação sob a qual giravam: a razão social (ratio, razione sociale ou raison sociale). Mas também esta se podia reger pelo costume. O aumento do número de sociedades e a perspetiva generalizada das pré codificações e das codificações levou a que a matéria da designação das sociedades fosse objeto de tratamento. Assim sucedeu com o ALR prussiano e com o Code de Commece de Napoleão. As primeiras regras referentes à firma em geral – e portanto: relativas, também, aos comerciantes singulares – surgiram no ADHGB – a firma recebeu a definição que ainda hoje se conserva, no Direito Alemão: «A firma de um comerciante é o nome sob o qual ele exerce o seu negócio no comércio e cuja assinatura apõe». A matéria da firma alcançou o seu desenvolvimento clássico nas codificações tardias do século XIX.
A evolução novecentista: a evolução da firma, ao longo do século XX, foi marcada por alguns parâmetros mais significativos. Em primeiro lugar, é patente o desvio entre o estilo napoleónico
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 e o germânico. Em França, a matéria relativa ao “nome comercial” tem u desenvolvimento doutrinário bastante escasso. De resto e por confronto com a experiência alemã, outro tanto sucede com o próprio Direito ao nome. Pelo contrário, na Alemanha e, no seu seguimento, em Itália, o tema da firma tem desenvolvimentos doutrinários e judiciais consideráveis. De seguida, temos uma evolução significativa no sentido da comercialidade: a firma, mais do que a designação de uma pessoa, passa a ser um valor mercantil. A evolução iniciou-se através das sociedades comerciais. Também estas careciam de uma designação que as individualizasse. Nas sociedades de pessoas, essa designação foi composta, inicialmente, através dos nomes dos próprios associados. Mais tarde, o aparecimento das sociedades anónimas levou a designações de fantasia. Jogou a tendência secular para a reificação do nome. Este, em determinada altura, já não se reportava ao comerciante em si: alcança o estabelecimento e a própria empresa. Como terceiro e importante ponto, temos a sujeição da firma a regras mais diretamente comerciais. A firma pode, através de um adequado processo de registo, tornar-se uma marca. Desfrutará, então, de uma tutela mais alargada, constituindo-se objeto de um direito privativo. A firma realizou uma importante progressão, no último século. Atingiu rapidamente um papel de relevo no campo comercial. Como muitas vezes sucede no Direito Comercial, a evolução não se processou pela substituição, por novos, de elementos mais antigos. No tocante à firma resultou, daqui, uma amálgama de regras que vão desde o clássico direito ao nome até às modernas técnicas de proteção advenientes da propriedade industrial. Chegou-se, assim, a sistemas complicados de que o Direito português será o mais rematado exemplo.
A natureza da firma; opções: a questão da natureza da firma deve ser equacionada e resolvida perante cada concreto Direito positivo. Existem, contudo, grandes opções sedimentadas na história e no Direito comparado. Quer em termos históricos, quer em termos comparatísticos, a discussão em torno da natureza da firma não acompanhou, sempre, a havida a propósito da natureza do nome. Num primeiro momento, em França, a firma foi entendida como objeto da propriedade do seu titular. Tratava-se, todavia, de um entendimento inaproveitável pela padectistíca, assente no dogma da natureza necessariamente corpórea do objeto da propriedade. O Direito alemão foi infletido pela presença de regras específicas, no ADHGB: permitia, em certos casos, a alienação da firma, em conjunto com o estabelecimento, enquanto dava, ao titular, meios para reagir perante atentados à sua firma: uma pretensão de omissão e uma pretensão de indemnização. Chegou-se a uma construção do direito à firma diferente da de propriedade: um direito absoluto, mas referente a um bem imaterial, com conteúdo económico. Mais recentemente, um cero exacerbar dos direitos de personalidade e o facto de o direito ao nome estar presente na firma, levou a que esta recebesse algum tratamento próprio dos direitos de personalidade. Os direitos de personalidade devem ser tomados com realismo, perante as necessidades do nosso tempo. Quer se queira quer não, eles vieram a assumir uma relevância patrimonial. Por muito que se lamente, há uma conversão de direitos de personalidade em direitos patrimoniais. Perante isso, não deve o privatista verter lágrimas sobre a espiritualidade perdida ou – pior ainda – erradicar do campo dos direitos de personalidade tudo quanto possa ter um significado patrimonial: isso equivaleria a tirar, aos direitos visados, uma tutela e um regime que, por estarem ligados à pessoa humana, devem ser assegurados, a todo o custo, pelo Direito privado. Situações como a do direito ao nome têm, assim, uma dimensão de personalidade e uma dimensão patrimonial. O direito à firma é, hoje, distinto do direito ao nome. O direito ao nome acentua, mau grado a evolução acima registada, a vertente da personalidade; o direito à firma tende, cada vez mais, para o direito a um bem
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 imaterial. Todavia, as suas conexões são, ainda, suficientemente evidentes para que a doutrina o considere como um direito misto: um direito de personalidade reportado, também, a bens imateriais patrimoniais. A sua transmissibilidade é, assim, possível: quando implique o nome de uma pessoa, a firma torna-se transmissível, no essencial, apenas com a autorização do visado.
26.º - A firma na experiência portuguesa
O Código Veiga Beirão; antecedentes e evolução subsequente: o regime português da firma, fruto de uma evolução assaz complexa, surge excessivamente atormentado. Apenas através da história, poderemos entender os seus meandros. O Código Ferreira Borges tratava Das companhias, sociedades e parcerias commerciaes. Distinguia a companhia que seria a atual sociedade anónima e a sociedade com firma; esta ocorre: «Quando os socios convencionam commerciar debaixo d’uma firma, que abrace a collecção de seus respectivos nomes, esta sociedade chama-se sociedade, ou em nome collectivo, ou com firma. Mas d’esta só podem fazer parte os nomes dos socios, ou alguns, ou um só d’elles, com tanto que a firma contenha a formula – e companhia». Destes e doutros preceitos deduz-se que, no âmbito do Código Ferreira Borges, a firma era a designação de certas sociedades comerciais que correspondesse, total ou parcialmente, ao nome dos sócios ou de um deles. A denominação podia ser aproveitada para as designações que não envolvessem os nomes do sócios: designadamente as sociedades anónimas (sem nome). Quando, em 1867, foi publicada a importante lei sobre sociedades anónimas, o legislador passou a atribuir-lhes uma denominação particular ou a indicação clara do seu objeto ou fim. Não tinham firma (nome do sócio): por isso se diziam anónimas. O Código Veiga Beirão veio reger a matéria da firma, no seu artigo 19.º. As precauções existentes, quanto às sociedades anónimas levaram-no a acentuar a distinção entre firma e denominação particular. Dispunha o seu artigo 19.º, versão original: «Todo o comerciante exercerá o comércio, e assinará quaisquer documentos a ele respectivos, sob um nome que constituirá a sua firma. §único. As sociedades anónimas existirão, porém, independentemente de qualquer firma, e designar-se-ão apenas por uma denominação particular, sendo contudo aplicáveis a esta as disposições do presente Código relativas às firmas». O artigo 23.º, na sua versão original, proibia que, na denominação das sociedades anónimas, surgissem nomes de pessoas. Inferimos daqui que a firma portuguesa, mais próxima do étimo latino firmare47, reportava o nome de uma pessoa singular, por ela usada no comércio e utilizada para assinar ou confirmar um facto, dando-lhe consistência; poderia, assim, ocorrer nas sociedades comerciais dotadas de nome humano. Já na sociedades anónimas, designadas por nomes de fantasia – portanto: não próprios de pessoas – não haveria firma mas denominação 47
Firmare significa consolidar, reforçar, afirmar, assegurar, confirmar e assinar.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 particular; esta seria, de resto, inapropriável para assinar. Tal foi a origem da clássica distinção entre firma e denominação particular, no Direito Comercial português- Houve, depois, uma evolução. Em 11 abril 1901, uma Lei veio aprovar um novo tipo de sociedade comercial, não previsto no Código Veiga Beirão: o das sociedades por quotas. Segundo o seu artigo 3.º: «As sociedades por quotas, de responsabilidade limitada, adotarão uma firma ou uma denominação particular. §1.º a firma, quando não individualize todos os sócios, deve conter o nome, ou firma, de um d’eles. A denominação deve, quanto possível, dar a conhecer o objeto das sociedades». Tínhamos, pois, duas hipóteses: sociedades por quotas com firma, quando, como designação, adotassem o nome de um ou mais sócios e sociedades com denominação social, quando o nome fosse qualquer outro, relacionado com a sua atividade ou de pura fantasia. A sociedade por quotas com firma ficava obrigada com a assinatura de um dos gerente com a firma social. Tratando-se de sociedades por quotas com denominação particular, a obrigação surgiria quando os atos fossem assinados, em seu nome, pela maioria dos gerentes, salvo qualquer estipulação em contrário na escritura social. O sistema do Código Veiga Beirão, retomado pela LSQ, suscitava um problema prático grave. Sociedades havia que, assumindo a forma de sociedade em nome coletivo, conhecera grande êxito e desejavam transformar-se em sociedades anónimas. Pelo Direito da época, teriam de mudar de nome, já que a sociedade anónima não podia assumir firma: apenas denominação particular à qual não podia pertencer qualquer nome de pessoa. Ora a conservação do nome de origem, sob o qual fora conseguida uma especial dimensão e angariada toda uma clientela, correspondia a um interesse inteiramente legítimo e razoável e, além disso: vantajoso para o comércio e a economia, em geral. Assim surgiu o Decreto n.º 19:638, 21 abril 1931. Parece-nos evidente que o legislador, em 1931 e de acordo com a experiência de outros países, pretendeu abolir a contraposição entre firma e denominação particular. Defendeu-o, de resto e na época, José Gabriel Pinto Coelho. Manteve-se a LSQ, com a sua distinção entre sociedades por quotas com firma e sociedades por quotas com denominação particular. Além disso, conservou-se a seguinte contraposição: A firma era registável na conservatória do registo comercial, produzindo esse registo efeitos, apenas, na circunscrição respetiva; A denominação, a inscrever igualmente na conservatória do registo comercial, deveria sê-lo também no registo central de transmissões, então existente, traduzindo efeitos a nível nacional. Por fim, havendo firma, o comerciante ou gerente assina com o nome em causa; tratando-se de denominação particular, os administradores escrevem, sob a denominação, o seu nome civil. Perante a confusão assim reinante a doutrina efetuou as seguintes composições terminológicas: haveria um conceito geral de firma ou firma lato sensu; esta abrangeria a firma stricto sensu, firma-nome ou firma pessoal, composta pelo nome de pessoas, eventualmente completado pelo tipo de comércio a exercer e a firma-denominação, centrada apenas nesse tipo de comércio.
As reformas dos anos 80: na década de 80 do século XX, Portugal conheceu sucessivas reformas que atingiram a matéria da firma. Na origem das reformas está a atração exercida pela nascente informatização dos serviços de identificação: veio a instituir-se o Registo Nacional de
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Identificação; desenvolveu-se a matéria, estabelecendo o ficheiro central de pessoas coletivas e equiparadas, fixando ao obrigatoriedade de inscrição nesse ficheiro, num movimento reforçado, que impôs o número de contribuinte. Foram estabelecidos departamentos estaduais competentes nesta matéria, fonte de uma nova dinâmica legislativa. Foi absorvida a velha Repartição do Comércio junto da qual, desde 1867, funcionava o registo central das denominações das sociedades. O Direito Comercial começou a perder terreno, à medida que regras mercantis bem clássicas foram sendo absorvidas por diplomas de índole administrativa. O registo nacional de pessoas coletivas foi retomado pelo Decreto-Lei n.º 144/83, 31 março. Este diploma, bastante extenso, veio definir o Registo Nacional das Pessoas Coletivas como instituto público. Os próprios empresários em nome individual eram equiparados a pessoas coletivas. O diploma regia, depois, o ficheiro central das pessoas coletivas a inscrição, que era obrigatória, no Registo Nacional das Pessoas Coletivas o certificado de admissibilidade de firmas e denominação e o cartão de identificação e denominação ou entidade equiparada, para além das sanções e da organização burocrática. Meses volvidos, a matéria foi de novo reorganizada. Já invadiu a matéria das firmas e denominações, reportando-as a empresários individuais e a pessoas coletivas – e não a comerciantes pessoas singulares e sociedades. Foi-se, assim, dobrando toda a terminologia do Código Veiga Beirão.
O RNPC de 1998: a matéria da firma rege-se, hoje, pelo RNPC; aprovado pelo Decreto-Lei n.º 128/98, 13 maio. A ele há, todavia, que acrescentar diversos outros diplomas com regras sobre firmas, com relevo para o CSC. O RNPC é um diploma extenso, de 91 artigos. Ele ordena-se em títulos repartidos, alguns dos quais, por capítulos. O RNPC regula a designação das pessoas coletivas em geral. Mas além disso, veio abarcar designações de entidades não personalizadas, de organismos e serviços da Administração Pública não personalizados, de comerciantes individuais e heranças indivisas, quando o autor da sucessão fosse comerciante em geral. O RNPC optou por não dar um tratamento unitário à matéria civil e comercial. Vítima dos antecedentes adotados, ele pretendeu proceder a uma classificação de tipo formal. Assim, ele manteve uma referência a firmas e a denominações. Usa as duas expressões ora em conjunto (firmas e denominações), ora disjuntivamente (firmas ou denominações); usa-as, também, separadamente: ou só denominações ou só firmas. Aparece, ainda, a expressão “nome do estabelecimento” para designar firma ou denominação (artigo 57.º, n.º1). Procurando uma lógica nas disposições legais, chega-se à seguinte conclusão: A firma reporta-se a nomes de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial (artigo 37.º), de comerciantes individuais (artigo 38.º) e de estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada (artigo 40.º); A denominação tem a ver com associações e fundações (artigo 36.º) ou com sociedades civis sob forma civil (artigo 42.º); Os empresários individuais não-comerciantes tinham denominação, à luz da versão original do RNPC; passaram a ter firma, por força do Decreto-Lei 247-B/2008, 30 dezembro e da nova redação por ele dada ao artigo 39.º; com isto pretendeu-se comercializar esta categoria, embora não se saiba porquê. Na atualidade, firma equivale a um nome comercial enquanto denominação se reporta a entidades não comerciantes, salvo a distorção introduzida em 2008. Assim é apenas perante o RNPC, já que outros diplomas usam a denominação para entidades comerciais. O CSC, apesar
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 de toda a evolução ocorrida, mantém, no artigo 200.º relativo à firma das sociedades por quotas, a contraposição entre firma e denominação particular, ao gosto do Código Veiga Beirão reformado. O mesmo sucede no seu artigo 275.º, referente a sociedades anónimas. Outros diplomas conservam, no nosso ordenamento, a contraposição entre afirma lato sensu e a stricto sensu, abrangendo a primeira, ainda, as denominações. A classificação introduzida pelo RNPC é apenas tendencial. Manifestamente, ela parece operar nas sociedades comerciais, onde será necessário manter em vida a firma lato sensu e, depois, a firma-nome e a firma-denominação. De novo temos uma manifestação, porventura excessiva e dispensável, da complexidade histórico-cultural do Direito mercantil português.
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27.º - O regime da firma
Os princípios; teleologia geral: o regime da firma toma corpo através de alguns princípios tradicionais, que vieram a encontrar consagração legislativa. Aparentemente, o RNPC apenas indica dois princípios: o princípios da verdade e o princípio da novidade, expressos, de resto, em dois artigos: o 32.º e o 33.º. Todavia, seja pela análise desses preceitos, seja pelo recurso à doutrina mais aprofundada de outros países seja pelo recurso ao sistema, podemos alargar a sequência dos princípios a atender. Assim, encontramos: O princípio da autonomia privada, com limitações genéricas; O princípio da obrigatoriedade e da normalização; O princípio da verdade; O princípio da estabilidade; O princípio da novidade e da exclusividade; O princípio da unidade. Cada um destes princípios implica regras de concretização e eventuais desvios. Devem ser concatenados entre si. A multiplicação apontada de princípios enformadores da firma não deve obnubilar os vetores subjacentes. No fundamental, a firma visa exprimir, com eficácia, a identidade do comerciante de cujo giro se trate. Além disso e pelas preocupações crescentes que as sociedades pós-industriais têm vindo a manifestar nesse domínio, a firma vem acompanhada de regras destinadas à tutela dos consumidores. O Direito português parece prosseguir ainda, com a firma e as regras a ela inerentes, funções policiais e de fiscalização de ordem geral. Efetivamente, o artigo 2.º RNPC, dispõe: «1. O ficheiro central de pessoas coletivas (FCPC) é constituído por uma base de dados informatizados onde se organiza informação atualizada sobre as pessoas coletivas necessárias aos serviços de Administração Pública para o exercício das suas atribuídos;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 «2. O FCPC contém ainda, com os mesmos objetos, informação de interesse geral relativa a entidades públicas ou privadas não dotadas de personalidade jurídica, bem como coletivas internacionais e pessoas coletivas de direito estrangeiro». Além disso, o FCPC abrange informações relativas … aos próprios comerciantes individuais (artigo 4.º, n.º1, alínea g)). Nestas condições, devemos admitir mais este fator de ordem teleológica: o objetivo geral de facultar a fiscalização do Estado. Não obstante, deve ser preservada a tradição comercialística: a firma pertence ao Direito privado e opera, no essencial, de acordo com os seus princípios. O Estado deveria dar os seus quadros e serviços para proteção dos particulares.
Autonomia privada e limitações genéricas: à partida, a firma é um instituto comercial e logo: do Direito privado. Aplicam-se pois, como princípio, os grandes vetores do privatismo e, designadamente, o da liberdade, aqui vertido na autonomia privada. A escolha da firma cabe ao comerciante ou às entidades que irão constituir a sociedade comercial, quando disso se trate. Em rigor há, pois, uma dupla opção: A decisão de assumir uma firma; A concreta composição da firma em causa. É certo que, nos termos da lei, a escolha da firma torna-se obrigatória para quem pretenda exercer o comércio. Como, todavia, a própria escolha deste revela da livre decisão dos interessados, a assunção da firma vem a desembocar na autonomia privada. Quanto à concreta composição da firma em causa: também ela está nas mãos do interessado. Resulta, daí, um fator interpretativo e aplicativo da maior importância: em tudo o que a lei não vede ou não imponha, a liberdade dos interessados na escolha da firma é total. Designadamente, ela não pode ser embaraçada pela Administração Púbica. Na liberdade de escolha que os interessados tÊm ao seu alcance, estão à sua disposição: Firmas pessoais ou subjetivas: são compostas com recurso ao nome de uma ou mais pessoas singulares; trata-se das antigas firmas-nomes; Firmas materiais ou objetivas: reportam-se a objetos ou atividades que retratem a exploração comercial a exercer por quem as use; Firmas de fantasia: não têm qualquer representação imediata; seja de pessoas, seja de atividades ou de objetivos; correspondem, apenas, a figurações (supostamente) agradáveis; Firmas mistas: combinam elementos de pelo menos duas das anteriores. Como veremos, regras específicas vedam, nalguns casos, certas opções. Como manifestação de autonomia privada que é, a livre escolha da firma depara com determinadas limitações de ordem genérica. O heterogéneo artigo 32.º RNPC, no seu n.º4, e através das três últimas alíneas desse mesmo preceito, dá corpo a tais limitações, arredando, das firmas: «b) Expressões proibidas por lei ou ofensivas da moral ou dos bons costumes; «c) Expressões incompatíveis com o respeito pela liberdade de opção pelítica, religiosa ou ideológica;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 «d) Expressões que desrespeitem ou se aproximem ilegitimamente de símbolos nacionais, personalidades, épocas ou instituições cujo nome ou significado seja de salvaguardar por razões históricas, patrióticas, científicas, institucionais, culturais ou outras atendíveis». A alínea b) do artigo 32.º, n.º4 RNPC reporta-se ao que, no Direito Civil, se diria: contrário à lei, aos bons costumes e à ordem pública. A moral deve ser aproximada dos bons costumes em sentido técnico, enquanto bons costumes têm a ver com a ordem pública. Quando muito, poderíamos retirar da alínea c) e jogo que os bons costumes e a ordem pública, a ter em conta na composição da firma, são mais rigorosos do que os que se jogarão na generalidade dos negócios jurídicos. Uma firma é publicitada e está patente a todos, incluindo menores: bem fica, ao Direito Privado, defendê-los. A alínea c) reporta-se a liberdade de opção política, religiosa ou deológica. Parece-nos que se deve ir mais longe: não são admissíveis firmas que contundam com valores constitucionais básicos ou cuja existência, só por si, ponha em crise direitos fundamentais. Pense-se em firmas racistas ou em firmas destinadas, objetivamente, a prejudicar ou a atingir alguém. A alínea d) funciona como cláusula geral de bom senso e de bom gosto. Sendo um ato de autonomia privada, a escolha de uma firma tem, após determinada tramitação, eficácia erga omnes. Há, pois, que respeitar os valores histórico-culturais, particularmente os ligados à Nação cujo Direito esteja em jogo.
Obrigatoriedade e normalização: o princípio da obrigatoriedade decorre, desde logo,, do artigo 18.º, n.º1: os comerciantes são especialmente obrigados a adotar uma firma. O RNPC não prescreve, expressamente, a obrigatoriedade de adoção de firma: mas ela resulta, entre outros, dos seguintes preceitos: Da sujeição a inscrição dos factos referidos os artigos 6.º a 10.º, factos esses que, direta ou indiretamente, incluem a firma; Da cominação de coimas a quem não cumpra «a obrigação de inscrição no FCPC» ou não faça «nos prazos ou nas condições fixadas no presente diploma» - artigo 75.º, n.º1, alínea b) RNPC; Da necessidade de exibição do certificado de admissibilidade da firma para realizar diversos atos de registo comercial – artigo 56.º RNPC – atos esses cuja inscrição é obrigatória – artigo 15.º CRC. O incumprimento desta obrigação não envolve, só por si, a invalidade dos atos comerciais que venham a ser praticados pelo faltoso: vigora, como base, o princípio da correspondência entre a capacidade civil e a comercial – artigo 7.º. Tal invalidade só ocorre quando a lei o diga. Todavia, o comerciante que não adote firma sujeita-se a uma cascata de efeitos secundários nocivos, designadamente por se lhe fecharem as portas do registo comercial. Além da obrigatória, a firma deve obedecer a certos ditames que a tornem reconhecível como firma. Desde logo, a firma deve ter uma expressão verbal, suscetível de comunicação oral e escrita: não podem ser adotados sinais, desenhos ou outras figurações. De seguida, a firma deve surgir em caracteres latinos. Tratando-se de uma firma de fantasia, podemos admitir que ela assuma siglas, letras ou números, dentro dos limites da seriedade e da ordem pública. Em compensação, entendemos que a firma, quando tenha algum significado, deve assumir em língua portuguesa correta: Nos atos judiciais, deve usar-se a língua portuguesa: artigo 139.º, n.º1 CPC;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Nos atos notariais, deve usar-se, igualmente, a língua portuguesa: artigo 58.º CN; As informações ao consumidor devem ser prestadas em português: artigo 7.º, n.º3 LDC; Os contratos que tenham por objeto a venda de bens ou produtos ou a prestação de serviços no mercado interno, bem como a emissão de faturas ou recibos, devem ser redigidas em língua portuguesa: artigo 3.º DL n.º 238/86, 19 agosto; A indicação da sociedade deve ser corretamente redigida em língua portuguesa – artigo 11.º, n.º1 CSC. De todos estes preceitos podemos retirar uma regra geral que funcionará, também, perante o RNPC.
Os comerciantes pessoas singulares: a normalização das firmas leva, depois, a prescrever regras próprias para as diversas categorias de comerciantes. As firmas das sociedades comerciais têm um tratamento autónomo – artigo 37.º, n.º1 RNPC. Pertente, hoje, ao Direito das Sociedades Comerciais. Cumpre analisar a firma dos comerciantes pessoas singulares. Segundo o artigo 38.º RNPC: «1. O comerciante individual deve adotar uma só firma, composta pelo seu nome, completo ou abreviado, conforme seja necessário para identificação da pessoa, podendo aditar-lhe alcunha ou expressão alusiva à atividade exercida». Como se vê, o núcleo da firma do comerciante em nome individual deve ser composto pelo seu nome, completo ou abreviado. A lei permite que, ao núcleo da firma do comerciante pessoa singular – portanto e pela lei vigente: firma necessariamente pessoal ou sujeita –, seja aditada alcunha ou expressão alusiva à atividade – artigo 38.º, n.º1, in fine. Também pela lei positiva, a lei – artigo 38.º, n.º2 – permite que, ao núcleo da firma, seja somada a indicação sucessor de ou herdeiro de e a firma do estabelecimento que tenha adquirido. Desta feita, pela negativa - «não pode… salvo» - o artigo 38.º, n.º3 permite que o comerciante faça anteceder o seu nome por expressões ou siglas correspondentes a títulos académicos, profissionais, nobiliárquicos a que tenha direito. Em qualquer dos casos, a lei impõe que se trate de títulos legítimos. A legitimidade deve ser provada pelos requerentes – artigo 49.º, n.º1 RNPC – devendo os competentes elementos serem-lhe oficiosamente solicitados, quando não o tenham feito – artigo 49.º, n.º2 RNPC. No tocante a títulos, a pertinência resulta de certidões emitidas pela universidade respetiva; quanto a profissões, de certidão ou atestado produzido pela câmara, pela ordem ou por entidade com competência para a passagem de carteiras profissionais; quanto a títulos nobiliárquicos, de atestado elaborado e autenticado pelo Instituo da Nobreza; trata-se de uma ocorrência que em nada prejudica a natureza republicana do Estado, uma vez que o título nobiliárquico equivale hoje, apenas, a uma designação semelhante ao nome. Numa disposição paralela, mando o artigo 33.º, n.º4 que a incorporação, na firma, de sinais distintivos registados de prova do seu uso legítimo. O artigo 38.º, n.º4 RNPC vem dispor sobre o âmbito de tutela da firma dos comerciantes em nome individual.
A verdade e a exclusividade: a firma deve retratar a realidade a que se reporte; ou, pelo menos: não deve transmitir algo que lhe não corresponda. Surge aqui, em formulações positiva e negativa, o princípio da verdade. A lei admite firmas de fantasia. Quando isso suceda, da
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 simples consideração da firma não resultará – ou poderá não resultar – coisa nenhuma. Nihil obstat. O problema põe-se, pois, apenas quando a firma retrate alguém ou tenha algum significado. O artigo 32.º RNPC versa a matéria nos seus n.º 1, 2 e 4, alínea a). Segundo o seu n.º1: «1. Os elementos componentes das firmas e denominações devem ser verdadeiros e não introduzir em erro sobre a identificação, natureza ou atividade do seu titular». Estão em causa todos os elementos que integrem a firma. Eles são verdadeiros: retratam a realidade efetivamente subjacente. Não devem induzir em erro: Sobre a identificação: estarão em causa, sobretudo, os comerciantes pessoas singulares; estes não podem adotar firmas pessoais com nomes que lhes não pertençam; quanto a pessoas coletivas, o problema põe-se quando recorram a denominações; além disso, só podem ser incluídos na firma títulos académicos, profissionais ou nobiliárquicos a que o titular tenha direito: temos, aqui, complementos de identificação; Sobre a pertença a algum grupo: hoje as sociedades estão, muitas vezes, interligadas, a pertença a um grupo, mesmo quando tenham objetos diferentes, é um fator relevante sobre que não podem ser enganados os consumidores; Sobre a natureza: regras especiais permitem, através da firma e em certos casos, conhecer o tipo de titular em causa; não pode, pois, um interessado adotar uma firma que inculque uma natureza que não seja a sua; Sobre a atividade: quando esta resulte da firma, deverá corresponder à realidade. O artigo 32.º, n.º2 RNPC reporta-se, depois, ao núcleo da firma: aos seus elementos característicos. Aparentemente a lei é, aqui, ainda mais exigente: eles, «(…) ainda quando constituídos por designações de fantasia, siglas ou composições, não podem sugerir atividade diferente da que constitui o objeto social». Mesmo sem induzir diretamente em erro, os referidos elementos podem sugerir atividades diferentes das praticadas. A lei não o permite. O preceito parece reportar-se a pessoas coletivas. Não oferece dúvidas a sua generalização. Procedendo a um tratamento tópico de vetores já firmados, o artigo 32.º, n.º4, alínea a), vem fazer diversas especificações. Mais precisamente: retoma a proibição de provocar confusão quanto à natureza jurídica – artigo 32.º, n.º1 RNPC – vindo vedar: «Expressões que possam induzir quanto à caracterização jurídica da pessoa coletiva, designadamente o uso, por entidades com fim lucrativo, de expressões correntemente usadas na designação de organismos públicos ou de associações sem finalidade lucrativa». Em conexão com o artigo 32.º, n.º3 «Para efeitos do disposto neste artigo não deve ser efetuado o controlo da legalidade do objeto social, devendo somente ser assegurado o cumprimento do disposto nos números anteriores».
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 O princípio da verdade manifesta-se, ainda no artigo 32.º, n.º 5 RNPC: «Quando, por qualquer causa, deixe de ser associado ou sócio pessoa cujo nome figure na firma ou denominação de pessoa coletiva, deve tal firma ser alterada no prazo de um ano, a não ser que o associado ou sócio que se retire ou os herdeiros do que falecer consintam por escrito na continuação da mesma firma ou denominação». Uma explicitação relevante resulta do artigo 33.º, n.º3: «Não são admitidas denominações constituídas exclusivamente por vocábulos de uso corrente que permitam identificar ou se relacionem com atividade, técnica ou produto, bem como topónimos e qualquer indicação de proveniência geográfica». De novo e por via tópica, o legislador visou prevenir confusões. O artigo 34.º dispõe sobre firmas e denominações registadas no estrangeiro. O seu n.º1 determina que a instituição de representações permanentes de pessoas coletivas registadas no estrangeiro não esteja sujeita à emissão de certificado de admissibilidade de firma. O n.º2 assegura os meios da confirmação da sua existência, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros e assegura a não suscetibilidade de confusão com firmas ou denominações já registadas em Portugal.
A estabilidade; a transmissão da firma: o princípio da estabilidade não consta, de modo expresso, da lei portuguesa. Pode, todavia, ser constituído por via doutrinária. Segundo o princípio da estabilidade, a firma, quando identificada com uma empresa ou um estabelecimento, conservar-se-ia, não podendo, ad nutum, ser alterada: impor-se-á, sempre, todo o processo constitutivo do início. Além disso, havendo transmissão do estabelecimento a que ele se reporte, a firma manter-se-ia estável, transferindo-se com ele. Ou, noutra fórmula: apenas em conjunto com o estabelecimento se pode transmitir a firma. O artigo 44.º RNPC dá corpo a essa regra ao permitir, ainda que com autorização escrita do cedente e com menção à transmissão, a conservação, pelo adquirente de um estabelecimento, da firma usada pelo transmitente. Assim, segundo o n.º1 desse preceito: «O adquirente, por qualquer título entre vivos, de um estabelecimento comercial pode aditar à sua própria firma a menção de haver sucedido na firma do anterior titular do estabelecimento, se esse titular o autorizar, por escrito». Trata-se de mais uma formulação da regra contida no artigo 38.º, n.º2 RNPC, a propósito da composição da firma. A regra deve ser interpretada restritivamente, sob pena de pôr em total crise a ideia de conservação da firma: admite-se, assim, que o adquirente passe, simplesmente, a usar a firma anterior, com a informação sucessor ou scr. Põe-se, depois, o problema de saber se, havendo uma transmissão coerciva, a autorização do dono pode ser dispensada. No Direito Português da insolvência, o CIRE, no seu artigo 162.º, refere a alienação da empresa «… como um todo …». Logo, a firma-objeto e a firma de fantasia ficam abrangidas. Mas tratando-se de uma firma pessoal, prevalece o direito ao nome, mercê da sua natureza de personalidade: a autorização do próprio será sempre necessária, salvo abuso do direito. O artigo 44.º, n.º2 contém uma regra para sociedades comerciais. Desta feita, a alteração a nível de sócios não envolve modificação de firma, já que o titular – a própria pessoa coletiva – se mantém imutável. Todavia, quando se transmita a firma de sociedade na qual figure o nome de um sócio, este deverá dar autorização para que a firma se mantenha imutável: os aspetos de personalidade
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 envolvidos no nome prevalecem sobre os interesses do comércio. A hipótese de sucessão por morte ocorre no n.º3: desta feita não é, por definição, exigível qualquer autorização para o uso da firma. Finalmente, o artigo 44.º, n.º4 vinca a essência da estabilidade: «É proibida a aquisição de uma firma sem a do estabelecimento a que se achar ligada». O princípio da estabilidade entra em certo conflito com o da verdade. O Direito Português dá uma prevalência quase absoluta a este último. É de notar que, perante as regras da propriedade industrial, a transmissão de marcas ou a concessão de licenças para o seu uso por terceiros é bastante leve: mais do que no tocante à firma. Assim, recordamos que o registo do nome ou da insígnia, como acessórios, se transmitem com o estabelecimento a que se reportem, como pressupõe o artigo 297.º CPI. Tratando-se de marcas, dispõe o artigo 262.º, n.º1 CPC: «Os registos de marcas são transmissíveis se tal não for suscetível de induzir o público em erro quanto à proveniência do produto ou do serviço ou aos carateres essenciais para a sua apreciação». O artigo 264.º admite licenças para a utilização de marcas, figura desconhecida quanto à firma. A transmissibilidade da firma constitui um indício da dimensão patrimonial dos valores envolvidos. A firma opera, na verdade, como um fator a ter em conta na avaliação do conjunto a que pertença.
O princípio da novidade: o princípio da novidade vem expresso, no artigo 33.º, n.º1 RNPC «As firmas e denominações devem ser distintas e não suscetíveis de confusão ou erro com as registadas ou licenciadas no mesmo âmbito de exclusividade, mesmo quando a lei permita a inclusão de elementos utilizados por outras já registadas, ou com designações de instituições notoriamente conhecidas». Este mesmo princípio pode ser referenciado como o da exclusividade: trata-se de facetas do mesmo vetor. Temos a ideia de que uma determinada firma, uma vez atribuída, dá ao seu titular o direito ao seu uso exclusivo em determinada circunscrição – artigo 35.º, n.º1 RNPC. O sistema é o seguinte: A firma do comerciante individual que corresponda ao seu nome, completo ou abreviado, não dá lugar a um exclusivo; todavia, havendo nome total ou parcialmente idêntico, ele não pode usá-lo profissionalmente de modo a prejudicalo: tal o regime do artigo 72.º, n.º CC, possibilitado a contrario pelo artigo 38.º, n.º4 RNPC; A firma do comerciante individual que não corresponda, apenas, ao seu nome, completo ou abreviado, dá direito ao seu uso exclusivo desde a data do registo definitivo; As firmas de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial dão azo a um exclusivo em todo o território nacional – artigo 37.º, n.º2 RNPC; As denominações de associações e fundações são exclusivas em todo o território nacional, salvo quando o seu objeto estatutário indicie atividades de natureza meramente local ou regional – artigo 36.º, n.º3 RNPC.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A novidade é, pois, um requisito exigido às firmas, relativamente a outras que sejam eficazes num espaço territorial ou parcialmente coincidente. A firma – ou candidata a firma – mais recente deve ser distinta da mais antiga, sob pena de facultar um enriquecimento à custa desta. O juízo de distintibilidade deve ser feito in concreto perante o universo dos fatores ponderáveis, exemplificativamente referidos no artigo 33.º, n.º2 RNPC: prevalece o critério do homem médio ou consumidor comum. Há ainda que atender ao facto de as possíveis firmas em confronto corresponderem a entidades que atuem ou não na mesma área comercial: no primeiro caso, a novidade é mais exigente, podendo quase desaparecer no segundo, quando não haja hipóteses de confusão. O núcleo da firma é preponderante para qualquer valoração. Expressões correntes ou de uso comum não podem ser apropriadas, a título de firma ou denominação social.
A unidade: segundo o princípio da unidade, o comerciante só poderia girar sob uma única firma. O artigo 38.º RNPC predispõe-no para os comerciantes em nome individual, no seu n.º1. E a doutrina encarrega-se de alargar esse princípio às sociedades. Aparentemente, nem sequer se tem em conta o facto de o comerciante poder deter mais de um estabelecimento ou, mesmo, duas ou mais empresas totalmente distintas. Trata-se de regras desfasadas. Efetivamente, interesses comerciais perfeitamente razoáveis podem levar a que estabelecimentos tenham designações próprias e distintas. Esses mesmos interesses comunicam-se às firmas dos titulares respetivos.
Atos processuais: no Direito Português, o direito a uma firma, com todas as suas prerrogativas, designadamente a exclusividade, depende do seu registo definitivo no RNPC – artigo 35.º, n.º1 RNPC. A regra aplica-se a firmas estrangeiras. Antes disso, é necessário obter um certificado de admissibilidade da firma ou da denominação, e portanto: um documento emitido pelo RNPC, donde resulte que uma determinada firma, pretendida por um interessado, se encontra disponível e surge conforme com os princípios aplicáveis – artigo 45.º RNPC. Todos os obrigados a ter firma devem requerer a inscrição, em virtude do princípio da obrigatoriedade. Se o não fizerem, o artigo 12.º, n.º1 RNPC permite que ela seja feita oficiosamente, sem prejuízo do subsequente procedimento legal. O pedido de certificado de admissibilidade deve ser requerido através das seguintes formas (artigo 46.º, n.º1): Presencialmente, por forma verbal, pelo próprio ou por alguém com legitimidade para o efeito ou por escrito, em formulário próprio; Através de sítio na internet; Pelo correio, em formulário próprio. A reserva, feita por 48 horas mediante a entrega, ao interessado, de um número de referência – artigo 48.º, n.º1 – constitui mera presunção de não confundibilidade da firma solicitada – artigo 48.º, n.º2. Esta reserva é importante porque marca a ordem de prioridade do pedido da firma em jogo – artigo 50.º, n.º.1 RNPC. O artigo 50.º-A prevê a aprovação automática de firmas e denominações (aliás: firmas), quando se trate da constituição de sociedades por quotas, unipessoal por quotas ou anónimas e elas correspondam ao nome dos sócios, pessoas singulares. Concedido o certificado de admissibilidade, este tem os efeitos seguintes: Define a posição do beneficiário em relação a interessados ulteriores; estes terão, perante ele, de evitar, na mesma área de eficácia, quaisquer confusões;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Permite a celebração de ulteriores atos públicos que dele dependam: constituição de pessoas coletivas e de estabelecimentos de responsabilidade limitada – artigo 54.º, n.º1 RNPC – bem como a sua alteração – idem, n.º2; Limita a ampliação do objeto social a atividades contidas no objeto declarado no certificado de admissibilidade – idem, n.º3; Condiciona o registo comercial ou a inscrição no FCPC – artigo 56.º. Feita a inscrição da firma, o RNPC atribui, ao interessado, um número de identificação – o número de identificação de pessoa coletiva ou NIPC – artigo 13.º, n.º1; antes disso e às entidades em formação, pode ser atribuído um número provisório – artigo 15.º, n.º1, ambos do RNPC. As entidades inscritas podem solicitar a emissão de um cartão de identificação – artigos 16.º e 17.º RNPC. Dele constam o NIPC, o nome, firma ou denominação, o domicílio ou sede, a natureza jurídica, a atividade principal e o número de bilhete de identidade dos empresários individuais. Às entidades em firmação é concedido cartão provisório – artigo 18.lº. Quando violados os princípios da firma, o RNPC declara a perda do direito ao uso da que esteja em causa – artigo 60.º, n.º1. Feita essa declaração é a mesma levada ao registo comercial, se a ele estiver sujeita; o facto é, ainda, comunicado a outros serviços onde a entidade esteja registada, os termos do artigo 60.º, n.º2 RNPC.
A firma e o regime especial de constituição de sociedades (2005) : visando enfrentar o problema da excessiva demora na constituição de sociedades comerciais, o legislador criou o denominado regime especial de constituição de sociedades:. Decreto-Lei n.º 111/2005, 8 julho48. Este regime é limitado às sociedades por quotas e às sociedades anónimas (1.º): num caso e no outro com determinadas exclusões (2.º). A ideia básica da lei é a de facultar, aos interessados, a imediata realização, num serviço centralizado, de todas as operações requeridas para a constituição de uma sociedade. No tocante à firma, este regime exige uma de três hipóteses – artigo 3.º, n.º3: a) A aprovação no posto de entendimento; ou b) Escolha de firma constituída por expressão de fantasia previamente criada e reservada a favor do Estado, associada ou não à aquisição de uma marca previamente registada a favor do Estado; ou c) Apresentação de certificado de admissibilidade da firma. Pressupõe-se, pois, que o Estado, com todas as cautelas exigidas aos particulares, disponha de uma bolsa de firmas, previamente inscritas e validadas pelo RNPC. Uma vez atribuídas a particulares, essas firmas submetem-se às regras próprias das demais.
Tutela e natureza perante o Direito Português: o uso ilegal de uma firma concede aos interessados – artigo 62.º: O Direito de exigir a cessação de tal uso;
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Decreto-Lei n.º 247-B/2008, 30 dezembro, Decreto-Leis n.º 76-A/2006, 29 março, n.º125/2006, 29 julho e n.º 318/2007, 26 setembro.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 O direito a uma indemnização por danos emergentes; O direito, eventualmente, de lançar mão de ação criminar. No fundo, temos concretizações do princípio geral do artigo 70.º, n.º2 CC. Os particulares dispõem, ainda, de meios de proteção contra o Estado e, neste caso: contra o RNPC. Perante o Direito português, a firma está (ainda) muito aderente ao direito ao nome. Pode ser considerada como uma modalidade comercial deste, assumindo pois a natureza de direito de personalidade. A essa luz, compreende-se que ela apenas se transmita dentro do estrito circunstancialismo legal. O próprio não pode, sem mais, dispor dela. É, ainda, oponível erga omnes e dispõe de uma tutela alargada. Tudo isto, de acordo com a evolução geral de que acima demos nota, não é prejudicado pela dimensão patrimonial que hoje a firma assume.
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Firmas e denominações50: 1. Noção: diz-se habitualmente que a firma é o nome comercial dos comerciantes, o sinal que os individualiza ou identifica. É uma noção insuficiente. Com efeito, além de identificar comerciantes, a firma individualiza alguns não-comerciantes: as sociedades civil de tipo comercial (artigo 37.º RNPC e artigos 1.º, n.º4 e 9.º, n.º1, alínea c) CSC); e pode, agora, individualizar empresários individuais não comerciantes (artigo 39.º, RNPC). Por outro lado, alguns comerciantes são identificados, não por uma firma, mas por uma denominação. O artigo 19.º CCom, na redação originária, contrapunha a firma à denominação – aquela era constituída por nomes de pessoas, esta designava as sociedades anónimas, sendo composta por expressões indicando essencialmente o respetivo objeto social. O RRNPC, diploma que contém o atual regime geral das firmas e denominações, retoma a distinção mas em moldes diversos. Firma é o vocábulo preferido para designar o signo individualizador de comerciantes (artigos 37.º, 38.º, 40.º); denominação designa preferencialmente o sinal identificador de não comerciantes, e pode nalguns casos ser composta por nomes de pessoas (artigos 36.º, 42.º e 43.º). Não obstante, existem diplomas que utilizam invariavelmente denominação com respeito a entidades coletivas que podem ser comerciantes. Todos os comerciantes devem adotar firma ou denominação (artigo 18.º, n.º1 CCom). É das firmas e denominações dos comerciantes, dos sinais distintivos dos comerciantes que trataremos.
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Vide nota 35. Abreu, Jorge Manuel Coutinho de; Curso de Direito Comercial, volume I; Almedina Editores.
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2. Composição: a. Firmas dos comerciantes individuais: a firma de comerciante individual (pessoa singular) tem de ser composta pelo seu nome – «completo ou abreviado, conforme seja necessário para identificação da pessoa», não podendo, em regra, a abreviação reduzir-se a um só vocábulo (artigo 38.º, n.º1 e 3). O nome, completo ou abreviado, pode ser antecedido de expressões ou siglas «correspondentes a títulos académicos, profissionais ou nobiliárquicos» a que o comerciante tenha direito (artigo 38.º, n.º3). E pode ainda o comerciante aditar o seu nome (completo ou abreviado) «alcunha ou expressão alusiva à atividade exercida» (artigo 38.º, n.º1). Tratando-se de titular de um estabelecimento individual de responsabilidade limitada, a firma adotada pelo comerciante na exploração do mesmo será igualmente constituída pelo seu nome, completo ou abreviado, «acrescido ou não de referência ao objeto do comércio nele exercido, e pelo aditamento “Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada” ou “E.i.r.l.”» (artigo 40.º, n.º1 e 2). b. Firmas das sociedades comerciais: de acordo com o artigo 177.º, n.º1 CSC, a firma das sociedades em nome coletivo deve ser composta, ou pelo nome (completo ou abreviado) ou firma de todos os sócios, ou pelo nome (completo ou abreviado) ou firma de um deles, com o aditamento, abreviado ou por extenso, “e Companha” ou qualquer outro que indique a existência de outros sócios. Além destes elementos, a firma destas “sociedades de pessoas” pode ainda conter (apesar de o artigo não o dizer) expressão alusiva ao objeto social – por analogia com o artigo 38.º, n.º1 –, bem como siglas, iniciais, expressões de fantasia ou composições – por analogia com o artigo 42.º, n.º1 (relativo às denominações das sociedades civis simples). Segundo o artigo 200.º, n.º1 CSC, a firma das sociedades por quotas deve ser formada, com ou sem sigla (vocábulo constituído pelas iniciais ou outras letras de um nome ou expressão), ou pelo nome (completo ou abreviado) ou firma de todos, algum ou alguns dos sócios (firmanome), ou por uma denominação particular (firma-demoninação), ou pela reunião de ambos esses elementos (firma mista); em qualquer caso, a firma conterá o aditamento “Limitada” ou “L.da”. O que dissemos acerca da firma das sociedades por quotas vale quase integralmente para a firma das sociedades anónimas. São, na verdade, muito semelhantes os dizeres dos artigos 200.º, n.º1 e 275.º, n.º1 CSC. 3. Princípios informadores da composição das firmas e denominações: a. Princípio da verdade: «Os elementos componentes das firmas e denominações devem ser verdadeiros e não induzir em erro sobre a identificação, natureza ou atividade do seu titular» (artigo 32.º, n.º1). Quando, «por qualquer causa, deixe de ser associado ou sócio pessoa singular cujo nome figure na firma ou denominação de pessoa coletiva, deve tal firma ou denominação ser alterada no prazo de um ano, a não ser que o associado ou sócio que se retire ou os herdeiros do que
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 falecer consintam por escrito na continuação da mesma firma ou denominação» (artigo 32.º, n.º5). A alteração da firma nestes casos, é requerida pelo princípio da verdade, bem como pela tutela do direito ao nome das pessoas humanas; e a possibilidade (havendo consentimento) de a firma continuar inalterada constitui restrição ao mesmo princípio. b. Princípio da novidade ou exclusividade: «As firmas e denominações devem ser distintas e não suscetíveis de confusão ou erro com as registadas ou licenciadas no mesmo âmbito de exclusividade, mesmo quando a lei permita a inclusão de elementos utilizados por outras já registadas, ou com designações de instituições notoriamente conhecidas» (artigo 33.º, n.º1). Os titulares de firmas ou denominações validamente constituídas e registadas definitivamente (artigo 35.º, n.º1 e 4) têm um direito exclusivo sobre elas em determinado âmbito geográfico, direito esse que exclui a licitude de firmas e denominações idênticas ou confundíveis com aquelas nesse mesmo espaço; aí, as diversas firmas e denominações devem ser novas, isto é, distintas e inconfundíveis. As sociedades comerciais têm direito ao uso exclusivo das suas firmas em todo o território nacional (artigo 37.º, n.º2). Por sua vez, «os comerciantes individuais que não usem como firma a penas o seu nome completo ou abreviado têm direito ao uso exclusivo da sua firma desde a data do registo definitivo e no âmbito do concelho onde se encontra o seu estabelecimento principal» (artigos 38.º, n.º4 e 40.º, n.º3). Sendo assim, os comerciantes individuais cuja firma seja composta tão-só pelo nome civil (completo ou abreviado) ou pelo pseudónimo (notório) não têm direito ao uso exclusivo dela; os comerciantes homónimos podem ter firmas iguais, não novas. É uma solução contestável. Não obstante, o comerciante individual com firma composta somente pelo seu nome, apesar de não poder valer-se da tutela própria do direito à firma, pode reagir judicialmente contra outro ou outros comerciantes e não-comerciantes que, tendo o mesmo nome, o usem no exercício de atividade profissional; pode na verdade socorrer-se do normativo respeitante ao direito ao nome (artigo 72.º, n.º2 CC) ou, eventualmente, à proibição da concorrência desleal (artigo 317.º CPI). Mas quando pode dizer-se que as firmas ou denominações não são novas? Quais os critérios para aquilatar da confundibilidade ou do induzimento em erro? Diremos que uma firma (ou denominação) não é nova relativamente a outra firma ou denominação quando, atendendo à grafia das palavras, ao efeito fonético das expressões, ao núcleo caracterizante (ou coração da firma ou denominação), à forma oficiosa dos signos (e não apenas à forma oficial), o público médio (ou considerável parte dele) – o público de normal capacidade, diligência e atenção – as não consegue distinguir, as confunde, tomando uma por outra e um comerciante por outro ou, não as confundido embora, crê erroneamente referirem-se a comerciantes distintos mas especialmente relacionados (crê, v.g., que duas sociedades com firmas semelhantes se encontram em relação de grupo). Valerá o princípio da novidade ou exclusividade para comerciantes não concorrentes, que exercem atividades
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 diversas, não idênticas nem similares, ou vale tão só para comerciantes concorrentes? Têm alguns autores defendido não valer o princípio em relação a comerciantes não concorrentes. Na verdade, dizem, o risco de confusão entre firmas (e denominações, acrescentemos) em casos tais é inexistente ou quase. Confortando este entendimento estaria também o artigo 33.º, n.º2. Para outros autores, o princípio vale também para comerciantes não concorrentes. O público em geral pode tomar uma firma por outra, uma sociedade por outra, ou supor entre elas relações inexistentes, agravando-se o risco com relação a fornecedores e financiadores; os descaminhos postais, telegráficos, etc. são mais prováveis; a reputação de uma das sociedades pode ser posta em causa pela publicitação do facto de a outra ser objeto de um processo de insolvência, etc., etc. Por sua vez, o n.º2 do artigo 33.º não diz que a não identidade ou afinidade das atividades exercidas ou a exercer pelos comerciantes exclui a suscetibilidade de confissão ou erro. Diz antes que no juízo sobre isto se deve atender àquilo, e ao tipo de pessoa e ao seu domicilio ou sede – tudo critérios auxiliares na apreciação sobre a confundibilidade. Ainda a (des)propósito do n.º2 do artigo 33.º. Reza assim o n.º5 desse mesmo artigo: «Nos juízos a que se refere o n.º2 deve ainda ser considerada a existência de marcas e logótipos já concedidos que sejam de tal forma semelhantes que possam induzir em erro sobre a titularidade desses sinais distintivos». O preceito parece querer complementar o do n.º2. Mas este trata da diferenciação entre firmas (e denominações), aquele da diferenciação entre firmas (e denominações), aquele da diferenciação entre firmas (e denominações), por um lado, e outros sinais distintivos (de espécie diversa), por outro… c. Princípio da capacidade distintiva: as firmas e as denominações, enquanto sinais distintivos de comerciantes, hão-de ser constituídas por forma a poderem desempenhar a função diferenciadora. Parece não haver problema quanto às firmas dos comerciantes individuais e às firmas-nomes. Tais sinais, compostos (só ou também) por nomes de pessoas ou por nomes e/ou firmas de sócios ou associados, têm capacidade distintiva (tal como a têm os nomes das pessoas humanas e a devem ter as firmas de sócios ou associados). Já as firmasdenominações das sociedades por quotas, das sociedades anónimas, quando não sejam (ou não tenham elementos) de fantasia, suscitam mais cuidados. Com efeito, sob pena de incapacidade distintiva, as denominações não podem bastarse com designações genéricas, vocábulos de uso comum para designar atividades ou produtos, topónimos ou indicações de proveniência. Tais elementos, de per si não distintivos, hão-de ser associados a outros, de modo a que o conjunto seja capaz de distinguir. Tudo isto está hoje consagrado formalmente na lei. Diz assim, recorde-se o n.º3 do artigo 33.º (vide também o artigo 10.º, n.º4 CSC): «Não são admitidas denominações constituídas exclusivamente por vocábulos de uso corrente que permitam identificar ou se relacionem com atividade, técnica ou produto, bem como topónimos e qualquer indicação de proveniência geográfica». d. Princípio da unidade: a doutrina dominante na Alemanha defende a possibilidade de os comerciantes individuais (não as sociedades) adotarem várias firmas
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 quando tenham várias empresas. Ferrer correia defendeu entre nós posição idêntica. Entretanto, o artigo 12.º, n.º5 Decreto-Lei n.º 425/83, 6 dezembro, consagrou a regra da unidade da firma para os empresários individuais. O artigo 38.º, n.º1 mantém-na. E vigora o mesmo princípio para as sociedades (artigo 9.º, n.º1, alínea c) e 171.º, n.º1 CSC) e para as restantes entidades coletivas que podem ser comerciantes. Todavia, o princípio admite uma exceção: um comerciante (individual) que exerça atividades mercantis no quadro de um e.i.r.l. e fora dele terá duas firmas – artigo 40.º, n.º1. Já o comerciante que adquira a firma de outro, mesmo que passe a explorar duas ou mais (autónomas) empresas, não poderá manter mais de uma firma (ou denominação): a originária (alterada) com aditamento; é o que deflui do citado RRNPC, artigos 38.º, n.º1 e 2, 44.º, n.º1 e 3. e. Princípio da ilicitude (residual): significa um conjunto de variados requisitos. Assim, as firmas e denominações não podem conter «expressões proibidas por lei ou ofensivas da moral ou dos bons costumes»; «expressões incompatíveis com o respeito pela liberdade de opção política, religiosa ou ideológica»; «expressões que desrespeitem ou se apropriem ilegitimamente de símbolos nacionais, personalidades, épocas ou instituições cujo nome ou significado seja de salvaguardar por razões históricas, patrióticas, cientificas, institucionais, culturais ou outras atendíveis» (artigo 32.º, n.º4, alíneas b), c) e d)). 4. Alteração das firmas e denominações: respeitados que sejam os princípio s há pouco assinalados, os comerciantes podem livremente alterar as firmas ou denominações (artigo 56.º, n.º1, alíneas a) a f)). E casos há em que os comerciante3s as tem de alterar. Assim, por exemplo: a aquisição de firma implica alteração da firma originária (artigo 44.º, n.º1 e 4); alterando-se o objeto estatutário de uma sociedade ou outra entidade coletiva, pode ter de alterar-se a respetiva firma ou denominação (artigos 54.º, n.º2 RRNPC e 200.º, n.º3 CSC). À firma de sociedade em liquidação deve ser aditada a menção «sociedade em liquidação» ou “em liquidação” (artigo 146.º, n.º3 CSC); a proibição do uso ilegal de uma firma ou denominação (artigo 62.º RNPC) importa também alteração. 5. Transmissão: sendo as firmas sinais distintivos de sujeitos, poderia pensar-se serem intransmissíveis. Não é, todavia, assim (tanto aqui como em outros países). Normalmente, a firma distingue não apenas o comerciante mas também as respetivas empresas, liga aquele a estas. Enquanto coletor de clientela (expressão recorrente na doutrina italiana), a firma pode ter considerável valor económico. Interessa, pois, ao titular da firma poder realizar esse valor. E interessa, pois, ao titular da firma poder realizar esse valor. E interessa a outros sujeitos poder adquirir tal coletor de clientela. Contudo a livre transmissibilidade das firmas – sem a transmissão das respetivas empresas, etc. – daria azo a enganos no público (a clientela liga a firma a certo sujeito e empresa). Ora, atendendo a estes diversos interesses (sobretudo aos primeiros) e ao facto de a firma se ligar também à empresa, tem sido permitida a transmissão daquela juntamente com esta. Diz o n.º1 do artigo 44.º: «O adquirente, por qualquer título entre vivos, de um estabelecimento comercial pode aditar À sua própria firma a menção de haver sucedido na firma do anterior titular do estabelecimento, se esse titular o autorizar, por escrito». E o n.º4:
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 «É proibida a aquisição de uma firma sem a do estabelecimento a que se achar ligada». A transmissão entre vivos da firma obedece, portanto, a três requisitos: A transmissão de uma firma tem de fazer-se com a de um estabelecimento a qual esteja ligada; Necessário o acordo das partes – devendo o consentimento do transmitente da firma ser dado por escrito (normalmente no documento que enforma a transmissão do estabelecimento). Quando o transmitente seja uma sociedade cuja firma contenha nome de sócio (ou associado), além da autorização daquele, é ainda indispensável a do titular do nome (artigo 44.º, n.º2 ); O adquirente deve aditar à sua própria firma menção de sucessão e a firma adquirida (n.º2 do artigo 38.º). Mergulhemos um pouco na história. Por cem anos vigorou o artigo 24.º CCom, que dizia: «O novo adquirente de um estabelecimento comercial pode continuar a gerilo sob a mesma firma, se os interessados nisso concordarem, aditando-lhe a declaração de haver nele sucedido, e salvas as disposições dos artigos precedentes». Parece que a citada norma não exigia que à firma adquirida fosse junta a firma do adquirente. Ora, em termos substanciais, a solução legal hoje vigente acolher a interpretação do velho artigo 24.º em segundo lugar referida. Sai reforçado o princípio da verdade, mas fica enfraquecida na prática a transmissibilidade de firmas (juntando-se as adquiridas às originárias, as firmas-comboios podem ficar com demasiadas carruagens). A transmissão da firma de comerciante individual pode dar-se também mortis causa. Tal possibilidade é hoje explicada no n.º3 do artigo 44.º. O artigo 44.º refere-se tão somente à transmissão de firma. Mas não há razões para que semelhante regime se não aplique à transmissão de denominações de entes coletivos comerciantes (e não comerciantes). Também neste sentido aponta o n.º1 do artigo 48.º.
6. Tutela do direito à firma ou denominação: o direito à exclusividade de firma ou denominação constitui-se com o registo definitivo delas (artigo 3.º, e 35.º, n.º1). Para o correspondente âmbito de exclusividade, a proteção das firmas e denominações faz-se por meios preventivos e repressivos. Entre os primeiros contam-se os certificados de admissibilidade de firmas e denominações, emitidos pelo Registo Nacional das Pessoas Coletivas, serviço a quem compete velar pelo respeito dos requisitos de validade desses sinais (artigos 1.º, 45.º e seguintes e 78.º, n.º1). Sem tais certificados, diversos atos relativos (também) à sua constituição ou alteração das firmas e denominações não podem ser formalizados e/ou registados (artigos 54.º a 56.º e 58.º). E, está bem de ver, esses certificados não devem ser emitidos quando as denominações ou firmas escolhidas sejam idênticas ou suscetíveis de confusão ou erro com as registadas no mesmo âmbito de exclusividade. Por sua vez (falamos agora dos meios repressivos), as firmas e denominações que, apesar de definitivamente registadas, violem o princípio da novidade ou exclusividade (bem como outros princípios) podem ser objeto de ações judiciais de declaração de nulidade, anulação ou revogação, e estão sujeitas à declaração (pelo RNPC) de perda do direito ao respetivo uso (artigos 35.º, n.º4 e 60.º). Por outro lado, o uso ilegal de uma firma ou denominação (registada ou não)
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 «confere aos interessados o direito de exigir a sua proibição, bem como a indemnização pelos danos daí emergentes, sem prejuízo da correspondente ação criminal, se a ela houver lugar» (artigo 62.º). Os titulares de firmas ou denominações não registadas não têm o direito à exclusividade delas. Porém, se algum concorrente de um daqueles titulares usar firma ou denominação confundível (não registada e posterior, entenda-se), podendo com isso prejudica-lo ou obter para si ou para terceiro um benefício ilegítimo, o referido titular do sinal não registado pode reagir com base no artigo 317.º CPI (concorrência desleal). Há, no entanto, titulares de firmas e denominações não registadas em Portugal que gozam dos diversos meios preventivos e repressivos há pouco enunciados. É o que resulta dos artigos 2.º, 3.º e 8.º da CUP (Convenção da União de Paris). Diz o último: «o nome comercial será protegido em todos os países da União sem obrigação de registo, quer faça ou não parte de uma marca de fábrica ou de comércio». 7. Extinção do direito à firma ou denominação: sendo as firmas e denominações dos comerciantes sinais distintivos dos mesmos para o exercício do comércio, poderia pensar-se que a cessação das respetivas atividades mercantis implica a extinção dos correspondentes sinais. Mas não é necessariamente assim: Se a atividade comercial cessa porque o comerciante falece, extingue-se logo a firma no caso de ele não ter deixado estabelecimento comercial (por nunca o ter tido ou porque o liquidou entretanto); Caso tenha deixado empresa mercantil, três hipóteses há a considerar: o O estabelecimento comercial é transmitido, mas sem a firma do autor da sucessão – ela extingue-se; o o estabelecimento é transmitido com a firma – ela extingue-se na medida em que se integra na firma do adquirente (há uma nova firma, constituída pela combinação de duas – artigo 44.º, n.º3); o Não é transmitido o estabelecimento, que é liquidado – a firma extingue-se Se a atividade mercantil cessa porque o comerciante individual assim o decide, várias hipóteses se podem considerar também: o a pessoa tinha estabelecimento mercantil e, de imediato ou não, transmiteo com a firma – esta extingue-se porque incorporada na nova firma do adquirente; o a pessoa não tinha estabelecimento, ou tinha mas liquida-o ou transmite-o sem firma – o direito à firma perdura, a menos que o RNPC declare a sua perda, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado e mediante prova de que o titular da firma não exerce atividade mercantil há pelo menos dois anos consecutivos (artigo 61.º, n.º1, alínea b)), ou que a firma não foi inscrita no «ficheiro central de pessoas coletivas» nos prazos indicados no artigo 61.º n.º1, alínea a) e n.º2. Cessando a atividade de sociedades comerciais ou de outras entidades coletivascomerciantes sem que as mesmas se extingam, as respetivas firmas ou denominações extinguem-se, quando se transmitem com os respetivos estabelecimentos. Se os sujeitos se extinguem, extinguem-se também as firmas ou denominações – quer se transmitam na fase da liquidação com os respetivos estabelecimentos, quer não (a extinção destes sujeitos está em regra sujeita a registo
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 obrigatório – artigos 3.º, n.º1, alínea t), n.º2, alínea h), 4.º, alíneas d) e e), 5.º, n.º1, alíneas e) e f), 6.º, alínea f), 7.º, alínea j), 15.º, n.º1 e 2 CRCom; sobre o cancelamento do registo dos sinais, vide o artigo 20.º CRCom). As firmas e denominações ilegalmente constituídas, apesar de registadas a título definitivo, podem ser declaradas nulas, anuladas ou revogadas por sentença judicial; independentemente da via judicial, deve o RNPC declarar a perda do direito ao uso dessas firmas e denominações (artigos 35.º, n.º4 e 60.º, n.º1). 8. Natureza jurídica do direito à firma ou denominação: em doutrina europeia antiga parece ter dominado a conceção do direito à firma (ou denominação), enquanto modalidade ou espécie do direito ao nome, como direito de personalidade. É uma visão no essencial infundada. O direito ao nome (das pessoas singulares), enquanto direito de personalidade (artigo 72.º CC), apresenta as características próprias desta categoria de direitos: é intransmissível«, vitalício e vocacionalmente perpétuo, não se extingue pelo não uso, é essencialmente extrapatrimonial. Ora, o direito à firma (ou à denominação) é transmissível, não é vitalício nem vocacionalmente perpétuo, extinguindo-se em circunstâncias várias, inclusive durante a vida do titular e por não uso, e é essencialmente patrimonial. Penso que o mais razoável é ver as firmas e denominações como bens imateriais (coisas incorpóreas) passíveis de ser objeto de direitos reais, designadamente do direito de propriedade. É igualmente a conceção dominante em Itália e na França.
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Capítulo VI – Dos sinais distintivos das empresas e de produtos52 Introdução: Tradicionalmente, os sinais distintivos de empresas (logótipos e recompensas, normalmente) e de produtos (marcas, denominações de origem e indicações geográficas), em particular as marcas (bem como as firmas e os velhos nomes e insígnias de estabelecimentos), são agrupados sob a designação genérica «sinais distintivos do comércio». Todavia, não são sinais privativos do comércio (em sentido jurídico ou extra jurídico), não individualizam somente empresas mercantis e produtos da mercancia; e não são atos de comércio objetivos, nem são utilizáveis apenas por comerciantes. Daí também a sua inclusão, não no Direito Comercial propriamente dito, mas num outro autónomo ramo jurídico que se vem chamando Direito Industrial ou Direito da Propriedade Industrial, essencialmente codificado entre nós no Código da Propriedade Industrial. É um facto a ligação íntima (embora nem sempre essencial ou incindível) 51 52
Vide nota 35. Continuação de Abreu, Coutinho de, paginas 343 a 399 e seguintes
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 dos sinais distintivos com as empresas – prevalecentemente comerciais. O CPI vigente (tal como faziam os anteriores) fala de propriedade a propósito de vários sinais distintivos – artigo 22.º4, 273.º, 276.º, alínea c), 279.º, 305.º, n.º4 e 310.º. E refere-se diversas vezes, mais amplamente, à propriedade industrial (abrangendo não só os sinais distintivos mas também as patentes, os modelos de utilidade, os desenhos ou modelos. Identicamente procedem outros diplomas normativos, como o CC (artigo 1303.º) ou a CUP. Não obstante, a natureza jurídica dos direitos sobre estes bens imateriais tem sido controvertida: estas coisas incorpóreas são objeto de direito de propriedade (embora com regime especial relativamente à propriedade de coisas corpóreas); os respetivos titulares gozam de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição destas coisas, «dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas» (artigo 1305.º CC).
Logótipos: 1. Noção: durante longas décadas, o direito português pôs à disposição dos interessados dois sinais especificamente individualizadores das empresas (em sentido objetivo): nome de estabelecimento e insígnia de estabelecimento (sinal nominativo o primeiro, dominantemente figurativo ou emblemático o segundo). O logótipo, enquanto sinal distintivo registável, fez a sua estreia no CPI 1995, mantendo-se no CPI atual de 2003. Logótipo é signo suscetível de representação gráfica para distinguir entidade ou sujeito e, eventualmente, estabelecimento(s) deste (artigos 304.º-A e 304.º_B CPI). O logótipo serve primordialmente para distinguir sujeitos (individuais ou coletivos, públicos ou privados: artigo 304.º-B) que prestem serviços ou produzam bens destinados (total ou parcialmente) ao mercado (artigo 304.º-A, n.º2 COI). O sujeito titular de logótipo não tem de ser empresário. Não tem de ter empresa ou estabelecimento. Quando tenha estabelecimento (comercial ou não), é natural (mas não necessário) que use o logótipo (também) para individualizá-lo e distingui-lo de outros estabelecimentos (em função que era típica do nome e/ou da insígnia). Isto mesmo é assinalado na 2.ª parte do n.º2 do artigo 304.º-A CPI: o logótipo pode «ser utilizado, nomeadamente, em estabelecimentos, anúncios, impressos ou correspondência». Podemos pois dizer que o logótipo é normalmente sinal distintivo bifuncional: distingue sujeitos e estabelecimentos. Curiosamente, um mesmo sujeito, que só pode ter uma firma ou denominação, pode ter vários logótipos; nos dizeres da lei, «a mesma entidade pode ser individualizada através de diferentes registos de logótipo» (artigo 304.º_C, n.º2 CPI). Talvez para permitir que um sujeito com diversos estabelecimentos individualize cada um com logótipo distinto. Mas parece que uma mesma entidade, tendo ou não estabelecimento, tenha um ou vários estabelecimentos, pode aceder à pluralidade de logótipos. 2. Composição e princípios informadores: a. Elementos componentes: «O logótipo pode ser constituído por um sinal ou conjunto de sinais suscetíveis de representação gráfica, nomeadamente por elementos nominativos, figurativos ou por uma combinação de ambos». (artigo 304.º-A, n.º1 CPI). São possíveis, portanto, logótipos: Nominativos: compostos por nomes ou palavras, incluindo os nomes, firmas ou denominações, completos ou abreviados, dos respetivos titulares; Figurativos: formados por figuras ou desenhos; e Mistos: combinando elementos nominativos e figurativos.
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Nisto aproximam-se das marcas (cide artigo 222.º, n.º1 CPI) e afastam-se das firmas e denominações (sempre nominativas). Também como vale para as marcas, os logótipos poderão ser constituídos por outros sinais representáveis graficamente. b. Princípio da capacidade distintiva: enquanto sinais distintivos de entidades, os logótipos hão-de ser constituídos de modo a poderem desempenhar função individualizador-diferenciadora (artigo 304.º-A, n.º2 CPI). Por falta de capacidade distintiva, não são registáveis logótipos compostos exclusivamente por sinais referidos a entidade, estabelecimento, atividade ou produto que sejam específicos, genéricos ou descritivos, ou se tenham tornado de uso comum, ou sejam forma natural, funcional ou esteticamente necessária de algo, ou sejam cores simples (não combinadas de forma peculiar) – artigo 304.º-A, n.º1, alíneas b) e c), que remete para o artigo 223.º, n.º1, alínea b) a e) CPI. Contudo, são excecionalmente registáveis logótipos constituídos tão-só por sinais específicos, genéricos, descritivos ou de uso comum quando estes, antes do registo e depois do uso e publicidade que deles haja sido feito (como logótipos), tenham adquirido caráter distintivo (secondary meaning) – artigo 304.º-H, n.º2 CPI. c. Princípio da verdade: o logótipo não tem de conter indicações acerca da natureza, composição, atividade, etc. do respetivo titular (pode ser inteiramente fantasioso). Mas se contiver, tais indicações ou referências hão-de ser verdadeiras; não é registável um logótipo decetivo ou enganoso (artigos 304.ºH, n.º3, alínea d), n.º5, alíneas a) e b), 304.º-I, n.º1, alínea d) e n.º3, alínea c) CPI). d. Princípio da novidade: para cumprir a função individualizador-diferenciadora, o logótipo de um sujeito deve ser distinto, inconfundível ou novo relativamente a logótipos de outros sujeitos. Nos termos do artigo 304.º-I, n.º1, alínea a) CPI, é fundamento de recusa do registo «a reprodução ou imitação, no todo ou em parte, de logótipo anteriormente registado por outrem para distinguir uma entidade cuja atividade seja idêntica ou afim à exercida pela entidade que se pretende distinguir, se for suscetível de induzir o consumidor em erro ou confusão». (também a alínea f)). Um logótipo não é novo relativamente a outros quando, atendendo às respetivas grafia e/ou sonoridade, figuração ou ideografia (consoante a composição dos logótipos) – mormente dos núcleos caracterizantes –, o consumidor médio não consegue distingui—los, antes os confunde, tomando um pelo outro e um sujeito por outro ou, não os confundindo, embora, crê erroneamente referirem sujeitos especialmente relacionados. Deflui o citado artigo 304.º-I, n.º1, alínea a) CPI que a novidade dos logótipos é exigida tão-só em relação a entidades que exercem atividades idênticas ou afins (atividades concorrentes) – vale aqui o chamado princípio da especialidade; sujeitos com atividades diferentes podem ter logótipos iguais ou semelhantes. Mas há exceções. É fundamento de recusa do registo de logótip de ele ser confundível com um anterior que goze de prestígio em Portugal, ainda que pertença a um sujeito exercendo atividade não concorrente, quando o
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 logótipo posterior pudesse beneficiar indevidamente do caráter distintivo u do prestígio do logótipo anterior, ou pudesse prejudica-los (artigo 304.º-I, n.º2, remetendo para o artigo 242.º CPI). Por outro lado, mesmo quando as respetivas atividades são idênticas u afins, pode um sujeito conseguir o registo válido de logótipo confundível com um já registado em nome de outro sujeito: desde que este nisso consinta (artigo 304.º-J, remetendo para o artigo 243.º CPI). e. Princípio da licitude (residual): segundo o artigo 304.º-I, é fundamento de recusa do o registo de logótipo a reprodução ou imitação, total ou parcial, de marca anteriormente registada por outrem para produtos idênticos ou afins aos produzidos ou fornecidos pela entidade que pretende o registo de logótipo, se for suscetível de induzir o consumidor em erro ou confusão (n.º1, alínea b)); a infração de outros direitos de propriedade industrial ou de direitos de autor (n.º1, alínea c), n.º3, alínea b)); a reprodução ou imitação, sem autorização, de firma ou denominação alheias, ou de parte característica das mesmas, se for suscetível de induzir o consumidor em erro ou confusão (n.º3, alínea a)). Por sua vez, mando o artigo 304.º-H CPI que seja recusado o registo de logótipo que contenha certos símbolos, brasões, emblemas ou distinções, salvo autorização (n.º3, alíneas a) e b)); «expressões ou figuras contrárias à lei, moral, ordem pública e bons costumes» (n.º3, alínea c)); (tão-só) a Bandeira Nacional ou alguns dos seus elementos (n.º4); ou, entre outros componentes, a Bandeira Nacional, quando isso seja suscetível de provocar desrespeito ou desprestígio dela ou de algum dos seus elementos (n.º5, alínea c)). 3. Conteúdo e extensão do direito sobre logótipo: em princípio, o direito de propriedade sobre logótipo constitui-se pelo registo no INPI. O titular de logótipo pode, naturalmente, usá-lo para se dar a conhecer (artigo 304.º-A, n.º2 CPI). E tem, nos termos do artigo 304.ºN CPI, «o direito de impedir terceiros de usar, sem o seu consentimento, qualquer sinal idêntico ou confundível, que constitua reprodução ou imitação do seu [logótipo]» Bem entendido, os terceiros estão impedidos de usar, em atividade económica, signos confundíveis em função distintiva (dos sujeitos, de estabelecimentos, de produtos) – artigo 334.º CPI; por outro lado, o uso destes signos só é proibido quando suscetível de induzir os consumidores em erro ou confusão (ressalva-se, porém, a hipótese de o logótipo ser de prestígio). Mais analiticamente, a proteção do logótipo registado traduzse principalmente no seguinte: o respetivo titular tem legitimidade para reclamar contra pedido de registo (feito por outrem) de logótipo ou outro sinal não novos (artigo 17.º CPI), bem como para requerer judicialmente a anulação do registo de tais sinais (artigos 304.º-R, n.º1, 266.º, n.º1, e 239.º, n.º1, alínea b) CPI); o respetivo titular tem direito de exigir judicialmente que os terceiros deixem de usar os referidos sinais (artigo 304.º-N CPI) e, sendo caso disso, o indemnizem (artigo 338.º-L CPI); a propriedade de logótipo é tutelada contraordenacionalmente (artigo 334.º CPI). 4. Transmissão de logótipos: sendo os logótipos sinais que distinguem primordialmente sujeitos dir-se-ia serem intransmissíveis ou, tal como vale tradicionalmente para as firmas, transmissíveis tão-somente com estabelecimentos a que se achem ligados. Não é assim, hoje… Segundo o artigo 304.º-P CPI, um logótipo não usado em estabelecimento pode (como a marca) ser transmitido autonomamente (desvinculado de qualquer outro bem),
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 salvo se tal for suscetível de induzir os consumidores em erro quanto à individualização do transmissário. É o que resulta do n.º1 (em confronto com o n.º2): «Os registos de logótipo são transmissíveis se tal não for suscetível de induzir o consumidor em erro ou confusão». Haverá possibilidade de indução em erro ou confusão quando, por exemplo, o logótipo contém nome, firma ou denominação do transmitente. Diz, por sua vez, o n.º2: «Quando seja usado num estabelecimento, os direitos emergentes do pedido de registo ou do registo de logótipo só podem transmitir-se, a título gratuito ou oneroso, com o estabelecimento, ou parte do estabelecimento, a que estão obrigados». E, transmitindo-se um estabelecimento, transmite-se naturalmente com ele o respetivo logótipo – salvo se este contiver nome, firma ou denominação do titular, caos em que é necessária convenção (expressa ou tácita): artigos 304.º-P, n.º3, e 35.º, n.º1 CPI. A transmissão de logótipo por ato entre vivos «deve ser provada por documento escrito» (artigo 31.º, n.º6 CPI) – normalmente o documento que enforma a transmissão do estabelecimento, quando aquele com este seja transmitido. 5. Extinção do direito sobre o logótipo: o registo de logótipo é nulo, segundo o artigo 304.ºQ, n.º1 CPI, nas hipóteses previstas no artigo 33.º, n.º1 CPI, ou nos casos em que o registo tenha sido concedido com violação do disposto nos n.º1, 3, 4 e 5 do artigo 304.º-H (proibições absolutas de registo). «A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado» (artigo 33.º, n.º2 CPI) e a respetiva declaração tem de ser feita por tribunal (artigo 35.º, n.º1 CPI). O registo é anulável quando na sua concessão tenha sido desrespeitado o disposto no artigo 304.º-I (proibições relativas de registo) – artigo 304.ºR, n.º1 CPI. A ação de anulação pode ser proposta pelo Ministério Público ou qualquer interessado (artigo 35.º, n.º2 CPI) no prazo de dez anos a contar da data do despacho de concessão do registo; mas o direito de ação não prescreve se o pedido de registo tiver sido feito de má fé (artigo 304.º-R, n.º2 e 3 CPI). O registo de logótipo caduca quando tiver expirado o seu prazo de duração ou por falta de pagamento de taxas (artigo 37.º, n.º1 CPI). E caduca também, nos termos do artigo 304.º-S CPI: «a) Por motivo de encerramento e liquidação do estabelecimento ou de extinção da entidade; «b) Por falta de uso do logótipo durante cinco anos consecutivos, salvo justo motivo». A 1.ª parte da alínea a) do artigo 304.º-S é muito estranha. O logótipo repita-se, é sinal que distingue primordialmente sujeito ou entidade; o sujeito, se possuir estabelecimento(s), tem a faculdade (não a obrigação) de nele(s) (ou em alguns deles) usar o logótipo. Com pode, então, caducar o registo por causa do encerramento e liquidação de estabelecimento em que o logótipo não era usado, ou de estabelecimento em que era usado mas mantendo o sujeito outro ou outros estabelecimentos (com uso atual ou potencial do logótipo), ou do único estabelecimento ou de todos os estabelecimentos do sujeito (que usava nele(s) o logótipo) quando, ainda nesta hipótese, ele tem possibilidade de adquirir ou constituir estabelecimento e de nele (ou a propósito dele) voltar a usar (antes de cinco anos volvidos) o logótipo? Por antinomia lógica e normativa desse preceito com o sistema disciplinador dos logótipos, deve o mesmo ser interpretado revogatoriamente. O titular de logótipo pode também renunciar ao respetivo direito (artigo 38.º CPI).
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Marcas: 1. Noção, espécies, funções: com respeito à noção, diremos simplesmente que as marcas são signos (ou sinais) suscetíveis de representação gráfica destinados sobretudo a distinguir certos produtos de outros produtos idênticos ou afins. Esta definição afasta-se um pouco da que decorre de diversos atos normativos. Diz, por exemplo, o artigo 222.º, n.º1 CPI: «A marca pode ser constituída por um sinal ou conjunto de sinais suscetíveis de representação gráfica (…), que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas». Ora, produtos ou serviços é redundante. Os produtos são bens que resultam da produção, da atividade produtiva – bens materiais ou corpóreos e bens imateriais ou serviços. Por outro lado, os bens assinalados por uma determinada marca não têm de ser de uma empresa; podem ser produtos de não-empresa, e produtos (ainda que idênticos ou afins) de mais que uma empresa. Por outro lado ainda, não visam em regra as maras individualizar certos bens de determinados sujeitos relativamente a quaisquer bens de outros sujeitos; vigora também aqui, ainda que com derrogações, o chamado princípio da especialidade. Tendo em conta a natureza das atividades a que se ligam, fala-se de marcas de Indústria: assinalam produtos da indústria transformadora e extrativa; Comércio: assinalam bens comercializados por grossistas e retalhistas; Agricultura: assinalam os produtos da agricultura em sentido amplo; Serviços: assinalam atividades do chamado setor terciário. (Artigo 225.º, alíneas a), b), c) e e) CPI). Atendendo aos elementos componentes, pode falar-se de marcas: Nominativas: constituídas por nomes ou palavras; Figurativas: formadas por figuras ou desenhos; Constituídas por letras, números, ou cores, marcas mistas: juntam elementos nominativos e figurativos, ou letras e números, etc.; Auditivas: constituídas por sons representáveis graficamente; Tridimensionais ou de forma: com três dimensões – comprimento, altura e volume; Simples: constituídas por um só elemento, nominativo ou figurativo, etc.; e Complexas: constituída por vários elementos, do mesmo género ou não. (Artigos 222.º e 223.º, n.º1, alíneas b) e e) CPI). Olhando agora para os possíveis titulares destes sinais, começaremos por referir que as macas tanto podem pertencer a empresários (sujeitos de empresas em sentido objetivo) como a não empresários. Tradicionalmente, as leis da maior parte dos países permitiam a titularidade de marcas individuais registadas somente a empresários. Em Portugal, o CPI 1940 já atribuía o direito de usar marcas aos artífices assalariados (não empresários, portanto). A possibilidade de não empresários obterem o registo de marcas ficou alargada depois do Decreto-Lei n.º 40/87, 27 janeiro, que alterou esse CPI. No atual CPI, o artigo 225.º começa por afirmar que «o direito ao registo da marca cabe a quem nisso tenha legítimo interesse, designadamente(…)». Também o Estado (entendido em sentido amplo) pode ter marcas para produtos de organismos não empresariais (artigo 224.º, n.º2 CPI). Por sua vez, é prevista a hipótese de
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 «o agente ou representante do titular de uma marca registada num dos países membros da União [de Paris] ou da OMC mas não registada em Portugal pedir o registo dessa marca em seu próprio nome(…)» (Artigo 226.º CPI). É de interpretar amplamente agente ou representante, de modo a abranger mandatários, comissários, agentes propriamente ditos, concessionários, etc. Ora, sabemos já que estes sujeitos (ou alguns deles) não têm sempre de ser empresários. Ao lado das chamadas marcas individuais é costume colocar as marcas coletivas. Não significa isto, porém, que a propriedade destas marcas seja coletiva ou de uma pluralidade de sujeitos. Na verdade, cada marca coletiva pertence a um só sujeito – mas que há-de ser entidade coletiva. Outra nota caracterizadora essencial destas marcas: são usadas para bens produzidos, por norma, por diversos e autónomos sujeitos. Os artigo 228.º CPI dividem as marcas coletivas em marcas de associação (pertencem a associações de pessoas singulares e/ou coletivas e são ou podem ser usadas pelos respetivos associados) e em maras de certificação ou de garantia (pertencem a pessoas coletivas que controlam a existência de determinadas qualidades em produtos ou que estabelecem normas técnicas a que eles ficam sujeitos). Quanto ao regime de proteção, há que distinguir as marcas registadas (artigo 224.º, n.º1 CPI) das marcas não registadas, de facto ou livres – devendo ainda acrescentar que as marcas notórias e as de prestígio, mesmo quando não registadas, gozam de proteção especial (artigos 24.º e 242.º CPI). Retornemos à noção de marcas. Começámos por dizer que elas têm por função primordial distinguir produtos. Mas distingui-los como? Em si mesmos, ou relacionandoos com determinada fonte produtiva ou de proveniência? Segundo a conceção tradicional e dominante (pelo menos até há pouco), a função distintiva das marcas equivale essencialmente ou sobretudo a uma (jurídica) função de indicação ou proveniência dos produtos – as marcas indicam que determinados bens provêm de determinada origem (constante). Origem por alguns autores entendida de forma estrita – uma empresa – e de modo alargado por outros, atendendo aos fenómenos das marcas coletivas (de associação), de grupo e das cedidas em licença (não exclusiva). Ainda segundo a conceção tradicional-dominante, a função de indicação de origem é (ou era) a única (ou a única essencial) função das marcas juridicamente tuteladas (as chamadas funções publicitárias e de garantia de qualidade seriam tão-só indireta ou reflexamente protegidas). Todavia, cede se ergueram vozes pondo em causa a função de indicação de origem das marcas (não necessariamente para nega-la, mais para negar o caráter essencial ou fundamental de tal função). E disse-se que a marca é muitas vezes um sinal anónimo, sem qualquer menção ao titular ou à empresa, que uma mesma marca pode ser usada (para produtos idênticos ou semelhantes) por diferentes empresas de um grupo, por diversas empresas a título de licença, etc. Para pôr em questão a tradicional função de origem: ela falha claramente nas marcas coletivas de certificação (artigo 230.º CPI), bem como nos casos em que é legítimo dois ou mais sujeitos não ligados por quaisquer relações jurídico-económicas usarem a mesma marca para produtos idênticos ou semelhantes (artigos 243.º e 267.º CPI). Posto isto, dizemos que a função distintiva das marcas não se confunde ou identifica com a de indicação de origem ou proveniência. Esta, embora deva continuar a ser reconhecida, é apenas parte – e nem sempre presente – daquela. Pela outra parte, sempre presente, as marcas destinam-se a distinguir os produtos através de outras mensagens. Como qualquer signo, as marcas comunicam
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 ideias por intermédio de mensagens. O titular e/ou os utentes legítimos da marca (os emissores) comunicam por ela ao público (recetor) algo respeitante a produtores (referente) – comunicam, no mínimo, que os produtos assinalados com a marca são produtos individualizados e distintos (ainda que a diferença resida tão-só no signo…) de outros bens da mesma espécie (marcados – com outros signos –, ou não). Será a função distintiva a única função jurídica das marcas? Olhe-se para o artigo 242.º, n.º1 CPI. A proteção alargada das marcas de prestígio é agora assegurada por específico normativo relativo às marcas. Proteção essa que rompe com o princípio da especialidade, não se limitando a prevenir ou impedir riscos de confusão. Já não está (ou não está tanto) em causa a tutela da função distintiva das marcas – a distância económico-setorial entre os produtos do titular de marca de prestígio e os produtos de terceiro que adota sinal idêntico ou semelhante pode ser de tal modo grande que se torna impossível justificar a ilicitude deste segundo sinal por ele violar a função distintiva daquela marca. O que está em causa é a tutela diretiva e autónoma da função atrativa ou publicitária excecional (ou função evocativa de excelência) das marcas de prestígio. Embora radicadas em determinados produtos, estas marcas ganham asas e libertam-se em grande medida da função distintiva, aparecendo com símbolos de excelência. Outra questão: têm também as marcas uma função de garantia de qualidade direta e autonomamente tutelada pelo Direito? A resposta tradicional é negativa. A função de garantia de qualidade não seria autónoma, seria tão-só uma função derivada da função distintiva, mais precisamente da função de indicação de proveniência – garantindo a marca a constância da proveniência dos produtos, garante consequente e reflexamente a constância (tendencial) da qualidade dos mesmos produtos (o produtor, querendo conservar e aumentar a clientela dos produtos marcados, tenderá muito provavelmente a manter as qualidades essenciais desses bens); de resto, o produtor não estaria impedido de alterar a qualidade dos produtos marcados. Nós respondemos afirmativamente. Por um lado, não se vê como possa negar-se uma autónoma função de garantia relativamente às marcas coletivas de certificação (função essa que não tem que ver com a de indicação de origem) – artigos 230.º e 231.º, n.º1, alínea a) CPI. Por outro lado, agora quanto às marcas individuais, há que ter em conta a alínea b) do n.º2 do artigo 269.º CPI: o registo caduca se, após a ata em que o registo foi efetuado, «a marca se tornar suscetível de induzir o público em erro, nomeadamente acerca da natureza, qualidade e origem geográfica desses produtos ou serviços, no seguimento do uso feito pelo titular da marca, ou por terceiro com o seu consentimento, para os produtos ou serviços para que foi registada». O preceito, note-se, não impõe uma constância qualitativa em sentido estrito. São naturalmente permitidas melhoras qualitativas; e também não são ilícitas pioras não essenciais ou sensíveis de qualidade. Ilícitas são apenas as diminuições de qualidade suscetíveis de induzir o público em erro, isto é, as deteriorações qualitativas sensíveis e ocultas ou não declaradas ao público. Assim, havemos de concluir que também as marcas individuais cumprem uma função de garantia de qualidade autonomizável da função distintiva.
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Vide nota 35
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Secção III – O Registo Comercial 29.º - O registo comercial: evolução e funcionamento
Origem e evolução: os antecedentes do registo comercial dos nossos dias ocorreram em Itália, no século XV: origem que coincide com a do próprio Direito Comercial, o que mostra a estreita ligação entre as disciplinas respetivas. A situação de comerciante era, no início, estritamente pessoal. Assumia, deste modo, uma grande importância a sua matrícula, a realizar em câmaras ou conselhos das diversas cidades. Daí decorria a qualidade de comerciante, com a subsequente aplicabilidade do estatuto mercantil. No tocante a sociedades, institui-se, primeiro, o registo das comanditas: tratava-se, desta feita, de consignar e de dar a conhecer as situações nas quais alguém se associava aos riscos do comércio. Se, num primeiro momento, a necessidade do registo comercial foi uma decorrência de auto organização dos comerciantes, cedo se deu uma recuperação do processo por parte dos nascentes Estados nacionais. O fenómeno foi claro em França cuja legislação comercial, pioneira, seria depois a matriz de numerosas reformas. Assim, nos finais do século XVI, surgiu a Ordennance de Blois, que obrigava à inscrição dos estrangeiros. Seguiu-se o Código Marillac, de 1604, que atingia já todos os sócios de sociedades comerciais. Finalmente, o Código Savary, de 1673, previa medidas generalizadas de registo comercial. O Código de Comércio de Napoleão, de 1807, mais não fez do que retomar, de modo limitado, o esquema colbertiano: um registo limitado para certos atos. Apenas a Lei de 18 março 1919 estabeleceria, em França, um registo comercial. Na Alemanha o registo comercial foi mais lento: surgiu por zonas e por cidades, ao longo do século XVIII. Cabe ao ADHGB de 1861, proceder a uma regulamentação geral. Particularmente importante foi o facto de, nalguns casos, a qualidade de comerciante depender de inscrição no registo. Além disso, a aparência registal veio a ser protegida, pela negativa (não produção de efeitos de factos sujeitos a registo e não registados) e pela positiva (produção de efeitos de ocorrências não verificadas mas registadas). A evolução subsequente tem seguido o rumo de um alargamento dos factos comerciais sujeitos a inscrição e de um cinzelamento da tutela da boa fé pública, daí resultante. Na atualidade, o registo comercial surge diversamente estruturado e conformado, nos diversos países.
A experiência portuguesa: o Direito português conhecia a inscrição de factos mercantis já no Direito antigo. A legislação pombalina prestou, a essa matéria, especial atenção. O registo comercial moderno surgiu com o liberalismo, designadamente através do Código Ferreira Borges. Dispunha no seu artigo 209.º: «Na secretaria de cada um dos tribunaes de commercio ordinarios haverá um registo público de commercio, guardado pelo respectivo secretario, responsável, como oficial público, pela exactidão e legalidade de seus assuntos». Estavam sujeitos a registo: A matrícula dos comerciantes; As escrituras ou cartas de dotes celebradas com negociantes;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Os pactos sociais; As autorizações ou procurações comerciais; As escrituras de comerciantes ou com comerciantes que contiverem hipotecas; Todos os outros atos previstos por lei. A estrutura prevista no Código Ferreira Borges foi sendo dobrada por outros registos. Assim, a Lei 22 junho de 1867, relativa às sociedades anónimas, criou, para estas, um registo central, ao qual foram depois submetidas as sociedades por quotas. Este registo, que funcionava na Repartição do Comércio, era especialmente vocacionado para as denominações sociais: será o antepassado do atual RNPC. O Código Veiga Beirão retomou a matéria, sem inovar grandemente. Mantinha o registo comercial em cada um dos tribunais de comércio e a cargo do respetivo secretário. O Regulamento, aprovado pelo Decreto 15 novembro 1888, especificava que tal sucedia nas comarcas de Lisboa e do Porto cabendo, nas outras comarcas, aos delegados do procurador da República ou agentes do Ministério Público. Segundo o artigo 46.º, o registo comercial compreendia: A matrícula dos comerciantes em nome individual; A matrícula das sociedades; A matrícula dos navios mercantes; A inscrição dos atos sujeitos a registo. Os atos sujeitos a registo constavam do artigo 49.º. O princípio da tutela da boa fé pública, sob a forma de “publicidade negativa”, resultava já do importante artigo 57.º. De todo o modo, o Código Veiga Beirão era muito parco em regras sobre o registo comercial. O essencial constava do já referido Regulamento de 15 novembro 1888, que vigoraria por 70 anos. O artigo 89.º deste Regulamento remetia a matéria do registo comercial, supletivamente, para o registo predial. A evolução do registo comercial foi demorada: manteve-se no Código Veiga Beirão até ao DecretoLei n.º 42 644, 14 novembro 1959. Na mesma data, foi publicado o Decreto n.º 42 645, que constituiu o Regulamento do Registo Comercial. Foram, então, revogados os citados artigos do Código Comercial, bem como o Regulamento de 15 novembro 1888. Colocando a matéria em termos modernos, o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º1 42 644 proclamava: «O registo comercial tem essencialmente por fim dar publicidade à qualidade de comerciante das pessoas singulares e coletivas, bem como aos factos jurídicos especificados na lei, referentes aos comerciantes e aos navios mercantes».
O Código do Registo Comercial de 1986: o Código do Registo Comercial foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 403/86, 3 dezembro. Este diploma pretendeu dar lugar a um verdadeiro código e, portanto, a algo que assumisse, nas palavras do seu preâmbulo, «um carácter sistemático e sintético que legitime a sua designação». Para o efeito, retomou, no seu corpo, uma série de normas que constavam do Código do Registo Predial, o qual deixou de ser considerado diploma subsidiário. Foram ainda absorvidas regras antes inseridas no Regulamento: o novo Regulamento do Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 349/89, 13 outubro. As preocupações autonomistas do registo comercial foram demasiado longe. E assim, o referido Decreto-Lei n.º 349/89 aproveitou para alterar o CRC, reintroduzindo, ainda que em moldes
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 curiosamente restritivos, o registo predial como subsidiário. Teríamos, aqui uma especial classe de aplicação subsidiária: a que se justificasse pela sua «indispensabilidade no preenchimento de lacunas». Trata-se, na realidade, de uma linguagem impressiva e justificativa, mais do que técnica e prescritiva. O CRC foi alterado sucessivamente. Temos centenas de alterações, divididas por trinta e um diplomas, dos quais nove após a grande reforma de 2006. Apesar do essencial das reformas, nos últimos anos, ter de facto contribuído para simplificar o sistema do registo, boa parte das vantagens conseguidas perde-se perante a dificuldade em conhecer e interpretar a sucessão de leis. No seu conjunto, o Direito Português do registo comercial é, de quanto conhecemos, o mais alargado e prolixo, num fenómeno que mais se agrava se tivermos em conta a necessidade de o concatenar com o RNPC, com o CSC e ainda com múltipla legislação avulsa54. O CRC abrange mai de uma centena de artigos repartidos por 9 capítulos. O CRC dispõe, ainda, de diplomas complementares. Assim temos a tabela de emolumentos do registo comercial, aprovada pela Portaria n.º 996/98, 25 novembro e alterada pela Portaria n.º 684/99, 24 agosto e o Regulamento do Registo Comercial, aprovado pela Portaria n.º 883/89, 13 outubro. Este último foi revogado pelo artigo 61.º, alínea f), Decreto-Lei n.º 76-A/2006, 29 março. Um novo regulamento foi adotado pela Portaria n.º 657-A/2006, 19 dezembro e n.º 234/2008, 12 março.
O funcionamento do registo comercial (antes de 2006): o registo comercial opera perante serviços públicos dependentes do Ministério da Justiça e especialmente preparados para o efeito: as conservatórias do registo comercial, em Lisboa, Porto, Coimbra e Funchal e as conservatórias do registo comercial e predial, nas restantes circunscrições. As conservatórias tinham âmbitos territoriais de competência próprios: deixaram de os ter em 1 janeiro 2007, nos termos precisados pelo artigo 43.º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, 29 março. Parte destes preceitos foi transitoriamente ressalvada pelo artigo 53.º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006. Em cada conservatória existe, para efeito de registo – artigos 56.º CRC e 1.º RegRC – um livro diário, no qual são anotados cronologicamente todos os pedidos de registo e respetivos documentos e fichas de registo e pastas, ordenadas pelos números que lhes caibam na ordem cronológica. As fichas tinham cores diferentes, consoante se destinem ao registo de comerciantes individuais, sociedades, cooperativas, empresas públicas, agrupamentos complementares de empresas e agrupamentos europeus de interesse económico, estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada e outras entidades sujeitas a registo – artigo 2.º, n.º3 RegRC. As pastas tinham indicado, no seu exterior, o nome, firma ou denominação da entidade visada e o respetivo número de ordem – artigo 3.º RegRC. De modo a permitir a busca de quaisquer elementos há, nas conservatórias, ficheiros nominativos e numéricos: os nominativos são constituídos por verbetes com os nomes das entidades matriculadas, por ordem alfabética: os numéricos englobam verbetes ordenados pelo numero de identificação da pessoa coletiva ou entidade equiparada ou pelo número fiscal, quando se trate de comerciante ou entidade equiparada ou pelo número fiscal, quando se trate de comerciante individual – artigo 4.º RegRC. Sobrevindo mudança voluntária de sede para localidade pertencente a área de conservatória diversa da do registo, a pasta é remetida oficiosamente para a nova conservatória, anotando-se o facto nos verbetes. O registo comercial é, intrinsecamente, um registo de pessoas. Assim, a base de funcionamento de registo opera a partir da matrícula. Esta visa a identificação do comerciante individual, da pessoa coletiva ou do estabelecimento individual de 54
O Direito Alemão, campeão da matéria registal, continua, nesse domínio, a viver com uns quantos parágrafos, no HGB, simplificados, a partir de 1 janeiro 2007, com a introdução do registo eletrónico.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 responsabilidade limitada: a cada uma dessas entidades corresponderá uma só matrícula, em nome do princípio da unidade – artigo 9.º RegRC. A matrícula deve conter os números do registo, de identificação ou fiscal, consoante os casos, a referência a ser provisória ou definitiva, o nome completo e a firma, quando for diferente, no caso dos comerciantes individuais e a firma ou denominação, nas restantes hipóteses – artigo 62.º CRC e 11.º a 13.º do RegRC. Seguem-se, depois, as inscrições, que devem ter os requisitos gerais e os requisitos especiais enunciados nos artigos 15.º e 16.º RegRC: elas extratam, dos documentos depositados, os elementos que definam a situação jurídica em jogo – artigo 63.º CRC. O registo comercial não se limita, todavia, à matrícula, inscrições e averbamentos. Segundo o artigo 55.º, n.º1 CRC «O registo compreende: «a) O depósito de documentos; «b) A matrícula, inscrições e averbamentos respeitantes a comerciantes individuais, sociedades, cooperativas, empresas públicas, agrupamentos complementares de empresas, agrupamentos europeus de interesse económico e estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada; «c) Publicação nos jornais oficiais». Os registos deve ser efetuados no prazo de 15 dias, por ordem de anotação – artigo 54.º CRC. Os documentos respetivos devem ser depositados em pasta própria – artigo 59.º, n.º1 – não podendo, sem isso, ser efetuado o registo. As inscrições podem ser provisórias por natureza, nos casos do artigo 64.º CRC; passando a definitivas, elas conservam o número de ordem inicial. As inscrições provisórias caducam no prazo de 6 meses – artigo 18.º CRC: a contar dos 15 dias subsequentes à prática do ato, margem essa na qual podia ser exercido o direito de reclamar. Os factos a averbar surgem na enumeração do artigo 69.º. Diversos factos sujeitos a registo devem, ainda, ser publicados – artigo 70.º CRC. A publicação é, em princípio, feita no Diário da República. Efetuado o registo, o conservador promove oficiosamente a publicação, a expensas do interessado – artigo 71.º. O registo comercial é público. E assim, qualquer pessoa pode pedir certidões dos atos do registo e dos documentos arquivados, bem como obter informações verbais ou escritas sobre o conteúdo de uns e outros – artigo 73. CRC. As inexatidões e os registos indevidamente lavrados devem ser retificados por iniciativa do conservador ou a pedido de qualquer interessado – artigo 81.º CRC; hoje artigo 82.º, n.º1. Do despacho do conservador que recuse qualquer ato de registo, nos termos requeridos, cabia reclamação para o próprio conservador – artigo 98.º: para tanto, o prazo é de 30 dias – artigo 99.º, ambos CRC. Tem o conservador 5 dias para apreciar a reclamação, proferindo despacho fundamentado a reparar ou a manter a decisão – artigo 100.º, n.º1. Havendo indeferimento cabe recurso hierárquico para o Diretor Geral dos Registos e do Notariado, a interpor no prazo de 30 dias – artigo 101.º, n.º1; tem este 90 dias para decidir. Sendo a decisão desfavorável, cabe recurso contencioso para o tribunal de comarca, no prazo de 20 dias – artigo 104.º. Da sentença que assim se obtenha podem sempre recorrer, com efeito suspensivo, o funcionário recorrido, o Diretor Geral dos Registos e do Notariado e o Ministério Público – artigo 106.º; não há, em princípio, recurso para o Supremo – n.º4. Tudo estava montado como se a recusa fosse um direito subjetivo pessoal dos funcionários públicos envolvidos, a defender com todo o garantismo que a lei concede (por vezes) aos particulares.
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23.º - A reforma do registo comercial de 2006
Aspetos gerais: o Decreto-Lei 76-A/2006, 29 março, primacialmente virado para as sociedades comerciais, alterou profundamente o Código do Registo Comercial. Recorrendo ao preâmbulo, encontramos anunciadas diversas medidas relevantes para o registo. Assim: A possibilidade de praticar atos de registo on-line; A certidão permanente on-line; A redução e a clarificação dos custos da prática dos atos; A eliminação da competência territorial das conservatórias do registo comercial; A supressão de atos e práticas que não acrescentam valor; designadamente: reduzindo o número de atos sujeitos a registo e adotando a possibilidade de praticar atos através de um registo «por depósito»; A criação de um novo regime de registo de transmissão de quotas. A sistemática inicial do Código foi mantida. Apesar de se verificar uma alteração profunda em orientações básicas do diploma . radical mesmo, quanto às sociedades por quotas! – não houve o ensejo de elaborar um novo diploma. Devem ainda ter-se presentes dois condicionalismos que possibilitam uma reforma ambiciosa: A disponibilidade de meios informáticos, os quais podem facilitar radicalmente todas as tarefas de coordenação, pesquisa e disponibilidade da informação registal; A dimensão do País, que permite centralizar toda esta matéria, em vez de a manter dispersa por várias circunscrições. A efetivação das diversas operações de registo comercial, especialmente assentes na informática, e objeto do Regulamento do Registo Comercial, aprovado pela Portaria n.º 57A/2006, 29 junho, alterada, como se disse, pela Portaria n.º 1416-A/2006, 19 dezembro e n.º 234/2008, 12 março.
A eliminação da competência territorial das conservatórias: para efeitos do registo comercial, o País estava dividido em áreas encabeçadas por conservatórias. Cada uma delas tinha competência para a prática de atos: grosso modo, os levados a cabo por comerciantes individuais e por sociedades cujos estabelecimento principal e sede, respetivamente, se situassem nas suas circunscrições – artigos 24.º a 26.º CRC, versão de 1986. Paralelamente, o artigo 33.º do referido Decreto-Lei 76-A/2006 veio alterar o artigo 28.º da Lei Orgânica da Direção Geral dos Registos e Notariado. Segundo o novo n.º2 daquele preceito: «Os atos (…) podem ser efetuados e os respetivos meios de prova obtidos em qualquer conservatória do registo comercial, independentemente da sua localização geográfica». O n.º3 acrecenta:
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 «A competência para a pratica de atos referidos no número anterior pode ser atribuída a qualquer conservatória de registos, através de despacho do diretorgeral dos Registos e Notariado». A supressão da competência territorial das conservatórias é tornada possível pela criação de uma base de dados nacional (artigo 78.º-B): esta centraliza toda a informação relativa às entidades sujeitas a registo de tal modo que se torna indiferente o ponto concreto de recolha de informação – ou da sua disponibilização ao público. Ambas podem, de resto, ser também levadas a cabo por via informática. Acabando a competência territorial: desaparece o vício de inexistência, por realização do registo em conservatória incompetente. Donde a revogação do artigo 21.º.
Registo por transcrição e por depósito: ponto-chave do novo registo comercial é a contraposição entre o registo por transcrição e o registo por depósito (artigo 53.º-A, n.º1 CRC). Nestes termos: No registo por transcrição, o conservador procede à extratação dos elementos que definem a situação jurídica das entidades sujeitas a registo constante dos documentos apresentados (artigo 53.º-A, n.º2 CRC); No registo por depósito procede-se ao mero arquivamento dos documentos que titulam factos sujeitos a registo (artigo 53.º-A, n.º3 CRC). No Direito anterior, a regra era a do registo por transcrição, então dito, meramente, “registo”; o depósito reportava-se aos documentos na base dos quais era feito o registo, fazendo parte dos seus elementos. Eram objeto de depósito os documentos de prestação de contas. Apenas no registo por transcrição o conservador tem um papel ativo, assegurando-se da regularidade formal e substancial dos títulos que lhe sirvam de base (artigo 47.º CRC). No depósito, o conservador limita-se a verificar se o requerimento corresponde ao modelo, se foram pagas as taxas, se a entidade objeto do registo tem número de pessoa coletiva, se o representante tem legitimidade para requerer o registo, se foi feito o primeiro registo relativo à entidade em causa e se o facto está sujeito a registo (artigo 46.º, n.º2 CRC). A lei (artigo 53.º-A, n.º5 CRC) indica os factos que estão sujeitos a registo por (mero) depósito. Todos os outros seguem o esquema do registo por transcrição. Dada, porém, a extensão dos factos que passaram para o regime de depósito, mais fácil se torna indicar os da transcrição. Assim, registam-se por transcrição: Quanto a comerciantes individuais (artigo 2.º CRC), o início, a alteração e a cessação de atividade, as modificações do seu estado civil e regime de bens e a mudança do estabelecimento principal; Quanto a sociedades (artigo 3.º CRC), a constituição, a designação e a cessação de funções por qualquer causa que não seja a do recurso do tempo, dos titulares dos órgãos, a mudança de sede, as alterações do pacto, a dissolução, os liquidatários, o encerramento da liquidação e o regresso à atividade; Quanto a empresas públicas (artigo 5.º CRC), a constituição, a designação dos membros dos órgãos, as alterações dos estatutos e a extinção; Quanto a ACE (artigo 6.º CRC) e AEIE (artigo 7.º CRC) e a EIRL (artigo 8.º CRC), operem valorações similares, com adaptações.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Grosso modo, podemos efetivamente considerar que, nestes casos, há ainda uma margem de apreciação, por parte do conservador. Em todos os restantes – e são a generalidade, no tocante a sociedades – o registo é como que mecânico, assim se explicando o mero depósito dos elementos pertinentes. Por isso, apenas aos registos por transcrição: Se aplica o regime da nulidade (artigo 22.º CRC); Se manifesta o princípio da legalidade (artigo 47.º CRC); Pode haver recusa propriamente dita (artigo 48.º CRC) e não mera rejeição do pedido (artigo 46.º, n.º2 CRC). No registo por transcrição, procede-se à apresentação (artigo 46.º, n.º1 CRC); ele deve ser efetuado no prazo de 10 dias pela ordem de anotação ou da sua dependência (artigo 54.º, n.º1 CRC), ou no de um dia, se for pedida urgência (artigo 54.º, n.º2 CRC). Ele compreende a matrícula das entidades sujeitas a registo, as inscrições, os averbamentos e as anotações de factos a eles respeitantes (artigo 55.º, n.º1 CRC). No registo por depósito, procede-se ao arquivamento dos documentos visados e à respetiva menção na ficha de registo (artigo 55.º, n.º2 CRC).
O processamento do registo: o processo do registo, no formato resultante da reforma de 2006, percorre, em síntese, o seguinte caminho: O pedido do registo é formulado verbalmente, quando efetuado por pessoa que tenha legitimidade para o efeito (artigo 4.º, n.º1); Nos restantes casos, é feito por escrito, em modelo adequado (artigo 4.º, n.º2). Por seu turno, nas conservatórias existem (artigo 1.º, n.º1): a) Um diário em suporte informático; b) Fichas de registo com o mesmo tipo de suporte; c) Pastas de arquivo. Os registos por transcrição seguem a metodologia regulada nos artigos 8.º a 13.º. Assim: A matrícula deve conter o número, a natureza da entidade, o nome ou firma do comerciante individual ou a firma ou denominação da pessoa coletiva (artigo 8.º); O extrato das transcrições compreende certas menções gerais (artigo 9.º) e, eventualmente, especiais (artigo 10.º); Os averbamentos são explicitados (artigo 11.º). Quanto aos registos por depósito, há a salientar: Menções gerais: data, facto, nome ou denominação (melhor seria “firma”) (artigo 14.º), Menções especiais elencadas na lei (Artigo 15.º). Finalmente, o artigo 16.º determina que as notificações sejam efetuadas por carta registada.
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Papel da informática, apresentação por notário e documentos: no novo regime, a informática tem um papel decisivo. Assim: Os atos incluídos no registo por transcrição são efetuados em suporte informático (artigo 58.º, n.º1), arquivando-se os documentos (artigo 59.º); As publicações obrigatórias são feitas em sítio da Internet, de acesso público (artigo 70.º, n.º2); As certidões podem ser disponibilizadas em suporte eletrónico (artigo 75.º, n.º3) ou em sítio na Internet (artigo 75.º, n.º5); A requisição de certidões pode ser feita por via eletrónica (artigo 77.º, n.º3); A base de dados do registo comercial vem regulada, sendo de responsabilidade do Diretor-Geral dos Registos e do Notariado (artigo 78.º-B a 78.º-L). O recurso à informática na publicidade registal foi já objeto de regulamentação comunitária no campo das sociedades comerciais: a Diretriz n.º 2003/58/CE, 15 julho. Além disso, permite que os Estados introduzam registos na língua própria e numa qualquer outra língua da União. O pedido de registo é feito pelo interessado, ou apresentado diretamente pelo notário, na conservatória competente (artigo 28.º-A). Tratando-se de sociedade: apenas esta tem legitimidade para o pedido (artigo 29.º, n.º5), podendo, quando ela não o faça, qualquer pessoa solicitar junto do conservador a sua promoção (artigo 28.º-A, n.º1). Quanto aos documentos, temos a seguinte novidade: podem ser aceites, sem tradução, quando escritos em inglês, francês ou espanhol (leia-se: castelhano), quando o funcionário competente domine essas línguas (artigo 32.º, n.º2). Depende das áleas dos conhecimentos linguísticos dos funcionários; além disso, não se entende porque não admitir outros idiomas que o funcionário domine. No fundo, melhor seria, permitir aos funcionários a autenticação de traduções.
A impugnação de decisões: também o sistema de impugnação das decisões do conservador foi alterado: no sentido da eliminação dos passos inúteis e demorados. Assim, foi suprimida a figura da reclamação para o próprio conservador: nunca havia êxito. Da decisão de recusa da prática do ato de registo cabe (artigo 101.º, n.º1): Recurso hierárquico para o diretor-geral dos Registos e do Notariado; Impugnação judicial. Impugnada a decisão, o conservador profere, em 10 dias, despacho a sustentar ou a reparar a decisão (artigo 101.º-B, n.º1). Sendo sustentada, o diretor-geral decide em 90 dias (artigo 102.º, n.º1), podendo ser ouvido o conselho técnico, que se pronuncia em 60 dias (artigo 102.º, n.º2). Sendo o recurso hierárquico considerado improcedente, pode ainda o interessado impugnar judicialmente a decisão: tem 20 dias (artigo 104.º, n.º1). Da sentença cabe recurso, com efeito suspensivo, recurso esse que pode ser interposto pelo autor, pelo réu, pelo diretor-geral dos Registos e do Notariado e pelo Ministério Público (artigo 106.º, n.º1). Do acórdão da Relação não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (artigo 106.º, n.º4).
As reformas de 2007, de 2008 e de 2009: como foi referido, ainda a reforma de 2006 não havia assentado e nova reforma acudia: a aprovada pelo Decreto-Lei n.º8/2007, 17 janeiro. Vamos, agora, centrar a atenção no domínio do Registo Comercial: área onde o legislador
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 decidiu proceder «ao aperfeiçoamento de algumas disposições». Foram alterados 19 artigos do Codigo de Registo Comercial e aditado um novo. No essencial, as alterações visaram: Adaptar a terminologia à reforma de 2006, em pontos que, então, escaparam ao legislador; Resolver aspetos práticos, entretanto detetados; Harmonizar melhor as novas soluções. Nesse mesmo ano, o Decreto-Lei n.º 318/2007, 26 setembro, relativo à “marca na hora”, alterou o artigo 42.º CRC (prestação de contas). Segue-se o Decreto-Lei n.º 34/2008, 26 fevereiro, que atingiu o seu artigo 93.º-C (gratuitidade do registo e custas). O Decreto-Lei n.º 73/2008, 16 abril (sucursal na hora), modificou os artigos 17 e 58.º (línguas e termos). Três meses volvidos, o Decreto-Lei n.º 116/2008, 4 julho, que aprovou importantes medidas de simplificação, desmaterialização e desformalização de atos e processos na área do registo, alterou artigos, ainda aditando o artigo 94.º-A. Ainda nesse ano, o Decreto-Lei n.º 247-B/2008, 30 dezembro, relativo ao cartão de empresa, alterou mais artigos deste Código. Em 2009, a Lei n.º 19/2009, 12 maio, relativa a fusões transfronteiriças, modificou os artigos 3.º e 67.º-A e aditou-lhe o artigo 74.º-A. Menos de duas semanas depois, seguiu-se o Decreto-Lei n.º 122/2009, 21 maio, que veio facilitar as fusões, alterando os seus artigos 52.º e 53.º-A. E esse mesmo artigo 53.º-A, em conjunto com o artigo 57.º, foram depois atingidos pelo Decreto-Lei n.º 292/2009, 13 outubro.
31.º - O âmbito e os princípios do registo comercial O âmbito do registo comercial: o registo comercial visa dar publicidade à situação jurídica dos comerciantes individuais, das sociedades comerciais, das sociedades civis sob forma comercial e dos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada «tendo em vista a segurança do comércio jurídico» - artigo 1.º, n.º1 CRC. Trata-se, pois, de uma publicidade virada para a situação dos comerciantes ou entidades próximas (as sociedades civis sob forma comercial). O n.º2 do mesmo artigo alarga a publicidade comercial a entidades semelhantes a comerciantes: cooperativas, empresas públicas, agrupamentos complementares de empresas, agrupamentos europeus de interesse económico e outras pessoas singulares ou coletivas a ele sujeitas. Quanto a comerciantes individuais, estão sujeitos a registo – artigo 2. CRC: a) O início, alteração e cessação da atividade do comerciante individual; b) As modificações do seu estado civil e regime de bens; c) A mudança de estabelecimento principal. Como se vê, são visados elementos básicos sobre a qualidade de comerciante, sobre o regime de bens, decisivo para se valorar a cobertura patrimonial e sobre o estabelecimento principal. Por esta via, o próprio estabelecimento comercial, quando pertença de uma pessoa singular, tem alguma publicidade. As sociedades comerciais e as sociedades civis sob forma comercial têm numerosas situações sujeitas a inscrição comercial: veja-se a enumeração do artigo 3.º, n.º1 CRC. Em termos sintéticos, ficam abrangidos:
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 O próprio contrato de sociedade; A situação jurídica das quotas das sociedades por quotas; A designação e cessação de funções dos administradores, gerentes ou diretores; As modificações societárias. E são ainda grosso modo esses mesmos fatores que devem ser publicitados no tocante a sociedades anónimas europeias (artigo 3.º, n.º2), a cooperativas (artigo 4.º), a empresas públicas (artigo 5.º), a agrupamentos complementares de empresas (artigo 6.º), a agrupamentos europeus de interesse económico (artigo 7.º) e a estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada (artigo 8.º). Estão ainda sujeitas a registo as ações que possam interferir nas situações que devam ser inscritas, de acordo com a renumeração do artigo 9.º CRC. O artigo 10.º do mesmo Código submete também a registo comercial: a) O mandato comercial escrito, suas alterações e extinção (alínea a) ); b) A criação, a alteração e o encerramento de representação permanentes de sociedades, cooperativas, agrupamentos, complementares de empresas e agrupamentos europeus de interesse económico com sede em Portugal ou no estrangeiro, bem como a designação, poderes e cessação de funções dos respetivos representantes (alínea c) ); c) A prestação de contas das sociedades com sede no estrangeiro e representação permanente em Portugal (alínea d) ); d) O contrato de agência ou representação comercial, quando celebrado por escrito, suas alterações e extinção (alínea e) ); e) Quaisquer outros factos que a lei declare sujeitos a registo comercial (alínea f) ). Os atos sujeitos a registo constituem uma tipicidade fechada. Podemos admitir que outras leis submetem certos atos a registo comercial; podemos também aceitar que algumas formulações legais admitam interpretação extensiva: não é porém possível, por analogia ou com recurso a princípios, ampliar a lista em jogo. E paralelamente, há que recusar a redução teleológica da lista, de modo a retirar, dela, factos que, atentos os fins das normas em jogo, já nada ganhem com a inscrição comercial 55 . As normas que obrigam ao registo são puras regras de procedimento, historicamente condicionadas e cuja segurança se sobrepõe a quaisquer outras considerações. Estão, um tanto, na situação das normas relativas à forma dos atos. Fora isso, domina sempre a autonomia privada e a regra de que os efeitos jurídicos se produzem, na íntegra, logo que os competentes processos de formação da vontade se achem concluídos.
Os princípios do registo comercial; o princípio da instância : a estruturação jurídica do registo comercial fica mais clara com recurso à formulação dos grandes princípios que a regem. São eles:
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Por exemplo, poderia ser desejável submeter a registo comercial o contrato de concessão comercial ou o contrato de franquia; todavia e a menos que, em concreto, seja possível estabelecer que esses contratos envolvem no seu núcleo essencial, uma situação de agência, não há base legal para um dever de registo.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 O princípio da instância; O princípio da obrigatoriedade; O princípio da competência (só até 2007); O princípio da legalidade; O princípio do trato sucessivo. Todos eles comportam apenas uma parcela – ainda que significativa – das regras jurídicas em jogo, admitindo desvios e exceções. Segundo o princípio da instância, o registo comercial efetuase a pedido dos interessados. Apenas há registos oficiosos nos casos previstos pela lei – artigo 28.º CRC. O artigo 28.º-A, de 2006, prevê, todavia, a hipótese de apresentação pelo notário. O registo pode ser pedido pelos próprios, pelos representantes legais ou pelas pessoas que nele tenham interesse - art–go 29.º. Temos, ainda, também como novidade de 2006, a promoção de registos pelas sociedades (artigo 29.º -A). E o registo pode ainda ser solicitado por «mandatário com procuração bastante», por quem tenha poderes para intervir no respetivo título e – regra com grande alcance prático – por advogado ou solicitador cujos poderes de representação se presumem – artigo 30.º, n.º1 CRC. Nas hipóteses de reclamação ou de recurso, hierárquico ou contencioso, a lei é mais exigente com o título de representação – idem, n.º3.
O princípio da obrigatoriedade: segundo o princípio da obrigatoriedade, os interessados estariam adstritos a requerer a inscrição dos factos sujeitos a registo comercial. Trata-se de um princípio que comporta duas vertentes: A obrigatoriedade direta; A obrigatoriedade indireta. A inscrição é diretamente obrigatória nos casos referidos no artigo 15.º, n.º1, e 2 CRC. Estes números remetem para diversas alíneas dos artigos 3.º a 8.º, que indicam os factos sujeitos a registo. Verifica-se que a larga maioria desses factos está sujeita a registo. Os notários devem remeter às conservatórias competentes, todos os meses, a relação dos documentos que titulem factos sujeitos a registo obrigatório – artigo 16.º CRC. O incumprimento do dever de requerer a inscrição é punido com as coimas elencadas no artigo 17.º CRC. A inscrição torna-se, além disso, indiretamente obrigatória para todos os factos sujeitos a registo: eles só produzem efeitos perante terceiros depois da data da respetiva inscrição – artigo 14.º, n.1º CRC – ou depois da data da publicação, quando estejam sujeitos a registo e a publicação obrigatória – artigo 14.º, n.º1 CRC. Quanto às ações sujeitas a registo: o essencial delas não tem seguimento, após os articulados, enquanto não for feita prova de ter sido requerida a competente inscrição – artigo 15.º, n.º4. No que tange a procedimentos cautelares: a decisão não é proferida enquanto aquela prova não for feita – n.º4, in fine. Estamos perante encargos em sentido técnico: donde a obrigatoriedade indireta. Procurando dotar de publicidade registal toda uma série de situações jurídicas comerciais, o legislador seguiu a via de as privar de parte da sua eficácia, enquanto o registo não se encontrar efetuado. Resta acrescentar que, na sujeição ao registo comercial, resulta a especificidade máxima, perante os civis, de boa parte dos atos comerciais.
Os princípios da competência, da legalidade e do trato sucessivo: encontramos, depois, os princípios da competência, da legalidade e do trato sucessivo: eles poderiam ser reconduzidos
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 a um princípio da legalidade em sentido amplo, uma vez que decorrem de uma lógica subordinação da prática registal às coordenadas injuntivas do ordenamento. O princípio da competência foi suprimido em 1006: apenas se mantém, transitoriamente, nos termos do artigo 43.º Decreto-Lei n.º 76-A/2006, 29 março, conservando-se, entretanto, a inexistência, por via do artigo 44.4º do mesmo diploma. O princípio da competência determina que o registo de efetive na conservatória com cuja circunscrição territorial o facto a inscrever tenha uma conexão relevante. As regras da competência constam dos artigos 24.º e seguintes CRC. As sua observância é fundamental: de outro modo, os interessados não saberão onde se dirigir para alcançar as informações que pretendam. O desrespeito por este princípio recebe, da lei, uma sanção severa: o registo feito em conservatória territorialmente incompetente é considerado inexistente pelo artigo 21.º CRC. Mantemos as nossas reservas em relação a este apregoado vício da inexistência: a sanção deveria ter sido a da nulidade. Requerido o registo – e, após 206, tratando-se de registo por transcrição –, o conservador não se limita a inscrever passivamente. Ele é oficial e público e vai emprestar, à inscrição, o selo da verosimilhança estadual. Assim, segundo o artigo 47.º CRC, «A viabilidade do pedido de registo a efetuar por transcrição deve ser apreciada, em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificando-se especialmente a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos atos neles contidos». Paralelamente, o registo deve ser recusado nos casos seriados no artigo 48.º, n.º1 CRC56: Quando for manifesto que o facto não está titulado nos documentos apresentados (alínea b) ); Quando se verifique que o facto constante do documento já está registado ou não está sujeito a registo (alínea c) ); Quando for manifesta a nulidade do facto (alínea d) ); Quando o registo já tiver sido lavrado como provisório por dúvidas e estas não se mostrem removidas (alínea e) ); Quando, tendo a apresentação sido efetuada por telecópia, não derem entrada na conservatória, nos cinco dias úteis imediatos ao da apresentação, as fotocópias e documentos necessários ao registo (alínea g) ). Como se infere do n.º2 desse preceito, os casos de recusa são, em princípio, taxativos; nos restantes casos de óbice, o registo deve ser efetuado provisoriamente por dúvidas – artigo 49.º CRC. O legislador assegurou-se ainda de que o conservador funcionaria como auxiliar dos serviços de fiscalização das contribuições e impostos – artigo 51.º.
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Cujas alíneas a) e f) do mesmo preceito foram revogadas em 2006.
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32.º - Efeitos do registo comercial Generalidades; efeito presuntivo e regra da prioridade: o registo comercial visa dar publicidade a determinadas situações jurídicas comerciais. Trata-se de uma publicidade organizada pelo Estado, através de serviços públicos competentes e mais: de uma publicidade tornada, no essencial, obrigatória por lei. Compreende-se, a essa luz, que ele não se quede pelo mero aspeto informativo. Quem se submeta a registo há-de ter alguma vantagem. E quem adira ao que o registo proclame merecerá, também, uma certa proteção: decorre da fé pública. O primeiro efeito resultante do registo comercial é presuntivo. Nos termos do artigo 11.º CRC57: «O registo por transcrição definitivo constitui presunção de que existe a situação jurídica, nos precisos termos em que é definida». Este preceito comporta consequências práticas de relevo. Em qualquer circunstância, o interessado que apresente certidão de determinado facto inscrito fica exonerado de demonstrar a sua ocorrência e os seus contornos; inversamente: o contra-interessado terá de fazer prova em contrário, impugnando ainda o registo que considere erróneo – o que, só por si, já implica uma ação judicial. Cumpre ainda sublinhar que, hoje, as inscrições relativas às sociedades estão disponíveis on-line: basta indicar o competente número, em qualquer serviço público para que, de imediato, este aceda ao registo, com a presunção que dele emerge. A presunção derivada do registo comercial, de acordo com a regra geral do artigo 350.º, n.º2 CC, pode pois ser ilidida mediante prova em contrário. Trata-se de uma denominada presunção iuris tantum. Pode acontecer que, com referência às mesmas quotas ou partes sociais, surjam inscrições ou pedidos de inscrições incompatíveis. Prevalece o facto primeiro inscrito, nos termos do artigo 12.º CRC. O registo provisório vem tratado nos artigo 43.º, 44.º e 50.º.
Efeito constitutivo: no Direito Comercial funciona, de princípio, a regra da imediata eficácia dos diversos atos jurídicos. Os contratos devem, só por si, ser pontualmente cumpridos – artigo 406.º, n.º1 – enquanto os próprios efeitos reais se desencadeiam por mero efeito do contrato – artigo 408.º, n,º1, ambos do Código Civil. Em consonância com essas regras, o registo predial não tem, entre nós, eficácia constitutiva, excetuando o particular caso da hipoteca. No domínio do registo comercial, assim é igualmente, como princípio. O ato sujeito a registo e não registado poderá ter uma eficácia mais reduzida – vide artigo 13.º, n.º1 CRC – mas não deixa de existir enquanto tal. O registo assume, todavia, um efeito constitutivo no domínio das sociedades comerciais. Estas só adquirem a personalidade pelo registo – artigo 5.º CSC. Também os efeitos da fusão ou da cisão de sociedade só ocorrem aquando da sua inscrição – artigos 112.º e 120.º CSC – outro tanto sucedendo com a extinção – artigo 162.º, n.º2 CSC. Deve adiantar-se que o CSC, pela falta do cuidado posto na sua revisão, não for harmónico: não consignou o registo constitutivo no tocante às alterações do contrato de sociedade – artigo 88.º - e à transformação de sociedades – artigo 135.º, este revogado, ambos do CSC. Perante os princípios gerais do Direito Português, não parece possível alargar por analogia as situações de perigo constitutivo. O artigo 13.º, n.º2 CRC, numa demonstração de autonomia dogmática do Direito das Sociedades Comerciais deixa, todavia, margem para isso. Aida como hipótese de registo comercial
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Na redação do Decreto-Lei n.º 8/2007, 17 janeiro.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 constitutivo surge-nos a do artigo 3.º, n.º1, alínea f) CRC, na parte em que refere o penhor de quotas ou de direitos sobre elas; opera, então, o artigo 681.º, n.º2, in fine CC.
Efeito indutor de eficácia: a) A publicidade negativa: os atos sujeitos a registo comercial só produzem efeitos plenos depois de registados. Podemos distinguir aqui duas proposições distintas: O ato sujeito a registo e não registado não produz todos os eus efeitos: é a publicidade negativa, uma vez que da não-publicitação resulta uma diminuição de efeitos; O ato indevidamente registado ou incorretamente registado pode produzir efeitos tal como emerge da aparência registal: é a publicidade positiva, porquanto da mera publicitação resultam efeitos de outro modo inexistentes. Trata-se de uma situação legislativa muito interessante, que só foi alcançada na Alemanha, após prolongados debates e uma reforma legislativa. Entre nós, ela ocorreu mercê de contributos retirados do tradicional registo predial mas que, uma vez recebidos no campo mercantil, ganharam uma especial coloração. Segundo o artigo 14.º, n.º1 CRC, «Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo». Esse preceito complementa o artigo 13.º, n.º1 CRC, que determina: «Os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros». À partida, poderíamos construir a situação daqui emergente de uma de duas formas: Ou entendendo que os atos sujeitos a registo são atos de produção sucessiva complexa, de tal modo que estariam incompletos antes do registo: apenas com estes eles atingiriam a maturidade, produzindo efeitos plenos: será a teoria da compleitude; Ou aceitando que tais atos estão perfeitos; simplesmente, cedem perante o silêncio do registo; este, dotado de fé pública e pela omissão da inscrição, diz-nos que os atos não existem: será a teoria da publicidade (negativa). As consequências práticas são relevantes. Para a teoria da compleitude, o ato pura e simplesmente não está completo; assim ele é, por si mesmo, incapaz de produzir efeitos perante terceiros, seja qual for a situação. Já para a teoria da publicidade, a situação é diversa: o ato é por si, oponível erga omnes; simplesmente, dada a proteção da aparência, os terceiros que acreditem no silêncio do registo são protegidos: só que isso apenas sucederá se estiverem de boa fé. O artigo 14.º, n.º1 não teve o cuidado de completar «só produzem efeitos contra terceiros que, sem culpa, os desconhecessem, depois da data do respetivo registo» ou, pela negativa «não produzem efeitos perante terceiros de boa fé». Não obstante, parece-nos que essa solução se impõe, dadas as claras exigências do sistema. Assim:
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Os atos produzem os efeitos previstos na lei logo que intrinsecamente completos; O registo nulo produz efeitos, em certos termos, perante terceiros de boa fé – artigo 22.º, n.º4 CRPr; Em geral, só se justifica a proteção de que aja de boa fé, isto é, sem contundir, conscientemente, com regras jurídicas ou posições alheias. Podemos, pois, optar pela teoria da publicidade negativa: os atos sujeitos a registo não produzem efeitos, enquanto não estiverem registados, contra terceiros de boa fé, isto é, contra terceiros que, sem culpa, os ignorasse. Uma doutrina divulgada na Alemanha tem sido levada a fazer uma nova distinção. Estamos no campo negocial; a rapidez e a segurança do giro são fundamentais para os valores em presença. Deste modo, todos devem saber, à partida, com o que contar. Não basta que o terceiro de boa fé possa, perante a ausência de inscrição, agir como se não existisse o facto omissivo no registo: é necessário que outros terceiros possam assentar o seu comportamento nesse mesmo estado de coisas. Essa doutrina tem vindo a apelar, por isso e para a publicidade negativa, a uma ideia de confiança em abstrato: o simples facto de não inscrição levaria a proteger todos os terceiros, independentemente de distinções diferenciadoras. Arriscada via: como explica Canaris, por este caminho, a tutela da confiança deixará de assentar numa crença legítima para ser algo de artificial, alheio aos valores de origem. Os interesses comerciais que esta diferenciação da confiança iria tutelar ficam perfeitamente assegurados com a presunção geral de boa fé de que cada um beneficia. Na falta de inscrição, todos se presumem ignorar a verdadeira situação substantiva: esta é-lhes, pura e simplesmente, inoponível. Queda sempre em aberto, às partes interessadas, vir demonstrar que, afinal, o terceiro de má fé, não pode prevalecer-se da omissão registal. Fora isso ficciona-se o que resulta do registo ou melhor: ficciona-se que não existe o que dele não conste.
b) A publicidade positiva; as nulidades do registo : como referimos, o registo comercial assume um efeito indutor de eficácia, com publicidade positiva, sempre que um terceiro se possa prevalecer de um facto indevido ou incorretamente registado. Algo que não existe, mercê da fé pública registal, irá produzir efeitos apenas com base no registo. Na sequência de diversas vicissitudes que marcaram a transposição de regras do registo predial para o comercial, a lei portuguesa veio a tratar esta matéria a partir das nulidades do registo. Nos termos do artigo 22.º CRC: «1. O registo por transcrição é nulo: «a) Quando for falso ou tiver sido feito com base em títulos falsos «b) Quando tiver sido feito com base em títulos insuficientes para a prova legal do facto registado; «c) Quando enfermar de omissões ou inexatidões de que resulte incerteza acerca dos sujeitos ou do objeto da relação jurídica a que o facto registado se refere; «d) Quando tiver sido assinado por pessoa sem competência funcional, salvo o disposto no n.º2 do artigo 369.º CC;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 «e) Quando tiver sido lavrado sem apresentação. «2. Os registos nulos só podem ser retificados nos casos previsto na lei, se não estiver registada a ação de declaração de nulidade. «3. A nulidade do registo só pode, porém, ser invocada depois de declarada por decisão judicial com trânsito em julgado». A referência a registo «por transcrição» apenas surgiu com a reforma de 2006 e dentro da sua lógica. Os registos nulos só podem ser retificados nos casos previstos na lei e isso se não estiver registada a ação de declaração de nulidade – idem, n.º2. Além disso, a nulidade de registo somente é invocável depois de declarada por decisão judicial transitada – idem, n.º3. Perante outros vícios que não originem nulidade, o registo é considerado, simplesmente, inexato – artigo 23.º. Em princípio, a inexatidão dará lugar à retificação – artigos 81.º e seguintes, sempre do CRC. Havendo nulidade: nos termos do artigo 22.º, n.º4 CRC, «4. A declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da ação da nulidade». Temos, portanto: Um registo nulo, isto é, um registo que, por se ter envolvido nalgum dos vícios alinhados no artigo 22.º CRC, não corresponde à realidade substantiva; Um terceiro que, com base nele, adquire direitos; A título oneroso; De boa fé; E que registe, ele próprio, os correspondentes factos antes de ter sido registada a ação de nulidade. Desta feita, é por o registo dizer de mais que vai ser induzida uma eficácia puramente assente na publicidade. Donde a designação: publicidade positiva. Os requisitos têm explicações à luz do sistema. Assim: Um registo nulo: trata-se da base da construção; se o registo fosse válido, a eficácia derivaria da situação material subjacente, não se assistindo a uma indução de eficácia por via da publicidade; Um terceiro que adquira, com base nele: terá de haver uma causalidade, ainda que abstrata, entre o registo nulo e a atuação do terceiro, isto é: não se tornará necessário demonstrar que o terceiro tenha acedido ao concreto registo nulo e, por isso, tenha constituído os seus direitos: o simples facto de existir uma inscrição dotada de fá pública faz correr, contra o seu beneficiário, os riscos de toda a subsequente negociação comercia; a causalidade ficará estabelecida no momento em que o terceiro registe, ele próprio, os factos que lhe dizem respeito;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A título oneroso: estamos no domínio da tutela da confiança, em detrimento dos titulares dos interesses legítimos; assim, só se justifica o sacrifício quando a pessoa a tutelar tenha realizado o investimento de confiança, isto é: tenha , por via da confiança, suportado um esforço que não possa, sem injustiça, ser invalidado; De boa fé: o beneficiário da publicidade positiva deve desconhecer, sem culpa, a realidade substantiva protelada pelo registo; de outro modo, não pode recorrer à proteção do sistema; tal como sucede no ordenamento, também aqui se deverá tratar da boa fé subjetiva ética e não meramente psicológica: não basta desconhecer: é necessário que esse desconhecimento não seja provocado por negligência, descuido ou obtusidade inadmissível; E que registe, ele próprio, antes de ter sido registada a ação de nulidade: o próprio terceiro, para ser protegido, tem de dar cumprimento à necessidade do registo; de outro modo, haverá uma publicidade negativa que neutralizará a publicidade positiva adveniente do registo nulo.
c) A invocação da eficácia da aparência: a eficácia da aparência, seja na forma de publicidade negativa – artigo 13.º, n.º1 – seja na da positiva – artigo 22.º, n.º4 – é uma vantagem concedida aos terceiros e que estes poderão – ou não – aproveitar, consoante lhes convenha. Estamos no campo do Direito Privado. O ato sujeito a registo e não inscrito só produz efeitos entre as partes: porém, o terceiro poderá prevalecer-se dele. De certo, bastaria que estivesse de má fé para já não se poder acolher à tutela da aparência. Mas de modo algum se admite que o próprio, que não tenha registado, venha, daí, a retirar vantagem. No caso de publicidade positiva, assim é igualmente: apenas sucede que o terceiro que pretenda prevalecer-se da nulidade do registo, invocando-a, terá de munir-se da sentença prevista no artigo 22.º, n.º3. Se, porém, a nulidade não tiver de ser invocada, o terceiro poderá assentar a sua atuação na realidade substantiva, sendo certo que, nessa altura, os eus direitos nunca seriam prejudicados… pela declaração de nulidade do registo, pelo contrário. Nestas condições ocorre a Rosinentheorie ou teoria das passas de uva: pode o terceiro, num complexo não registado ou indevidamente registado, escolher alguns dos aspetos que lhe convenham, remetendo os outros para a realidade substantiva. Repugna uma resposta genérica: as situações podem ser muito diversas. O terceiro que tenha conhecimento de uma insuficiência registal não é obrigado a conhecer todas as irregularidades eventualmente perpetradas. Noutros casos, porém, o terceiro poderá ter uma representação fragmentária: prevalecer-se-á, então, do registo na medida em que lhe convier. Se for acatado o ónus material ou encargo de inscrição, os interessados ficarão ao abrigo de quaisquer surpresas. Tratando-se de vários factos distintos sujeitos a registo, pode o terceiro interessado prevalecer-se da falta de registo de algum ou alguns deles, sem o fazer em relação a todos.
O problema das invalidades substantivas: no registo predial, o artigo 17.º, n.º2 do respetivo Código tutela a confiança de terceiros perante as nulidades do registo. Com isso coloca-se uma interessante controvérsia doutrinária, no tocante às invalidades substantivas: quando estas não sejam refletidas pelo registo, poderão ser invocadas contra quem tenha aderido à aparência registal? As discussões aí havidas fazem apelo, ainda, ao artigo 291.º CC e provocaram, após uma sucessão de Acórdãos do Pleno do Supremo do Tribunal de Justiça fixando jurisprudência
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 em sentidos opostos (!), uma recente e lastimável intervenção legislativa, que colocou o registo predial português na cauda dos seus congéneres europeus. Pensamos que não há qualquer vantagem em trazer toda esta desnorteante turbulência para as fronteiras do registo comercial. As necessidades do comércio não o tolerariam. Quando seja perpetrada uma invalidade substantiva, o registo comercial que publicite o inerente ato é, pura e simplesmente, incorreto (falso). Ele não dá conta da verdade. Assim, o registo inerente é nulo, por via do artigo 22.º, n.º1, alínea a) CRC seguindo-se o regime normal da publicidade positiva. Os próprios valores do sistema exigem que não se introduzam, aqui, distinções não previstas por lei e que mais não fariam do que, sem critério, reduzir a tutela dispensada pela aparência registal.
A responsabilidade do Estado: o registo comercial tem eficácia substantiva genérica. Ao contrário do que sucede no registo predial, não encontramos, aqui, a eficácia meramente enunciativa: não é possível a inscrição de factos não sujeitos a registo, como se infere do artigo 48.º, n.º1, alínea c), in fine, CRPr. Todos os atos podem, pois, passar pelos crivos dos artigo 13.º, n.º1 e 22.º, n.º4 CRC, originando situações de publicidade positiva e negativa. Quando isso suceda, os particulares podem ser prejudicados. Aí cumpre distinguir: ou a incompleitude ou vício registais foram obra dos próprios particulares prejudicados sibi imputet, ou isso sucedeu por falha dos serviços, maxime por atraso. Nessas condições, cabe uma ação de responsabilidade civil contra o Estado, nos termos da Lei n.º 67/2007, 31 dezembro: por ato de gestão pública.
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45.º - Negócios preliminares e contratação mitigada
Negócios preliminares e intercalares: a celebração de contratos comerciais pode ser precedida pela celebração de negócios preliminares e intercalares. No Direito comum documentam-se, como exemplos, contratos-promessa, pactos de preferência, pactos relativos à forma e diversos outros. No Direito Comercial, para alem desses esquemas habituais, cabe apontar outros, relativos ao próprio tipo de atividade aí em jogo ou dela emergentes. Podemos mesmo acrescentar que, em virtude da complexidade de certas situações económicas, tais ocorrências são de extremo relevo. Podemos aí inserir diversas figuras de contratos de mediação, isto é: contratos concluídos com terceiros (os mediadores) que assumem a obrigação de proporcionar a celebração de ulteriores contratos definitivos. A qualificação de determinado ato comercial como preliminar ou intercalar tem interesse por permitir situá-lo com o contrato definitivo. A interpretação deve ser feita em função do fim prosseguido pelas partes, havendo, ainda, múltiplas implicações, quanto ao alcance e a própria validade dos atos emparelhados. Finalmente, os negócios preliminares ou intercalares de contratos comerciais têm, eles próprios, natureza comercial.
A contratação mitigada: o processo relativo à formação dum contrato é, hoje, completado com recurso a ideia de contratação mitigada. Numa visão mais tradicional, perante un efeito jurídico determinado, uma de duas: ou as partes o querem e celebram o correspondente contrato ou não querem, e nada fazem. Depois, num prisma já mais avançado, surge uma terceira possibilidade: é o contrato-promessa que admite ele próprio, várias graduações, em função, por exemplo, de haver ou não execução específica. A hipótese que agora se coloca é ainda mais flexibilizadora: poderia haver vínculos mais lassos do que a própria não executável especificamente, mas com relevância jurídica. A contratação mitigada daria azo a direitos e deveres diferentes dos do contrato clássico mas, de todo o modo, com natureza jurídica. No universo da contratação mitigada, podemos encontrar, como exemplos sedimentadas pela prática, as seguintes figuras: As cartas de intenção: trata-se de declarações que consignam uma vontade já sedimentada, mas que postulam, ainda, a prossecução de determinadas negociações; Os acordos de base: são acordos que surgem em negociações complexas, para consignar o consenso no essencial, uma vez obtido; as negociações prosseguirão depois, a nível técnico, para aplainar os aspetos secundários; Os protocolos complementares surgem como convénios acessórios que vêm regulamentar ou completar contratos nucleares. Todas estas figuras requerem, caso a caso, uma ponderação cuidada de modo a determinar, com precisão, os seus alcance natureza. Sendo sérias as diversas figuras produzem, sempre, efeitos jurídicos. Assim e de acordo com uma ideia meramente exemplificativa: As cartas de intenção sedimentam os aspetos nela consignados, obrigando as partes envolvidas – ou, pelo menos, o signatário da carta – a prosseguir as negociações a partir do que, nelas, esteja consignado;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Os acordos de base envolvem o dever de respeitar o que neles se exprima, mandando prosseguir as negociações de acordo com as linhas nele expressas; Os protocolos complementares resultam dos convénios nucleares, devendo ser processados de modo a não provocar a sua frustração. A expressão contratação mitigada pode enganar. Não se trata duma contratação mais fraca; trata-se, antes, duma contratação diferente. Os deveres que resultem das várias fórmulas, acima referidas poderão ser simples deveres de procedimento, de esforço ou de negociação. Mas eles existem e devem ser cumpridos. A negociação, no seu todo, funciona como um valor comercialmente relevante, que deve ser reconhecido e protegido pelo ordenamento. A grande duvida coloca-se perante as consequências do incumprimento. Quando uma parte se recuse a prosseguir as negociações, quid iuris? Pode o tribunal substituir-se ao faltoso ou deve este ser condenado em (mera) indemnização? Tudo depende da determinabilidade do contrato definitivo. Quando a carta de intenções ou o acordo de princípios estejam tão pormenorizados que, deles, se possa retirar o contrato a celebrar, pode haver execução específica. Quando a margem de indeterminação não possa ser suprida, a única solução para o incumprimento reside na indemnização compensatória: não pode o Tribunal substituir-se a particulares, negociando por eles.
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Secção III – A adesão a cláusulas contratuais gerais 46.º - O comércio e as cláusulas contratuais gerais
As cláusulas e o comércio: as cláusulas contratuais gerais têm um fundamento no Direito Comercial dos nossos dias. Assim, embora seja matéria fundamentalmente civil, não é possível passa-la sem tratamento numa exposição geral de Direito Comercial. De resto, boa parte dos casos concretos em que surgem aplicações do regime próprio das cláusulas contratuais gerais ocore no campo dos contratos comerciais. Mais precisamente nas áreas da banca, dos seguros e dos transportes. Historicamente, as primeiras cláusulas contratuais gerais utilizadas no tráfego filia-se comercial e, designadamente, na atividade dos banqueiros: elas correspondiam a “condições”, impressas nos livros de cheques em letras reduzidas e que articulavam deveres e cautelas do cliente. As cláusulas contratuais gerais praticadas pelos bancos vieram a desenvolver-se, no espaço alemão. Trata-se duma experiência importante, uma vez que o modelo alemão de lei geral sobre as cláusulas seria adotado, pelo legislador português, através do Decreto-Lei n.º 446/85, 25 outubro. Além disso, ele influenciaria decisivamente o Direito Comuntário, tendo originado uma Diretriz transposta para a nossa ordem interna através do Decreto-Lei n.º 220/95, 31 janeiro. Pois bem: toda esta influência de ordem geral terá, por certo, repercussões nas cláusulas usadas nos contratos comerciais, com relevo para a banca, os seguros e os transportes.
Dogmática básica: referenciada a origem comercial das cláusulas contratuais, cabe analisar o seu concreto regime, hoje vigente. Para tanto, vamos principiar pela sua dogmática básica: embora civil, ela tem, aqui, plena concretização. As cláusulas contratuais gerais traduzem fórmulas pré-elaboradas que proponentes ou destinatários indeterminados se limitam a propor ou a aceitar. Esta ideia decompõe-se em dois pontos essenciais: A generalidade: as cláusulas contratuais gerais destinam-se ou a ser propostas a destinatários indeterminados ou a ser subscritas por proponentes a destinatários indeterminados ou a ser subscritas por proponentes indeterminados; no primeiro caso, os utilizadores propõem a uma generalidade de pessoas certos negócios mediante a simples adesão às cláusulas contratuais gerais; no segundo, os utilizadores declaram aceitar apenas propostas que lhes sejam dirigidas nos moldes das cláusulas contratuais pré-elaboradas; podem, naturalmente, todos os intervenientes ser indeterminados, sobretudo quando as cláusulas sejam recomendadas por terceiros; A rigidez: as cláusulas contratuais gerais são acolhidas em bloco por quem as subscreva ou aceite; os intervenientes não têm, no plano dos factos,, a possibilidade de modelar o seu conteúdo, introduzindo, nelas, alterações. Não havendo generalidade, assistir-se-ia a uma simples proposta feita por alguém decidido a não aceitar contrapropostas enquanto, na falta de rigidez, decorreria um comum exercício de
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 liberdade negocial. Além das duas características apontadas, outras há que não sendo necessárias, surgem, contudo e com frequência, nas cláusulas contratuais gerais; assim: A desigualdade entre as partes: o utilizador das cláusulas contratuais gerais – portanto a pessoa que só faça propostas nos seus termos ou que só as aceite quando elas as acompanhem – goza, em regra, de larga superioridade económica e jurídicocientífica em relação ao aderente; A complexidade: as cláusulas contratuais gerais alargam-se por grande numero de pontos: por vezes, elas cobrem com minúcia todos os aspetos contratuais, incluindo a determinação da lei aplicável e o foro competente par dirimir eventuais litígios; A natureza formulária: as cláusulas constam, com frequência, de documentos escritos extensos onde o aderente se limita a especificar escassos elementos de identificação. As cláusulas contratuais gerais devem-se às necessidades de rapidez e de normalização ligadas às modernas sociedades técnicas e ao seu comércio. Não há que perder tempo em negociações relativas a atos correntes, enquanto as entidades que atuam com recurso às cláusulas devem, por razões que se prendem com o seu funcionamento, conhecer de antemão o tipo de vinculações a que vão ficar adstritas. Os abusos que tal estado de coisas potencia são evidentes. Os particulares que se limitem a aderir às cláusulas têm, logo à partida, uma escassa liberdade para o fazer. As cláusulas contratuais gerais ocorrem, com frequência, em espaços de monopólios ou de oligopólios, difundindo-se, mesmo fora delas, a áreas generalizadoras. De seguida, eles conhecem mal – ou não conhecem de todo – as cláusulas a que aderem. E por fim, o próprio teor das cláusulas é tal que os aderentes ficam desprotegidos perante o incumprimento do utilizador ou, simplesmente, perante o próprio lapso ou os azares da fortuna. Apesar dos pontos críticos acima formulados, as cláusulas contratuais gerais são uma necessidade. A realização efetiva de negociações pré contratuais em todos os contratos, particularmente nos comerciais celebrados com consumidores, iria provocar um retrocesso na atividade jurídico-económica. Muitos deles não têm, de resto e como se disse, qualquer regime legal. As cláusulas contratuais gerais devem, pois, manter-se, por necessárias. Não pode, porém, o Direito alhear-se delas: elas põem problemas diferentes, que a teoria geral do negócio jurídico, tal como ainda consta, por exemplo, do Código Civil Português de 1966 não estava, de todo, preparada para enfrentar.
Evolução; as leis específicas: o problema das cláusulas contratuais gerais foi-se implantando e desenvolvendo, ao longo do século, nos diversos países europeus. A evolução pode ser tipificada em cinco fases: Aplicação das regras gerais; Autonomização jurisprudencial; Pequena referência legal; Regime legal completo; Recondução do regime legal completo a grandes codificações.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A aplicação das regras gerais surge como solução natural enquanto o fenómeno das cláusulas for desconhecido ou enquanto se negar o seu reconhecimento. Os diversos problemas que elas suscitem devem, então, ser enquadrados à luz das regras comuns de celebração dos negócios: apela-se, nessa altura, para a boa fé, os bons costumes, o dolo, o erro ou a usura. As cláusulas contratuais gerais constituem um modo específico de formação dos contratos. Pretender aplicar-lhes as mesmas regras que funcionam perante uma comum negociação é injusto e inconveniente: equivale a tratar de modo igual o que tem diferenças. Não se infira daí que os princípios não possam solucionar o problema das cláusulas: eles podem ser concretizados duma ou doutra forma, facultando, consoante a via que tomem, regras diferenciadas. As soluções encontradas para as cláusulas contratuais gerais e que, mais tarde, tivera, consagração jurisprudencial ou mesmo legal resultaram da simples concretização dos princípios gerais. Mas a Ciência do Direito permite, hoje, uma maior ambição. A autonomização jurisprudencial, em regra antecedida ou acompanhada de um conveniente tratamento doutrinário, equivale à obtenção, através dos tribunais, de soluções particularmente adequadas ao problema das cláusulas. As decisões fundam-se nos princípios gerais, mas exprimem já um regime diferenciado, capaz de se analisar num corpo de regras autónomas. Dois aspetos foram conquistados por via jurisprudencial: A exclusão de cláusulas não cognoscíveis; A condenação de cláusulas despropositadas. As cláusulas contratuais gerais que, quando da celebração, os aderentes não conhecessem – não devendo ou podendo fazê-lo – não podem considerar-se incluídas no contrato. Por seu turno, as cláusulas despropositadas, que contra a corrente geral do negócio nele sejam introduzidas, frustrando os seus objetivos normais, devem ser invalidadas. A autonomização jurisprudencial caracterizou, por largo tempo, os sistemas vigentes em França e na Alemanha. A pequena referência legal equivale ao sistema italiano, na sua versão inicial: de facto, o correspondente Código Civil tomava medidas: Que conduziam à ineficácia das cláusulas impossíveis de conhecer por parte do aderente; Que incentivavam uma tomada de consciência por parte do aderente, quando se trate de adotar cláusulas que lhe possam ser prejudiciais. O esquema era importante e mostrava a atenção do legislador civil a um problema que, de facto, não mais podia ser ignorado pelo Direito. Mas não resolvia todas as questões. É irrealista pretender uma sua efetivação universal : basta pensar que as cláusulas contratuais gerais presidem, muitas vezes, a contratos celebrados por comportamentos concludentes, nos quais a possibilidade de conhecimento das cláusulas, ainda que exista, não é, na normalidade social, concretizada. Mesmo quando desconhecedor das desvantagens em que, eventualmente, possa incorrer, o aderente tende a ser levado a subscrever ou a aceitar as cláusulas contratuais gerais que se lhe apresentem, seja por necessidade, seja na esperança de não se deparar com quaisquer problemas que o obriguem a procurar apoio no texto do contrato. Há que enfrentar, com frontalidade, o verdadeiro problema: certas cláusulas são intrinsecamente injustas ou inconvenientes; e por isso, elas devem ser bloqueadas pelo Direito, seja qual for a consciência que delas houvesse, aquando da conclusão. Mais tarde, o Direito italiano desenvolveria um esquema completo atinente às cláusulas contratuais gerais, reconduzindo-o ao Código Civil.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Finalmente: a matéria foi deslocada par o Código do Consume de 2005. A experiência universal mostra assim que o tema das cláusulas contratuais deve ser enfrentado com um corpo adequado de regras, a tanto destinado e que essas regras não podem ater-se à mera forma de conclusão dos contratos, antes penetrando na sua própria substância, isto é, nas soluções que, uma vez concluídos, eles propiciem. Os diversos países têm vindo a promulgar leis a tanto destinadas, havendo mesmo recomendações internacionais nesse sentido. Não se entende como se poderia manter Portugal à margem desse movimento. As leis mais avançadas, consciente de que tudo deixar na iniciativa particular é insuficiente, têm ensaiado soluções duplas. Por um lado, permitem que o subscritor, em concreto, de cláusulas contratuais gerais possa, em juízo, apresentar a injustiça a que isso tenha conduzido, exigindo medidas. Por outro lado, facultam esquemas de apreciação abstrata da idoneidade das cláusulas, independentemente da sua concreta inclusão em contratos: este esquema funciona, designadamente, graças à intervenção de associações de tutela do consumidor e é exercido pelos tribunais. Em Portugal, cumpre já sublinhar uma excelente ação do Ministério Público, a quem a lei confere legitimidade para solicitar, aos tribunais, a apreciação abstrata das cláusulas. Consegue-se, assim, suprir uma certa fraqueza ainda denotada pelas associações de defesa do consumidor. Em qualquer dos casos, é particularmente importante a elaboração de listas de cláusulas que, por experiência, se tenham mostrado indesejáveis ou injustas. Tais cláusulas vieram sedimentar, aliás, muitas vezes, uma jurisprudência anterior. De outro modo, tudo redundaria na vaguidade, nociva ao tráfego jurídico. Finalmente, estamos perante uma quinta fase: a da recondução dos regimes legais das cláusulas contratuais gerais aos grandes códigos: seja ao Código Civil (Alemanha), seja ao Código do Consumo (Itália). Subsequentemente está uma preocupação de integração sistemática. As cláusulas não devem ser entendidas como um corpo estranho que dispõe de uma regulação compartimentada. Antes se trata de uma emanação do sistema, perfeitamente integrada nos grandes princípios do ordenamento. No Direito Português, o anteprojeto de Código dos Consumidores inclina-se para a integração da mate´ria relativa às cláusulas contratuais gerais.
47.º - A lei portuguesa das cláusulas contratuais gerais
Aspetos gerais: as referências doutrinárias, em Portugal, às cláusulas contratuais gerais, datam do princípio do século XX. Por influência francesa, falou-se em “contratos de adesão”; a locução é imprópria, por dar a ideia de um problema de conteúdo e não de modo de celebração. Melhor seria, pois, falar em contratos por adesão. A expressão germânica “condições negociais gerais” não é tecnicamente satisfatória: a “condição” tem um sentido técnico preciso que, aqui, não se verifica – o dos artigos 270.º e seguintes do Código Civil – e podem estar em causa atos não negociais (embora se trate sempre de contratos). Tão-pouco se deve falar em cláusulas gerais dos contratos, que propiciam novas confusões. Tudo visto, parece satisfatória a fórmula, proposta por Almeida Costa: cláusulas contratuais gerais, que consta da lei portuguesa. Referenciadas pela doutrina, as cláusulas contratuais gerais eram remetidas, na falta de outros esquemas, para certos princípios gerais capazes de as enfrentar, pelo menos em termos teóricos: estava-se, pois, numa fase de mero recurso às soluções comuns. Teria sido possível, com base nessas soluções, proceder a concretizações que, aos poucos, sedimentassem um corpo
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 autónomo de decisões, adaptadas às novas realidades. Isso não sucedeu. Num ambiente marado pelo escasso interesse da doutrina e por quase nula insistência dos interessados, verificou-se que os tribunais, instados apenas ocasionalmente sobre o assunto, davam por pacífico tudo quanto se contivesse nas cláusulas contratuais gerais. Tal panorâmica era danosa para os particulares e, em especial, para os consumidores. Por isso se reclamava uma intervenção legislativa cuidada, que solucionasse o problema e integrasse o que, pela evolução económico-social, podia ser considerado como uma verdadeira lacuna regulativa. O Decreto-Lei n.º 446/85, 25 outubro, aprovou o regime das cláusulas contratuais gerais. Já com a lei das cláusulas contratuais gerais em plena aplicação, surgiu a Diretriz n.º 93/13/CEE, 5 abril 1993, “relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores”. Trata-se de uma Diretriz do Conselho que assenta em considerandos esclarecedores deste modo sintetizados: Os diversos Estados-membros têm regras diversas sobre cláusulas contratuais gerais o que, no mercado único, provoca distorções na concorrência; Essa diversidade não acautela as posições dos consumidores que podem não conhecer as diversas leis; Finalmente, os tribunais devem dispor dos meios necessários para por cobro à aplicação de cláusulas abusivas. Os dois primeiros artigos da Diretriz fixam o âmbito de aplicação apresentam definições. O artigo 3.º, n.º1 define o que seja uma “claúsula abusiva”, nos termos seguintes: «Uma cláusula contratual que não tenha sido objeto de negociação individual é abusiva quando, a despeito da exigência de boa fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato». A apreciação é efetuada tendo em conta as diversas circunstâncias relevantes e o conjunto das cláusulas – artigo 4.º. As cláusulas devem ser redigidas com clareza – artigo 5.º. Segundo o artigo 7.º da Diretriz, os Estados-membros deverão providenciar para que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização de cláusulas abusivas. Eles podem – artigo 8.º - adotar ou manter disposições mais rigorosas, para assegurar um nível de proteção mais elevado para o consumidor. A Diretriz contém um anexo onde são seriadas as diversas cláusulas a proibir. Provavelmente, nem teria sido necessário alterar o Decreto-Lei n.º 446/85 para satisfazer a Diretriz. De todo o modo – e bem – sempre se fizeram alguns ajustamentos, de forma a melhor aproximar os diplomas. Além disso, aproveitou-se para introduzir aperfeiçoamentos recomendados pela experiência dos dez anos de vigência ada Lei Sobre Cláusulas Contratuais Gerais. Assim, surgiu o Decreto-Lei n.º 220/95, 31 agosto. A Diretriz veio misturar, com o das cláusulas contratuais gerais, um problema específico da defesa do consumidor: o dos contratos pré-formulados. Pode suceder que o empresário, independentemente do recurso às cláusulas, confronte o consumidor com um contrato vital para este: mas sem lhe dar qualquer hipótese de negociação: aceita ou recusa. A doutrina, de resto, já havia defendido a possibilidade de aplicar, aos contratos pré-formulados, regras próprias das cláusulas contratuais gerais. Sempre previdente, o legislador português antecipou-se à elaboração comunitária: na LDC, artigo 9.º, determina a aplicação, aos contratos rígidos ou pré-formulados, das regras sobre as cláusulas. Estava já cumprido o dever de transposição da Diretriz n.º 93/13, neste específico domínio. A ignorância dos funcionários de
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Bruxelas quanto ao Direito português levou a Comissão a pressionar o Governo para um pleno de transposição. Inexplicavelmente, este cedeu. Assim surgiu o Decreto-Lei n.º 249/99, 7 julho que introduziu no artigo 1.º LCCG a referência explícita nos contratos pré-formulados, indiferente ao facto de, com isso, atingir todos os contratos rígidos e não, apenas, os concluídos com consumidores. Há que proceder às competentes correções, por via interpretativa.
Âmbito e inclusão nos negócios singulares: a Lei das Cláusulas Contratuais Gerais visou uma aplicação de princípio a todas as cláusulas – artigo 1.º; o artigo 2.º específica que elas ficam abrangidas independentemente: Da forma da sua comunicação ao público; tanto se abrangem os formulários como, v.g., uma tabuleta de aviso ao público; D extensão que assumam ou que venham a apresentar nos contratos a que se destinem; Do conteúdo que as conforme, isto é, da matéria que venham regular; De terem sido elaboradas pelo proponente, pelo destinatário ou por terceiros. Algumas matérias ficariam, no entanto, necessariamente excluídas da disciplina das cláusulas contratuais gerais, seja por razoes formais – artigo 3.º, n.º1 alíneas a) e b) – seja em função da matéria – artigo 3.º, n.º1, alíneas c), d) e e), na redação hoje em vigor. As alíneas a) e b) – portanto: cláusulas aprovadas pelo legislador e cláusulas resultantes de Convenções Internacionais – são fáceis de entender: têm a ver com a hierarquia das fontes. As alíneas c), d) e e), já têm a ver com problemática do consumo. De facto, o diploma sobre cláusulas contratuais gerais funciona perante situações patrimoniais privadas que tenham a ver, de modo vincado, com o fenómeno geral da circulação dos bens e dos serviços, isto é: com o comércio privado. Retiraram-se, por isso, do seu âmbito de aplicação, as situações jurídicas públicas, bem como as situações familiares e sucessórias: as regulamentações coletivas do trabalho, por seu turno, que representam, já por si, uma particular proteção dos trabalhadores, foram respeitadas. A exceção do artigo 3.º, n.º1, alínea c) - «contratos submetidos a normas de Direito público» - deve ser limitada ao preciso alcance dessas normas: um contrato que tenha aspetos públicos e privados incorrerá, nestes últimos, na LCCG. Na margem deixada em branco pelos aludidos instrumentos laborais coletivos, na qual seja, pois, operante o recurso a cláusulas contratuais gerais, tem aplicação a LCCG, dentro do sistema das fontes jurídico-laborais: hoje dispõe expressamente nesse sentido o artigo 96.º do Código do Trabalho. Finalmente, deve sublinhar-se que, mesmo quando a LCCG não tenha aplicação, ela vale como instrumento auxiliar de aplicação, muito útil sobretudo quando se trate de concretizar conceitos indeterminados, como o da boa fé. Esta tem sempre aplicação assegurada em todo o ordenamento. O recurso a cláusulas contratuais gerais não deve fazer esquecer que elas questionam, na prática, apenas a liberdade de estipulação e não a liberdade de celebração. Assim, elas incluem-se nos diversos contratos que as utilizem – os contratos singulares – apenas na conclusão destes, mediante a sua aceitação – artigo 4.º LCCG; não são, pois, efetivamente incluídas nos contratos as cláusulas sobre que não tenha havido acordo de vontades. As cláusulas contratuais gerais inserem-se, no negócio jurídico, através dos mecanismos negociais típicos. Por isso, os negócios originados podem ser valorados, como os restantes, à luz das regras sobre a perfeição das declarações negociais: há que lidar com figuras tais como o erro, a falta de consciência da declaração ou a incapacidade acidental. Mas dada a delicadeza do modo de formação em jogo, não basta a mera aceitação exigida para o Direito
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 comum: e necessária, ainda, uma série de requisitos postos pelos artigos 5.º e seguintes LCCG. De facto, a inclusão depende ainda: De uma efetiva comunicação – artigo 5.º; De uma efetiva informação – artigo 6.º; Da inexistência de cláusulas prevalentes – artigo 7.º. O ponto de partida para as construções jurisprudenciais dos regimes das cláusulas contratuais gerais residiu na condenação de situações em que, ao aderente, nem haviam sido comunicadas as cláusulas a que era suposto ele ter aderido. Foi também a partir daqui que a doutrina iniciou uma elaboração autónoma sobre as cláusulas contratuais gerais. A exigência de comunicação vem especificada no artigo 5.º, que referencia: A comunicação na íntegra – n.º1; A comunicação adequada e atempada, de acordo com bitolas a apreciar segundo as circunstâncias – n.º2. Em casos-limite não haverá dúvidas: a remissão para tabuletas inexistentes ou afixadas em local invisível não corresponde a uma comunicação completa; a rápida passagem das cláusulas num visor não equivale à comunicação adequada: a exibição de várias páginas de um formulário, em letra pequena e num idioma estrangeiro, seguida da exigência de imediata assinatura não integra uma comunicação atempada. Já a assinatura de um clausulado, «bem impresso, perfeita e completamente legível, sendo as letras de tamanho razoável e razoável, também, o respetivo espaçamento» 58 satisfaz as exigências legais. O grau de diligência postulado por parte do aderente – e que releva para efeitos de calcular o esforço posto na comunicação – é o comum – artigo 5.º, n.º2, in fine: deve ser apreciado in abstrato, mas de acordo com as circunstâncias típicas de cada caso, com é usual no Direito Civil. O artigo 5.º, n.º3 dispõe sobre o melindroso ponto do ónus da priva: ao utilizador que alegue contratos celebrados na base de cláusulas contratuais gerais cabe provar, para além da adesão em si, o efetivo cumprimento do dever de comunicar – artigo 342.º CC. O cumprimento do dever de comunicar prova-se através de indícios exteriores variáveis, consoante as circunstâncias. Assim perante atos correntes e em face de clientes dotados de instrução básica, a presença de formulários assinados pressupõe que eles o entenderam; caberá, então, a estes demonstrar quais os óbices. Já perante um ancião analfabeto, impõe-se um atendimento mais demorado e personalizado. Estão em causa, para além de todos os outros, com especial acuidade, os setores da banca, dos transportes e dos seguros. E como tal dever, ainda que legal, é específico, o seu incumprimento envolve presunção de culpa, nos termos do artigo 799.º, n.º1 CC. A conclusão esclarecida do contrato – base de uma efetiva autodeterminação – não se contenta com a comunicação das cláusulas; estas devem ser realmente entendidas; para o efeito, a LCCG prevê uma obrigação de informar: o utilizador das cláusulas contratuais gerais deve conceder a informação necessária ao aderido, prestando-lhe todos os esclarecimentos solicitados, desde que razoáveis. Tanto o dispositivo do artigo 5.º como o do artigo 6.º correspondem a uma concretização do artigo 227.º, n.º1 CC. Para além de menos indeterminados, os deveres legais ora estabelecidos têm um regime diferente, ao contrário do imposto pelo artigo 277.º CC: o artigo 8.º permite, se bem se vir, ir mais longe. 58
RLx 14 novembro 1996, CJ XXI (1996) 5, 93-95 (94/1).
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 As partes que subscrevam cláusulas contratuais gerais podem, em simultâneo, acordar, lateralmente, noutras cláusulas específicas. Tal eventualidade nada tem de remoto, uma vez que a adesão se faz em globo, muitas vezes sem atenção a cada uma das cláusulas incluídas no formulário. O dispositivo do artigo 7.º determina uma prevalência das cláusulas específicas sobre as gerais: a lei, consciente de que, na presença de tais cláusulas, a vontade das partes se inclinou, com toda a probabilidade, para elas, sancionou o que seria já uma lição da experiência. A presença, num contrato celebrado com recurso a cláusulas contratuais gerais, de dispositivos que não tenham sido devidamente comunicados ou informados não corresponde ao consenso real das partes: ninguém pode dar o seu assentimento ao que, de facto, não conheça ou não entenda. Deve-se, contudo, ter presente que, mesmo nessas situações de falta de vontade há, em termos formais, um assentimento. Pelo Direito comum, várias seriam as soluções a encarar: elas iriam desde a mera indemnização – artigo 227.º, n.º1 – até à anulabilidade por erro – artigos 247.º e 251.º - passando pela ausência de efeitos, por falta de consciência da declaração – artigo 246.º. Segundo a LCCG, segue-se a solução mais fácil da pura e simples exclusão dos contratos singulares atingidos – artigo 8.º, alíneas a) e b). As alíneas c) e d), penalizam, por seu turno, as cláusulas surpresa e as que constem de formulários, depois da assinatura dos contratantes: em ambos os casos se verifica um condicionamento externo que inculca, de novo, a ideia da inexistência de qualquer consenso. A inserção, no contrato singular, das cláusulas referenciadas no artigo 8.º LCCG, põe o problema do contrato em causa. O princípio básico, no domínio das cláusulas contratuais gerais, é o do maior aproveitamento possível dos contratos singulares: estes são, muitas vezes, de grande relevo ou mesmo vitais para os aderentes, os quais seriam prejudicados quando o legislador, querendo pôr cobro a injustiças, viesse multiplicar as nulidades. O princípio em causa aflora nos artigos 9.º e 13.º. O artigo 9.º LCCG determina que, quando se assista à não inclusão de cláusulas contratuais gerais nos contratos singulares, por força do artigo 8.º estes se mantenham, em princípio. Nas áreas desguarnecidas pela exclusão, haverá que recorrer sucessivamente: Às regras supletivas aplicáveis; Às regras da integração dos negócios jurídicos. Caso estas soluções de recurso sejam insuficientes ou conduzam a resultados contrários à boa fé, a nulidade é inevitável – artigo 9.º, n.º2.
Interpretação e integração: o artigo 10.º LCCG dispõe sobre a interpretação e integração das cláusulas contratuais gerais, remetendo implicitamente para os artigos 236.º e seguintes CC. Esse preceito releva a dois níveis: Impede as próprias cláusulas contratuais gerais de engendrarem outras regras de interpretação; Remete para uma interpretação que tenha em conta apenas o contrato singular. Ambos os aspetos são importantes: o primeiro, por ter conteúdo dispositivo próprio; o segundo, por cortar cerce uma dúvida bem conhecida da doutrina especializada e que se prende com o perpétuo confronto entre as tendências generalizadora e individualizadora da justiça: a primeira tendência exigiria que as cláusulas contratuais gerais fossem interpretadas em si mesmas – sobretudo quando forem completas – de modo a obter soluções idênticas para todos os contratos singulares que se venham a formar com base nelas; a segunda, pelo contrário, abriria
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 as portas a uma interpretação singular de cada contrato em si, com o seguintes resultado, paradoxal na aparência: as mesmas cláusulas contratuais gerais poderiam propiciar, conforme os casos, soluções diferentes. O artigo 10.º LCCG aponta para a segunda solução. A prazo, isso deverá levar os utilizadores de cláusulas contratuais gerais que estejam particularmente ciosos da normalização a desenvolver, ao pormenor, os seus formulários, de modo a prevenir hiatos interpretativos. É uma vantagem. O artigo 11.º LCCG precisa a temática das cláusulas ambíguas remetendo, sem limitação, para o entendimento do aderente normal. Esse preceito faz ainda correr, contra o utilizador, os riscos particulares de uma ambiguidade insanável. Trata-se duma regra tradicional, expressa desde os romanos através de brocardos como ambiguitas contra stipulatorum e que se veio a consolidar na jurisprudência dos diversos ordenamentos. As leis modernas sobre cláusulas contratuais gerais têm-se limitado a codificá-la.
48.º - Cláusulas contratuais gerais nulas e proibidas
Nulidade e proibição: o cerne da LCCG reside na proibição de certas cláusulas. Tendo introduzido alguns desvios ao que resultaria do regime geral, a LCCG sentiu a particular necessidade de reafirmar o princípio geral da nulidade das cláusulas que contundam com a proibição – artigo 12.º. Mas desde logo se previu a hipótese de novos desvios («nos termos deste diploma»). Esses desvios inserem-se no regime da nulidade e têm a ver com o princípio do maior aproveitamento dos contratos singulares. A nulidade de cláusulas incluídas e contratos singulares deveria acarretar a invalidade do conjunto, salvo a hipótese de redução – artigo 292.º CC. Os inconvenientes para o aderente poderiam multiplicar-se, como se viu a propósito da não inclusão de certas cláusulas. Por isso se fixou o regime esquematizado que se segue – artigo 13.º, n.º1 e 2 e artigo 14.º LCCG: O aderente pode escolher entre o regime geral (nulidade com hipótese de redução) ou a manutenção do contrato; Quando escolha a manutenção, aplicam-se, na parte afetada pela nulidade, as regras supletivas; Caso estas não cheguem, faz-se apelo às normas relativas à integração dos negócios; Podendo, tudo isto, ser bloqueado por exigências da boa fé, posto o que se seguirá o esquema da redução, se for, naturalmente, possível; caso contrário, terá de se perfilar a nulidade. Em termos práticos, os dispositivos que determinam a nulidade das cláusulas contratuais gerais proibidas e que, depois, intentam a recuperação dos contratos singulares atingidos, só funcionariam perante negócios de vulto: precisamente aqueles em que pouco se recorrerá à prática da adesão. No domínio dos negócios correntes do dia-a-dia, nenhum consumidor iria mover uma custosa e sempre incerta ação para fazer valer nulidade de alguma cláusula. Apenas o reconhecimento de novos níveis nesta problemática permitirá enfrentar o problema da defesa dos consumidores; aí intervém a ação inibitória, prevista nos artigos 25.º e seguintes LCCG. Através desta ação, as entidades referidas no artigo 26.º - associações de defesa do consumidor,
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 outras associações e Ministério Público – podem pedir judicialmente a proibição das cláusulas vedadas, independentemente da contratação que tenham originado. No domínio de diversos contratos comerciais, a ação inibitória tem sido usada, com êxito, pelo Ministério Público, para conseguir a proibição de cláusulas contrárias à lei.
Sistema geral das proibições: a LCCG ficaria impraticável se não concretizasse, em moldes materiais, as cláusulas que considera proibidas. Porventura mais relevante do que as precisas enumerações é o sistema geral utilizado na proibição. A lei portuguesa distinguiu, para efeitos de proibições: As relações entre empresários ou os que exerçam profissões liberais, singulares ou coletivos, ou entre uns e outros, quando intervenham apenas nessa qualidade e no âmbito da sua atividade específica – artigo 17.º; As relações com consumidores finais e, genericamente, todas as não abrangidas pela caracterização acima efetuada – artigo 20.º. A distinção tem um duplo relevo. Por um lado, permite facultar a essas duas categorias uma proteção diferenciada, com maior adaptação à sua natureza. Por outro, deixa claro que a lei portuguesa dispensa uma proteção geral; assim se distingue da alemã, que só limitadamente se aplica entre comerciantes. As condições existentes em Portugal são diferentes, havendo que dispensar uma proteção ao próprio empresário. Aliás, no domínio comercial, as cláusulas contratuais gerais são, sobretudo, utilizadas por grandes empresas, nas suas relações com pequenos empresários, que merecem uma certa proteção. Deve-se ainda notar que a LCCG utilizou a categorias de empresários e não de comerciantes. Duas razões levaram a tal opção: Por um lado, a LCCG não se aplica apenas a comerciantes, seja nas suas relações entre si, seja nas relações deles com consumidores finais: o critério de aplicação não é o da comercialidade mas, sim, o do recurso a esquemas pré formulados; Por outro, a LCCG não se quis enredar nas discussões clássicas travadas, no último século, em torno da ideia de comerciante e de ato de comércio. O Direito Comercial tende a cingir-se à matéria classicamente mercantil, deixando escapar para o Direito Civil diversas figuras novas. Bastará lembrar, além das cláusulas contratuais gerais, o tema do Direito do Consumidor. Não obstante, parece indubitável que a quase totalidade dos atos que suscita o recurso às cláusulas contratuais gerais tem natureza mercantil. Desde logo isso sucede com áreas avassaladoras como as da banca, dos seguros e dos transportes. Mas ocorre, ainda, em numerosas outras áreas da distribuição e da prestação profissional de serviços. Na proibição das cláusulas, a lei adotou o seguinte sistema: Isolou as disposições comuns por natureza, aplicáveis a todas as relações; Elencou determinadas proibições relativas às relações entre empresários ou entidades equiparadas; Passando às relações com consumidores finais, a lei determinou a aplicação de todas as proibições já cominadas para as relações entre empresários e, além disso, prescreveu novas proibições.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Temos, assim, um princípio comum, assente na boa fé. Além disso, o dispositivo relativo aos empresários funciona como um mínimo aplicável em todas as circunstâncias; posto o que, tratando-se de relações com consumidores finais ou de situações não redutíveis às primeiras haverá que aplicar várias outras proibições. O teor geral das proibições segue as linhas seguintes: Nas relações entre empresário deixa-se, às partes, a maior autonomia, apenas se prevenindo, nesse domínio, que elas se exoneram da responsabilidade que, porventura, lhes caiba; Nas relações com consumidores finais, houve que ir mais longe: para além da intangibilidade da responsabilidade, foram assegurados outros dispositivos de proteção. Outro aspeto tecnicamente importante tem a ver com a estruturação das cláusulas contratuais gerais proibidas e assenta numa contraposição entre cláusulas absolutamente proibidas e cláusulas relativamente proibidas: As cláusulas absolutamente proibidas não podem, a qualquer título, ser incluídas em contratos através do mecanismo de adesão – artigos 18.º e 21.º LCCG; As cláusulas relativamente proibidas não podem ser incluídas em tais contratos desde que, sobre elas, incida um juízo de valor suplementar que a tanto conduza: tal juízo deve ser formulado pela entidade aplicadora, no caso concreto, dentro do espaço para tanto indiciado pelo preceito legal em causa – artigos 19.º e 22.º LCCG. A diferenciação fica clara perante o conteúdo das normas em presença; assim: O artigo 18.º LCCG proíbe, na alínea a), as cláusulas que excluam ou limitem, de modo direto ou indireto, a responsabilidade por danos causados à vida, à integridade moral ou física ou à saúde das pessoas; sempre que apareça uma cláusula com tal teor, ele será proibida e, daí, nula; O artigo 19.º LCCG proíbe, também, na alínea a), as cláusulas que estabeleçam, a favor de quem as predisponha, prazos excessivos para a aceitação ou rejeição das propostas; apenas em concreto e perante uma realização dos valores aqui figurados, se poderá afirmar a «excessividade de determinado prazo». Esta clivagem é estrutural e não se vê como evitá-la: enquanto nalguns casos a simples presença de determinada cláusula pode, desde logo, ser afastada, noutros tal só sucede quando a cláusula em causa assuma uma dimensão negativa; o mesmo prazo pode ser excessivo, ou não, consoante o tipo de contrato em jogo. O legislador procurou, depois, ir tão longe quanto possível na enumeração das diversas cláusulas absolutas ou relativamente proibidas; competirá, agora, à jurisprudência encontrar um meio termo entre as vertentes generalizadora e individualizadora da justiça. Uma questão complexa tem a ver com as vias de concretização utilizadas no domínio das cláusulas relativamente proibidas. Por um lado, estas dependem de juízos concretos; mas por outro não quis o legislador que se caísse em cláusulas de equidade. A referência ao «quadro negocial padronizado» pretende, justamente, explicitar que a concretização das proibições relativas deve operar perante as cláusulas em si, no seu conjunto e segundo os padrões em jogo. O núcleo do diploma é dado pela proibição de cláusulas contrárias à boa fé – artigo 15.º; o artigo 16.º procura precisar um pouco essa remissão indeterminada, ainda que com cuidado para não
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 contundir com a evolução futura do conceito. Surgem referenciados os dois aspetos, próprios da boa fé: a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente. Perante este aspeto fulcral, as diversas proibições são exemplificativas: em concreto a boa fé poderá determinar outras, numa situação evidente que a lei reconhece. A disposição é útil uma vez que o legislador de 1966 não soube prever uma remissão para a boa fé que faculte um controlo do conteúdo dos contratos: apenas a sua formação ou o exercício das obrigações – artigos 227.º, n.1º e 762.º, n.º2 CC – mereceram referencias. Jogam, aqui, todas as regras sobre a concretização da boa fé: pretende.se, sempre, uma solução justificada e controlada pela Ciência do Direito e não algo que se aproxime do arbítrio ou de uma equidade informe, no sentido de “justiça do caso concreto”. Resta acrescentar que a LCCG, após mais de quinze anos de aplicação, não deu azo à mínima insegurança na sua aplicação.
As cláusulas proibidas: o sistema geral acima sumariado desenvolve-se, depois, em catálogos de proibições específicas. Das combinações dos diversos parâmetros resultam as quatro hipóteses básicas contempladas na lei: Cláusulas absolutamente proibidas entre empresários e equiparados – artigo 18.º; Cláusulas relativamente proibidas entre empresários e equiparados – artigo 19.º; Cláusulas absolutamente proibidas nas relações com consumidores finais – artigo 21.º; Cláusulas relativamente proibidas nas relações com consumidores finais – artigo 22.º. Deve ter-se presente que as proibições fixadas para as relações entre empresários e equiparados se aplicam, também, nas relações com consumidores finais. O legislador português procurou ir tão longe quanto possível no aprontar das proibições exaradas na LCCG, numa orientação que, assumida desde o início, foi reforçada em 1995. Para tanto, não recorreu a uma metodologia de tipo dedutivo: antes aproveitou várias experiências científicas, firmadas na resolução de problemas concretos e, designadamente, na prática do AGBG alemão, sedimentado há duas décadas. De resto, as suas formulações são, seguramente, ais precisas do que as deste. As diversas proibições específicas relevam, fundamentalmente, do Direito das Obrigações. O artigo 18.º LCCG começa, nas suas alíneas a), b), c) e d) por proibir as chamadas cláusulas de exclusão ou da limitação da responsabilidade. O legislador pretendeu deixar, entre empresários, dominar uma autonomia privada alargada, mas com a responsabilidade inerente aos danos causados. Boa parte das regras agora firmadas transcende o domínio das cláusulas contratuais gerais, aplicando-se a todos os contratos, independentemente do seu modo de celebração. Vejam-se, neste sentido, os artigo 809.º e seguintes CC. A alínea a) visa evitar que se procure conseguir, por via interpretativa, aquilo que o utilizador não pode diretamente alcançar, com os seus esquemas. Na verdade, a hermenêutica dos contratos regula-se por regras próprias, constituintes por natureza e que se incorporam nos modelos finais de decisão. Deixá-lo ao sabor das cláusulas era permitir, afinal, manipular as decisões em jogo. Anote-se ainda que este preceito tem a ver com a interpretação de qualquer preceito, provenha ele, ou não, de adesão a cláusulas predispostas. As alíneas f), g), h) e i) têm a ver com os institutos da exceção do não cumprimento do contrato (artigos 428.º e seguintes), da resolução por incumprimento (artigos 432.º e seguintes), do direito de retenção (artigos 754.º e seguintes) e das faculdades de compensação (artigos 847.º e seguintes) e de consignação em depósito (artigo 841.º e seguintes,
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 todos do Código Civil). Trata-se de institutos que garantem ou reforçam o cumprimento das obrigações. A sua manutenção – com proibição, pois, de cláusulas que pretendam excluí-as – impõe-se pela mesma ordem de ideia que levou a vedar a eliminação da responsabilidade. De novo se deve ter em conta que a possibilidade de excluir estes institutos é, no mínimo, duvidosa já perante as próprias regras gerais. O legislador pretendeu, contudo, evitar dúvidas, neste ponto sensível. A alínea j) visa evitar obrigações perpétuas ou – o que seria ainda pior – obrigações cuja duração ficasse apenas dependente de quem recorra às cláusulas contratuais gerais. Pode sustentar-se – há, aliás, boas razoes nesse sentido – que só são viáveis obrigações perpétuas quando a lei o permita ou o imponha: de outro modo, as partes estariam a despojarse da sua liberdade. A lei esclareceu em definitivo esse ponto, no campo das cláusulas. A alínea j) pretende, por fim, prevenir que, a coberto de esquemas de transmissão do contrato, se venha a limitar, de facto, a responsabilidade. Bastaria, na verdade, transferir a posição para uma entidade que não tenha adequada cobertura patrimonial para, na prática, esvaziar o conteúdo de qualquer imputação de danos. O artigo 19.º LCCG reporta-se a proibições relativas no quadro das relações entre empresários. Como foi referido, apenas um juízo de valor, feito dentro da lógica de cada tipo negocial em jogo, permitirá restabelecer a justiça dentro do contrato. As alíneas a) e b) têm a ver com prazos dos contratos. No decurso desses prazos, uma das partes fica submetida à vontade da outra. Em concreto, pode compreender-se que assim deva ou possa ser. A justificação, contudo, desaparece quando os prazos sejam demasiado alongados. O quantum admissível depende, como é claro, de cada tipo negocial em jogo. Alínea c) proíbe cláusulas penais desproporcionais aos danos a ressarcir. O artigo 812.º já permitia a sua redução segundo juízos de equidade. Essa solução não é imaginável perante o tráfego negocial de massas; aí, a pura e simples nulidade das cláusulas com o recurso subsequente às regras legais supletivas permite uma solução direta, clara, fácil e justa, em cada situação. A rapidez do tráfego de massas justifica que, por vezes, se dispensem formais declarações de vontades, substituindo-as por outros indícios. Os comportamentos concludentes têm aqui particular relevo. Mas a situação torna-se inadmissível quando se recorra a factos insuficientes para alicerçar a autonomia privada. Caso a caso será necessário indagar dessa suficiência: tal o sentido da alínea d). A garantia das qualidades da coisa cedida ou de serviços prestados pode ser posta na dependência do recurso a terceiros. No entanto, em certos casos, tal sujeição apenas irá equivaler a um meio oblíquo de limitar a responsabilidade. Caso a caso, nos termos da alínea e) haverá que o demonstrar- A alínea f) trata da denúncia, isto é, da faculdade de, unilateralmente, e sem necessidade de justificação, se pôr termo a uma situação duradoura. Essa faculdade, quando a outra parte tenha feito investimentos ainda não amortizados, pode coloca-la nas mãos da primeira. Assim, quando seja injusta, é nula. O estabelecimento de um tribunal competente eu envolva graves inconvenientes para uma das partes, em razão da distância ou da língua, por exemplo, deve ser justificado por equivalentes interesses da outra parte. Quando isso suceda, a competente cláusula é nula, nos termos da alínea g). De acordo com uma interpretação preconizada por Miguel Teixeira de Sousa, tal cláusula é extensiva ao tribunal arbitral. As limitações das alíneas h) e i) têm a ver com a concessão de poderes excessivos e exorbitantes a uma das partes. Em todos estes casos de proibição relativa, deve entender-se que, perante a sua concretização, toda a cláusula em jogo é afetada. Não há, pois, qualquer hipótese de se reduzir a cláusula aos máximos admitidos na lei das cláusulas contratuais gerais: isso iria dar lugar a enormes dúvidas de aplicação, nunca se podendo conhecer de antemão o Direito aplicável. Quando caia sob a alçada de uma proibição, ainda que relativa, a cláusula é toda nula, seguindo-se a aplicação do Direito supletivo que ela pretendera afastar, nos termos gerais. Nas
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 relações com consumidores finais aplicam-se as proibições acima referenciadas e, ainda, as constantes dos artigo 21.º e 22.º com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 220/95, 31 agosto. As proibições absolutas inseridas nas alíneas a), b), c) e d) do artigo 18.º visam assegurar que os bens ou serviços pretendidos pelo consumidor final sejam, de facto, os que ele vá alcançar. Por seu turno, as alíneas e), f), g) e h) pretendem garantir a manutenção eficaz duma tutela adequada, prevenindo a possibilidade de recurso a vias oblíquas para defraudar a lei. As proibições relativas do artigo 22.º, n.º1 acentuam, também, esta mesma via. Nas relações com consumidores finais há que, pela positiva, assegurar a própria obtenção do bem, já que a obtenção duma indemnização é, aqui, problemática e não teria, a efetivar-se, grande significado prático. As diversas alíneas especificam pontos nos quais, segundo a experiência, os consumidores mais facilmente podem ver em perigo a sua posição. Também aqui têm aplicação as considerações acima feitas sobre a nulidade plenas das cláusulas que caiam sob a alçada de proibições relativas.
A conformação dos contratos comerciais: aparentemente, a LCCG poderia surgir como mero conjunto negativo: ela dimanaria uma série de nulidades e de proibições deixando quanto ao resto, o caminho livre às partes. Não é assim, A LCCG isola os aspetos mais sensíveis, mais justos e mais equilibrados da contratação, pondo-os ao abrigo do afastamento por cláusulas contratuais gerais. Além disso, ela permite, em diversas áreas, valorações aprofundadas para, no caso concreto, prevenir desequilíbrios. Finalmente, ela apresenta-se como código da negociação correta e leal. Aquando do aparecimento da LCCG, muitos operadores que faziam um apelo intensivo a cláusulas gerais reformularam-nas: tratava-se de as expurgar de nulidades. Nenhum comerciante usa, hoje, cláusulas contratuais gerais sem se inteirar previamente da sua consonância com a LCCG. Este fenómeno tem uma importância acrescida se nos recordarmos que, atualmente, os mais significativos contratos comerciais têm regimes vertidos em cláusulas contratuais gerais. Os tipos legais estão, muitas vezes, ultrapassados; contêm apenas regras de enquadramento pouco mais do que simbólicas.
O problema dos contratos pré formulados: o contrato pré definido é aquele que uma das partes proponha à outra, sem admitir contrapropostas ou negociações. Aproxima-se das cláusulas contratuais gerais pela rigidez; distingue-se delas pela falta de generalidade. Quando apresentado a um consumidor, o contrato pré formulado coloca problemas semelhantes aos das cláusulas contratuais gerais. Por isso, o artigo 9.º, n.º3 LDC mandava aplicar a esse tipo de contratos o regime das cláusulas contratuais gerais, através duma ponderação feita nos termos do seu n.º2. Trata-se de uma regra aplicável no domínio dos contratos comerciais. Posto isto, verifica-se que o tema dos contratos pré formulados veio a ser encarado, pela Diretriz n.º 93/13, 5 abril, de modo um tanto indiferenciado. Dispôs a Diretriz em causa que toda a cláusula: «(…) que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato». Esta fórmula atinge as cláusulas contratuais gerais. Mas atinge, ainda, as cláusulas rígidas, a incluir nos contratos pré formulados, tal como acima os definimos. A grande novidade da Diretriz n.º 93/13, foi, pois, a de alargar aos contratos pré formulados a defesa dispensada aos contratos por adesão. Com uma particularidade: em ambos os casos, a defesa apenas funciona perante consumidores. O legislador português, quando reformulou o Decreto-Lei n.º 446/85, 25 outubro, com o fito de trasnpor a Diretriz n.º 93/13, deparo com o seguinte problema: ou mutilava a LCCG,
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 que boas provas dera de si e à qual a doutrina e a jurisprudência se haviam acostumado, ou garantia, através de alterações discretas, o funcionamento da LCCG perante as cláusulas vexatórias rígidas, incluídas em contratos com consumidores. Optou pela segunda hipótese, no Decreto-Lei n,.º 220/95, 31 agosto. A referência a consumidores vinha já no artigo 20.º da versão inicial da LCCG: também aí o legislador português se antecipou ao alemão e ao comunitário. Posto isto, atente-se no artigo 1.º, n.º2 LCCG na versão de 1995: o ónus da prova da prévia negociação duma cláusula recaía sobre quem pretendesse prevalecer-se do seu conteúdo. Ficava bem entendido que, a não se fazer tal prova, se aplicaria o regime das cláusulas contratuais gerais. Interpretado no seu conjunto, o artigo 1.º LCCG podia, assim, funcionar perante contratos pré formulados. Uma interpretação conforme com as diretrizes comunitárias faria o resto. A LCCG, na versão de 1995, estava, pois, municiada para se aplicar a contratos pré formulados. Todavia, o importante residia noutra dimensão. O tema dos contratos pré formulados, tal como resulta da Diretriz n.º 93/13, não pertence às cláusulas contratuais gerais. É, antes, um ponto de defesa do consumidor. E por isso, na LDC, acima examinada, vamos encontrar o artigo 9.º (Direito à proteção dos interesses económicos). No local próprio, o legislador tratava os contratos pré formulados e remetia o seu regime para a LCCG, já preparada para os receber. Apenas por desconhecimento se poderia, pois, vir afirmar que o Estado português não havia transposto o regime da Diretriz n.º 93/13, para a sua ordem jurídica. O desconhecimento da LDC e a incapacidade de interpretar convenientemente os textos portugueses vigentes levaram a Comissão Europeia a dirigir ao Estado português determinadas missivas: estaria em causa uma transposição insuficiente da Diretriz n.º 93/13/CEE, por não se terem referido, de modo expresso, os contratos pré formulados. Servil e desnecessariamente, legislou-se de imediato. Através do Decreto-Lei n.º 249/99, 7 julho, foi de novo alterada a LCCG. Fundamentalmente, inseriu-se um novo n.º2, no artigo 1.º, com o seguinte teor: «O presente diploma aplica-se igualmente às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar». A LCCG foi abastardada sem qualquer necessidade: o preceito agora introduzido já resultava do artigo 9.º, n.º1 a 3 LDC, acima referido. A Diretriz 93/13/CEE tinha, pois, sido totalmente recebida, como temos vindo a repetir. Mais grave é, no entanto, o facto de o legislador nacional, no seu afã de mostrar “europeísmo”, ter “transposto” erradamente a Diretriz em jogo. Esta aplica-se apenas a contratos pré formulados concluídos entre empresários e consumidores. O n.º2 do artigo 1.º LCCG, introduzida em 1999, não teve a cautela de o precisar. Tal como está, parece aplicar-se a todo e qualquer contrato pré formulado. Teria um imenso impacto no Direito Comercial, complicando, inclusive, todas as conclusões dos grandes negócios: basta ver que, summo rigore, qualquer contrato que não tenha implicado, na sua formação, uma contraproposta é pré formulado. Apenas a presença de consumidores justifica a aplicação do regime das CCG. Será, pois, necessário recorrer a uma interpretação restritiva do preceito invocando, no limite, a necessidade de conformação com a Diretriz n.º93/13.
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Secção IV – A Insolvência
33.º - Introdução ao Direito da Insolvência
A Insolvência: na tradição portuguesa, a situação do mercador incapaz de assegurar os seus pagamentos era dita quebra: uma expressão que se mantinha no Código Comercial de Ferreira Borges, lado a lado com a falência: a insolvência era reservada para o não-comerciante. Falência provém do latim fallens (fallente), de fallo (fefelli, falsum): enganar, trair ou dissimular. Têm o seu quê de pejorativo. Ainda no Direito tradicional, a falência era um instituto de comerciantes, enquanto a insolvência respeitava a não-comerciante. Recordamos que a falência era a situação qualitativa do comerciante incapaz de honrar os seus compromissos, enquanto a insolvência traduzia a situação quantitativa do não-comerciante cujo passivo superasse o ativo. Entendia-se que o comerciante, mesmo com um passivo superior ao ativo, poderia continuar o seu manejo na base do crédito; já o não-comerciante não teria tal possibilidade. Esta valoração não era, há muito, adequada. O Código de Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, adotado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, 23 abril, veio quebrar essa tradição. A insuficiência patrimonial passou a dizer-se insolvência; a situação jurídica daí decorrente, assente em decisões judiciais com regras complexas, passou a ser a falência. Com o denominado Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, promulgado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, 18 março, por diversos diplomas alterado, tudo mudou, desaparecendo essa última noção. Apenas ficou a insolvência que equivale: À situação do devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas – artigo 3.º, n.º1 CIRE; À situação subsequente à «sentença de insolvência» - artigo 36.º CIRE. A ideia de insolvência foi retirada da Insolvenzordnug alemã que constituiu a grande fonte inspiradora do legislador nacional de 2004. Por seu turno, o Insolvenzrecht veio absorver os anteriores: Konkursrecht ou Direito da Falência, que rege a liquidação universal do património do devedor e providencia o pagamento rateado dos credores; Vergleichrecht ou Direito da Recuperação, que abrange as regras que poderão permitir, ao devedor, a prorrogação da sua atividade, minorando os aspetos atinentes ao incumprimento. Além disso, operou a unificação entre o Direito da República Federal Alemã (Ocidental), centrado na velha Konkursordnung, de 1877 e o da ex-República Democrática Alemã, reformado pela Gesamtvollstreckunsordnug, de 1990. Insolvência é a negação de solvência, de solvo (solvi, solutum): desatar, explicar, pagar. Traduzirá, assim, a situação daquele que não paga. Apresenta, perante a falência, duas vantagens: Semanticamente, ela surge valorativamente mais neutra do que a tradicional falência;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Conceitualmente, ela abrange quer a dimensão da liquidação universal do património, quer as medidas de recuperação que venham a ser adotadas.
O Direito da Insolvência: será o setor jurídico-normativo relativo a essa mesma realidade. Pode ser tomada em dupla aceção: Na de um conjunto sistematizado de normas e de princípios; Na de uma disciplina jurídico-científica. Ambos os termos coincidiram no núcleo insolvência. O Direito da Insolvência versa, em geral:
A situação do devedor impossibilitado de cumprir as suas obrigações pecuniárias; Os esquemas de preservação e de agressão patrimoniais; O reconhecimento e a graduação das dívidas; A execução patrimonial e o pagamento dos credores; Eventuais esquemas de manutenção da capacidade produtiva do devedor; A própria situação do devedor insolvente.
Tem, como se imagina, um importante nível processual. Mas corresponde, antes de mais, a um significativo campo substantivo: define, num momento crítico, diversos direitos e deveres das pessoas envolvidas. O Direito da Insolvência é, em bloco, considerado Direito privado. Ele é dominado por vetores de autodeterminação e de autorresponsabilidade, colocando frente a frente pessoas iguais em direitos. As suas estruturas são privadas e isso independentemente dos planos processuais; estes apenas visam a concretização da materialidade em jogo. A natureza privada do Direito da Insolvência pode ser seguida ao longo de todo o CIRE. Ela corresponde a múltiplas equações conceituais e culturais: permanentemente, o Direito da Insolvência faz apelo a categorias civis, em especial de Direito das Obrigações, correspondendo a uma tradição comercial. No âmbito do Direito Privado, o Direito da Insolvência é um ramo próprio do Direito da responsabilidade patrimonial. Recordamos os princípios clássicos dessa responsabilidade: Pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora – artigo 601.º CC; Não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor – artigo 817.º CC. O Direito da Insolvência é o lógico desenvolvimento destes postulados. Trata-se de uma disciplina jurídica autónoma. Todavia, ela insere-se, quer pela tradição, quer pelo relevo prático, na grande província do Direito Comercial.
Aspetos metodológicos: o surgimento de um Código da Insolvência com múltiplos aspetos muito inovadores, implicou, no imediato, um período de exegese. O CIRE acusa uma marcada influência alemã: particularmente da Insolvenzordnung, de 5 outubro 1994. Finalmente: numa introdução a nosso Direito da Insolvência, deve-se procurar surpreender o sistema, apontando as suas vertentes inovadoras. Os aspetos setoriais interessar-nos-ão, sobretudo, enquanto exemplos para o que se pretende seja o novo sentido da responsabilidade patrimonial.
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34.º - A evolução do Direito da Insolvência
O Direito Romano: as origens ocidentais da falência remontam ao Direito romano e, neste, à Lei das XII Tábuas. Cabe recordar alguns aspetos do sistema romano da execução por dívidas e da sua evolução. Numa fase inicial tudo seria entregue à justiça privada. Um primeiro progresso adveio da Lei das XII Tábuas, que procurou pôr cobre ao desforço pessoal, regulando as consequências do incumprimento. Como ponto de partida, a dívida devia ser confessada ou devia verificar-se a condenação judicial do devedor no seu cumprimento: prevenia-se, deste modo, qualquer arbítrio no domínio da existência da própria posição a defender. De seguida, havia que esperar trinta dias, durante os quais o devedor tentaria ainda arranjar meios para cumprir. Decorridos os trinta dias, dava-se a manus iniectio indirecta: o devedor era preso pelo tribunal (se fosse pelo próprio credor, ela seria directa) e, não pagando, era entregue ao credor que o levava para sua casa, em cárcere privado; aí podia ser amarrado, mas devia ser alimentado, conservando-se vivo. Durante sessenta dias ficava o devedor assim preso, nas mãos do credor, que o levaria consecutivamente a três feiras, com grande publicidade, para que alguém o resgatasse, pagando a dívida; nesse período, ele poderia pactuar com o credor o que ambos entendessem ou praticar o se nexum dare, entregando-se nas suas mãos como escravo. Se passado esse tempo nada se resolvesse, o credor podia tornar o devedor seu escravo, vendê-lo fora da cidade (trans Tiberim) ou atá-lo, partes secanto (esquartejando-o); havendo vários credores, as partes deviam ser proporcionadas à dívida; mas se alguém cortasse mais do que o devido, a lei não previa especial punição. Toda esta minúcia traduzia já, ao contrário do que possa parecer, um progresso importante na caminhada tendente a tutelar a personalidade humana. Novos passos foram dados: a Lex Poetelia Papiria de nexis, de 326 .C., reagindo a graves questões sociais entretanto suscitadas, veio proibir o se nexum dare e evitar a morte e a escravatura do devedor. Depois, admitiu-se que, quando o devedor tivesse meios para pagar, a ordem do magistrado se dirigisse à apreensão desses meios e não à prisão do devedor: pela missio in possessionem os bens eram retirados e vendidos, com isso se ressarcindo o credor. A Lex Julia veio admitir que o próprio devedor tomasse a iniciativa de entregar os seus bens aos credores – cessio bonorum – evitando a intromissão infamante do tribunal. Seja pela missio in possessionem, seja pela cessio bonorum, a execução do devedor inadimplente assumia uma feição patrimonial, com determinados formalismos. No termo, operava a venda do património do insolvente: a bonorum venditio. O adquirente – bonorum emptor – comprava em bloco o património falimentar e ficava por ele oferecido na hasta pública. Pela compra, o bonorum emptor ficava sub-rogado nos direitos e obrigações que o falido tivesse contra terceiros. Dispunha de duas vias para atuar esses direitos, ou para ser convencido nas obrigações correspondentes, na base de duas actiones utiles: a serviana, pela qual o bonorum emptor era equiparado a um herdeiro, e a rutiliana, que operava uma transposição de nomes, na fórmula respetiva. Apesar destes avanços, não se encontra, no Direito Romano, um típico processo judicial que vise a repartição de um património sobre endividado. Os glosadores pouco mais avançaram, esse sentido, do que a missio in bona romana. O problema dos mercatores cessantes et fugitivi veio a ser, num primeiro tempo, enfrentado com medidas draconianas. Apenas a profissionalização do comércio levou à ideia de que a quebra era sempre uma eventualidade comercial de encarar, cabendo enquadrá-la com um novo regime inteligente, capaz de minorar os danos para os credores, para o comércio em geral e para o próprio falido. Deve ainda
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 esclarecer-se que a falência surgiu como um instituto tipicamente comercial. Tal a sua origem e tal a sua evolução, até que, nos nossos dias, ela veio a aproximar-se do Direito comum.
Evolução subsequente; tradições francesa, alemã e anglo-saxónica: a falência, com os antecedentes apontados, resulta de institutos criados nas cidades italianas da baixa Idade Média. As primeiras medidas relativas às falências eram fragmentárias; visavam pôr termo a aspetos abusivos mais marcados, surgindo um tanto ao sabor de condicionalismos pontuais. Uma primeira tentativa de codificar as falências surgiu em França, através da Ordenança de 1673. Apenas o Código de Comércio de 1807, de Napoleão, procedeu a uma regulamentação mais cabal da matéria. Fê-lo, porém, em termos muito severos para o comerciante falido, de tal modo que os próprios credores acabavam prejudicados. Mais tarde, tentar-se-iam encontrar esquemas alternativos à falência. Com efeito, esta tradição latina esteve marcada pela infâmia do comerciante e por medidas tendentes a defender os credores. Uma tradição diversa é constituída pela experiência alemã, desde o início vocacionada para comerciantes e não comerciantes. O Diploma pioneiro foi o Código das Falências prussiano de 8 maio 1855, que serviu de base ao Código das Falências alemão de 10 fevereiro 1877. O Código em causa, conhecido pela sigla KO (Konkursordnung), vigorou a partir de 1 outubro 1879, atravessando as mais variadas situações sócio económicas. A KO foi substituída pela Insolvezordnung (InsO) que entrou em vigor a 1 janeiro 1999. O sistema falimentar alemão não é especificamente dirigido a comerciantes, antes abrangendo a antiga “insolvência civil” latina. Por outro lado, salvo determinados abusos, ele não está marcado pela nota infamante que, desde a Idade Média, atinge a falência latina. Francamente diverso é o sistema anglo-saxónico do bankruptcy. Baseada na equity, o bankruptcy pretende, antes de mais, recuperar o devedor infeliz. Não é infamante e acaba por ser benéfica para os credores, visto permitir, em termos latos, a manutenção das faculdades produtivas do património concursal.
A experiência portuguesa: o Direito português das Ordenações não instituía um verdadeiro sistema falimentar. Apenas nas Ordenações Filipinas surgiam algumas regras. Designadamente, mandava-se que os «mercadores» que «quebram de seus tratos» e levem bens, «Serão havidos por públicos ladrões, roubadores, e castigados com as mesmas penas que por nossas Ordenações e Direito Civil, os ladrões públicos, se castigão, e percam a nobreza, e liberdades que tiverem para não haverem pena vil». No entanto, já então se admitia a falência não fraudulenta: «E os que caírem em pobreza sem culpa, por receberem grandes perdas no mar, ou na terra em seus tratos, e comércios lícitos, não constando de algum dolo, ou malicia, não incorrerão em pena algum crime». A matéria foi reformada pelo Marquês de Pombal59. Seria, no entanto, necessário aguardar as reformas liberais para assistir a verdadeiras codificações sobre o tema. O Código Comercial de 1833 compreendia uma rubrica intitulada Das quebras, reabilitação do falido e moratórias. O artigo 1121.º dispunha:
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Alvará 13 novembro 1756.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 «Diz-se negociante quebrado aquelle, que por vício da fortuna ou seu, ou parte da fortuna e parte seu, se ache inhabil para satisfazer os seus pagamentos, e abandona o commercio». A disciplina das falências foi retomada pelo Código Comercial de Veiga Beirão (1888) surgindo aí, como Livro IV que tanto se ocupava das questões substantivas como das processuais. A partir de então, essa matéria conheceu várias vicissitudes. Assistiu-se a uma curiosa caminhada que levaria as falências do Código Comercial ao Código do Processo Civil, onde se têm mantido nas subsequentes reformas. Esta evolução, a facultar conclusões genéricas, implicaria, no mínimo, a seguinte: a disciplina das falências tem sido sensível à necessidade de se integrar nos restantes vetores de ordem jurídica. Mais recentemente, foi aprovada a Lei n.º 16/92, 6 agosto, que autorizou o Governo a legislar em áreas que têm a ver com temáticas falimentares. No uso dessa autorização legislativa, o Governo adotou o Decreto-Lei n.º 132/93, 23 abril, o qual aprovou o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência. Nos termos preambulares, o novo diploma procurou operar uma destrinça nítida entre empresas viáveis e inviáveis, de modo a recuperar as primeiras. Curiosamente, este então novo diploma foi sentido, pelos agentes económicos, como mais duro para com os devedores do que o anterior. Ele foi substituído pelo Código da Insolvência, hoje em vigor, que dá corpo a uma filosofia distinta.
35.º - As grandes reformas da insolvência
A reforma francesa de 1985: o Direito das Falências conheceu, nos finais do século XX reformas importantes. Uma primeira e significativa reforma continental foi levada a cabo pelo Direito Francês. A lei 11 julho 1985 aprovou um novo regime denominado recuperação e liquidação judiciária das empresas. A matéria das falências sempre foi, em França, marcada por acentuada instabilidade. O Código de Comércio de 1807 era caracterizado por uma grande severidade em relação ao comerciante falido: num prazo de três dias após a cessação de pagamentos, o comerciante era obrigado a entregar o seu balanço, sendo nulos todos os atos subsequentes; na preocupação de tutelar os credores, o processo era, depois, lento e pesado, com grandes custos; havia numerosas hipóteses de prisão, o que levava à fuga do comerciante, privando os síndicos de informações basilares. O esquema não provou, vindo a ser substituído. O Decreto de 20 maio 1955, substituiu todo o Livro III do Código de Comércio, já muito retalhado; ele veio aprofundar a distinção entre as falências de boa e de má fé. Este diploma foi considerado demasiado técnico-jurídico, em detrimento das realidade económicas. Irrompeu, depois deste ponto, uma nova filosofia: o Direito das Falências não deve dirigir-se para o comerciante, variando consoante os juízos que este mereça: trata-se, antes, de salvar a empresa e os valores que ela envolve. Procura-se pois (é a ideia francesa) separar o homem e a empresa. Em tal linha surgiu a Lei de 13 julho 1967, complementada pela Ordenança de 23 setembro 1967: deram um primeiro, ainda que limitado passo, nesse sentido. Novas reformas sobrevieram em 15 outubro 1981 e 9 abril 1982. Tendeu-se, assim, para um Direito das “empresas em dificuldade, em detrimento do velho Direito das Falências. A reforma francesa de 1985 veio completar esta evolução. Ela teve em conta o Bankruptcy Reform Act de 1978. No fundamental, ela fixou objetivos legais, designadamente antepondo a recuperação de empresas. Esta deve ser conservada quanto possível, salvaguardando-se a sua atividade e o emprego. Os direitos dos
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 credores surgem apenas em segunda linha. Nova reforma ocorre a 10 junho 1994. Visou, essencialmente, moralizar os planos de recuperação da empresa e simplificar o processo. Hoje, veio a ser substituída pela de 2005.
A reforma alemã de 1994/2001: na Alemanha, um tipo de pensamento mais pragmático levou a uma evolução diversa. Com efeito, foi aprovada, a 5 outubro 1994, a Insolvenzordnung. Cuidadosamente preparada, Insolvenzordnung ou InsO teve, no essencial, os objetivos seguintes:
Fortalecer a autonomia dos credores; Tornar mais fácil e rápida a abertura do processo; Reduzir os privilégios; Aumentar a justiça na repartição dos valores; Fortalecer a ação pauliana; Alargar os fundamentos; Incluir as garantias dos credores no processo; Facilitar a recuperação; Tratar convenientemente a insolvência do consumidor.
Após uma vacatio de quatro anos, a InsO entrou em vigor. Os especialistas dirigem-lhe algumas críticas: um diploma complexo, menos permeável a valores empresariais do que seria de esperar e pouco praticável no tocante à insolvência do consumidor. Em 2001, sobreveio uma reforma que visou limitar a responsabilidade dos consumidores em dificuldade. O distanciamento possível permite considerar que o modelo alemão tem vindo a ganhar terreno. A matéria da falência afasta-se do Direito Comercial, acabando por constituir uma disciplina autónoma. A sua atenção À empresa e, na sequência, a operadores não empresários, vai distanciando-a do âmbito mercantil, integrando-a no processo executivo. É ainda importante sublinhar a contínua suavização da falência, quando reportada a pessoas singulares, perfeitamente documentada nos dois últimos séculos; afinal, a pessoa humana continua a ser destinatária final de todo o Direito.
As reformas da primeira década do século XXI: a incapacidade europeia de obter taxas de crescimento significativas e a persistência de um desemprego com pesados custos sociais originaram, ao longo da primeira década de século XXI, reformas significativas no Direito da Insolvência. Em mais uma manifestação da riqueza e da variedade jurídico-culturais do Velho Mundo, tais reformas seguiram rumos diferentes, em França e na Alemanha. A reforma francesa de 1985 revelou fraquezas, no plano prático. Aos problemas tradicionais da lentidão, dos custos, do predomínio das liquidações e do mau reembolso dos credores, vieram somar-se disfunções entre as entidades implicadas no processo. Após pequenas reformas e muita discussão, foi adotada uma nova Lei de 26 julho 205, aperfeiçoada pela Ordenança de 18 dezembro 2008. No essencial, deram-se maiores poderes ao chefe da empresa devedora e aos credores, procurando reduzir-se o peso do aparelho judiciário. Temos, perante o Direito Francês da Insolvência, quatro procedimentos: Um processo de conciliação, que visa a recuperação da empresa por acordo entre o devedor e os seus credores; Um processo de salvaguarda, pelo qual o devedor, em dificuldades mas sem haver cessação de pagamentos, pode requerer uma proteção da Justiça; tal processo permite:
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 (a) Deter as execuções; (b) Permanecer na direção da empresa e precaver-se contra quaisquer sanções pecuniárias ou profissionais, no caso do plano de salvaguarda ter êxito; (c) Conservar a sua remuneração; (d) Beneficiar das medidas favoráveis que o plano venha a providenciar; Um processo de recuperação judicial; Um processo de liquidação judicial. A doutrina sublinha a multiplicidade de vias falimentares disponíveis. Censura-lhes, todavia, as dificuldades jurídicas envolvidas e a estreiteza prática do processo de salvaguarda (cerca de 1% do total), bloqueado entre o ideal do processo de conciliação e o processo de recuperação judicial.
36.º - Perfil geral da Insolvência
Princípios clássicos: a ação de falência – que decorria, em princípio, perante um estado de falência, antes definido ao artigo 1135.º CPC como o do comerciante impossibilitado de cumprir as suas obrigações – operava como uma ação executiva universal e coletiva, com base em adequada sentença. O CPEF veio referir uma situação de insolvência – artigo 3.º - como a da empresa que se encontre impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações, em virtude de o seu ativo disponível ser insuficiente para satisfazer o seu passivo exigível. O CIRE generalizou a ideia. Na falência jogam-se interesses opostos que o Direito procura harmonizar; assim: O comerciante falido pretende retardar ou evitar a falência e, quando ela porventura se dê, atravessá-la com um mínimo de danos; Os credores visam a obtenção de um máximo de valor, por forma a minorar os prejuízos que, em princípio, irão sofrer nos seus direitos de crédito; Os terreiros aspiram à normal prossecução da sua atividade, sem serem afetados pelas operações falimentares que, a seu lado, venham a decorrer; A comunidade e o Estado desejariam, por fim, que a empresa em dificuldades as ultrapassasse, de modo a prosseguir na sua tarefa criadora de riqueza. Registe-se ainda que os diversos credores do falido, entre os quais, normalmente, o próprio Estado, têm entre si, interesses antagónicos: dado o fenómeno do rateio, a vantagem de um é, tendencialmente, o prejuízo de outro. A primeira preocupação da ordem jurídica dirige-se à celeridade e à simplificação processuais. O fator tempo adquire, na falência, uma dimensão de primeiro plano. Desde o momento em que se anuncie algum dos motivos de declaração de falência e até ao termo da liquidação do património responsável, verifica-se uma situação de incerteza que paralisa os bens e veda as iniciativas dos agentes envolvidos. Os meios produtivos implicados são afetados, sendo ainda de aguardar deteriorações e desperdícios. E enquanto o processo se arrastar, acumulam-se, naturalmente, as próprias despesas motivadas por ele, pelos seus incidentes e pela manutenção e administração da massa falida. A simplificação é requerida pela extraordinária complexidade das situações que, numa falência, tendem a ser debatidas. Ao apontar, entre os processos especiais, a falência, o Direito Processual procurou uma
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 metodologia que acelere e simplifique as operações da liquidação de patrimónios, nela subjacentes. Um processo de falência assenta em múltiplas soluções jurídicas de tipo substantivo. Ao Direito Civil e Comercial compete definir os direitos das partes envolvidas, os seus limites e as regras a observar quando, entre eles, se registam conflitos. A bondade do procedimento falimentar quanto à satisfação dos interesses em presença é, tão-só, a dos regimes substantivos implicados: tudo decorre em termos que tais regimes aflorem, sejam ponderados e deem ligar às decisões mais oportunas. Como segundo vetor relativo à falência aponta-se, pois, o que se poderá chamar inoquidade dos procedimentos processuais: estes devem ser de tal ordem que não perturbem as soluções de fundo encontradas, pelo ordenamento, para as questões que se suscitem. Finalmente, o processo de falência deve deixar incólume a possibilidade de decisão jurisdicional dos pontos litigiosos que se apresentem. Apenas no respeito do contraditório e perante a produção da prova que considere necessária, pode o Tribunal solucionar os múltiplos pleitos secundários que, muitas vezes, se acolhem a uma falência, uma na sua aparência.
Situações especiais; a banca e os seguros: em setores sensíveis, a lei optou por estabelecer regimes especiais em detrimento do sistema comum de recuperação de empresas e da falência. Trata-se, no fundamental, de proteger o público, prejudicado perante a cessação de atividade de entidades que atuem nos setores em causa.
37.º - O processo especial de recuperação de empresas e da falência
A recuperação de empresas; o Decreto-Lei n.º 177/86, 2 julho: tem interesse, para o conhecimento d atual regime e, ainda, pelo facto de muitos processos de insolvência (de falência) hoje em curso se pautarem pelo Direito anterior, fazer uma resenha do revogado sistema do processo especial de recuperação de empresas e da falência. O Direito falimentar anterior tinha acentuada dimensão preventiva. Mais do que repartir com justiça o património do comerciante infeliz pretende evitar-se a necessidade de o fazer. Ele foi antecedido pelo Decreto-Lei n.º 177/86, 2 julho, que teve o fito declarado de promover a recuperação das empresas. Foi, nessa medida, inovador. Para além de ajustes de pormenor, introduziu uma nova modalidade de recuperação económica – a somar à concordata e ao acordo de credores que vinham já do regime anterior: a gestão controlada da empresa.
O Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência: a) A recuperação: o CPEF, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, 23 abril, manteve, no essencial, as traves mestras que advinham já do Decreto-Lei n.º 177/86, 17 junho. Este Código foi alterado, com certa profundidade, pelo Decreto-Lei n.º 315/98, 20 outubro: um diploma que, para além do que apresenta como melhorias processuais, veio introduzir a situação económica difícil como novo pressuposto da providência de recuperação. Redenominou, ainda, o acordo de credores, o qual passou a designar-se reconstituição empresarial. Logo, à partida, o CPEF vinha dar um papel – pelo menos formal – à empresa. Além disso, extinguiu os privilégios creditórios, reforçou os poderes da comissão de credores e introduziu, como medida de recuperação, a reestruturação
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 financeira. Concetualmente, o CPEF pôs cobre à clássica distinção entre a falência e a insolvência. Num plano organizatório, extinguiram-se as figuras do síndico e das câmaras de falência. O devedor insolvente que não seja titular de empresa ou cuja empresa não exerça atividade, à data em que o processo de recuperação: apenas pode evitar a declaração de falência, mediante a apresentação de concordata. O CPEF distinguia e regulava quatro tipos de providências de recuperação de empresas, que podiam ser requeridos no condicionalismo do seu artigo 8.º: a. Concordata: consistia na simples redução ou modificação da totalidade ou de parte dos débitos da empresa em situação de insolvência ou económica difícil, podendo a modificação traduzir-se numa simples moratória; b. Reconstituição empresarial: traduzia a constituição de uma ou mais sociedade destinadas à exploração de um ou mais estabelecimentos da empresa devedora, desde que os credores, ou alguns deles ou terceiros se disponham a assegurar e dinamizar as respetivas atividades; c. Reestruturação financeira: vinha definida como «o meio de recuperação de empresa insolvente ou em situação económica difícil que consiste na adoção de uma ou mais providências destinadas a modificar a situação do passivo da empresa ou a alterar o seu capital, em termos que assegurem, só por si, a superioridade do ativo sobre o passivo e a existência de um fundo de maneio positivo». As providências de reestruturação financeira surgiam alinhadas entre providências com incidência no passivo da empresa e providências com incidência no ativo. d. Gestão controlada: era «o meio de recuperação da empresa insolvente ou em situação económica difícil que assenta num plano de atuação global, concertado entre os credores e executado por intermédio da nova administração, com um regime própria da fiscalização». b) A assembleia de credores: em todo o processo de recuperação, cumpre sublinhar o papel básico da assembleia de credores. Compete-lhes escolher, sendo esse o caso, algum das providências de recuperação. Com recurso à jurisprudência da época, podemos apontar algumas proposições ilustrativas do papel importante conferido, por lei, à assembleia: Compete aos credores (e não ao juiz) decidir adiamento s; Na reestruturação financeira, o Tribunal não se sobrepõe à assembleia de credores; O Tribunal não introduz alterações no plano aprovado pelos credores; A assembleia de credores é soberana, tendo o juiz um mero controlo de legalidade. Finalmente, parece-nos importante sublinhar, sempre de acordo com a lógica do instituto e com apoio na jurisprudência, que a recuperação das empresas não deve ser sujeita a um rigorismo formalista. A dispensa do formalismo implicava o incremento da boa fé.
A falência e as suas consequências: não havendo lugar à recuperação, devia ser decretada a falência. A massa falida corresponde ao conjunto de bens penhoráveis da pessoa que, por incorrer nalgum dos pressupostos previstos na lei, se sujeite ao processo de falência. Perante os
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 bens incluídos na massa, o falido ficava numa situação de inibição; de facto, havendo falência declarada, ele não podia: Administrar e dispor dos seus bens ou que, de futuro, lhe advenham; Atuar pessoal e livremente, sendo representado pelo administrador da falência para todos os efeitos, salvo quando ao exercício dos seus direitos exclusivamente pessoas ou estranhos À falência; Exercer o comércio, diretamente ou por interposta pessoa, bem como desempenhar as funções de titular de órgão em qualquer sociedade comercial ou civil. No que toca às inibições relativas aos bens, deve frisar-se: o falido pode adquirir pelo seu trabalho, meios de subsistência (e logo dispor deles), bem como auxiliar na administração da massa, praticando certos atos. A falência analisava-se numa projeção processual do princípio da responsabilidade patrimonial, particularmente adaptada à realidade do comércio. No termo de conturbada mas segura evolução histórica, pode considerar-se que, no inadimplemento, responde o património do devedor e não a sua pessoa. Essa responsabilidade patrimonial é, no entanto e logicamente, limitada aos próprios bens do devedor; salvo havendo uma particular causa que envolva o terceiro ou os bens deste, apenas o património do devedor responde pelos seus débitos. Alargar a responsabilidade patrimonial aos bens de terceiros sem que, para tanto, exista título legitimador equivaleria a uma expropriação por utilidade particular e sem qualquer indemnização. Trata-se de um ponto que dispensará maiores considerações. Estes vetores podem ser transpostos para o domínio da falência, sem dificuldades: a massa não abrange, em princípio, os bens de terceiros. Foi ainda dito que a massa falida compreende um conjunto de bens. Embora consagrada esta afirmação é pouco técnica: não se trata de bens, que constituem, tão só, uma realidade objetiva, mas dos direitos a eles relativos. A massa inclui, pois, os direitos patrimoniais privados penhoráveis do falido. Esta precisão permite formular uma observação do maior relevo: quando, sobre um bem, incidam vários direitos de diversos titulares, apenas cabe,, em rigor, à massa, os direitos que pertençam à esfera patrimonial do falido; ficam sempre ressalvados os direitos de terceiros. Diversos atos celebrados pelo falido podiam ter destinados a decidir, quando ainda estejam em execução.
38.º - O Código da Insolvência
A Lei n.º 39/2003, 22 agosto (autorização legislativa): a aprovação do Código da Insolvência foi precedida por uma autorização legislativa da Assembleia: a Lei n.º 39/2003, 22 agosto. Efetivamente, o Código veio reger alguns aspetos que se incluem na reserva relativa de competência legislativa do Parlamento, tal como resulta do artigo 165.º CRP. Temos aqui matérias que se prendem com as alíneas a), c), i) e p) do artigo 165.º CRP. Além disso, o Código da Insolvência pode implicar a extinção de alguns direitos patrimoniais privados: trata-se de matéria que toca em direitos fundamentais e, ainda, na igualdade. Dos aspetos envolvidos importa reter os que se prendam com o Direito da Insolvência. A esse propósito, sublinhe-se o objeto do Código, tal como previsto no artigo 1.º, n.º1 CIRE: «um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente,
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores». A ideia de devedor insolvente é expressamente definida no artigo 3.º, n.º1 CIRE: será o que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. O n.º2 desse preceito alarga a noção às pessoas coletivas, aos entes jurídicos de responsabilidade limitada («os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma direta ou indireta»), e o alarga às pessoas coletivas, às associações e às sociedades em personalidade jurídica. Outros aspetos importantes do novo régie podem ser registados da Lei n.º 39/2003. Assim e quanto ao estado e capacidade das pessoas: A declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência; O processo pode prever um incidente de qualificação da insolvência como fortuita ou culposa; sendo culposa, o juiz determinará a inibição do insolvente ou dos seus administradores para o exercício do comércio ou para cargos de administração até 10 anos bem como a sua inabilitação. Ainda em relevo particular assiste a possibilidade de exoneração do passivo das pessoas singulares: mediante a verificação de várias condições. A panorâmica da lei de autorização legislativa, no tocante ao Direito da Insolvência, é limitada: abrange apenas os pontos sujeitos a autorização legislativa.
O Decreto-Lei n.º 53/2004, 22 agosto (diploma preambular): o Código da Insolvência foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, 22 agosto. Trata-se de um diploma precedido por um largo preâmbulo explicativo que sublinha as opções básicas do novo diploma e os seus aspetos mais marcantes. O Código da Insolvência é aprovado pelo artigo 1.º, publicando-se em anexo ao diploma. Entretanto, foi alvo de diversas alterações.
As disposições introdutórias: o artigo 1.º apresenta a finalidade do processo de insolvência: A execução universal para liquidação do património do devedor insolvente; A repartição do produto obtido pelos credores; Ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência. Havendo plano de insolvência: poderá este basear-se na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente. Temos, aqui, novidades importantes. Aparece um único processo, com supressão da antiga recuperação de empresas. O artigo 2.º, n.º1 fixa os sujeitos passivos da insolvência: fundamentalmente pessoas singulares, pessoas coletivas e pessoas rudimentares. O n.º2 procede a uma delimitação negativa, excluindo da insolvência comum as pessoas coletivas públicas e as entidades públicas empresariais. Ficam também excetuadas as empresas de seguros, as instituições de crédito, as sociedades financeiras e determinadas empresas de investimento, mas apenas na medida em que o processo de insolvência seja incompatível com os regimes especiais previstos para essas entidades. O artigo 3.º define situação de insolvência. Ela abrange um critério principal, completado, para as pessoas coletivas, por critérios acessórios. Assim:
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Critério principal: o devedor encontra-se impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas; Critério acessório: as pessoas coletivas e os patrimónios autónomos, por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responde pessoal e ilimitadamente, por forma direta ou indireta: quando o passivo for manifestamente superior ao ativo, com as correções previstas no n.º3. Á situação de insolvência atual é equiparada a iminente, quando o próprio devedor se apresente à insolvência.
Segue; noções legais: o Direito falimentar, ao longo dos tempos, fixando uma terminologia específica. O Código da Insolvência veio modificar algumas das locuções já habituais. O legislador teve, por isso, o cuidado de apresentar, de modo explícito, algumas das noções novas. Assim: A data da insolvência equivale ao dia (e à hora) em que a respetiva sentença foi proferida (artigo 4.º, n,.º1); A empresa é definida como toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica (artigo 5.º); Os administradores são aqueles a quem, nas pessoas coletivas, incumba a administração ou liquidação da entidade ou património em causa; nas pessoas singulares, os seus representantes legais e mandatários com poderes gerais de administração (artigo 6.º, n.º1); Os responsáveis legais são as pessoas que respondem pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas do insolvente, ainda que a título subsidiário (artigo 6.º, n.º2).
Segue; Preceitos processuais: o artigo 7.º trata do tribunal competente. Mais precisamente: É competente o tribunal da sede ou do domicilio do devedor ou do autor da herança, à data da morte e, ainda, o do lugar onde o devedor tinha o centro dos seus principais interesses; A instrução e decisão de todos os termos do processo de insolvência, bem como dos seus incidentes ou apensos, compete sempre ao juiz singular. O próprio processo de insolvência, uma vez instaurado, tem as seguintes particularidades: A instância do processo não é passível de suspensão, exceto nos casos expressamente previstos no próprio Código (artigo 8.º, n.º1); Ela suspende-se caso, contra o mesmo devedor, corra processo de insolvência, primeiro instaurado (artigo 8.º, n.º2); O processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, tem caráter urgente e goza de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal (artigo 9.º, n.º1); As citações, notificações, publicações e registos gozam de regimes mais expeditos (artigo 9.º, n.º2 a 5); As autoridades públicas titulares de créditos podem, a todo o tempo, confiar a mandatários especiais a sua representação no processo de insolvência, em substituição do Ministério Público (artigo 13.º).
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Temos, depois, desvios importantes em relação aos princípios gerais do processo: O princípio do inquisitório: no processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes – artigo 11.º; A quebra do contraditório: a audiência do devedor, incluindo a citação, pode ser dispensada quando acarrete excessiva o facto de residir no estrangeiro ou ter paradeiro desconhecido (artigo 12.º, n.º1); O grau único de recurso: salvo oposições de julgados não há recurso dos acórdãos proferidos pelo tribunal da relação (artigo 14.º, n.º1. Resta acrescentar que o valor da ação de insolvência é o do ativo do devedor (artigo 15.º), que ficam ressalvados certos procedimentos especiais (artigo 16.º) e que o Código de Processo Civil tem aplicação subsidiária (artigo 17.º).
39.º - Medidas inovatórias
Enumeração: o Código da Insolvência surge estruturalmente novo. A continuidade em relação ao Direito anterior é assegurada pela Ciência do Direito. Se procurarmos enumerar as grandes linhas inovatórias, encontramos: A primazia da satisfação dos credores; A ampliação da autonomia privada dos credores; A simplificação do processo. Estas linhas vêm, depois, entrecruzar-se em todo o Código, dando azo às mais diversas e inovatórias soluções. Num moderno Direito da Insolvência, existe um conjunto de questões económicas e políticas que cumpre ter presentes. Deverão ser ponderados os interesses dos credores, a concorrência e a concentração das empresas e o mercado de trabalho. Mas também opções como a dupla emprego/desenvolvimento e, naturalmente, a tutela das pessoas, devem ser tidas em boa conta. Sobre tudo isto vão, depois, assentar os custos de transação. Pede-se um processo eficaz, que respeite a verdade material, mas que conduza a um epílogo rápido. Quanto mais depressa for possível entregar a falência aos credores, mais cedo ficará o Estado – particularmente na sua vertente jurisdicional – exonerado de uma responsabilidade que, de todo, não lhe incumbe.
A primazia da satisfação dos credores: como verificámos aquando das reformas vintistas das leis da falência, a problemática sócio económica ligada aos temas concursais levou os legisladores a privilegiar soluções que permitissem a recuperação das empresas. E a esse propósito. A pática do sistema mostrou ser mau caminho. As empresas em dificuldades não se repercutem, pela natureza das coisas, só por si. A obrigatoriedade de percorrer o calvário da recuperação para, depois, encarar a fase concursal, traduzia-se, em regra, num sorvedouro de dinheiro, com especiais danos para os credores e os próprios valores subjacentes à empresa. Podemos apontar três causas para essa situação:
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A empresa recuperável deve ser retomada pelos novos donos sem passivo; ora a sua assunção no quadro da recuperação tendia a implicar a manutenção de passivos anteriores; O processo de recuperação era lento; durante muitos meses, a empresa via aumentar o seu défice, de tal modo que a recuperação se ia desvanecendo; As dificuldades de recuperação afastavam, do processo, os empresários mais dinâmicos e capazes; foi-se criando uma categoria de agentes que tiravam partido da situação sem, necessariamente, pretenderem relanças empresas. No fundo, havia um remar contra o mercado, só possível em cenários nos quais o Estado admitisse injetar importâncias maciças, para tornear as dificuldades. Como contraponto, apenas uma vantagem: o arrastamento das situações levava os trabalhadores a, progressivamente, procurar novos empregos, permitindo, aos poucos, convencer as pessoas da inevitabilidade do encerramento da empresa. A primazia do interesse dos credores (artigo 46.º, n.º1) pretende afastar o óbice da recuperação: esta deixa de ser o fim último do processo; surge à frente, como mera eventualidade, totalmente dependente da vontade dos credores. Mas esta primazia não funcionaria, apenas, em detrimento da empresa: ela exige, também, o sacrifício de terceiros que tenham contratado com a entidade insolvente. Donde o princípio geral do artigo 102.º, n.º1, referente a negócios ainda não cumpridos: o seu cumprimento fica suspenso até o administrador da insolvência declarar optar pela execução ou recusar o cumprimento. Temos um mundo de possibilidades com os contratos em presença. De um modo geral, a preocupação do novo regime é a de permitir, sendo esse o caso, o termo dos contratos envolvidos na falência, sem maiores encargos para os credores. Haverá, caso a caso, que procurar, nos regimes dos contratos expressamente versados no CIRE e nas regras neste previstas, as bases para a aplicação a outros negócios.
A ampliação da autonomia privada dos credores: a reforma não se limitou a reconhecer a primazia da satisfação dos credores, como o objetivo último de todo o processo: ela consigna meios diretos para a prossecução desse encargo e, designadamente: coloca nas mãos dos credores as decisões referentes ao património do devedor e à sua liquidação. A autonomia privada dos credores denota-se nos pontos mais diversos: Qualquer credor, mesmo condicional, pode requerer a insolvência nas condições do artigo 20.º; pode, também, requerer medidas cautelares – artigo 31.º; Os credores podem eleger quem entenderem para o cargo de administrador, em detrimento do administrador provisório indicado pelo juiz – artigo 53.º, n.º1; fixarão, nessa altura, a sua remuneração – artigo 60.º, n.º2; a posição do administrador deve ser funcionalizada, tendo estabilidade60; A assembleia de credores pode prescindir da existência da comissão de credores, substituir os seus membros, aumentar o seu número ou criar a comissão, quando o juiz não a tenha previsto – artigo 67.º, n.º1; Em toda a lógica da insolvência prevalece a assembleia de credores – artigo 80.º; A assembleia de credores delibera sobre a manutenção em atividade do estabelecimento ou estabelecimentos ou sobre o seu encerramento – artigo 156.º, n.º2; ela dá ainda o seu consentimento para atos jurídicos especialmente relevantes
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Pode ser destituído com justa causa (artigo 56.º, n.º1).
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 – artigo 161.º, n.º1; o n.º3 desse preceito enumera, a título exemplificativo, os atos de especial relevo, os quais incluem a venda da empresa; A assembleia de credores pode aprovar um plano de insolvência – artigo 192.º e seguintes; A assembleia de credores pode pôr termo á administração da massa insolvente pelo devedor – artigo 228.º, n.º1, alínea b). De todas estas medidas, a mais visível é a da possibilidade de aprovação do plano de insolvência. Trata-se de uma figura inspirada no Insolvenzplan alemão. O plano de insolvência vem substituir os quatro esquemas antes previstos no CPEF: a concordata, a reconstituição empresarial, a reestruturação financeira e a gestão controlada. Tais hipóteses eram consideradas demasiado rígidas. A recuperação de empresas na sua base surgia, ainda, dificultada pelo esquema lento e pesado que poderia levar à sua aprovação. Perante a lei nova, os credores poderão adotar as medidas que entenderem, no quadro do plano de insolvência. O artigo 195.º, n.º2, alínea b), ainda que a título exemplificativo, permite intuir quatro hipóteses de planos de insolvência:
O plano da liquidação da massa insolvente (Liquidationsplan); O plano de recuperação (Saneirungsplan); O plano de transmissão de empresas (Übertragungsplan); O plano misto.
O concreto conteúdo depende, porém, da vontade das partes. A simplificação do processo; a insolvência da pessoa singular. Todo o processo de insolvência sofreu uma grande simplificação perante o anterior Código. Apenas alguns exemplos: Desaparece o dualismo recuperação/falência, substituído por um processo único: o da insolvência; Todo o processo e os seus apensos têm caráter de urgência, preferindo aos restantes; É evitada a duplicação do chamamento dos credores ao processo; Os registos são urgentes; O processo não pode ser suspenso; As notificações são mais expeditas; Há apenas um grau de recurso. É evidente que a celeridade processual exige uma cultura de ligeireza, por parte dos operadores judiciários, particularmente dos advogados. Mas requer-se, ainda, um esforço judicial, no sentido de ultrapassar a escassez regulativa, através de novas rotinas que permitam prosseguir os fins da insolvência: a rápida satisfação dos credores e, sendo esse o caso, um plano de insolvência que faculte recuperar a empresa. Nos artigos 249.º e seguintes, o CIRE ocupa-se da insolvência da pessoa singular, desde que: Não tenha sido titular da exploração de qualquer empresa nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; À data do início do processo, não tenha: dívidas laborais; mais de 20 credores; um passivo global superior a 300000 euros. Os artigos 235.º e seguintes preveem a exoneração do passivo restante: pode ser concedido, ao insolvente, a exoneração dos créditos sobre a insolvência, que não forem integralmente pagos
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. Encontramos matéria inspirada na Rechtschuldbefreiung da InsO e no processo de insolvência do consumidor, do mesmo diploma. A ideia básica será: A de simplificar o inerente processo; A de facilitar a liberação do devedor, como base para uma nova partida. O regime acabaria por ser pouco aberto.
40.º - A responsabilidade do requerente da insolvência
O problema e o seu interesse: com o fito de aprofundar, em termos jurídico-científicos, um ponto específico do Direito da Insolvência, particularmente apto a integrar essa disciplina nos valores básicos do ordenamento, vamos considerar a responsabilidade do requerente da insolvência. O tema é relevante: a vários títulos. Na verdade, o requerimento de uma insolvência pode ter as mais graves consequências junto do requerido. Finalmente e em qualquer caso:
Citado para uma insolvência, o devedor tem o ónus de se opor (artigo 30.º); Cabe ainda ao devedor o ónus da prova da sua solvência (artigo 30.º, n.º4); Mesmo antes de citado, podem ser tomadas medidas cautelares (artigo 31.º, nº4); Pode ser nomeado um administrador provisório (artigo 32.º).
Tudo isto representa um manancial de prejuízos. Um requerimento da insolvência insubsistente pode, mesmo quando rejeitado, provocar danos em bola de neve de montantes muito elevados. A insolvência, uma vez requerida e mau grado a oposição do devedor, pode prosseguir, chegando-se a uma sentença que a declare, com as vastas consequências elencadas no artigo 36.º CIRE. À sentença pode-se reagir com embargos (artigo 40.º) ou por via de recurso (artigo 42.º): com efeito suspensivo, mas sem impedir a imediata venda de alguns bens (artigo 40.º, n.º3 e 42.º, n.º3). De todo o modo, é evidente que a sentença de declaração de insolvência, mesmo a não subsistir, tem efeitos devastadores, no devedor. Pergunta-se se os graves danos provenientes do simples requerimento da insolvência ou da sua declaração, quando um e outra se venham a revelar inconsistentes, não tem solução. À partida, poderíamos considerar que as diversas pessoas – singulares ou coletivas – correm o risco de, a todo o tempo, serem vítimas de requerimentos improcedentes de insolvência ou, quiçá mesmo, de sentenças de insolvência insubsistentes. Seria, porém, totalmente incompreensível, perante qualquer ordem jurídica civilizada, que tendo o processo sido desencadeado por malquerença, por despeito, por leviandade ou por razões fúteis, nenhuma compensação houvesse para o lesado. Analiticamente, o problema põe-se nos seguintes termos: o requerente da falência deve deduzir uma petição na qual exponha os factos que integram os pressupostos da declaração requerida (Artigo 23.º, n.º1). Se indicar factos falsos ou insubsistentes, o pedido não deixará de ser apreciado liminarmente em termos positivos )artigo 27.º, n.º1), seguindo-se a tramitação subsequente. E tudo prosseguirá, de modo inexorável, até que se apurem os equívocos. Podem alegar-se, conscientemente, os tais factos falsos? E negligentemente? O atual Direito deve poder responder a estas questões. De resto: elas não são novas, pelo que principiaremos pela evolução histórica do tema.
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A evolução do tema nas leis nacionais: o Código Ferreira Borges dispunha: «Revogada a sentença de declaração da quebra, tudo será posto no antigo estado. E o comerciante, contra quem teve logar o procedimento, poderá intentar a sua acção d’indemnização de perdas e damnos, se no procedimento interveio dolo, falsidade, ou injustiça manifesta, contra o auctor da injuria». Temos, aqui, uma previsão muito lata que se caracteriza por prever, em tema de responsabilidade do requerente da falência: Uma ação autónoma; Com recurso às regras gerais da responsabilidade civil: indemnização de perdas e damnos. Na época, culpa e ilicitude estavam, ainda, por autonomizar. O legislador recorria, contudo, a uma fórmula suficientemente ampla, para abranger, em termos atualistas, quer o dolo, quer a negligência. Teria de haver sempre ilicitude culposa; digamos que, embora lata, a responsabilidade não era objetiva. O Código Veiga Beirão manteve um nível específico de proteção para o requerido em autos de falência. Fê-lo a propósito do requerimento da declaração de quebra sem audiência do falido. Dispunha: «Os credores que requererem a declaração de quebra sem audiência do falido respondem para com ele por perdas e danos, sendo convencidos da falta de fundamento para a quebra, salva sempre a ação criminal, se a ela houver lugar». Parecia claro: não se exigia uma específica prova de dolo ou de má fé, valendo apenas a falta de fundamento. Todavia, a responsabilidade aí prevista restringia-se à hipótese em que a quebra era requerida sem prévia audiência do falido. No tocante à falência comum, com audiência do requerido: a questão cairia nas regras gerais da responsabilidade civil, na opinião de Cunha Gonçalves. O Código de Processo Comercial de 24 janeiro 1895 não abrangeu as falências, que se mantiveram no Código Comercial. Seguiu-se-lhes a Lei de 13 maio 1896, que autorizou o Governo a estatuir sobre «o processo a seguir nos casos de fallencia». E assum foi aprovado, em 16 julho 1899, o Codigo de falências. Dispunha o artigo 5.º: «§2.º Denegada a declaração de fallencia ou revogada a sentença que a declarou, o credor que a houver requerido com dolo ou má fé responde para com o arguido por perdas e damnos, salva sempre a ação criminal que tiver logar. «§3.º Tendo sido requerida a declaração de fallencia por mais de um credor, esta responsabilidade é solidaria». Como se vê adotou uma fórmula mais lata do que a do Código Veiga Beirão: reportava uma responsabilidade geral do requerente, independentemente de ele ter pedido a não audiência do requerido. Embora com uma linguagem algo imprecisa, mercê das deficiências então presentes na dogmática da responsabilidade civil, que a doutrina distinguia entre a responsabilidade civil geral (culpa in agendo), que se imporia perante o requerente culposo da falência e a litigância de má fé, própria das regras de processo. O próprio Decreto de 26 julho 1899, que aprovou o Codigo de falências, determinou que:
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 «o governo fará uma nova publicação oficial do código de processo commercial, na qual deverá inserir-se este código de fallencias». O Governo desempenhou-se aprovando, em 14 dezembro 1905, o (novo) Codigo de processo commercial. Este acolheu o Codigo de falências de 1899. A responsabilidade do requerente da falência que fosse desatendido surgia no Código de Processo comercial de 1905, equivalente ao Código das Falências de 1899. Perante essa redação, perguntava-se se, para haver responsabilidade do requerente de falência era mesmo necessário dolo ou má fé ou se se poderia, para além deles, lançar mão do dispositivo geral do artigo 2361.º do Código de Seabra. Cunha Gonçalves respondia pela positiva. A Revista dos Tribunais considerava esta solução muito discutível: quando a lei de processo exigisse requisitos especiais para que o requerente de um ato seja responsabilizado, não seria possível invocar as regras gerais da responsabilidade civil. Evidentemente o problema que a excelente Revista dos Tribunais não logrou transcender foi o de eu, na verdade, litigância de má fé e responsabilidade civil são realidades distintas. Podemos considerar que a evolução, no século XIX, da responsabilidade do requerente de falência deu-se, com clareza, no sentido da culpa in petendo ou responsabilidade pelo intentar de uma ação. A litigância da mé fé tinha o seu campo próprio, bastante restrito e delimitado. A gravidade dos valores aqui em presença explicava a necessidade do recurso à responsabilidade civil. Na conturbada história do Direito falimentar português, seguiu-se o Código das Falências aprovado pelo Decreto-Lei n.º 25.981, 26 outubro 1935. Este Código veio omitir qualquer menção à responsabilidade do requerente da falência. Perante esse silêncio, haveria duas hipóteses: Ou se remetia para os princípios gerais; Ou se admitia uma total irresponsabilidade. Esta última hipótese pareceria bizarra. Quedava a primeira e, ainda aí, com duas sub hipóteses: Ou e aplicavam as regras gerais de responsabilidade civil; Ou se recorreria ao regime processual de litigância de má fé. A Revista dos Tribunais, com dúvidas, pareceu apoiar esta última hipótese. Evidentemente: a alternativa era falsa uma vez que ambos os institutos podem funcionar em simultâneo. Pois bem: num cenário marcado pela instabilidade legislativa, é sabido que os silêncios da lei comprometem o desenvolvimento doutrinário. A responsabilidade do requerente iria entrar numa certa letargia – e isso mau grado a clara aplicabilidade dos princípios gerais. O Código de Falências 1935 teve vida curta: foi absorvido pelo Código de Processo Civil, promulgado pelo Decreto-Lei n.º 29.637, 28 maio 1939. Este diploma retomou a tradição portuguesa de contemplar, de modo expresso, a hipótese do indevido requerimento de falência. Dispunha: «Denegada a declaração de falência ou revogada a sentença que a declarou, verificar-se-á sempre se o requerente procedeu de má fé para o efeito de, em caso afirmativo, ser condenado em multa e indemnização nos termos dos artigo 465.º e seguintes, salva a ação criminal a que houver lugar». A quebra com a tradição da culpa in agendo era manifesta. Mais não fazia do que, a propósito da responsabilidade do requerente, remeter para a litigância de má fé. Evidentemente: ao lado desta, haveria sempre que aplicar os princípios gerais da responsabilidade civil, tal como reclamava Cunha Gonçalves. Pouco animada pela doutrina, a jurisprudência não revelou, neste
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 domínio, grande pujança. Seguiu-se o Código de Processo Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44129, 28 dezembro 1961. Este diploma veio dispor nos seguintes termos: «Denegada a declaração de falência ou revogada a sentença que a tenha declarado, verificar-se-á sempre se o requerente procedeu de má fé para o efeito de, em caso afirmativo, ser condenado em multa e indemnização nos termos dos artigos 456.º e seguintes, salva a ação criminal a que houver lugar». O legislador veio, como se vê e pura e simplesmente, manter a remissão de 1939 – quiçá, inútil – para a litigância de má fé. A novidade cifrou-se na esclarecedora epígrafe. Parece óbvio que, estando, para mais, a falência consignada em pleno Código de Processo Civil, o instituto da litigância de má fé sempre teria aplicação. E quanto à culpa in agendo ou responsabilidade pelo intentar de uma ação? A literatura nacional sobre o tema foi escassa. De todo o modo, a que surgiu, era clara. Dizia Pedro de Sousa Macedo: «Na doutrina, a tendência é para alargar a responsabilidade civil do requerente de falência em casos de culpa, pelo menos de culpa. A temeridade e a ligeireza do requerente pode provocar prejuízos extensos na empresa, pela perda do crédito ou pela suspensão das suas atividades, o que justifica um tratamento especial da responsabilidade processual. Basta a notícia de que se requereu a falência para provocar a retração do crédito, sem que a decisão judicial possa sanar a desconfiança surgida». Pedro de Sousa Macedo exprime o sentir do sistema. Todavia, mantém-se a confusão entre o instituto da litigância de má fé e a culpa in agendo. Não se trata de institutos complementares. A primeira assegura o policiamento do processo, tendo horizontes e escassas hipóteses de ressarcimento; a segunda traduz a via cabal para a eliminação completa de danos. O DecretoLei n.º 177/86, 2 julho, filiado nas tentativas de enquadrar socialmente a falência, criou o processo especial de recuperação da empresa e da proteção dos credores. Nada se dispôs quanto à responsabilidade do quaisquer intervenientes. Paralelamente, manteve-se em vigor o referido artigo 1188. O Decreto-Lei n.º 132/93, 23 abril, aprovou o Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência. No se artigo 9.º, ele revogou os preceitos do Código de Processo Civil relativos à falência, entre os quais o referido artigo 1188. E em sua substituição, nada previu. Apenas o seu artigo 131.º, sob a epígrafe «revogação da declaração de falência», veio dispor: «Se vier a ser revogada a sentença que declarou a falência, serão as custas do processo suportadas pelo requerente, mas a revogação não afeta os efeitos dos atos legalmente praticados pelos órgãos de falência». É óbvio (!) que, sendo revogada a sentença, apenas o requerente suportaria as custas O CPEF foi particularmente inútil, neste ponto. Curiosamente, em 1993, veio repetir-se o sucedido com o silêncio, em 1935, do Código de Falências então promulgado. Mas diferentemente do ocorrido nesta última ocasião, não surgiram doutrinadores a explicar o alcance do silêncio. Pela nossa parte, não temos dúvidas; têm aplicação, em simultâneo: O disposto sobre litigância de má fé, por via dos artigos 542.º e seguintes CPC; As regras sobre a responsabilidade aquiliana, por força do artigo 483.º, n.º1 CC.
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O artigo 22.º CIRE: origem plausível: fixados os parâmetros ontológicos subjacentes à evolução da matéria, passamos a considerar o dispositivo do CIRE relativo à responsabilidade do requerente da insolvência. Dispõe o seu artigo 22.º: «A dedução de pedido infundado de declaração de insolvência, ou a devida apresentação por parte do devedor, gera responsabilidade pelos prejuízos causados ao devedor ou aos credores, mas apenas em caso de dolo». Mas apenas em caso de dolo? Uma interpretação literal e imediata descobrirá, aqui, um caso único, no Direito Português, de uma responsabilidade civil assente, apenas, no dolo. A assim ser: a pessoa que, por descuido grosseiro e indesculpável, viesse com um pedido de declaração de insolvência totalmente descabido, que provocasse os maiores danos patrimoniais e morais, não responderia… por não ter agido com dolo. A solução é tão obtusa que não pode resultar da lei, no seu conjunto. Antes de passar a uma interpretação razoável do preceito, vamos apontar o que supomos ser a sua origem. Ela situa-se no Direito alemão e resultou de uma transposição menos pensada. O Direito alemão não prevê uma especial responsabilidade do requerente de insolvência injustificada. A omissão está em consonância com a inexistência de qualquer dispositivo especial de litigância de má fé ou de responsabilidade. Cairíamos, deste modo, no sistema geral da responsabilidade civil. A jurisprudência veio, todavia, a tomar uma posição muito restritiva. No caso liderante do BGH 3 outubro 1961, entendeu-se que o requerente infundado de insolvência não responderá por negligência. Essa posição foi mantida em múltiplas decisões subsequentes. Com a seguinte argumentação subjacente: uma vez que está em causa o recurso legítimo aos tribunais do Estado, a responsabilidade teria de operar por via do §826.º BGB: atuação dolosa e contrária aos bons costumes. O mero dolo nem seria suficiente. O §826 BGB, que não tem equivalente no Direito português, só admite a responsabilidade por violação dos bons costumes no caso de dolo. A doutrina discorda. Logo na altura, Fritz Baur explica que a atuação negligente não é lícita. Segue-se Walter Zeiss, que considerou a opção do BGH insuportável. De igual modo, em recensão a Klaus Hopt, esse Autor apoia as críticas por este formuladas à orientação do BGH. Também Loritz, quanto a uma questão paralela, se mostra adverso a tal opção. Michael App sustenta que a responsabilidade do requerente injustificado de insolvência deveria seguir os moldes gerais do §823.º BGB: por dolo ou por negligência. Os comentaristas e os tratadistas atuais mantêm o criticismo em relação à opção restritiva da jurisprudência alemã. Aponta-se a responsabilidade pelo §823.º BGB; a necessidade de alargar a responsabilidade à negligência grosseira, não se devendo afastar aqui os deveres de cuidado. A hipótese do escopo abusivo é também referida. Na verdade, a opção do BGH alemão surge inadequada, mesmo na sua área de jurisdição. E todavia: parece ter sido essa a doutrina que o legislador de 2004 decidiu importar para o Direito português. Devemos, também aqui, ter o sentido das proporções. Explicam os especialistas que, na Alemanha, o requerido é protegido pelo juiz. Os requerimentos de insolvência são resolvidos com rapidez, afastando-se, de imediato ou em poucos dias os que se apresentem injustificados. Ora entre nós, um pedido infundado de insolvência pode demorar muitos anos até ser esclarecido e afastado. Entretanto, temos toda a margem do Mundo para que a entidade indevidamente requerida caia, mesmo, em insolvência: e isso por via do requerimento! Uma solução má, para a Alemanha, é péssima, para nós. A utilização do Direito Comparado na feitura das leis não pode operar sem um conhecimento do terreno e sem uma ponderação das consequências a que pode conduzir.
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Interpretação integrada: o alcance injustificadamente restritivo do artigo 22.º deve ser reduzido com recurso a uma interpretação integrada. A sua inadequação não suscita dúvidas. Mas há que agir. Assim, Luís Menezes Leitão propôs que, por analogia, a responsabilidade do artigo 22.º CIRE se aplicasse, pelo menos, à negligência grosseira: culpa lata dolo aequiparatur. Esta saída é o minimum aceitável. Aparentemente, o artigo 22.º transcrito prevê: A responsabilidade do requerente e a do devedor apresentante; Por danos causados ao devedor ou aos credores. Não ode ser: é obvio que o devedor apresentante não é responsabilizável por danos causados… a ele mesmo. A lei, por imperativo de sintaxe, quer dizer: O requerente é responsável por danos que cause ao devedor, com o requerimento indevido; O devedor é responsável por danos que cause aos credores, com a apresentação indevida. No primeiro caso, o requerente deve agir com o cuidado requerido ao bonus pater familias, nos termos gerais do artigo 487.º, n.º2 CC. No segundo caso, o devedor deve cumprir o dever de apresentação previsto no artigo 18.º, n.º1 CIRE, sendo a insolvência imediatamente declarada – artigo 28.º CIRE. Perante isso e na dúvida, o bonus pater familias que se apresente á insolvência não pode ser sancionado ainda que se venha a descobrir que, afinal, essa sua iniciativa veio prejudicar os próprios credores. Mas sê-lo-á se tiver agido com dolo. E neste ponto, aceitamos a sugestão crítica que dirigiu Menezes Leitão: o devedor que se apresente à insolvência e, com negligência grosseira, prejudique os credores, é responsável: o dolo é, no Direito Civil, sempre acompanhado pela negligência grosseira. Em suma: a exigência de dolo (leia-se dolo ou negligência grosseira) constante do artigo 22.º CIRE, pela própria lógica sintática do preceito, dobrada pelas exigências de coerência, de acordo (de cuja presunção o legislador desfruta, nos termos do artigo 9.º, n.º3 CC) e de lógica do sistema, apenas se aplica à indevida apresentação do devedor, para efeitos de imputação dos danos causados aos credores. De outra forma, em vez do final «mas apenas em caso de dolo», claramente ligado «aos credores», dir-se-ia: «A dedução de pedido infundado de declaração de insolvência ou a indevida apresentação do devedor geram responsabilidade pelos prejuízos dolosamente causados». Quanto ao pedido infundado: ele é ilícito e responsabiliza, por dolo ou mera culpa, nos termos do artigo 483.º,n.º1 CC. É evidente que a interpretação do artigo 22.º CIRE, acima exarada – como é – uma exigência da leitura coerente do texto desse preceito vai, sobretudo, ao encontro das poderosas diretrizes jurídico-científicas aqui presentes, que temos vindo a apurar.
A aplicabilidade na insolvência da litigância de má fé, do abuso do direito de ação e da culpa in agendo ou in petendo: a matéria da insolvência é, em geral, Direito Privado. Mas o Direito de requerer a insolvência tem uma clara colocação processual. E no âmbito da ação de insolvência, requerente e requerido podem adotar as mais diversas condutas. Essa dimensão, quer um quer outro podem litigar de má fé. Aplica-se, nesse domínio e diretamente, os artigos 542.º e seguintes CPC: é a concretização da polícia no processo. Ao requerer uma insolvência, o interessado pode incorrer em venire contra factum proprium, em tu quoque ou em desequilíbrio no exercício, violando a boa fé. Há abuso do direito de ação, devendo seguir-se as consequências
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 daí resultantes. Finalmente: o requerente de insolvência pode agir sem que se verifique algum dos factos referidos no artigo 20.º, n.º1 CIRE. Nessa altura, o requerimento é infundado e, como tal, ilícito. Havendo dolo ou mera culpa (artigo 483.º, n.º1 CC), o requerente é responsável: Por danos morais: bom nome e reputação, direito à imagem, direito à intimidade da vida privada e direito à integridade psíquica; Por danos patrimoniais: atentado aos direitos de propriedade, de liberdade de empresa, de liberdade de trabalho e de integridade patrimonial. Ficam envolvidos, nos termos gerais, os danos emergentes e os lucros cessantes.
41.º - Valoração do Código da Insolvência
Aspetos gerais: o legislador goza de uma presunção de acerto – artigo 9.º, n.º3 CC. Perante isso, pergunta-se qual o sentido de valorar uma lei, tanto mais que não estão aqui em causa temas de política legislativa. A nossa perspetiva será simples: procuraremos, tão só, isolar alguns dos valores subjacentes e seguir a sua prossecução no Código. A tradição nacional é severa: não demos fé de, nas últimas décadas, ter surgido algum diploma de fôlego que, no imediato, não lograsse críticas severas dos concidadãos, mesmo quando francamente desajustadas: lembremos o sucedido com o Código do Trabalho. Tempos volvidos, tais vozes cessam. Os juristas reagem mal perante a instabilidade das fontes e, em especial: quando não tenham sido chamados a participar na reforma. Uma valoração objetiva constitui um auxiliar importante, na aplicação do novo diploma. Dá colorido ao sentido geral da interpretação e permite uma mais fácil integração das lacunas. Além disso, a valoração do Código constitui um elemento significativo no pré entendimento da matéria, interagindo com todo o processo de realização do Direito.
As opções básicas: a ideia de um ramo jurídico-normativo dedicado á recuperação das empresas é algo naïf. Só poderia ser operacional se se traduzisse – a favor da empresa a recuperar – em vantagens ou privilégios inacessíveis às restantes e, como tais, contrários à lógica igualitária da economia de mercado. Podemos ir mais longe: a empresa recuperável não chega às portas de um processo judicial de recuperação. Ela obtém, seja dos bancos, seja dos acionistas, seja de terceiros interessados, seja, finalmente, dos próprios operadores económicos, os apoios para relançar o seu funcionamento produtivo. A recuperação será prévia a qualquer processo. A empresa em recuperação judicial perde muito da sua agilidade. A menos que se trate de um expediente para executar um plano integrado mais vasto, a recuperação judicial tende a saldarse por maiores prejuízos para os credores. Parece assim credível a opção de pôr termo à dualidade recuperação/falência. A pessoa incapaz de cumprir as suas obrigações verá o seu património entregue aos credores, sob a fiscalização do Estado. Temos a insolvência a qual, todavia, surge compatível com um plano – o plano da insolvência – que permita aproveitar as estruturas empresariais recuperáveis. As exigências formais redundam em demoras que apenas fazem subir os custos marginais da insolvência. Só podemos aplaudir a simplificação processual. Apenas lamentamos a dificuldade de recurso para o Supremo (artigo 14.º, n.º1): não cremos que aí residam especiais ganhos, perdendo-se a possibilidade de sedimentar grandes
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 orientações nacionais : um ponto a reponderar. A tríade: primado da insolvência sobre a recuperação, poder e autonomia dos credores da insolvência vêm ao encontro das preocupações atuais, correspondendo, quanto sabemos, à melhor forma de preservar a riqueza.
Técnica e estímulo jurídico-científico: na globalidade, o novo Código assume uma técnica feliz. Houve que introduzir conceitos e sequências criativas. Em diversas circunstâncias, os autores materiais do texto lutaram com a pura inexistência de cobertura linguística, ficando na contingência de criar novas locuções. Tarefa ingrata, sem alternativa e que se presta a criticas fáceis e inadequadas. Norma a norma e caso a caso, os textos da insolvência serão ponderados. Parece-nos inevitável que a criação de novas rotinas demore o seu tempo. Repare-se que, em diversos âmbitos, deparamos com institutos carecidos de aplicação prática anterior. Não é, porém, tarefa de um código de fôlego especificar o dia a dia das funções aplicadoras. O CIRE vem relançar a matéria da insolvência. Fá-lo pelo prisma da sua substancialização. Dispomos, agora, de novas bases para discutir temas como o da estrutura das obrigações e o da natureza da garantia patrimonial. A reconstrução dos direitos subjetivos na insolvência, com um tratamento autónomo para as posições pessoais, as relações duradouras e as situações potestativas, representam desafios jurídico-científicos irresistíveis. Torna-se mais viável, num momento histórico delicado, lançar um domínio autónomo: o Direito da Insolvência. Por fim: há que destacar todo o domínio crescente das insolvências internacionais.
4 – A situação de insolvência61 Critérios para a definição da situação de insolvência: ser insolvente significa ser incapaz de cumprir as suas obrigações, mas essa incapacidade tem que ser certificada em determinado momento, através da declaração de insolvência. Só que essa incapacidade de cumprimento pressupõe uma avaliação complexa podendo ser realizada através de dois critérios principais: a) O critério do fluxo de caixa (cash flow): o devedor é insolvente logo que se torna incapaz, por ausência de liquidez suficiente, de pagar as suas dívidas no momento em que estas se vencem. Para este critério, o facto de o seu ativo ser superior ao passivo é irrelevante, já que a insolvência ocorre logo que se verifica a impossibilidade de pagar as dívidas que surgem regularmente na sua atividade. Trata-se de um critério simples, pois, excluindo os casos em que o devedor se encontra de boa fé em litígio sobre as suas obrigações, o facto de não as pagar no momento do vencimento indicia claramente a sua insolvência; b) O critério do balanço ou do ativo patrimonial (balance sheet ou asset): a insolvência resulta do facto de os bens do devedor serem insuficientes para cumprimento integral das suas obrigações. De acordo com este critério, a insolvência não é afastada pelo facto de o devedor cumprir as obrigações que se vencem no giro normal da sua atividade, uma vez que o que seria decisivo seria o facto de o conjunto dos seus bens não permitir satisfazer as suas responsabilidades.
61
Leitão, Luís Menezes; Direito da Insolência; páginas 75-103, 127-259 e 279-283.
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O critério da lei portuguesa: a insolvência é no Direito Português genericamente definida como a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas pelo artigo 3.º, n.º1 CIRE, sendo este o critério principal para definição da situação de insolvência, o que implica a adoção do critério do fluxo de caixa. A definição legal, que é essencialmente inspirada no §17.º da InsO alemã dever ser adequadamente interpretada. Não está em causa uma situação de impossibilidade em sentido técnico-jurídico que importaria na extinção da obrigação (artigo 790.º). Parece preferível a definição do CPEREF que entendia a insolvência como a impossibilidade de cumprir pontualmente as respetivas obrigações por carência de meios próprios e por falta de crédito. Consequentemente, em face da rejeição do critério do balanço, deve salientar-se que a insolvência corresponde à impossibilidade de cumprimento pontual das obrigações e não à mera insuficiência patrimonial, correspondente a uma situação líquida negativa. Efetivamente, a situação líquida não implica a insolvência do devedor se o recurso ao crédito lhe permitir cumprir pontualmente as suas obrigações, assim como uma situação líquida positiva não afastará a insolvência, se se verificar que a falta de crédito não permite ao devedor superar a carência de liquidez para cumprir as suas obrigações. A lei admite, no entanto, a aplicação em certos casos do critério do balanço. Efetivamente, a insuficiência patrimonial funciona como um critério acessório de definição de insolvência, aplicável às pessoas coletivas e aos património autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma direta ou indireta, os quais são ainda considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao ativo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis (artigo 3.º, n.º2). Estas entidades não deixam de estar igualmente sujeitos ao critério geral da definição da insolvência constante do artigo 3.º, n.º1, funcionando o critério do balanço previsto no artigo 3.º, n.º2, em alternativa, em ordem a facilitar o pedido de insolvência por parte dos credores destas entidades, que podem ser afetados pela responsabilidade limitada dos seus sócios. Assim, estas entidades podem ser declaradas insolventes em caso de o balanço demonstrar a manifesta inferioridade do passivo em relação ao ativo, independentemente da natureza do passivo ou do vencimento das obrigações. No entanto, o artigo 3.º, n.º3, determina a correção deste critério, sempre que o ativo seja superior ao passivo, avaliados segundo as seguintes regras: a) Inclusão no ativo e no passivo dos elementos identificáveis, mesmo que não constantes do balanço, pelo seu justo valor; b) No caso de o devedor ser titular de empresa, valorização da mesma segundo uma perspetiva de continuidade ou de liquidação, consoante o que se afigura mais provável, mas em qualquer caso com exclusão da rubrica de trespasse; c) Exclusão do passivo das dívidas que apenas hajam de ser pagas à custa dos fundos distribuíveis ou do ativo restante, depois de satisfeitos ou acautelados os direitos dos demais credores do devedor (artigo 3.º, n.º3). Permite-se, assim, para efeitos de insolvência, em primeiro lugar, a consideração de outros elementos identificáveis, mesmo que não constando do balanço. Em segundo lugar, admite-se, consoante o que seja mais provável, a valorização da empresa, não apenas numa perspetiva de liquidação, com a determinação do valor do património em caso de alienação imediata, mas também numa perspetiva de continuidade, com a inclusão do valor going-concern, ou seja, a avaliação em termos de mercado da possibilidade de prossecução da atividade da empresa (eventualmente após saneamento). Finalmente, possibilita-se a não consideração no passivo das dívidas que só tenham que ser pagas à custa de fundos distribuídos ou com base no ativo sobrante, após serem satisfeitos ou acautelados os direitos dos credores. Via-se, neste caso, excluir as
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 obrigações de reembolso que apenas se possam concretizar após a satisfação dos credores sociais, como o reembolso do capital social ou estatutário e as prestações complementares e acessórias. Certos-créditos, como os créditos por suprimentos (artigo 48.º, alínea g) ) também deverão ser aqui incluídos. À insolvência atual é ainda equiparada a insolvência iminente, no caso em que o devedor se apresente à insolvência (artigo 3.º, n.º4), permitindo-se assim que a apresentação do devedor se verifique antes de preenchidos os pressupostos da declaração de insolvência. Este critério tem especial relevância para afastar o requisito do vencimento das dívidas constantes do artigo 3.º, n.º1, permitindo ao devedor apresentar-se à insolvência antes desse vencimento sempre que um juízo de prognose permita fazer supor que nessa altura se verificará uma impossibilidade de cumprimento. Naturalmente que o período relevante para efeitos de verificação dessa prognose não poderá ser formulado em abstrato, dependendo do momento em que se verifique o futuro vencimento das obrigações.
5 – Sujeitos passivos da declaração de insolvência
Sujeitos passivos abrangidos pelo regime comum da insolvência: o elenco dos sujeitos passivos da insolvência consta do artigo 2.º, n.º1, que nos dá a seguinte enumeração: a) b) c) d) e)
Quaisquer pessoas singulares ou coletivas; A herança jacente; As associações sem personalidade jurídica e as comissões especiais; As sociedades civis; As sociedades comerciais e as sociedades civis simples sob forma comercial à data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem; f) As cooperativas, antes do registo da sua constituição; g) O estabelecimento individual de responsabilidade limitada; h) Quaisquer outros patrimónios autónomos. Desta enumeração resulta que o elenco dos sujeitos passivos da insolvência compreende tanto pessoas singulares e coletivas como também outras entidades, normalmente designadas como pessoas rudimentares, ou mesmo simples patrimónios autónomos. Pode falar-se neste caso de uma personalidade insolvencial, que não coincide necessariamente com a personalidade jurídica (artigo 66.º CC), nem com a personalidade judiciária em geral (artigos 5.º e seguintes CPC), já que é relativa apenas à suscetibilidade de ser objeto de um processo de insolvência. Em relação às pessoas singulares, elas podem ser sempre declaradas insolventes, independentemente de serem ou não já economicamente independentes, ou mesmo terem plena capacidade jurídica. A insolvência das pessoas singulares é, no entanto, sujeita a regras especiais, de que se destaca a possibilidade de solicitar a exoneração do passivo restante (artigos 235.º e seguintes). As pessoas singulares sujeitas à insolvência podem ser ou não empresários, sendo que a insolvência dos não empresários ou titulares de pequenas empresas é sujeita igualmente a um regime especial (artigos 249.º e seguintes). A referência no artigo 2.º, n.º1, alínea a) às pessoas coletivas abrange as associações e as fundações, mas também as sociedades comerciais (em nome coletivo, por quotas, anónimas, e em comandita), as sociedades civis sob forma comercial, e as cooperativas. É de referir que, em relação às pessoas coletivas, a declaração de insolvência acarreta
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 normalmente a sua dissolução (artigos 182.º, n.º1, alínea e) e 192.º, n.º1 alínea c) CC, artigo 141.º, n.º1, alínea e) CSC, e artigo 77.º, alínea g) CCoop), perdendo posteriormente estas a personalidade jurídica com o encerramento da liquidação. No entanto, após a dissolução da pessoa coletiva, ou enquanto não estiver encerrada a liquidação, continua a ser possível a declaração de insolvência. É igualmente considerada como sujeito passivo da declaração de insolvência a herança jacente (artigo 2.º, n.º1, alínea b) ), a qual pode assim ser declarada insolvente. Herança jacente é a que já foi aberta, mas ainda não aceite nem declarada vaga para o Estado (artigo 2046.º CC). Também são considerados como sujeitos passivos de insolvência as associações sem personalidade jurídica e as comissões especiais (artigo 2.º, n.º1, alínea c) ). Neste caso, as pessoas singulares que as compõem respondem ilimitadamente pelas dívidas que elas contraíram, mas como a sua responsabilidade é subsidiária, a declaração de insolvência abrange antes diretamente estas entidades, sendo a insolvência dos seus membros considerada como derivada. O Código refere autonomamente no artigo 2.º, n.º2, alínea d) como sujeitos passivos de insolvência sociedades civis, que a nosso ver também são pessoas coletivas, e que igualmente se dissolvem com a declaração de insolvência (artigo 1007.º, alínea e) CC). Pelo mesmo motivo, também as sociedades comerciais e as sociedades civis sob forma comercial que tenham iniciado a sua atividade antes da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem estão sujeitas à insolvência (artigo 2.º, n.º1, alínea e) ). Da mesma forma, as cooperativas, antes do registo da sua constituição podem ser objeto de processo de insolvência (artigo 2.º, n.º1, alínea f) ). Pode igualmente ser declarado insolvente o estabelecimento individual de responsabilidade limitada (artigo 2.º, n.º1, alínea g). Neste caso, o artigo 11.º, n.º2 do Decreto-Lei n.º 248/86, 25 agosto, estabelecia que essa falência implicaria a falência do comerciante individual que é seu titular se se demonstrasse que não tinha sido respeitado o princípio da separação patrimonial na gestão do estabelecimento. Esta norma deve, porém, considerar-se tacitamente revogada pelo CIRE, na medida em que, sendo o estabelecimento individual de responsabilidade limitada sujeito passivo de declaração de insolvência, parece que a sua insolvência possa afetar automaticamente o seu titular, caso não se verifique em relação a ele o requisito da impossibilidade de cumprimento das suas obrigações vencidas (artigo 3.º, n.º1). A insolvência do estabelecimento não deixará, porém, de o afetar igualmente enquanto seu administrador, mesmo que ele tenha respeitado o princípio da separação patrimonial. Finalmente, podem ser declarados insolventes quaisquer outros patrimónios autónomos (artigo 2.º, n.º1, alínea h) ). Nestes casos, em vez de o devedor ser objeto de um processo de insolvência geral, que abrange universalmente o seu património, a insolvência é restrita a uma parte do seu património, sujeita a um regime especial de responsabilidade por dívidas, o que legitima a que se fale em insolvência especial ou particular.
Regimes especiais: 1. Generalidades: o artigo 2.º, n.º2, vem, porém, excluir do regime comum da insolvência as pessoas coletivas e as entidades públicas empresariais. Para além disso, o referido regime não é aplicável às empresas de seguros, instituições e crédito, sociedades financeiras às empresas de investimento que prestem serviços que impliquem a detenção de fundos ou de valores mobiliários de terceiros e aos organismos de investimento coletivo, sempre que se mostre incompatível com o regime especial a que essas entidades são sujeitas. Temos então nesta disposição duas situações distintas: a. Uma exclusão total de aplicabilidade: no caso de se tratar de pessoas coletivas públicas e entidades públicas empresariais; e
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 b. Uma aplicabilidade condicionada: à inexistência de disposição especial incompatível com o seu regime, como sucede no caso das empresas de seguros, instituições de crédito, sociedades financeiras, empresas de investimento que prestem serviços que impliquem a detenção de fundos ou de valores mobiliários de terceiros e organismos de investimento coletivo.
6 – A massa insolvente 224 O âmbito e a função da massa insolvente encontram-se definidos no artigo 4.º. Em termos de âmbito, esta abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que este adquira na pendência do processo, só sendo, no entanto, os bens isentos de penhora integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os integrar e a impenhorabilidade não for absoluta. Em termos de função, esta destina-se primordialmente à satisfação das dívidas da própria massa insolvente (artigo 51.º) e apenas depois dos créditos sobre a insolvência. Esta destinação da massa insolvente ao pagamento das suas dívidas e dos créditos sobre a insolvência implica a sua qualificação como um património de afetação. Em relação aos bens e direitos que compõem a massa insolvente, estes correspondem em princípio à totalidade do património do devedor à data da declaração de insolvência (artigo 601.º CC). Apesar de a lei não o referir, naturalmente que se deverão considerar integrados na massa insolvente os bens dos responsáveis legais das dívidas do insolvente, ou sejas das pessoas que respondam pessoal e ilimitadamente pela generalidade das suas dívidas, ainda que a título subsidiário (artigo 6.º, n.º2). No caso de o insolvente ser casado no regime de comunhão de bens ou adquiridos, a massa insolvente compreende, não apenas os seus bens próprios, mas também a sua meação nos bens comuns (artigo 1696.º CC). Podem, porém, nesse caso ambos os cônjuges se encontrar em situação de insolvência, caso em que estes se podem apresentar simultaneamente à insolvência ou esta ser requerida contra ambos (artigos 264.º e seguintes). No caso de o cônjuge do insolvente não ser parte no processo, o mesmo adquire o direito de separar da massa insolvente os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns (artigo 141.º, n.º1, alínea b) ), podendo igualmente essa separação ser ordenada pelo juiz, a requerimento do administrador da insolvência, instruído com parecer favorável da comissão de credores, se existir (artigo 141.º, n.º3). Na medida em que implica a partilha de bens comuns do casal, a liquidação do património do insolvente configura uma exceção ao princípio da imutabilidade da convenção antenupcial e do regime de bens (artigo 1715.º, n.º1, alínea d) CC). A massa insolvente compreende, no entanto, ainda os bens que o devedor for adquirindo na pendência do processo e, bem assim, aqueles que forem sendo reintegrados no mesmo, através do exercício pelo administrador de insolvência da resolução em benefício da massa (artigos 120.º e seguintes). Em termos de exclusões, não são compreendidos na massa insolvente os bens absoluta ou totalmente impenhoráveis (artigo 736.º CPC). Já os bens relativamente impenhoráveis (artigo 737.º CPC) e os bens parcialmente penhoráveis (artigo 738.º CPC) apenas nela podem ser integrados se forem voluntariamente apresentados pelo devedor (artigo 46.º, n.º2). Também não são compreendidos na massa insolvente os bens pertencentes ao devedor que sejam objeto de restrição de responsabilidade pelas obrigações deste, como sucede com os bens adquiridos pelo mandatário em execução do mandato sem representação (artigo 1184.º CC).
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7 – A classificação dos créditos
Generalidades: dado que na situação de insolvência se verifica necessariamente um desequilíbrio entre o ativo e o passivo do insolvente, importa determinar, não apenas quais os bens e direitos que integram o seu ativo (a massa involvente), mas também quais as obrigações que esse ativo pode ser a vir chamado a satisfazer, ou seja, qual o passivo insolvente. Este é naturalmente composto pelo conjunto de créditos que podem ser exercidos contra o insolvente, pelo que em princípio a massa insolvente pode vir a ter que responder por todos eles. No entanto, a lei estabelece que a massa insolvente deve primordialmente satisfazer aqueles créditos que são consequência da própria situação de insolvência (as denominadas dívidas da massa insolvente – artigo 51.º), pelo que apenas depois de estes estarem satisfeitos, é que se procede ao pagamento dos créditos cujo fundamento seja anterior à própria situação de insolvência ou tenham sido adquiridos no decurso do processo (os denominados créditos sobre a insolvência – artigos 46.º e seguintes).
As dívidas da massa insolvente: são consideradas dívidas da massa insolvente aquelas cujo fundamento reside na própria situação de insolvência. O artigo 51.º institui uma enumeração exemplificativa dessas dívidas, em termos que justificam esclarecimento. Nos termos da alínea a), são consideradas como dívidas da insolvência as custas do próprio processo de insolvência. Integram-se igualmente nas dívidas da massa insolvente as remunerações do administrados de insolvência e as despesas deste e dos membros da comissão e credores (artigo 51.º, alínea b) ). São igualmente consideradas como dívidas da massa insolvente as dívidas emergentes de atos de administração, liquidação e partilha da massa (artigo 51.º, alínea c) ) e as dívidas resultantes da atuação do administrador da insolvência (artigo 51.º, alínea d) ), ou do administrador judicial provisório (artigo 51.º alínea h) ), no exercício das respetivas funções. Compreende-se que estas obrigações integrem as dívidas da massa, uma vez que sua assunção se apresenta como essencial à realização da função do processo de insolvência. A lei faz ainda incluir no conceito de dívidas da massa, aquelas que: a) Resultem do contrato bilateral cujo cumprimento não possa ser recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida e que se reporte a período anterior à declaração de insolvência (artigo 51.º, alínea e) ); b) Resultem de contrato bilateral cujo cumprimento não seja recusado pelo administrador de insolvência, salvo na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte anteriormente à declaração de insolvência ou em que se reporte a período anterior a essa declaração (artigo 51.º, alínea f) ); e c) Resultem de contrato que tenha por objeto uma prestação duradoura, na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte e cujo cumprimento tenha sido exigido pelo administrador judicial provisório (artigo 51.º, alínea g) ). Quando o administrador da insolvência (ou o administrador judicial provisório) exige o cumprimento dos contratos celebrados pelo insolvente, seja porque decide não recusar o seu cumprimento (artigos 102.º, n.º1, e 103.º, n.º3 e 5), seja porque a lei veda essa recusa (artigos 105.º, n.º1, alínea a), 106.º, n.º1), é natural que a obrigação correspondente adquira a natureza
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 de dívida da massa, dado que na hipótese contrária a outra parte se veria obrigada a realizar uma prestação, sem ter qualquer garantia relativa à realização da contraprestação. Constituem igualmente dívidas da insolvência aquelas que tenham por forte o enriquecimento sem causa da massa insolvente (artigo 51.º, n.º1, alínea i) ). Estando em causa um enriquecimento sem causa (artigo 473.º, e seguintes CC) da própria massa insolvente, e natural que a obrigação de restituição correspondente adquira a natureza de dívida da massa insolvente. Um exemplo da restituição por enriquecimento sem causa ocorre no caso do artigo 126.º, n.º5. Finalmente, constitui dívida da massa insolvente a obrigação de prestar alimentos relativa a período posterior à data da declaração de insolvência, nas condições doo artigo 93.º (artigo 51.º, alínea j) ). Face à importância do crédito de alimentos para assegurar a subsistência do respetivo credor, é natural que este seja qualificado como dívida da massa, ainda que esta só tenha que o satisfazer em casos excecionais. O Código contém ainda referências dispersas a outras obrigações correspondentes a dívidas da massa insolvente. É o que sucede nos artigos 84.º, 140.º, n.º3 e 140.º, n.º2. As dívidas da massa beneficiam de um regime mais favorável no pagamento, dado que o artigo 172.º determina que estas devem ser satisfeitas antes dos créditos sobre a insolvência, ocorrendo o pagamento na data do respetivo vencimento, seja qual for o estado do processo. As dívidas da massa não estão por isso sujeitas ao processo de verificação e graduação de créditos, pelo que não têm que ser reclamadas (artigos 128.º e seguintes), podendo os respetivos credores exigir diretamente o seu pagamento ao administrador da insolvência. Em caso de insuficiência da massa insolvente para satisfação das suas dívidas que tenham sido constituídas por ato do seu administrador, o mesmo é responsável pessoalmente por essas dívidas perante os respetivos credores, podendo, no entanto, elidir a sua responsabilidade, demonstrando que a insuficiência da massa era imprevisível, tendo em conta as circunstâncias conhecidas do administrador e aquelas que ele não devia ignorar (artigos 59.º, n.º2).
Os créditos sobre a insolvência: a) Generalidades: são considerados créditos sobre a insolvência aqueles créditos sobre o insolvente que tenham natureza patrimonial, ou sejam garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à declaração de insolvência (artigo 47.º, n.º1), e ainda queles cujos titulares mostrem tê-los adquirido no decurso do processo (artigo 47.º, n.º3). Não podem, porém, esses créditos revestir a natureza de dívidas de massa insolvente (artigo 51.º), uma vez que estas são sujeitas a um regime próprio, sendo satisfeitas primeiramente (artigo 172.º). A distinção entre as categorias de créditos da insolvência, a que se refere o artigo 47.º, n.º4, pode ser formulada pela forma seguintes: Créditos garantidos são apenas aqueles que beneficiam de uma garantia real, considerando-se como tal também os privilégios especiais. Abrangem assim, além destes, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca e o direito de retenção. As garantias pessoais não relevam consequentemente para a qualificação do crédito como garantido; Créditos privilegiados são aqueles que beneficiam de privilégios creditórios gerais (mobiliários ou imobiliários), os quais não constituem garantias reais por não incidirem sobre coisas determinadas; Créditos subordinados correspondem a uma nova categoria de créditos enfraquecidos, enumerados no artigo 48.º, os quais são satisfeitos depois dos restantes créditos sobre a insolvência;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Créditos comuns são aqueles que não beneficiam de garantia real, nem de privilégio geral, e não são objeto de subordinação. Nos termos do artigo 173.º, o pagamento dos créditos sobre a insolvência depende do seu conhecimento por sentença transitada em julgado. O pagamento dos créditos garantidos é efetuado após o pagamento das dívidas da massa e depois de abatidas as correspondentes despesas, sobre o produto da liquidação dos bens onerados com garantia real, respeitada a prioridade que lhes caiba (artigo 174.º). Já o pagamento dos créditos privilegiados é efetuado com base nos bens não afetados a garantias reais prevalecentes, respeitando a sua prioridade e na proporção dos seus montantes (artigo 175.º). Após estes, tem lugar o pagamento aos credores comuns na proporção dos seus créditos, se a massa for insuficiente para a satisfação integral (artigo 176.º). Finalmente, se ainda houver saldo, poderá ser efetuado o pagamento aos credores subordinados (artigo 177.º). 2. Os créditos garantidos: os créditos garantidos são aqueles cujos titulares beneficiam de garantias reais, nelas se incluindo os privilégios especiais (artigo 47.º, n.º4, alínea a) ), compreendendo não apenas o capital, mas também os juros respetivos, até ao valor dos bens objeto da garantia (artigo 48.º, alínea b), parte final). Entre os créditos garantidos encontram-se assim aqueles que beneficiem de consignação de rendimentos (artigos 656.º e seguintes CC), de penhor (artigos 738.º e seguintes CC), ou de direito de retenção (artigos 754.º e seguintes CC). Insere-se ainda nas garantias reais das obrigações a penhora, mas quer esta, quer a hipoteca judicial, não atribuem ao respetivo crédito a natureza de crédito garantido para efeitos do processo de insolvência, dado que a preferência que atribuem não é atendida neste processo (artigo 140.º, n.º3). Há certas garantias que se extinguem com a declaração de insolvência, pelo que os respetivos titulares deixarão de integrar a classe dos credores garantidos (artigo 97.º, n.º1, alíneas b), c), d) e e) ). No entanto, as garantias que tenham sido convencionadas entre o devedor e os seus credores durante o processo especial de revitalização, com a finalidade de proporcionar àquele os meios financeiros para o desenvolvimento da sua atividade mantêm-se mesmo que, findo o processo, venha a ser declarada, no prazo de dois anos, a insolvência do devedor (artigo 17.º-H, n.º1). Os créditos garantidos são pagos após terem sido deduzidas as importâncias necessárias à satisfação das dívidas da massa insolvente. O pagamento ocorre respeitando a prioridade que lhes caiba, logo após a liquidação dos bens objeto da garantia real, uma vez deduzidas as correspondentes despesas (artigo 174.º, n.º1). O credor garantido tem inclusivamente direito a ser compensado pelo prejuízo causado pelo retardamento da alienação do bem objeto da garantia que lhe não seja imputável, bem como pela desvalorização do mesmo resultante da sua utilização em proveito da massa insolvente (artigo 166.º, n.º1). O administrador da insolvência pode, no entanto, proceder ao pagamento dos créditos garantidos antes de iniciar a venda dos bens, desde que esse pagamento só tenha lugar depois da data fixada para o começo da venda (artigo 166.º, n.º2). O credor pode ainda solicitar no processo de insolvência a aquisição do bem objeto da garantia, nos termos estabelecidos para a venda em processo executivo (artigo 165.º, CIRE e 815.º CPC). 3. Os créditos privilegiados: os créditos privilegiados são aqueles que beneficiam de privilégios creditórios gerais (artigo 47.º, n.º4, alínea a) ). Os privilégios gerais podem ser mobiliários ou imobiliários. Em relação aos privilégios mobiliários gerais pode, a maioria
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 destes encontra-se prevista no Código Civil (ainda, artigos 736.º, 737.º, alíneas a), b), c) e d) CC, esta última alínea revogada parcialmente pelo artigo 333.º do Código do Trabalho – CT – artigo 111.º CIRS, artigo 108.º CIRC), tendo, ainda, o CIRE, numa opção que julgamos criticável, decidido atribuir um privilégio mobiliários geral no montante de 500 UC ao credor requerente da insolvência do devedor (artigo 98.º CIRE), o que leva a que o seu crédito adquira necessariamente a categoria de crédito privilegiado ate esse montante. A reforma do CIRE realizada pela Lei n.º 16/2012, 20 abril, acrescentou ainda um outro privilégio mobiliário geral, atribuído aos credores que no decurso do processo de revitalização financiem a atividade do devedor, disponibilizando-lhe capital para o efeito, privilégio esse que é graduado antes daquele que é concedido aos trabalhadores (artigo 17.º-H, n.º2). 4. Os créditos comuns: os créditos comuns correspondem àqueles que não beneficiam de garantia real, nem de privilégio especial e que não são objeto de subordinação. Serão considerados credores comuns assim todos aqueles que não beneficiem de qualquer garantia real ou privilégio geral, assim como aqueles cuja garantia real ou privilégio geral se extinga por força da declaração de insolvência (artigo 97.º) ou não possa ser atendida no âmbito desse processo (artigo 140.º, n.º3). O facto de os credores beneficiarem de outras garantias de natureza distinta destas, como garantias pessoais, ou alienações em garantia, não afetará a sua natureza de credores comuns para efeitos do processo de insolvência, ainda que o seu pagamento possa ficar condicionado ao não recebimento através da garantia estabelecida (artigo 179.º). 5. Os créditos subordinados: a. Generalidades: são subordinados os créditos enumerados no artigo 48.º, exceto quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência. Os créditos subordinados, embora atribuam normalmente legitimidade para requerer a insolvência (artigo 20.º), não conferem em princípio direito de voto na assembleia de credores, conforme refere o artigo 73.º, n.º3, nem permitem ao respetivo credor integrar a comissão de credores (artigo 66.º, n.º1), e não podem ser compensados com dívidas á massa (artigo 99.º, n.º4, alínea d) ). Para além disso, são pagos apenas depois de satisfeitos os créditos comuns, conforme resulta do artigo 177.º. A ordem de pagamento corresponde à enumeração das alíneas do artigo 48.º, efetuando-se o rateio relativamente a créditos constantes da mesma alínea. Apenas em caso de subordinação convencional (artigo 48.º), o artigo 177.º, n.º2, admite que as partes convencionem uma prioridade diferente. b. Créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, bem como aqueles que tenham sido transmitidos por estas a outrem: a primeira categoria de créditos subordinados corresponde à dos créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor (artigo 49.º), bem como aqueles que tenham sido transmitidos por estas a outrem, designadamente por sucessão por morte (artigos 2024.º e seguintes CC) ou por cessão (artigos 577.º e seguintes CC), sub-rogação (artigos 589.º e seguintes CC) ou cessão da posição contratual (artigos 424.º e seguintes CC). Exige-se, porém, que a relação especial já existisse quando da aquisição do crédito e, no caso de transmissão para terceiro, que este se tenha verificado nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência (artigo 48.º, alínea a) ). O conceito de pessoas
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 especialmente relacionadas com o devedor vem a ser concretizado no artigo 49.º, o qual distingue consoante se trata de pessoas singulares, pessoas coletivas ou patrimónios autónomos. Pode questionar-se se a enumeração do artigo 49.º é taxativa ou meramente exemplificativa. A nosso ver, trata-se de uma enumeração exemplificativa, destinada a concretizar o conceito previsto no artigo 48.º, alínea a), nada impedindo, porém, que noutras situações exista uma relação especial correspondente, caso em que o regime da subordinação não poderá deixar de se aplicar. Pode ainda questionar-se se o artigo 49.º institui uma presunção iuris tantum ou iure et de iure, em relação à existência de uma relação especial com o devedor. A nosso ver, trata-se de uma presunção iuris te de iure, não sendo consequentemente possível às pessoas abrangidas pela previsão do artigo 49.º afastar o regime da subordinação dos seus créditos com a demonstração que não têm nenhuma relação especial com o devedor. c. Os créditos cuja subordinação tenha sido convencionada pelas partes: a lei faz igualmente incluir como créditos subordinados aqueles cuja subordinação tenha sido convencionada pelas partes (artigo 48.º, alínea c) ). Esta convenção de subordinação é legalmente admissível com base na autonomia privada, apesar da consagração do princípio da igualdade dos credores no artigo 604.º, n.º1 CC. Efetivamente, se as partes podem convencionar a atribuição de preferência a um credor (artigo 604.º, n.º2 CC), naturalmente que poderão convencionar igualmente o enfraquecimento do seu crédito em relação aos outros credores, não podendo esta cláusula ser encarada como renúncia aos direitos do credor, para efeitos do artigo 809.º. Parece, no entanto, questionável que esta convenção de subordinação possa resultar de cláusulas contratuais gerais, atento o que se dispõe nos artigos 18.º, alínea c) e 21.º, alínea h) LCCG. d. Os crédito que tenham por objeto prestação do devedor a título gratuito: outra situação de créditos subordinados corresponde àqueles que tenham por objeto prestações do devedor a título gratuito e, portanto, sem correspetivo por parte do respetivo credor. Nesse caso, dado que a aquisição gratuita constitui uma causa minor de aquisição, é compreensível que esta não possa ocorrer em prejuízo dos credores a título oneroso, pelo que se compreende a subordinação. É de notar, aliás, que os atos a título gratuito podem igualmente ser resolvidos em benefício da massa insolvente, sem dependência de quaisquer outros requisitos (artigos 121.º, n.º1, alínea b) ). e. Os créditos sobre a insolvência que, como consequência da resolução em beneficio da massa insolvente, resultem para o terceiro de má fé: por esta via se estabelece uma penalização do terceiro de má fé que praticou atos onerosos em prejuízo da massa insolvente, e que por isso tiveram que ser objeto de resolução em benefício da massa. Esta artigo tem, no entanto, que ser conjugado com o disposto no artigo 126.º, n.º4 e 5, que estabelecem a restituição do objeto prestado por terceiro no caso de o mesmo puder ser identificado e separado dos que pertencem à parte restante da massa, sendo que no caso contrário a obrigação de restituir respetivo valor constitui dívida da massa insolvente na medida do respetivo enriquecimento e dívida da insolvência quanto ao eventual remanescente. Ora, na arte em que constituí dívida da massa insolvente (artigo 51.º, n.º1, alínea i) ), o crédito não poderá naturalmente cosiderar-se
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 subordinado, devendo, por isso, o artigo 48.º, alínea e) ser objeto de uma interpretação restritiva, considerando-se a subordinação restrita à parte em que o crédito resultante da resolução constitui crédito sobre a insolvência. A exigência de que o terceiro esteja de má fé levanta, por outro lado, alguns problemas, dado que a resolução pressupõe normalmente a má fé, real ou presumida (artigo 120.º), só sendo a mesma dispensada nos casos de resolução incondicional, previstos no artigo 121.º, n.º1, os quais, por serem especialmente graves, dispensam a verificação desse requisito. Paradoxalmente, portanto, o créditos objeto de resolução incondicional não são sujeitos à subordinação, a menos que se demonstre a má fé, podendo assim concorrer com os restantes credores comuns. Haverá, por isso, todo o interesse em o administrador da insolvência invocar a má fé do adquirente igualmente nos casos previstos no artigo 121.º devendo considerar-se também aplicável a esses casos a presunção de má fé, estabelecida no artigo 120.º, n.º4
9 – O pedido de declaração de insolvência
A legitimidade para o pedido de declaração de insolvência: o processo de insolvência iniciase com o pedido de declaração de insolvência, a que se referem os artigos 18.º e seguinte CIRE. A legitimidade para apresentar o pedido incumbe em primeira linha ao devedor (artigo 18.º CIRE). No caso, porém, de o devedor ser incapaz, a legitimidade passa a recair sobre o seu representante legal (artigo 19.º e artigo 6.º, n.º1 CIRE). No caso de o devedor não ser pessoa singular, a legitimidade recai sobre o órgão social incumbido da sua administração ou sobre a entidade incumbida da administração ou liquidação do património em causa (artigo 19.º, e artigo 6.º, n.º1, alínea a) CIRE). Para além do próprio devedor, têm legitimidade para requerer a insolvência deste aqueles que forem responsáveis legalmente pelas suas dívidas, qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do crédito e o Ministério Público, em representação das entidades cujo interesses lhe estão legalmente conferidos (artigo 20.º, n.º1 CIRE). No entanto, estes só podem requerer a insolvência se se verificar algum dos factos-índice referidos no artigo 20.º, n.º1, sendo ainda necessário, nos termos gerais, que tenham interesse na respetiva declaração. Naturalmente que faltará o interesse na declaração de insolvência se com ela o requerente visar apenas afastar do mercado um concorrente incómodo ou pretender obter apenas a cobrança do crédito, em lugar de desencadear um processo de execução coletiva contra o devedor. Na verdade, embora seja frequente que os devedores, sob a ameaça de um processo de insolvência, procurem satisfazer esse credor primariamente, a verdade é que tal não pode constituir um fim legítimo do processo de insolvência, até porque, vindo o mesmo a ser efetivamente apresentado nos seus meses subsequente, esse pagamento seria resolvido em benefício da massa (artigo 121.º, n.º1, alínea g) CIRE). A lei atribui legitimidade para requerer a declaração de insolvência a qualquer credor, ainda que condicional, e qualquer que seja a natureza do crédito. É, assim, necessário, para se poder requerer a declaração de insolvência apenas a existência do crédito, devendo o credor justificar na petição inicial, a natureza origem e montante do crédito (artigo 25.º, n.º1 CIRE), tendo que fazer prova do mesmo (artigo 25.º, n.º2).
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A prova do crédito pode ser realizada por qualquer meio, designadamente por testemunhas, apresentação do contrato que o gerou, ou documentação da conta-corrente.
A apresentação à insolvência pelo devedor: alvo no caso de o devedor ser uma pessoa singular não titular de empresa na data em que incorre na situação de insolvência (artigo 18.º, n.º2) tem o dever de requerer a declaração da sua insolvência dentre de 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, definida como a impossibilidade de cumprimento das suas obrigações vencidas, ou à data em que devesse conhecê-la (artigo 18.º, n.º1 CIRE). Em relação aos devedores titulares de empresa, presume-se inilidivelmente esse conhecimento passados três meses da verificação do incumprimento generalizado das suas obrigações tributárias, de contribuições para a segurança social, laborais ou de rendas, prestações e juros relacionados com a locação ou aquisição do local de exercício da atividade, sede ou residências (artigos 18.º, n.º3, e 20.º, alínea g) CIRE). Se o devedor incumprir o seu dever de apresentação à insolvência dentro do prazo, a insolvência será declarada culposa (artigo 186.º, n.º1 e n.º3, alínea a) CIRE), o que determina a aplicação de sanções civis, quer a ele, quer aos seus administradores, de direito ou de facto, tais como a inibição para a administração de patrimónios de terceiros e a inibição para o exercício do comércio das pessoas afetadas, por um período de 2 a 10 anos, a proibição de ocupação de cargo de titular de órgão social e a perda de créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, assim como a condenação na obrigação de restituição dos bens ou direitos recebidos em pagamento desses créditos (artigo 189.º, n.º2, alíneas b), c) e d) CIRE). Para além disso, o incumprimento da obrigação de apresentação à insolvência é considerado fundamento de responsabilidade civil delitual perante os credores (artigo 189.º, n.º2, alínea e) CIRE), uma vez que ocorre a violação de disposição legal destinada a proteger interesses alheios (artigo 483.º, n.º1 CC). O insolvente e os seus administradores, de direito ou de facto, incorrem assim solidariamente na obrigação de indemnizar os danos sofridos pelos credores, em consequência do atraso na apresentação à insolvência. Haverá, no entanto, que distinguir em relação aos danos a indemnizar entre os créditos já constituídos no momento em que a apresentação deveria ter sido efetuada e os créditos que se constituíram após essa data. Em relação aos primeiros, o dano consiste na maior frustração dos créditos em resultado do agravamento da situação patrimonial do devedor posteriormente à data em que a insolvência deveria ter sido requerida, pelo que haverá que averiguar o que os credores teriam recebido em percentagem do valor dos créditos, caso a insolvência tivesse sido oportunamente decretada, e o que efetivamente vieram a receber na liquidação final, sendo a indemnização correspondente à diferença do valor das duas percentagens. Já em relação aos créditos que se constituíram posteriormente, é manifesto que novos credores não celebrariam qualquer contrato, caso tivesse atempadamente ocorrido a declaração de insolvência, pelo que a sua indemnização não ficará limitada à diferença de percentagens, tendo antes que ser indemnizados pelos danos sofridos em resultado de terem celebrado esses contratos. A sua indemnização abrangerá, no entanto, apenas o interesse contratual negativo, pelo que não lhes permitirá reclamar com este fundamento indemnização pelos danos resultantes do incumprimento contratual. Finalmente, o incumprimento do dever de apresentação à insolvência, no caso de esta ocorrer e vier a ser reconhecida judicialmente poderá constituir crime punível com prisão até um ano ou multa até 120 dias, que pode ser agravada em um terço nos seus limites mínimos e máximo se em consequência dos factos resultarem frustrados créditos de natureza laboral (artigos 228.º, n.º1, 229.º-A CP). O artigo 3.º, n.º4, refere que se equipara à situação de insolvência atual a que seja meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência. Resulta, assim desta
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 disposição que o devedor pode apresentar-se à insolvência, mesmo que não se tenha verificado já o incumprimento das obrigações vencidas, desde que esse incumprimento venha a produzir necessariamente face ao posterior vencimento de obrigações que o devedor não poderá satisfazer. Resta, porém, saber se a insolvência iminente determina logo que se inicie o prazo constante do artigo 18.º, n.º1, para o devedor se apresentar à insolvência, ou se esse prazo só se inicia a partir do momento em que ocorre a insolvência atual. Atendendo à circunstância de o artigo 18.º, nº.1 remeter apenas para o artigo 3.º, n.º1, e não para o n.º4, aliado ao facto de ser extremamente insegura a determinação do momento em que se verifica a insolvência iminente, parece-nos preferível a segunda solução. Já as pessoas singulares, que não sejam titulares de uma empresa na data em que incorram em situação de insolvência, não têm o dever de apresentação à insolvência (artigo 18.º, n.º2 CIRE), pelo que nesse caso a insolvência «não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento na situação económica do insolvente» (artigo 18.º, n.º5 CIRE). Poderá haver, no entanto, interesse na apresentação à insolvência em ordem a possibilitar ao devedor a obtenção da exoneração do passivo restante, nos termos dos artigos 235.º e seguintes, CIRE, ou a apresentação de um plano de pagamentos aos credores, nos termos dos artigos 251.º e seguintes CIRE.
O requerimento da insolvência pelos outros legitimados: sendo a insolvência solicitada pelos responsáveis das dívidas do devedor, pelos credores ou pelo Ministério Público, estes terão que produzir prova relativamente à sua condição de interessados na declaração de insolvência e à verificação de algum dos factos referidos no artigo 20.º CIRE. Esses factos constituem meros índices da situação de insolvência, tal como definida no artigo 3.º. No entanto, conforme resulta dos artigos 30.º, n.º2 e 35.º, n.º4 CIRE, qualquer deles é condição suficiente da declaração de insolvência, se a presunção de insolvência que traduzem não vier a ser ilidida. Neste âmbito, há que tomar em consideração que o principal índice é a anteriormente denominada cessação de pagamento pelo devedor, que se desdobrou agora pelas alíneas a), b) e g), parecendo, aliás, existir alguma sobreposição entre estas alíneas. Da sua redação parece resultar que a alínea a) de refere a uma não realização generalizada dos pagamentos no momento do vencimento, independentemente da fonte ou da natureza dessas obrigações. Já a alínea b) se refere ao incumprimento de apenas uma ou várias obrigações, do qual se possa, porém, inferir a impossibilidade de o devedor satisfazer a generalidade dos seus compromissos. Finalmente, a alínea g) refere-se ao incumprimento generalizado, nos seis meses anteriores, de obrigações de natureza específica, como as tributárias, relativas à segurança social, salariais, ou de rendas ou prestações devidas pela aquisição da sede ou residência, daqui resultando que, nesse caso, a insolvência pode ser requerida sem ter que se demonstrar a incapacidade financeira, e sem que o incumprimento se estenda a outras categorias de obrigações. Este último facto-índice não deixa de ser, no entanto, difícil de controlar por outros credores, parecendo que se quer apenas legitimar certos credores a requerer a insolvência, baseados no incumprimento generalizado de dívidas da mesma categoria. Na alínea c) prevê-se outro índice, que é a fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor, ou abandono do lugar em que a empresa tem sede ou exerce a sua principal atividade, sem que seja designado substituto idóneo. Trata-se de uma situação de especial gravidade, que justifica por isso o decretamento da situação de insolvência como tem sido tradicional. Esta norma não se aplicará aos devedores não titulares de empresa. A lei vem,
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 porém, exigir que a figa ou abandono do local se relacione com a falta de solvabilidade do devedor, o que parece redundante, dado que se está perante um índice da insolvência, tal como definida no artigo 3.º CIRE. Efetivamente, a fuga ou o abandono do lugar do estabelecimento, sem deixar quem exerça a sua gestão, constitui um índice evidente do estado de falência, mesmo que desacompanhado de qualquer cessação de pagamentos, apesar de em regra a preceder. A ausência tem que ser, no entanto, injustificada, já que nos casos de luto, doença ou ausência por razões familiares não se justifica decretar a insolvência. Da mesma forma, é essencial que não seja designado substituto idóneo, pois, no caso de o comerciante deixar quem lhe gira adequadamente o negócio, não se justifica presumir a insolvência, pois não se verifica a impossibilidade de cumprir quem a caracteriza. Na alínea d) faz-se incluir como índice da insolvência a realização de atos de onde resulta o empobrecimento voluntário do devedor, na intenção de prejudicar os seus credores. Efetivamente, tomando os credores conhecimento desses atos, justifica-se que possam solicitar imediatamente a insolvência do devedor, em ordem a evitar maiores prejuízos, sendo que no processo de insolvência esses atos são resolúveis em benefício da massa, nos termos dos artigos 120.º e 121.º. Este facto-índice não se encontra necessariamente relacionado com a impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas, dado que, uma vez demonstrada esta situação, qualquer credor ou Ministério Público podem requerer a insolvência, mesmo que o devedor não tenha deixado de cumprir as suas obrigações. Na alínea e) determina-se que constituirá índice da insolvência a insuficiência de bens do devedor para satisfação do crédito do exequente, verificada em processo executivo. É, no entanto, de salientar que neste caso presumivelmente se continuará a verificar a insuficiência da massa insolvente para pagamento dos créditos, com a consequente aplicação do artigo 39.º e 191.º CIRE. Na alínea f) considera-se igualmente como índice de insolvência o incumprimento das obrigações incluídas no plano de insolvência, a que se referem os artigos 129.º e seguintes, ou no plano de pagamentos, a que se referem os artigos 251.º e seguintes. Esta solução resulta do facto de a questão do incumprimento desses planos, os quais são aprovados no âmbito de um processo de insolvência, não poder ser resolvida no âmbito desse processo, que é normalmente encerrado com a sua aprovação (artigos 230.º, n.º1, alínea b) e 259.º, n.º4 CIRE), justificando, por isso, esse incumprimento antes um novo processo de insolvência (artigo 261.º, n.º1, alínea a) CIRE). É de salientar, ainda, que o incumprimento acarreta a ineficácia das moratórias e perdões concedidos no âmbito do plano (artigo 218.º e 260.º CIRE). Finalmente, na alínea h) estabelece um específico índice da insolvência em relação às pessoas coletivas e patrimónios autónomos pelos quais nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, consistente na manifesta superioridade do passivo em relação ao ativo, ou no atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas legalmente obrigatórias. É um facto-índice que se justifica, dada a definição específica de insolvência que o artigo 3.º, n.º2 CIRE estabelece em relação a essas entidades.
Consequências da dedução de pedido infundado: o artigo 22.º CIRE vem estabelecer que «a dedução de pedido infundado de declaração de insolvência, ou a indevida apresentação por parte do devedor, gera responsabilidade pelos prejuízos causados ao devedor ou aos credores, as apenas em caso de dolo». Não nos parece, porém, aceitável que a lei possa consagrar uma responsabilidade limitada ao dolo por parte de quem decida mover infundadamente um pedido de declaração de insolvência, sabendo-se que no âmbito da responsabilidade civil a regra geral é que tanto se responde por dolo como por negligência (artigo 483.º, n.º1 CC) apenas se admitindo uma limitação da
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 indemnização neste último caso (artigo 494.º CC). Por outro lado, a solução genericamente aplicável para a dedução de ações infundadas é a da responsabilidade tanto por dolo como por negligência, o que resulta, quer do regime geral da litigância de má fé (artigo 542.º CPC), quer dos regimes específicos para a dedução de providências cautelares injustificadas (artigo 374.º CPC), quer da execução sem citação prévia do exequente (artigo 858.º CPC). Consequentemente, este artigo 22.º CIRE, ao se referir a uma ação especialmente grave, que é o pedido de insolvência, estabeleceria uma menor responsabilização do seu autor do que o que é comum em ações de consequências bastantes menos gravosas, o que instituiria uma contradição valorativa insustentável. Não há efetivamente qualquer razão para que quem mova negligentemente um pedido de declaração de insolvência deixe de responder pelos prejuízos causados, não fazendo por isso sentido a limitação deste artigo 22.º CIRE. Precisamente por esse motivo, sustentámos em obra anterior que pelo menos esta disposição poderia ser analogicamente aplicável à negligência grosseira, podendo invocar-se nesse sentido o velho brocardo culpa lata dolo aequparatur, posição que teve, para essa hipótese específica, o apoio de Carvalho Fernandes e João Labareda. Menezes Cordeiro veio, porém, propor uma hermenêutica diferente. A seu ver, haveria que distinguir entre a apresentação do pedido pelo devedor, que gera responsabilidade perante os credores, e a sua apresentação por um dos credores, que gera responsabilidade perante o devedor. No primeiro caso, a responsabilidade do devedor ficaria limitada ao dolo. Já no segundo caso, o credor responderia nos termos gerais, se omitir a diligência do bom pai de família (artigo 487.º, n.º2 CC). Trata-se de uma interpretação coerente, mas não deixamos de salientar que, também, em relação ao devedor, não se justifica excluir a sua responsabilidade por indevida apresentação, pelo menos em caso de negligência grosseira. Já não parece, no entanto, justificar-se a responsabilização do requerente por pedido infundado nos caso em que este consegue provar algum facto-índice da insolvência, entre os referidos no artigo 20.º, n.º1 CIRE, tendo sido o devedor que, na sua oposição, elide a presunção de insolvência nos termos do artigo 30.º, n.º4 CIRE. Efetivamente, nesta situação não existe dolo, nem sequer negligência grosseira.
14 – A sentença de declaração de insolvência e seus efeitos
Conteúdo, notificação, citação e publicidade da sentença: a sentença de declaração de insolvência deve obedecer ao conteúdo referido no artigo 36.º CIRE. Assim, além de indicar a data e a hora da respetiva prolação, que na falta de outra indicação se considera o meio-dia (artigo 36.º, alínea a) CIRE), a sentença identifica o devedor insolvente, com indicação da sua sede ou residência (artigo 36.º, alínea b) CIRE), fixando residência aos administradores, de direito ou de facto, do devedor, bem como ao próprio devedor, se este for pessoa singular (artigo 36.º, alínea c) CIRE). Para além disso, a sentença nomeia o administrador da insolvência, com indicação do seu domicílio profissional (artigo 36.º, alínea d) CIRE), podendo, no entanto, determinar que a administração da massa insolvente será assegurada pelo próprio devedor, quando se verifiquem os pressupostos exigidos pelo n.º2 do artigo 224.º CIRE (artigo 36.º, alínea e) e artigos 223.º e seguintes CIRE). O juiz pode ainda nomear uma comissão de credores (artigo 66.º CIRE), sem prejuízo da faculdade de a assembleia de credores dela prescindir (artigo 67.º CIRFE). A sentença determina ainda, como providências instrumentais, a entrega pelo devedor dos documentos referidos no n.º1 do artigo 24.º CIRe, quando não constem dos autos (artigo 36.º, alínea f) CIRE)
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 e a apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens do devedor, para entrega ao administrador da insolvência (artigo 36.º, alínea g) e artigos 149.º e 150.º+ CIRE). A sentença ordena também a entrega ao Ministério Público dos elementos que indiciem a prática de infração penal (artigo 36.º, alínea h) CIRE) e, caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação da insolvência, declara aberto o incidente da qualificação da insolvência, com caráter pleno ou limitado, sem prejuízo do disposto no artigo 187.º CIRE (artigo 36.º, n.º1, alínea i) CIRE). A sentença designa ainda, até 30 dias, para a reclamação de créditos (artigo 36.º, n.º1, alínea j) CIRE). Após a sentença, são citados para a ação os credores, variando a forma de citação consoante a categoria de credor em causa. Em relação aos cinco maiores credores conhecidos, com exclusão do que tiver sido requerente, estes são citados pessoalmente ou por carta registada, consoante tenham ou não residência habitual, sede ou domicílio e Portugal (artigo 37º, n.º3 CIRE). Os credores conhecidos com residência habitual, domicílio ou sede noutros Estados-Membros da União Europeia são citados por carta registada, em conformidade com os artigos 40.º e 42.º Regulamento (CE) n.º 1346/2000, do Conselho de 29 maio (artigo 37.º, n.º4 CIRE). A declaração de insolvência e a nomeação do administrador da insolvência são registadas oficiosamente na conservatória do registo civil, se o devedor for uma pessoa singular (artigo 38.º, n.º2, alínea a) CIRE), na conservatória do registo comercial,, se houver factos relativos ao devedor insolvente sujeitos a esse registo (artigo 38.º, n.º2, alínea b) CIRE) e na entidade encarregada de outro registo público a que o devedor esteja eventualmente sujeito (artigo 38.º, n.º2, alínea c) CIRE). A declaração de insolvência é ainda inscrita no registo predial, relativamente aos bens que integrem a massa insolvente, com base em certidão judicial da declaração de insolvência transitada em julgado, se o serviço do registo não conseguir aceder à informação necessária por meios eletrónicos, em declaração do administrador da insolvência que identifique os bens (artigo 38.º, n.º3 CIRE). A secretaria deve ainda registar oficiosamente a declaração de insolvência e a nomeação do administrador da insolvência no registo informático de execuções (artigo 38.º, n.º6, alínea a) CIRE).
A hipótese da insuficiência da massa insolvente: no caso de o juiz concluir que o património do devedor não é presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente (artigo 51.º CIRE), o que se presume sempre que esse património seja inferior a 5000€ (artigo 39.º, n.º9 CIRE) e essa satisfação não estiver garantida por outra via, pode ocorrer o encerramento do processo logo após o trânsito em julgado da sentença (artigos 39.º, 230.º, n.º1, alínea d) e 232.º CIRE). Nessa situação, o processo é declarado findo, ocorrendo apenas a tramitação até final do denominado incidente limitado de qualificação da insolvência, caso o juiz disponha de elementos que o justifiquem (artigos 39.º, n.º7, alínea b), 191.º e 232.º, n.º5 CIRE). Nesses casos, a sentença não aprecia a eventual possibilidade de administração da massa insolvente pelo devedor; não determina a este a entrega da sua documentação, nem da sua contabilidade; não fixa prazo para os credores reclamarem os seus créditos; não estabelece as advertências de os credores comunicarem ao administrador da insolvência as garantias de que sejam titulares e de os devedores do insolvente deverem efetuar ao administrador os respetivos pagamentos; finalmente, não designa data para a assembleia de aprovação do relatório (artigo 39.º, n.º1, que exclui a aplicação do artigo 36.º, n.º1, nas suas alínea e), f), g), i), j), l), m) e n) CIRE). Esta decisão do juiz acaba por funcionar como uma dispensa condicional do concurso de credores, por razões de economia processual, mas não produz efeitos do caso julgado. Efetivamente, qualquer interessado pode requerer, no prazo de cinco dias, que a sentença seja complementada com as restantes menções do n.º1 do artigo 36.º, o que prejudica
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 a eficácia da decisão do juiz em sentido contrário (artigo 39.º, n.º2, alínea a) CIRE). Perante esse requerimento, o juiz deve dar cumprimento integral ao artigo 36.º CIRE, observando-se em seguida o disposto nos artigos 37.º e 38.º CIRE, e prosseguindo com caráter pleno o incidente de qualificação da insolvência, sempre que ao mesmo haja lugar (artigo 39.º, n.º4 CIRE). Para tanto, o requerente do complemento de sentença é obrigado a depositar, à ordem do tribunal, o montante que o juiz razoavelmente entender necessário para garantir o pagamento das custas e dívidas, ou cauciona esse pagamento mediante garantia bancaria, sendo a caução acionada apenas depois de comprovada a efetiva insuficiência da massa e na medida dessa insuficiência (artigo 39.º, n.º3 CIRE). Se não for requerido o complemento da sentença, não há qualquer privação dos poderes de administração e disposição pelo devedor, nem se produzem quaisquer dos efeitos que normalmente correspondem à declaração de insolvência (artigo 39.º, n.º7, alínea a) CIRE). Em consequência, o administrador da insolvência fica com as suas competências limitadas à elaboração do parecer a que se refere o n.º3 do artigo 188.º CIRE (artigo 39.º, n.º7, alínea c) CIRE). Por outro lado, o processo é declarado findo, logo que a sentença transite em julgado, sem prejuízo da tramitação até final do incidente limitado de qualificação da insolvência (artigo 39.º, n.º7, alínea b) CIRE). Poderá futuramente ser instaurado novo processo após o trânsito em julgado, mas o juiz obrigará o requerente a depositar o necessário para pagamento das custas e dívidas previsíveis da massa insolvente (artigo 39.º, n.º7, alínea d) CIRE). O regime da insuficiência da massa insolvente é excluído se, sendo o devedor pessoa singular, tiver requerido, anteriormente à sentença de declaração de insolvência, a exoneração do passivo restante (artigo 39.º, n.º8 CIRE). Finalmente, sendo o devedor uma sociedade comercial, aplicase-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º4 do artigo 234.º CIRE (artigo 39.º, n.º10 CIRE).
Contratos com associação em participação: o artigo 117.º, n.º1 estabelece que a associação em participação se extingue pela insolvência do associante. Trata-se de solução que já resultava do artigo 166.º do CPEREF, encontrando-se igualmente prevista no artigo 27.º, alínea g) do Decreto-Lei n.º 231/81, 28 julho, que estabelece o regime dos contratos de consórcio e associação em participação. Justifica-se a extinção imediata da associação em participação em caso de insolvência do associante pela manifesta impossibilidade de realização do objeto contratual, a partir desse momento, dado que, visando a associação em participação de uma pessoa à atividade económica prosseguida por outra (artigo 21.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 231/81), a insolvência desta, na medida em que a impede de prosseguir a sua atividade, deve acarretar necessariamente a extinção desse contrato. A associação em participação envolve da parte do associado a prestação de uma contribuição de natureza patrimonial (artigo 24.º Decreto-Lei n.º 231/81) e a sua participação nos lucros e eventualmente nas perdas do associante (artigo 21.º, n.º2 e 25.º Decreto-Lei n.º 231/871). Em caso de insolvência, o artigo 117.º, n.º2 obriga o associado a entregar à massa insolvente do associante a parte ainda não liquidada das perdas em que deva participar, conservando, porém, o direito de reclamar, como crédito sobre a insolvência, as prestações que tenha realizado e que não devam ser incluídas na sua participação nas perdas. Este regime impede assim o associado de compensar as perdas com a devolução das prestações a que tenha direito, o que não se apresenta muito coerente com os termos em que o artigo 99.º passou a admitir a compensação após a declaração de insolvência.
Injuntividade do regime dos efeitos da insolvência sobre os negócios em curso: o regime dos efeitos da insolvência sobre os negócios em curso tem natureza injuntiva, já que a lei
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 estabelece a proibição de as partes estabelecerem convenções em sentido contrário (artigo 119.º, n.º1 CIRE), sendo «em particular nula a cláusula que atribua à situação de insolvência de uma das partes o valor de uma condição resolutiva do negócio ou confira nesse caso à parte contrária um direito de indemnização, de resolução ou de denúncia em termos diversos» daqueles que a lei prevê (artigo 119.º, n,.º2 CIRE). Numa solução algo contraditória, a lei admite, porém, «que a situação de insolvência possa configurar justa causa de resolução ou de denúncia em atenção à natureza e conteúdo das prestações contratuais» (artigo 119.º, n.º3 CIRE). A lei não permite assim a estipulação de cláusulas resolutivas expressas ou de direitos de denúncia, mas admite que da natureza e conteúdo do contrato resulte implicitamente a atribuição desses direitos.
A resolução em benefício da massa insolvente: 1. Requisitos da resolução em benefício da massa insolvente: a. Generalidades: uma vez que o processo de insolvência visa a satisfação igualitária dos direitos do credores, não é admissível a concessão de vantagens especiais a qualquer deles a partir do momento em que a situação de insolvência do devedor vem a ser conhecida. Daí que, caso o devedor tenha concedido alguma vantagem desse tipo no período suspeito anterior à declaração, a lei venha permitir à massa insolvente a recuperação das atribuições patrimoniais correspondentes. Para esse efeito, o administrador da insolvência pode determinar a resolução de atos e omissões em benefício da massa insolvente. Os requisitos da resolução variam, tendo que se distinguir entre requisitos gerais (artigo 120.º CIRE) e requisitos em relação a certas categorias de atos (artigo 121.º CIRE), falando a lei a este último propósito em resolução incondicional.
b. Requisitos gerais da resolução: relativamente aos requisitos gerais da resolução, a lei estabelece os seguintes: Realização pelo devedor de determinado ato: Com a alteração do artigo 120.º, n.º1 CIRE pela Lei n.º 16/2002, deixou de ser possível a resolução de omissões, ainda que por lapso a lei continua a fazer referência a essa possibilidade nos artigos 120.º, n.º4 e 126.º, n.º2 CIRE. Efetivamente, não fazia qualquer sentido a possibilidade de resolver omissões. A resolução de uma omissão implicaria considerar-se praticado o ato omitido, o que teria como resultado poder-se alterar toda a situação patrimonial do insolvente, ficcionando-se retroativamente a prática de atos que ele não realizou, o que e excessivo. Bem andou, por isso, a Lei n.º 16/2012.; Prejudicabilidade do ato em relação à massa insolvente: de acordo com o artigo 120.º, n.º2 CIRE, no facto de estes diminuírem, frustrarem, porem em perigo ou retardarem a satisfação dos credores da insolvência; a lei estabelece, no entanto, no artigo 120.º, n.º3 CIRE, uma presunção iuris et de iure de atos prejudiciais à massa, ao considerar como tais, sem admissão de prova em
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 contrário, os atos de qualquer dos tipos referidos no artigo 121.º CIRE, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados; Verificação desse ato nos dois anos anteriores à data do início do processos de insolvência: vai implicar que apenas possam ser resolvidos em benefício da massa insolvente os atos que tenham decorrido nos dois anos anteriores ao início do processo, uma vez que só este período é considerado como suspeito para efeitos da resolução. Assim, se o ato tiver sido praticado antes desse período, não poderá o mesmo ser objeto de resolução em benefício da massa insolvente; Existência de má fé do terceiro: considerando-se, como tal, nos termos do artigo 120.º, n.º5 CIRE, o conhecimento por este das seguintes circunstâncias: o
A situação de insolvência do devedor;
o
O caráter prejudicial do ato, estando o devedor à data em situação de insolvência iminente;
o
O ínicio do processo de insolvência.
Nos termos do artigo 120.º, n.º4, a má fé presume-se «quanto a ato cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data». As pessoas especialmente relacionadas com o insolvente encontram-se enumeradas no artigo 49.º, n.º2, salientando-se, no entanto, que a lei não exige, para fazer funcionar a presunção, que as mesmas sejam os adquirentes no negócio a resolver, bastando que tenham participado ou dele tenham aproveitado.
c. Requisitos da resolução incondicional: os requisitos gerais da resolução acima enunciados são dispensados no caso de se tratar dos atos referidos no artigo 121.º CIRE, os quais são resolúveis, independentemente de quaisquer outros requisitos, para além dos previstos na mesma disposição legal, incluindo naturalmente os prazos referidos. Esses atos são assim resolúveis independentemente da verificação de quaisquer outros requisitos, designadamente a má fé do adquirente. A resolução incondicional deixa, porém, de ser possível, em caso de normas legais que excecionalmente exijam sempre a má fé ou a verificação de outros requisitos (artigo 121.º, n.º2 CIRE). A enumeração, no artigo 121.º CIRE, dos atos sujeitos à resolução incondicional é absolutamente taxativa. Em consequência, qualquer ato que não esteja previsto nesta enumeração só poderá ser resolvido em benefício da massa insolvente se se verificarem os pressupostos do artigo 120.º CIRE.
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d. Exclusão da resolução: há determinados atos, em relação aos quais a lei exclui a possibilidade de aplicação da resolução em benefício da massa insolvente. Assim, em primeiro lugar, nos termos do artigo 120.º, n.º6 CIRE, são insuscetíveis de resolução em benefício da massa insolvente os negócios jurídicos celebrados no âmbito do processo especial de revitalização (artigos 17.º-A e seguintes), de providência de recuperação ou saneamento, ou de adoção de medidas de resolução previstas no título VIII do RGICSF, ou de outro procedimento equivalente previsto em legislação especial, cuja finalidade seja prover o devedor com meios de financiamento suficientes para viabilizar a sua recuperação. Para além disso, os termos do artigo 122.º, a resolução em benefício da massa insolvente é excluída em relação aos atos compreendidos num sistema de pagamentos, tal como definidos pela alínea a) do artigo 2.º da Diretiva 98/26/CE, do Parlamento Europeu ou do Conselho de 19 maio ou equiparável. Desta disposição resulta, assim, em consonância com o artigo 3.º da referida Diretiva que as ordens de transferência e a compensação relativas a valores mobiliários têm caráter definitivo, não sendo afetadas pela insolvência dos participantes no sistema, pelo que não podem ser resolvidas em benefício da massa insolvente. A insolvência dos participantes no sistema de liquidação de valores mobiliários é aliás objeto de regime especial, constante dos artigo 283.º e seguinte CVM. Resulta deste regime que a abertura do processo de insolvência não tem efeitos retroativos sobre os direitos e obrigações decorrentes da sua participação no sistema ou a ela associados (artigo 283.º, n.º1 CVM). Em consequência, a abertura desses processos não afeta a irrevogabilidade das ordens de transferência, a sua oponibilidade a terceiros, nem o caráter definitivo da compensação, relativamente a ordens introduzidas antes da abertura do processo (artigo 283.º, n.º2, alínea CVM). Mesmo em relação às ordens introduzidas após a abertura do processo, estas não são afetadas se tiverem sido executadas no mesmo dia, e os órgãos competentes provarem que não tinham nem deviam ter conhecimento da abertura do processo (artigo 283.º, n.º2, alínea b) CVM). Mesmo as garantias prestadas não são afetadas pela abertura do processo (artigo 284.º CVM).
e. Legitimidade ativa e passiva para o exercício do direito de resolução: relativamente à legitimidade ativa para o exercício do direito de resolução, o artigo 123.º é muito claro no sentido de que a mesma compete exclusivamente ao administrador da insolvência. Não parece, por isso, aceitável a tese de que os credores poderão proceder a essa resolução se intimarem o administrador para realizar a mesma e ele não o fizer num prazo razoável. Na verdade, essa omissão do administrador da insolvência, para além de implicar a sua responsabilização perante os credores (artigo 59.º CIRE), poderá determinar a sua substituição por outro (artigo 56.º CIRE) que concretize a resolução. Já não será, porém, admissível que os credores se substituam ao administrador da insolvência, praticando atos que cabem na sua exclusiva esfera de competência. Já relativamente à legitimidade passiva para o exercício do direito de resolução, a mesma deve ser dirigida contra ambas as partes no ato que se pretende resolver.
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f. Prazo para o exercício do direito de resolução: a resolução tem que ser exercida no prazo de seis meses após o conhecimento do ato pelo administrador da insolvência, mas nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência (artigo 123.º, n.º1 CIRE). No caso de o negócio ainda não estar cumprido, a resolução pode ser exercida sem dependência de prazo (artigo 123.º, n.º2 CIRE). A lei qualifica na epígrafe do artigo 123.º, n.º1, como «prescrição de direitos» a situação decorrente da ultrapassagem desse prazo. A qualificação é manifestamente estranha, dado que a situação parece ser antes de caducidade do direito de promover a resolução.
g. Oponibilidade da resolução a transmissários posteriores: à semelhança do que se prevê pra a impugnação pauliana do artigo 613.º CC, a resolução em benefício da massa insolvente pode ser posta a transmissários do direito, bem como àqueles que constituam direitos sobre os bens em relação aos quais a resolução seja exercida. Exige-se, no entanto, sempre a má fé do terceiro, salvo se se tratar de sucessor a título universal ou se a nova transmissão tiver sido realizada a título gratuito (artigo 124.º CIRE). A oponibilidade da resolução aos transmissários posteriores é possível, independentemente do número de transmissões, desde que se verifique em relação a todas elas o requisito de má fé do adquirente, o qual é, como se dize, dispensado nos casos de sucessão universal ou transmissão gratuita.
h. Impugnação da resolução: Dado que a resolução é realizada por declaração do administrador da insolvência, através de carta registada com aviso de receção, cabe à parte que se opõe à resolução o ´nus de intentar a ação correspondente, destinada à impugnação da mesma, a qual corre como dependência do processo de insolvência (artigo 125.º CIRE). A ação deve ser instaurada no prazo de três meses a partir do momento em que a parte tem conhecimento da resolução, o que se considera ocorrer no momento em que recebe carta registada comunicando o seu exercício. Esse prazo de três meses deve considerar-se como perentório, pelo que o seu decurso implica a caducidade do direito de impugnação. O facto de se prever uma ação autónoma do administrador de insolvência no artigo 126.º, n.º2 CIRE, não pode servir pra dar nova oportunidade de contestação da resolução à outra parte.
i.
Efeitos da resolução: os efeitos da resolução correspondem aos estabelecidos nos artigos 433.º e 289.º CC. A resolução tem assim efeitos retroativos, devendo reconstruir-se a situação que existiria se o ato não tivesse sido praticado (artigo 126.º, n.º1 CIRE). A lei prevê que a ação instaurada pelo administrador de insolvência, com a finalidade de obter os efeitos da resolução é dependência do processo de insolvência (artigo 126.º, n.º2 CIRE). Dado que a resolução é efetuada por carta registada (artigo 123.º CIRE), cabendo à outra parte o ónus de a impugnar por via judicial (artigo 125.º CIRE), a ação referida naquela disposição apenas pode ter como finalidade a obtenção da restituição das prestações, sendo assim de condenação e não constitutiva. Não pode, por isso, o réu utilizá-la para contestar a eficácia da resolução, se não procedeu atempadamente à sua impugnação, no prazo de três meses referido no artigo
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 125.º CIRE. A resolução em benefício da massa insolvente faz cessar ex tunc os efeitos do ato praticado em prejuízo da massa, surgindo uma relação de liquidação, nos termos da qual se determina a restituição das prestações já realizadas. Os termos dessa restituição variam, no entanto, consoante o ato resolvido tenha sido celebrado a título oneroso ou a título gratuito. Se o ato tiver sido celerado a título oneroso, o terceiro deve restituir à massa os bens e valores objeto da resolução dentro do prazo fixado na sentença (artigo 126.º, n.º3 CIRE). Se o não fizer, são-lhe aplicáveis as sanções previstas na lei de processo para o depositário de bens penhorados que falte à entrega deles (artigo 771.º CPC). Já a obrigação de restituição a carga da massa insolvente só se verificará em espécie se o objeto prestado pelo terceiro puder ser identificado e separado da parte restante da massa (artigo 126.º, n.º4 CIRE). No caso contrário, a obrigação de restituir o valor correspondente constituí dívida da massa insolvente na medida do respetivo enriquecimento à data da declaração de insolvência, e dívida da insolvência quanto ao eventual remanescente (artigo 126.º, n.º5 CIRE). Se o terceiro estiver de má fé, o crédito que para ele resulta em virtude da resolução assume a natureza de crédito subordinado (artigo 48.º, alínea e) CIRE). Pelo contrário, se a aquisição ocorrer a título gratuito, a sua obrigação de restituição só existe na medida do seu próprio enriquecimento, salvo o caso de má fé real ou presumida (artigo 126.º, n.º6 CIRE). Daqui resulta que o adquirente a título gratuito vem a ser mais protegido do que o adquirente a título onerosos, uma vez que o primeiro tem que restituir integralmente os bens, ficando com o crédito sobre a massa insolvente ou sobre a insolvência, enquanto que o segundo apenas tem que restituir aquilo com que se enriqueceu. Trata-se de uma situação para qual não vemos qualquer justificação.
j.
Preclusão da possibilidade de recurso à impugnação pauliana: o decretamento da resolução em benefício da massa insolvente preclude a possibilidade de os credores recorrerem à impugnação pauliana dos atos abrangidos por essa resolução (artigo 127.º, n.º CIRE). A contrario, não estão os credores da insolvência impedidos de recorrer à impugnação pauliana, enquanto não se verificar a resolução em benefício da massa insolvente. Precisamente por esse motivo, o artigo 127.º, n.º2 CIRE, estabelece que estas ações, pendentes à data da declaração de insolvência ou propostas posteriormente não serão apenas ao processo de insolvência e, em caso de resolução do ato pelo administrador da insolvência, só prosseguirão os seus termos se tal resolução vier a ser declarada ineficaz por sentença definitiva, a qual terá força vinculativa no âmbito daquelas ações quanto às questões que tenha apreciado, desde que não ofenda caso julgado de formação anterior. A procedência da impugnação pauliana tem os efeitos previstos no artigo 616.º CC, determinando a restituição dos bens na medida do interesse do credor que a tenha requerido (artigo 616.º, n.º1 CC), ou do seu valor, em caso de má fé (artigo 616.º, n.º2 CC), ficando a obrigação de restituição limitada ao enriquecimento do adquirente, existindo boa fé (artigo 616.º, n.º3 CC). Para efeitos da procedência desta ação, o crédito do requerente é tomado em consideração, abstraindo das modificações que tiverem sido decretadas por plano de insolvência ou de pagamentos (artigo 127.º, n.º 3 CIRE).
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Uma vez que se trata neste caso de impugnação pauliana individual, os seus efeitos apenas aproveitarão ao credor que a tenha requerido (artigo 616.º, n.º4 CC), com a consequente violação do princípio da igualdade dos credores em caso de insolvência. A omissão do administrador da insolvência em promover a resolução em benefício da massa insolvente tenderá a estimular as ações de impugnação paulianas individuais até porque o prazo para as mesmas (artigo 618.º CC) é consideravelmente superior àquele que se prevê para a resolução (artigo 123.º CIRE).
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19 – Assembleia de credores de apreciação do relatório Um momento importante do processo de insolvência é a assembleia de apreciação do relatório, que pode ocorrer antes de se iniciar a liquidação propriamente dita. Após a revisão do CIRE pela Lei n.º 12/2012, deixou de ser obrigatória a assembleia de apreciação do relatório, podendo o juiz, na sentença que declare a insolvência, prescindir da mesma em declaração fundamentada (artigo 36.º, n.º1, alínea n) CIRE). Esta faculdade do juiz não se verifica, no entanto, nos casos em que tenha sido requerida a exoneração do passivo restante pelo devedor, no requerimento de apresentação à insolvência em que seja previsível a apresentação de um plano de insolvência ou em que se determine que a administração da massa insolvente seja realizada pelo devedor (artigo 36.º, n.º2 CIRE). Nos caso em que o juiz prescinde da assembleia de credores de apresentação do relatório, qualquer interessado, no prazo de reclamação de créditos, pode requerer ao tribunal a sua convocação, caso em que o juiz deve designar dia e hora, entre os 45 e os 60 dias subsequentes à sentença de insolvência para a sua realização (artigo 36.º, n.º3 CIRE). A assembleia destina-se a apreciar o relatório do administrador da insolvência. Efetivamente, nos termos do artigo 155.º, n.º1 CIRE, o administrador da insolvência tem o dever de elaborar um relatório, contendo:
a) A análise do documento apresentado pelo devedor ao abrigo do artigo 24.º, n.º1, alínea c) CIRE;
b) A análise do estado da contabilidade do devedor e a sua opinião sobre os documentos de prestação de contas e de informação financeira juntos por este aos autos;
c) A indicação das perspetivas de manutenção, total ou parcial da empresa do devedor, da conveniência da aprovação de um plano de insolvência e quais as consequências para os credores dos diversos cenários;
d) Se considerar conveniente a aprovação de um plano de insolvência, qual a remuneração que pretende auferir pelo mesmo;
e) Quaisquer outros elementos que considere relevantes. O relatório indica os bens e direitos que integram a massa insolvente, e qual o seu valor, natureza, características, localização, ónus que sobre eles incidam e eventuais dados de identificação registral (artigo 153.º, n.º1 CIRE). O investimento deve ainda explicitar se o valor dos bens é divergente numa perspetiva de continuidade da empresa (artigo 153.º, n.º2 CIRE) e quais os
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 litígios cujo desfecho possa afetar esses bens (artigo 153.º, n.º4 CIRE). Já a lista provisória de credores enumera por ordem alfabética os credores que constam da contabilidade do devedor, que hajam reclamado os seus créditos ou sejam por outra via conhecidos do administrador, evento referir o respetivo endereço, montante, fundamento, natureza garantida, privilegiada, comum, ou subordinada de créditos, sujeição a condições e possibilidade de compensação (artigo 151.º, n.º1 CIRE). A lista contém ainda uma avaliação das dívidas da massa insolvente na hipótese de pronta liquidação (artigo 154.º, n.º2 CIRE). Na assembleia de apreciação do relatório os credores devem pronunciar-se especificamente sobre o encerramento ou a manutenção em atividade dos estabelecimentos compreendidos na massa insolvente (artigo 156.º, n.º2 CIRE), sendo que, no caso de deliberarem a manutenção em atividade, deverão fixar a remuneração devida ao administrados da insolvência pela sua gestão (artigo 25.º, n.º3 Lei 22/2013). Os credores podem ainda deliberar instruir o administrador no sentido da elaboração de um plano de insolvência devendo, nesse caso, fixar igualmente a remuneração devida pela elaboração desse plano (artigo 26.º do mesmo diploma). Nessa hipótese, a assembleia determinar a suspensão da liquidação e partilha da massa insolvente (artigo 156.º, n.º3 CIRE), a qual não impede a venda de bens suscetíveis de deterioração ou perecimento (artigo 156.º, n.º5 e 158.º, n.º2 CIRE), e cessa se o plano não for apresentado nos 60 dias seguintes (artigo 156.º, n.º4, alínea a) CIRE), ou não for subsequentemente admitido, aprovado ou homologado (artigo 156.º, n.º4, alínea b) CIRE). A assembleia de apreciação do relatório pode ainda pronunciar-se sobre o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor pessoa singular (artigo 236.º, n.º4 CIRE), ainda que a decisão sobre o mesmo caiba ao juiz (artigo 237.º CIRE).
20 – Liquidação da massa insolvente
Generalidades: uma fase importante do processo de insolvência é a liquidação da massa insolvente. A liquidação destina-se a permitir a satisfação, ao menos parcial, dos credores do insolvente, para o que é necessário que o seu património seja convertido numa quantia pecuniária que possa ser repartida por esses credores. Para esse efeito, haverá que proceder à cobrança dos créditos e à alienação dos bens e direitos compreendidos na massa insolvente, em ordem a obter os valores necessários a esse pagamento. A liquidação encontra-se regulada nos artigos 156.º e seguintes, sendo processada como apenso ao processo de insolvência (artigo 170.º ¨CIRE).
Dispensa, suspensão e interrupção da liquidação: o processo de liquidação da massa insolvente pode vir a ser afetado, na medida em que se possa verificar a dispensa, suspensão ou interrupção da liquidação. Ocorrendo a dispensa da liquidação, a mesma nem sequer se inicia, verificando-se a satisfação dos credores da insolvência por outra via. No caso de suspensão da liquidação, a mesma inicia-se, mas o seu decurso fica temporariamente paralisado, enquanto se verificar determinada situação a que se atribui esse efeito. Finalmente, em caso de interrupção da liquidação, a mesma inicia-se, mas a verificação de determinada situação provoca o encerramento do processo, sem que a mesma esteja concluída.
Regulação especial da liquidação através de plano da insolvência: a liquidação pode se objeto de regulação especial, afastando-se do regime estabelecido no CIRE, caso venha a ser aprovado
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 um plano de insolvência (artigo 192.º, n.º1 CIRE). Nesse caso, o plano deverá indicar quais os preceitos legais derrogados e o âmbito da respetiva derrogação (artigo 195.º, n.º2, alínea e) CIRE), podendo inclusivamente afastar totalmente a própria liquidação, adotando outra via de satisfação dos credores, como a recuperação do titular da empresa, ou a transmissão da mesma a outra entidade (artigo 195.º, n.º2, alínea b) CIRE).
Início da liquidação: antes do início da fase da liquidação propriamente dita, previamente à assembleia de apreciação do relatório o administrador da insolvência pode, porém, proceder imediatamente ao encerramento dos estabelecimentos do devedor, desde que obtenha o parecer favorável da comissão de credores ou, na falta desta, o devedor não se oponha, ou ainda, independentemente dessa oposição, quando o juiz autorizar, por considerar que o adiamento da medida acarrateria uma diminuição considerável da massa insolvente (artigo 157.º CIRE). Nos termos do artigo 158.º, n.º1 CIRE, o administrador da insolvência pode iniciar a venda dos bens apreendidos para a massa insolvente desde que a sentença declaratória de insolvência tenha transitado em julgado, haja sido realizada a assembleia de apreciação do relatório e as deliberações tomadas pelos credores nessa assembleia não se oponham a essa venda. A venda inicia-se independentemente da verificação do passivo, o que significa que o incidente de verificação dos créditos não tem efeito suspensivo da liquidação. O administrador da insolvência pode, porém, independentemente dos requisitos acima referidos, proceder ainda à venda imediata de bens que não possam ou não se devam conservar por estarem sujeitos a deterioração ou depreciação (artigo 158.º, n.º2 CIRE). Nesse caso, o administrador da insolvência deve comunicar esse facto ao devedor, à comissão de credores, sempre que exista, e ao juiz com, pelo menos dois dias úteis de antecedência, e proceder à publicação de anuncio no CITIUS (artigo 158.º, n.º3 CIRE). O juiz por sua iniciativa ou a requerimento do devedor, da comissão de credores, ou de qualquer credor, pode impedir a venda antecipada, sendo essa decisão insuscetível de recurso (artigo 158.º, n.º4 CIRE).
21 – Pagamento
Generalidades: o pagamento dos créditos encontra-se regulado nos artigos 172.º e seguintes, o qual determina a liquidação em primeiro lugar das dívidas da massa, e apenas posteriormente dos créditos sobre a insolvência, sendo que estes últimos só podem ser liquidados se estiverem verificados por sentença transitada em julgado (artigo 173.º CIRE). A hierarquização do créditos sobre a insolvência implica que seja liquidados em primeiro lugar os créditos garantidos (artigo 174.º CIRE) e privilegiados (artigo 175.º CIRE), depois os comuns (artigo 176.º CIRE) e finalmente os créditos subordinados (artigo 177.º CIRE).
Pagamento das dívidas da massa insolvente: as dívidas da massa insolvente são aquelas que se encontram referidas no artigo 51.º CIRE. Em relação a estas, a lei determina a sua liquidação antes de se proceder aos pagamentos dos créditos sobre a insolvência (artigo 171.º, n.º1, 1.ª parte CIRE), devendo essa liquidação ocorrer na data do vencimento das dívidas, seja qual for o estado do processo (artigo 172.º, n.º3 CIRE). Para esse efeito, o administrador da insolvência deverá deduzir da massa insolvente os bens e direitos necessários para a satisfação dessas dívidas, incluindo as que previsivelmente e venham a constituir até ao encerramento do processo (artigo
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 172.º, n.º1, parte final CIRE). Essas dívidas devem ser primeiramente imputadas nos rendimentos da massa. Não sendo estes rendimentos suficientes, a imputação é efetuada na devida proporção ao produto da venda de cada bem imóvel ou móvel. Se esses bens forem objeto de garantias reais, a imputação deve limitar-se a 10% do seu valor, salvo na medida do indispensável à satisfação integral das dívidas da massa insolvente ou do que não prejudique a satisfação integral dos créditos garantidos (artigo 172.º, n.º2 CIRE).
Pagamento dos créditos que beneficiem de garantia real: uma vez liquidadas as dívidas da massa insolvente, pode iniciar-se o pagamento dos créditos que beneficiem de garantias reais, as quais incluem os privilégios creditórios especiais – artigos 47.º, n.º4, alínea a) CIRE – abrangendo, além destes, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca e o direito de retenção. Não relevam nesta sede as garantias de origem processual, como a penhora, o arresto e a hipoteca judicial (artigo 140.º, n.º3 CIRE), nem as garantias reais que se extingam com a declaração de insolvência (artigo 97.º, nº.3 alíneas b), c), d) e e) CIRE). O pagamento aos credores garantidos é realizado com base no produto da alienação dos bens objeto da garantia, abatidas as correspondentes despesas, e a percentagem de 10%, destinada à liquidação das dívidas da massa insolvente (artigo 174.º, n.º1, e 172.º, n.º2 CIRE). Esse regime é aplicável, mesmo no caso de as garantias reais de destinarem à satisfação de dívidas de terceiro, pela qual o insolvente não responda pessoalmente, exceto se o bem tiver sido alienado com a garantia ou o titular renunciar à mesma (artigo 174.º, n.º3, alínea a) CIRE). Caso as garantias reais sejam utilizadas para solver dívida de terceiro, esta sofre igualmente a dedução do interusuruim, resultante do vencimento antecipado das obrigações do insolvente (artigo 174.º, n.º3, alínea b) CIRE), sendo que o respetivo pagamento vai importar sub-rogação nos direitos do credor (artigo 174.º, n.º3, alínea c) CIRE e artigo 592.º CC), com a consequente entrada desse crédito na massa insolvente. No caso de os bens se encontrarem onerados com garantias reais a favor de vários credores, o pagamento será realizado de acordo com a hierarquização dessas garantias. Em princípio, a hierarquização da sua constituição efetua-se de acordo com a ordem da constituição. Em relação aos privilégios imobiliários especiais, no entanto, a lei estabelece que eles preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que essas garantias sejam anteriores (artigo 751.º CC). Não sendo os bens objeto da garantia suficientes para a liquidação integral dos créditos que garantem, e respondendo o devedor pelos mesmos com a generalidade do seu património, são os saldos respetivos incluídos entre os créditos comuns (artigo 174.º, n.º1, parte final CIRE), sendo atendidos nos rateios que se realizarem entre os credores comuns (artigo 174.º, n.º2 CIRE).
Pagamento dos créditos privilegiados: os créditos privilegiados são aqueles que beneficiam de um privilégio creditório geral (artigo 47.º, n.º4 CIRE). Entre estes encontram-se:
a) O privilégio mobiliário geral dos trabalhadores, a que se refere o artigo 33.º, n.º1, alínea a) CT;
b) Os privilégios mobiliários gerais do Estado e das autarquias locais para garantia dos créditos de impostos, nos termos do artigo 736.º CC;
c) Os privilégios mobiliários e imobiliários gerais das instituições de segurança social, referidos no artigo 10.º, n.º1 e 2 Decreto-Lei n.º 103/80, 9 maio;
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d) Os privilégios por despesas de funeral, de doença ou de obrigações de alimentos, nos termos do artigo 737.º CC;
e) O privilégio mobiliário geral, a graduar em último lugar, relativamente aos direitos de crédito não subordinados de que seja titular o credor requerente da declaração de insolvência, até ao limite de 500 Unidades de conta (artigo 98.º, n.º1 CIRE). Salienta-se, porém, que, nos termos do artigo 97.º, alínea a) CIRE se extinguem com a declaração de insolvência «os privilégios creditórios gerais que forem acessórios de créditos sobre a insolvência de que forem titulares o Estado, as autarquias locais e as instituições de segurança social, constituídos mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência». O pagamento dos créditos privilegiados é realizado à custa dos bens não afetados a garantias reais prevalecentes e na proporção dos seus montantes, quanto aos que sejam igualmente privilegiados (artigo 175.º CIRE). No caso de haver em depósito quantias que assegurem uma distribuição não inferior a 5% do valor desses créditos, o administrador da insolvência, obtido o parecer da comissão de credores, se existir, pode propor um rateio parcial, competindo ao juiz decidir sobre os pagamentos que considere justificados (artigo 178.º CIRE).
Pagamento dos créditos comuns: os créditos comuns são aqueles que não correspondem a dívidas da massa, nem a créditos garantidos ou privilegiados, nem se integram na categoria de créditos subordinados (artigo 47.º, n.º4, alínea c) CIRE). O pagamento neste caso tem lugar apenas após a satisfação das dívidas da massa e dos créditos garantidos e privilegiados, sendo efetuado o rateio na proporção do valor nominal dos respetivos créditos, se a massa for insuficiente para a respetiva liquidação integral (artigo 176.º CIRE). Podem igualmente ocorrer rateios parciais quando, existindo em depósito quantias que assegurem o pagamento de 5% do total dos créditos comuns, o administrador da insolvência os propor, com o parecer da comissão de credores, quando exista, e o juiz considerar justificados os pagamentos (artigo 178.º CIRE). Nesse caso, o pagamento aos credores comuns vai-se fazendo através da entrega de quotas não inferiores a 5% do valor nominal de cada crédito.
Pagamento dos créditos subordinados: os créditos subordinados encontra-se referidos no artigo 48.º CIRE, só ocorrendo o seu pagamento depois de terem sido integralmente pagos os credores comuns, sendo efetuado pela ordem correspondente às diversas alíneas do artigo 48.º CIRE, salvo no caso de subordinação convencional, em que é possível estipular uma prioridade diferente (artigo 177.º CIRE). Apenas depois de pagos integralmente os créditos subordinados previstos numa das alíneas do artigo 48.º CIRE se pode efetuar o pagamento daqueles constantes da alínea seguinte. Assim, a partir do momento em que a massa insolvente se torna insuficiente para cobrir os créditos subordinados de uma das alíneas é efetuado o rateio entre os respetivos titulares, deixando de ser pagos os credores abrangidos pelas alíneas seguintes.
Rateio final e pagamentos: uma vez encerrada a liquidação da massa insolvente, o processo é remetido à conta, sendo a distribuição e o rateio realizados pela secretaria logo em seguida. O encerramento da liquidação não é prejudicado pela circunstância de a atividade de o devedor gerar rendimentos que acrescentariam à massa (artigo 182.º, n.º1 CIRE). O administrador da insolvência pode apresentar no processo de proposta de distribuição e de rateio final
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 acompanhada da respetiva documentação de suporte, sendo tal informação apreciada pela secretaria (artigo 182.º, n.º3 CIRE). O administrador da insolvência pode apresentar no processo de distribuição e de rateio final, acompanhada da respetiva documentação de suporte, sendo tal informação apreciada pela secretaria (artigo 182.º, n.º3 CIRE). Se as obras da liquidação nem sequer chegarem para cobrir as despesas do rateio, as mesmas são atribuídas ao Cofre Geral dos Tribunais (artigo 182.º, n.º2 CIRE), não se chegando a realizar qualquer pagamento aos credores. Na hipótese contrária, os pagamentos são efetuados, sem necessidade de requerimento, por meio de cheques sobre a conta da insolvência (artigo 183.º, n.º1 CIRE). Caso os cheques não sejam solicitados na secretaria, ou apresentados a pagamento no prazo de um ano, contado desde a data de aviso aos credores, prescrevem os créditos sobre a insolvência, o que sucederá se o devedor, embora impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas por ausência de liquidez no seu património, tenha apesar disso um ativo superior ao passivo. Nesse caso, o artigo 184.º, n.º1 CIRE, estabelece que o saldo deverá ser entregue pelo administrador ao devedor. No caso de o devedor não ser uma pessoa singular, o administrador deverá entregar (artigo 184.º, n.º2 CIRE) «às pessoas que nele participem a parte do saldo que lhe pertenceria se a liquidação fosse efetuada fora do processo de insolvência ou [cumprir] o que de diverso estiver a este respeito legal ou estatutariamente previsto».
22 – Incidente de qualificação da Insolvência
Generalidades: o incidente de qualificação de insolvência, previsto nos artigos 185.º e seguintes CIRE, constitui uma fase do processo que se destina a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência, e consequentemente se essas razões foram puramente fortuitas ou correspondem antes a uma atuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor. Essa avaliação pode ter naturalmente consequências penais (artigos 227.º e seguintes CP), mas estas não podem ser avaliadas nesse incidente, o qual tem, no entanto, a máxima relevância para efeitos civis, dado que a insolvência culposa pode envolver responsabilidade para o devedor, o que não sucede com a fortuita.
Pressupostos da qualificação da insolvência: na sentença decidir-se-á então se a insolvência deve ser qualificada com culposa ou fortuita (artigo 189.º, n.º1 CIRE). Nos termos do artigo 186.º, n.º1 CIRE, a insolvência é considerada culposa se «tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência». A contrato, sempre que se não verifique essa situação será considerada fortuita. Exige-se, assim, para a qualificação da insolvência como culposa, não apenas uma conduta dolosa ou com culpa grave do devedor e seus administradores mas também um nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência, consistente na contribuição desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência. O artigo 186.º, n.º2 CIRE, contém, no entanto, uma presunção de iuris et de iure de insolvência culposa, considerando-a como tal sempre que
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja pessoa singular tenham praticado atos destinados a empobrecer o património do devedor ou incumprido determinadas obrigações legais. Verificados alguns desses factos, o juiz terá assim que decidir necessariamente no sentido da qualificação da insolvência como culposa. A lei institui consequentemente no artigo 186.º, n.º2, uma presunção de iure et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário. O artigo 186.º, n.º3 CIRE, contém uma presunção iuris tantum de culpa grave do devedor que não seja uma pessoa singular, sempre que os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência ou a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal e de submete-las à devida fiscalização e depósito na conservatória do registo comercial. Demonstrados esses factos, o juiz presumirá a culpa do devedor na sua situação de insolvência, excluindo, porém, essa qualificação se for demonstrado que a impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas não se deveu a culpa do devedor. Efetivamente, o que resulta do artigo 186.º, n.º3 CIRE, é apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da atuação dos seus administradores, de direito ou de facto, mas não uma presunção da causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do artigo 186.º, n.º1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta. O artigo 186.º, n.º4 CIRE estende as presunções dos n.º2 e 3, com as necessárias adaptações, à atuação do devedor pessoa singular e seus administradores (artigo 6.º CIRE). Efetivamente, com exceção da situação referida no alínea e) do n.º2 do artigo 186.º CIRE, todos os restantes factos mencionados podem facilmente ser aplicáveis à insolvência de pessoas singulares, devendo as mesmas presunções funcionar igualmente nessa situação. No entanto, se o devedor for pessoa singular não obrigada a apresentar à insolvência, a omissão ou retardamento na apresentação não determina a qualificação da insolvência como culposa, ainda que seja determinante de um agravamento da situação económica do insolvente (artigo 186.º, n.º5 CIRE).
Efeitos da qualificação da insolvência como culposa: nos termos do artigo 189.º, n.º2, a qualificação da insolvência como culposa desencadeia os seguintes efeitos, os quais são logo decretados na respetiva sentença:
a) Inibição das pessoas afetadas pela qualificação para administrarem patrimónios de terceiros por um período de 2 a 10 anos;
b) Inibição das mesmas pessoas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
c) Perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afetadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos no pagamento desses créditos;
d) Condenação na indemnização aos credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados.
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25 – Encerramento do processo
Pressupostos do encerramento do processo: o encerramento do processo de insolvência constitui a fase final do mesmo, pelo que logicamente deverá ocorrer uma vez realizados os fins previstos nesse mesmo processo, a que se refere o artigo 1.º, ou seja, a liquidação do património do devedor e a repartição do respetivo produto pelos seus credores (artigo 230.º, n.º1, alínea a) CIRE), ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, cuja decisão homologada tenha transitado em julgado, se a isso não se opuser o conteúdo deste (artigo 230.º, n.º1, alínea b) CIRE). O processo de insolvência é também encerrado em caso de aprovação de im plano de pagamentos, com o trânsito em julgado da sentença que homologa o plano e da sentença de declaração de insolvência (artigo 259.º, n.º4 CIRE). Podem, porém, o processo de insolvência ser ainda encerrado, a pedido do devedor, quando no seu decurso cessem os pressupostos que o desencadearam (ou seja, a própria situação que insolvência) ou haja acordo dos credores para o seu encerramento, uma vez que, sendo os credores os principais interessados no processo, o princípio dispositivo impõe que ocorra o encerramento, caso a vontade de todas as partes nesse sentido (artigo 230.º, n.º1, alínea c) CIRE). O processo pode ser ainda encerrado quando é manifesta a inutilidade da sua prossecução, por inexistência de património para satisfazer os próprio encargos da sua prossecução, por inexistência de património para satisfazer os próprios encargos do processo, como ocorre quando o administrador da insolvência verifica a insuficiência da massa para a satisfação das custas do processo e restantes dívidas da massa insolvente (artigo 230.º, n.º1, alínea d) CIRE). Finalmente, o processo de insolvência é encerrado no despacho inicial de exoneração do passivo restante (artigo 230.º, n.º1, alínea e) CIRE). O primeiro fundamento para o encerramento do processo é a realização do rateio final (artigo 230.º, n.º1, alínea a) CIRE), o qual ocorre após o encerramento da liquidação da massa insolvente e a remessa do processo à conta (artigo 182.º, n.º1 CIRE). No caso, porém, de ter sido pedida a exoneração do passivo restante (artigos 235.º e seguintes CIRE) e ter sido interposto recurso do despacho inicial que determina a cessão do rendimento disponível, o rateio final só vai determinar o encerramento do processo, depois de transitada em julgado a decisão (artigo 239.º, n.º6 CIRE). O segundo fundamento para o encerramento do processo é o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência, se a isso não se opuser o conteúdo deste (artigo 230.º, n.º1, alínea b) CIRE). O terceiro fundamento do encerramento é a existência de um pedido do devedor nesse sentido, baseado na cessação da situação de insolvência ou no consentimento de todos os seus credores (artigo 230.º, n.º1, alínea c) CIRE). O juiz decide sobre o encerramento após audição do administrador da insolvência e da comissão de credores, se existir (artigo 231.º, n.º3 CIRE). O quarto fundamento do encerramento é a verificação pelo administrador da insolvência de que a massa insolvente é insuficiente para satisfazer as custas do processo e restantes dívidas da massa insolvente (artigo 230.º, n.º1, alínea d) CIRE). O juiz declara então o encerramento do processo, após audição do devedor, da assembleia de credores e dos credores da massa insolvente, a menos que algum interessado deposito à ordem do tribunal o montante que o juiz considere razoavelmente necessário para garantir o pagamento das custas do processo e restantes dívidas da massa insolvente (artigo 232.º CIRE). O quinto fundamento do encerramento do processo de insolvência é a emissão do despacho inicial de exoneração do passivo restante, nos termos da alínea b) do artigo 237.º CIRE. Efetivamente, durante o período de cinco anos em que o devedor cede o seu rendimento disponível a um fiduciário, o processo
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 de insolvência dica encerrado. Apesar de não previsto no artigo 230.º, existe ainda outro fundamento para o encerramento do processo de insolvência, que é o trânsito em julgado da sentença que homologa o plano de pagamentos e da sentença que decreta a insolvência (artigo 249.º, n.º4 CIRE).
Efeitos do encerramento do processo: no Direito Comparado, é tradicional distinguir entre dois sistemas de efeitos resultantes de encerramento do processo: Vigente nos países da Common Law e na Alemanha, correspondente ao antigo instituto da cessio bonorum, o encerramento do processo determina a plena recuperação da capacidade do devedor após o processo, permitindo-lhe reiniciar a sua vida nos mesmos termos. Esse sistema resulta de se considerar a insolvência como um acidente de percurso, que não deve afetar a vida futura do devedor; Num outro sistema, entende-se que, mesmo que a insolvência resulte de um facto acidental, o devedor deve ser responsabilizado pela falta de diligência e imprevidência que a insolvência faz presumir, sendo por isso estendida a sua incapacidade para além do encerramento do processo. O nosso legislador coloca-se hoje num plano intermédio entre as duas soluções. Assim, o artigo 233.º, n.º1, alínea a) CIRE estabelece que encerrado o processo cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando designadamente o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, o que corresponde ao primeiro sistema. Esta solução admite, no entanto, duas exceções, tributárias do segundo sistema. A primeira resulta da qualificação da insolvência como culposa, que gera a inibição para a administração de patrimónios alheios e para o exercício do comércio ou de cargos em sociedades por um período de 2 a 10 anos (artigo 189.º, n.º1, alíneas b) e c) CIRE). A segunda respeita aos efeitos sobre sociedades comerciais, dado que as mesmas só retomam a atividade com o encerramento do processo, se o mesmo se fundar na homologação de plano de insolvência que preveja a continuidade da exploração (artigo 234.º, n.º1 CIRE), ou se houver deliberação dos sócios nesse sentido, no caso de o encerramento resultar de pedido do devedor (artigos 234.º, n.º2 e 230.º, n.º1, alínea c) CIRE).
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Capítulo II – Contratos Especiais de Comércio Secção I – Tipificações 50.º - Os contratos comerciais e a sua ordenação
A ordenação legal: a fixação de um elenco de contratos especiais de comércio recoloca toda a problemática da precisa determinação dos atos comerciais: matéria histórico-culturalmente condicionada e difícil de explicar, em moldes racionais, na maioria dos seus termos. Além disso, o numerus apertus vigente tornaria sempre qualquer enunciado numa sequência exemplificativa. Como primeira e segura base de trabalho, temos o próprio Código Veiga Beirão. Recordemos que, na versão original, ele considerava “contratos de comércio”: As sociedades; A conta em participação; As empresas; O mandado; As letras, livranças e cheques; A conta corrente; As operações de bolsa; As operações de banco; O transporte; O empréstimo; O penhor; O depósito; O depósito de géneros e mercadorias nos armazéns gerais; Os seguros; A compra e venda; O reporte; O escambo ou troca; O aluguer;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A transmissão e reforma de títulos de crédito mercantil.
A matéria das sociedades foi retirada do Código Comercial: consta das Sociedades Comerciais, base de um ramo jurídico autónomo. A conta em participação é hoje objeto de um diploma legal específico: Decreto-Lei n.º 231/81, 28 julho. As empresas referidas no artigo 230.º não devem ser consideradas contratos. As letras, livranças e cheques são tratadas pelas leis uniformes respetivas e animam uma disciplina comercial autónoma: o Direito dos títulos de crédito. As operações de bolsa incluem-se no Direito dos valores mobiliários. As operações de banco dão azo aos contratos bancários; estes podem, comodamente, englobar a conta corrente, o empréstimo, o penhor e o depósito: na prática, são figuras usadas pela banca.
Contratos extravagantes tipos sociais: Fora do Código Comercial, temos essencialmente seis grupos de contratos a apontar: O contrato de associação em participação e o contrato de consórcio, introduzidos pelo Decreto-Lei n.º 231/81, 28 julho; Os contratos de mediação, com especial focagem no contrato de mediação imobiliária, hoje tratado pelo Decreto-Lei n.º 211/2004, 20 agosto, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 69/2011, 15 junho e a mediação dos seguros, por último impressivamente regulada pelo Decreto-Lei n.º 144/2006, 31 julho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 359/2007, 2 novembro e pela Lei n.º 46/2011, 24 junho; O contrato de agência, regulado pelo Decreto-Lei n.º 178/86, 3 julho, com alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 118/93, 13 abril; O contrato de locação financeira, regulado pelo Decreto-Lei n.º 171/95, 18 julho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 186/2002, 21 agosto. Podemos ainda contar com múltiplos diplomas relativos a negócios de crédito e suas garantias. A associação em participação e o consórcio têm natureza organizativa. Surgem na sequência da conta em participação, à qual o primeiro veio a suceder, o que lhes confere natureza comercial. O contrato de agência tem uma flagrante ligação com a figura geral do mandato comercial – artigos 231.º e seguintes – embora sirva, também, a distribuição. Por isso, esmo considerando que apenas a tradição pode valer, a um contrato, o especial qualificativo “comercial”, não oferece dúvidas a sua inclusão no elenco aqui em jogo. No que respeita aos contratos bancários: trata-se de contratos comerciais, de acordo com a qualificação genérica do artigo 362.º. Sem regulamentação legal expressa, podemos ainda apontar as seguintes figuras normalmente usadas por comerciantes, no exercício da sua profissão: Contratos de promoção: o patrocínio, a publicidade e certas modalidades de mediação; Contratos de distribuição: a concessão comercial e a franquia; Contratos de organização: o lojista em centro comercial, a engenharia e certas modalidades de empreitada.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Os contratos de organização referenciados são acentuadamente atípicos. OS contratos de promoção têm vindo a obter regimes tipificados em leis de defesa do consumidor. Embora constituam o principal impulsionador do comércio, eles tendem a cair no campo civil: têm, de facto, um âmbito genérico de aplicação.
A ordenação proposta: procurando conciliar a tradição que nos vem do Código Veiga Beirão, base existência do próprio Direito mercantil, vamos proceder à ordenação seguinte: A representação e o mandato comerciais; O contrato de mediação; Os contratos de organização; Os contratos de distribuição; Os contratos bancários; O contrato de transporte; O contrato de seguro; Os contratos de compra e venda e de troca; O contrato de reporte; A locação comercial. O mandato comercial permite referir a representação e as diversas figuras tradicionais que se lhe acolhem. Na mediação, além do tronco comum, usaremos algumas das suas modalidades tipificadas na lei. Nos contratos de organização incluímos o consórcio, a associação em participação e o contrato de lojista em centro comercial. Entre os contratos de distribuição inserimos a agência, a concessão comercial e o contrato de franquia (franchising). Os contratos bancários abrange, para além das figuras legais ou sociais mais usadas pelos banqueiros, os contratos comerciais de conta corrente, de empréstimo, de penhor e de depósito. As demais figuras centrar-se-ão no Código Comercial.
Secção II – A representação e o mandato comerciais
51.º - A representação em geral
Generalidades; evolução geral da representação: no Direito Comercial, a representação assume um papel de relevo. O comerciante, designadamente quando atinja e ultrapasse a média dimensão, não pode praticar por si todos os atos comerciais próprios do seu giro: terá de ser representado. A representação para efeitos da prática de atos de comércio – ou a representação comercial – assume, nos diversos ordenamentos, certas especialidades. No caso português tais
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 especialidades são, porventura, muito marcadas. Só poderemos, todavia, surpreende-las através da evolução histórica. Em termos gerais, podemos considerar que o Direito Romano não conhecia a representação. Esta veio a ser construída no período intermédio, graças aos esforços dos canonistas e, depois, dos jusracionalistas. E dessa construção resulta a ligação ao mandato: sendo incumbido, pelo mandante, de executar determinada tarefa, o mandatário recebia o poder de o representar, isto é, de praticar atos cujos efeitos se repercutiriam, de modo direto, na esfera do mandante. Esta posição, na sequência dos estudos de Jhering veio a ser revista e aperfeiçoada: o mandato é um contrato que obriga o mandatário a desenvolver uma tarefa jurídica, mas não envolve poderes de representação; estes advêm de um negócio unilateral – a procuração – que, só por si, a nada obriga. Pode, pois, haver mandato com e sem representação e representação com e sem mandato. Tal esquema foi aceite pela pandectística e passou daí ao BGB, sendo comum nos Direitos de tipo germânico: pelo contrário, ele não se implantou no domínio napoleónico, onde a representação continua a decorrer do mandato. É à luz do estado de coisas que deve ser considerada a experiência portuguesa. Na literatura clássica anterior ao Código de Seabra, encontramos referências muito escassas à representação. A concessão de esquemas de representação era, todavia, bem conhecida. Efetiva-se através do mandato. Esta conferiria poderes ao “procurador” ou “feitor”. Segundo Coelho da Rocha: «Mandato é o contrato, pelo qual uma pessoa se encarrega de praticar em nome de outra certo ato, ou de administrar um ou mais negócios alheios. Aquelle, que encarrega o negocio, chama-se constituinte, ou mandante: e aquelle que o aceita chama-se procurador, ou mandatário: e o titulo que o mandante entrega para este efeito, chama-se procuração». O Código de Seabra, beneficiando já da elaboração napoleónica, foi mais longe; veio dispor, respetivamente: «Os contratos podem ser feitos pelos outorgantes pessoalmente, ou por interposta pessoa devidamente auctorisada» E «Os contractos feitos em nome de outrem, sem a devida auctrisação, produzem o seu efeito, sendo ratificados antes que a outra parte se retracte». A representação voluntária surgia, todavia, a propósito do contrato de mandato ou procuradoria: «Dá-se contracto de mandato ou procuradoria, quando alguma pessoa se encarrega de prestar, ou fazer alguma coisa, por mandato e em nome de outrem. O mandato póde ser verbal ou escripto». As relações entre o mandato e a procuração resultavam do artigo 1319.º: «Diz-se procuração o documento, em que o mandante ou constituinte exprime o seu mandato. A procuração póde ser publica ou particular». A matéria vinha regulada em pormenor, nos artigos subsequentes. A penetração do pensamento padectista, a propósito da representação, foi, entre nós relativamente lenta. Guilherme Moreira divulgou, na nossa linguagem jurídica, oo termo “representação”, definido os seus grandes parâmetros. Por influência manifesta da lei, mantém a representação voluntária
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 como tendo a sua principal origem no mandato ou procuração; todavia, ele logo chama a atenção para o facto de nem sempre o mandato envolver representação: o mandatário poderia encarregar-se de celebrar o negócio jurídico no seu próprio nome. O próprio Manuel de Andrade pouco mais avançou e isso já em plena preparação do Código Civil. Apenas nos meados do século CC, Inocêncio Galvão Telles, ensinado a matéria dos contratos e Ferrer Correia, estudando o tema da procuração, procederam a uma clara contraposição entre esta e o mandato. O pensamento de Jhering, completado com o de Laband, foram expostos, bem como os esquemas adotados pelo Código Civil alemão e pelo italiano. Nessa sequência, Galvão Telles propôs uma clara distinção entre a procuração, fonte de poderes de representação e o mandato. O Código Civil de 1966, no termo de toda esta evolução, acolheu o sistema germânico da distinção entre procuração, fonte da representação – artigos 262.º e seguintes – e mandato, modalidade de contrato de prestação de serviço – artigo 1157.º e seguintes – que pode ser com ou sem representação – artigos 1178.º e seguintes e 1180.º e seguintes, respetivamente. Trata-se de um dado hoje pacífico. Já no âmbito do Código de Seabra, a doutrina sublinhara que o mandato era «um dos raros contratos em que a aceitação da outra parte, neste caso a do mandatário, não figura, em regra, no título em que pelo mandante foram conferidos os poderes, nem tem de ser expressa». Após a entrada em vigor do Código de 1966, mantiveram-se algumas situações de confusão entre mandatários e procuradores: o chamado mandato judicial envolve poderes de representação enquanto, por exemplo, os mandatários referidos no artigo 1253.º, alínea c) CC, são, necessariamente, os que atuem no âmbito de um mandato com representação. E também no Código Comercial se manteve uma noção pré pandectística de mandato.
Requisitos, distinções e regime comum: na representação impõem-se, fundamentalmente, três requisitos: Uma atuação em nome de outrem: o representante deve agir esclarecendo a contraparte e os demais interesses que o faz para que os efeitos da sua atuação surjam na esfera do representado; se o representante não invocar expressamente essa sua qualidade, já não haverá representação; Por conta dele: o representante, além de invocar agir em nome de outrem, deve fazê-lo no âmbito da autonomia privada daquele: atua como o próprio representado poderia, licitamente, fazê-lo; e Dispondo o representante de poderes para o fazer: tais poderes podem ser legais ou voluntariamente concedidos pelo representado; mas têm de existir. O termo “representação” conhece diversos usos, em Direito, alguns dos quais menos corretos. A matéria pode ser esclarecida através de distinções. Assim, temos: A representação legal: trata-se do conjunto de esquemas destinados a suprir a incapacidade dos menores; ela compete aos pais – artigos 1878.º, n.º1 e 1881.º, n.º1 CC; A representação orgânica: as pessoas coletivas são representadas, em princípio, pela administração – artigo 163.º CC; em rigor não há, aqui, “representação”, uma vez que os “representantes” integram órgãos da “representada”; todavia, há um esquema de imputação de efeitos que, histórica e dogmaticamente, deve muito à representação; a ela há que recorrer, para esclarecer vários aspetos do seu regime;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A representação voluntária ou em sentido próprio: a que tenha, na sua base, a concessão, pelo representado e ao representante, de poderes de representação. A representação voluntária traduz a matriz tendencialmente aplicável às outras formas de “representação”, as quais, em rigor, são já um fenómeno distinto, com regras próprias. Na verdade, a antiga tutela romana pressupunha atos praticados em nome do próprio tutor equiparado ao pater; este, por seu turno, agia sempre em nome próprio. Foi, pois, uma generalização, nem sempre precisa: o alargamento da ideia de uma atuação nomine alieno. Esta generalização surge, na forma, sancionada pelo Código Civil: o dispositivo dos artigos 258.º e seguintes, fundamentalmente moldado sobre a representação voluntária, aplica-se, em moldes tendenciais, a todas as “representações” : mas apenas caso a caso e na base da analogia. A representação distingue-se de diversas figuras próximas ou afins, que implicam, igualmente, atuações por conta de outrem. Assim: Da chamada representação mediata ou imprópria: aí, uma pessoa, normalmente por via de um mandato, age por conta da outra mas em nome próprio; as pessoas que, com ela, contratem desconhecem a existência de um mandato: artigo 1182.º CC; Da gestão de negócios representativa: o agente – o gestor – atua em nome do dono, mas sem dispor – e sem invocar – poderes de representação: artigo 471.º CC; Do contrato para pessoa a nomear uma parte, aquando da celebração de um contrato, reserva-se o direito de nomear um terceiro que adquira os direitos e assuma as obrigações provenientes desse contrato – artigo 452.º, n.º1 CC; Do recurso a núncio: o núncio limita-se a transmitir uma mensagem – eventualmente com uma declaração negocial por conteúdo; ao contrário do representante, o núncio não tem margem de decisão: limita-se a comunicar o que tenha recebido; finalmente, o erro do núncio na transmissão conduz ao regime específico do artigo 250.º CC. O negócio jurídico celebrado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica do representado – artigo 258.º. A repercussão dos negócios na esfera do representado tem duas características: É imediata: independentemente de quaisquer circunstâncias, ela opera no preciso momento em que o negócio funcione; É automática: não se exige qualquer outro evento para que ela ocorra. Frente a frente – ainda que do mesmo lado do negócio – aparece-nos dois intervenientes: o representado e o representante. Pergunta-se em qual das duas e respetivas vontades se devem verificar os competentes requisitos. Pela teoria do dono do negócio, apenas a vontade do representado teria relevância; pela da representação, contaria tão só a vontade do representante. O Código Civil deu corpo a uma combinação de ambas, no seu artigo 259.º. Partese, pois, da teoria da representação; todavia, admitindo-se que a vontade do representado possa ter contribuído para o resultado final – e, designadamente, quando o representado tenha dado instruções ao representante, instruções essas que tenham tido efetiva relevância no ato praticado – também neste terão de operar os requisitos negociais. A má fé do representado –
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 artigo 259.º, n.º2 – prejudica sempre, mesmo que o representante esteja de boa fé- De igual modo, a má fé deste prejudica, também, sempre. “Má fé” está, aqui, aplicada em termos muito amplos: exprime o conhecimento, o desconhecimento culposo e, em geral, a prática de quaisquer ilícitos. Numa situação de representação, o representante age, de modo expresso e assumido, em nome do representado: dá a conhecer o facto da representação. O destinatário d conduta tem, então, o direito, os termos do artigo 260.º, n.º1 CC, de exigir que o representante, dentro de prazo razoável, faça prova dos seus poderes. Trata-se de um esquema destinado, por um lado, a dar credibilidade à representação e, por outro, a evitar situações de incerteza quanto ao futuro do negócio, sempre que tarde a surgir a prova dos poderes invocados pelo representante. Este preceito deixa ainda clara a necessidade da existência de tais poderes. Constando os poderes de representação de um documento, pode o terceiro exigir uma cópia dele, assinada pelo representante – artigo 260.º, n.º2. Reforça-se a confiança do terceiro e encontra-se um esquema destinado a melhor responsabilizar o representante 62. Temos uma distinção importante, a propósito da procuração: a que concede poderes gerais e a que confira poderes especiais. A primeira permite ao representante a prática de uma atividade genérica, em nome e por conta do representado; a segunda destina-se à prática de atos específicos. O Código de Seabra, no seu artigo 1323.º, distinguia expressamente a procuração geral da especial. No Código Civil vigente, vamos encontrar essa contraposição a propósito do mandato. Segundo o seu artigo 1159.º: «1. O mandato geral só compreende os atos de administração ordinária; «2. O mandato especial abrange, além dos atos nele referidos, todos os demais necessários à sua execução». Esta distinção é aplicável à procuração, na base de um argumento histórico, de um argumento sistemático e de um argumento lógico a fortiori. Historicamente, recordamos os acima citados artigos 1323.º e 1325.º do Código de Seabra e o facto de toda esta matéria se ter vindo a desenvolver a partir do mandato. O argumento sistemático aponta a unidade natural que deve acompanhar o mandato com representação: o mandatário irá receber os poderes necessários para executar cada ponto do mandato. Finalmente, o argumento logico explica que não faz sentido ter uma lei mais exigente para um mero serviço – o mandato – do que para os poderes de representação, que podem bulir com razões profundas de interesse público e privado.
O negócio-base; regras quanto ao procurador e à sua substituição: o Código Civil, na linha da evolução pandectistíca iniciada por Jhering, veio a cindir a procuração do mandato: a primeira promove a concessão de poderes de representação; o segundo dá azo a uma prestação de serviço. Como também já referimos, esta evolução dá azo a uma prestação de serviço. Como também já referimos, esta evolução não foi total. Assim, a lei pressupõe que, sob a procuração, exista uma relação entre o representante e o representado, em cujos termos os poderes devam ser exercidos. Teoricamente, poderíamos assistir a uma atribuição puramente abstrata de poderes de representação; todavia, tal “procuração pura” não daria, ao procurador, qualquer título para se imiscuir nos negócios do representado. A efetiva concretização dos poderes implicados por uma procuração pressupõe um negócio nos termos do qual eles sejam exercidos: 62
Nas relações internacionais (privadas), cumpre chamar a atenção para a Convenção de Haia sobre a Lei Aplicável aos Contratos de Mediação e à Representação, de 14 maio 1978, a qual foi aprovada, para ratificação, pelo Decreto n.º 101/79, 18 setembro.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 o negócio-base. Normalmente, o negócio-base será um contrato de mandato. A procuração e o mandato ficarão, nesse momento, uma específica situação de união. Nessa altura, a própria lei – artigos 1178.º e 1179.º CC – manda aplicar ao mandato regras próprias da procuração: as vicissitudes desta vêm bulir com o mandato. Podemos ir mais longe: a extensão da procuração, as suas vicissitudes, a natureza geral ou especial dos poderes que ela implique e o modo por que eles devam ser exercidos dependerão, também, do contrato-base. Além do mandato, outras relações básicas vêm referidas na doutrina, com destaque para o contrato de trabalho e para as situações jurídicas da administração das sociedades. Aí, a prática distingue: tratando-se de poderes gerais, com relevo apenas para a denominada “administração ordinária”, a representação resultará da própria situação considerada. Os “poderes especiais”, designadamente para a prática de atos de alienação, exigirão pelo contrário, um ato explícito do representado. O artigo 265.º, n.º1 e 2 CC, prevê três fórmulas para a extinção da procuração: A renúncia do procurador: este pode sempre fazê-lo. O Direito versa a relação de representação como eminentemente pessoal e, nessa medida, assente numa confiança mútua. Corolário desse estado de coisas seria, justamente, a possibilidade de qualquer das partes, a todo o tempo, lhe poder pôr cobro. Todavia, na prática, as coisas não se processam deste modo. A renúncia súbita a uma procuração pode prejudicar o representado. Assim, teremos de entender que, sem prejuízo para a regra da livre renunciabilidade aos poderes, por parte do procurador, este poderá ter de indemnizar se causar danos e a sua responsabilidade emergir da relação-base. Tratando-se de um mandato com representação, por exemplo, a renúncia à procuração implica a sua revogação – artigo 179.º - aplicando-se, consequentemente, o artigo 1172.º, quanto à obrigação de indemnização; A cessação do negócio base: implica o termo da procuração que, em princípio, não se mantém sem aquele. A lei admite, todavia, que a procuração subsista «se outra for a vontade do representado». Nessa altura, os poderes mantêm-se, aguardando o consubstanciador de outra situação de base que dê sentido ao seu exercício. O quadro das fórmulas da cessação da procuração e dos poderes de representação que ela envolve devem, assim, completar-se com recurso às causas extintivas dos negócios subjacentes. Tratando-se do mandato recordamos que, nos termos do artigo 1174.º CC ele caduca por morte ou interdição do mandante ou do mandatário ou pela inabilitação do mandante, se o mandato tiver por objeto atos que não possam ser praticados sem intervenção do curador. Todavia, o artigo 1175.º contém uma importante exceção: a morte, interdição ou inabilitação do mandante não faz caducar o mandato quando este tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro; nos outros casos, a caducidade só opera quando o mandatário tenha conhecimento do evento ou quando da caducidade não possam resultar prejuízos para o mandante ou seus herdeiros. Estas regras aplicam-se à procuração, no caso de morte, interdição ou inabilitação do representado: seja diretamente, quando, subjacente, haja mandato, seja por analogia, nos outros casos. A morte, interdição ou incapacidade natural do representante, por aplicação também direta ou analógica do artigo 1176.º, n.º1 CC, obriga os herdeiros deste a prevenir o representado e a tomar as providências adequadas, até que ele próprio esteja em condições de providenciar; o n.º2 do preceito citado faz recair esse dever sobre as pessoas que convivam com o mandatário, no caso de incapacidade natural
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 deste. E na pluralidade de representantes, funcionará o artigo 1177.º: a procuração caduca em relação a todos, ainda que a causa de caducidade respeite apenas a um deles, salvo se outra for a vontade do representado; Revogação da procuração pelo representado: é o contraposto da livre renunciabilidade, acima referida: também ela se explica pela natureza de confiança mútua postulada pela representação voluntária. O artigo 265.º, n.º2 não deixo ou margem para dúvidas: a revogação é livre «não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação». Trata-se, aliás, dos mesmos termos usados pelo artigo 1170.º, n.º1 CC, a propósito da livre revogabilidade do mandato. Nessa ocasião, haverá que observar, quanto a eventuais indemnizações, o regime aplicável ao negócio-base. Perante um mandato, os artigos 1179.º e 1172.º determinarão um dever de indemnizar. A propósito da revogação da procuração, o artigo 265.º, n.º3 CC prevê a hipótese de uma procuração conferida também no interesse do procurador ou de terceiro. Este preceito só faz sentido por, segundo o legislador, existir, subjacente à procuração, um contrato-base ou situação a ele equiparável. Nos termos desse contrato-base, podem surgir poderes de representação concedidos a uma pessoa como uma parcela de um todo mais vasto. O exercício da representação e os moldes em que, pelo contrato-base, ele se possa efetivar, podem traduzir uma vantagem para o próprio representante ou para um terceiro. Nessa altura, a revogação só pode operar havendo justa causa, isto é: surgindo um fundamento, objetivo ou subjetivo, que torne inexigível a manutenção dos poderes conferidos. De novo encontramos um paralelo claro com o disposto para o mandato, no artigo 1170.º, n.º2 CC. A revogação – tal como a renúncia – pode ser expressa ou tácita. O artigo 1171.º, a propósito do mandato, consigna uma modalidade de revogação que considera tácita: a de ser designada outra pessoa para a prática dos mesmos atos. Pensamos que esta norma tem aplicação à procuração: o representado que designe outro procurador para a prática dos mesmos atos está, implicitamente, a revogar a procuração primeiro passada. Por aplicação analógica daquele mesmo preceito, a revogação só produz efeitos depois de ser conhecida pelo mandatário. Em qualquer caso, sobrevindo a cessação de uma procuração, o representante deve restituir, ao representado, o documento de onde constem os seus poderes. Trata-se de uma norma que resulta do artigo 267.º CC, e que se destina a evitar que terceiros possam ser enganados, quanto à manutenção de poderes de representação. O artigo 267.º, n.º1 CC, refere, apenas, a hipótese da procuração ter “caducado”. Subjacente está a ideia de que a extinção atinge o negócio subjacente, arrastando, com isso, a caducidade da procuração. Supomos não haver dificuldades em alargar esse dispositivo às diversas formas de extinção de uma procuração.
A tutela de terceiros: a procuração destina-se a permitir, ao representante, celebrar, em nome e por conta do representado, atos com terceiros. É um dado importante: a procuração não pode ser tratada como uma exclusiva relação entre representante e representado. A modificação ou a cessação súbitas de uma procuração podem contundir com a confiança de terceiros que, crentes na manutenção dos poderes de representação antes existentes, tivessem mantido uma atividade jurídica com o representante. Procurando contemplar os interesses e a confiança
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 desses terceiros, mas sem descurar a posição do representado, o Código Civil, no seu artigo 266.º, estabeleceu as seguintes regras: Havendo modificações ou revogação da procuração – portanto: de atuações que dependam da iniciativa do representante – devem elas ser levadas ao conhecimento de terceiros por meios idóneos; esta regra deve ser entendida como um encargo em sentido técnico, uma vez que da sua inobservância apenas deriva uma inoponibilidade das modificações ou da revogação: «sob pena de lhes não serem oponíveis senão quando se mostre que delas tinham conhecimento no momento da conclusão do negócio – n.º1; Nos restantes casos de extinção da procuração, não se refere um expresso dever de dar a conhecer ao terceiros; não obstante, elas não podem ser opostas ao terceiro que «sem culpa, as tenha ignorado» - n.º2. Aparentemente, a diferença reside no regime do ónus da prova; no n.º1, o representado terá de provar que os terceiros conheciam a revogação; no segundo, a invocação da boa fé caberá aos terceiros. Temos, aqui, uma norma especial de tutela da confiança, na base da aparência jurídica, que vai bastante mais longe do que o permitido, em geral, pelo Direito Português. O artigo 266.º do Código Civil derivou do artigo 1396.º o Código Civil Italiano, que reproduz quase à letra. Procurando explica-lo, a doutrina de Itália apela seja para o facto de a procuração ser, normalmente, comunicada ao terceiro interessado, seja mesmo para a tese de que a declaração de extinção tem o terceiro como destinatário. Para tentar explicar a produção de efeitos da procuração cuja extinção, por não ter sido comunicada aos terceiros interessados, mantém eficácia, surgiram duas teorias: A teoria da aparência jurídica: foi inicialmente defendida por Wellspacher, entendendo que a procuração se extinguiu efetivamente; todavia mercê da aparência e para tutela de terceiros, ela mantém alguma eficácia; A teoria do negócio jurídico: presente em Flume, pelo contrário, que a procuração só se extingue, pelo menos em vários casos, quando a sua cessação seja conhecida pelos terceiros a proteger. Trata-se de uma orientação que o BGB acolheu: admite a procuração por comunicação direta feita ao terceiro que irá contratar com o representante. No Direito Português que não discrimina tal tipo de procuração, a teoria do negócio jurídico não terá quaisquer fundamentos nas fontes. Queda optar pela teoria da aparência: o artigo 266.º CC, nas precisas condições nele enunciadas, dispensa, aos terceiros aí referidos, uma determinada proteção.
Segue; a procuração tolerada e a procuração aparente: o artigo 266.º protege os terceiros – ou certos terceiros – perante modificações ou a revogação da procuração, de que não tivessem, sem culpa, conhecimento. No Direito alemão, a doutrina e a jurisprudência determinaram um princípio de tutela da confiança de terceiros, particularmente útil no domínio comercial. Na base desse princípio, foram autonomizados dois institutos, destinados a essa tutela: A procuração tolerada: verifica-se que alguém admite, repetidamente, que um terceiro se arrogue seu representante. Quando isso suceda, reconhece-se, ao representante aparente, autênticos poderes de representação;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A procuração aparente: algumas jurisprudência e doutrina vão mais longe: alguém arroga-se representante de outrem, sem conhecimento do “representado” (E por isso não cabendo falar em procuração tolerada). Em qualquer dos casos, teria de se exigir a boa fé por parte do terceiro protegido: a tutela não opera quando ele conhecesse ou devesse conhecer a falta da procuração. Pergunte-se, perante o Direito português, se são utilizáveis os esquemas da procuração tolerada ou da procuração aparente. À partida, interessa referir que não parece possível alargar o artigo 266.º CC, a casos nos quais falte, pura e simplesmente, uma procuração. Na verdade, a previsão protetora assenta num instrumento de representação efetivamente existente, cuja cessação não foi comunicada ao terceiro que, nele, acredite: temos uma razão muito forte para a tutela da aparência. Na falta de procuração e mesmo em situações de tolerância ou de aparência, nada há que, objetivamente, faculte a aplicação do referido artigo 266.º. Fora de qualquer previsão específica, a confiança só é protegida, no Direito português, através da boa fé e do abuso do direito. Assim, não admitimos nem a “procuração tolerada” nem a “procuração aparente”. Todavia, o terceiro que seja colocado numa situação de acreditar, justificadamente, na existência de uma procuração, poderá ter proteção: sempre que, do conjunto da situação, resulte que a invocação, pelo “representado”, da falta de procuração constitua abuso do direito, seja na modalidade do venire contra factum proprium, seja na da surrectio. Em qualquer dos casos, exigir-se-á cautela e parcimónia na concessão de tal tutela. De notar que o Direito Português, no caso especial do contrato de agência – artigo 23.º Decreto-Lei n.º 178/86, 3 julho – admite a figura da representação aparente. Resulta do teor deste preceito um esquema bastante semelhante ao que resultaria da concretização da cláusula geral da boa fé. Pergunta-se se o disposto no artigo 23.º Decreto-Lei n.º 178/86, 2 julho, não poderia ser generalizado, de tal modo que, no Direito Comercial e ao contrário do civil, se pudesse admitir a procuração aparente. Já sondámos essa via. Hoje, abandonamo-la: não vemos valores comerciais específicos que justifiquem tal desvio ao Código Civil. Apenas se poderá aceitar uma interpretação extensiva. Todavia, é de admitir a figura da procuração institucional, para a qual o artigo 23.º em causa dá o seu apoio. Perante um pretenso representante isolado, a pessoa que, com ele, contacte deve tomar precauções, inteirando-se da existência e da extensão dos seus poderes. Mas quando depare com uma organização na qual se integre o pretenso representante, a confiança legítima é imediata. Nesta área, especialmente relevante para o Direito Comercial, opera uma procuração institucional eficaz, independentemente da sua qualidade intrínseca. É como que uma procuração aparente limitada a esse circunstancialismo. A fórmula será a seguinte: há representação ex bona fide sempre que o representante se integre numa organização em termos de fazer crer, junto do bonus parter famílias, na efetiva existência de poderes de representação.
45.º - A representação comercial
A situação em Ferreira Borges: o Direito português da representação comercial exige, para ser conhecido, que se tenha em especial conta a evolução acima apontada, com tónica na passagem do sistema napoleónico para o germânico. Sob esse pano de fundo, vamos pois regressar aos factos normativos nacionais. O Código Ferreira Borges, na tradição do Direito Comum, consignava, no seu artigo 762.º, uma ideia geral de mandato. Trata-se de uma noção
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 civil que o Código Comercial de 1833 fora obrigado a inserir, dada a falta, na época, de um Código Civil. O mandato comercial vinha introduzido no artigo 767.º. O Código Ferreira Borges distinguia – embora sob uma linguagem arcaica – a possibilidade de o mandato comercial envolver ou não representação. A ideia surgia no artigo 768.º, que dispunha: «Quando o mandatário contracta com terceiros em seu próprio nome, ou d’uma firma social, a que pertença, é commissário. – Quando o mandatário contracta com terceiro em nome do comitente, é mandatário mercantil, mas não commissario propriamente dicto». O mandato mercantil “propriamente dito”, envolvendo representação, e a comissão, sem tais poderes, vinham subsequentemente tratadas e secções distintas: artigos 772.º e seguintes e 778.º e seguintes. A regulamentação era bastante minuciosa, culminando ainda com uma secção sobre os modos por que termina o mandato – artigos 818.º e seguintes.
O Código Comercial: no Código Veiga Beirão, a representação comercial aparece a propósito do mandato. Falta-nos a figura da Prokura ou procuração comercial, parente no HGB alemão. A essa luz, a associação entre o mandato comercial e arepresentação aflora ainda no artigo 233.º: «O mandato comercial, que contiver instruções especiais para certas particularidades de negócio, presume-se amplo para as outras; e aquele, que só tiver poderes para um negócio determinado, compreende todos os atos necessários à sua execução, posto que não expressamente indicados». Trata-se de um aspeto básico do mandato mercantil. No Direito Comercial, o mandato sem representação diz-se comissão ou contrato de comissão – artigo 266.º e seguintes. Inferimos daqui que, ao contrário do que se passa no Direito Civil, o mandato comercial envolve sempre poderes de representação. A representação comercial, só por si, não confere, ao representante, a qualidade de comerciante. Os atos comerciais que pratique projetam-se, automática e imediatamente, na esfera do representado: não na do representante. No entanto, se ele exercer a atividade a título profissional já poderá, por essa via, converter-se em comerciante. Temos, aqui, um aspeto muito interessante: coloca o nosso sistema jurídico na charneira dos grandes sistemas do Continente Europeu.
A tutela de terceiros: no Direito mercantil português, não encontramos preceitos diretamente destinados à tutela de terceiros. Apenas cabe anotar o artigo 242.º segundo o qual o mandatário deve exibir o título que lhe confira os poderes: não pode opor a terceiros quaisquer «instruções que houvesse recebido em separado do mandante», salvo provando que os terceiros em causa delas tinham conhecimento. Todavia, os terceiros são protegidos – e num grau elevado – através do registo comercial. Com efeito, nos termos do artigo 10.º, alínea a) CRC, o mandato escrito, suas alterações e extinção estão sujeitos a inscrição comercial. A aparência daí resultante é tutelada, em termos negativos e positivos, por via dos artigos 14.º, n.º1 e 22.º, n.º4, de acordo com a análise acima realizada. O já referido artigo 23.º Decreto-Lei n.º 178/86, 3 julho, relativo ao mandato, admite, nos precisos termos nele enunciados, a procuração aparente. Como acima foi dito, não cremos, hoje, que seja possível generalizar esse preceito a todo o Direito Comercial. Não seria realista supor que, de tal alargamento, resultassem benefícios para o comércio. Pelo contrário: poderia ser a base de desconfianças prejudiciais. Em compensação: terá, no campo comercial, o maior interesse a aplicação da ideia de “representação institucional”, acima
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 preconizada. Finalmente, em todos os domínio omissos, têm aplicação, a título subsidiário e nos termos do artigo 3.º, as regras examinadas referentes à procuração civil. O mandato comercial não está sujeito a qualquer forma especial, salvo se tiver em vista atos que a exijam. Na prática comercial, designadamente para votar em sociedades, por exemplo. Como balanço, o sistema português parece-nos coerente. A proteção de terceiros, conseguida através dos meios próprios da inscrição tabular, previne certos excessos de tutela da confiança, denunciados noutras latitudes.
53.º - mandato comercial
Tipos de mandato comercial; o núcleo estrito: o Código Comercial dedica ao mandato o título V do seu Livro II. Arruma a matéria em três sugestivos capítulos. Pela sistematização adotada, podemos concluir que Veiga Beirão optou por uma ideia ampla de mandato, que envolve as diversas outras figuras. O núcleo estrito ocorre a propósito das disposições gerais: ele vai, depois, surgir com outros elementos, nos diversos subtipos de mandato comercial. Os diversos preceitos em jogo, presentes já na versão de 1888, devem ser interpretados à luz da Ciência do Direito dos nossos dias. No mandato comercial, o mandatário obriga-se, tal como no civil, a praticar um ou mais atos jurídicos, por conta de outrem; simplesmente, tais atos são, aqui, de natureza comercial – artigo 231.º. Como vimos, o mandato comercial envolve, ao contrário do civil, representação. O mandato comercial presume-se oneroso – artigo 232.º também ao contrário do civil – artigo 1158.º Cc. A remuneração é acordada pelas partes ou, na falta de acordo, pelos usos da praça onde o mandato for executado. Embora contratual, o mandato mercantil podia ser conferido por via unilateral. O “mandatário”, não estando de acordo, poderia recusá-lo. Nessa altura, ele incorre nos deveres previstos no artigo 234.º: Deve comunicar a sua recusa ao mandante, o mais cedo possível; Deve praticar todas as diligências necessárias para a conservação de quaisquer mercadorias que lhe hajam sido remetidas, até que o mandante proveja; Deve consignar em depósito tai mercadorias se, avisado, o mandante nada dizer; Deve responder pelo incumprimento de qualquer das enunciadas obrigações. Temos, pois, todo um conjunto de vinculações, consignadas independentemente de contrato, e que se justificam pelos valores comerciais em jogo. Tudo isto é marcadamente especial, em relação ao mandato civil. O mandatário deve, no âmbito do contrato: Praticar os atos envolvidos de acordo com as instruções recebidas ou, na sua falta, segundo os usos do comércio – artigo 238.º; Informar o mandante de todos os factos que o possam levar a modificar ou revogar o mandato – artigo 239.º; Avisar o mandante da execução do mandato, presumindo-se que ele ratifica quando não responda imediatamente, mesmo que exceda os seus poderes – artigo 240.º;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A pagar juros do que deveria ter entregue, a partir do momento em que não o haja feito – artigo 241.º - o que é dizer: a prestar contas. Podemos seguir todas estas obrigações nos artigos 1261.º e seguintes CC. Alguma delicadeza poderá assumir a ideia de instruções, usada quer na lei comercial, quer na civil. No fundo, ela traduz a ligação da atuação do mandatário à vontade do mandante, vontade essa que pode ser dada a conhecer em termos gerais, em moldes finalísticos ou funcionais ou través de indicações mais precisas. Isso não permite, só por si, laboralizar o mandato: o mandatário não fica subordinado ao mandante no sentido de genericamente disponível para, em nome da obediência, conformar a sua prestação de acordo com a direção do empregador: trata-se, sempre, de uma atuação limitada. Por seu turno, o mandante deve: Fornecer ao mandatário os meios necessários à execução do mandato, salvo convenção em contrário – artigo 243.º; Pagar-lhe, nos termos ajustados ou segundo os usos da praça – artigo 232.º, §1.º; Reembolsá-los de despesas e compensá-lo – artigos 234.º, 243.º 2 246.º. Também aqui andamos próximos do mandato civil. A revogação e a renúncia não justificadas do mandato dão lugar a indemnização – artigo 245.º. Trata-se de um esquema mais simples e mais amplo do que o previsto na lei civil. O mandato comercial em sentido estrito tem ainda outras especificidades. Assim, o Código Comercial prevê diversas regras para o caso de o mandato envolver a remessa, ao mandatário, de mercadorias – artigos 234.º a 237.º. Temos, aí, alguns elementos do depósito, sendo certo que, nesta eventualidade, o mandato já não envolve, apenas a prática de atos jurídicos. Na pluralidade de mandatários, presume-se que devam obrar, por ordem de nomeação, na falta uns dos outros – artigo 244.º - prevendo-se ainda a hipótese de mandato conjunto não aceite por todos – artigo 244.º, §único. A matéria surge, aqui, mais desenvolvida do que no artigo 1166.º CC. O artigo 247.º estabelece privilégios creditórios mobiliários especiais a favor do mandatário comercial. De um modo geral, tais privilégios operam sobre mercadorias à guarda do mandatário e por despesas por elas ocasionadas. A grande clivagem entre o mandato civil e o comercial é, no fundo, a seguinte: apesar de diversos esquemas corretivos, o mandato civil surge, no essencial, passado no interesse do mandante; pelo contrário, o mandato comercial opera também no interesse do mandatário e no do comercial em geral. Nessas condições, compreendem-se muitas das soluções resultantes do Código Comercial e de que acima demos conta. Resta adiantar que o movimento tendente a tutelar e a dignificar o mandatário comercial prosseguiu, vindo a atingir o seu ponto alto no contrato de agência, abaixo analisado.
Gerentes de comércio: o Código Comercial regula, como manifestações especiais de mandatários comerciais, os gerentes, os auxiliares e os caixeiros. O gerente é a pessoa que detenha mandato geral para tratar do comércio de outrem – artigo 248.º. Não é um mandato geral civil – artigo 1159.º, n.º1 CC – uma vez que este se limita a atos de administração ordinária, enquanto o gerente de comércio poderá estar titulado para praticar todos os atos próprios da atividade em jogo, seja qual for a sua natureza. De todo o modo, o mandato aqui em jogo funciona em termos de indeterminação dos atos a praticar. O gerente tem, nos termos gerais do mandato comercial, confirmado pelos artigos 250.º e 251.º, poderes de representação. A limitação de tais poderes é inoponível a terceiros, «salvo provando que tinham conhecimento dela ao tempo em que contrataram». Temos, aqui, uma específica forma de tutela da confiança
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 dos terceiros e da comunidade geral. Tutela essa que é reforçada pela sujeição da situação de gerência comercial ao registo mercantil – artigo 10.º, alínea a) CRC. Se o gerente contratar em nome próprio mas por conta do proponente, o regime do artigo 252.º não coincide , rigorosamente, com as regras civis co mandato sem representação: o gerente fica pessoalmente obrigado podendo, todavia, o contratante acionar o gerente ou o proponente: mas não ambos. Além disso, temos as seguintes especificidades: O gerente não pode, salvo autorização expressa do proponente, desenvolver atividade com a deste concorrente; se o fizer, responde pelos danos podendo ainda, o proponente, fazer seu o negócio faltoso – artigo 253.º; Havendo registo do mandato, o gerente tem legitimidade judicial ativa e passiva, como representante do proponente – artigo 254.º. As regras sobre a gerência comercial aplicam-se – artigo 255.º, «aos representantes de casas comerciais ou sociedades constituídas em país estrangeiro que tratarem habitualmente, no reino, em nome delas, de negócios do seu comércio». Trata-se, pois, da figura do escritório de representação. A morte do proponente não põe termo à gerência comercial – artigo 261.º. Havendo revogação do mandato, ficam extintos os poderes de representação: não quaisquer outros elementos decorrentes da prestação de serviço – artigo 262.º. A figura da gerência comercial, manifestação de um mandato comercial de ordem geral, tem vindo a perder importância, mercê do aparecimento de tipos contratuais mais precisos e, designadamente: a agência e a concessão comerciais, abaixo examinadas. Mantêm, todavia, um papel residual. Todas as regras relativas ao mandato estrito, acima examinadas, têm, aqui, aplicação.
Auxiliares e caixeiros: ao lado da figura geral do gerente de comércio, o Código Veiga Beirão refere ainda as figuras dos auxiliares de comércio e dos caixeiros . O auxiliar distingue-se do gerente pelo seguinte: enquanto este tem mandato geral – artigo 248.º e 249.º - o auxiliar tem apenas mandato para tratar de algum ou alguns ramos do tráfego do proponente – artigo 256.º. As sociedades devem consignar esta hipótese nos seus estatutos – artigo 256.º, §único. No âmbito do mandato, os auxiliares são representantes – artigo 258.º. O Código Comercial admite ainda que, como auxiliares, possam funcionar empregados do comerciante, devidamente mandatados – artigo 257.º. Repare-se: o aspeto laboral opera, apenas, nas relações internas entre o comerciante e o seu empregado. Os poderes de representação do trabalhador, automaticamente decorrentes do seu contrato de trabalho, só funcionam no âmbito da empresa. Os caixeiros são pessoas mandatadas para vender e cobrar, em nome e por conta do comerciante mandante. Têm, para isso, os necessários poderes. Os artigos 260.º, 264.º e 265.º fixam um regime próximo do que hoje resultaria ser uma relação de trabalho. De todo o modo, sustentamos que a qualificação do “caixeiro” como trabalhador não é automática nem fatal: caso a caso teremos de indagar se existe a subordinação tipicamente laboral.
O contrato de comissão: a comissão é um contrato de mandato comercial sem representação: nos termos do artigo 266.º:
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 «o mandatário executa o mandato mercantil, sem menção ou alusão alguma ao mandante, contratando por si e em seu nome, como principal e único contraente». A figura, que remonta ao Código de Comércio Francês e tem assento no HGB alemão, assumia o maior interesse antes de o Código Civil ter, em 1966 e nos seus artigos 1180 e seguintes, introduzido a figura do mandato (civil) sem representação. Ao contrário daa comissão, como mandato que é, aplicam-se as regras gerais acima examinadas, salvo o que respeita à representação – artigos 267.º e 268.º; o comissário deverá depois retransmitir para o mandante ou comitente o que, por conta deste, haja adquirido: é o que se infere do final do artigo 268.º. O comissário não responde, perante o mandante e salvo o pacto ou uso em contrário, pelo cumprimento das obrigações do terceiro – artigo 269.º e §1.º; quando assuma esse encargo, pode debitar, além da remuneração ordinária, a comissão del credere, a determinar por acordo ou pelos usos da praça – artigo 269.º, §2.º. As consequências da violação ou excesso dos poderes de comissão correm pelo comissário – artigos 270.º e 271.º. O comissário deve agir com prudência – artigo 272.º - otimizando os meios destinados a prosseguir o interesse do mandante. Tratando-se de bens com preço de bolsa ou de mercado, ele pode, salvo cláusula em contrário, comprar ou vender ao comitente, por conta dele, sem perda da remuneração – artigo 274.º. O Código Comercial estipula determinados deveres de escrituração – artigos 273.º e 275.º a 277.º. A violação deles traduz a inobservância do mandato, com as consequências legais. Muito estimulante, em termos dogmáticos, a comissão veio também a perder importância com o aparecimento dos modernos contratos de distribuição, com relevo para a agência.
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Secção III – O contrato de mediação
54.º - Mediação: Noções básicas e evolução
Noções básicas: em sentido amplo, diz-se mediação o ato ou efeito de aproximar voluntariamente duas ou mais pessoas, de modo a que, entre elas, se estabeleça uma relação de negociação eventualmente conducente à celebração de um contrato definitivo. Em sentido técnico ou estrito, a mediação exige que o mediador não represente nenhuma das partes a aproximar e, ainda, que não esteja ligado a nenhuma delas por vínculos de subordinação. A mediação pode ser assumida como objeto de um contrato: teremos um contrato de mediação. Mas ela pode, também, ocorrer por uma iniciativa do mediador sem que, previamente, nada tenha sido contratado entre ele e qualquer dos intervenientes: falaremos, nessa eventualidade, em mediação liberal. Poderá, assim, haver mediação com ou sem contrato prévio. A situação normalmente prevista nas leis é a de existir um contrato de mediação: mas não fatalmente. A mediação é constantemente apontada, em países latino, como uma das áreas menos estudadas, numa asserção particularmente válida, entre nós. Torna-se, assim, conveniente começar por fixar a terminologia. Propomos: Mediador ou mediador contratado: a pessoa que subscreva um contrato de mediação, obrigando-se a promover um ou mais negócios jurídicos; Mediador liberal: aquele que, independentemente de qualquer contrato, promova a conclusão de negócios jurídicos; Comitente ou solicitante: aquele que contrate um mediador, através de um contrato de mediação; Solicitado: a pessoa junto da qual o mediador vá exercer os seus bons ofícios; Contrato definitivo: o contrato cuja celebração seja prosseguida pelo mediador. Na tradição portuguesa, o mediador era o corretor. Assim nos surgia, no Código Comercial de Ferreira Borges (1833) e no de Veiga Beirão (1888). Todavia, o corretor correspondia a um mediador público, especialmente encartado, pelo Estado, para o exercício de determinadas funções. Leis especiais permitem introduzir diversas categorias de mediadores. Sem preocupação de exaustão, adiantamos: Os mediadores de seguros: Decreto-Lei n.º 144/2006, 31 julho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 359/2007, 2 novembro; Os mediadores imobiliários: Decreto-Lei n.º 212/2004, 20 agosto, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 69/2001, 15 junho; Os mediadores financeiros: artigos 289.º CVM. Caso a caso teremos de apurar se estamos perante uma verdadeira mediação.
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Direito Romano e Direito intermédio: a mediação deve ser tão antiga quanto o comércio. As suas presença e eficácia surgiriam tão óbvias que se dispensava, no Direito Romano, prever qualquer regulação complexa sobre o tema. Mas ele era conhecido. O mediador era o proxeneta: de pro-xeneo, dar hospitalidade, assistir, travar. Provém do termo grego προξενεν: o interessarse por qualquer coisa ou o visar-se um determinado fim. Nas fontes, o proxeneta surge tratado por Ulpiano, em fragmentos inseridos nos diverta. Proxeneta faciendi nominis: intervinha de modo a promover a constituição de vínculos obrigacionais. Ulpiano retinha, depois, dois troços: A licitude da atuação do proxeneta, cuja responsabilidade se limitava à obtenção da relação final; A atribuição eventual do direito a uma compensação. Os fragmentos de Ulpiano não constituem uma articulação sistemática de mediação. Um tanto ao sabor romano e da falta de um sistema externo de exposição, a matéria surgia tópica: centrada nalguns problemas exemplares. O proxeneta poderia ser incluído no grupo extenso das artes liberales, remuneradas pelo seu trabalho. No período tarde surgiu a figura do agente oficial, de natureza diversa. No Direito intermédio, a mediação foi sendo retomada por glosadores e comentadores. O seu tratamento sistemático ficou a dever-se ao pós-humanista Benvenuto Stracca. O proxeneta é apresentado na sua posição de intermediário relativamente às partes – ou futuras partes. Pressupunha-se a existência de normas estatutárias densas, nas diversas cidades italianas, na Idade Média, surgiu o Direito Comercial. Os mediadores proliferaram, depois, por toda a Europa Ocidental. Na Alemanha assiste-se a um seu especial desenvolvimento nos séculos XVII e XVIII. Importante ainda foi a ideia da profissionalidade do mediador, então sedimentada. O mediador não era intermediário casual: antes o que, dessa função, fizesse exercício habitual remunerado. Estava preparado o terreno que, nas fases evolutivas subsequentes, conduziria à intervenção do Estado.
Os Direitos Nacionais modernos: a profissionalização dos mediadores dá-lhes a chave do comércio. Os Estados nacionais modernos cedo se aperceberam da importância da figura. Por isso, chamaram a si uma regulação que, nos inícios, cabia à auto organização do comércio citadino. O exemplo liderante vem-nos da França. Ainda na Idade Média, surgiram os primeiros regulamentos régios63. No fundamental estas intervenções legislativas seguiam o curso seguinte: Consideravam o exercício da mediação como de natureza pública; Exigiam autorização, limitando o seu exercício; Atribuiam poderes especiais de autenticação de documentos, aos próprios mediadores; Em certa altura, chegaram a reconhecer a hereditariedade dos cargos. Na Revolução Francesa, tudo isso foi abolido: proclamou-se a liberdade de trabalho, alargandoa à mediação; em 1795 e 1801, constatando os inconvenientes causados pela integral liberalização, designadamente na área dos câmbios, limitaram o número de inscrições e 63
Filipe, o Belo (1305 – 1312), e Carlos VI (1415). Seguiam-se, já na Idade Moderna, o édito de Carlos IX (1572) e o Decreto de Henrique IV. Finalmente, a mediação cairia nas Ordenanças de Colbert, de 1673 e de 1681.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 atribuíram a primeiro cônsul o poder de designação. O Código Comercial de 1808, não interveio no fundo desta problemática. Limitava-se a regras de enquadramento sem definir o mediador (courtier). O aprofundamento dogmático da mediação caberia à doutrina alemã, do século XIX. Aí ficaria clara a dupla problemática da mediação: A sistematização teórica da relação de mediação com os direitos e deveres inerentes à atividade de relacionar, com independência, dois ou mais sujeitos; O relevo público da função, que justifica determinadas intervenções do Estado. Laband, publicista, veio sublinhar, na mediação, uma evolução que, partindo de bases românicas de tipo jurídico-obrigacionista, apontaria para uma funcionalização de tipo público: uma orientação que passaria ao ADHGB de 1861. Ainda desta época datam as primeiras discussões sobre a natureza da mediação. Primeiro reconduzida ao mandato64, a mediação acabaria por ser reconhecida como um contrato autónomo, assim sendo tratada nas codificações comerciais mais avançadas do século XIX. Fixados estes exemplos, cabe esclarecer que, a nível mais geral, as funções de corretor foram-se articulando seguindo vários sistemas. Assim: O sistema privado, próprio dos países anglo-saxónicos: a função de corretor é livre, ficando aberta a qualquer interessado; O sistema público: os corretores são nomeados pelo Governo ou pela Câmara do Comércio tal os casos de França ou Espanha; O sistema misto: lado a lado, temos corretores oficiais e corretores públicos: a Alemanha. Haveria ainda, países significativos que, como a Itália, evoluíram do sistema privado para o público.
Codificações civis e comerciais; justificações da figura: a mediação conheceu consagrações comerciais e civis distintas, nalguns ordenamentos europeus influentes. No Direito Alemão, a mediação ficou consagrada no ADHGB de 1861 como o exercício de um ofício público. O BGB de 1896 tentou uma especial via: quebrando com a dupla tradição do oficialato público e da natureza comercial, ele veio admitir uma mediação civil: uma inovação no campo europeu. Paralelamente, o HGB 1897 privatizou a mediação comercial. Todavia, mantêm-se setores regulados, em áreas de atividade mais sensível. Até à reforma de 1998, a mediação comercial dependia da qualidade de comerciante de quem a praticasse; daí em diante, a comercialidade resulta da natureza do negócio visado. A matéria já antes havia sido ponderada, em termos de reforma. Registe-se, ainda, que estamos perante um setor que apresenta grande importância prática, designadamente na Alemanha. No Direito Italiano, o Código de Comércio de 1865 retomou o esquema napoleónico, ainda que com um maior desenvolvimento. Já o Código de Comércio de 1882 dedicou, à mediação, o Título V do Livro I, ocasionando um surto de estudos especializados. A regulamentação aí estabelecida surge bastante simples e visa o mediador em si. A construção do correspondente contato, quando exista, é desempenho doutrinário. Na revisão legislativa subsequente, a matéria da mediação chegaria a ser inserida no anteprojeto de Código de Comercio. Com o consequente abandono da ideia de proceder a uma revisão 64
Anton Friedrich Justus Thibaut: tratar-se-ia de um especial mandatário, usado para proporcionar negócios e ao qual seria devido um honorário chamado proxeneticum.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 autónoma do Código de Comércio, a matéria passaria para o Código Civil. Embora inserida entre os contratos em especial, as normas relativas à mediação não se ocupam diretamente do correspondente contratos: antes versam, na tradição do revogado Código de Comércio, a situação jurídica do mediador. Quebrando uma anterior tradição liberal, a Lei Italiana n.º 39, 3 fevereiro 1989, veio estabelecer um regime restritivo: a mediação fica reservada a profissionais inscritos em determinada lista dotados de requisitos legalmente fixados. A função do mediador assenta na própria essência da livre concorrência: só não seria necessária numa economia inteiramente planificada. Na verdade, o mercado não pode funcionar se a oferta e a procura não entrarem em contacto, de modo a comporem os preços mais favoráveis para todos os intervenientes. Todavia, a presença de intermediários interessados, nos diversos negócios, é sentida como um peso, quer pelos produtores, quer pelos consumidores finais. A legitimidade das comissões por eles cobradas é questionada. A jurisprudência já em sido acusada como pretensamente hostil aos mediadores. A própria evolução semântica do clássico proxeneta, na língua portuguesa, é sintomática e dispensa glosas. Tudo isto deve ser evitado. Particularmente entrenós, o mediador arca com a desconsideração histórica que atinge todo o comércio e que cumpre contrariar. O mediador tem um papel básico na economia e no da mediação deve, com qualquer outra, ser exercida com correção e dentro da ética dos negócios. Também por isso não se justifica o desinteresse jurídico-científico a que a matéria tem sido votada. Anote-se, por fim, que os progressos da eletrónica e da informação permanente on-line põem em crise a mediação tradicional. Cabe aos mediadores adaptarem-se, integrando-se nos grandes circuitos da sociedade de informação e da nossa Aldeia Global.
55.º - A mediação na experiência lusófona
O Direito antigo e o Código Ferreira Borges (1833): na tradição jurídica portuguesa, a atual figura do mediador era incluída, sem distinções, na de corretor. E a este dedicou a Lei, tradicionalmente, a maior atenção. Em 19 janeiro 1485 foi publicado um regimento dos corretores seguido, em 1494, por novo diploma. As sucessivas Ordenações ocuparam-se do tema. O Código Comercial de Ferreira Borges incluía a matéria dos corretores na secção II do Título II do Libro I, Parte I, precisamente intitulada Dos corretores. Apresentava o corretor nestes termos: «O officio de corretor é viril e publico. O corretor, e ninguém mais, póde intervir e certificar legalmente os tractos e negociações mercantis». O âmbito de ação dos corretores era amplo. Dispunha: «As operações dos corretores consistem em comprar e vender para seu committentes mercadorias, navos, fundos públicos, e outros créditos, letras de cambio, livranças, letras da terra, e outras obrigações mercantis: - em empréstimos com penhor ou sem elle; - e em geral em prestar o seu ministério nas convenções e transações commerciais». O alvará de nomeação de cada corretor designará o género de negócios para que ele ficava habilitado. A habilitação podia ser «ilimitada e geral para todos os negócios». O número de
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 corretores em cada praça seria fixo e «proporcionado à sua povoação, trafico e gyro, determinado por regulamentos particulares». Havia uma série de exigências e de inibições, no acesso à profissão. Os corretores tinham uma sequências de deveres: deviam certificar-se da identidade e da capacidade dos contratantes; eram responsáveis pela autenticidade da firma e do último cedente; não deviam «com motivos falsos induzir o contraente em erro»; estavam obrigados a sigilo. Ocorriam, depois, outras obrigações, por especialidades. O sistema do Código era completado por diversos instrumentos, designadamente o Regulamento da Corporação dos Corretores. Manteve-se, pois, firme, a tradição do corretor como oficial público. Examinando as suas funções, logo se verifica que elas vão bem além das de mera mediação; temos, lado a lado, esquemas do mandato e do notariado público.
O Código Veiga Beirão: no Código Comercial de Veiga Beirão (1888), o título VII do Livro I denomina-se, precisamente, Dos corretores. Preenche os artigos 64.º a 81.º: uma síntese significativa, em relação ao Código anterior. O corretor exercia um ofício pessoal público, viril e de nomeação régia (artigo 64.º). Podia ter um substituto, aprovado pelo Governo (artigo 65.º). Quanto às suas operações, encontramo-las no artigo 66.º: «As operações dos corretores serão: «1.º Comprar ou vender para os seus comitentes mercadorias, navios, fundos públicos, ações de sociedades legalmente constituídas, títulos de riscos marítimos, letras, livranças, cheques, e outros créditos e obrigações mercantis; «2.º Fazer negociações de descontos, seguros, fretamentos e empréstimos; «3.º Proceder às vendas de fundos públicos, ações ou obrigações de bancos ou companhias, ordenadas por autoridade da justiça da respetiva comarca; «4.º Prestar em geral o seu ofício para todas as operações de bolsa, e em todos os casos em que a lei exija a sua intervenção. «§único. Os corretores de qualquer praça procederão também às das vendas dos títulos mencionados no n.º3 deste artigo quando lhes forem cometidas pela autoridade judicial competente de qualquer comarca». Como se vê, estamos perante um misto de mandato e de mediação. Significativamente, o artigo 77.º mandava aplicar certas regras relativas ao mandato e à comissão. Além disso, dos artigos 68.º a 75.º resultavam funções de notariado público. Pela sua atuação era-lhes devida uma corretagem, fixada em tabela (artigo 81.º).
56.º - A especialização da mediação
Mediação mobiliária; intermediação financeira: o Código Comercial deu o tom mais geral à função dos corretores, no nosso Direito. A evolução subsequente foi marcada pela manutenção da intervenção do Estado e pela especialização crescente dos diversos tipos de corretagem. Em síntese, passamos a indicar a evolução, até aos nossos dias. O importante
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Decreto de 10 outubro 1901 (Hintze Ribeiro) aprovou o Regimento do Officio de corretor. Esse diploma dispunha, no artigo 4.º que os corretores eram de três espécies: Corretores de câmbios, fundos públicos e particulares, créditos e obrigações mercantis; Corretores de navios, seguros e transportes; Corretores de mercadorias e suas vendas. Podia, todavia, ser nomeado um corretor com valência em duas ou três das apontadas áreas. Em princípio haveria concurso para o ofício de corretor, a correr na Direção-Geral do Comércio e Indústria. O Regimento desenvolvia, depois, os diversos aspetos já inseridos no Código Comercial. Na evolução subsequente, os corretores foram especializados em três grandes troncos valores mobiliários, seguros e setor imobiliário. Quanto aos valores mobiliários, o tema passou para o Decreto-Lei n.º 8/74, 14 janeiro, que veio regular a organização e o funcionamento das bolsas de valores, bem como estabelecer o Regimento do Ofício de Corretores. Retemos alguns aspetos: Os corretores das bolsas de valores são os intermediários oficiais das operações que nelas têm lugar; Poderia haver sociedades corretoras; Os corretores são nomeados por despacho do Ministério das Finanças, podendo haver concurso; As obrigações do corretor são especificadas, surgindo diversas proibições; Previam-se câmaras de corretores, abrangendo todos os que exerçam a sua capacidade profissional junto de uma bolsa. O Decreto-Lei n.º 8/74, 14 janeiro, revogou expressamente o Decreto 10 outubro 1910 e o Regimento do Offício de Corretor. Estes diplomas não funcionavam apenas, no domínio do então chamado Direito da Bolsa. Alargavam-se aos seguros, aos transportes e às mercadorias. Todavia, com esta revogação, o Código Comercial ficou lei imperfeita. O sistema português, com exceção da bolsa, entraria numa época de liberalização. O Decreto-Lei n.º 8/74 foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 142-A/91, 10 abril, que aprovou o Código dos Valores Mobiliários (artigo 24.º). Esse mesmo preceito revogou os artigos 64.º 81.º CCom, mas «no que se refere às bolsas de valores, seus corretores e operações sobre valores mobiliários». A contrario sensu, caberia concluir que esses preceitos se mantiveram em vigor para os outros setores. Todavia, a generalidade dos compiladores considerou que os citados artigos 64.º a 81.º CCom haviam sido revogados no seu todo. Não foi assim. Os deveres consignados no Código Comercial, que não necessitavam do revogado Regulamenta de 1901, mantiveram-se em vigor, para os mediadores que não constassem do elenco mobiliário. Finalmente, o Código do Marcado de alores Mobiliários foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, 13 novembro – artigo 15.º, n.º1, alínea a). A antiga matéria dos corretores das bolsas surge agora a propósito da intermediação
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 financeira (artigo 289.º a 351.º), havendo ainda que contar com regulamentos e legislação complementar.
Mediação dos seguros: em 27 agosto 1975, um despacho do Subsecretário de Estado do Tesouro veio estabelecer a obrigatoriedade de inscrição dos mediadores de seguros. Não era este o meio jurídico para enquadrar o problema. E assim surgiu o Decreto-Lei n.º 145/79, 23 maio: o primeiro diploma a regular «as condições e o modo como pode ser exercida em Portugal a atividade de mediação de seguros». Na base da regulamentação terão pesado as seguintes considerações: A reestruturação do setor dos seguros; A intervenção de mediadores na grande maioria dos contratos de seguro; A necessidade de profissionalização. A mediação de seguros bem definida como (artigo 1.º, n.º1): «a atividade tendente à realização, à assistência ou à realização e assistência de contratos de seguro entre pessoas, singulares ou coletivas, e as seguradoras». A mediação de seguros ficou reservada aos mediadores inscritos no então INS, não podendo, em especial, ser exercida por companhias de seguros e resseguros, agências de companhias estrangeiras e mútuas de seguros. Os mediadores de seguros foram repartidos por duas categorias: Agente de seguros: o mediador, pessoa singular ou coletiva, que faz a prospeção e a realização de seguros, presta assistência a segurado, efetua a cobrança dos prémios e a prestação de outros serviços, se assim o tiver acordado com a seguradora; Corretor de seguros: o mediador, pessoa coletiva que forma uma organização comercial e administrativa própria, na qual empregue um ou mais trabalhadores profissionais de seguros; tem uma competência mais alargada, a qual inclui: o
Dar informações às seguradoras para a análise de riscos, para a prevenção e segurança e para a instrução de processos de sinistro;
o
Colabora com os peritos e prestar assistência aos agentes que coloquem seguros;
o
Fornecer ao então INS uma série de elementos.
Os direitos e os deveres do mediador foram objeto de alongadas seriações. O primeiro regime dos mediadores de seguros vigorou por 6 anos. Foi substituído por um novo regime, adotado pelo Decreto-Lei n.º 336/85, 21 agosto, que pretendeu intervir nos seguintes domínio: Moralização da atividade; Exigência da sua profissionalização; Reforço da disciplina do mercado;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Defesa dos interesses das partes envolvida. O novo diploma veio estabelecer três categorias de mediadores: O agente de seguros: faz prospeção, visa realizar seguros, presta assistência ao segurado e pode cobrar prémios; Angariador: idem, mas sendo trabalhador de seguros; Corretor: uma pessoa coletiva devidamente autorizada, e com funções alargadas. Em nome da moralização, foi vedada a mediação de seguros nos contratos a celebrar com entidades do setor público. A lei seguiu a técnica de enumerar os direitos e os deveres dos mediadores em geral e, depois, de precisar as posições dos diversos tipos de mediadores. Foram ainda regulados aspetos práticos atinentes às inscrições e às sanções. O Decreto-Lei n.º 336/85, 21 agosto, foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 172-A/86, 30 junho, no sentido de alargar a mediação nos seguros a cidadãos de outros países comunitários. Passados mais seis anos: o legislador entendeu dispensar um novo diploma regulador da mediação dos seguros. Fê-lo através do Decreto-Lei n.º 388/91, 10 outubro. Jogaram – diz o legislador – nesse sentido, vários fatores: A presença de novo canais de distribuição de seguros, com relevo para as instituições de crédito e as estações de correio; A oportunidade de colocar num único instrumento, as regras aplicáveis à mediação de seguros; O reforço da profissionalização; A liberalização do sistema da comissão, «que passa a ser negociado livremente entre as seguradoras e os mediadores»; A especialização “não-vida”, “vida”; A abertura aos EIRL e às cooperativas; A atualização das sanções. O sistema em vigor foi alterado em função destas diretrizes. Manteve-se, naturalmente, a necessidade de inscrição do ISP (artigo 3.º, n.º1), bem como a tripartição em agentes, angariadores e corretores. O novo regime absorveu a matéria comunitária, passando a ascender a 60 artigos. O novo diploma atingiu a excecional longevidade de mais de vinte anos. Vigorou até ser substituído pelo Decreto-Lei n.º 144/2006, 31 julho: um diploma de fôlego (107 artigos), alterado pelo Decreto-Lei n.º 359/2007, 2 novembro, a examinar a propósito do contrato de seguro.
Mediação imobiliária: o setor imobiliário foi, curiosamente, o primeiro a obter uma regulamentação especializada, atinente à mediação. Ela foi aprovada pelo Decreto-Lei n.º 43 767, 30 julho 1961. O diploma continha diversas regras especificamente dirigidas aos mediadores. O contrato de mediação propriamente dito não era objeto de preceitos legais. No mesmo ano, o Decreto-Lei n.º 43 902, 8 setembro, veio dispor sobre a caução a que os mediadores imobiliários ficavam adstritos. Com alguns aditamentos, o regime básico de 1961
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 vigorou por mais de trinta anos. O «incremento significativo que se tem verificado na atividade de mediação imobiliária» conduziu à reformulação do seu «enquadramento legislativo»: tal o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 285/92, 19 dezembro, que levou a cabe tal tarefa. Esse diploma vinha definir a atividade visada: «entende-se por mediação imobiliária a atividade comercial em que, por contrato, a entidade mediadora se obriga a conseguir interessado para a compra e venda de bens imobiliários ou para a constituição de quaisquer direitos reais sobre os mesmos, para o seu arrendamento, bem como na prestação de serviços conexos». O exercício de tal atividade ficava dependente de licenciamento, a obter junto do Conselho de Mercados de Obras Públicas (CMOPP). O Decreto-Lei n.º 285/92 compreendia ainda outros aspetos dignos de interesse jurídico-científico. Adstringia os mediadores ao uso da denominação, mediador imobiliário ou sociedade de mediação imobiliária. Elencava os seus deveres, na linha do que tradicionalmente constava do Código Comercial, para os corretores. Regulava, ainda, de forma pioneira o contrato de mediação imobiliária. Este texto foi reconhecido como tendo tipificado o contrato de mediação, pelo menos no campo imobiliário. Não regula toda a matéria em jogo, designadamente a da remuneração que, na linha do entendimento anterior e tradicional, é feita depender do resultado da intervenção do mediador. Também no setor da mediação imobiliária se faria depois sentir a permanente capacidade interventora do nosso legislador. Assim, ainda não se haviam passado 7 anos sobre este Diploma quando surge um novo regime: o do Decreto-lei n.º 77~799, 16 março. Este diploma, segundo o próprio legislador, visou: O reforço da capacidade empresarial das entidades mediadoras; A adoção da forma societária; Maiores requisitos para o acesso à atividade; Melhor identificação das empresas, dos seus representantes e dos seus prestadores de serviços; Clarificar o momento e as condições de remuneração; Reformar o sistema das garantias; Criar uma comissão arbitral para o reembolso de garantias indevidamente recebidas; Estabelecer novos deveres das empresas; Instituir novas sanções. O licenciamento seria concedido pelo Instituto de Mercador de Obras Públicas e Particulares do Imobiliário (IMOPPI). O diploma manteve, com alterações (desnecessárias), a definição da mediação imobiliária. A remuneração depende da «conclusão e perfeição do negócio visado pelo exercício da mediação». O contrato de mediação imobiliária manteve a exigência da forma escrita e viu alargar o seu conteúdo com diversas indicações. Pode se acordado num regime de exclusividade. Introduziram-se alterações a artigos com o Decreto-Lei n.º 258/2001, 25 setembro. Pouco depois, a Lei n.º 8/2004, 10 março, autorizou o Governo a regular o exercício das atividades de mediação imobiliária e de angariação imobiliária. O Governo desempenhou-
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 se, aprovando o que seria o Decreto-Lei n.º 211/2004, 10 agosto: com uma nova regulação para a atividade de mediação imobiliária.. O legislador explicou-se: dificuldades burocráticas teriam dificultado a aplicação do regime de 1999 enquanto, por outro lado, teriam ocorrido «grandes transformações do mercado imobiliário» e «um grande desenvolvimento». Temos, agora, um diploma extenso, em 58 artigo. Vemos reter apenas algumas notas sobre o novo diploma. A atividade imobiliária é agora definida (artigo 2.º, n.º1) como: «aquela em que, por contrato, uma empresa se obriga a diligenciar no sentido de conseguir interessado na realização de negócio que vise a constituição ou aquisição de direitos reais sobre bens imóveis, a permuta, o trespasse ou o arrendamento dos mesmos ou a cessão da posição em contratos cujo objeto seja um bem imóvel». A terminologia tradicional foi alterada (sem vantagens): segundo o artigo 2.º, n.º4 chama-se, agora, “interessado” ao solicitado e “cliente” o mandante. Os artigos 3.º e 4.º apresentam, ainda, uma contraposição entre: A empresa de mediação imobiliária: a que tenha por atividade principal a acima definida; A angariação imobiliária: a prestação de serviços necessários para a preparação e cumprimento de contratos de mediação imobiliária. Mantém-se a necessidade de licenciamento junto do IMOPPI (artigo 5.º). Os requisitos de ingresso são ampliados (Artigo 6.º). Complicam-se as regras relativas à remuneração (artigo 18.º), conservando-se, no essencial, as atinentes ao contrato de mediação imobiliária (artigo 19.º). Os angariadores obtêm diversas regras próprias (artigos 31.º e seguintes). O setor sofreu com a complexidade introduzida. Todavia, apenas cinco anos volvidos o legislador se decidiu intervir, em nome da simplificação: o Decreto-Lei n.º 69/2011, 15 julho, alterou diversos preceitos do Decreto-Lei n.º 211/2004, o qual foi republicado como anexo.
Mediação monetária: também no setor monetário surgiu uma regulação para a respetiva mediação. O Decreto-Lei n.º 164/86, 26 junho, veio invocar, no seu preâmbulo, que o correto funcionamento do mercado monetário interbancário «recomenda a intervenção especializada de mediadores profissionais que contribuam para a racionalização do mercado, prevenindo alongadas negociações multilaterais, centralizando a oferta e a procura, promovendo a sua transparência, a rápida e eficiente formação dos preços, a fluidez e o sigilo das transações». E prossegue: «As empresas mediadoras dos mercados monetários assumem-se essencialmente como corretoras, isto é, agem sempre e necessariamente por conta de outrem. Não são, por isso, entidades parabancárias, o que as dispensa de estruturas que àquelas se exige». Isto posto, fixou-se um regime simples, assente nos pontos seguintes: Exigência de forma de sociedade anónima ou por quotas (artigo 1.º, n.º1); Idem, de exclusividade e de exercício por conta de outrem (artigo 1.º, n.º2 e 3);
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Incompatibilidade (artigo 3.º); Registo no Banco de Portugal (artigo 4.º) Este último recebe poderes de fiscalização (artigo 10.º). A aprovação, pelo Decreto-Lei n.º 298/92, 31 dezembro, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, permitiu a aprovação de um novo regime: mais simplificado. Tal foi o papel do Decreto-Lei n.º 110/94, 28 abril.
Mediação de jogos sociais do Estado: a concluir o levantamento dos regimes específicos para as mediações, cumpre relevar o regulamento dos jogos mediadores dos jogos sociais do Estado, aprovado pela Portaria n.º 313/2004, 23 março.
57.º - Dogmática geral da mediação
Aceções e modalidades: o desenvolvimento anterior logo permitiu verificar que a mediação, conquanto que centrada num núcleo expressivo, assume diversas aceções e modalidades. A contraposição entre os diversos sistemas continentais e a própria evolução nacional logo mostram que, na mediação, cumpre distinguir à cabeça: A mediação simples: o ato ou o efeito de mediar é levado a cabo por qualquer pessoa, sem especiais preparação ou condicionalismo, dentro do espaço jurídico; A mediação profissional: encontramos uma pessoa que, de modo organizado, lucrativo e tendencialmente exclusivo, utiliza a mediação como modo de vida. Pela natureza das coisas torna-se mais eficaz, sobretudo em áreas que impliquem investimentos alargados nos domínios da prospeção do mercado e do conhecimento das suas realidades. A atenção dos Estados, desde os séculos XV e XVI, tem-se virado para a mediação profissional. Ela pode, na verdade, representar o domínio total de determinados setores comerciais. De seguida, passamos a contrapor: A mediação liberal: o mediador age por si, sem qualquer vínculo: opera como um comerciante autónomo, seja ele uma pessoa singular ou coletiva. Na linguagem da mediação imobiliária fala-se, simplesmente, em empresa de mediação; na dos seguros, em corretor; A mediação dependente: o mediador está ligado a uma organização por um vínculo de prestação de serviço, seja em relação ao mediador propriamente dito (angariador imobiliário), seja em relação à entidade que irá celebrar o contrato final (mediador de seguros ligado), seja ainda em relação a esta mesma entidade ou de outros mediadores (agentes de seguros); A mediação oficial: o mediador é designado por um ato administrativo, encontrando-se em posição funcionalizada pública. Tal o caso dos mediadores dos jogos sociais do Estado.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Relevante é ainda a contraposição, que já encontrámos de modo repetido, entre: A mediação espontânea: o mediador põe, por iniciativa sua e sem que ninguém lho tivesse solicitado, duas ou mais pessoas em contacto, promovendo entre elas a negociação e a conclusão de um contrato que a ambas interessasse; A mediação contratada: o mediador celebra, previamente, um contrato com algum dos envolvidos, comprometendo-se a localizar e a interessar um cocontratante, promovendo, com este, a conclusão contratual definitiva. Podemos, ainda, subdistinguir: o
A mediação contratada unilateral, quando o mediador tenha celebrado o contrato de mediação apenas com um dos interessados no negócio final;
o
A mediação contratada bilateral, quando o tenha feito com ambos os interessados.
Havendo contrato de mediação, cumpre distinguir: A mediação pura: o mediador obriga-se, simplesmente e numa situação de independência e de equidistância em relação às partes, a conseguir a celebração de certo negócio definitivo; A mediação mista ou combinada: o mediador, para além dos serviços de mediação propriamente dita, exerce ainda uma atuação por conta de outrem (mandato), podendo igualmente assumir outros serviços: desde a publicidade, à prestação de apoio jurídico. Neste último caso, haverá que procurar, à luz de diplomas especiais, quando os haja, qual o exato âmbito da figura. Anote-se, ainda, que a mediação mista pode ser uma atuação interessada, no sentido do solicitador ao qual, inclusive, o mediador poderá estar ligado, institucionalmente ou por contrato, incluindo, até, meios de representação. Já não será verdadeira mediação: falaremos em mediação imprópria.
Mediação civil e mediação comercial: como vimos, a lei alemã distingue a mediação civil e a mediação comercial. Na primeira, conter-se-iam as regras gerais, equivalendo a segunda a especialidades requeridas pelo comércio. Nos Direitos latinos, a tradição era a da presença da mediação apenas nas leis comerciais. De resto – e em especial na nossa lei: mais do que a mediação era, em princípio, tratado apenas o mediador. Nada impede a celebração, ao abrigo da liberdade contratual (artigo 405.º, n.º1 CC), de um contrato de mediação puramente civil. Ele traduziria a obrigação de uma das partes de encontrar um interessado para a celebração, com o comitente, de um contrato definitivo. Tratar-se-ia de um contrato preparatório, a inserir na sequência processual lado a lado com outras hipóteses, como o contrato-promessa, o pacto de opção ou o pacto de preferência, de um terceiro: o mediador. As partes incluiriam, nele, as cláusulas que lhes aprouvesse No silêncio do contrato, nenhum inconveniente haveria em reconhecer à lei comercial, procurando regras de aplicação analógica. Na normalidade dos casos, a mediação é comercial. Por uma de duas vias:
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Ou por se tratar de um mediador – portanto: um comerciante – no exercício da sua atividade comercial; não haverá qualquer dúvida quando o mediador seja uma sociedade: teremos uma comercialidade subjetiva; Ou por estar em causa alguma das modalidades de mediação tipificadas em leis comerciais especiais: mediação mobiliária, dos seguros, imobiliária, monetária e de câmbios e de jogos sociais: a comercialidade será objetiva, coincidindo, em regra, com a subjetiva. O artigo 230.º CCom dispõe:
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«Haver-se-ão por comerciais as empresas, singulares ou coletivas, que se propuserem: (…) «3.º Agenciar negócio ou leilões por conta de outrem em escritório aberto ao público, e mediante salário estipulado». Já se tem, neste preceito, pretendido ver uma referência à mediação. A assim ser, tratar-se-ia de um ato subjetivamente comercial, visto a interpretação geral a dar ao artigo 230.º em causa. Parece-nos todavia claro que o troço citado (artigo 230.º, n.º3) não coincide nem com a mediação nem com os mediadores, à época dos ditos corretores. Antes abrange diversas figuras de prestação de serviço.
Mediação típica e mediação atípica: podemos distinguir, hoje, entre situações típicas de mediação e situações atípicas. As primeiras reportam-se às modalidades que tenham consagração legal: as mediações mobiliárias, de seguros, imobiliária e dos jogos sociais, como exemplos. As restantes será atípicas. Normalmente, as situações típicas são, ainda, nominadas: dispõe de nomen iuris. Nos nossos tribunais, as situações de mediação mais frequentes são as mediações imobiliárias. Elas movimentam valores consideráveis e, pela maneira incipiente por que ocorrem ou pela diversidade do resultado a que podem conduzir, dão azo a dúvidas. Até ao aparecimento do Decreto-Lei n.º 285/92, 19 dezembro, os tribunais proclamavam a mediação (em geral) com inominada e atípica: teria deixado de o ser, após esse diploma. Surgem, porém, espécies relativas à mediação na área dos seguros, designadamente para fixar a sua diferença em relação à angariação de seguros, à corretagem e ao agente de seguros. Toda esta matéria deve ser sindicada perante os concretos diplomas aplicáveis. No tocante a mediações atípicas, os nossos tribunais permitem documentar as que se reportem: À venda de um automóvel; À aquisição de frascos para produtos farmacêuticos; A encontrar, no mercado, determinados livros; À compra e venda de máquinas industriais e de têxteis; À contratação de determinado serviço de fornecimento de gás. A prática não judicial permite apurar muitas outras situações de mediação atípica, designadamente no campo das antiguidades. Tudo isto mostra a necessidade de se apurar um regime geral para o tipo de contrato aqui em análise.
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Figuras afins: a boa explicitação do contrato de mediação leva a distingui-lo das figuras afins. Tradicionalmente, a fronteira é traçada em relação ao mandato e à agência, parecendo-nos ainda útil perante o contrato de trabalho. A mediação pressupõe, por parte do obrigado, uma atuação material. Alem disso, configura-se como um contrato aleatório, só dado azo a retribuição quando tenha êxito. A sua distinção em face do mandato fica facilitada: O mandato pressupõe uma atuação jurídica por conta do mandante; a mediação implica a condutas materiais; O mandatário age por conta do mandante; o mediador atua por conta própria; O mandato pode ser acompanhado por poderes de representação; a mediação, a sê-lo, será uma mediação imprópria. De todo o modo e como veremos, a mediação é, por essência, uma prestação de serviço. Assim ela acabará por cair no artigo 1156.º CC: as regras do mandato, precedendo adequada sindicância, ser-lhe-ão aplicáveis. A mediação é, por si, um contrato inorgânico: não dá azo a nenhuma especial organização, nem pressupõe uma relação duradoura. Além disso, ela postula uma posição de independência do mediador. Podemos, por estes ângulos, distingui-la do contrato de agência. Assim: A agência pressupõe um quadro de colaboração ou de organização duradouro, entre o principal e o agente; a mediação assenta num negócio pontual, apenas eventualmente duradouro; O agente deve agir de modo empenhado, por conta o principal; o mediador, na pureza do instituto, mantém-se equidistante; A agência é compatível com poderes de representação, o que não sucede com a mediação; A agência tem esquemas típicos de retribuição, que não ocorrem na mediação; designadamente: o agente só é remunerado, em regra, quando o contrato definitivo seja cumprido, o que não sucede na mediação. Na prática, sucede que a mediação e a agência podem combinar-se. Sucede ainda que certos autodesignados mediadores são, na realidade, agentes. Caso a caso haverá que ponderar a realidade existente. De todo o modo, a diferenciação da mediação perante a agência faculta a distinção em face de outros contratos de distribuição: a concessão e a franquia. O mediador é, por fim, um profissional independente. Não está sob a direção do comitente. Não haverá qualquer confusão com o contrato de trabalho. Sucederá, porém e em certos casos, que o mediador se venha a colocar na subordinação económica do comitente. Nessa altura, a exata pesquisa de subordinação jurídica terá de ser encetada na base dos indícios da laboralidade e privilegiando sempre, em última instância, a vontade das partes contratantes.
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58.º - O regime e a natureza da mediação
Requisitos: qualquer pessoa pode, independentemente de haver um contrato de mediação, operar como intermediário num determinado negócio: por iniciativa própria e sem que ninguém lhe tivesse pedido. Põe-se, pois, um curioso problema de ordem prática: o da determinação da própria existência de um contrato de mediação. Assim: Para haver mediação, é mister que o mediador tenha recebido uma incumbência, expressa ou tácita; É necessário que se tenha chegado a um contrato nesse sentido, sob pena de haver meras negociações; Admitindo-se, todavia, que a mediação exista mesmo quando não se alcance o negócio definitivo em vista. Na hipótese de uma mediadora que tenha sido contratada pelo terceiro interessado, não há contrato de mediação entre ela e o vendedor. Quanto aos requisitos e principiando pelas partes: A exigência de licenciamento ou equivalência, mormente no campo imobiliário, só se aplica a profissionais: não ao mediador esporádico e ocasional; Na hipótese de surgir um profissional não autorizado: poderá haver sanções contra este, mas o contrato de mediação, em si, não é nulo. No tocante à forma: a mediação, enquanto contrato atípico, não sujeita a qualquer forma específica. Todavia, o artigo 10.º, n.º1 do Decreto-Lei n.º 285/92, 19 dezembro, relativamente à mediação imobiliária, veio exigir a forma escrita. A inobservância desta exigência não pode, no entanto, ser invocada pela entidade mediadora (artigo 10.º, n.º1 e 19.º, n.º8 Decreto-Lei n.º 211/2004, hoje em vigor); a sua invocação pelo interessado, para não pagar a comissão pode, todavia, constituir abuso do direito. Logo, também o não poderá ser nem por qualquer interessado, nem ex-officio: apenas pelo cliente do mediador (comitente). Estamos, pois, perante uma nulidade atípica. Além disso, tendo sido obtido êxito com a mediação, mesmo havendo nulidade formal do contrato, como não é possível restituir os serviços prestado, a comissão sempre seria devida. Há um claro favor negotii, por parte da nossa jurisprudência, o que é, inclusive, prosseguido também através de regras de Direito transitório. Nos casos de mediação sujeitos a maiores densidades regulativas, haverá que atentar bem nos competentes regimes. Pense-se nos casos da mediação mobiliária e na dos seguros.
Cláusulas típicas e boa fé: há poucas regras diretamente aplicáveis ao contrato de mediação. Mesmo tratando-se das modalidades especiais tipificadas na lei: o legislador ocupa-se, sobretudo, da figura do mediador, determinando, para este, deveres e encargos. O contrato é deixado em segundo plano. A jurisprudência tem reclamado, perante essa escassez regulativa, a aplicação sucessiva: Das estipulações das partes;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Das normas de aplicação analógica; Dos princípios gerais das obrigações; Da decisão judicial integradora. Pela nossa parte, recordamos que a mediação é, antes de mais, uma prestação de serviço. Na falta de outras regras, haverá sempre que fazer apelo ao previsto para o mandato, por via do artigo 1156.º CC. A mediação pode ser acompanha, a título de cláusula típica, pela exclusividade. Nessa altura, o comitente compromete-se a, com referência ao projetado negócio, não contratar mais nenhum mediador. A cláusula de exclusividade poderá ainda ser reforçada quando, além de não recorrer a outros intermediários, o comitente se obrigue, também, a não descobrir, ele próprio, um terceiro interessado. Nada disso se presume: deverá ser clausulado e, havendo dúvidas, provado por quem tenha interesse na situação considerada. Havendo exclusividade, surge a presunção (de facto) de que a atividade do mediador contribuiu para a aproximação das partes, facilitando o negócio e revertendo o ónus da prova para os mediados. Os interessados são vivamente incitados a prever no contrato tudo quanto lhes interesse. Entre as hipóteses normais avultam: A indicação de preço mínimo por que o comitente aceite contratar; A fixação da comissão, normalmente em percentagem sobre o negócio definitivo; na sua falta, recorrer-se-á ao habitualmente praticado, nas situações semelhantes à considerada; A indicação de um prazo de vigência; quando não o façam, haverá que recorrer às regras do mandato. Em toda a relação de mediação, haverá que observar o princípio da boa fé (artigo 762.º, n.º2 CC), com todos os deveres acessórios que daí decorrer. Assim e designadamente: Há que prestar todas as informações pertinentes entre as partes; as mediações sujeitas a regimes tipificados na lei comportam determinações reforçadas e mais precisas de informações; de todo o modo e em geral, as informações relevantes sempre terão de ser prestadas; As partes devem manter-se leais, prevenindo condutas que possam inviabilizar o escopo do negócio; particularmente, não pode o comitente tornar impossível o negócio definitivo; isso equivaleria a não agir de boa fé na pendência de uma condição; A mediação não pode constituir pretexto para desencadear ou potenciar situações de concorrência. Um ponto importante e delicado é, na mediação, o da proteção do terceiro solicitado. Este não é parte do solicitado. Este não é parte no contrato. Todavia, tem uma tripla proteção: O próprio contrato de mediação só se considera cumprido se o contrato definitivo for regularmente obtido: tal não sucede quando o mediador use de dolo, altura em que não há direito à comissão;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A lei obriga a esclarecer devidamente os terceiros solicitados, em várias situações legalmente previstas; quando isso não suceda, há responsabilidade, ex vi artigo 485.º CC; A boa fé contratual protege, também, o próprio terceiro; será uma manifestação do efeito protetor de terceiro. A ética dos negócios, que dá corpo à cláusula dos bons costumes, manda que o mediador respeite, sempre, o terceiro solicitado. Dele depende o mercado e, em geral: todo o progresso da vida económica.
A retribuição: a mediação, particularmente quando comercial, é onerosa. Cabe Às partes, no contrato, prever com toda a precisão: Qual a retribuição devida; Em que circunstâncias ela deve ser paga; Em que momento terá lugar a sua satisfação. A retribuição efetiva-se, muitas vezes, através de uma comissão sobre o preço de negócio definitivo: donde o dizer-se, correntemente, apenas comissão. Aquando da retribuição e do seu pagamento, há que contar com os deveres fiscais envolvidos. Na falta de estipulação das partes ou na sua insuficiência, há toda uma ponderação jurisprudencial que permite precisar as proposições seguintes: A retribuição só é devida com a conclusão do contrato definitivo: não bastam esforços nesse sentido; A atividade do mediador deve ser causa adequada ao fecho do contrato definitivo; ou então, este deve alcançar-se como efeito de intervenção do mediador; A remuneração é devida mesmo que o contrato definitivo não venha a ser cumprido; Idem, na hipótese de só não se ter concluído o negócio definitivo por causa imputável ao comitente; A subsequente declaração de nulidade do contrato, por causa não imputável à mediadora, não afeta o direito desta à retribuição; Havendo um concurso de causas que conduzam à celebração do negócio pretendido, a comissão será devida desde que a atuação do mediador também tenha concluído para o êxito final; O negócio definitivo poderá, na mediação imobiliária, ser um simples contratopromessa ou, antes, a escritura final: depende da interpretação do contrato de mediação Complementarmente, cabe ainda explicitar outros aspetos, também ligados á retribuição e ao seu pagamento. Assim: O contrato de mediação pode reportar-se a um negócio definitivo que recaia sobre coisa futura;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 O próprio solicitante não cumpre o contrato de mediação se bloquear o contrato definitivo; Cabe ao mediador fazer a prova de que a conclusão do negócio definitivo resultou da sua intervenção; Não cumpre o contrato fazer a prova de que a conclusão do negócio definitivo resultou da sua intervenção; Não cumpre o contrato de mediador que, embora tende desenvolvido uma atuação útil inicial, venha, depois, empatar a celebração do contrato definitivo; A alteração subjetiva de uma das partes no negócio não exclui, só por si, a comissão. O pagamento da comissão ao mediador dependerá de haver uma relação contratual entre este e o contratante final – ou algum deles. Na sua falta, poderemos fazer apelo à gestão de negócios. Qualquer pagamento terá, então, uma diversa natureza, devendo efetivar-se nos quadros desse instituto.
A cessação: o contrato de mediação cessa pelas razões que, nele, as partes tenham querido inserir. Quando nada digam, teremos de recorrer às regras gerais. Assim: Quando pactuado para um concreto negócio, ele cessa caso esse negócio se obtenha ou, ainda, na hipótese de ele se tornar definitivamente impossível; Independentemente disso, o contrato termina pelo incumprimento definitivo de qualquer das partes. Mais complexa será a hipótese de se acordar numa mediação duradoura: destinada, por exemplo, a concluir todos os negócios que uma determinada entidade venha a fazer. Propomos o seguinte: Por via do artigo 1156.º CC, haverá que recorrer às regras do mandato: o solicitante poderá revogar o contrato mas uma vez que ele também foi celebrado no interesse do mediador terá de haver justa causa para a revogação (artigo 1170.º,n.º2); Por aplicação analógica do artigo 28.º Decreto-Lei n.º 178/86, 3 julho, relativo à agência e, ainda, em concretização da boa fé: por denúncia, com a antecedência aí indicada. A revogação indevida equivale ao incumprimento, com todas as consequências daí advenientes. A mediação é, em regra, intuitu personae. Cessa com a morte ou extinção de qualquer das suas partes.
Características e natureza: o périplo anterior permite apresentar as características do contrato de mediação. Trata-se, fundamentalmente, de uma prestação de serviços materiais, onerosa, aleatória e intuitu personae. Outras características dependem do tipo de mediação concretamente em causa. No tocante à sua natureza: há um debate clássico, com incidência em Itália, que contrapõe as teorias negociais, não negociais e mistas. Boa parte do problema põese pelo facto de as leis – particularmente o Código Civil Italiano – tratarem a figura da mediação e não, como se impunha, o contrato do mesmo nome. Além disso, novas dúvidas ocorrem pelo facto de não se poder imputar, ao mediador, uma obrigação de resultado: a obtenção de um
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 contrato entre terceiros. Perante o Direito português e em face das muitas dezenas de decisões judiciais que cobrem o assunto – e que vão ao encontro de dados jurídico-científicos imediatos – não temos quaisquer dúvidas em concluir pela sua natureza contratual e com o perfil pré anunciado. Fora de um contrato de mediação, qualquer intermediário que alcance um negócio entre terceiros apenas poderá, tudo visto, beneficiar do estatuto de gestor de negócios.
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Secção IV – Os contratos de organização
Generalidades; origem e evolução; sistemas societários: no contratos de organização, encontramos um esquema de colaboração comercial entre duas ou mais partes, com características de duração e estabilidade. No tocante à inserção nas categorias gerais dos atos jurídicos, poderíamos considera-los como fontes de obrigações mútuas de facere. Acessoriamente, podem ocorrer prestações de dare. Ao contrário do que sucede nas sociedades comerciais, os contratos comerciais de (mera) organização não chegam a dar azo a uma entidade autónoma, diversa das próprias partes que lhes estejam na origem. Os contratos de organização que têm um relevo especial no domínio do comércio internacional: através deles, empresas de diversos Estados podem pôr-se de acordo para a prossecução de objetivos comuns, de interesse mútuo. De todo o modo, muitas das origens dos atuais contratos de organização podem ser procurados na societas romana. A evolução subsequente vem adaptando um quadro básico a exigências crescentes de diferenciação e de cooperação. Na associação em participação, temos uma organização muito elementar que liga uma pessoa a um comerciante: confere-lhe determinados apoios para o desenvolvimento do seu comércio e, em troca disso, recebe parte dos lucros que ele venha a obter. Toda a atuação é desenvolvida em nome e por conta do comerciante. Esta figura tem raízes antigas. Em Roma, certos estratos sociais estavam proibidos de efetuar comércio. Recorriam, então, a um comerciante, ao qual confiavam capitais, participando, depois, nos lucros. A ideia da sociedade ou do comerciante oculto jogou também na Idade Média, impulsionando a figura da associação em conta de participação. A associação em participação impôs-se, na prática, antes de a Ciência do Direito ter logrado um aprofundamento capaz dos institutos em presença. Na Ordenança Colbertiana de 1673, a associação em participação veio a ser tratada como sociedade: seria mesmo uma sociedade anónima. Assim chegamos ao Código de Comércio de Napoleão. Este acolheu o que denomina «associações comerciais em participação», incluindo-as na secção geral relativa às sociedades. Seriam, na lógica desse Código, um quarto tipo social, a somar às sociedades em nome coletivo, em comandita ou anónima. Estes tipos de associações poder-se-iam provar por qualquer meio e não estariam sujeitas às regras próprias das sociedades. A conceção francesa tradicional da associação em participação era uma sociedade oculta; carecia de personalidade jurídica, permitindo associar pessoas não aparentes ao comércio. A matéria foi revista em 1966, relativa às sociedades comerciais e que adotou a designação “sociedades em participação”. Em 1978, revogando alguns artigos da reforma de 1966, transferiu a matéria para o Código Civil. E aí se manteve, perante a reformulação do Código de Comércio de 2000. Esta última reforma abandonou o entendimento tradicional. A sociedade em participação passou a ser, simplesmente, aquela cujos sócios acordaram não a matricular. Seria uma verdadeira sociedade, sem personalidade jurídica. O seu funcionamento é muito simples: a sociedade pode ser civil ou comercial, conforme o objeto; cada associado é titular dos bens que afete; cada associado contrata com terceiros, em nome pessoal; a repartição dos lucros obedece ao acordado. Tratase de uma curiosa evolução. Apesar da colocação civilística, a tradição parece ser mais forte: a sociedade em participação continua a surgir na manualística comercial. Representa, hoje, um espaço de livre iniciativa jurídico-privada. Embora continue a permitir sócios ocultos, não é esse um elemento essencial: apenas disponível. Uma orientação paralela seria acolhida no ADHGB, dai passando ao HGB. Aí se denomina sociedade oculta. Ela surge como uma sociedade de
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 pessoas, com determinado escopo. De acordo com a técnica alemã, uma sociedade deste tipo não tem personalidade jurídica: titular das posições jurídicas em jogo é, pois, o empresário aparente. A sociedade oculta pode acompanhar toda uma paleta de funções. A doutrina distingue: Uma relação qualificada de crédito: o associado não aparente confia, ao empresário, um determinado valor; Uma posição quase-comercial do associado não-aparente, quando este tenha um envolvimento indireto na atuação empresarial; Uma organização já mais elaborada. O contrato de associação é puramente obrigacional, prevendo-se regras para diversos aspetos do seu funcionamento. A sociedade oculta é considerada uma sociedade, sendo versada nos tratados de Direito das Sociedades Comerciais.
Segue; sistemas comutativos: aos sistemas que denominámos “societários”, hoje representados curiosamente pela société en participation francesa e pela Stille Geselschaft alemã, opõem-se outros a que chamaremos comutativos. Nestes, a associação em participação é tomada como um simples contrato entre duas pessoas, pelo qual uma, mediante determinada prestação, recebe participação em certos lucros. Temos um nível de álea, ainda que delimitado. A passagem às conceções comutativas deve-se à doutrina italiana. No domínio do Código de Comércio de 1882, o esquema era próximo do napoleónico: uma organização elementar com um sócio oculto. E assim vária doutrina reportava a associação em participação a uma fórmula societária. Diversa outra optava, contudo, por um contrato comutativo, numa opção que ganhou tereno através do estudo global dos contratos parciários: contratos semi-aleatórios em que os participantes quinhoavam no resultado de determinada atividade. Esta orientação foi claramente assumida pelo Código Civil de 1942: a associação em participação vem definida nos termos seguintes: «Com o contrato de associação em participação o associado atribui ao associado uma participação nos lucros da sua empresa ou de um ou mais negócios contra o correspetivo de determinada contribuição». O Codice contém, depois, mais cinco preceitos simples, relativos à pluralidade de associações, aos direitos e deveres do terceiro, aos direitos do associante e do associado, à repartição dos lucros e das perdas e à participação nos lucros e perdas reportada a outros contratos. Trata-se de um esquema que relaciona apenas duas partes: falta um fundo comum, uma atividade comum e uma prossecução comum de escopos económicos. O contrato surge como aleatório, ainda que com uma álea limitada. Como veremos, este sistema teve algum influência na reforma de 1981. Todavia, o legislador nacional acabou por optar por um esquema com elementos híbridos: o do contrato associativo.
Os Códigos Comerciais portugueses; a conta em participação: o Código Ferreira Borges consagrou a figura ora em estudo, denominando-a associação em conta de participação. Dedicou-lhe 6 artigos e é patente a influência do Código de Comércio francês. Com os antecedentes apontados, o Código Comercial veio acolher o contrato de conta em participação. Fê-lo num Título III, situado logo após a matéria das sociedades: uma sistematização evidente.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 No entanto, é patente a distanciação perante a ideia societária. O contrato deixa de apelar a “sociedade”, evitando mesmo a expressão “associação”. De resto, «associação em participação» é um pleonasmo, Veiga Beirão optou pela designação «conta em participação». A conta em participação não chegou, todavia, a antecipar o Código Italiano de 1942. O artigo 224.º do Código Veiga Beirão, hoje revogado, dispunha: «Dá-se conta em participação quando o comerciante interessa uma ou mais pessoas ou sociedades nos seus ganhos e perdas, trabalhando uns, alguns ou todos em seu nome individual somente». A conta em participação não tinha personalidade jurídica – artigo 226.º - sendo responsável pelos seus atos apenas aquele que os praticar – 229.º. Era, pois, um regime claro e simples, que apelava fundamentalmente ao que as partes tivessem acordado.
A associação em participação: na sequência de estudos excelentes de Raúl Ventura, o legislador decidiu introduzir um regime específico dedicado ao consórcio. Aproveitou o ensejo para rever a conta em participação, redenominando a figura: associação em participação. A matéria foi inserida nos artigos 21.º a 32.º do Decreto-Lei n.º 231/81, 28 julho. O artigo 32.º deste preceito revogou – ou terá revogado – os artigos 224.º a 229.º CCom. O Direito Comercial português detém, neste momento, a mais extensa regulação existente sobre a associação em participação. A necessidade da reforma teria sido suscitada por «frequentes litígios», «causados pela escassez de regulamentação no Código», segundo o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 231/81. De acordo com o levantamento de Raúl Ventura teríamos oito grupos de problemas judicialmente detetados: 1. Problemas de qualificação de negócios; 2. Limite de participação nas perdas; 3. Legitimidade para exigir o cumprimento de obrigações de terceiros; 4. Capacidade; 5. Arrolamento como ato preparatório de dissolução; 6. Factos dissolutivos; 7. Processo de liquidação ou de prestação de contas; 8. Qualificação como sociedades. Estes pontos terão sido enquadrados pela lei nova. Na base de cuidadosos preparatórios de Raúl Ventura, o novo regime da associação em participação obteve, no Decreto-Lei n.º 231/81, um tratamento técnico excelente. Pena foi que não se tenha inserido o novo regime no Código Comercial, à semelhança da experiência alemã. A questão da natureza da associação em participação foi muito discutida, na doutrina portuguesa do Código Veiga Beirão. Analisando o problema, Raúl Ventura concluiu que, para haver sociedade, seria necessário o exercício em comum de certa atividade económica que não fosse de mera fruição. Isso não se verificaria na figura em estudo. Raúl Ventura excluiu, por isso, a natureza societária. Mas não a conduziu, pura e simplesmente, à solução comutativa, uma vez que descobre um fim comum, o que lhe
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 conferiria elementos de tipo associativo. Opta, pois, por este último entendimento, que viria a ser acolhido pelo Supremo.
O regime: o artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 231/81, 28 julho, não define propriamente a associação em participação. Dá, todavia, uma ideia bastante precisa desta figura, quando prescreve: «1. A associação de uma pessoa a um atividade económica exercida por outra, ficando a primeira a participar nos lucros ou nos lucros e perdas que desse exercício resultarem para a segunda, regular-se-á pelo disposto nos artigos seguintes». O comerciante diz-se associante e associado a pessoa que a ele se liga. A participação nos lucros é essencial; a participação nas perdas pode ser dispensada – n.º2 – entende-se que pelas partes. A solução supletiva será, pois, a da comunhão nos lucros e nas perdas. A participação do associado nas perdas e a sua responsabilidade ilimitada devem ser provadas por escrito, devendo ainda resultar de convenção expressa ou das circunstâncias do contrato qualquer participação diversa da supletiva – artigo 25.º, n.º2. Pode haver vários associados: não se presume, então, a sua solidariedade, ativa e passiva, para com o comerciante – artigo 22.º, n.º1. O contrato é consensual – artigo 23.º, n.º1, salvo se alguma forma especial for exigida dos bens com que o associado contribua, prevendo o n.º3 desse preceito uma reforçada hipótese de conversão. O associado obriga-se, fundamentalmente, a uma contribuição de natureza patrimonial – artigo 24.º, n.º1 esta pode ser dispensada no contrato, se ele participar nas perdas. A mora suspense o exercício da sua posição jurídica, mas não prejudica a exigibilidade das suas obrigações – n.º5. Valem os resultados do exercício, apurados segundo os critérios da lei ou os usos do comércio – n.º6 – e havendo, quanto a lucros, que deduzir as perdas em exercícios anteriores, até ao limite da responsabilidade do associado – n.º7. A referência aos usos, aqui feita, permite fazer intervir as regras próprias do setor onde o problema se ponha: marítimo, industrial ou livreiro, por hipótese. O associante tem, no fundamental, os deveres seguintes: Proceder com a diligência de um gestor criterioso e ordenado – artigo 26.º, n.º1, alínea a); Conservar as bases essenciais da associação, designadamente não fazendo sua a empresa – idem, alínea b); Não concorrer com a empresa – idem, alínea c); Prestar todas as informações aos associado – idem, alínea d); Colher, quando o contrato o preveja, o prévio acordo do associado, para certos atos ou ouvi-lo – artigo 26.º, n.º2; Prestar contas – artigo 31.º. No domínio da associação em participação, apenas o associante atua, em termos comerciais; o associado não tem qualquer atividade, par além da contribuição. Assim, ela poderia ter lugar quanto a uma farmácia, mesmo não sendo o associado farmacêutico. A associação extingue-se nos casos referidos no artigo 27.º. A morte do associante ou do associado não faz cessar, só por si, a associação: pode conduzir a isso, caso seja vontade dos sucessores ou do contraente sobrevivo – artigo 28.º: uma regra aplicável à extinção do associado ou do associante – artigo
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 19.º. Quando o contrato tenha sido celebrado por tempo determinado ou para certa operação, pode haver resolução antecipada, baseada em justa causa – artigo 30.º, n.º1. A “justa causa” a considerar é a civil (por oposição à laboral ou, mesmo, à societária), patente, por exemplo, no mandato – artigo 1170.º, n.º2 CC. Assim, ela pode concretizar-se mercê de factos objetivos, ligados à atuação da parte considerada. Nesta último caso, o artigo 30.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 231/81 refere um «facto doloso ou culposo de uma parte», altura em que cabe um dever de indemnizar. Tratando-se de contratos de duração indeterminada, ele pode cessar a todo o tempo após o decurso de 10 anos – artigo 30.º, n.º3. Ressalva-se, mesmo, então, a hipótese de responsabilidade por abuso do direito – idem, n.º 4.
A natureza: apesar dos esforços levados a cabe pelo legislador de 1981 os tribunais continuam a ser solicitados no campo da precisa definição do contrato de associação em participação. Particularmente em causa está a sua distinção do contrato de sociedade. Perante o Código Civil de 1966 e nos termos da demonstração irrespondível do saudoso Professor Raúl Ventura, não parece haver margem para dúvidas: a sociedade, segundo o artigo 980.º CC, postula um «exercício comum de certa atividade económica». Ora, tal exercício falta na associação em participação. Mas também não podemos optar pela solução comutativa do Código Civil italiano: não há, aqui, apenas uma troca (aleatória) de um contributo pela participação nos lucros. A lei postula uma pequena organização entre as partes. Impõe-se, pois, também aqui, a conclusão de Raúl Ventura, sufragada pelo Supremo: um contrato com elementos associativos ou, em terminologia mais recente, um contrato de organização. Podemos ir mais longe. A prevalência de uma dogmática integrada e de um pensamento sistemático permitem verificar que a associação em participação não joga com o Direito das Sociedades Comerciais. Trata-se de lógicas distintas: as sociedades, embora se prendam a uma ideia de organização voluntária, postulam esquemas de adjunção muito mais vincados e, sobretudo: diferentes. Ainda por razões dogmáticas e sistemáticas, a associação em participação, herdeira direta da conta em participação, deverá ser tida como um ato comercial objetivo. Quer isto dizer quer, na sua integração, haverá que passar pelos princípios comercias, antes de apelar ao Direito Civil.
60.º - O consórcio
Noções básicas: a figura do consórcio tem ascendência romana. Em Gaio, por exemplo, apareciam referências ao Consortium como traduzindo formas de organização entre várias pessoas, com objetivos comuns. A revolução industrial, com a tendência conhecida para a concentração ou simples junção de empresas, ditadas por necessidade económicas, provocou um incremento no domínio dos consórcios. Hoje, pode considerar-se que, para além de dimensões jurídicas, o consórcio apresenta uma faceta social e económica que explica o seu aparecimento nas mais diversas sociedades e no próprio plano internacional. Apesar de quanto ficou dito, seria tentativa vã o procurar retirar, de puras considerações económicas ou sociológicas, o regime do consórcio ou, mesmo, a sua própria autonomização. As evidentes necessidades económicas que dão, ao consórcio, uma particular oportunidade, são comuns às diversas manifestações de associativismo com finalidades comerciais e industriais. Decisivo para o regime do consórcio acaba por ser a lei concretamente aplicável.
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O Direito português; influências decisivas: o Direito português, através do Decreto-Lei n.º 231/81, 28 julho, define o consórcio como: «o contrato pelo qual duas ou mais pessoas singulares ou coletivas que exerçam uma atividade económica se obrigam entre si a, de forma concertada, realizar certa atividade ou efetuar certa contribuição com o fim de prosseguir qualquer dos objetos referidos no artigo seguinte» Por seu turno, o artigo seguinte em causa – 2.º - dispõe os objetos possíveis do consórcio: Realização de atos materiais ou jurídicos, preparatórios quer de um determinado empreendimento, quer de uma atividade contínua; Execução de determinados empreendimento; Fornecimento a terceiros de bens, iguais ou complementares entre si, produzidos por cada um dos membros do consórcio; Pesquisa ou exploração de recursos naturais; Produção de bens que possam ser repartidos, em espécie, entre os membros do consórcio. Esta noção apresenta-se bastante elaborada e equivale, no essencial, a uma receção de correspondente fórmula italiana. O Direito italiano anterior a 1942 conhecia a figura do consórcio, referenciando-se nela, várias modalidades já bem tipificadas, com regras e perfis próprios. O vigoroso movimento científico que conduziu à codificação civil de 1942 – a qual, como é sabido, abrange o Direito Comercial e o Direito do Trabalho – permitiu precisar melhor a noção de consórcio. Deste modo, apresenta o consórcio como: «uma associação de pessoas singulares ou coletivas, livremente criada ou obrigatoriamente imposta, para satisfação em comum de necessidades de estas pessoas». Havia duas orientações clássicas de consórcio que deixaram marcas impressivas no instituto, até aos nossos dias. Uma, presente em Giuseppe Auleta, que via no consórcio um modo de regular a concorrência e outra, apoiada por Francescheli, que propugnava por um esquema destinado a melhor prosseguir certa produção. O Codice não tomou posição definitiva: a definição legal era suficientemente ampla para abarcar, como objetivo, quer uma obra ou prestação comum, quer a regulamentação de relações entre os consorciados. Amparada agora numa sólida referência legal, a ideia de consórcio desenvolveu-se, vendo multiplicadas as suas aplicações específicas. Um melhor esclarecimento efetivo da figura está na origem duma reforma surgida em 1976. Através da Lei n.º 377, 10 maio desse ano, o artigo 2602.º Código Civil Italiano recebeu uma nova redação: «Com o contrato de consórcio vários empresários instituem uma organização comum para a disciplina ou para o desenvolvimento de determinadas fases da respetiva empresa». Houve um alargamento da figura, apontado por todos os comentadores do instituto e que frutifica, aliás, em numerosas aplicações mais ou menos aparentadas. Mas houve também e sobretudo um centrar do instituto num significativo elemento: o da organização.
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Regime vigente: o consórcio, tomado como tipo contratual, pode ser comodamente ponderado com recurso à explanação dos seus elementos. A definição legal requer, em primeiro lugar, duas ou mais pessoas singulares ou coletivas. A pluralidade de sujeitos liga-se à natureza contratual da figura. Para além disso, a lei não impõe limites máximos. Este ponto, embora simples, tem relevância por permitir concluir que o consórcio desaparece quando se perca tal pluralidade, desde que, nos termos gerais, possa operar a confusão – artigo 868.º CC – e sem prejuízo de terceiros – artigo 871.º, n.º1 CC. As pessoas em causa deverão exercer uma atividade económica. Desta feita, a lei visou acentuar a natureza basicamente lucrativa e, daí, comercial da figura. Parece, contudo, que não se colocam dúvidas no tocante à possibilidade de, através da autonomia privada, se poder utilizar o consórcio num sentido puramente civil: mas ele terá sempre um teor oneroso, por oposição a gratuito. As pessoas interessadas no contrato vão obrigar-se, pelo consórcio, a agir de forma concertada: postula-se uma organização comum. Trata-se de um ponto decisivo porquanto possibilita a qualificação do consórcio como um contrato de organização – por oposição a contrato de aquisição, de serviços, etc.. As partes apresenta-se, nele, com interesses comuns e não contrapostos. Este aspeto é determinante em todo o regime do contrato. A concertação referida reporta-se ao desenvolvimento de certa atividade ou à efetivação de certa contribuição. Ficam contornados os consórcios puramente passivos, em que uma das partes se adstringia, simplesmente, a não concorrer com a primeira. Esses elementos – a atividade e/ou contribuição – são devidos por cada um dos consorciados, sempre com subordinação à ideia de concatenação. Deve ainda frisar-se que o contrato visa um dos objetivos do artigo 2.º Decreto-Lei n.º 231/81, 28 julho. O objetivo – qualquer que ele seja – é comum ou tem um nível comum de integração. Assim se reforça, num plano teleológico repercutido em todo o regime, quanto acima foi dito sobre a organização comum. Por determinação legal, os contratos de consórcio devem ser celebrados por escrito, requerendo-se a escritura quando estejam envolvidos imóveis – artigo 3.º. As partes têm larga liberdade de estipulação – artigo 4.º. Esse preceito apenas ressalva as normas imperativas que ele próprio contenha: um afloramento de um princípio geral. As alterações ao contrato, a adotar pela forma utilizada para a sua celebração inicial, devem der aprovadas por todos os contraentes, salvo quando o próprio contrato preveja outra fórmula. Numa contraposição mais ou menos valorizada na doutrina estrangeira, a lei portuguesa distingue, com clareza, o consórcio interno do externo – artigo 5.º Decreto-Lei n.º 231/81: No consórcio interno as atividades ou os bens são fornecidos a um dos membros do consórcio e só este estabelece relações com terceiros ou, então, tais atividades ou bens são fornecidos diretamente a terceiros por cada um dos membros do consórcio, sem expressa invocação dessa qualidade; No consórcio externo, as atividades ou os bens são fornecidos a terceiros, por cada um dos consorciados, com invocação expressa dessa qualidade. Contra o que poderia resultar de uma leitura mais apressada dos textos legais, o consórcio externo não se distingue do interno por, ao contrário deste, produzir efeitos perante terceiros. A fronteira reside no facto de, no consórcio externo, se assistir a um reforço do elemento organizativo. A lei portuguesa, dado o peso da organização no domínio do consórcio, regulou longamente essa matéria: artigos 7.º, 12.º, 13.º, 14.º e 20.º. Os deveres dos consorciados, nas dimensões da proibição da concorrência e da prestação de informações, são explicitados – artigo 8.º - surgindo ainda regras no tocante à repartição dos valores recebidos pela atividade nos
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 consórcios internos e À participação em lucros e perdas – artigo 18.º. A denominação vem predisposta no artigo 15.º e as relações com terceiros no 19.º. Todos estes preceitos tê em comum o serem supletivos, numa ocorrência que deverá ser confirmada caso a caso, perante a própria lei e em face dos princípios gerais. A denominação do consórcio externo tem regras. Segundo o artigo 15.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 231/81, os seus membros podem juntar os seus nomes, firmas ou denominações sociais com o aditamento «consórcios de …» ou «… em consórcio», sem prejuízo de apenas ser responsável perante terceiros quem assine os contratos. Prevalecerá, pois, a interpretação teleológica e integrada do artigo 15.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 231/81. Deve ficar bem claro que, quanto às posições dos contratantes, toda esta regulamentação é apenas um modelo que a lei põe à disposição das partes. Estas, nos termos do artigo 405.º CC, dispõem de plena liberdade contratual: podem, designadamente, celebrar soluções legais supletivas. O preâmbulo do Decreto-Lei n.º 231/81 teve o cuidado de sublinhar a natureza supletiva da generalidade das regras sobre o consórcio, de modo a não restringir a imaginação das partes. O artigo 4.º, n.º1, por seu turno, proclamou expressamente a liberdade das partes, no tocante à fixação dos termos e condições do contrato.
Problema da repartição dos ganhos e perdas: num consórcio, as partes concertam-se para desenvolver determinada atividade económica. Pergunta-se se elas poderão ajustar uma repartição abstrata do ganhos e das perdas. O consórcio não tem personalidade jurídica. Assim sendo, a contratação com terceiros é feita em nome de algum ou alguns dos consorciados. Pode algum consorciado, que não tenha contratado diretamente com terceiros, ser chamado a receber lucros ou a suportar prejuízos? Estamos no domínio patrimonial privado. Todos os direitos em jogo no consórcio são plenamente disponíveis. Não há nenhuma regra, no Direito português, que proíba estabelecer regimes de solidariedade passiva ou ativa, isto é: regimes nos quais uma mesma dívida passe a ser exigível, por inteiro, a um único de vários credores. A lei não prescreve, todavia, nenhuma solidariedade; nem ativa, nem passiva. Apenas não proíbe que as partes, ao abrigo da sua autonomia privada, o façam. Assim sendo, é perfeitamente possível estabelecer regras de responsabilidade limitada, aquém da solidariedade pura. No que toca às relações internas entre as partes: é totalmente viável que duas pessoas ajustem entre si uma certa repartição de esforços ou de lucros, num negócio para o qual ambas tenham contribuído. Deve ficar muito claro que tal repartição de lucros e de perdas nada tem a ver com o estabelecimento de uma pessoa coletiva. Trata-se dum fenómeno corrente, que a todo o momento se verifica em situações de compropriedade. Não é a comunhão em lucros e em prejuízos que dá azo à personalidade coletiva, como o mostra o regime das sociedades civis sob forma civil: estas, de acordo com a doutrina dominante, não têm sempre personalidade jurídica plena. Para haver pessoa coletiva, e determinante o reconhecimento jurídico, o qual surge não pela comunhão em lucros e prejuízos mas, antes, por uma determinada organização formal. No caso do consórcio, todas estas noções recebem plena confirmação. Pelo contrato de consórcio, as partes obrigam-se a efetuar determinada contribuição para certos objetivos – artigo 1.º Decreto-Lei n.º 231/81, 28 julho. Logo podem sofrer prejuízos. Se a contribuição for percentualmente definida, os prejuízos do consorciado serão uma percentagem os prejuízos totais. As contribuições podem ser em dinheiro, nos termos do artigo 4.º, n.º2 Decreto-Lei n.º 231/81. Por outro lado, os valores a receber de terceiros – e que darão eventualmente lugar a lucros – podem, nos termos do contrato de consórcio, ser repartidos entre as partes, de acordo com uma distribuição diferente da que resultaria das relações diretas com terceiros em causa – artigo 10.º, n.º2 do mesmo diploma. Esta hipótese não se esgota, de modo algum, na
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 possibilidade de se fixar um remuneração pra o chefe de consórcio. Os valores em causa podem, materialmente, ser recebidos por um único dos consorciados que, depois, dará a repartição pelo s outros, bastando, para tanto, que o contrato lhe confira os necessários poderes, como resulta do artigo 16.º, n.º1. tudo isto é reforçado pelo princípio básico do artigo 4.º, n.º1, segundo o qual: «Os termos e condições do contrato serão livremente estabelecidas pelas partes, sem prejuízo das normas imperativas constantes deste diploma». A ideia central do legislador consta, aliás, do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 231/81. A vontade das partes deve ser respeitada. A proibição de fundos comuns, estabelecida no artigo 20.º deste Decreto-Lei nada tem a ver com a repartição dos lucros e perdas. Ela apenas visa facilitar a definição das relações entre as partes, remetendo-as par ao artigo 1167.º, alínea a) CC, relativo ao mandato. Por muito ténue que seja a organização pressuposta pelo consórcio, ela ainda será alguma. Havendo organização, é totalmente razoável esperar que as partes incorram numa quota de esforço e percebam uma quota de vantagens. Seria impensável que a lei o viesse proibir.
O termo do consórcio: o consórcio dará lugar a uma situação jurídica duradoura. Como tal, torna-se necessário fixar esquemas de cessação, sem o que ela tenderia a eternizar-se no tempo. Vigora pois a regra de que, salvo quando a lei disponha de outro modo, os contratos não se destinam a ser perpétuos. No entanto, tem-se assistido a uma certa evolução no sentido do reforço da estabilidade dos consórcios: jogaram as necessidades económicas e sociais que ditaram o aparecimento da figura, bem como a conveniência em alargar a autonomia das partes. A lei portuguesa sobre consórcios distinguiu, o tocante à sua cessação, três modalidades, tratadas nos artigos 9.º, 10.º e 11.º, tendo o maior interesse, uma vez que são específicas deste tipo contratual: elas não correspondem inteiramente à teoria geral dos contratos: : A exoneração dos seus membros: corresponde a uma posição potestativa que o consorciado tenha de pôr cobro aos seus compromissos, excluindo-se do consórcio. Compreende-se que ela requeira uma particular justificação, seja ela: o
Uma impossibilidade superveniente de realizar as suas obrigações, a qual terá de ser liberatória, nos termos gerais – portanto absoluta, objetiva e definitiva
o
Um comportamento de um consorciado que traduza um incumprimento perante o outro bem como uma impossibilidade em relação, também, a outro membro, sem que seja possível utilizar o esquema da resolução ;
Tal o sentido do artigo 9.º, nas duas alíneas do seu n.º1.
A resolução do contrato: equivale a uma posição potestativa que o consorciado tenha de excluir os outros do consórcio. Compreende-se que, pela sua gravidade, se requeira justa causa – artigo 10.º, n.º1 – a qual pode, de acordo com o elenco desse mesmo preceito, ser subjetiva ou objetiva. Esse artigo exige «declarações escritas
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 emanadas de todos os outros» [membros]: a jurisprudência admite, quando haja apenas dois elementos, que a resolução seja oral. Parece bem: removidos problemas probatórios, mantém-se, sempre que possível pela letra da lei, a regra da consensualidade; A extinção do consórcio: alinhando-se no artigo 11.º, englobam: o
A revogação: (alínea a) do n.º1): «o acordo unânime dos seus membros»;
o
A caducidade: (1.ª parte da alínea b), alínea c) e d) do n.º1);
o
Impossibilidade: (2.ª parte da alínea b) do n.º1).
Há um prazo supletivo de dez anos, prorrogável – artigo 11.º, n.º2, e admitem-se ainda outras cláusulas de extinção.
61.º - O contrato de lojista em centro comercial
Generalidades: os contratos de organização podem implicar situações complexas, que envolvem teias de serviços e o desfrute de bens diversos, materiais e imateriais. Um bom exemplo é constituído pelo contrato de lojista em centro comercial. Trata-se de um tipo social, inicialmente apresentado como exótico, mas que hoje tem uma aplicação corrente alargada. Com antecedentes nos anos 70 do século XX, verificou-se, a partir da década de oitenta desse século, a exploração dos centros comerciais. Trata-se de uma particular técnica de comercializar todo o tipo de bens e de serviços, através da alocação de um espaço considerável, servido por garagens e parques de estacionamento, gerido sob uma marca de prestígio e com uma grande publicidade. Esse espaço (o centro comercial) alberga, depois, dezenas ou centenas de lojas que são entregues a lojistas para exploração individual. Os lojistas cultivam ramos diversos de negócio, devidamente planificados. As lojas são ordenadas de modo a cativar, ao máximo, os consumidores. O funcionamento correto de um centro comercial exige uma perfeita planificação do conjunto, com bons conhecimentos de marketing. A direção (o promotor) organiza serviços de publicidade, de animação, de limpeza, de segurança e de apoio de todo o tipo. Os lojistas devem manter elevados estalões de qualidade, respeitando o tempo de abertura: não pode haver lojas fechadas, o que afasta a clientela do centro.
Esquema geral; a inaptidão do arrendamento: em termos contratuais, o lojista recebe o gozo da loja e das partes comuns e beneficia de todo o universo disponibilizado pelo promotor: isolada, a sua loja teria muito pouca (ou nenhuma) clientela, salvo as «lojas-âncoras»65. Em troca, paga, em regra, duas parcelas mensais: uma quantia pressupõe grande mobilidade e dinamismo; o lojista que não cumpra ou não tenha sorte sai, para dar lugar a empresários mais aptos. Além disso, a entidade promotora quer, sempre, ter o controlo total sobre quem é lojista no seu centro: a intrusão de lojistas marginais, não recomendáveis ou ligados ao crimes organizado,
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Em regra, supermercados ou pontos de venda de alimentos, que provocam o afluxo dos consumidores; nas suas imediações são colocadas lojas, por exemplo, de perfumes ou roupa interior, que obtêm, assim, um plus de clientes.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 pode deitar tudo a perder. Quando surgiram, os centros comerciais colocaram um problema jurídico muito delicado. Havendo uma cedência onerosa do gozo de uma loja, cairíamos no arrendamento comercial. Este tem um regime vinculístico muito violento para o senhorio, que seria o promotor: a cessação do contrato é difícil e exige uma ação de despejo que pode demorar anos; além disso, o arrendatário pode trespassar o seu estabelecimento ou ceder a sua exploração sem o consentimento do senhorio, dando lugar a lojistas não aprovados pelo promotor do centro. Todavia, era evidente que o centro comercial, dotado de uma lógica de escala e gerido como uma empresa global, não podia ficar dependente do vinculismo, aqui fora de qualquer justificação económica. Os primeiros contratos de lojistas foram de inspiração brasileira e procuravam realçar os aspetos não locatícios da situação. Por cautela, os promotores dotaram-se de “veículos”: sociedades instrumentais arrendatárias que “subarrendavam” aos lojistas: sendo necessário, estas sociedades dissolver-se-iam, fazendo caducar os contratos dos lojistas. Mas havia que assumir a realidade: o contrato de lojista em centro comercial é um tipo social que recolhe, dos tipos legai, diversos elementos.
Um tipo autónomo: o tema do contrato de lojista em centros comerciais obteve o interesse dos jurisprudentes. Foram elaborados e publicados pareceres e anotações de ilustres figuras da nossa doutrina. Foram, ainda, elaborados pareceres que, de certo modo, se projetaram na jurisprudência subsequente: de Oliveira Ascensão e nossos. No início dos centros comerciais, na década de 80 do século XX, a doutrina e a jurisprudência dividiram-se quanto à qualificação das cedências do espaço para os lojistas. Todavia, após o Acórdão do Supremo de 12 de julho de 1994 e o apoio da generalidade dos autores, passaram a ser qualificados como contratos atípicos e não como arrendamentos, assim se conseguindo afastar o regime vinculístico. Nos termos em que: São contratos inominados e não de arrendamento; por isso, cabe processo comum para a restituição da loja e não ação de despejo; A cedência de local a um lojista é um contrato atípico, com o regime jurídico que resultar da cláusulas convencionadas; Trata-se de um contrato atípico de âmbito muito mais vasto do que o do arrendamento comercial; Representa uma unidade nova e distinta, que não se compadece com o regime locatício; É um contrato atípico inominado, insuscetível de se espartilhar nos estreitos limites do contrato de locação; Um contrato atípico, não integrável na figura da cessão da exploração ou do arrendamento comercial; não exige forma especial; Já será mero arrendamento comercial se faltar o regime comum de constituição e de funcionamento; Um contrato atípico e inominado que não está sujeito escritura pública; É atípico e inominado, não sendo penhorável;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Num contrato misto de arrendamento e prestação de serviço, em que não se possa estabelecer uma relação de prevalência, não se pode fazer funcionar a teoria da absorção; aplica-se, então, a teoria da combinação, sobressaindo a componente de serviços, com adaptações; todavia, a relação quer o arrendamento, quer a prestação de serviço, sendo o contrato atípico; Atípico e inominado; rege-se pelas disposições gerais dos contratos e pelas disposições especiais, não excecionais, dos contratos com que aparente mais forte analogia; É atípico ou inominado o contrato de instalação de lojistas em centros comerciais e não pode ser qualificado como de arrendamento ou de subarrendamento; Ultrapassa o arrendamento e o misto de locação e prestação de serviços; O contrato de utilização das lojas não é arrendamento mas contrato atípico e inominado, regulando-se, em primeira linha, pelas normas gerais dos contratos e só depois pelas do contrato mais próximo, que é aquele; Justifica-se a aplicação do regime jurídico dos centros comerciais às lojas que funcionem nos fundos de um hotel; O regulamento do centro comercial tem natureza meramente obrigacional; Um contrato atípico e inominado; mas admite o trespasse; Maioritariamente tem-se entendido que se trata de contratos atípicos, inominados, celebrados ao abrigo da autonomia contratual; mas o afastamento do vinculismo pode envolver abuso do direito; É uma nova figura contratual e que constitui um verdadeiro contrato atípico e inominado; É um contrato atípico; não é típico, de arrendamento, nem misto de arrendamento e de prestação de serviços; É atípico; rege-se em primeira linha pelo estipulado pelas partes e, se necessário e onde puder recorrer-se à analogia do clausulado, pelos contratos típicos com afinidade; O facto de o centro ainda não estar pronto não é incumprimento do promotor, essencial é que já se possa falar em Centro Comercial; É um contrato atípico e inominado diverso de um contrato misto de arrendamento e de prestação de serviço; Não se confunde com o contrato de arrendamento, de caráter vinculístico, podendo ser resolvido, nos termos gerais, por incumprimento; mas não é lícita a consagração contratual da ação direta. Todas elas soluções retiradas da jurisprudências.
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Natureza e regime: os problemas relativos a lojistas têm-se posto, na prática, quase todos pelo prisma do gozo das lojas. Como esta é retribuído temos, prima facie, um arrendamento comercial: o regime vinculístico teria, como foi dito, aplicação, desequilibrando o contrato. A jurisprudência deparou com um problema de articulação valorativa: sendo o contrato de lojista em centro comercial um contrato misto e vingando, como queria a doutrina maioritária, a teoria da combinação, aplicar-se-ia ao segmento «gozo da coisa», o regime do arrendamento: precisamente o que se quera evitar! A solução encontrada foi a radical: o contrato de lojista seria algo de totalmente atípico, de tal modo que se pudesse esconjurar o arrendamento. E por essa via, acaba-se nos princípios gerais e à doutrina de Schreiber: o recurso à analogia, mas só na medida do conveniente. Homenageamos a jurisprudência que, mau grado a desfavorabilidade da lei estrita, apoiou, no sistema, soluções justas. Mas podemos ir mais longe: na verdade, “contrato atípico” é, aqui, pouco. A construção que se impõe será outra: o centro comercial é, antes de mais, uma imensa teia de serviços organizados. Sem eles, não há comércio integrado pensável. O contrato de lojista, traduzindo embora uma organização comercial, deveria ser reconduzido ao universo dos serviços, devidamente filtrado pela Lei das Cláusulas Contratuais Gerais. Isto teria a vantagem de sublinhar as obrigações do promotor. Os excessos do arrendamento, que levaram ao seu erradicar deste universo, deixaram os lojistas sem proteção. Também nem tanto. O trabalho de lojista, sem horários e sem garantias, é por vezes extenuante para pequenas empresas de base familiar. Na realidade de um grande centro, tornase fácil impor uma ordem, à margem do contrato e da lei, sem que quedem vias de respota; já se tentou, para o efeito, ressuscitar, por via constitucional, o vinculismo. O Tribunal Constitucional debruçou-se sobre o tema, produzindo o seguinte aresto66: «o artigo 405.º do Código Civil, quando interpretado no sentido de que o princípio da liberdade contratual abrange a liberdade de as partes optarem livremente pelo modelo contratual típico de arrendamento comercial ou pelo modelo contratual atípico comumente designado de contrato de instalação de lojista em centro comercial não é inconstitucional por violação do “princípio da confiança do cidadão, emanado do princípio do Estado de Direito Democrático na sua vertente de Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição”». Tem toda a razão. Mas cabe ao Direito, com o conjunto dos instrumentos disponibilizados pela sua Ciência, encontrar, também, neste domínio, um equilíbrio.
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TC n.º 632/2005, 15 novembro 2005 (Benjamin Rodrigues), DR II Série, n.º 247, 29 dezembro 2005, 18122-18126 (18126.
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Secção V – Os contratos de distribuição 62.º - Contratos de distribuição em geral
A distribuição e o Direito: qualquer economia moderna assenta numa divisão de função e de tarefas. Designadamente: o fabricante de bens terá, em princípio, aptidões industriais; mas não comerciais. Por seu turno, no próprio campo da comercialização, haverá agentes económicos grossistas e, separadamente, retalhistas: aqueles que têm contacto mais estreito com o público, em especial com os pequenos consumidores privados. Os circuitos económicos de distribuição dos bens, desde o produtor e até ao consumidor final, são dobrados por esquemas jurídicos destinados a legitimá-los, fixando os direitos e os deveres das partes envolvidas. Trata-se, grosso modo, dos contratos de distribuição. A matéria pode ser ordenada de várias formas abrangendo mais ou menos figuras. Os códigos comerciais não têm autonomizado os diversos contratos de distribuição, regulando-os. Muitos deles, de resto, correspondem a figuras relativamente recentes, de inspiração norte-americana. Abram-se, assim, lacunas, que vêm sendo colmatadas: Ou por recurso à analogia, a partir das normas efetivamente existentes, normalmente dedicadas ao contrato paradigmático da agência; Ou com base em cláusulas contratuais gerais, devidamente sindicadas pela prática. Vários são, de todo o modo, os esquemas contratuais possíveis, típicos ou atípicos. Impõe-se, pois, algumas distinções. A comercialização dos bens e a sua distribuição, na sociedade, pode ser feita de forma direta ou indireta. A saber: Distribuição direta: o bem passa diretamente do produtor ao consumidor, ainda que través de representantes, de comissários ou de mediadores; Distribuição indireta: o bem atravessa ainda várias fases, passando do produtor ao grossista, do grossista ao retalhista e do retalhista ao consumidor final. Por seu turno, a distribuição indireta pode ser integrada ou não integrada. Mais precisamente: Distribuição indireta integrada: existe uma coordenação entre a produção e a comercialização, de tal modo que o distribuidor é integrado em circuitos próprios do produtor, sujeitando-se, eventualmente, às suas diretrizes; Distribuição indireta não-integrada: não há tal coordenação; os distribuidores atuam e concertação com os produtores. Numa economia de tipo ocidental que inscreva a livre-concorrência como um valor básico, capaz de regularizar o mercado, protegendo a qualidade dos produtos e defendendo os consumidores, a distribuição tem a maior importância. As intervenções que o Direito aí tenha devem ser temperadas pela lógica da concorrência. Particularmente relevantes são, neste domínio e entre nós, as regras de defesa da concorrência, inseridas na Lei n.º 18/2003, 11 junho, e que vedam, designadamente, os acordos e práticas concertadas tendentes a interferir nos mercados (artigo 4.º). Também a nível contratual, as intervenções do Estado serão norteadas pela defesa do
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 mercado e, por essa via, dos consumidores. As regras sobre as cláusulas contratuais gerais e a defesa do consumidor devem estar sempre presentes.
Os contratos de distribuição: dos diversos esquemas de distribuição acima referidos, interessa reter a distribuição indireta integrada. Esse tipo de distribuição pressupõe, em regra, a celebração, entre os interessados e, designadamente, entre o produtor e os distribuidores, de adequados instrumentos contratuais. A doutrina especializada aponta quatro tipos de situações jurídicas possíveis:
A agência; A concessão; A franquia A livre organização de cadeias.
Nesta última hipótese, não há instrumentação contratual que estruture a articulação entre produtor, distribuidor e retalhistas. Quanto às outras, cumpre retê-las. Temos, ainda, outras modalidades, que podemos considerar atípicas, como a do contrato de distribuição de publicações. O contrato de agência, cujo regime foi, entre nós, codificado pelo Decreto-Lei n.º 178/86, 3 julho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 118/93, 13 abril, vem definido como – artigo 1.º, n,.º1: «contrato pelo qual uma das partes se obriga a promover por conta da outra a celebração de contratos, de modo autónomo e estável e mediante retribuição, podendo ser-lhe atribuída certa zona ou determinado círculo de clientes». A noção portuguesa de agência foi inspirada no Código Civil Italiano. Compreende-se, também por isso, o relevo, entre nós, da doutrina italiana, no conhecimento do instituto e dos aspetos que lhe são conexos. Um especial afinamento vem-nos, igualmente, da doutrina alemã: esta tem, além disso, um papel liderante na conformação das regras comunitárias. O contrato de concessão é um contrato atípico e inominado e que tem sido definido como aquele no qual uma pessoa – o concedente – reserva a outra – o concessionário – a venda de um seu produto, para revenda, numa determinada circunscrição. Por fim, no contrato de franquia (franchising) , uma pessoa – o franqueador – concede a outra – o franqueado – a utilização, dentro de certa área, cumulativamente ou não, de marcas, nomes, insígnias comerciais, processos de fabrico e técnicas empresariais e comerciais, mediante contrapartida. O contrato de franquia tem sofrido uma evolução: enquanto, numa primeira fase, a franquia implicava, no essencial, um autorização para usar certas normas e insígnias, ela tem vindo, mais recentemente – pelo menos nalgumas das suas modalidades – a implicar investimentos e publicidade a cargo do franqueador e, ainda, certas distribuições de bens e serviços. Aproxima-se, assim, da agência, podendo ser qualificado como um verdadeiro instrumento de distribuição. Nada impede as partes de confecionar contratos atípicos de distribuição. De todo o modo, havendo distribuição, encontraremos sempre um núcleo contratual bastante próximo da agência. Esta ergue-se como a figura-matriz dos contratos de distribuição. As suas normas podem alargar-se aos contratos de distribuição acima referidos e, ainda, aos contratos de distribuição atípica. A esta luz compreende-se a relevância comunitária assumida pela agência.
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63.º - A agência
Origem e evolução; o papel de matriz: os antecedentes da agência remontam aos vários esquemas que, desde a Antiguidade, permitiam o exercício do comércio à distância, através de auxiliares. O seu perfil atual é, porém, relativamente recente. De facto, não era possível distinguir, nas épocas mais recuadas e em termos dogmáticos, as figuras da representação comercial, do gerente do comércio, da agência e da própria cessão financeira. Não obstante, cabe uma referência global à feitoria, de cujas modalidades emergiriam, séculos volvidos, diversa figuras ligadas à distribuição dos bens e serviços. O Código Ferreira Borges ainda versava a figura do feitor. Este corresponderia grosso modo ao gerente de comércio, estando munido de poderes de representação. Segundo o seu artigo 144.º: «Os feitores tractam e negocieam em nome dos seus proponentes: nos documentos, que nos negócios deles assinarem, devem declarar, que firmam com poder de pessoa, ou sociedade, que representam». É muito interessante sublinhar que o Código Ferreira Borges (1833) já assegurava uma certa tutela de terceiros. Fixava, ainda, com pormenor regras diversas próprias das figuras envolvidas. O direito Comercial português poderia ter desenvolvido toda uma técnica moderna de distribuição em torno da figura do feitor e das suas modalidades. Todavia, acabaria por prevalecer a influência de variadas legislações estrangeiras. O Código Veiga Beirão, como vimos, interrompeu a tradição das feitorias, a favor da do mandato, de inspiração napoleónica. Subsequentemente, por influência das doutrinas alemã e italiana, viria a impor-se a figura da agência: primeiro como tipo social; mais tarde por via legal direta. O contrato de agência, hoje dotado de regime legal expresso nos diversos Direitos da União, não é apenas um contrato de distribuição, entre outros. Ele funciona como uma matriz de distribuição, isto é, como uma figura exemplar. Muitas das regras próprias da agência operam como princípios gerais que enformam todos os contratos de distribuição. Por isso, a prática, a doutrina e a jurisprudência, quando confrontadas com fórmulas de distribuição, fazem apelo às regras da agência. No Direito Comercial, como noutras disciplinas jurídico-privadas, a “teoria-geral” pode ser feita através de figuras exemplares.
A Diretriz n.º 86/653/CEE: o contrato de agência tomado, para mais, como modelo reitor dos diversos contratos de distribuição, tem um papel importante nas relações de comércio internacionais. Muitas vezes, o agente é um veículo privilegiado para colocar as mercadorias par além das fronteiras. Além disso, a agência pode bulir com questões de concorrência. À luz destas considerações, compreende-se que as instâncias europeias tenham procurado uma certa uniformização dos regimes nacionais da agência. Assim surgiu a Diretriz n.º 86/653/CEE, do Conselho, 18 dezembro 1986, relativa à coordenação do Direito dos Estados-Membros sobre os agentes comerciais. A Diretriz – artigo 1.º, n.º2 – apresenta o agente comercial como «a pessoa que, como intermediário independente, é encarregada a título permanente, quer de negociar a venda ou a compra de mercadorias para uma outra pessoa, adiante designada “comitente”, quer de negociar e concluir tais operações em nome e por conta do comitente».
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A Diretriz tem um cuidado especial em subordinar as partes à lealdade e à boa fé – artigos 3.º, n.º1 e 4.º, n.º1. Trata-se de um claro predomínio da técnica jurídica alemã. A matéria da remuneração é cuidadosamente versada – artigos 6.º e seguintes. Perfilam-se razões de concorrência, para além das de justiça: o legislador comunitário ficou preocupado com o facto de os Estados menos protetores conseguirem, por essa via, uma concorrência mais forte, contra os restantes. Essa mesma lógica explica o relevo dado ao termo do contrato. O artigo 17.º versa, com pormenor, a indemnização da clientela. A Diretriz foi, depois, transposta para os ordenamentos internos dos diversos Estados da União.
O regime legal; generalidades: o contrato de agência dispõe, como foi referido, de regime legal específico: o aprovado pelo Decreto-Lei n.º 178/86, 3 julho, com alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 118/93, 13 abril. O diploma alarga-se por 39 artigos. O regime aprovado entrou em vigor 30 dias após a publicação do Decreto-Lei n.º 178/86, segundo o seu artigo 39.º; as alterações introduzidas em 1993 entraram em vigor, para os contratos de agencia anteriormente celebrados, em 1 janeiro 1994. De acordo com a noção de agência contida no artigo 1.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 178/86, temos, como elementos fundamentais: O dever de promover, por conta de outrem, a celebração de contratos; De modo autónomo e estável; Mediante retribuição. A agência será pois, em rigor, uma prestação de serviço, mais particularmente uma modalidade de mandato. A autonomia é importante: permite, desde logo, uma distinção do contrato de trabalho. Não é total; à semelhança do mandatário, o agente deve acatar as instruções do principal67: instruções concretizadas e não inovatórias. A agência é um contrato oneroso. Ao agente são requeridos investimentos pessoais e, por vezes, materiais. Além disso, ele dá uma face aos produtos do principal, integrando-se, nessa medida, na lógica do mercado. Compreende-se, a esta luz, a necessidade sentida, pelo Direito, de lhe atribuir uma certa proteção. O contrato de agência parece não estar, à partida, sujeito a qualquer forma. No entanto, o artigo 1.º, n.º1 atribui, a cada parte, o direito de exigir, da outra, um documento assinado com o conteúdo do contrato. Visa-se, assim, a proteção do agente, que nunca poderá ser confrontado com a pura e simples nulidade do contrato, por falta de forma. Além disso, diversas cláusulas devem necessariamente assumir a forma escrita:
A que confira ao agente poderes de representação – artigo 2.º, n.º1; A que lhe permita cobrar créditos – artigo 3.º, n.º1; A que estabeleça uma proibição de concorrência pós-eficaz – artigo 9.º; A convenção del credere – artigo 10.º; A cessação por mútuo acordo – artigo 25.º; A declaração de resolução – artigo 31.º.
Na prática, os contratos de agência assumem a forma escrita. É ainda frequente que derivem da simples adesão a cláusulas contratuais gerais. À semelhança do que ocorre com o mandato, a agência pode ser celebrada com ou sem representação – artigo 2.º, n.º1; havendo representação, presume-se que o agente está autorizado a cobrar os créditos do principal –
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O legislador procurou evitar a denominação da pessoa por conta da qual o agente deve atuar, falando, por sistema em “a outra parte”.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 artigo 3.º, n.º2 – o que, de outra maneira, exigiria autorização escrita – artigo 3.º, n.º1. Cobranças não autorizadas caem no artigo 770.º CC, sem prejuízo do disposto sobre representação aparente, no domínio da agência – artigo 3.º, n.º2. Na agência sem representação, das duas uma: Ou o agente contrata em nome próprio devendo, depois, retransmitir para o principal a posição adquirida; Ou o contrato é celebrado, pelo cuidado do agente, diretamente entre o principal e o terceiro. Quando o contrato nada diga e não haja, in concreto, instruções do principal, pode o agente sem representação optar por qualquer uma dessas duas vias: é prerrogativa sua, enquanto prestador autónomo. A agência pode ser celebrada com vista à celebração de contratos num círculo predeterminado: seja uma circunscrição geográfica, seja uma delimitação pessoal, seja, finalmente, uma combinação de ambos. Essa delimitação pode ser associada a uma cláusula de exclusivo: nos termos do artigo 4.º Decreto-Lei n.º 178/86, o principal não deve, no círculo que caiba ao agente, contratar qualquer outro agente, quando este possa exercer atividades em concorrência com o primeiro. Num paralelo com o disposto para o mandato – artigo 1165.º CC – o agente pode recorrer a auxiliares e a substitutos, contratando, designadamente, subagentes – artigo 5.º Decreto-Lei n.º 178/86, diretamente e a fortiori. O disposto sobre a agência aplicase, à subagência, com as necessárias adaptações – artigo 5.º. Fica, todavia claro que, em relação ao principal, não pode o subagente receber poderes que o próprio agente não detivesse.
As posições das partes: o Decreto-Lei n.º 178/86 veio definir, com elegância, as posições das partes. Para tanto, recorreu à indicação das obrigações e dos direitos do agente: dada a natureza contratual da figura em jogo, fácil é, daí, extrapolar os direitos e os deveres do principal. À partida, deve ter-se presente que o contrato de agência, como prestação autónoma de serviço, implica uma margem lata de concretização. Justamente aí reside uma das suas vantagens: permite ao agente procurar, nas condições de mercado de resto muito mutáveis, as melhores soluções para a execução do que lhe compita. Compreende-se, por isso, a importância que tem o fim geral do contrato na determinação da conduta das partes, a pautar pela cláusula geral da boa fé: artigos 6.º e 12.º Decreto-Lei n.º 178/86. Há, pois, que recorrer aos princípios mediantes da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente. Passando às obrigações do agente, deparamos com a enumeração do artigo 7.º, puramente exemplificativa; ele deve: Respeitar as instruções do principal que não ponham em causa a sua autonomia; trata-se de uma fórmula a entender no contexto, uma vez que qualquer instrução obrigatória põe em causa a autonomia de quem o receba; pretende o legislador que as instruções não tenham tal densidade que coloquem o agente na posição de empregado do principal; Prestar as informações pedidas e as necessárias, esclarecendo ainda o principal sobre a situação do mercado e as suas perspetivas; trata-se de obrigações cujo conteúdo variará imensamente, de acordo com a situação considerada; Prestar contas; o artigo 7.º, alínea d), é pouco explícito, neste domínio; na dúvida, caberá recorrer ao artigo 1161.º, alínea c) CC: as contas deverão ser prestadas no fim do contrato ou sempre que o principal o exija; havendo uma conta corrente, recorrer-se-á às regras desta ou a qualquer outro esquema que tenha sido convencionado.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Além disso, impendem sobre o agente: Um dever de segredo, que pode mesmo ser pós-eficaz – artigo 8.º; Um dever de não concorrência pós-eficaz, se for acordado por escrito; esse dever não pode exceder os dois anos e circunscrever-se-á à zona ou círculo de clientes confiados ao agente – artigo 9.º; Um dever de garantir, havendo acordo escrito, o cumprimento das obrigações de terceiro, desde que respeitantes a contrato por si negociado: é a convenção del credere, a qual deve especificar o contrato e individualiza as pessoas garantidas – artigo 10.º; Um dever de avisar de imediato o principal de qualquer impossibilidade sua de cumprir o contrato. Quanto a direitos, desfruta o agente da enumeração do artigo 13.º. Assim, cabem-lhe: O direito de receber do principal os elementos necessários ao exercício da sua atividade; trata-se de uma concretização do artigo 1167.º, alínea a) CC; O direito de receber sem demora a informação da aceitação ou da recusa dos contratos concluídos sem poderes; O direito de receber periodicamente a relação dos contratos celebrados e das comissões devidas, «o mais tardar até ao último dia do mês seguinte ao trimestre em que o direito à comissão tiver sido adquirido» - artigo 13.º, alínea c) – bem como todas as informações necessárias para verificar os montantes das comissões – idem, alínea d). No que tange a remuneração, a lei especifica, desde logo, o direito à retribuição – artigo 13.º, alínea e). A retribuição é fixada por acordo das partes ou, na falta deste e sucessivamente, pelos usos e pela equidade – artigo 15.º. Nenhum obstáculo existe em que a retribuição consista, simplesmente, em comissões pelos contratos celebrados. Segue-se, depois, o direito a uma comissão - artigo 16.º; o artigo 13.º, alínea f), dala em «comissões especiais» - pelos contratos que haja promovido e, ainda, pelos contratos concluídos com clientes por si angariado, desde que concluídos antes do termo do contrato – n.º1; ficam, pois, cobertas as situações de contratação direta entre o principal e o cliente angariado. Havendo exclusivo, a comissão alargase a todos os contratos celebrados com o principal na área do contrato – n.º2; cessando a agência, a comissão só se reporta aos contratos anteriormente preparados ou negociados por ele, nos termos especificados no n.º3, todos do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 178/86. Neste último caso, o novo agente não tem direito à mesma comissão, sem prejuízo de uma possível repartição equitativa, entre ambos – artigo 17.º. O direito à comissão mereceu, ao legislador, ainda, uma particular atenção, no tocante à sua concretização. Prevaleceu uma orientação protetora do agente. Assim, segundo o artigo 18.º: O agente adquire o direito à comissão quando ocorra uma de duas circunstâncias: ou o principal cumpra ou deva ter cumprido o contrato ou o terceiro haja cumprido; Tendo o principal executado a sua obrigação e tendo o terceiro cumprido o contrato ou devesse fazê-lo, o agente adquire o direito à comissão, mesmo quando haja cláusula em contrário; Constituído o direito respetivo, a comissão deve ser paga até ao último dia do mês seguinte ao trimestre em que o direito tiver sido adquirido;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Havendo convenção del credere, pode o agente exigir as comissões devidas, uma vez celebrado o contrato: é evidente, dado que ele garante o seu cumprimento pelo terceiro. Se o contrato providenciado pelo agente não for cumprido por causa imputável ao principal, mantém-se o direito daquele à comissão – artigo 19.º. Além da retribuição e da comissão de base, agente tem ainda o direito a outras prestações retributivas. Assim: Uma comissão especial relativa ao encargo da cobrança – artigo 13.º, alínea f); Uma comissão especial pela convenção del credere – artigo13.º, alínea f) (recordese o artigo 169.º, §2.º CCom); Uma compensação pela cláusula pós-eficaz de não concorrência – artigo 13.º, alínea g). O agente tem ainda o direito de ser avisado de qualquer diminuição da atividade do principal, seja perante o convencionado, seja perante o que seria de esperar – artigo 14.º. Em compensação e salvo cláusula em contrário, ele não tem direito ao reembolso de despesas pelo exercício normal da sua atividade – artigo 20.º: trata-se de um tributo por ele prestado à autonomia de que desfruta.
A proteção de terceiros: o contrato de agência visa celebrar negócios entre o principal e terceiros. Estes colocam-se, porém, na situação de contratar não com o próprio dono do negócio, mas com um intermediário. Podem, por isso, encontrar-se numa posição de certa vulnerabilidade. Dado o especial interesse que o principal retira da atuação de agentes e visto o valor geral que a confiança nos negócios representa, dentro da sociedade, a lei estabeleceu diversos mecanismos para a proteção dos terceiros – artigos 21.º a 23.º Decreto-Lei n.º 178/86, 3 julho. Desde logo, o agente deve informar os interessados dos poderes que possui. Através de letreiros e nos documentos que o identifiquem como agente, ele deve esclarecer se tem, ou não, o poder de representação e se pode efetuar a cobrança de créditos – artigo 21.º. O incumprimento desta regra torna-o responsável por todos os danos que venha a ocasionar. Quando não tenha poderes de representação, o agente ou contrata no próprio nome, funcionando as regras do mandato sem representação ou proporciona uma contratação direta entre o principal e o terceiro. Se, porém, contratar em nome próprio, caímos na representação sem poderes, prevista no artigo 268.º, n.º1 CC: recorda-o o artigo 22.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 178/86. A proteção do terceiro intervém no n.º2 deste preceito: o negócio considera-se ratificado se o principal, tendo conhecimento da sua celebração e do conteúdo essencial do mesmo e estando o terceiro de boa fé, não lhe manifestar, no prazo de cinco dias após aquele conhecimento, a sua oposição. O artigo 23.º, n.º1 Decreto-Lei n.º 178/86 estabelece, por fim, uma hipótese muito particular de representação aparente. Assim: Havendo representação sem poderes, isto é: quando o agente, sem representação, contrate, não obstante, em nome do principal; Mas acreditando o terceiro de boa fé na existência deles; Desde que essa confiança seja objetivamente justificada; E tendo o principal contribuído par fundar essa confiança;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 o negócio é eficaz. A hipótese mais simples será a de o agente, com conhecimento e sem reação do principal, se proclamar publicamente seu representante. Esse dispositivo é aplicável à cobrança de créditos por agente não autorizado – artigo 23.º, n.º2.
A cessação: a cessação do contrato de agência foi rodeada, pelo legislador, de cautelas especiais. Trata-se, efetivamente, de um momento de vincada vulnerabilidade do agente. A respetiva regulamentação – artigos 24.º a 36.º Decreto-Lei n.º 178/86 –, é ainda particularmente importante por representar um regime paradigmático para as diversas obrigações duradouras. Desde logo, o artigo 25.º enumera as formas de cessação do contrato de agência: O acordo das partes ou distrate: o mútuo acordo é sempre possível; exige, como referido, forma escrita – artigo 25.º; A caducidade: tem a ver com a sobrevivência de um facto extintivo. O artigo 26.º enumera: o termo do prazo, a condição e a morte ou extinção do agente. Na falta de prazo, o contrato tem-se como celebrado por termo indeterminado – artigo 27.º, n.º1. E por termo indeterminado se tem por celebrado o cotrato que, não obstante o decurso do respetivo prazo, continue a ser executado pelas partes; A denúncia: é o ato unilateral, discricionário e recipiendo, que se destina a fazer cessar um contrato de duração indeterminada. É, efetivamente, uma valoração geral do ordenamento: a de que não pode haver vinculações perpétuas. A denúncia deve ser comunicada à outra parte com determinada antecedência. A lei – artigo 28.º, n.º1 – fixa prazos crescentes, em consonância com a duração do contrato, nos termos seguintes: o
Um mês, se o contrato durar menos de um ano;
o
Dois meses, se o contrato já tiver iniciado o segundo ano de vigência;
o
Três meses, nos casos restantes.
O termo do prazo deve, salvo convenção em contrário, coincidir com o último dia do mês – n.º2. Estes prazos têm um duplo alcance: são supletivos e mínimos. Funcionam sempre que as partes nada digam e não podem, por elas, ser encurtados. As partes podem, sim, fixar prazos mais longos; o prazo a observar pelo principal não pode ser inferior ao do agente – artigo 28.º, n.º3 – devendo concluir-se: quando este último seja superior, deve o primeiro alinhar automaticamente por ele. Como se impunha, para a determinação da contagem do pré-aviso de denúncia, o artigo 28.º, n.º4 mandou contar, na hipótese de conversão de agência com prazo em agência de duração indeterminada, por execução posterior das partes, o tempo decorrido desde o início. A denúncia sem pré-aviso é eficaz: mas obriga o denunciante a indemnizar a outra parte, pelos danos assim causados – artigo 29.º, n.º1. Sendo o agente prejudicado, a lei permite – idem, n.º2 – que a indemnização seja substituída pela remuneração que, na base da média mensal do ano precedente ou do próprio ano quando o contrato neste haja principiado, o agente iria auferir; A resolução.: implica um ato recipiendo, assente em determinada justificação e que faça cessar imediatamente o contrato de agência, tenha ele ou não prazo. Na linguagem própria do mandato, exigir-se-ia “justa causa” – artigo 1170.º, n.º2 CC. O
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Decreto-Lei n.º 178/86 entendeu, porém e atentos os valores de certeza do comércio, especificar as hipóteses de resolução: uma subjetiva e outra objetiva. Assim, a resolução pode operar – artigo 30.º: o
Se a outra parte faltar ao cumprimento das suas obrigações quando «pela gravidade ou reiteração, não seja exigível a subsistência do vínculo contratual»; temos, aqui, a hipótese de incumprimento culposo que, por ter a ver com o sujeito, se diz “subjetiva”;
o
Se ocorreram circunstâncias que tornem impossível ou prejudiquem gravemente o fim contratual, em termos que tornem inexigível a sua manutenção, até ao prazo convencionado ou imposto para a denúncia; é a hipótese “objetiva”.
Em ambas as hipóteses a le usa o conceito indeterminado da inexigibilidade. Caso a caso ele terá de ser concretizado, tendo em conta a confiança e a materialidade subjacente. A resolução deve ser comunicada por escrito, com indicação das razões e no prazo de um mês após o seu conhecimento – artigo 31.º. Ultrapassado esse prazo, caduca o direito à resolução; quedará, ao interessado, lançar mão da denúncia. Independentemente do direito à resolução – e, portanto: mesmo que este caduque – a parte lesada tem o direito de ser indemnizada pelos danos resultantes do incumprimento pela outra parte – artigo 32.º, n.º1. Se, porém, a resolução operar por razões objetivas, a parte lesada terá o direito a uma indemnização assente na equidade – artigo 32.º, n.º2.
A indemnização de clientela; outros aspetos: o contrato de agência pode, pelo seu funcionamento, acarretar clientes para o principal, clientes esses que se manterão mesmo após o seu termo. O legislador entendeu, por isso, que cessando a agência, era justo compensar o agente pelo enriquecimento assim proporcionado à outra parte. Este é o sentido da indemnização de clientela, prevista no artigo 33.º Decreto-Lei n.º 178/86. A indemnização de clientela é devida pelo principal ao agente. Ela é cumulável com outras indemnizações a que haja direito – designadamente: a indemnização por denúncia sem pré-aviso ou sem pré-aviso suficiente e a indemnização por incumprimento – e exige, cumulativamente: Que o agente tenha angariado novos clientes para a outra parte ou tenha aumentado substancialmente o volume de negócios com a clientela já existente; Que o principal venha a beneficiar consideravelmente, após a cessação do contrato, da atividade desenvolvida pelo agente; Que o agente deixe de receber qualquer retribuição por contratos negociados ou concluídos, após a cessação da agência, com os clientes angariados ou cujos negócios tenham sido aumentados. A indemnização de clientela pode ser exigida pelos herdeiros – artigo 33.º, n.º2 – não sendo devida se o contrato tiver cessado por razões imputáveis ao agente ou se esse tiver cedido, por acordo com a outra parte, a sua posição contratual a um terceiro – artigo 33.º, n.º3. A intenção de exercer o direito à indemnização de clientela deve ser comunicada ao principal no prazo de um ano, sendo a eventual ação judicial intentada no ano subsequente, sob pena de caducidade
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 – artigo 33.º, n.º4. Temos, aqui, prazos relativamente curtos, de modo a prevenir situações de indefinição prolongada. A indemnização de clientela deve ser calculada equitativamente – artigo 34.º. Este preceito introduziu, porém, um limite máximo: ele não pode exceder uma retribuição anual, calculada nos termos médios aí referidos. Prevaleceu, desta feita, uma preocupação de não esmagar o principal, ainda que, eventualmente, à custa de alguma injustiça. Se, porém, se provar um prejuízo superior a essa cifra, acompanhado por um dano que transcenda, igualmente, a retribuição anual, fica aberta a hipótese de inconstitucionalidade: por violação da propriedade privada – artigo 62.º, n.º1 CRP. No termo do contrato, cada contraente deve restituir os objetos, valores e demais elementos que pertençam ao outro – artigo 36.º; o agente goza, todavia, sobre eles, do direito de retenção pelos créditos resultantes da sua atividade – artigo 35.º. As regras relativas ao regime da cessação de agência têm aplicação imediata nos contratos que se desenvolvam, exclusiva ou predominantemente, em território nacional; só pode ser aplicada lei diversa da portuguesa se ela for mais vantajosa para o agente – artigo 38.º. Trata-se de uma norma imperativa. Esta regra pode ser falseada, designadamente pela atribuição de competência a tribunais estrangeiros, cujas regras de conflitos poderão não envolver um preceito semelhante ao referido artigo 38.º. O mesmo se diga com a previsão de convenções de arbitragem internacional. A jurisprudência tem oscilado. Todavia: quando esses resultados sejam prosseguidos com recurso a cláusulas contratuais gerais, a remissão para foros estranhos é nula, nos termos do artigo 19.º, alínea g) LCCG. Além disso, quando os tribunais estrangeiros ou arbitrais não apliquem o Direito Português, o pedido de revisão das respetivas sentenças pode ser impugnado por via do artigo 1100.º, n.º2 CPC.
64.º - A Concessão
O perfil da concessão: o contrato de concessão apresenta, dentro dos contratos de distribuição, um perfil característico. À partida, ele opera em áreas que exigem investimentos singificativos e que o produtor dos bens ou serviços a distribuir não queira ou não possa, ele próprio, efetuar. Corresponde, pois – pelo menos tendencialmente – a esquemas destinados a distribuir produtos de elevado valor. Na concessão, um produtor fixa, com um distribuidor – o concessionário –, um quadro de distribuição que se norteia pelos seguintes parâmetros: Um comerciante (o concessionário) insere-se na rede de distribuição de um produtor; Adquire o produto em jogo, junto do produtor e obriga-se a vendê-lo, em seu próprio nome, na área do contrato. A concessão pode, depois, ser enriquecida com numerosas outras cláusulas. Designadamente, o concessionário pode ficar adstrito a determinadas metas, à efetivação de certos investimentos ou à utilização de marcas ou de insígnias que identifiquem o produto em jogo. A concessão é um contrato que estabelece relações duradouras, no âmbito das quais o concessionário opera iure proprio. Pode ainda operar como promessa genérica de aquisição e de venda de produtos, com diversas prestações de facere em anexo. Em qualquer caso, ele manifesta-se como um contrato-quadro, em cujo âmbito vão, depois e na execução, surgir outros contratos, entre as duas partes. Com muita frequência, o contrato de concessão implica uma distribuição a nível
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 internacional. Nessa eventualidade, ele é ainda complementado com elementos internacionais privado.
Figuras afins: o contrato de concessão fica mais claro se se proceder à sua distinção de outras figuras afins. Algumas, especialmente ligadas à distribuição, foram acima referidas. No entanto, parece útil retomá-las, ainda que para efeitos de contraposição: ao comércio de agência, o contrato de concessão dispõe, apenas, de tipicidade social. Assim e no tocante a figuras típicas, cumpre distinguir: O contrato de agência, pelo qual «uma das partes se obriga a promover por conta de outra a celebração de contratos em certa zona ou determinado círculo de clientes, de modo autónomo e estável e mediante retribuição» – artigo 1.º Decreto-Lei n.º 178/86; na concessão, o concessionário age por conta própria; O contrato de mandato, pelo qual «uma das partes se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta de outrem» - artigo 1157.º CC; de novo se deve enfocar que o concessionário atua por conta própria; além disso, ele adstringe-se a múltiplas atividades materiais e não apenas jurídicas; O contrato de trabalho, pelo qual «uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob autoridade e direção desta» - artigo 1152.º CC e artigo 1.º Decreto-Lei n.º 49.408, 24 novembro 1969; O cotrato de comissão, pelo qual «o mandatário executa o mandato mercantil, sem menção ou alusão alguma ao mandante, contratando por si e em seu nome, coo principal e único contraente» - artigo 266.º CCom; mantém-se quanto foi dito a propósito do mandato o qual, como é sabido, pode ser com ou sem representação; O contrato de sociedade, pelo qual «duas ou mais pessoas se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício em comum de certa atividade económica, qua não seja de mera fruição, a fim de repartirem os lucros resultantes dessa atividade» - artigo 980.º CC; na concessão, não há propriamente uma atividade comum – o concessionário age por si e para si – nem afluxo de bens para um acervo comum, nem, por fim, pelo menos como elemento essencial, um quinhoar nos lucros; O contrato de consórcio, pelo qual duas ou mais pessoas se obrigam, entre si, a realizar certa atividade de forma concertada; na concessão, não há, propriamente, uma atividade comum, antes se verificando que os beneficiário agem por si. O contrato de concessão também se distingue, com facilidade, de vários contatos atípicos – portanto não regulados por lei – embora, desta feita, não se possa recorrer ao auxílio das definições legais. Assim: Do contrato de mediação, pelo qual uma pessoa – o mediador – se obriga a pôr em contacto duas ou mais pessoas, para a conclusão de um negócio, sem estar ligado a qualquer delas por um vínculo de colaboração, de dependência ou de representação; o concessionário, embora independente do concedente, não se obriga a promover qualquer aproximação entre estes e terceiros: contrata, ele próprio, com todos os riscos inerentes;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Do contrato de transmissão de saber-fazer (know-how), pelo qual uma pessoa transmite, a outra, a tecnologia ou, em geral, os conhecimentos aplicados necessários para concretizar determinada tarefa, não patenteados; na verdade, este elemento está, em regra, presente na concessão, mas não a esgota; Do contrato de franquia, dominado pela autorização para usar certas marcas ou insígnias e para utilizar especiais esquemas de comercialização; ainda quanto à diferenciação da franquia, faz-se notar que, nesta, a fiscalização do franqueador é mais intensa do que a do concedente; Também não oferece dúvidas a distinção entre o contrato de concessão e outros contratos, como os de corretagem e os de propaganda ou publicidade e similares. As distinções são fáceis quando, da concessão, se retenha o seu núcleo mais “duro”. Todavia, não podemos abstrair d natureza atípica do presente contrato. Muitas vezes ele inclui cláusulas próprias de figuras afins, de tal modo que a distinção acaba por surgir problemática. E as próprias figuras afins apresentam por vezes, entre elas, elos de comunicação que dificultam uma distinção linear. Na literatura, têm ocorrido diversas intervenções quanto à clivagem entre contratos de distribuição – entre as quais a concessão – e o contrato de trabalho. A necessidade de distinção cifra-se no seguinte: nos contratos de distribuição, é frequente o distribuidor ficar económica e socialmente subordinado ao produtor. A própria subordinação jurídica – no sentido de o distribuidor, contratualmente, dever acatar as instruções do produtor – pode fazer a sua aparição O problema tem-se posto em relação à franquia, em relação à concessão e, em geral, em relação aos colaboradores do produto. O alargamento da proteção laboral poderia ter, como efeito, o alcançar os contratos de distribuição mais subordinantes. Em qualquer dos casos, a eventual aplicação de regras de tipo laboral teria de ser ponderada, caso a caso.
O regime da concessão: o contrato de concessão não tem base legal direta. Estamos perante uma figura assente na autonomia privada. À partida, trata-se de um contrato que não está sujeito a qualquer forma solene. Pode ser meramente verbal ou pode resultar de condutas concludentes. Para além disso, o seu regime resultará, antes de mais, da interpretação e da integração do texto que tenha sido subscrito pelas partes. No que as partes tenham deixado em aberto, haverá que recorrer à analogia. O Direito comparado há muito estabelece, neste domínio, o recurso ao regime da agência. O legislador português foi sensível a este movimento. No próprio preâmbulo do Decreto-Lei n.º 178/86, 3 julho, no final do seu n.º4, depois de se mencionar o contrato de concessão, vem dizer-se: «Relativamente a este último, deteta-se no Direito comparado uma certa tendência para o manter com contrato atípico, ao mesmo tempo que se vem pondo em relevo a necessidade de se lhe aplicar, por analogia – quando e na medida em que ela se verifique – o regime da agência, sobretudo em matéria de cessação do contrato». A doutrina e a jurisprudência nacionais têm acolhido esta indicação: a analogia com a agência é um instrumento fundamental para acudir a lacunas que surjam em concretos contratos de concessão. Particularmente relevantes são as regras relativas à cessação do contrato. A norma atinente à indemnização de clientela - artigo 33.º Decreto-Lei n.º 178/86, 3 julho – tem segura aplicação ao contrato de concessão: a jurisprudência confirma-o. De todo o modo, caso a caso haverá que verificar se existe analogia. No regime da concessão comercial há, ainda, que atentar nas regras sobre cláusulas contratuais gerais. Muitas vezes os grandes produtores ou fabricantes
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 recorrem a cláusulas contratuais gerais para uniformizar os diversos contratos de distribuição que celebrem. As cláusulas contratuais gerais, daí derivadas, sujeitam-se às regras jurídicas gerais e, em particular, ao regime específico que para elas exista. Finalmente, haverá que atentar, no domínio da concessão, nas regras da concorrência. Trata-se de matéria que abaixo referiremos, a propósito da franquia e que, aqui, têm aplicação.
Especificidades: na base da prática nacional, é possível apontar algumas especificidades, no tocante ao regime e ao funcionamento prático da concessão. Quanto ao seu conteúdo, fica entendido: Que a concessão postula uma relação de confiança; não se justifica, assim, a aplicação do prazo admonitório do artigo 808.º, n.º1, 2.ª parte CC; Que o regime de exclusividade não é necessário devendo, para existir, ser acordado; a exclusividade não é, ainda e só por si, contrária às regras da concorrência; tãopouco é suficiente para provar a concessão; Que ela pode envolver a formação profissional do pessoal do concessionário. A concessão, nos seus elementos úteis, deve ser provada por quem, dela, se queira prevalecer. Quanto à sua definição: Não havendo prazo, ela só pode ser denunciada co um pré-aviso, sob pena de dar azo a um dever de indemnizar; Havendo culpa do concedente na cessação da concessão, pode este ser condenado a retomar os stocks antes vendidos ao concessionário; não há, todavia, nenhum fundamento jurídico para, em qualquer caso, limitar as indemnizações ao dano negativo: pelo Direito português, todos os danos devem ser sempre indemnizados; A denúncia ilegal é eficaz, mas obriga a indemnizar. No ponto delicado da indemnização de clientela, que demonstra uma especial litigiosidade, passamos a considerar o que segue. A doutrina dadora de toda esta problemática tem vindo a exprimir cautela, quanto à transposição automática do regime de agência: a analogia teria de ser verificada. Já se entendeu que a indemnização de clientela teria uma natureza social: isso obrigaria a verificar se o concessionário se inseriu mesmo na organização do concedente e se ele e digno de tutela. Não é assim. A indemnização de clientela é uma compensação prevista… pela clientela angariada, desde que se verifiquem os demais pressupostos da lei e haja analogia. Havendo lei, não se aplicam as regras o enriquecimento sem causa. As normas sobre a indemnização de clientela, na agência, não têm aplicação automática: há, sempre, que ponderar os requisitos e a analogia. Finalmente: os nossos tribunais não devem ter receio em arbitrar indemnizações, quando se justifiquem. Além da indemnização de clientela, a interrupção abrupta de uma concessão pode obrigar à retoma dos stocks, como vimos; pode haver danos não-patrimoniais; pode, ainda, impor-se uma indemnização por investimentos feitos pelo concessionário, incluindo em formação profissional e que se venham a perder; por último, caberá indemnizar pelas maiores despesas: despendimentos coletivos, restituição de subsídios ao Estado e incumprimento ocasionados junto de fornecedores. O Direito tem de reagir aos problemas do nosso tempo.
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65.º - A Franquia (franchising)
Generalidades: um dos mais elaborados tipos contratuais próprios da distribuição é o contrato de franquia. Nele, uma pessoa – o franqueador – concede a outra – o franqueado68 –, dentre de certa área, cumulativamente ou não: A utilização de marcas, nomes ou insígnias comerciais; A utilização de patentes, técnicas empresariais ou processos de fabrico; Assistência, acompanhamento e determinados serviços; Mercadorias e outros bens, para distribuição. A ideia de franquia anda, inicialmente, em torno da de privilégio ou liberdade: o franqueador permite, ao franqueado, o acesso a áreas que, em princípio, lhe estariam vedadas. Essas áreas têm a ver com a utilização das marcas, nomes, insígnias, patentes e outras técnicas de que o franqueador tenha o exclusivo. Mais tarde, a franquia enriqueceu-se com elementos próprios da distribuição de bens e de serviços. O contrato de franchising surgiu nos Estados Unidos, ainda que com raízes anteriores. Era um meio privilegiado para, no vasto e desenvolvido Continente norte-americano, conseguir montar rapidamente uma rede de Comercialização, sem os inerentes riscos e investimentos. O empresário que tivesse iniciado um esquema de sucesso, a nível local, assente em insígnias facilmente publicitáveis e em técnicas de comercialização atraentes, poderia, pela franquia, permitir que outros interessados copiassem precisamente o mesmo esquema, noutros locais, mediante contrapartidas. Empreendimentos hoje universais, como a Avis (aluguer de automóveis) ou a McDonalds (alimentação rápida) assentam nesse esquema. Mais tarde, o franchising tornou-se um esquema próprio para a expansão internacional de empreendimentos norte-americanos, vindo a ser usado por iniciativas provenientes de outros países. A franquia atinge hoje cifras significativas. O seu êxito é reduzido a três fatores: Às possibilidades abertas pela publicidade, no tocante à divulgação de marcas e de estilos de vida; À modalidade crescente dos consumidores, que facilita uma oferta uniforme de bens; Ao aumento dos seus rendimentos. A franquia evoluiu no sentido de um verdadeiro contrato de distribuição: inicialmente e como foi dito, a franquia era, antes de mais, um meio de permitir o uso de marcas, patentes e outros benefícios de que o franqueador tinha o exclusivo. Mais tarde, ela veio implicar elementos próprios da agência e da concessão: angariar clientes e distribuir bens e serviços, funcionando numa base hierarquizada. Finalmente, um aspeto terminológico. A expressão inglesa, de origem
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Em português correto, deve dizer-se franquear (pôr à disposição, permitir, conceder), franqueador e franqueado e não franquiar (selar, estampilhar), franquiador e franquiado.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 franco-normanda, está consagrada. Todavia, não há dificuldade em usar o vernáculo franquia, franqueador e franqueado, para exprimir o inglês francês ou alemão.
Modalidades; desenvolvimentos em Portugal: o contrato de franquia é atípico. Totalmente dependente da autonomia privada, ele pode apresentar elementos próprios da agência ou da concessão, surgindo como o mais variável e mais complexo dos contratos de distribuição. A doutrina tem vindo a proceder a diversas classificações, de acordo com critérios variados. De entre as múltiplas classificações de franquias, uma delas, adaptada pelo Tribunal das Comunidades Europeias em 1986, no conhecido caso pronuptia 69 merece ser retida. Ela distingue: A franquia de serviços, pela qual o franqueado oferece um serviço sob a insígnia, o nome comercial ou mesmo a marca do franqueador, conformando-se com as diretrizes deste último; A franquia de produção, pela qual o próprio franqueado fabrica, segundo as indicações do franqueador, produtos que ele vende sob a marca deste; A franquia de distribuição, pela qual o franqueador se limita a vender certos produtos num armazém, que usa a insígnia do franqueador. A franquia tem tido uma expressão muito marcada, em Portugal, designadamente a partir da década de 80 do século XX. Existem, neste momento, associações e publicações especializadas. Entre nós, o desenvolvimento jurídico da franquia tem-se acentuado. Também a jurisprudência direta vem surgindo: e deve ainda sublinhar-se que muitas decisões tomadas a propósito de contratos de concessão têm a ver com franquias: as linhas divisórias entre esses dois contratos, ambos atípicos, são, fatalmente, ténues.
A posição das partes: como referimos, a franquia vide dominada pela autonomia privada: apenas pela interpretação de cada contrato considerado se poderá verificar qual o seu alcance e quais os deveres que dele resultam para as partes. Na base da habitualidade, é possível apontar os deveres das partes que, em regra, tendem a surgir. Assim, num contrato de franquia, poderão ser obrigações do franqueador: Facultar ao franqueado o uso de uma marca, insígnia ou designação comercial na comercialização de serviços ou produtos por este adquiridos ou fabricados; Auxiliar o franqueado no lançamento e na manutenção de certa atividade empresarial, munindo-o de conhecimentos técnicos ou produtos necessários; Facultar ao franqueado técnicas ou processos produtivos de que o franqueador teria o exclusivo; Fornecer os bens ou serviços que, porventura, o franqueado deva distribuir. Note-se que todas estas faculdades são concedidas, na generalidade dos casos, apenas para determinadas circunscrições territoriais. Por outro lado, o franqueador poderá ter, como direitos:
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Acórdão de 18 janeiro 1986.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Uma certa retribuição calculada, muitas vezes, como percentagem do produto de vendas ou correspondente ao produto de certas aquisições que o franqueado se poderá obrigar a fazer-lhe; Poderes de fiscalização quanto às especificações e qualidades do produto vendido sob as suas marcas, insígnias ou designações comerciais; Poderes de aprovação ou fiscalização no tocante a pontos de venda, sua configuração e demais circunstancialismos; Poderes no domínio da cessão da posição contratual e de renovação do contrato; Direito de receber a contrapartida dos bens ou serviços que forneça. No tocante a direitos, o franqueado poderá ter os seguintes: O uso de marcas, insígnias ou nomes comerciais do franqueado; A utilização de conhecimentos, técnicas empresariais ou modos de fabrico pertença do franqueador; O auxílio do franqueador no lançamento, manutenção e desenvolvimento da sua atividade, no que toca a indicações; Fornecimentos acordados. Finalmente, o franqueador poderá ficar adstrito: Ao pagamento de certas retribuições ou à aquisição, junto do franqueador, de certos produtos; Ao lançamento e desenvolvimento da sua atividade dentro de certa circunscrição; À manutenção das qualidades dos serviços ou dos produtos franqueados; Ao sigilo no tocante a conhecimentos recebidos do franqueador; À comparticipação em despesas de publicidade; A certas cláusulas de não concorrência.
A cessação: o contrato de franquia dá lugar a uma situação duradoura. Na sua cessação, há que observar os quadros competentes, com relevo para a resolução (unilateral e justificada) e a denúncia (unilateral e discricionária). O modelo da cessação de agência é aplicável, com as adaptações necessárias. A cessação não pode, pela natureza das coisas, ser retroativa. Como especialidade, verifica-se que o franqueado fica numa patente subordinação económica. Por vezes, são-lhe exigidos investimentos significativos, em nome de uma situação que o franqueador poderá fazer cessar ex abrupto, se o contrato lhe o permitir. Ora os contratos de franquia são fixados unilateralmente pelos franqueadores que, muitas vezes, recorrer para o efeito a cláusulas contratuais gerais. Põe-se, deste modo, o problema da tutela do franqueado. À partida, a doutrina entende que, embora economicamente subordinado, o franqueado é juridicamente autónomo: não se justificaria, por isso, o recurso a uma tutela de tipo laboral. Impor-se-ia, contudo, alguma proteção: a do contrato de agência. Assim, e dependendo embora
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 do tipo de franquia, haverá que procurar, no campo da agência, regras aplicáveis, diretamente ou por analogia, numa posição clara na nossa jurisprudência. Algumas dessas regras servirão para suprir a regulação contratual; outras, porém, são injuntivas. Entre estas últimas, contamse as relativas a cessação do contrato e, particularmente, as que fixam pré-avisos e a indemnização de clientela. Trata-se da orientação mais correta, ainda que dependente sempre de um juízo em concreto. O contrato de franquia é ainda dominado por uma certa relação de confiança, que ambas as partes devem preservar. A franquia é, muitas vezes, celebrada com recurso a cláusulas contratuais gerais. A LCCG é, assim, um instrumento jurídico privilegiado para facultar, ao Tribunal, o controlo das cláusulas injustas.
Problemas de concorrência: o contrato de franquia deve ser cuidadosamente conjugado com as regras da concorrência, designadamente as derivadas do Tratado de Roma e introduzidas, depois, nas diversas ordens internas dos países que hoje compõem a União Europeia. À partida, cumpre recordar o artigo 81.º do Tratado de Roma (hoje artigo 101.º Tratado de Lisboa), que vem disposto no artigo 4.º, n.º1 da Lei n.º18/2003, 11 junho. O artigo 5.º dessa Lei vem, com efeito, complementar as práticas incompatíveis com o mercado comum, sob a epígrafe «justificação das práticas proibidas»: «1. Podem ser consideradas justificadas as práticas referidas no artigo anterior que contribuam para melhorar a produção ou a distribuição de bens e serviços ou para promover o desenvolvimento técnico ou económico desde que, cumulativamente: «a) reservem aos utilizadores desses bens ou serviços uma parte equitativa do benefício daí resultante; «b) não imponham às empresas em causa quaisquer restrições que não sejam indispensáveis para atingir esses objetivos; «c) não deem a essas empresas a possibilidade de eliminar a concorrência numa parte substancial do mercado dos bens ou serviços em causa». Uma aplicação estrita e literal dos artigos 101.º TL e 4.º, n.º1 Lei .º 18/2003, 11 junho, respetivamente, sem se terem em conta as ressalvas depois efetuadas por ambos os diplomas, iria dificultar, na prática , os diversos contratos de distribuição, com relevo para a franquia, a agência e a concessão. De facto, o contrato de franquia já foi enquadrado, no Direito da concorrência dos nossos dias. Foi liderante, neste domínio, o caso Pronuptia, decidido pelo Tribunal das Comunidades Europeias, em 28 janeiro 1986. Os princípios retirados deste acórdão estão na base do Regulamento (CEE) n.º 4087/88, da Comissão. Basicamente, o entendimento que prevaleceu, quanto à validade dos contratos de franquia, perante as leis de concorrência, é o seguinte: Apenas perante o contexto económico, contrato a contrato e cláusula a cláusula, será possível, perante as leis de concorrência, formular um juízo de licitude; São lícitas as cláusulas destinadas a evitar que o saber-fazer e a assistência, concedidas ao franqueado, venham a aproveitar a concorrentes; São lícitas as cláusulas que organizem o contrato e a fiscalização, de modo a preservar a identidade e a reputação da mara, da insígnia ou do nome do franqueador;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 São restritivas da concorrência as cláusulas que impliquem repartições de mercados ou prefixações de preços, salvo a verificação do artigo 101.º, n.º3 TL. Embora apuradas para a franquia, estas regras relevam para todos os contratos de distribuição. Posteriores intervenções do Conselhos parecem depor nesse sentido.
Aspetos práticos: a franquia coloca, desde logo, problemas de interpretação contratual. Esta deve reconstituir uma lógica empresarial, em termos de funcionalidade, de modo a apreender a lógica do grupo onde o franqueador pretendeu integrar-se. Pode, no grupo, haver mesmo uma coordenada societária, o que logo justificaria uma interpretação de tipo objetivo. A sua natureza mista permite fazer apelo aos mais diversos contratos: todavia, deverá prevalecer o centro de gravidade dado, pelas partes, ao negócio. Estão sempre envolvidos deveres de lealdade, que se manifestam por uma defesa do espírito de grupo. No período pré-contratual, é muito importante que o candidato a franqueado seja claramente informado das implicações da sua adesão. A culpa in contrahendo tem um papel significativo, neste domínio. Também os vetores relativos à tutela dos consumidores devem estar presentes: as cláusulas da franquia não os podem comprometer. As regras sobre indemnização de clientela, quando cesse o contrato, são aplicáveis: na base da analogia com a agência e na medida em que ela exista. Na franquia sucede, muitas veze, que a clientela é angariada pelo franqueador: dado o peso da sua marca e da sua publicidade. O franqueado pouco receberá, por isso. Mas quando o contrato seja ilicitamente interrompido pelo franqueador, todos os danos ilícitos devem ser indemnizados: investimentos perdidos, maiores despesas e danos morais.
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Secção VI – Os contratos bancários 66.º - Contrato bancários
Características gerais: o Código Comercial dedica o título IX, do seu Livro II, às operações de banco. No seu artigo 362.º, dispõe: «São comerciais todas as operações de bancos tendentes a realizar lucros sobre numerário, fundos públicos ou títulos negociáveis, e em especial as de câmbio, os arbítrios, empréstimos, descontos, cobranças, aberturas de créditos, emissão e circulação de notas ou títulos fiduciários pagáveis à vista e ao portador». Perante esta apresentação e tendo em conta os vetores gerais do Código, podemos considerar contratos bancários os celebrados pelas instituições de crédito ou banqueiros, o exercício da sua profissão. P artigo 363.º remete para legislação especial. O artigo 4.º, n.º1 RGIC70, enumera as seguintes operações bancárias: «1. Os bancos podem efetuar as operações seguintes e prestar os serviços de investimento a que se refere o artigo 199.º-A não abrangidos por aquelas operações: «a) Receção de depósitos ou outros fundos reembolsáveis; «b) Operações de crédito, incluindo concessão de garantias e outros compromissos, locação financeira e factoring; «c) Operações de pagamento; «d) Emissão e gestão de meios de pagamento, tais como cartões de crédito, cheques de viagem e cartas de crédito; «e) Transações, por conta própria ou da clientela, sobre instrumentos do mercado monetário e cambial, instrumentos financeiros a prazo e opções e operações sobre divisas ou sobre taxas de juro e valores mobiliários; «f) Participação em emissões e colocações de carteiras de valores mobiliário e prestação de serviços correlativos; «g) Atuação nos mercados interbancários; «h) Consultoria, guarda, administração e gestão de carteiras de valores mobiliários; «i) Gestão e consultoria em gestão de outros patrimónios;
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Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, 31 dezembro, diversas vezes alterado, designadamente pelo Decreto-Lei n.º 201/2002, 26 setembro, que republicou em anexo a sua versão consolidada e, por último, pelo Decreto-Lei .º 119/2011, de 26 dezembro.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 «j) Consultoria das empresas em matéria de estrutura do capital, de estratégia empresarial e de questões conexas, bem como consultoria e serviços no domínio da fusão e compra de empresas; «l) Operações sobre pedras e metais preciosos; «m) Tomada de participações no capital de sociedades; «n) Comercialização de contratos de seguro; «o)Prestação de informações comerciais; «p) aluguer de cofres e guarda de valores; «q) Locação de bens móveis, nos termos permitidos às sociedades de locação financeira; «r) Prestação de serviços de investimento a que se refere o artigo 199.º-A, não abrangidos pelas alíneas anteriores; «s) Outras operações análogas e que a lei lhes não proíba». As referidas operações estão reservadas a banqueiros: a primeira sempre, as restantes quando exercidas a título profissional. Trata-se da regra de exclusividade, expressa no artigo 8.º RGIC. Os contratos bancários podem ser caracterizados como contratos comerciais, a praticar por banqueiros no exercício da sua profissão e que traduzem, em termos materiais, o manuseio do dinheiro e as diversas operações com ele relacionadas. Enquanto contratos comerciais, eles seguem boa parte dos princípios acima enumerados. Têm, todavia, algumas especificidades ditadas pelo seu objeto e pela sua inserção institucional.
Enumeração e remissão: o citado artigo 362.º CCom faz uma enumeração de contratos bancários. Hoje, a lista está alterada: houve figuras que caíram em desuso, enquanto outras vieram à luz, ditadas pela evolução da economia e da técnica. De entre as várias enumerações possíveis, vamos reter a seguinte: Abertura de conta; O depósito bancário; A convenção de cheque; O giro bancário; Moeda estrangeira e câmbios; Emissão de cartão bancário; Mútuo bancário; Contratos especiais de crédito; Locação financeira (leasing); Cessão financeira (factoring);
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Penhor bancários; Garantias financeiras; Garantias bancárias; Cartas de conforto. Diversos contratos comerciais podem, comodamente, ser tratados a propósito das figuras bancárias acima referidas.
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Capítulo III – A Ciência Jurídico Bancária71 12.º - Características do Direito Bancário
Direito Privado: o Direito Bancário, enquanto subsistema coerente, assente nas vertentes institucional e vocacionado para reger o dinheiro, é Direito Privado. Recordamos que o qualificativo público ou privado não cabe a normas isoladamente: antes se reporta a sistemas ou subsistemas estáveis. Isto dito, o Direito privado distingue-se do público: Por razões cientifico-culturais: radica no Direito Romano e assenta numa evolução que permitiu a preparação de leis científicas: as codificações; Por razoes teóricas: ocupa-se de relações interpessoais, acompanhando o sentir geral da civilização; Por razões práticas: remete os seus cultores para áreas académicas, literárias, jurisprudenciais e profissionais bem conhecidas; Por razões significativo-ideológicas: protege as esferas dos particulares, previne intromissões arbitrárias e faculta o livre desenvolvimento, pessoal e patrimonial, das energias criativas de cada um. O Direito bancário material é, clara e pacificamente, Direito privado. Ele assenta em contratos comerciais. Os intervenientes na relação bancária apresentam-se sem ius imperii e em pé de igualdade formal. Finalmente: um Direito Bancário privado é o corolário – ou o pressuposto – de uma sociedade de tipo liberal, assente na propriedade privada e na livre contratação. O Direito Bancário institucional nasceu como Direito Público. Seguiu-se uma fase de liberalização. Crises sucessivas levaram a intervenções do Estado no setor bancário e, depois, à montagem de um completo aparelho regulador. O sistema financeiro nacional postula uma autoridade de supervisão e de fiscalização, dotada de poderes públicos e submetida a uma lógica do Direito Administrativo. Todavia, o tecido bancário repousa em instituições que, por lei, devem assumir o tipo de sociedade anónima. Além disso, verifica-se que o nível institucional bancário compreende diversos deveres genéricos estruturalmente privados. Em suma: mesmo no plano institucional, o Direito Bancário apresenta uma larga estruturação privada. O Direito Privado é subsidiariamente aplicável nas áreas públicas. No campo bancário, esse fenómeno surge mais flagrante, podendo falar-se numa aplicação direta. Num País de Direito Continental, como o nosso, a generalidade dos conceitos é elaborada pelo Direito Civil. No campo bancário, vamos mais longe: a maioria das regras, dos esquemas e das soluções advém do Código Civil ou de leis materialmente civis e comerciais. A natureza privada do Direito Bancário, quando tomado como um todo, impõe-se, de modo pacífico.
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Cordeiro, António Menezes, Direito Bancário, Almedina editores, 2012. (páginas 182 a 443)
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Direito funcional específico: o Direito Bancário não é, propriamente, um Direito valorativamente neutro. Acompanha a lógica do dinheiro e da sua circulação. Os seus vetores e as suas soluções empenham-se na salvaguarda do valor da moeda e dos créditos a ela relativos, bem como no fenómeno do lucro, a ela associado. Esta realidade torna-se de difícil conceitualização. Alguns autores exprimem-na sublinhando a sua natureza funcional, centrada no dinheiro. Outros sublinhando tratar-se de Direito especial da economia. Ficar-nos-emos, por isso, pela ideia de um Direito funcional específico. Precisemos a noção. O Direito comum – portanto: civil – tem os seus valores: os valores básicos de qualquer sociedade humana civilizada. Mas justamente por se tratar de valores básicos, óbvios e omnipresentes, o Direito Comum limita-se a procurar o melhor regime para os servir. Nesse pano de fundo que todos respeitam, o Direito comum apresenta-se neutro. Chamamos funcionalização de um setor ao fenómeno que ocorre quando, para além do pano de fundo civil, ocorram valores setoriais prosseguidos pelo ramo normativo visado. A funcionalização do Direito Bancário institucional parece evidente. Recordemos alguns pontos: Segundo o artigo 282.º, n.º2 TFUE retomado pelo artigo 2.º do Protocolo BCE «o objetivo primordial do SEBC é a manutenção da estabilidade dos preços»; Esses mesmos preceitos atribuem ao SBEC apoiar «as políticas económicas gerais na Comunidade tendo em vista contribuir para a realização dos objetivos da Comunidade, tal como se encontram definidos no artigo 2.º»; Prosseguem, ainda: «o SBEC atuará de acordo com o princípio de uma economia de mercado e de livre concorrência, incentivando a repartição eficaz dos recursos»; O artigo 101.º CRP determina que o sistema financeiro seja «estruturado por lei, de modo a garantir a formação, a captação e a segurança das poupanças, bem como a aplicação dos meios financeiros necessários ao desenvolvimento económico e social», O artigo 3.º da Lei Orgânica do Banco de Portugal (Decreto-Lei n.º 118/2001, 17 abril) determina que o Banco de Portugal (BP) faça parte integrante do SEBC, prosseguindo os objetivos e participando no desempenho das atribuições cometidas a esse Sistema; O artigo 12.º, alínea c) LOBP comete ao BP «Velar pela estabilidade do sistema financeiro nacional»; O artigo 20.º, n.º1, alínea e) RGIC permite ao BP recusar a autorização de constituição de uma instituição de crédito quando esta «não dispuser de meios técnicos e de recursos financeiros para tipo e volume de operações que pretende realizar». Estamos perante todo um sistema que, a si próprio, vê atribuído um conjunto de funções, sintetizáveis no seguinte: assegurar um sistema financeiro estável, em economia de mercado. Explicam os economistas que uma economia de mercado só é estável num ambiente de crescimento razoável: da ordem dos 2%, pelo menos. O Direito Bancário deverá, no seu todo, prosseguir também este objetivo de crescimento. O Direito Bancário material, até pela ausência de codificações específicas, é menos claro. Todavia, os regimes legais de contratos bancários
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 têm um especial cuidado em fortalecer o crédito, assegurando o cumprimento das obrigações. No fundo, poderemos dizer que o Direito Bancário existe por representar, no campo do crédito e do dinheiro, um plus em relação ao Direito Comum. Esta envolvência do Direito Bancário traduz a funcionalização. Resta acrescentar que a dimensão funcional do Direito Bancário tem consequências dogmáticas. Desde logo, na própria interpretação das normas: a doutrina dá primazia ao elemento teleológico da interpretação. Tal primazia traduz, aqui, à prevalência das funções subjacentes. Pode-se mesmo, verificadas determinadas conjunturas, fazer um apelo à interpretação funcional: em certas circunstâncias, as operações tendentes a, da fonte, extrair normas passam pelo crivo da operacionalidade funcional do resultado. Para além da interpretação: o Direito Bancário, na sua concatenação interna, na integração das suas lacunas e na indicação de novas soluções, procuraria aperfeiçoar a função (não neutra nem comum) que lhe foi cometida.
Direito “técnico”: o Direito Bancário pode ser apresentado como Direito técnico. A expressão tem alguma ambiguidade; poderia exprimir uma de três ideias: A de que o estudo e a aplicação do Direito Bancário implicariam conhecimentos de técnica bancária; A de que o Direito Bancário exige um estudo especializado: conhecimentos de ordem geral, nos campos civil, comercial e administrativo, não seriam suficientes; A de que estariam em jogo conhecimentos de mercados, de seguros, de investimentos e de comércio internacional, num corte específico. Estas ideias tomam corpo através de designações globais como Direito de crédito, Direito financeiro ou Direito da regulação e da intermediação financeira. Todas elas são redutoras, perante a realidade jurídica em causa. Nos nossos dias, uma aplicação sábia implica o conhecimento da realidade subjacente. Mas este não se confunde com a técnica ou a gestão bancárias: também nesse nível temos de admitir especializações. Isto dito: parece insofismável que o Direito Bancário constitui, hoje, uma disciplina que deve ser estudada. Dispõe de uma literatura própria, de periódicos especializados, de circuitos específicos e, até de uma certa cultura: o seu isolamento bloquearia o progresso. Mas não é intuitivo: exige trabalho específico e dedicado. Sensível é, em especial, o facto de, no domínio bancário, conceitos aparentemente comuns e locuções habitualmente usadas assumirem sentidos específicos. O Direito postula, sempre, uma aprendizagem.
Direito fragmentário e dependência científica: no Direito Bancário, encontramos alguns (poucos) institutos que dispõem, no seu nível, de regimes bastantes completos. No plano institucional, assim sucede com o Banco de Portugal; no material, serão os casos da abertura de conta, do desconto ou de outras garantias. Em regra, porém, isso não sucede: o Direito Bancário recorre a institutos preexistentes civis ou comerciais, cuja regulação acolhe quase na íntegra, introduzindo, depois, alguns traços especificamente bancários. O mútuo bancário é, no fundamental, um mútuo civil: apenas haverá que, neste, introduzir algumas adaptações. Podemos fazer idêntica afirmação no tocante à locação financeira, ao penhor bancário ou à responsabilidade bancária, como exemplo. Nestas condições, uma exposição pura do Direito bancário quedaria incompreensível: ela remeteria o essencial dos regimes para o Direito Civil. Essa afirmação mantem validade mesmo quando se conclua que os institutos comuns, uma vez
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 enxertados com algumas regras bancárias, adotam, na sua globalidade, uma feição diferente da original: uma feição bancária. Retemos, pois: o Direito Bancário não se preocupa em regular, de modo exaustivo, os diversos aspetos que lhe respeitam. Antes parte da aplicabilidade do tecido comum, afeiçoando-o, na medida necessária. Daí a afirmação da fragmentariedade. A natureza fragmentária vem reforçar a já referida dependência científica do Direito Bancário.
14.º - Interpretação e aplicação do Direito Bancário 323 A realização do Direito como decisão unitária: na interpretação e na aplicação do Direito Bancário, há que recorrer às regras gerais, tal como apuradas, na atualidade, pelo Direito Civil. Em traços muito gerais, podemos considerar que os cânones de interpretação, sempre ativos, correspondem aos fixados por Savigny, nos princípios do século XIX. Aí aparecem as categorias clássicas da letra e do espírito da lei e da vontade da lei e do legislador. Essas categorias, complementadas por Ferrara e por Manuel de Andrade, surgem nos artigos 9.º e 10.º CC, com aplicação geral em todo o Direito Português. Todavia, a Ciência do Direito tem vindo a complementar os elementos aí consignados, com diversas considerações que, hoje, se afiguram indiscutíveis. Por razões analíticas têm-se distinguido, no processo global de realização do Direito, operações diferenciadas e, designadamente: a interpretação e a aplicação. Podemos ir mais longe: temos, como operações próprias, a localização das fontes, a sua interpretação, a sua integração (no caso de haver lacuna), a localização da matéria de facto relevante, a sua qualificação e, no termo, a aplicação. Hoje sabe-se, porém, que todas estas operações são realizadas em conjunto, pelo intérprete aplicador. Quando determina os factos relevantes, o intérprete aplicador conhece, em esboço, as soluções a procura de uma fonte e acompanhada da qualificação dos factos a solucionar e assim por diante. O processo de realização do Direito tem, pois, natureza unitária. Além disso, ele prolonga-se, a montante da localização da fonte, pelo pré entendimento do problema e, a jusante, pela ponderação das consequências da decisão. O processo de realização do Direito, perante uma lógica implacável de separação de poderes, deveria surgir como algo automático. Dos factos e da lei brotaria, de modo fatal, a solução adequada. O intérprete aplicador teria uma mera função cognitiva. No entanto, confrontados com fenómenos como o das lacunas, o dos conceitos indeterminados, o das contradições de princípios e o das normas disfuncionais por contrariarem a essência do sistema, os operadores aperceberam-se de que a solução não surge automática: antes exige uma escolha humana e, máxime, do juiz. Não se trata de uma escolha arbitrária mas, antes, de uma opção baseada em múltiplos fatores normativos e, designadamente, na interpretação das fontes aplicáveis. AA função de realizar o direito é, assim, volitivo-cognitiva. No conjunto de elementos que o intérprete aplicador deve ponderar, para realizar consequentemente o Direito, no caso concreto, avultam, com os alcances de seguida explanados: O elementos sistemático; O elemento teleológico. Recorda-nos que, num caso a resolver, não se aplica uma norma: antes, em conjunto, opera sempre toda a Ordem Jurídica. Subjacentes, temos importantes exigências de harmonia e de equilíbrio, essenciais para qualquer aplicação jurídico-cientifica. Corresponde à
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 substancialização do Direito. Os comandos não valem por si: apenas como instrumentos para alcançar uma ordenação de valores e de interesses pretendida pelo ordenamento. As regras jurídicas devem ser aplicadas para a efetiva consecução do escopo que as anime. Determinar esse escopo e apurar as vias mais conseguidas de o alcançar constituem as tarefas essenciais de qualquer realização adequada do Direito.
Interpretação funciona: o Direito Bancário assume, numa das suas dimensões, uma natureza funcional específica: para além do Direito Comum, ele está envolvido na problemática do crédito e do dinheiro, cabendo-lhe salvaguardar os valores subjacentes. Esta dimensão poderá ter consequências interpretativas: as fontes bancárias deveriam ser interpretadas num sentido conducente à realização ótima da sua função. Assim entendida, a interpretação funcional do Direito Bancário acabaria por se reconduzir à interpretação comum. Afinal, se na realização das regras bancárias se apura que, quer pela inserção sistemática, quer pela sua específica teleológica, elas visem tutelar o crédito ou os valores inerentes ao dinheiro, basta prosseguir: as regras habituais permitiriam fechar o círculo. O Direito Bancário apresenta, todavia, áreas diferenciados. É certo que, de um modo geral, os institutos bancários visam facilitar o crédito e as inerentes garantias. Todavia, em áreas como as da contratação, está em causa a tutela do consumidor de produtos financeiros. Nos contratos duradouros com as pessoas, emergem claros valores de personalidade, cuja tutela não poderá deixar alheio um Direito Bancário Moderno. Os próprios planos prudenciais têm, nas suas preocupações, a da salvaguarda da imagem dos banqueiros junto da opinião pública: aspeto importante, nas nossas sociedades abertas. Finalmente: detentor do poder conferido pelo dinheiro, o banqueiro, servido por funcionários zelosos que vejam, apenas, o imediato, pode ser levado a abusos, conseguindo, dos seus clientes, contratos desequilibrados ou desnecessariamente onerosos. Também aqui o Direito intervém. Algumas das referidas áreas têm regras especiais de interpretação ou, pelo menos: suscitam, no seu âmbito, uma discussão específica sobre o tema, discussão essa que, depois, poderá ter efeitos interpretativos. A todas elas acresce, ainda, o Direito Bancário Europeu, com bitolas próprias de interpretação e, em especial: a interpretação conforme com as diretrizes. Cabe ao intérprete aplicador posicionar, dentro do subsistema jurídico-bancário, o problema que tenha em mãos e, com recurso a uma ideia de interpretação funcional ou equivalente, prosseguir a valoração legislativa. Para além dos fins das normas revelam, neste ponto, os papéis das áreas mais imediatas onde elas se integrem: crédito, consume, circuitos económicos, direitos fundamentais ou diretrizes europeias, como exemplos.
Os tópicos do investimento, da transparência, do consumo e dos direitos de personalidade: para além dos aspetos funcionais abstratos, pergunta-se se, na interpretaçãoaplicação do Direito Bancário, não haverá que privilegiar determinados tópicos interpretativos e, em especial: selecionar, de entre as vias interpretativas possíveis, aquela que melhor assegure a defesa concreta de certos valores. Em aberto ficam, por exemplo: um favor creditoris ou favor argentarii, quando se entendesse que o Direito Bancário visava tutelar o banqueiro ou o crédito ou um favor debitoris ou favor consummatoris, na hipótese de antes prevalecer o cliente do banqueiro. Nesta busca de favores inerentes ao Direito Bancário houve, mesmo, uma evolução interessante. Como primeiro tópico, temos o da tutela do investimento ou, mais precisamente, dos depositantes, subjacente, aliás, ao artigo 101.º CRP. De certo modo, ele está na origem do Direito Bancário institucional e da supervisão prudencial. Assim:
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 O artigo 2.º, n.º1 RGIC define como instituição de crédito «as empresas cuja atividade consiste em receber do público depósitos ou outros fundos reembolsáveis, a fim de os aplicarem por conta própria mediante a concessão de crédito»; Em princípio, apenas os bancos podem receber depósitos do público (artigo 4.º, n.º1, alínea a), 4.º, n.º2 e 5.º RGIC; A receção de depósitos ou outros fundos reembolsáveis, sem a necessária autorização, é crime – artigo 200.º RGIC. Este é o ponto mais delicado do sistema financeiro. Para acautelar os depósitos do público, os banqueiros devem observar certas rationes fixadas prudencialmente. Em suma: toda a confiança do púbico no sistema financeiro depende da tutela dos depósitos. Podemos, daqui, extrapolar para uma tutela dos investidores. Este princípio da tutela de investidor, a impor-se, poderia, mesmo, originar deveres específicos de informação e de aconselhamento, por parte do banqueiro. Numa linha mais consumista, temos o tópico da transparência. Desenvolvido pelo BGH alemão, na base da boa fé vigente no campo das cláusulas contratuais gerais, ele tomou base, pelo Direito Português, nos artigos 5.º, n.º1 e 6.º, n.º1 LCCG: o banqueiro deveria comunicar todas as cláusulas ao seu cliente-aderente, assegurando-se de que ele as entendeu. O tópico da transparência é reforçado por regras específicas, que transcendem a banca, aplicando-se, porém, a banqueiros; assim: Artigo 77.º RGIC: deveres de informação a cargo dos banqueiros; Artigos 18.º a 23.º LGS: deveres de informação a cargo das seguradoras; Artigos 7.º a 12.º-E CVM: deveres de informação no domínio mobiliário. No campo geral da interpretação das fontes, este tópico traduzir-se-ia na validação das soluções mais transparentes, isto é: mais facilmente cognoscíveis pelos particulares que acedessem a produtos financeiros. Chegados a este ponto, podemos prosseguir explicitando a posição do utente do sistema financeiro, como um consumidor dos produtos aí disponibilizados. A defesa do consumidor resulta do artigo 60.º CRP, de onde emergem proposições especializadas. Ela dá lugar: A vetores programáticos, orientando o legislador ordinário; A vetores sistemáticos, permitindo agrupar e interpretar em conjunto diversas normas dispersas; A vetores regulativos, diretamente aplicáveis. No campo da banca, há inúmeras regras de tutela. Finalmente, uma atenção especial é dada, pelo moderno Direito Bancário, aos direitos de personalidade e, especialmente, àqueles que, consignados na Constituição, surjam, também, como direitos fundamentais. As especiais valorações que elas implicam infletiriam, no Direito Bancário, os institutos que lhes prestassem o seu tributo. Temos, nessa categoria e em lugar de relevo, o segredo bancário. Os tópicos ora referidos constituem elementos importantes do moderno Direito Bancário. Na realização das fontes bancárias, o intérprete aplicador dar-lhes-á, como seria de esperar, um lugar condigno. Todavia, não podemos, daqui, extrair especiais regras de interpretação, diversas das
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 disponibilizadas pelo Direito Civil para todo o ordenamento. Como especialidade bancária ficará, assim, uma particular sensibilidade aos valores ligados ao dinheiro, na sua dimensão social.
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Capítulo IV – As Fontes do Direito Bancário
15.º - Fontes internas
A Constituição e a Lei Orgânica do Banco de Portugal: na própria Constituição encontramos regras básicas de Direito Bancário, particularmente atinentes ao sistema financeiro. Assim dispõem os artigos 101.º e 102.º CRP. Temos a base do Direito financeiro institucional, virado para a captação e para a segurança dos depósitos dos particulares e para a sua aplicação produtiva. O necessário desempenho supervisor é, como se impunha, entregue pela Constituição ao Banco de Portugal. Curiosamente, a Constituição de 1976 não consagra o princípio do respeito pelos contratos. Provavelmente: trata-se de uma regra de tal modo óbvia, que nunca nenhuma sociedade humana a pôs em causa. De todo o modo, sempre seria possível retirá-la de princípios como o do respeito pela propriedade privada – artigo 62.º, n.º1 CRP – e o da liberdade de iniciativa e de organização empresarial – artigo 80.º, alínea c) CRP. A matéria bancário, de natureza patrimonial e assente em vínculos contratuais, encontra, nestes princípios, o seu arrimo constitucional. A Constituição contém, ainda, outras regras importantes para o setor bancário, como as que consagram o direito à reserva da intimidade da vida privada (artigo 26.º, n.º1 CRP), base do segredo bancário, o direito de acesso aos tribunais (artigo 20.º, n.º1 CRP) e os princípios fundamentais da Administração Pública: legalidade, igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e boa fé (artigo 266.º, n.º2 CRP). No atual momento histórico, as regras constitucionais portuguesas prevalecem, no território nacional, sobre as leis comunitárias. A nível institucional, deparamo-nos , com uma importante fonte de Direito Bancário: a Lei Orgânica do Banco de Portugal (LO). Para além da própria orgânica do nosso Banco Central, a LO fixa importantes aspetos da supervisão bancária. Materialmente, assume uma clara função diretiva, no tocante às demais fontes bancárias. Podemos, a essa luz, considera-la como uma lei reforçada, a acrescentar à lista habitual desse tipo de factos normativos.
O Código Comercial e a legislação extravagante: o Direito Bancário material não dispõe de uma fonte unitária, mesmo incompleta: o Direito de atividade bancária, designadamente no tocante às relações entre o banqueiro e o seu cliente, deve ser reconstruído com recurso a uma multiplicidade de fontes. Por razões de prevalência histórico-cultural, cumpre referir, como primeira fonte, o Código Comercial de 1888. Aí, incluiu-se um título IV, das operações de banco, com quatro artigos cujas correspondentes normas: Artigo 362.º: considera comerciais todas as operações de bancos tendente a realizar lucros sobre numerário, fundos públicos ou títulos negociáveis e refere, em especial, certas operações; Artigo 363.º: remete as operações de banco para as «disposições especiais relativas aos contratos que representarem, ou a que a final se resolverem»; Artigo 364.º: remete o regime dos bancos emissores para legislação especial;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Artigo 365.º: presume a falência culposa por parte do banqueiro que cesse pagamentos. O Código Comercial mantém-se, apesar da sua concisão, como o texto fundamental do Direito Bancário material. Permite considera-lo, em bloco, como Direito Comercial e, estruturalmente, como um Direito de contratos. O Direito institucional é remetido para legislação especial. O Código Comercial incluíra ainda, no seu Título VI, precisamente intitulado das letras, livranças e cheques, a matéria atinente aos títulos de crédito que, nalguns autores, é tratada em Direito Bancário. Dispõem, hoje, as leis uniformes, mantendo-se a disciplina do Código Comercial apenas naquilo em que não as contrarie. Ao lado do Código Comercial tem vindo a acumular-se legislação extravagante referente a atos bancários.
Regime Geral das Instituições de Crédito: como diploma nuclear, particularmente no campo institucional, surge o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, ou RGIC, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, 31 dezembro. Ele veio codificar, entre nós, boa parte do Direito Bancário institucional, revogando vasta legislação anterior. O RGIC conta, neste momento, com trinta alterações. Ao RGIC há que acrescentar diversa legislação complementar, quanto a instituições de crédito e no tocante a sociedades financeiras.
Os usos bancários; as cláusulas contratuais gerais: no campo das fontes internas do Direito Bancário, ainda que com força meramente mediata, cabe um papel importante aos usos vigentes no setor. Historicamente, o Direito Bancário foi emergindo das práticas dos prestamistas e dos cambistas. Além das leis, faltava o próprio apoio do Direito Comum. O movimento codificador do século XIX avançou pouco, nos campos da banca. Nos diversos países, o Direito Bancário material é apontado como carecendo de base legal codificada. Mesmo em Portugal, terra campeã de leis bancárias, falta um diploma extenso sobre Direito Bancário Material. Nestas condições, os atos bancários assentam na autonomia privada. Não é contudo imaginável que, aquando da prática de cada ato bancário, se proceda a uma atividade criativa: as partes em regra, mais não fazem que retomar caminhos já antes repetidamente experimentados. Resulta, daqui, uma prática reiterada, isto é, um uso. Os usos bancários podem ser juridificados por uma de três vias: pela autonomia privada, pela lei ou pela presença de um costume. A autonomia privada juridifica os usos remetendo, diretamente, para eles. Trata-se da via mais simples. Muitas vezes, ela ocorre através da codificação, em cláusulas contratuais gerais, de práticas bancárias consagradas. Mas há outras possibilidades: as cláusulas contratuais existentes, embora parcelares e organizadas por cada banco, remetem por vezes, expressamente, para os usos enquanto, nas relações interbancárias, os operadores, perfeitos conhecedores das práticas seguidas, apelam – mesmo que implicitamente – para elas, quando contratam. Os usos não valem enquanto tais; operam mercê da positividade jurídica que lhes seja insuflada pela vontade das partes. Materialmente, são proposições contratuais, numa conclusão que deve ser verificada caso a caso. Os usos podem valer como fontes (mediatas) do Direito quando a lei remeta para eles: recorde-se o teor do artigo 3.º, n.º1 CC. Teremos, no Direito Bancário, uma remissão legal para os usos? A resposta é parcialmente positiva, em termos que requerem, contudo, alguma explicação. Segundo o artigo 407.º CCom: «Os depósitos feitos em bancos ou sociedades reger-se-ão pelos respetivos estatutos em tudo quanto não se achar prevenido neste capítulo e mais disposições legais aplicáveis».
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A referência a estatutos reporta-se, na realidade, aos usos. Estatutos corresponde à expressão usada no artigo 31.º Código Comercial Espanhol, fonte do citado artigo 407.º. No preceito espanhol, eles designam os usos. Como estatutos, em sentido português, nem fariam sentido: o banqueiro individual não tem estatutos, enquanto os das sociedades não se ocupam dos depósitos, como é evidente. Temos, pois, um preceito que, no tocante ao depósito bancário, remete para os usos. O depósito bancário surge, muitas vezes, integrado em séries negociais complexas, que incluem, como exemplos, a abertura de conta, a convenção de cheque, a concessão de determinados créditos e, ainda, a prestação de certos serviços. Podemos admitir a vigência, ex lege, de usos que abarquem todo esse negócio complexo, por interpretação extensiva e atualista do artigo 407.º CCom. Caso a caso se procederá à sindicância ex bona fide. Os nossos tribunais acolhem, por vezes e sem sobressalto, usos bancários. Finalmente, os usos de teor imperativo adquirem positividade jurídica: temos Direito consuetudinário. Noutros ordenamentos, a referência ao Direito Consuetudinário, no campo bancário, é relativamente frequente. Por exemplo, no Direito alemão. Entre nós, as remissões para o costume não obtêm existo jurisdicional. A facilidade com que o nosso legislador intervém, em profundidade, nos diversos quadrantes, dificulta a formação dos costumes. Além disso, a permanente necessidade de procurar, na lei, um apoio para o costume frustra a eficácia das normas consuetudinárias, pondo em crise a própria juridicidade autónoma. Temos, pois, dificuldade em, no Direito Português, localizar costumes bancários. A situação é amenizada pelo peso crescente que a jurisprudência tem vindo a assumir nos diversos institutos, principalmente nos que advêm do Código Comercial, datado de há quase 130 anos. Nos termos gerais do artigo 348.º CC, por interpretação extensiva, o teor dos usos deve ser comprovado por quem os invoque. Na experiência francesa, por exemplo, a Association Française des Banques pode dar o seu parecer sobre a existência de determinado uso bancário. A Associação Portuguesa de Bancos, nos termos do artigo 3.º, alínea b), h) e i) dos seus Estatutos, poderá prestar idêntico serviço. Como fone (mediata) do Direito Bancário, de peso predominante, no campo material, surgem as cláusulas contratuais gerais. Referimos já que elas acolhem muitos dos usos bancários, dandolhes a competente juridicidade. Além disso, elas compilam o essencial de contratos bancários basilares, como a abertura de conta, que não tem qualquer base legal.
Códigos de conduta e fontes privadas: o Direito Bancário tem, ainda, uma fonte relevante, designadamente em termos práticos: trata-se de regras estabelecidas, por aviso, pelo BP, nos termos do artigo 17.º LO e do artigo 77.º-B, n.º1 RGIC e a que genericamente a epígrafe desse preceito chama «códigos de conduta». As regras gerais e abstratas aprovadas pelo BP são leis materiais cuja positividade jurídica deriva das normas que instituem o poer regulamentar do BP. Não podem contrariar as leis fixadas por órgãos de soberania, sob pena de ilegalidade; tãopouco se aplicam, diretamente, a entidades que não estejam submetidas à supervisão do BP. Finalmente: não devem transcender o âmbito dos poderes de supervisão. De todo o modo, a existência deste poder regulador do BP, a incluir na sua tarefa geral de supervisão faz, do setor bancário, uma área de atividade especialmente regulada. Pergunta-se se as regras aprovadas pelo BP – máxime, sob a forma de circular – podem ser constitutivas de direito para os particulares. A resposta é negativa: não é possível constituir direitos privados para uns, sem onerar outros. Ora neste último campo, temos de exigir leis formais, dotadas de cobertura constitucional. Assim, a violação de tais regras, aprovadas pelo BP, apenas poderia originar a responsabilidade disciplinar da entidade prevaricadora. Porém, a violação das regras aprovadas pelo BP, designadamente por parte de um banqueiro, quando provoque danos num particular,
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 dá azo a um dever de indemnizar, por via da 2.ª parte do artigo 483.º, n.º1 CC. A violação de regras pelo BP é a violação das normas que, ao BP, conferem os poderes por ele exercidos. Ora, tais regras visam a proteção de interesses alheios. São, pois, clássicas normas de proteção, cuja violação induz responsabilidade. O artigo 77.º-B, n.º1 RGIC prevê, como referido, a elaboração de códigos de conduta pelas instituições de crédito ou pelas associações representativas das instituições de crédito. O BP pode emitir instruções sobre os códigos de conduta referidos (artigo 77.º-B, n.º2 RGIC). No âmbito estritamente associativo, compete às mencionadas associações aprovar regras de conduta para os seus membros: trata-se de fontes privadas, cuja juridicidade deriva da livre adesão aos estatutos que as legitimem. Neste domínio, as fontes privadas podem ir mais longe do que determinariam os poderes de supervisão do BP. Mas podem, também, contrariar regras básicas do RGIC ou desenvolvimentos prudenciais devidamente aprovados pelo BP. As instruções e normas orientadoras, relativas a códigos de conduta e a emitir pelo Banco de Portugal, visam, precisamente, prevenir excessos desse tipo. Só que, quando os códigos de conduta se limitam a acolher instruções ou orientações do BP, temos, materialmente, regras de tipo público: aplica-se o regime acima apontado. Os códigos de conduta, tenham natureza pública ou privada, devem ser divulgados «junto dos clientes», designadamente através de página na Internet (artigo 77.º-B, n.º1 RGIC). A figura dos códigos de conduta estava ainda prevista no revogado CódMVM. Tais códigos eram elaborados pelos organismos de classe representativos e submetidos à aprovação da CMVM. Pelas matérias que regem, os códigos de conduta previstos no CódMVM têm relevância bancária. O atual CVM, respondendo à crítica de que o esquema de aprovação dos códigos de conduta por um organismo estadual lhes retirava a sua particular função autodisciplinadora, modificou o sistema. Segundo o artigo 315.º CVM, versão inicial, «Os códigos de conduta que venham a ser aprovados pelas associações profissionais de intermediários financeiros são registados na CMVM». Mais tarde o artigo 377.º, n.º2 limitou-se a exigir que os códigos fossem comunicados à CMVM. Tal como sucedeu com a Banca, há um distanciamento em relação a essa matéria, no âmbito da ideia de desregulação que campeou até 2008. Também o artigo 372.º CVM refere esa figura, acrescentando as entidades gestoras dos mercados, dos sistemas de liquidação e dos sistemas centralizados de valores mobiliários, esclarecendo que o registo na CMVM visa «o controlo de legalidade e de respeito pelos regulamentos». Uma lógica autonomista levaria, contudo, ao controlo jurisdicional.
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Capítulo V – Os Princípios Bancários Gerais 17.º - Generalidades; a diferenciação conceitual
Os princípios no Direito: os princípios correspondem a proposições que resultam de valorações operadas por diversas normas. Distinguem-se destas por não assentarem, logicamente, numa previsão e numa estatuição. Valem por si, independentemente de qualquer concretização. E dado o seu papel, eles inscrevem-se no núcleo duro atuante do sistema – subsistema – em jogo. Os princípios – ao contrário das normas – podem entrar em conflito entre si: caso a caso ver-se-á qual deve prevalecer. Os princípios têm, ainda, diversos papéis. A saber: Pape ordenador; Papel programático; Papel regulativo. Os princípios permitem ordenar problemas, soluções e normas. Têm, assim, um papel no sistema externo ou sistema de exposição. Mas logo aí assumem uma relevância substantiva, uma vez que a ordenação que se obtenha não é inóqua para as soluções finais. Os princípios podem assumir um papel programático: constituem uma base sobre a qual o legislador poderá, depois, erguer novas normas. A nossa Constituição tem conhecidos níveis programáticos. Finalmente, os princípios podem ser chamados a solucionar diretamente casos concretos: seja concatenando normas, seja dando corpo a conceitos indeterminados, seja integrando lacunas. Os princípios resultam da elaboração científica; exigem toda uma tarefa alargada de estudo e de arrumação jurídico-cientifica, por vezes criadora. A elaboração de princípios constitui uma tarefa alargada do estudo de qualquer disciplina jurídica.
Princípios gerais e princípios bancários; papel e limites: no campo bancário, têm aplicação os princípios gerais do Direito privado (tutela da pessoa, autonomia privada, boa fé, responsabilidade civil e propriedade e sua transmissão) e do Direito Público, nas áreas onde este aflui (legalidade, igualdade, imparcialidade, proporcionalidade e boa fé). Além disso, têm ainda uma aplicação tendencial os chamados princípios dos atos comerciais (internacionalidade, simplicidade e rapidez, clareza jurídica, publicidade e tutela da confiança e onerosidade). Pergunta-se, agora, se para além disso, não será possível encontrar ou construir, no campo financeiro, princípios que tenham um conteúdo material essencialmente bancário. A resposta é positiva. As realidades do manuseio profissional do dinheiro têm exigências que transparecem em múltiplos passos dos regimes em jogo. Cabe ao interprete aplicador concretizá-los, nos diversos problemas. Será, depois, tarefa de investigação e de construção científicas proceder ao seu levantamento e organizar princípios. Trata-se de uma tarefa na qual irão jogar os aspetos quantitativos da repetição, em distintas ocasiões, de manifestações especificamente bancárias e os aspetos qualitativos da intensidade bancária que eles traduzam em ocasiões anteriores, manifestámo-nos pouco convictos sobre o papel dogmático dos princípios bancários. Revemos essa posição. Os princípios bancários têm uma efetiva consistência, aflorado em diversos institutos e, mais do que isso: na própria concretização, pelos operadores, das situações jurídicas
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 bancárias. Eles permitem identificas aspetos relevantes e explicar saídas que, na aparência, não teriam base jurídico-positiva. Dão, ainda, hipóteses sistematizadoras de conteúdo material, aos estudiosos do Direito Bancário. Finalmente: permitem, em múltiplas ocasiões, encontrar e justificar soluções concretas.
A diferenciação conceitual; o perigo da sobreposição linguística : antes de passarmos à construção dogmática dos princípios bancários e, mais longe, de encarar a própria exposição da matéria, cumpre apontar e situar o importante fenómeno da diferenciação conceitual. Na origem temos a constatação de que o Direito é uma realidade cultural, linguisticamente condicionada. O jurista não pensa em termos puros: antes avoca conceitos assentes em fórmulas vocabulares. Daí resulta que certos conceitos ocorram (ou não) consoante a disponibilidade linguística de lhes dar um corpo comunicável e, daí, suscetível de reflexão. Este fenómeno explicará a superioridade que as línguas analíticas e terminologicamente mais ricas (como a alemã) têm nos domínios da Filosofia, da Teoria Política e da Ciência do Direito ou a facilidade que as línguas elásticas e inovadoras (como o Inglês) assumem no campo da Economia e das Ciências Sociais aplicadas. No Direito Bancário diferenciações conceituais expressas em fórmulas linguísticas próprias. Assim, conceitos como a relação bancária complexa, o descoberto em conta, o giro bancário ou a carta de conforto não têm correspondência nas grandes disciplinas privadas. Noutros casos, assistimos à utilização de estrangeirismos que os juristas tentam assimilar, preconizando locuções equivalentes em vernáculo: leasing e locação financeira ou factoring e cessão financeira, como exemplos. Perante fórmulas conceituais tipicamente bancárias, haverá que ter um especial cuidado de definição precisa: o Direito Bancário, como disciplina moderna, não deve refugiar-se em fórmulas dúbias que escondam, sob um isoterismo de linguagem, a incapacidade jurídico-cientifica de apurar os conceitos de trabalho. A diferenciação conceitual acarreta um óbice: o da possível sobreposição linguística. Aparecendo, no Direito Bancário, figuras diferenciadas, o intérprete aplicador, na falta de designação adequada, recorre, muitas vezes, a conceitos habituais que,, com a nova realidade, tenham algum parentesco. A partir daí, é natural a tendência para lhe aplicar o regime comum, esquecendo-se estarmos perante uma realidade autónoma, que exigiria soluções próprias. No fundo, as ocorrências de diferenciação conceitual lembram que, no caso concreto, nunca se aplicam regras isoladas: todo o sistema é chamado a depor. Perante problemas de Direito Bancário, só depois de cuidadosa ponderação de vontades, de interesses e de valores se poderá fazer apelo às regras comuns. O facto de haver sobreposições linguísticas constitui um incentivo suplementar à atenção do especialista.
18.º - O princípio da especialidade
A simplicidade bancária: no campo privado, a ideia de simplicidade impôs-se, no Direito Comercial, por oposição a exigências de formalidades e de solenidades, requeridas pelo Direito Civil. No Código Comercial, a simplicidade daria corpo às regras seguintes: Liberdade de escrituração, salvas as limitações legais (artigo 30.º CCom), Liberdade de língua (artigo 90.º CCom);
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Liberdade de forma do mandato geral (artigo 249.º CCom); Possibilidade de provar o empréstimo mercantil por qualquer modo (artigo 396.º CCom); Possibilidade de celebrar penhor com entrega meramente simbólica da coisa empenhada (artigo 398.º, §único CCom). Joga a constatação de que muitas das formalidades ou das solenidades que acompanham certos atos resultam, apenas, das tradições. Devemos prevenir: o ideal da simplicidade comercial deve ser procurado, de modo permanente, pelo legislador. Exigências de todo o tipo estabelecem, na prática, verdadeiros calvários burocráticos, que não têm paralelo no Direito Civil. No Direito Bancário, as exigências de simplicidade seriam acentuadas e, sobretudo: efetivas. Tratando-se, para mais, de dinheiro. A atuação bancária tende a reduzir as formalidades ao mínimo exigível para a consubstanciação e ulterior prova dos atos. Esta exigência tem sido prosseguida com recurso aos seguintes três subprincípios: Consensualismo e reformalização normalizada; Uso da informática; Unilateralidade. O Direito Bancário lida, predominantemente, com vínculos obrigacionais. Fica dispensada toda uma área destinada a assegurar a publicidade dos atos junto de terceiros, publicidade essa que é especialmente requerida no domínio dos direitos reais e no das sociedades comerciais. O bom uso do Direito das Obrigações constituirá uma base excelente para a simplificação bancária. Consensualismo e reformalização normalizada: subprincípio concretizador da simplicidade será o do consensualismo. No Direito Bancário – Direito Comercial – a vontade dos intervenientes produziri os seus efeitos, seja qual for a forma por que se revele. Podemos mesmo apontar, nalguns negócios-chave, uma caminhada para a simplificação formal. A partir de uma certa margem, o consensualismo joga contra a simplificação. Admitir, por exemplo, negócios puramente verbais redunda em, mais tarde, se assistir a intermináveis discussões sobre o seu conteúdo. E o próprio ato de manifestar oralmente a vontade própria, mercê dos circunlóquios e das palavras de circunstância que sempre ocorrem, pode implicar complicações e perdas de tempo. Por isso, no Direito Bancário, a simplificação formal nunca vai ao ponto de dispensar a forma escrita ou equivalente. As exigências da simplicidade acabam por induzir uma reformulização normalizada dos negócios jurídicos. Numa ponte para a rapidez, os particulares interessados são solicitados a manifestar a sua vontade através do preenchimento de formulários, reduzidos, muitas vezes, à simples aposição de cruzes em quadrículas, com uma assinatura formal. A vontade pode ainda manifestar-se por via informática.
O uso da informática: num aspeto que se reporta, também, à rapidez, a simplificação bancária deve muito à informática e às tecnologias da informação. Podemos considerar que os progressos da banca, nas últimas décadas, se ficaram a dever a essa vertente dos nossos tempos. Em traços largos, podemos considerar que a informática simplifica: A contratação e a prática de diversos atos bancários;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A execução de deveres de informação e de comunicação, designadamente quanto às chamadas obrigações de caixa; A manutenção da contabilidade e o exercício da supervisão. A contratação e a prática bancárias por via informática, especialmente à distância e com recurso à Internet, eram habituais no comércio bancário: muito antes do surgimento de legislação especializada sobre o tema. Todo o sistema dos cartões bancários é, hoje, possibilitado por essas vias. Verifica-se mesmo, por vezes, que contratos ajustados por escrito só se tornam eficazes depois de introduzidos no sistema, de modo a sofrerem o competente tratamento informático. Os deveres de informação são efetivados sem intervenção humana e por via informática. Tratase de um máximo de simplificação. No limite, diversas operações vão sendo efetuadas por via inteiramente automática. Repare-se que esse esquema, de base bancária, pode ser usado para além dela: pagamentos de salários ou de diversos serviços – incluindo fornecimentos de eletricidade, de água ou de telefone – são efetivados e comprovados sem qualquer intervenção de pessoas. A contabilidade – incluindo as contas-corrente bancárias –, a posição das diversas operações, a eventual verificação de moras ou de descobertos e, a partir daí, a própria supervisão sobre as rationes, os riscos, as previsões e as reservas são asseguradas por meios informáticos de potência crescente. A simplicidade assim conquista diminui as hipóteses de erro, baixa os custos, populariza a banca e liberta as forças humanas para tarefas de contacto e de avaliação (ainda) não informatizáveis.
A unilateralidade: como concretização do princípio da simplicidade, um lugar especial assiste ao princípio ou subprincípio da unilateralidade. No Direito Bancário, os atos apresentam-se, muitas vezes, sob a forma de simples cartas assinadas e não de contratos formais: uma regra que tem suscitado diversas dúvidas, que cumpre esclarecer. A unilateralidade dos atos bancários pode ser real ou aparente. Será real nas hipóteses de surgirem vinculações pura e simplesmente unilaterais; será aparente nos casos em que tenha havido um acordo de vontades normal – portanto: um contrato – depois formalizado num texto assinado, apenas, por um dos intervenientes. Este último aspeto pode ser facilmente comprovado com recurso ao artigo 410.º, n.º2: no contrato promessa monovinculante exige-se, apenas, a assinatura da parte que se vincula. O instrumento em jogo só aparentemente é unilateral: trata-se, na realidade, de um verdadeiro contrato, derivado de um encontro de vontades, e nominado, pela própria lei, como contrato promessa unilateral. No Direito Bancário, através da forma voluntária ou a forma convencional, as partes recorrem, muitas vezes, a um documento – normalmente uma carta – assinada, apenas, por uma delas – em regra, pelo cliente – para exprimir um acordo de a que ambas chegaram. As cartas assinadas pelo cliente são negociadas previamente com o banqueiro; podem, mesmo, ser pura e simplesmente oferecidas, pelo banqueiro, para assinatura pelo cliente ou, ate, assinadas embranco, mediante um acordo lateral quanto ao seu preenchimento. Nestas duas últimas hipóteses, como bem se compreende, há um suplemento de exigência de boa fé, fonte de deveres de lealdade e de informação. Em suma: sempre que a lei se contente com uma assinatura ou, por maioria de razão, quando ela não exija qualquer forma, as partes podem contratar na base de documentos unilaterais. De seguida, temos a hipótese de atos realmente unilaterais, isto é, de atos que, de facto, exprimam uma vontade unilateral do declarante, sobre a qual não tenha havido qualquer concordância do declaratário. Tais hipóteses são pouco frequentes. No Direito Bancário abundam as situações de relação. Mesmo perante uma declaração unilateral, a outra parte, ainda que tacitamente acaba por dar o seu
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 assentimento. Mas podem ocorrer. O Direito Civil tradicional era dominado pelo preconceito romanístico-liberal de que não pode haver compromissos senão por via do contrato. Porém, o que não se poderia conceber seria uma situação na qual uma pessoa lograsse, por si e unilateralmente, vincular outra. Já não se compreenderia, num mundo de gente responsável, que uma pessoa não pudesse assumir, livremente e por si, válidos compromissos. Ultrapassado este obstáculo, temos ainda outros dois: O de que ninguém poderia ser beneficiado contra a sua própria vontade; O da natureza contratual da remissão e da doação, dobrada pela proibição de doação de bens futuros. Trata-se de obstáculos superáveis, embora eles devam ser tidos em conta no regime que, depois, se venha a fixar. Na verdade, ninguém pode ser beneficiado sem dar o seu acordo; porém, tudo se resolve se se admitir a possibilidade do beneficiário de um ato unilateral renunciar, depois, à vantagem dele derivada. Quanto à natureza contratual da remissão e da doação – artigos 863.º, n.º1 e 940.º, n.º1 CC: ela corresponde à construção histórica desses institutos, mas não permite extrapolar qualquer regra geral. Para além das razões de fundo temos ainda de considerar o dispositivo do artigo 457.º CC: a promessa unilateral de uma prestação só obriga nos casos previstos na lei. Deste preceito tem-se procurado inferir uma regra de tipicidade dos negócios jurídicos unilaterais quando, depois, as regras relativas às diversas figuras unilaterais quando, depois, as regras relativas às diversas figuras unilaterais se mantivessem dentro do que se espera venha a ser uma tipicidade normativa. Isso não sucede: as categorias de atos unilaterais surgem, na lei, em termos totalmente genéricos, por forma a permitir, nelas, a inclusão de um número indeterminado de figuras. Não obstante, admitimos hoje que, embora latas, existam efetivas limitações à possibilidade de alguém, unilateralmente, se obrigar. No agora em causa, assinalamos as figuras da promessa de cumprimento e do reconhecimento de dívida – artigo 458.º CC – com larga aplicação bancária. Recordamos que estes negócios têm, como eficácia, o dispensar as partes de provar a fonte da situação jurídica subjacente. No Direito Bancário, podemos proclamar uma tendência, determinada pelas necessidades de simplicidade, de predomínio de instrumentos unilaterais, máxime: de cartas. Isso é possível e totalmente eficaz por uma de três vias: Ou por se tratar de verdadeiros contratos, apenas formalizados – como é possível, pela consensualidade – através de um escrito assinado por um interveniente; Ou por se consubstanciar um ato unilateral claramente previsto na lei; Ou, finalmente, por interpretação restritiva do artigo 457.º CC. Assim, não se pode acompanhar alguma jurisprudência limitativa, que considera inválida, como contrato, a declaração unilateral de uma instituição de crédito destinada a garantir a responsabilidade de outrem, perante os respetivos credores, prosseguindo, depois, que ela seria inválida, também e por falta de base legal, como negócio unilateral. Nesse caso, há, seguramente, um contrato, pois nenhum banco emite uma garantia sem um prévio acordo com o cliente; além disso, a figura sempre seria utilizável como negócio unilateral. Nem seria, pois, necessário recordar que venire contra factum proprium nulli concidetur.
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19.º - O princípio da rapidez
A rapidez bancária; a normalização substancial: podemos distinguir, da simplicidade, a rapidez bancária e isso mau grado a evidente interligação entre ambos existente. Na rapidez não se trata tanto de simplificar o modo de praticar certos atos: antes de, atuando na própria substância de atos, facilitar a tomada de decisão conducente á sua celebração. A rapidez está ainda associada à crescente dimensão dos bancos e à necessidade de descentralizar, no seu seio, o processo decisório; apenas os negócios inabituais ou os de elaborado montante subirão ao conselho de administração. A rapidez exige, desde logo, normalização substancial. Apesar da capacidade de inovação imputável à banca, a grande maioria dos negócios segue caminhos já trilhados. Os negócios-tipo oferecidos aos clientes do banqueiro estão predefinidos. Resulta daqui que, apesar de lidarmos, na banca, com um numerus apertus de atos, estes, na prática, obedecem a tipos predeterminados, legais ou sociais.
O recurso às cláusulas contratuais gerais: corolário lógico das exigências substanciais de normalização é o recurso intensivo à contratação com recurso a cláusulas contratuais gerais. Como foi referido, as cláusulas contratuais gerais dos bancos coligiram os usos do setor e dão corpo a contratos básicos que não dispõem de regimes legais supletivos ou que, a esse nível, apenas desfrutem de leis muito elementares. A adesão a cláusulas gerais dispensa todo um processo de negociação e dissipa dúvidas quanto à realidade acordada. Ela permite, ainda, decisões descentralizadas, dentro das instituições de crédito. Operações delicadas, como o cálculo do risco, ficam facilitadas no recurso cláusulas contratuais gerais: estas postulam o prévio estudo, por setores, dessa matéria. O contraponto de tudo isto é conhecido, em especial no que toca ao (não) conhecimento, pelos particulares aderentes, das realidades complexas que, lestamente, vão subscrever. Donde o dispositivo da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais, muito importante, na banca.
A desmaterialização: a desmaterialização tem, por seu turno, a ver com a possibilidade de representação e de comunicação das realidades atinentes à banca – e, máxime, do próprio dinheiro –, através de suportes automáticos e eletrónicos e portanto: imateriais, no sentido mais imediato do termo. À partida, o dinheiro e as operações a ele ligadas são percetíveis pelos sentidos humanos, através da sua inserção em documentos. O advento da eletrónica e dos computadores permite essa consignação em moldes impercetíveis para os sentidos, mas recuperáveis através de uma leitura levada a cabo por instrumentos a tanto destinados. Em termos práticos, a banca eletrónica coloca as pessoas na dependência desses instrumentos, mas permite uma multiplicação extraordinária de dados em registo, a sua comunicação à distância em termos praticamente instantâneos e, ainda, um acesso imediato à precisa informação procurada. A desmaterialização do Direito Bancário provocou o aparecimento de um instrumento novo: o dos cartões bancários, de crédito e de pagamento. Para além disso, toda a prática bancária foi profundamente alterada. As diversas operações jurídicas são processadas através de meios eletrónicos. Nalguns casos, elas ainda são acompanhadas por suportes escritos; noutros, prescinde-se, por completo, desse resquício. A contratação por computador traduz apenas, à partida, o prolongamento da mente e do braço humanos. Assim, o computador poderá estar programado para aceitar propostas formuladas em certos termos ou para formular, ele próprio, propostas sujeitas à aceitação do público. No entanto, parece evidente que o
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 aprofundamento da banca eletrónica acabará por bulir com múltiplos vetores negociais. E designadamente: As hipóteses negociais serão limitadas, de antemão, pela programação do autómato; a banca eletrónica anda, assim, paredes-meias com as cláusulas contratuais gerais; A interpretação negocial é limitada à estrita mensagem codificada introduzida no autómato. Além disso, o Direito Bancário, no seu conjunto, não poderá deixar de ser afetado. A política monetária, a supervisão e a colaboração internacionais devem adaptar-se. As relações são simplificadas em extremo, tendendo para a abstração e, em certos cenários, para pôr em crise os contactos entre as pessoas e a própria confiança. Mesmo as instituições bancárias – e as mobiliárias – poderiam ser ladeadas através de uma teia de relações entre os interessados, assentes no ciberespaço. A desmaterialização tem, depois, profundas consequências nos títulos de crédito e, em geral, nos valores mobiliários.
20.º - O princípio da ponderação bancária
Essência do princípio; a prevalência das realidades: o princípio da ponderação bancária, na terminologia que temos vindo a propor, equivale a um modo de realizar o Direito próprio do comércio bancário. Implica, fundamentalmente: Uma fórmula de contratar; Um esqu3ema de interpretar o contratado; As garantias do cumprimento. Nada impede outras entidades, mormente num setor financeiro alargado que englobe os seguros e valores mobiliários, de recorrer a esquemas similares de ponderação. Originária e tipicamente eles têm, todavia, origem no manuseio do dinheiro. A ponderação bancária requer, em primeiro lugar, a prevalência das realidades patrimoniais, tal como revelam em termos de realização pecuniária. No limite, o cliente ideal para um crédito… será o que dele não precise. O banqueiro procurará avaliar a capacidade financeira do cliente, ponderando especialmente a faturação (cash flow) em detrimento do património e, quanto a este: procedendo a uma efetiva valoração prante o mercado (e não, por hipótese, em face de valores oficiais dados pelas matrizes prediais ou por avaliações que não as do mercado). A realidade subjacente leva o banqueiro a privilegiar as abrangências negociais. Só por exceção um banqueiro irá praticar, com um seu cliente, um único ato bancário. E quando porventura o faça, será em prejuízo seu. Os atos bancários estão vocacionados, em nome da realidade económica que lhes subjaz, para se encadearem em séries ilimitadas. Daí resulta, de resto, o fenómeno da relação bancária complexa. Ainda em nome da prevalência das realidades, temos a ideia de flexibilidade. A banca está, em princípio e com salvaguarda das preocupações de normalização já exaradas, disponível para estudar e para concretizar novos esquemas negociais. Fá-lo seja importando figuras novas
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 oriundas de outros ordenamentos, seja adotando figuras antigas com objetivos financeiros, seja criando realidades contratuais novas. Muitas vezes a capacidade inovatória da vida bancária ultrapassa a capacidade dos cultores da Ciência jurídico-bancária.
A interpretação segundo o primeiro entendimento: summo rigore, a interpretação dos atos bancários deveria efetivar-se segundo as regras contidas nos artigos 236.º e seguintes CC. O recurso a cláusulas contratuais gerais implica, nos termos do artigo 10.º LCCG, a utilização dessas mesmas regras. Se se atentar nas realidades do comércio de massas subjacentes à prática bancária, logo se vê a inviabilidade de uma interpretação individualizada dos vários atos. No dia a dia da banca surgem, pelo lado do banqueiro e, por vezes, também pelo lado do cliente, numerosos operadores ou empregados. Ora é essencial que, às declarações proferidas, todos deem o mesmo sentido. A normalização das grandes instituições e a praticabilidade dos próprios esquemas negociais bancários ficariam em crise quando se impusessem interpretações variáveis, em função dos concretos suportes humanos em presença. Isso conduz-nos a uma interpretação essencialmente objetiva das declarações bancárias. Esta mesma dimensão reduz a aplicabilidade das figuras do erro na formação e na declaração: os atos valem pelo que, neles, esteja exarado. Poderemos exprimir esta preocupação falando na regra do primeiro entendimento: a declaração negocial vale com o sentido codificado que dela resulte ou, na falta dele, com o do primeiro entendimento que, dela, o operador venha retirar. Essencial é que todos deem, à declaração, o mesmo sentido. Trata-se de uma realidade insofismável. Poderíamos tentar, com ela, compatibilizar o artigo 236.º, n.º1 CC: no campo bancário, o declaratário normal, colocado na posição do declaratário real aderiria… ao primeiro entendimento. Uma fórmula algo artificial: o Direito deve acompanhar as realidades a que se aplique, assem se justificando o primeiro entendimento.
A eficácia sancionatória: no tocante ao tema dos incumprimentos e das sanções, no Direito Bancário, pergunta-se se estamos perante um setor especialmente dominado pela confiança. No desenvolvimento das concretas relações bancárias, estabelece-se, em regra, uma relação unilateral de confiança, do cliente para com o banqueiro. O inverso, pelo menos à partida, não é exato. Ab initio, o cliente tem um conhecimento muito mais aprofundado sobre as suas próprias possibilidades, sobre o seu passivo e sobre a sua solvência, do que o banqueiro a quem ele recorra. O banqueiro tem consciência desse seu deficit de informação. É, assim, levado a tomar uma série de preocupações que, em face de bons clientes, são não só inúteis como gravosamente encarecedoras dos produtos em jogo. Digamos que a relação bancária se inicia sob o signo da desconfiança, por parte do banqueiro, particularmente perante pessoas que não tenham curricula de (bons) devedores: aquelas, justamente, que, por não terem passivo, maior solvência apresentam. Daí a multiplicação de garantias que, muitas vezes, envolve o tráfego bancário. Temos, aqui, uma manifestação da clássica lei de Gresham: a má moeda expulsa a boa. No caso: a informação assimétrica degrada o nível do mercado. Os maus clientes apressam-se a pedir créditos volumosos; o banqueiro, que não conhece a sua real situação, concede-os, absorvendo, depois, as consequências das insolvências respetivas. O banqueiro passa, então, a exigir a todos os clientes garantias exorbitantes, subindo o preço do crédito e baixando o seu volume individual. Perante isso, o bom cliente perde dinheiro e temo: ou muda de banqueiro ou sai do mercado. Ficam os maus clientes dos quais alguns terão artes de conseguir garantias ilusórias ou de ultrapassar os patamares de crédito. O banqueiro irá agudizar as cautelas, com isso expulsando do mercado os clientes menos maus, numa espiral de degradação. Evidentemente: o problema ultrapassa-se quando o bom banqueiro saiba localizar o bom cliente
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 e quando o bom cliente dê, ao banqueiro, informação suficiente. A formação de ciclos é, todavia, inevitável. As garantias fazem, de todo o modo, parte intrínseca do tráfego bancário. O banqueiro não procurará, todavia, as garantias teoricamente mais fortes e, máxime: a hipoteca. Antes dará preferência a garantias pessoais, concedidas por entidades totalmente solventes e, máxime: por outros banqueiros ou pelo Estado. Na vida real, a hipoteca e um produto caro; além disso, o seu funcionamento encontra-se bloqueado pelo colapso das ações executivas. Em operações de crédito comercial, a eficácia sancionatória dará clara preferência a garantias pessoas idóneas. A sanção mais eficaz, no domínio bancário, é precisamente a hipótese do corte do crédito. Na vida comercial e no âmbito de uma relação bancária complexa, um incumprimento injustificado, por parte de um cliente, envolve, além de diversos vencimentos antecipados, a não concessão de mais crédito. Tanto basta para paralisar a generalidade das empresas. Estas tudo farão para prevenir incumprimentos. O sistema autossustenta-se. No limite, temos as regras das insolvências, nas quais todos os credores que não estejam suficientemente apoiados em garantias especiais perdem dinheiro.
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Capítulo VI – A relação bancária geral Apresentação e razão de ordem: o Direito Bancário pode ser apresentado pelo prisma das operações de crédito ou pela via da regulação prudencial. Outras abordagens são possíveis. No limite, porém, tudo tende para reger situações de pessoas e, mais precisamente: as situações de pessoas que, no âmbito do comércio bancário, se venham a relacionar com instituições de crédito. Sabemos, neste momento, que a situação típica a partir da qual se estruturam as realidades jurídico-bancárias é a de um relacionamento duradouro entre o banqueiro e o seu cliente, em cujo decurso se inscrevem os mais diversos atos. É a relação bancária geral. Uma dogmática bancária deve inscrever, no topo das suas preocupações, a relação bancária geral. Sem ela, as diversas operações bancárias não fazem sentido. E o próprio Direito Bancário institucional perde a sua última razão de ser. O relevo dado à relação bancária geral corresponde, deste modo, a uma exigência dogmática moderna. Além disso, ela constitui um excelente banco de ensaio, relativamente a diversos institutos especialmente vocacionados para intervir no domínio bancário. A opção pela primazia dogmática da relação bancária geral tem, ainda, uma preocupação ético-jurídica: a de dar uma decisiva prioridade à pessoa e a uma conceção humanista do Direito Bancário. A multiplicação das análises macroeconómicas e a sua intrusão no Direito, mormente pela via das regulações e das rationes pode deitar para um segundo plano os grandes (únicos!) atores no palco do jurídico: as pessoas singulares.
12.º - As teorias clássicas
A doutrina do contrato bancário geral: entre o banqueiro e o seu cliente não ocorre, em regra, apenas um único negócio jurídico. Pelo contrário, iniciada uma relação, ela tende a prolongar-se no tempo, intensificando-se mesmo, com a prática de novos e mais complexos negócios. Esta relação bancária, de natureza complexa, mutável mas sempre presente, constitui um dos aspetos mais marcantes e mais característicos do Direito Bancário. Ela torna-se, porém, difícil de explicar e de traduzir, através da instrumentação jurídica tradicional. Historicamente – e principalmente na doutrina alemã – têm surgido diversas teorias explicativas. De entre elas, a mais marcante e clássica é a doutrina do contrato bancário geral. A ideia de basear a relação estabelecida entre o banqueiro e o cliente um contrato unitário próprio, a tanto dirigido, remonta ao princípio do século XX: deve-se a Bernstein e a Regelsbeger, enquanto estudiosos do então desconcertante fenómeno das cláusulas contratuais gerais no setor bancários. O contrato bancário surgiria com a aceitação pelo cliente, das cláusulas oferecidas pelo banqueiro, cláusulas que, assim, teriam natureza contratual. O contrato bancário tinha o duplo mérito de explicar a relação complexa entre o banqueiro e o cliente e de esclarecer a natureza das próprias cláusulas contratuais gerais. Na verdade, a relação bancária complexa estabelecida – ou pretensamente estabelecida – entre o cliente e o banqueiro teria a virtualidade de provocar o aparecimento de novos contratos: daí o considerar-se o invocado contrato bancário como um contrato de angariação de negócios, um contrato-promessa ou um contrato normativo. A exata natureza do contrato bancário geral não está plenamente esclarecida pela doutrina. Ele
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 manteve-se como simples referência habitual, sendo ainda usado pela jurisprudência para apoiar decisões centradas nas cláusulas contratuais gerais como um todo e, sobretudo, nos deveres gerais do banqueiro, particularmente após 1945. Mau grado alguma imprecisão, o contrato bancário geral permitiria juridificar uma relação de confiança mútua entre as partes. Dessa relação adviriam, para o banqueiro, deveres de segredo, de informações, de acompanhamento e prevenção e de acautelamento dos interesses do cliente. Além disso, o contrato bancário adstringiria o banqueiro a uma situação de disponibilidade para futuras intenções negociais do seu cliente. Mais complicada parecia ser a articulação entre o contrato bancário geral e os diversos contratos bancários singulares que, depois, fossem concluídos entre o banqueiro e o cliente. Numa versão mais radical, os contratos singulares não seriam, sequer, verdadeiros contratos: eles assumiriam a natureza de simples instruções dadas pelo cliente ao banqueiro, ao abrigo do contrato geral. Em versões mais moderadas, o contrato bancário geral, para além dos deveres apontados do banqueiro, apenas daria lugar a um quadro no qual se iriam, depois, concretizar os diversos contratos singulares. A questão em aberto, no tocante ao contrato bancário geral, tinha a ver com um eventual deer de contratar, por parte do banco. E designadamente: mercê do contrato em causa, ficaria o banqueiro obrigado a conceder crédito futuro ao cliente? A resposta era negativa: mesmo no auge da conceção do contrato bancário, sempre se entendeu que o banqueiro era livre de celebrar contratos futuros, de acordo com os seus critérios próprios: apenas em situações peculiares lhe poderia ser oposto o abuso do direito, perante a recusa de contratar. E foi justamente por esta via que a doutrina do contrato bancário perdeu terreno.
A doutrina da relação de negócios: os estudiosos comercialistas do século XIX já haviam deparado com a existência, entre comercialistas e fornecedores ou entre comerciantes e os seus clientes, de relações de negócios que se prolongam no tempo. Nessas relações, verificar-se-ia que, em vez de um único negócio isolado, antes surgiriam sequências de negócios encadeados no tempo. A relação (duradoura) assim expressa – a relação de negócios – teria um início e um termo, representando um valor autónomo acrescido, no comércio. Não há quaisquer dúvidas de que uma relação de negócio estável, pontuada por múltiplos atos de conteúdo similar ou interligado, corresponde a uma situação voluntária: as partes encontram-se nela porque assim o pretenderam. O problema reside, antes, numa outra dimensão: sendo voluntária, será que as partes pretenderam vincular-se ao esquema por ela representado? Ou, pelo contrário, não será de sua opção (e do seu interesse) manter uma total liberdade de, no futuro, conservar essa relação de negócios, modifica-la, adotar outra com um diverso parceiro ou, pura e simplesmente, cessar a atividade? A doutrina inclinou-se para, na relação de negócios e para além dos aspetos fácticos, ver uma mera relação de tutela, adveniente de deveres obrigacionais sem prestação principal. Só por si, a relação de negócios não implicaria um negócio: seria, todavia, fonte de alguns deveres. Cairíamos na relação de confiança e nos deveres de tutela daí advenientes. A doutrina da relação de negócios perdeu importância. Acabou, assim, por ser substituída por institutos mais precisos, como a culpa in contrahendo e as diversas vias da tutela da confiança. Todavia: sempre que, mercê da situação concreta e das suas características, for possível descobrir um qualquer contrato entre as partes, este prevalece. Dogmática e significativoideologicamente: estamos no Direito Privado.
A doutrina da relação legal e de confiança: a construção da relação bancária geral era frágil: não resistia a uma ponderação monográfica do seu conteúdo. Efetivamente, ela tinha uma consistência duvidosa e uma eficácia diminuta: no ponto delicado dos hipotéticos deveres de
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 contratar dela emergentes, prevalecia uma resposta negativa. E o recurso à ideia, em si fecunda, da relação de negócios não esclarecida sobre a origem dessa relação. Impunha-se a questão fulcral de saber se o contrato bancário geral preenchia os requisitos de um verdadeiro contrato. Também aqui a resposta era negativa. O contrato bancário geral não assentava, propriamente, num encontro de vontades destinado a instituir, entre elas, uma relação duradoura, fonte de novos contratos. Salvo ficção, em nenhum momento do percurso bancário seria possível apontar uma vontade das partes a tanto dirigida. O contrato bancário geral entrou, assim, em descarga, vindo a ser criticado pela doutrina. Em sua substituição, surgiu a doutrina da relação legal, base de responsabilidade pela confiança. Já em 1935, Ludwig Raiser havia afirmado a existência, entre o banco e o cliente, de uma «ligação especial semelhante à que surge nas negociações contratuais e que constitui a base da culpa in contrahendo». Canaris propôs o aproveitamento, neste domínio e no Direito Bancário, da doutrina da «relação obrigacional legal sem dever de prestar primário», desenvolvida em Direito das Obrigações, e agora recuperada com novos argumentos. Em traços largos, podemos dizer que, nesta leitura, pactuada uma obrigação comum, as partes assumem, uma perante a outra, determinadas prestações – as prestações primárias. Mas para além disso, a regra da boa fé implica que elas fiquem adstritas a certos deveres de cuidado e de proteção, de modo a que não sejam provocados danos nas respetivas esferas. Tais deveres são claros na pendência contratual; a jurisprudência e a doutrina permitem também apurá-los in contrahendo e post pactum finitum, bem como em situações caracterizadas pela nulidade do contrato de base – e, portanto, pela inexistência de qualquer dever principal válido. Os deveres de cuidado e de proteção vieram a apresentar regimes diferentes, consoante ocorressem na fase pré-contratual, na vigência do contrato, na sua nulidade, ou depois do seu cumprimento. A situação foi ultrapassada com a teorização geral do fenómeno, proposta há anos por Canaris e que, de então para cá, tem merecido um acolhimento global: em situações de proximidade negocial – e, portanto, com contrato ou sem ele – as partes podem prejudicar-se mutuamente; surge, assim, um dever legal de não o fazer. Canaris fala em dever legal de proteção, baseado na confiança, utilizando, também, a nomenclatura de Larenz: uma relação obrigacional legal, sem dever de prestar primário. A aplicação, ao relacionamento bancário, da doutrina da relação legal, permitiria, segundo os seus seguidores, resolver múltiplos problemas. Os deveres acima referenciados, desde o segredo à disponibilidade, poderiam encontrar base legal. Pela nossa parte, no entanto, rejeitámos em tempo essa construção, à luz do Direito Português. Hoje revemos a nossa posição. Uma relação obrigacional corresponde a uma ligação social entre duas pessoas e que assume relevo jurídico. A figura mais comum de obrigação, da qual historicamente veio a decorrer todo o edifício subsequente, é, efetivamente, a do vínculo pelo qual uma pessoa deve efetuar, a outra, uma prestação: tal a noção do artigo 397.º CC. Podem, porém, surgir relações obrigacionais que não tenham esse conteúdo: antes se limitem a juridificar uma ligação na qual os intervenientes devam trocar informações, abstendo-se de deslealdades e, sendo o caso, assegurando uma mútua segurança. Admitimos, pois, que a relação bancária complexa possa, efetivamente, analisar-se numa relação obrigacional sem dever de prestar principal. Simplesmente: Isso não nos diz que não tenha base contratual; Enquanto a ausência de dever de prestar principal teria, sempre, de ser estabelecida perante o seu regime.
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Desenvolvimentos recentes: desde o momento em que o cliente e o banqueiro concluam um primeiro negócio significativo – normalmente, a abertura de conta – estabelece-se, entre eles, uma relação social e económica. Essa relação tenderá a ter continuidade. Surgindo mais negócios entre ambos, ela intensificar-se-á. Ambas as partes terão deveres de conduta, derivados da boa fé, dos usos ou de acordos parcelares que venham a concluir. Todos esses deveres surgem num conjunto que tem uma unidade económica e social evidente: há uma relação bancária contínua, suscetível de ser preenchida com os mais diversos negócios. A unidade da relação bancária torna-se percetível, no Direito Alemão, mercê da existência de cláusulas contratuais gerais unitárias. Mas ente nós, apesar de faltar esse elemento, há que reconhecer, ainda, uma clara unidade. Devemos assinalar que, no final do século XX, renasceu um apelo ao contrato bancário geral, numa opção tomada pela jurisprudência. Na verdade, se pensarmos um pouco, veremos que ele não é despropositado, desde que reconduzido a proporções mais adequadas: afinal, quer o banqueiro, quer o seu cliente encontram-se numa relação duradoura voluntária. Todavia, o BGH veio afirmar que, de uma longa relação bancária, não resulta um contrato bancário geral. Anotando esta decisão, autores como Balzer e Lang logo vieram concluir que a doutrina do contrato bancário geral estava arrumada, por supérflua. Este último aponta como argumentos que deporiam contra o contrato bancário geral: Que os deveres presentes não necessitariam de qualquer contrato; Que, do pretenso contrato bancário geral não resultaria nem mesmo o dever de celebrar contratos neutros; Que a ligação especial existente se explicaria por contactos sociais. A questão não ficou, porém, decidida. O grande problema que tolhe os estudiosos do Direito Bancário é o de lidarem com conceções não atualizadas dos fenómenos contratuais e de deixarem de lado a dogmática das relações duradouras. Antes de passar à reconstrução da relação bancária geral, impõe-se fazer o ponto quanto: À contratação mitigada; Às relações duradouras.
22.º - Deveres bancários mitigados
A negociação mitigada: a natureza da relação bancária geral pode ser esclarecida, em certas áreas, com recurso à categoria geral da negociação mitigada. Como ponto de partida, recordamos que, perante uma esquematização de tipo tradicional, a postura dos interessados em face de um eventual contrato só poderia ser de aquiescência ou de recusas. Ou pretendem o acordo e concluem-no; ou não é o caso e faltará o contrato. As necessidades do trafego vieram determinar outra hipótese: a de os interessados, não querendo ainda o contrato, se obrigarem, no futuro, a conclui-lo. Teremos, então, o contrato-promessa. Dentro desta possibilidade abriram-se, depois, outras sub-hipóteses e, designadamente: a de haver contratos promessa com e sem execução específica. No primeiro caso, ocorrendo o incumprimento, o promitente fiel poderia sempre obter, do tribunal, uma sentença que suprisse a abstenção do faltoso; em
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 suma: celebrado o contrato promessa, as partes teriam meios de fazer surgir o contrato definitivo. No segundo caso, o incumprimento do contrato promessa apenas poderia dar lugar a medidas compensatórias. O espaço que fica entre a completa ausência de compromissos e o contrato definitivo foi-se, ainda, densificado. Poderiam, pelas partes, ser estabelecidos vínculos mais lassos, de conteúdo variável e que teriam em vista uma futura composição de interesses. Chamaremos, genericamente, a essas figuras contratação mitigada. A contratação mitigada surge consignada pela prática dos negócios. Diversas figuras têm sido autonomizadas. A saber: A carta de intenção: trata-se de uma declaração normalmente em forma de epistolar e que consigne uma vontade já sedimentada de, em determinadas condições, concluir certo contrato, embora sem se obrigar a tanto; O acordo de negociação: ocorre em negociações complexas e consigna uma vontade comum das partes de prosseguir negociações, dentro de determinados parâmetros; O acordo de base: também em negociações complexas, podem as partes, obtido um acordo em área nuclear, formaliza-lo desde logo; as negociações prosseguirão, depois, a nível técnico, para aplainar os aspetos secundários; O acordo quadro: em negociações tendentes a originar múltiplos contratos, as partes assentam num núcleo comum a todos eles; O protocolo complementar: tendo em vista um contrato nuclear, as partes concluem um convénio acessório, tendente a completá-lo. Em princípio, todas estas figuras são juridicamente relevantes. Assim, perante elas, cabe desde logo e pela interpretação, verificar qual a vontade dos participantes e, designadamente: se eles se consideram vinculados pelos seus termos e de que modo. A grande dúvida tem a ver com o incumprimento : pode a parte faltosa ser coagida ao acatamento? Em Direito, qualquer acordo válido deve ser cumprido, salvo quando, nele, se diga outra coisa. Tudo dependerá de saber se o acordo mitigado tem um conteúdo suficientemente explícito ou se se limita a obrigar as partes a prosseguir nas negociações. Sendo bastante, o conteúdo deve ser partes a prosseguir nas negociações. Sendo bastante, o conteúdo deve ser acatado. Não o sendo, a parte faltosa apenas poderá ser condenada em indemnização, por interrupção injustificada das negociações. O Tribunal não pode, de todo o modo, substituir-se às partes, negociando por elas. Pergunta-se, por fim, pela natureza destes acordos. A locução contratação mitigada, embora sugestiva, pode enganar. Não se trata de vínculos mais fracos mas, antes, de vínculos diferentes. As partes podem adotar deveres de procedimento, de esforço e de negociação, tendo em vista um fim eventual. Tais deveres são tão dignos como outros quaisquer.
Acordos de cortesia e de cavalheiros: o domínio bancário é essencialmente negocial. Os operadores bancários, embora obrigados – mesmo juridicamente (veja-se o artigo 74.º RGIC) – a observar o respeito e a cortesia mantêm-se, em princípio, no campo ativo do Direito. Todavia, para mais ao longo de uma relação que se prolongue no tempo, é inevitável o aparecimento de obsequiosidades, de gentilezas e de atenções que podem dar azo a declarações de cortesia ou, até, a acordos de cavalheirismo. Terá essa matéria algum interesse para a reconstrução da relação bancária geral? Antes de mais, há que fixar terminologia. Não consideramos nesta categoria os negócios comuns, que apenas tenham sido celebrados por cortesia, por
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 cavalheirismo ou por obsequiosidade. Assim, a letra de favor, a aquisição por preço elevado de um quadro insignificante ou a aceitação de um trespasse sem futuro, apenas por simpatia ou apreço pela outra parte, são atos patrimoniais que, uma vez concluídos, devem ser honrados, nos termos comuns. Também a gentileza pode originar situações comuns de responsabilidade civil. Chamaremos acordo de cortesia ao convénio relativo a matéria não patrimonial e que releve do mero trato social. Ele poderá recair sobre a hora e o local de um encontro, sobre questões protocolares ou sobre outros ajustes convenientes para um convívio agradável, dentro e fora da contratação jurídica. O acordo de cortesia não se distingue do contrato apenas por as partes o terem colocado fora do Direito, ele recai, antes, sobre uma matéria que, não tendo conteúdo patrimonial, não releva para o Direito. Esta distinção era muito clara no século XIX, uma vez que se exigia, para uma verdadeira obrigação jurídica, natureza patrimonial. O alargamento subsequente veio criar dificuldades de fronteira. Mas são transponíveis, uma vez que as obrigações não patrimoniais postulam uma vontade jurídica reforçada. A presença de uma obrigação derivada do acordo de cortesia é, em regra, de tipo legal. Evidentemente: o acordo de cortesia que seja subtraído apenas para provocar danos pode dar azo a situações comuns de responsabilidade civil. Digamos que ele origina uma obrigação legal de proteção, semelhante à da culpa in contrahendo. Temos, nessa base, a área da responsabilidade por deferência, ilustrada pela jurisprudência do último século. O acordo de cavalheiros é um convénio que as partes pretendem colocar fora do campo do Direito. Pode, teoricamente, recair sobre quaisquer assuntos, patrimoniais e pessoais: tem apenas a particularidade de assentar na palavra dada e na honra de quem a dê. O acordo de cavalheiros – desde que, naturalmente, se trate mesmo de cavalheiros – é mais adstringente do que qualquer vínculo jurídico. Põe-se o problema de saber se, ao concluir um acordo de cavalheiros, as partes podem abdicar, desde logo, de qualquer proteção jurídica. Não podem, a não ser no plano do cavalheirismo. Visto o disposto no artigo 809.º CC, as obrigações naturais só são possíveis nos casos admitidos por lei. Além disso, funcionam numerosas outras regras, como a nulidade das obrigações indetermináveis – artigo 280.º, n.º1 CC –, a proibição de doar bens futuros – artigo 942.º, n.º1 CC – ou a possibilidade de fixar prazos às obrigações – artigo 777.º, n.º1 CC. Assim: O acordo de cavalheiros pelo qual alguém compra um automóvel pagando ao vendedor o preço que entender justo ou é nulo – artigo 280.º, n.º1 CC – ou encontrará um preço fixado nos termos do artigo 883.º, n.º1 CC; O acordo de cavalheiros pelo qual alguém empresta uma quantia a outrem que este pagará quando puder será cumprido nos termos do artigo 778.º CC; O acordo de cavalheiros pelo qual as partes irão celebrar certo contrato: ou satisfaz os requisitos de forma e de substância do contrato promessa e vale como tal, ou não existe. No limite, pode-se recorrer às regras sobre liberalidades. Em suma: o acordo de cavalheiros deixará de o ser se os interessados não se comportarem como tal. Parece, em especial, lamentável a atitude de exigir uma vantagem em nome da palavra recebida e recusar a contrapartida invocando falta de juridicidade. E quando celebrados em família, os acordos de cavalheiros ainda devem merecer mais respeito. Questão diferente da juridicidade do acordo de cavalheiros é o facto de a grande maioria dos contratos ser cumprida numa base de cavalheirismo e não de juridicidade. O Direito Positivo funciona pelas forças da sociedade e da cultura a que ele pertence. Nunca sozinho.
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Responsabilidade por cortesia e por obsequiosidade: as relações de obsequiosidade, tal como as de cavalheirismo, quando não comportem comuns relações obrigacionais, a cumprir pelas partes, podem dar lugar a situações de responsabilidade. Falaremos em responsabilidade por deferência. Havendo relações de deferência, podem decorrer situações de proximidade negocial, de entrega confiante ou de dependência de proteção, de que resultem danos 72. A primeira hipótese será a de haver solução legal expressa: assim sucede com o denominado transporte gratuito de passageiros: o condutor é responsável pelos danos que estes venham a sofrer (artigos 503.º, 504.º e, em especial, 504.º, n.º3 CC). A segunda linha conduz a uma relação legal de proteção: teríamos, aí, algo de semelhante à culpa in contrahendo ou à violação positiva do contrato. A terceira implica deveres de tráfego, assentes no artigo 483.º, n.º1 CC: ao controlar o perigo, o obsequiante deve observar deveres de cuidado relativos ao obsequiado. Ou seja: através da deferência, podem resultar efetivas obrigações: não dirigidas ao cumprimento, mas antes visando a tutela da confiança ou o cuidado. Bem se compreende: o convidado não fica à mercê do hospedeiro. Também nos casos em que o deferente preste a sua atividade profissional: haverá responsabilidade no caso de negligência grosseira ou, em certos casos, por culpa leve; há, aí, um máximo de confiança. Tudo isto é claramente operacional, perante o Direito Positivo português.
Acordos bancários mitigados: os desenvolvimentos anteriores, tipicamente civis, têm uma aplicação fecunda no campo bancário. De certo modo, tal aplicação será mesmo reforçada pela ética bancária, área sensível da ética dos negócios. No âmbito de um relacionamento bancário complexo, é frequente o banqueiro prontificar-se para estudar propostas e ponderar soluções. Quando o faça, poderemos estar perante declarações de intenções, perante acordos de negociações ou, até, perante acordos de base. Pela interpretação, será possível determinar as consequências jurídicas do que tenha sido declarado. A relação bancária complexa poderá compreender tais deveres mitigados: seja originariamente, logo a partir do seu surgimento, seja em momento ulterior, por declarações supervenientes. Pergunta-se, porém, se tais declarações têm, necessariamente, conteúdo jurídico. Não têm. Desde logo, pode-se tratar de meras cortesias: sempre que não tenham conteúdo patrimonial direto. Mas não se esqueçam os deveres de diligência (artigo 76.º RGIC): o banqueiro que chegue atrasado a uma escritura pode frustrar um negócio de milhões, sendo responsável; o mesmo se aplica ao seu cliente. Finalmente, uma relação bancária complexa pode incluir acordos não jurídicos, que as partes pretenderam manter no cavalheirismo. Quando alguma das partes o queira, tais acordos regressam ao campo do jurídico. Caberá especialmente ao banqueiro, através de um exercício criterioso dos seus deveres de informação, prevenir situações dúbias. Já quando o banqueiro dê conselhos, entramos no campo do Direito. Existe, por via do dever legal de tutela, a obrigação de agir com cautela e cuidado. Ao assumir dar conselhos, numa atitude que, à partida, não seria devida, o banqueiro integra o núcleo dos seus deveres.
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Os casos clássicos, desde o princípio do século XX, têm a ver com o transporte por deferência: uma pessoa é, por gentileza, transportada gratuitamente por outra, mas vem a sofrer um acidente.
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23.º - A relação bancária duradoura
Ponto básico e evolução: a relação bancária geral, como relação de negócios, é uma clara obrigação duradoura. Tem assim interesse recordar, dogmaticamente, essa categoria obrigacional. Veremos o contributo que a relação bancária poderá dar para o seu aprofundamento. A distinção das obrigações em instantâneas e duradouras remonta a Savigny. Este clássico põe em destaque o facto de, nas primeiras, o cumprimento se efetivar num lapso juridicamente irrelevante; pelo contrário, nas segundas, o cumprimento prolongar-se-ia no tempo, correspondendo à sua natureza. Todavia, seria necessário ocupar-se das obrigações duradouras, aprofundando-as. O mérito recaiu sobre Otto Von Gierke, chamando a atenção para o seguinte fenómeno: Nas obrigações instantâneas, o cumprimento surge como cauda de extinção; Nas duradouras, o cumprimento processa-se em termos constantes, não as extinguindo. As obrigações duradouras implicariam, designadamente, abstenções; mas poderiam redundar, também, em prestações positivas. Um dos aspetos significativos das regras próprias das obrigações duradouras estaria nas formas da sua cessação. Von Gierke distingue: A determinação inicial da sua duração, sela pela aposição de um termo certo, seja pela de um termo incerto; A indeterminação inicial, podendo, então, sobrevir a denúncia, prevista na lei ou no contrato; a denúncia poderia operar com um prazo (pré aviso) ou se de efeitos imediatos; A impossibilidade superveniente. Outros aspetos atinentes às relações duradouras foram aprofundadas por Wiese. Este autor sublinha que também as relações duradouras são sensíveis ao cumprimento. Nelas, todavia, a execução da prestação prolonga-se no tempo, o qual constitui um estádio inerente a cada uma.
Dogmática geral: as obrigações duradouras têm sido abordadas na doutrina portuguesa, constando de breves referências de todos os obrigacionistas. Vamos tentar a sua construção geral. À partida, a obrigação duradoura não se caracteriza pela multiplicidade de atos de cumprimento: qualquer obrigação instantânea, designadamente se tiver um conteúdo complexo, pode implicar cumprimentos que se analisem em múltiplos atos. Por isso, Pessoa Jorge propõe que, em vez de se atender ao número de atos realizados, se dê prevalência ao momento (ou momentos) em que seja realizado o interesse do credor. Pela nossa parte, adotamos essa ideia básica, embora convolando-a para a concretização do cumprimento. Nas obrigações duradouras – ao contrário das instantâneas – o cumprimento vai-se realizando num lapso de tempo alongado, em termos de relevância jurídica: uma ideia já presente, de resto, em Savigny. Na obrigação duradoura, ainda podemos encontrar duas situações: Ou a prestação permanente é continua, exigindo uma atividade sem interrupção, quotidie et singulis momentis;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Ou essa prestação é sucessiva, quando implique condutas distintas, em momentos diversos. As obrigações duradouras apresentam algumas regras ditadas pela natureza das coisas. Desde logo, elas não se extinguem por nenhum ato singular de cumprimento. Tão-pouco elas podem dar lugar à repetição, na hipótese de ser anulado ou declarado nulo o contrato em que assentem; ou se restitui o valor (artigo 289.º, n.º1 CC) ou não há quaisquer restituições, como sucede na hipótese de invalidade do contrato de trabalho.
A denúncia; a longa duração: as obrigações duradouras são, ainda, sensíveis à denúncia. Uma vez que elas não se extinguem pelo cumprimento, há que prever outra forma de extinção, diversa da resolução (unilateral, justificada e retroativa), como vimos e da revogação, que exige mútuo acordo. E aqui ocorre a figura da denúncia. A denúncia estará, em princípio, prevista por lei ou pelo próprio contrato. O Direito preocupa-se com a matéria no âmbito de situações em que, de modo tipificado, procede à tutela da parte fraca. Outras áreas têm, também, regras explícitas, com relevo para o contrato de agência, regulado pelo Decreto-Lei n.º 178/86, 3 julho, com as alterações introduzidas ao artigo 28.º, e para o contrato de seguro, nos termos do artigo 112.º LCS. O esquema da agência é aplicável, por analogia, à concessão e à franquia e que redunda no seguinte: Na falta de prazo, qualquer das partes pode fazer cessar o contrato de agência; Para tanto, há que fazer uma denúncia com pré-aviso: tanto maior quanto mais longa tiver sido a duração do contrato; Na falta de pré aviso, a denúncia é eficaz, mas há responsabilidade. Põe-se o problema de saber o que sucede perante obrigações duradouras de duração indeterminada, quando as partes nada tenham dito sobre a denúncia e quando elas não possam ser reconduzidas a nenhum tipo contratual que preveja essa figura. Ocorre, por vezes, a afirmação de que não poderia haver obrigações perpétuas, por contrariarem vetores indisponíveis do ordenamento (ordem pública). A afirmação remonta ao Código Civil Francês de 1804 que, a propósito da locação de doméstico e de operários, dispõe: «Só se pode adstringir os seus serviços por duração ilimitada ou para um empreendimento determinado». Com isso pretendia-se prevenir o regresso a situações de servidão, abolidas pela Revolução Francesa. Mas paradoxalmente, foi precisamente no setor do trabalho que a evolução posterior acabaria por reintroduzir situação tendencialmente perpétuas, com clara ilustração no Direito português atual. A proibição de relações perpétuas – que justificaria a denúncia – surge apoiada na regra constitucional da liberdade de atuação. Naturalmente, isso possibilitaria a livre denunciabilidade de relações duradouras de duração indeterminada, o que poderia atentar contra legítimas expectativas de continuação e de estabilidade e contra a regra do respeito pelos contratos. A solução teria de ser compatibilizada à luz da boa fé, numa ponderação a realizar em concreto. O problema da excessiva restrição à liberdade individual, por força da existência de relações duradouras indeterminadas, põe-se a propósito da prestação de serviço: daí a proibição napoleónica. Fora dessas situações e para mais num Direito que, como o português, perpetua, na prática, situações como os contratos de trabalho e de arrendamento, a afirmação
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 da não perpetuidade, embora soe bem, terá de ser verificada e comprovada. De resto, o artigo 18.º, alínea j) LCCG veio proibir obrigações perpétuas, quando derivadas de cláusulas contratuais gerais; a contrario, elas pareceriam possíveis quando tivessem outra origem. O problema tem conhecido uma abordagem recente diversa, graças à doutrina dos contratos de longa duração, de origem anglossaxónica. As partes podem, ao abrigo da sua autonomia privada, concluir contratos que durem ilimitadamente: basta que fixem uma associação de interesses que tenha essa aspiração. Nessa eventualidade, o facto de elas não terem previsto uma cláusula de denúncia, ainda que com um pré aviso alongado, poderia significar: Ou que houve erro ou esquecimento, seguindo-se o seu regime próprio; Ou que há lacuna contratual, a integrar pela interpretação complementadora; ainda aqui, poderão estabelecer-se cláusulas de renegociação. Não se verificando nenhuma dessas hipóteses – ou, a fortiori, quando as partes excluam expressamente a denúncia ou equivalente – quedará o recurso à alteração das circunstâncias. Fecha-se o círculo: no limite, a existência de relações perpétuas poderá, in concreto, defrontar os valores fundamentais do ordenamento, veiculados pela ideia de boa fé. O Direito português, justamente através do instituto da alteração das circunstâncias, tem meios para intervir.
A relação bancaria personalizada: o desenvolvimento anterior tem uma clara aplicação à relação bancária complexa – ou, se se quiser, ao contrato de abertura de conta de que ela promana. A relação bancária não se extingue pelo cumprimento: antes se vai reforçando com ele. Uma vez concluída, ela subsiste indefinidamente. Podemos ate adiantar que ela é tendencialmente perpétua: as pessoas acabam por conservar, ao longo da vida, o primeiro banqueiro de que se tornaram clientes. Devemos assinalar que a substituição de um banqueiro por outro coloca problemas práticos, ainda que solucionáveis. O particular visado terá de modificar numerosas ordens de pagamento permanentes. Além disso, diversos contratos ligados à conta terão de cessar: cheques, cartões e créditos. Abordar um novo banqueiro pode levantar dúvidas: este questionar-se-á perante um desconhecido, podendo supor que, vindo de outro lado, não é recomendável. Com o decurso do tempo o banqueiro irá ficar com um conhecimento alargado da vida patrimonial e pessoal do seu cliente. Resulta, daí, toda uma confiança, que as partes devem respeitar. O alongamento de uma relação bancária duradoura vai, no limite, forçar uma deslocação da situação do campo patrimonial para o pessoal. Denunciar uma conta ad nutum poderá ser atentatório do bom nome e da reputação do particular. Este estado de coisas é perfeitamente conhecido pela prática bancária: os banqueiros, perante clientes antigos em quem confiem, concedem facilidades à margem do estritamente contratado: descobertos em conta, créditos hipotecários em que a hipoteca é registada depois de libertados os fundos, acompanhamento personalizado, preferência na aquisição de certos produtos e auxílios especiais no estrangeiro. A área pessoal da relação bancária complexa não deve ser invalidade pelo Direito. A este compete, todavia, acompanhar o fenómeno, atuando nos casos de abuso manifesto da confiança assim criada. E isso pode suceder a favor de qualquer das partes.
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24.º - O Direito português: a abertura de conta
A reconstrução a primazia do Direito nacional: os elementos obtidos, designadamente no domínio dos deveres mitigados e da relação bancária duradoura, irão permitir aprofundar a relação bancária geral, em ordem à sua reconstrução. Trata-se de prosseguir uma dogmática bancária capaz de proporcionar resultados concretos, no domínio da interpretação e da aplicação da disciplina aqui em jogo. Esta, por seu turno, não se exaure numa tecnicidade bancária: antes se apresenta como setor jurídico normativo pleno, apto para a utilização dos mecanismos disponíveis, com relevo para os originados no Direito privado comum. A relação bancária geral não deve perder-se em generalidades. Ela adere ao Direito positivo em cujo âmbito o problema se ponha. Para o caso ela deverá atender ao Direito positivo português.
A flexibilidade das explicações contratuais: como ponto de partida, sublinhamos a flexibilidade que apresentam as explicações de tipo contratual. Desde logo, elas surgem especialmente adaptadas para enquadrar e explicar o núcleo do Direito Bancário moderno; trata-se, na verdade, de um Direito privado e de clara conceção contratual. Estará na essência da relação bancária geral? Quando se inicie um relacionamento bancário – normalmente pela abertura de conta – ambas as partes têm uma clara intenção de prosseguir. O banqueiro existe, justamente, para desenvolver a sua atividade e, por isso, tem uma vontade explícita – pense-se na publicidade – de celebrar novos negócios bancários, enquanto o cliente, estando satisfeito, pretende precisamente obter do banqueiro os inúmeros produtos de tipo bancário que hoje se mostram imprescindíveis: seja no dia a dia, seja nos médio e longos prazos. Pois se ambas as partes já concluíram um negócio, com uma relação duradoura dele subsequente e com a vontade comum de completar essa relação com outros negócios, há uma clara fenomenologia contratual. É certo que desta relação bancária, não resulta, para nenhuma das partes, o dever de celebrar novos contratos. E isso num duplo sentido: Observados os limites contratuais ou ex bona fide, qualquer das partes pode, a todo o tempo, pôr cobro à relação; O novo negócio que uma das partes proponha à outra pode ser objeto de livre rejeição – dentro, naturalmente, dos aludidos limites. Mas daqui não se impõe o afastamento dogmático do contrato bancário geral: apenas se recusam, no naipe dos seus efeitos, deveres de contratar. Uma das características da moderna contratação é a de admitir deveres de diligência, de acompanhamento, de disponibilidade para negociar e mesmo de negociação sem que, por este último, se entenda a obrigação de concluir qualquer contrato. Não se trata, propriamente, de deveres enfraquecidos mas, tão só, de deveres diferentes. Estes deveres podem ter natureza contratual, surgindo como obrigações mitigadas. Além deste aspeto, os diversos negócios são acompanhados de deveres acessórios, isto é, de deveres cominados pela boa fé e que adstringem as partes a regras de segurança, de informação e de lealdade e que, no nosso Direito, resultam genericamente do artigo 762.º, n.º2 CC. No Direito Bancário, qualquer contrato vai propiciar uma concretização bancária da boa fé. Este aspeto mais se acentua com a natureza duradoura e personalizada da relação aqui em jogo. Finalmente, um contrato comercial – e, para mais, bancário – é sempre complementado pelas cláusulas contratuais gerais e pelos usos. Normalmente, estamos habituados a ver os usos
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 invocados pelo banqueiro, mas o cliente também o poderá fazer. Ora a continuação do relacionamento bancário tem – no mínimo – apoios nos usos, quando não nas próprias cláusulas contratuais gerais. Com os apontados elementos, parece-nos possível indicar uma orientação e traçar uma construção para a relação bancária geral. Dois pontos básicos podem ser demonstrados pela observação: tal relação existe e ela tem origem contratual, embora seja complementada pela lei e pelos usos. A relação existe: consumado um contrato duradouro entre o banqueiro e o cliente há, entre ambos, deveres de lealdade, com especial incidência sobre o profissional: justamente o banqueiro. In concreto se verificará o modo por que tais deveres se concretizam, sendo apenas certo que, salvo compromisso ou especial configuração da boa fé, eles não chegam ao ponto de obrigar seja quem for a contratar. A relação tem origem contratual. Assim como não devemos ficcionar a existência de contratos, também não devemos remeter para a lei fenómenos que, manifestamente, ocorrem por opção livre e jurígena das partes, na área da sua autonomia privada. Naturalmente: consumado o acordo básico, há todo um conjunto de regras que, depois, encontram aplicação. A natureza contratual não se perde, por isso.
A abertura de conta: restam três questões: quando surge o tal contrato bancário geral, qual a sua extensão e que regime lhe aplicar? No Direito Português – ao contrário do alemão – faltam cláusulas contratuais gerais que deem corpo à globalidade da relação bancária. Vamos assentar que a relação bancária geral surge com o contrato de abertura de conta. Ou noutros termos: o contrato de abertura de conta, tipicamente bancário embora sem desenvolvimento legal, compreende, entre os seus efeitos, o surgimento de uma relação bancária duradoura. Esta, para além do que as partes exprimam, tem, pelo menos, o conteúdo – muito rico – que lhe advêm, dos usos e das cláusulas contratuais gerais e que implica uma vocação para a multiplicação subsequente dos atos jurídicos. A abertura de conta deriva da adesão e determinadas cláusulas ou condições contratuais gerais preconizadas ou utilizadas pelo banqueiro. De acordo com a prática geral da banca portuguesa, existem condições distintas – embora não muito diferentes – consoante o cliente seja uma pessoa singular – ou um particular, na linguagem bancária – ou uma pessoa coletiva – por vezes dita empresa. As condições gerais definem-se como aplicáveis à abertura, à movimentação, à manutenção e ao encerramento de contas de depósito junto do banco; não obstante elas reportam-se a um contrato que denominam contrato de abertura de conta, expressão corrente e consagrada, que aqui adotamos. Elas admitem estipulações em contrário, acordadas por escrito, entre as partes. E no omisso, elas remetem para os usos bancários, e para a legislação bancária: é o que inferimos do estudo de cláusulas contratuais gerais em uso nos bancos mais significativos. O contrato de abertura de conta conclui-se pelo preenchimento de uma ficha, com assinatura e pela aposição da assinatura num local bem demarcado. Trata-se de um ponto importante, uma vez que essa assinatura passará a ser válida para todas as comunicações dirigidas ao banqueiro e para todas as ordens inerentes, máxime: para a assinatura de cheques, caso sejam emitidos. As cláusulas contratuais gerais regulam o envio de correspondência: para o local indicado pelo cliente, considerando-se recebida com o seu envio. O banqueiro pode alterar as cláusulas contratuais gerais, remetendo as alterações ao cliente. Não havendo oposição do cliente, dentro de determinado prazo, a alteração tem-se por aceite. A abertura de conta prevê um quadro para a constituição de depósitos bancários que o banqueiro se obriga, desde logo, a receber, e regula a conta-corrente bancária. Prevê regras sobre os seus movimentos, incluindo juros, comissões e despesas que o banqueiro possa levar à conta, incluindo saldos negativos de outras contas ou importâncias diversas de que o
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 banqueiro seja credor. Nalguns casos, as cláusulas gerais sobre abertura de conta obrigam o beneficiário a manter um saldo médio mínimo. A compensação de créditos pode, também, estar prevista. Além de tudo isso, temos aqui, de modo implícito, uma assunção, pelo banqueiro, de todo o serviço de caixa, relacionado com a conta aberta. De notar que, nalgumas cláusulas contratuais gerais, a própria celebração do contrato de abertura de conta depende de um depósito inicial, enquanto, noutras, isso não sucede. E na verdade, é concebível uma abertura de conta com a subsequente conta corrente bancária, sem qualquer depósito: a conta funcionaria na base da concessão de crédito ou de cobranças feitas, pelo banqueiro, a terceiros. As cláusulas contratuais gerais atinentes à abertura de conta preveem, ainda, três negócios subsequentes: A conversão de cheque; A emissão e cartões; A concessão de crédito por descoberto em conta. A convenção de cheque fica na disponibilidade do banqueiro: todas as condições reservam, a este, o direito de não emitir cheques. Por vezes, elas referem que a convenção advém do facto de o cliente pedir módulos de cheques e o banqueiro aceitar emitir-lhos. De todo o modo, os aspetos essenciais relativos à convenção de cheque constam, logo, das cláusulas relativas à abertura de conta. A emissão de cartões – de débito, de crédito ou outras – fica dependente de um acordo paralelo ou ulterior, com a intervenção de novas cláusulas contratuais gerais. A concessão de crédito por descobertos em conta – portanto: pela admissão de um saldo favorável ao banqueiro e não ao cliente – depende de uma decisão a tomar pelo banqueiro: pode ser, desde logo, ajustada, normalmente em termos apertados. Cabe, por fim, sublinhar que a primazia do contrato de abertura de conta como fonte da relação bancária geral subjacente foi recentemente acolhida como fonte da relação bancária geral subjacente foi recentemente acolhida no ordenamento bancário português. O Banco de Portugal veio regular as condições gerais de abertura de contas de depósito bancário, afirmando: «constitui uma operação bancária central pela qual se inicia, com frequência, uma relação de negócio duradoura entre o cliente e a instituição de crédito»73. Trata-se de matéria a considerar com atenção na parte relativa ao Direito Bancário material.
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Aviso BP n.º 11/2015, 21 julho.
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Capítulo VII – Tópicos evolutivos da banca 25.º - Diversificação e aprofundamento da atividade bancária
Generalidades; a integração financeira: uma tarefa arriscada: teorizar sobre o nosso tempo. Mostra a História que questões ora cadentes tornar-se-ão insignificantes, enquanto outras, indiscerníveis, vêm, afinal, a ser o futuro. Adiantamos que o Direito Bancário, mau grado o aparato de algumas novidades, se mantém estável: os seus quadros, aliados a regras oriundas de disciplinas próximas com relevo financeiro – como o Direito dos Seguros e o Direito Mobiliário – estão em boas condições para corresponder às solicitações que vão surgindo. Mas elas não devem ser estranhas aos estudiosos da disciplina que ora expomos. Um primeiro traço impressivo tem a ver com uma integração crescente entre a banca, os seguros e os valores mobiliários. O Direito da Banca e o do mercado de capitais são, muitas vezes, estudados em conjunto: as suas ligações são patentes. Todo o comércio de valores mobiliários assenta numa intermediação assegurada, no fundamental, por instituições de crédito. E esses valores constituem, em conjunto com diversos elementos, o objeto de significativos contratos bancários. Banca e seguros dão lugar, de igual modo, a atividades crescentemente vizinhas e, por vezes, indiferenciadas. Temos produtos próximos, produtos de seguros colocados no mercado por banqueiros e financiamentos prosseguidos por seguradoras. Também aqui a unificação das supervisões está na ordem do dia. Encontramos ainda demonstrações crescentes de integração financeira na montagem de projetos de investimento com financiamentos bancários ou total ou parcialmente autofinanciados, na preparação de aquisições de empresas pelos seus próprios quadros e na avaliação de operações. O banqueiro torna-se num especialista das mais diversas áreas económicas: com toda uma série de inconvenientes que podem ser enfrentados com recurso ao outsourcing. A espetacularidade de algumas destas manifestações de integração ilustra, de resto, um fenómeno já antigo: o Direito Bancário opera muitas vezes como um Direito de sobreposição. As operações bancárias não valem por si: elas são instrumentais de outras realizações económicas que o banqueiro, por vezes – e até como modo de calcular os riscos do seu crédito – quererá acompanhar e melhorar.
O alargamento dos segmentos alvo: ao longo dos séculos, os banqueiros lidava, apenas com clientes de grande porte. No início, os depósitos não eram remunerados: o próprio depositante é que devia pagar o serviço da guarda do seu dinheiro. Progressivamente, a situação foi-se invertendo e as camadas médias passaram a aceder ao comércio bancário. Surgiram, depois, bancos de poupança, muitas vezes públicos ou de base mutualista especializados em pequenos depositantes e em pequenos aforros. A banca comercial mantinha-se, porém, vocacionada para empresas e para grandes clientes. Na segunda metade do século XX, com especial relevo no último terço desse século, assistiu-se a um alargamento geral das camadas visadas pela banca comercial. Pequenos aforradores, funcionários, reformados e jovens vieram a merecer o interesse da banca. Daí decorrem vários fenómenos. O setor dos clientes privados merece acrescidas atenções. O atendimento torna-se mais personalizado, também aí se assistindo a uma mudança de paradigma: nos anos 90 do século XX, a segmento dos clientes operava de acordo com o seu património e o seu rendimento; hoje observa-se um regresso à ideia de
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 rendibilidade do cliente. Desenham-se estratégias publicitárias que têm em conta os aspetos emocionais da clientela, os quais devem ser aproveitados. Quanto ao fundo, há diversos pontos chaves a observar, como a inovação, a disponibilidade, a orientação de clientes, o aconselhamento e a gestão de carteiras: parece determinado que os banqueiros que disponibilizam uma maior variedade de produtos prendem mais facilmente os clientes. Os bancos regionais fazem sentido, havendo que reanimá-lo. O banqueiro atento deverá ponderar não só os efeitos de modas mas, ainda, as tendências gerais que se desenham para o futuro. Pontualmente: o envelhecimento das populações ocidentais levará a uma alteração nos produtos bancários utilizados. Não é de boa gestão aproveitar uma qualquer conjuntura para subtrair benefícios excessivos ao particular: poderá, com isso, perder-se, no futuro, toda uma relação mais vantajosa. Esta lição deveria estar bem presente na atual banca portuguesa.
A diversificação de produtos; o microcrédito: a diversificação de produtos financeiros disponibilizados pela banca corresponde a uma estratégia ligada ao alargamento dos segmentos alvo. Vai mais longe: no fundo, é uma exigência da evolução jurídico bancária cujo progresso, como em qualquer disciplina jurídica, passa pela diferenciação de soluções, de modo a melhor acompanhar a realidade. E isso sem prejuízo de soluções, de modo a melhor acompanhar a realidade. E isso sem prejuízo pelo uso de meios próprios da sociedade da informação. Há já alguns anos, é detetável que, sob um cenário de liberalização, os bancos vieram alargar a sua atividade, diversificando os modos de atuação. Temo, assim, um número crescente de novas figuras bancárias. Mas além disso, os banqueiros procuraram aproximar-se dos seus clientes. A persistência, na Europa, de uma depressão económica cuja recuperação, no Sul, parece cada vez mais tardia, não conduziria nem a uma quebra rigorosa no crédito, nem a uma baixa de lucros da banca. E no rescaldo da crise de 2007/2010, enquanto se mantêm graves situações no plano de aparelho produtivo e do emprego, verifica-se um regresso da banca aos lucros. Entre nós, a diversificação denota-se através da popularização de esquemas que, embora já conhecidos, surgiam ainda há pouco como uma curiosidade. O microcrédito reporta-se a pequenos mútuos (de 50 a 5000 dólares), concedidos a pessoas de poucas posses mas que, pela adjunção do seu trabalho, podem ser muito produtivos, com grande benefício social. Conhecido e praticado pelos mutualistas do século XIX (designadamente Raiffeinsen, na Alemanha), o microcrédito tornouse conhecido graças à iniciativa do Professor Muhammad Yunus (Nobel da Paz, em 2006), no Bangladesh e ao Grameen Bank, especializado nessas operações. O microcrédito tem as suas regras, sendo praticado pelos diversos bancos comerciais, no nosso País. Em jogo está ainda o rápido crescimento dos países emergentes, com relevo para a Índia.
A internacionalização: a internacionalização da banca acompanha o fenómeno da globalização da economia, dos mercados e das sociedades. Vamos referir alguns tópicos de reflexão: Os bancos nacionais não mais podem abdicar de conhecer as atuações dos bancos estrangeiros: seja nas respetivas terras de origem, seja na nossa própria; Cada vez mais, o núcleo do negócio dos grandes bancos é descentralizado; As recentes flutuações nos custos, no pessoas ou na organização deixam, contudo, estável o tema da internacionalização, que não recua;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 A nível mundial, os grandes bancos apresentam bons resultados, exceto, por ventura, no Japão; A base acionista dos grandes bancos tende para a internacionalização. Trata-se, em suma, de um movimento de fundo irrecusável. No plano europeu, como área de especial dinamismo condenada ao crescimento, temos os países de leste. Uma referência deve ser feita à banca islâmica. No Corão, há uma proibição de juros, em princípio. Trata-se, porém, de um ponto que tem sido ultrapassado, com várias considerações e, designadamente, a de só entender proibidos os juros ou vantagens excessivas. Os vastos fundos drenados pelo petróleo e o enorme potencial humano, representado pelos países islâmicos, explicam, também nessa área, a presença de boas perspetivas de crescimento bancário. Os estudiosos recomendam um especial respeito pelas diversas mentalidades.
26.º - Reorganização da banca: fusões e outsourcing
Reorganização e fusões: a necessidade de investir, gerada pela diversificação acima apontada e a própria lógica de funcionamento de um sistema liberalizado em extremo levam a fenómenos de concentração bancária. Mais rápido e, por vezes, mais barato do que montar uma rede de agências será adquirir um banco que já as tenha. As megafusões verificadas nos últimos tempos e em todo o Planeta envolvem consequências para o pessoal, para os clientes e para a concorrência e o seu controlo. A crise de 2007/2014 levou, de resto, a um intensificar desse fenómeno. Põe-se o problema prévio da definição do valor de um banco e a questão subsequente de como assegurar a supervisão das grandes unidades resultantes da concentração. A concentração bancária coloca problemas. Desde logo ao nível da concorrência: nas economias de mercado, um ponto sensível, quer perante as entidades reguladoras quer em face da opinião pública. Num prisma de gestão, surgem também dificuldades. O sobredimensionamento obriga a burocratizações e a esquemas de gestão decentralizada, com riscos de disparidade e de eficiência. Verifica-se ainda que se as fusões permitem, num primeiro momento, baixar no custos, a dimensão conduz, num segundo momento, a novos custos e a perdas contingentes. Poder-se-á falar em ciclos: a um ciclo de concentração seguir-se-á um período em que pequenos bancos são mais rendíveis e apetecíveis; o êxito levará a novos movimentos de concentração e assim por diante. De todo o modo, a (excessiva) dimensão resultante das fusões modernas vem a ser compensada pelo fenómeno do outsourcing.
Outsourcing: a expressão inglesa outsourcing, retirada da economia, resulta da junção dos vocábulos outsider, resource e using; a utilização de recursos do exterior. Nas línguas latinas, temos dificuldades de transposição. Ainda que, por razões comunicativas, se recorra ao inglês, deveria prever-se uma expressão nacional para o outsourcing. O próprio outsourcing tem ambiguidades que dificultam a transposição linguística: tanto poderia ser exteriorização de recursos, como utilização de recursos do exterior, consoante o tipo de realidade existente antes da operação de outsourcing. O outsourcing designa o fenómeno pelo qual as grandes empresas abdicam de algumas das suas valências, entregando-as a entidades exteriores com as quais contratam, depois, a prestação dos correspondentes serviços. Na origem, o outsourcing atingirá
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 atividades instrumentais, que não tenham a ver com o negócio em jogo. Num nível mais avançado, ele pode atingir atividades já muito próximas do núcleo central. A Filosofia básica do outsourcing é simples: focus on what gives your company its competitive edge, outsource the rest. Impõe-se retirar o maior partido da especialização e da divisão de tarefas. Os motivos que podem levar ou justificar o outsourcing centram-se, em princípio, numa questão de eficiência. Podemos, além disso, apontar: A limitação de custos: externalizada determinada atividade, a empresa principal pode negociar globalmente custos reduzidos, sem ter de, no terreno, proceder aos cortes competentes; Aproveitamento de know-how: a empresa contratada para o serviço exterior será especialista na matéria; disporá de mais conhecimentos aplicados e de vias para a sua execução; no limite, poderá ser detentora de patentes e de licenças que, de todo, escapem à empresa principal; Concentração no cerne do negócio: a empresa principal deixará de se preocupar com atividades para as quais não está vocacionada e para as quais o seu management não terá valências; ou, se as tiver perder tempo e dinheiro pois não é isso o que se esperará dele. Todavia, para além de vantagens, o outsourcing poderá implicar riscos. Apontam-se, como típicos, os seguintes: Os perigos na fase da transferência: em empresas de laboração permanente, o momento no qual ela se despoja da valência a externalizar, entregando-a a terceiros, representa sempre um momento delicado; o risco pode ser minorado se se recorrer a um esquema de cisão, devidamente programado; Os riscos de dependência: operado o outsourcing, a empresa principal ficará dependente de processos e de decisões que lhe escapam; também aqui o problema pode ser minorado: ou mantendo, sobre a empresa exterior, um controlo societário ou assegurando uma cooperação estreita, através de um contrato de outsourcing bem concebido; As dificuldades de avaliar a relação custos/benefícios da operação, não esquecendo os custos da transação; neste ponto, já foi dito que a determinação da solução ótima é, muitas vezes, um problema sem solução; cabe, no limite, ao tato, à imaginação e à experiência da administração interessada adotar, com as cautelas que se imponham, a melhor solução. O outsourcing tem, na base, um contrato do mesmo nome. Será um contrato atípico, complexo, basicamente de prestação de serviço e do qual emerge uma relação duradoura. Por vezes, o contrato de outsourcing assume as feições de um contrato-quadro, no âmbito do qual serão, depois, concluídos acordos concretizadores. Em certos casos, na origem da operação estará uma prévia operação de cisão: a empresa exterior resultará da cisão de um estabelecimento antes pertencente à empresa principal. Esta poderá manter um domínio direto ou indireto sobre a empresa prestadora o que, como é natural, facilitará a coesão subsequente. Torna-se ainda importante sublinhar que o outsourcing poderá – ou não – implicar regimes de exclusivo. O ideal
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 residirá na não exclusividade: permite partilhar serviços e custos, numa verdadeira economia de meios.
Segue; questões específicas no setor bancário: no setor bancário, para além dos problemas acima aludidos, o outsourcing apresenta certas especificidades. Desde logo, ele pode respeitar: A serviços técnicos periféricos; A serviços técnicos nucleares; A serviços bancários. Na primeira hipótese teremos outsourcing de serviços de limpeza, de segurança ou de restauração, como exemplos. Na segunda estão envolvidos, como exemplos, serviços informáticos ou serviços jurídicos. Desta feita, as entidades externas vão ter acesso à informação nuclear da instituição de crédito, podendo ainda, com as informações que deem, infletir a sua atuação. Na terceira, são externalizados vetores bancários; p.e., o crédito automóvel, o crédito ao consumo ou a locação financeira são entregues a instituições especializadas, ligadas à casa mãe. Os outsourcing técnicos implicam as competentes decisões prévias. Nalguns casos, a empresa exterior tem mera capacidade de execução; noutras – o caso do serviço jurídico – ela assume autónoma técnica. Têm aplicação, consoante os casos, as deontologias próprias dos setores visados e, eventualmente, os competentes poderes reguladores ou disciplinares. Os outsourcings bancários, para além de requererem ponderações adequadas de extensão e de oportunidade, incluindo a dimensão do negócio a externalizar, correspondem, ainda, a atuações sujeitas a deveres de diligência bancária. Além disso, o outsourcing de serviços bancários tem evidentes consequências no plano da supervisão: haverá que ponderar as práticas e os sistemas dos países onde o problema ocorra. Havendo outsourcing no setor bancário, as empresas em presença podem constituir um grupo: haverá que aplicar o competente regime. Além disso, porse-ão problemas ligados ao segredo profissional e à proteção de dados. Tudo isso tem solução, perante o Direito Bancário. Fora desse nível, haverá ainda que acautelar os aspetos societários e as dimensões jurídico-laborais.
27.º - A tutela do consumidor de produtos financeiros
Aspetos gerais do Direito do consumo: o Direito do Consumo é, como foi dito, matéria civil. Todavia, ele assume uma relevância especial no moderno Direito Bancário, sendo útil recordar alguns aspetos gerais. À partida, podemos dizer que o Direito do Consumo vem dispensar ao consumidor, tomado como o elo terminal do setor económico, um regime especial, tendencialmente mais favorável. Desde o início que o Direito visou proteger os fracos. Quer no Direito Romano, quer no antigo Direito Português, surgem normas destinadas a acautelar a posição dos adquirentes. Nos finais do século XIX, os progressos económicos derivados da revolução industrial e do desenvolvimento dos meios de transporte vieram multiplicar exponencialmente os bens à disposição dos interessados. Paralelamente, deu-se um alongamento do circuito económico, de tal modo que o adquirente final não tem qualquer contacto com o produtor. Quando fique mal servido, pouco ou nada poderá fazer junto deste,
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 enquanto os intermediários facilmente descartariam qualquer responsabilidade. O problema agudiza-se com a publicidade e as suas técnicas de criar necessidades aparentes, a satisfazer com bens vistosos, mas de qualidade nem sempre assegurada. O Estado intervinha em casos extremos. Quanto ao resto, caberia ao mercado resolver. A interiorização do circuito económico como algo de finalisticamente dirigido ao consumidor e os sucessivos progressos efetivados no domínio dos transportes, da eletricidade e da eletrónica, levaram a que, globalmente, toda a sociedade fosse virada para um consumo sem limites absolutos. Pensadores de diversa formação vierem exigir uma proteção. A aprovação de regras de tutela do consumidor pareceria, assim, matéria fácil e consensual. Os problemas não tardariam. Por definição, o consumidor irá suportar todos os custos do processo conducente à disponibilidade dos bens que ele procura. As cautelas e os controlos que o legislador queira impor traduzem-se em novos custos pagos, fatalmente pelo próprio consumidor. As medidas a encarar terão, de certo modo, de se custear a si próprias, reduzindo custos alhures, dentro do circuito económico. Mas essa redução só é pensável na parcela em que se combatam preços monopolistas ou práticas abusivas, que distorçam a verdade do mercado. Além disso, haverá que contar com a residência dos agentes que ocupem segmentos a montante do circuito económico. Novo obstáculo é, ainda, constituído pela postura dos consumidores, desorganizados e motivados pelo fetichismo das mercadorias. O Direito Tradicional português continha regras de proteção aos adquirentes, inseridas no contrato de compra e venda. Não eram suficientes para suportar um setor autónomo de tutela do consumidor. Tal setor acabaria por advir pela força das ideologias dos consumidores e da pressão comunitária.
O Direito Europeu e as leis nacionais: no domínio da tutela do consumidor – no Direito Bancário como no Direito Civil em geral – torna-se inevitável mencionar a influência do Direito Europeu. Ela veio pontuando, nos vários países, os diversos passos no sentido da tutela em jogo. O Tratado de Roma, na versão de 1957, não continha nenhum preceito relativo aos consumidores. Além disso, ele perfilhava um pensamento produtivista, preocupando-se, essencialmente, em abolir os entraves à livre circulação dentro das fronteiras comunitárias. Apenas 15 anos volvidos, na Cimeira de Paris, os fundadores da Comunidade assentaram em que, para além dos objetivos puramente económicos, haveria que melhorar as condições de vida das populações, com reforço da tutela dos consumidores. Em 1975, o Conselho adotou um programa preliminar ca CEE para uma política de proteção e de informação do consumidor, assente em cinco direitos fundamentais, a ele reconhecidos: O direito à proteção das suas saúde e segurança; O direito à proteção dos seus interesses económicos; O direito à reparação dos danos sofridos; O direito à informação e à formação; O direito à representação ou a ser ouvido. A consagração comunitária em conjunto com a divulgação dos temas dos consumidores levaram à aprovação da Lei n.º 29/81, 22 agosto: o primeiro regime de defesa do consumidor. O momento foi acompanhado pelos primeiros estudos alargados sobre o Direito do Consumo. Verificava-se um amadurecimento que justificou o passo seguinte: a Revisão Constitucional de 1982 introduziu um artigo 110.º - hoje 60.º CRP – relativo aos direitos dos consumidores. É
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 patente o enunciado comunitário de 1975, particularmente no n.º1. Entretanto, o Ato Único de 1987 veio estabelecer um horizonte para o mercado interno: 31 dezembro 1992. Além disso, facilitou os esquemas de tomada de decisão. Com um risco: o de se proceder a uma harmonização das legislações com alinhamento pelas menos protetoras. Por isso, o artigo 100.º a – hoje 95.º - do Tratado, no seu n.º3, veio dispor: «A Comissão, nas suas propostas previstas no n.º1 em matéria de saúde, de segurança, de proteção do ambiente e de defesa dos consumidores, basear-se-á num nível de proteção elevado, tendo nomeadamente em conta qualquer nova evolução baseada em dados científicos. No âmbito das respetivas competências, o Parlamento Europeu e o Conselho procurarão igualmente alcançar esse objetivo». No plano interno, agora fortalecido com o apoio constitucional e com a inspiração europeia, foram adotados diplomas importantes, com relevo para o Decreto-Lei n.º 238/86, 19 agosto, que fixa a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa nas informações sobre bens ou serviços oferecidos ao público, para o Decreto-Lei n.º 253/86, 25 agosto, que define práticas comerciais, designadamente a da redução de preços, pelo prisma da defesa do consumidor e para o DecretoLei n.º 213/87, 28 maio, que estabelece normas sobre bens e serviços que possam implicar perigo para os consumidores. No plano comunitário, inicia-se uma produção de diretrizes com relevo no plano da defesa do consumidor. A sua transposição origina novas regras nacionais. Surgiram, a partir da década de oitenta do século XX, as grandes diretrizes civis de tutela do consumidor. Verifica-se, ainda, outro ponto relevante: temas de ordem mais geral vêm a ser aproximados, comunitariamente, da tutela do consumidor. Tal o caso da Diretriz n.º 93/13/CEE, 5 abril, sobre cláusulas abusivas nos contratos com consumidores. O Tribunal de Justiça da Comunidade vem produzindo decisões importantes que permitem modelar aspetos significativos desta área jurídica. Toda esta matéria não tem unidade dogmática: a não ser por referência ao Direito Civil. A prática colhida e os elementos comunitários recomendavam uma revisão mais aprofundada da Lei de Defesa do Consumidor, de 1981. Surgiu uma autorização legislativa: a da Lei n.º 60/91, 13 agosto, que invocava a adequação ao ordenamento comunitário e ao novo enquadramento constitucional. Sem seguimento. Apenas cinco anos mais tarde, a Lei n.º 24/96, 31 julho, fixou o regime legal aplicável à defesa dos consumidores. Poucos dias antes, a Lei n.º 23/96, 26 julho, criara mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais. A Lei n.º 24/96 - A Lei de Defesa do Consumidor ou LDC – originou diversa legislação complementar. As diretrizes do consumo foram sendo objeto de transposição para leis civis extravagantes. Todo um setor ganhou, entretanto, corpo, em torno da publicidade. Vigora o Código da Publicidade, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 330/90, 23 outubro, com alterações subsequentes.
A tutela no setor bancário: o Direito Bancário visa proteger o crédito: é a base ontológica sem a qual não há banca. Mas a partir daí visa, também, a tutela dos clientes do banqueiro entre os quais, como segmento cada vez mais significativo: os consumidores ou destinatários finais do circuito. As regras que prosseguem essa tutela estão dispersas por todo o Direito Bancário. Adiantando a referência a certas rúbricas, podemos apresentar o seguinte quadro: Regras institucionais; Regime das cláusulas contratuais gerais; Regime da responsabilidade bancária;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Regime do crédito ao consumo e das transferências bancárias. No domínio institucional, encontramos diversas regras que visam a tutela do consumidor. No fundo, os poderes de supervisão e a técnica do seu exercício visam, precisamente, a proteção dos depositantes e do sistema: logo, dos consumidores. Uma referência especial ao fundo de garantias de depósitos – artigos 154.º e seguintes RGIC: um fundo que tem por objeto garantir o reembolso de depósitos constituídos em instituições de crédito que nele participem (artigo 155.º, n.º1 RGIC), sendo que, entre outras, participam nele, obrigatoriamente, as limitações de crédito com sede em Portugal (arrigo 156.º, n.º1 RGIC). Este esquema foi, de certo modo, reforçado pelo Fundo de Resolução, introduzido no RGIC através do Decreto-Lei n.º 31-!/2012, 10 fevereiro (artigos 153.º-B a 153.º-U). O regime das cláusulas contratuais gerais foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 446/85, 25 outubro. Esse diploma foi alterado pelos Decretos-Lei n.º 220/95, 31 agosto e n.º 249/99, 7 julho, supostamente para efeitos de transposição. O artigo 22.º, n.º2 e 3 LCCG reporta-se a aspetos bancários, isentando-os de algumas regras. De todo o modo, o grosso das proibições específicas relativas a cláusulas contratuais gerais aplica-se às condições dos banqueiros, sendo as dos artigo s20.º, 21.º e 22.º precisamente visadas para os consumidores finais. A jurisprudência dos nossos tribunais, particularmente no tocante ao exercício da ação inibitória e às proibições daí resultantes, tem a ver, em primeira linha, com cláusulas contratuais bancárias. A responsabilidade bancária – ou responsabilidade profissional do banqueiro – é, na atualidade, um capítulo clássico nas exposições de Direito Bancário. Em pontos importantes, ele tende a concretizar-se em torno de dados causados aos pequenos clientes ou a consumidores finais de produtos financeiros: assim sucede, designadamente, no campo da culpa in contrahendo, no domínio da responsabilidade pelo uso permitido do cheque ou no da violação de deveres profissionais – artigos 73.º e seguintes RGIC. Temos, depois, instrumentos diretamente vocacionados para a tutela do consumidor de produtos financeiros. É o caso do Decreto-Lei n.º 359/91, 21 setembro e pelo Decreto-Lei n.º 101/2000, 2 junho, no domínio do crédito ao consumo. Aí aparecem os dois pontos típicos da tutela do consumidor: A informação, designadamente quando à TAEG (artigo 5.º); O direito ao arrependimento do consumidor (artigo 8.º) ou direito a este reconhecido de, após reflexão e num certo prazo, revogar o contrato. Neste momento, o crédito ao consumo é objeto da Diretriz n.º 2008/48, 23 abril, que revogou a Diretriz n.º 87/102. O prazo de transposição expirou em 12 maio de 2010 (artigo 27.º, n.º1, ii) ). Uma referência deve ainda ser feita à Diretriz n.º 97/5/CE, 27 janeiro, relativa às transferências transfronteiriças, transporta pelo Decreto-Lei n.º 41/2000, 17 março: temos, aqui, deveres de informação (artigo 3.º e 4.º) e regras sobre indemnizações, a favor dos consumidores (artigos 6.º e seguintes). O seu artigo 5.º foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 18/2007, 22 janeiro. Ainda no domínio específico da defesa do consumidor de produtos financeiros, cumpre ter presente que o Direito Bancário surge como matéria instrumental. O consumidor dirige-se para a aquisição de bens e de serviços, mas usa, para o efeito, canais bancários. Assim, no caso das vendas à distância ou pela Internet, reguladas pelo Decreto-Lei n.º 143/2001, 26 abril, estabelece-se que o pagamento por cartões de crédito ou de débito faz correr, pelo banqueiro, o risco de fraude (Artigo 10.º). Desenvolve-se, aqui, uma cultura do comércio eletrónico, só possível pela atuação instrumental do crédito e do Direito Bancário.
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O provedor bancário: a figura do provedor remonta à experiência sueca de 1809, do JustitieOmbudsman. Consiste numa figura independentemente, sem poderes de decisão, mas com a possibilidade de, junto dos diversos departamentos administrativos, se inteirar do andamento de processos, propondo determinadas soluções. A ideia teve êxito, sendo acolhida, no campo estadual, pelo artigo 23.º CRP. Também o Tratado EU deu guarida à figura, a nível comunitário, no seu artigo 195.º. A figura do provedor tem tido diversas aplicações setoriais. Entre nós, um provedor bancário poderia resultar de uma iniciativa da Associação Portuguesa de Bancos. Até lá, encontramos já a figura do provedor, no âmbito de iniciativas particulares de alguns banqueiros. Como incentivo de ordem geral, temos a registar a recomendação da Comissão de 14 fevereiro 1990, relativa à transferência das condições bancárias aplicáveis às transações financeiras transfronteiriças.
28.º - O progresso tecnológico
Eletrónica, automação e telecomunicações: recordamos que a técnica bancária corrente veio alterar-se por completo com a eletrónica, os computadores e as telecomunicações. Todo o dia a dia da empresa bancária repousa, hoje, sobre as potencialidades dessa técnica. Devemos adiantar que, segundo uma doutrina já hoje confluente, a revolução eletrónica e das telecomunicações não teve, no Direito, a eficácia devastadora que, no início, se lhe atribuiu. No fundo, todos esses meios prolongam a mente a mão humana. Os valores existenciais, todavia, não mudam ou não mudam logo. De todo o modo, eles vieram interferir em múltiplos institutos. Desde logo, a contratação à distância, há muito possível, generalizou-se, colocando velhos e novos problemas de conflitos de leis. O desenvolvimento da Internet permite alargar o mercado bancário e mobiliário, obrigando os participantes vendedores a disponibilizar novas estratégias para os seus produtos, incluindo modelos de negócios bancários devidamente adaptados e novas técnicas de segurança. Particularmente significativo, pelo prisma bancário, é o desenvolvimento de meios de pagamento eletrónico: a contratação eletrónica põe problemas gerais, sendo hoje tratada no Direito Civil. OS banqueiros preocupam-se, assim, com a segurança dos pagamentos. A repartição de responsabilidade entre o banqueiro e os seus clientes, a fazer com critério, é a pedra de toque desta área.
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DIREITO BANCÁRIO MATERIAL Capítulo I – A situação jurídica bancária Secção I – Determinação e conteúdo geral 29.º - Noção, modalidades e factos
Noção: uma situação jurídica é bancária sempre que releve enquanto regulada pelo Direito Bancário material. Este, por seu turno e como foi visto, é dado pelo subsistema jurídico historicamente incumbido de disciplinar os atos das instituições que se ocupam do dinheiro, nessa qualidade. A situação jurídica bancária traduz pois, se se quiser, a realização do Direito Bancário: terá ínsito um determinado problema com a sua solução, problema em que, materialmente, obtém o predicativo bancário. O recurso à ideia de situação jurídica bancária tem, subjacente, determinadas opções, que cumpre apontar. Desde logo ela procura evitar o recurso à técnica da relação jurídica, definitivamente inapta para retratar a variedade das ocorrências relevantes para o Direito. O recurso à ideia de situação jurídica bancária tem, subjacente, determinadas opções, que cumpre apontar. Desde logo ela procura evitar o recurso à técnica da relação jurídica, definitivamente inapta para retratar a variedade das ocorrências relevantes para o Direito. Ao acolher, no coração do Direito Bancário, a ideia de situação jurídica, damos abrigo aos elementos jurídico-científicos que acompanham, em geral, essa noção. O Direito Bancário pressupõe, sempre, um correto manuseio do Direito Privado Comum. De seguida, ela recusa uma definição subjetiva do tipo: situação bancária é a que implique a presença de um banqueiro ou de uma instituição de crédito ou sociedade financeira. Os bancos podem desenvolver atividades não bancárias. Estas, quando sejam reguladas pelo Direito Comum, não devem ser consideradas como situações bancárias. Haverá, no entanto que, verificar se a presença, numa situação jurídica comum, de uma instituição de crédito não irá conduzir à aplicação de normas específicas que lhe confiram feição bancária. Finalmente, a noção defendida afasta uma definição emergente material, isto é, uma conceção de situação materialmente bancária a se. De acordo com a própria ideia propugnada de Direito Bancário, apenas a nível de sistema será possível determinar a presença de um setor normativo. Um mútuo, só por si, poderá ser ou não bancário: sê-lo-á quando concedido por um banqueiro, ao abrigo de regras bancárias.
Modalidades: a situação jurídica bancária pode ser classificada em função do facto constitutivo ou do seu conteúdo, de acordo com as classificações das situações jurídicas e dos negócios jurídicos. Teremos, assim, quanto ao conteúdo, situações simples e complexas, uni e plurissubjetivas, absolutas e relativas, patrimoniais e não patrimoniais, ativas e passivas (em
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 sentido civil) e analíticas e compreensivas. Atendendo ao facto constitutivo, podemos apontar situações uni e plurilaterais ou contratuais, formais e consensuais, reais quoad constitutionem, obrigacionais e reais quoad effectum, causais e abstratas, típicas e atípicas, onerosas e gratuitas e de administração e disposição. Em regra, e possível afirmar que as situações jurídicas bancárias são patrimoniais, contratuais e onerosas: mas com exceções, designadamente no campo gerador da responsabilidade civil. Perante o disposto no artigo 362.º CCom, as situações bancárias – já de si subjetivamente comerciais, porquanto exigindo, por norma, a presença de um banqueiro – são, ainda, objetivamente comerciais. Daí resulta a aplicação, às situações bancárias, do regime geral dos atos comerciais. As classificações de situações jurídicas bancárias obedecem aos quadros do Direito Civil. Classificação tipicamente bancária seria a contraposição entre operações passivas e operações ativas. Trata-se, à partida, da classificação comum das situações em ativas e passivas; nas primeiras, os efeitos dependem da vontade do sujeito a quem assistem; nas segundas, isso não sucede. Mas com adaptações: ela visualiza as situações pelo prisma da instituição de crédito e simplifica-as, em função do seu teor económico, uma vez que, na grande maioria dos casos, todas elas têm elementos ativos e passivos. De todo o modo, são consideradas passivas as situações em que o banco se apresenta devedor – as contas e o depósito – e ativas aquelas em que ele é credor – concessão e abertura de crédito, desconto, descoberto, antecipação, locação financeira e cessão financeira. A simplificação operada retira, a classificação entre operações bancárias ativas e passivas, a sua operacionalidade dogmática. Além disso, ela não esgota o universo em que se insere, já que obriga a abrir, a seu lado, novas categorias de situações bancárias: as operações de prestação de serviço. Por isso, não a adotamos como base de sistematização, embora admitamos recorrer, a ela, incidentalmente. Outra classificação bancária clássica distingue as operações bancárias comerciais das operações de investimento. Na origem, encontramos a contraposição anglo saxónica entre commercial banking e investment banking: o primeiro tem a ver com simples entregas de dinheiro, enquanto o segundo se reporta, já, à aquisição de produtos financeiros e à atuação no mercado de capitais. Assim, seriam commercial banking a abertura de conta, o depósito bancário, os pagamentos e transferências (giro bancário), a emissão de cheques, a emissão de cartão, o crédito, o crédito ao consumo e os diversos negócios cambiais. O investment banking abrangeria os títulos de crédito, a administração de patrimónios, os negócios de bolsa, as denominadas inovações financeiras, as emissões e os consórcios. Trata-se de uma classificação que deixa um lugar especial às técnicas bancárias subjacentes e ao tipo de clientela nelas em jogo. Não obstante, parece-nos preferível, perante a realidade do Direito Bancário Português, optar po uma classificação de atos mais imediatamente funcional: teremos a abertura de conta e os atos a ela especialmente ligados (depósitos, giro bancário, emissão de cheque e emissão de cartão), os câmbios e a moeda estrangeira, os atos de crédito (do mútuo bancário ao reporte), as garantias (do penhor bancário às cartas de conforto) e os serviços e produtos financeiros (da administração aos empréstimos CRISTAL). Quanto às restantes classificações: todas elas são boas para elucidar, em concreto, a dogmática bancária.
Os factos constitutivos; a autonomia privada: fontes das situações jurídicas privadas são os seus factos constitutivos. A expressão não se confunde, pois, com as fontes do próprio Direito Bancário, já examinadas. Em princípio, podemos utilizar, no Direito Bancário, o mapa das fontes que nos advém do Direito das Obrigações e que opera, também, no Direito Comercial. Na base temos o evento relevante para o Direito: facto em sentido amplo. Depois, distinguimos os atos dos simples factos stricto sensu, consoante o Direito considere os factos constitutivos
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 subjacentes como produto da vontade humana ou como eventos a ela alheios. Será ato bancário uma abertura de conta, enquanto a destruição de um bem dado em locação financeira é, à partida, um facto em sentido estrito. Os especialistas nacionais usam, por vezes, operação bancária para designar o ato. Todavia, operação implica, mesmo no Direito Bancário prático, um encadear de atos, visando certo escopo. Os atos podem ser lícitos ou ilícitos, subdividindo-se os primeiros em unilaterais – a emissão de um título – ou em contratuais – um mútuo bancário. No tocante aos factos em sentido estrito, é possível, no domínio bancário, recorrer à tradição civilística: teremos espaço para diversas manifestações de responsabilidade objetiva, para a gestão de negócios e para o enriquecimento sem causa. O Direito Bancário material é totalmente dominado pela autonomia privada: as partes podem determinar a existência de efeitos – liberdade de celebração – a natureza desses efeitos – liberdade de estipulação – e o modo por que eles ocorram – liberdade de forma. Tudo isso se verificará nas margens em que não surjam normas restritivas. Deve ficar claro que, em Direito Bancário, é possível efetuar todos os atos que a lei não proíba. Em concreto, há limitações do ordem prática. As instituições de crédito tornam-se centros de contratação maciça. Os diversos atos são realizados por funcionários habilitados, que agem em representação dos bancos: por razões de ordenação funcional, eles têm instruções para efetuar certas categorias de atos, predeterminadas. Apenas as administrações dos bancos dispõem de latos poderes de estipulação, reservando-os, em regra, para os contratos de maior vulto. Além disso, a generalidade da atuação bancária subordina-se a cláusulas contratuais gerais. Por isso, a liberdade de estipulação está, muitas vezes, limitada, em termos práticos. A autonomia privada mantém-se, porém, como fonte de juridicidade dos atos e da legitimação das soluções a que se chegue. Temos, pois, uma afirmação jurídica da liberdade económica – portanto: da empresa e do trabalho – subjacente ao Direito Bancário Material.
Comportamentos concludentes: cabe, depois, perguntar pelo âmbito da autonomia privada e, designadamente: a vontade jurígena das partes manifesta-se, apenas, através da contratação e de atividades unilaterais formalmente jurídicas ou admite-se, ainda, uma atuação puramente material mas juridicamente concludente, como fonte de situações bancárias? Ocorre, neste ponto, uma referência à já clássica doutrina das relações contratuais de facto. Na sequência de análises a que ficou ligado o nome de Günter Haupt, alguma doutrina apurou a existência de relações de tipo contratual, sem que surgisse qualquer contrato a antecede-las. Assim sucederia em situações de contactos sociais típicos de participação em relações comunitárias ou de prestação de serviços e bens essenciais que se iniciariam independentemente de qualquer acordo de vontades. Se bem se atentar, a doutrina das relações contratuais de facto, para além de poder implicar uma pressão antiliberal sobre a ideia básica do contrato, não apresentava qualquer unidade dogmática: ela apenas facultava a sistematização, sob uma designação unitária, de institutos diversos, dotados de regimes próprios. À medida que esses institutos se desenvolvam, há que autonomiza-los, em lugar próprio, sem miscigenações. Fica-nos como núcleo impressivo relevante, o dos comportamentos concludentes. Neste domínio, o Direito Bancário tem uma experiência importante. Muitos atos bancários correntes, designadamente os praticados através de autómatos, completam-se sem uma manifestação de vontade. Os protagonistas limitam-se a aderir a esquemas sociais de comportamentos predeterminados, sem formarem qualquer vontade consciente, seja do ato, seja dos seus efeitos. A tais ocorrências aplica-se o regime negocial. Mas haverá contrato? O pensamento jurídico-privado atual inclina-se para admitir uma concretização da autonomia não apenas através da vontade
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 mas, também, através da simples adesão a esquemas sociais de comportamentos concludentes. Se o ato jurídico, por definição, for apenas o facto humano voluntário, já não haverá, aqui, negócio, apenas uma relação negocial de facto. Sucede, no entanto, que o negócio jurídico é na realidade, sempre uma combinação entre a autonomia privada e a tutela da confiança: basta ver que o negócio vale enquanto vontade expressa e com o alcance em que o seja e não como pura volição. No comportamento concludente, dominará a vertente da confiança, sempre que – o que, por definição, não é, in concreto, verificável – falte uma vontade confirmada. Em suma: a doutrina clássica do negócio jurídico pode, ainda, reduzir dogmaticamente o fenómeno dos comportamentos concludentes. A necessária sindicância do Direito é assegurada através do controlo das cláusulas contratuais gerais.
30.º - Os sujeitos e o objeto
O banqueiro e o seu cliente: a situação jurídica bancária é simultaneamente caracterizada pelos seus sujeitos e pelo seu objeto. Como sujeito surge, necessariamente, uma instituição de crédito, uma sociedade financeira ou uma empresa de investimento, na enumeração hoje resultante do RGIC. O Código Comercial referia, simplesmente, os «bancos» - artigo 362.º CCom. Abrangia, assim, quer as entidades singulares, quer as coletivas, que se dedicassem, profissionalmente, à atividade bancária. Mais tarde, que se dedicassem, profissionalmente, à atividade bancária. Mais tarde, generalizou-se a figura da instituição de crédito, completada, nas reformas dos anos cinquenta, pelas instituições parabancárias e pelas instituições auxiliares de crédito. O RGIC, simplificando a situação anterior, adotou uma bipartição em instituições de crédito e sociedades financeiras, depois completada, por influência comunitária, com as empresas de investimento. Os bancos são, apenas, um dos tipos admitidos de instituição de crédito. No entanto, por se tratar de forma mais impressiva e historicamente moldante, eles deram o nome ao ramo global Direito Bancário. Retomando a elegante tradição continental, usaremos o termo banqueiro para designar, globalmente, as instituições de crédito, as sociedades financeiras ou as empresas de investimento, enquanto entidades legalmente habilitadas a praticar, em termos profissionais, atos bancários. A ideia de prática profissional deixa-se precisar com recurso aos seguintes parâmetros: É uma prática habitual: o banqueiro não se limita – como em qualquer profissão – a praticar atos ocasionais ou isolados; antes os leva a cabo em cadeira, numa sequência articulada; É uma prática lucrativa: o banqueiro pretende cobrir os custos da sua atividade e, ainda, realizar um determinado lucro; mesmo quando, por razões conjunturais ou de fundo, haja prejuízos, a atuação desenvolve-se com uma mira de benefício; por isso, toda a organização do banqueiro assume, de modo necessário, uma feição empresarial; É uma prática tendencialmente exclusiva e isso em dois sentidos: o
Artigo 8.º, nº.2 RGIC: só o banqueiro pode, profissionalmente, praticar atos bancários;
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Artigo 14.º, n.º1, alínea c) RGIC: o banqueiro só deve, pelo menos em termos nucleares, desenvolver atividades bancárias.
Como seria de esperar, a habitualidade, a natureza lucrativa e a exclusividade vão levar o banqueiro a assumir uma orgânica própria e muito especializada. Diversos mecanismos de controlo, entre nós supervisionados pelo Banco de Portugal, asseguram a adequação, dessa orgânica. A lei portuguesa tipifica as formas que pode assumir o banqueiro: instituições de crédito (artigo 3.º RGIC) e sociedades financeiras (artigo 6.º RGIC). Surgem os bancos e equiparados com uma capacidade bancária genérica e, depois, as diversas outras entidades, com um teor especializado (artigos 4.º, n.º2 e 7.º RGIC). A pessoa que contacto com o banqueiro é, tradicionalmente designada cliente do banqueiro ou, simplesmente, cliente. Os clientes podem ser classificados em função da sua própria natureza. Teremos clientes singulares e coletivos e, dentro destes, associações, sociedades ou instituições de diversa natureza, pública ou privada. Tem atualidade uma contraposição entre pequenos e grandes clientes: aos primeiros é dispensada uma tutela pelas regras de proteção do consumidor. A atividade bancária, pelo prisma do cliente é, hoje, pura e simplesmente instrumental. Assim, podemos considerar que quem tenha capacidade para a prática de determinado ato patrimonial tem, salvo exceção, capacidade para o fazer em modo bancário. A entidade que possa realizar determinado pagamento poderá celebrar uma abertura de conta, um depósito bancário e um acordo de emissão de cheque ou de emissão de cartão, para efetuar o pagamento em causa. Tanto basta para proclamar como princípio que pode ser cliente qualquer pessoa, singular ou coletiva, que tenha capacidade patrimonial privada. Tratando-se de entes públicos ou de pessoas coletivas privadas haverá, depois, que observar os respetivos estatutos internos74.
Os menores: o princípio acima enunciado tem uma aplicação tendencial às pessoas singulares. Os menores, os interditos e os inabilitados podem aceder à banca na medida em que estejam em causa atos ao alcance da sua capacidade de exercício. Quando isso não suceda, deverão ser representados ou assistidos, nos termos legais. No tocante aos menores, a regra básica é a da incapacidade – artigo 123.º CC. Os menores devem ser representados junto do banqueiro – artigo 124.º CC – numa regra que, nos termos prescritos e com as devidas adaptações, se aplica aos interditos – artigo 138.º CC – e aos inabilitados – artigo 153.º CC – aí através da assistência de um curador. Contudo, há exceções a ter em conta – artigo 127.º CC. Poucos atos bancários poderão ser considerados «próprios da vida corrente do menor» - artigo 127.º, n.º1, alínea b) CC; provavelmente, apenas seriam admitidas, por essa via, pequenas operações de câmbio. No entanto: O menor de dezasseis anos poderá praticar os atos bancários relativamente a bens que haja adquirido pelo seu trabalho – artigo 127.º, n.º1, alínea a) CC; O menor autorizado a exercer determinada atividade, relativamente aos bens que lhe advenham por essa via, poderá, igualmente, fazê-lo – artigo 127.º, n.º1, alínea c) CC; recorde-se que a idade mínima de admissão para prestar trabalho é de 16 anos: artigo 68.º, n.º2 do Código de Trabalho de 2009. 74
Não faz qualquer sentido vir exigir, a uma pessoa coletiva, uma expressa referência estatutária à capacidade para praticar atos bancários junto de instituições de crédito, em nome do princípio da especialidade. Desde logo, a contratação bancária é sempre idónea para a prossecução de fins societários: ficaria automaticamente abrangida pelo artigo 6.º, n.º2 CSC.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 O dispositivo vigente permite, pois, que o menor, devidamente autorizado, possa praticar atos bancários correntes, desde que tenha completado 16 anos. A partir daí, será de proceder a uma indagação, ato a ato. Existem produtos dirigidos a menores, devidamente representados. Resta acrescentar que, em vários países e quanto a fórmulas mais céleres de acesso ao crédito surgem, por parte das associações de defesa dos consumidores, prevenções em relação às práticas bancárias incentivadas junto dos jovens.
O objeto: o objeto (imediato) da situação jurídica bancária é o complexo de direitos e deveres emergentes do concreto ato bancário considerado. Normalmente – e à semelhança do que sucede no Direito dos Contratos, civis ou comerciais – o complexo em causa é sinteticamente designado pelo facto jurídico que o origine. Assim, podemos falar na situação jurídica pelo facto jurídico que o origine. Assim, podemos falar na situação jurídica abertura de conta para exprimir os direitos e os deveres que emergem para as partes – cliente e banqueiro – da celebração de um contrato de abertura de conta. A situação bancária, à semelhança do que ocorre com as diversas situações de tipo profissional, não se define, apenas, pelos sujeitos: o banqueiro que adquira, num restaurante, determinada refeições, para servir ao seu pessoal, não pratica atos regidos pelo Direito Bancário. Exige-se, ainda, um objeto especificamente bancário. A tendência, neste momento e em virtude da integração europeia, parece seguir no sentido da enumeração dos atos bancários e, daí, dos possíveis objetos das situações bancárias. Tal tendência é, de certo modo, contraditada pela permanente criatividade dos banqueiros e dos mercados bancários. Por influência comunitária encontramos, no RGIC, uma enumeração de operações consideradas bancárias, no seu artigo 4.º, n.º1; onde a lista é assumidamente exemplificativa (veja-se a última alínea s) do artigo). Por seu turno, os serviços de investimento, abrangem o prefigurado no artigo 199.º-A, n.º1. O n.º2 do mesmo artigo remete para a Diretriz n.º 2004/39 do Parlamente e do Conselho, de 21 abril, cujo anexo I, secção B, refere: 1) Custódia e administração de instrumentos financeiros por conta de clientes, incluindo a guarda e serviços conexos como a gestão de tesouraria/de garantias; 2) Concessão de créditos ou de empréstimos a investidores para lhes permitir efetuar transações sobre um ou mais instrumentos financeiros, transações essas em que intervenha a empresa que concede o crédito ou o empréstimo; 3) Consultoria a empresas em matéria de estrutura do capital, de estratégia empresarial e questões conexas e consultoria e serviços em matéria de fusão e aquisição de empresas; 4) Serviços cambiais, sempre que este serviço estiver relacionado com a prestação de serviços de investimento; 5) Estudos de investimento e análise financeira ou outras formas de consultoria geral relacionada com transações de instrumentos financeiros; 6) Serviços ligados à tomada firme; 7) Serviços e atividades de investimento, bem como serviços auxiliares do tipo a que se referem as Secções A e do Anexo I, relativos aos elementos subjacentes aos derivados a que se referem os pontos 5, 6, 7 e 10 da Secção C, caso estes estejam ligados à prestação de serviços de investimento ou auxiliares. O n.º3, por seu turno, remete para a secção C do mesmo anexo.
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Situações bancárias sem banqueiro; o abusivismo: em diversas decorrências, é possível diagnosticar situações bancárias sem banqueiro. De todo o modo, podemos deixar claro que tal paradoxo é excecional, com tudo o que isso implica, em termos interpretativos. Uma melhor exposição de conjunto requer a antecipação de uma classificação de atos bancários em função da entidade apta a praticá-los. Encontramos: Atos de natureza bancária absoluta; Atos de natureza bancária relativa; Atos de natureza bancária eventual. O ato de natureza bancária absoluta só pode ser praticado por instituições de crédito; é o que sucede com «a atividade de receção, do público, de depósitos ou outros fundos reembolsáveis, para utilização por conta própria» - artigo 8.º, n.º1 RGIC. O ato de natureza bancária relativa só pode ser praticado, a título profissional, pelas instituições de crédito e sociedades financeiras; é o que sucede com as atividades referidas nas alíneas b) a i) e q) do n.º1 do artigo 4.º RGIC – artigo 8.º, n.º2 RGIC. Finalmente e por exclusão de partes, serão eventualmente bancários os atos referidos nas alíneas j) a q) do artigo 4.º, n.º1 RGIC. Perante essa classificação, poderemos apontar as seguintes situações bancárias sem banqueiros: No tocante a atos de natureza bancária absoluta, os praticados pelas entidades anumeradas no artigo 8.º, n.º3, a saber: o
O Estado e seus fundos e institutos públicos;
o
As regiões autónomas e autarquias locais;
o
O Banco Europeu de Investimento e outros organismos internacionais de que Portugal faça parte;
o
As seguradoras, no respeitante a operações de capitalização;
o
Todas estas entidades deverão, no entanto, agir no âmbito das normas que, concretamente, lhes permitam essa atuação bancária.
Quanto aos atos de natureza bancária relativa, os levados isolada ou esporadicamente a cabo por entidades singulares ou coletivas; porque é que não se trate de um exercício profissional. Já quanto aos atos bancários eventuais: por razões estruturais, não será possível imaginá-los sem banqueiro. Em todos os casos compaginados, os atos bancários sem banqueiro seguem o regime próprio dos atos bancários. Apenas haverá que excluir: As regras afastadas ou substituídas por preceitos específicos: é o que sucede, em especial, pelos atos bancários praticados por entidades públicas; As regras que, por sua natureza ou finalidade, tenham exclusivamente a ver com a profissão de banqueiro. O abusivismo bancário consiste na prática de atos bancário vedados. Em abstrato, temos duas hipóteses: ou a prática, por não banqueiros, de atos de natureza bancária absoluta ou a prática profissional de atos relativamente bancários. A primeira hipótese é objeto de incriminação: é o
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 que resulta do artigo 200.º RGIC. A segunda tem a ver com ilícitos de mera ordenação social, com relevo para o artigo 211.º, alínea a) RGIC que prevê, a tal propósito, uma infração especialmente grave.
31.º - O conteúdo geral
Elementos normativos e voluntários: os tipos bancários: os atos bancários implicam um conjunto de efeitos a que podemos dar a designação global de conteúdo. Este sofre um tratamento analítico semelhante ao dos contratos. Podemos distinguir diversos elementos e, designadamente, os normativos e os voluntários, consoante advenham de normas jurídicas ou de atos – normalmente, contratos – celebrados pelas partes. Por seu turno, os elementos voluntários são necessários e eventuais. Os necessários devem ser providenciados pelas partes, sob pena de não se consubstanciar o negócio ou de surgirem invalidades irreparáveis. Os eventuais limita-se a afastar normas supletivas. O Direito Bancário faculta, ainda, diversas e esclarecedoras subclassificações. Assim, os elementos normativos podem ser legais, regulamentares ou usuais: a sua origem estará, respetivamente, na lei, em regulamentos ou nos usos bancários. Por seu turno, nos elementos voluntários podemos distinguir os voluntários gerais dos voluntários específicos: os primeiros advêm de cláusulas contratuais gerais, provindo os segundos de acordos especificamente concluídos. O conjunto representado pelos elementos normativos e pelos elementos voluntários necessários constitui o tipo contratual e, para o caso, o tipo bancário. Podemos, na base dos elementos predominantes, abrir diversas classificações nos tipos bancários. Teremos, assim, tipos legais, tipos regulamentares ou tipos usuais. O especial papel da autonomia privada, particularmente quando vertida em cláusulas contratuais gerais, permite distinguir os tipos sociais, em aproveitamento de terminologia habitual: trata-se de atos configurados por elementos repetidamente vertidos em cláusulas contratuais. Queda acrescentar que o Direito Português apresenta uma facilidade grande em confecionar tipos legais, em detrimento dos restantes: prolixidade legislativa tem levado o legislador português a regulamentar atos que, noutros países, têm mero apoio no costume, nos usos e na autonomia privada.
Conteúdo positivo: no estudo do conteúdo dos atos bancários, podemos distinguir um conteúdo positivo e um conteúdo negativo. O conteúdo positivo tem a ver com normas de imposição, isto é, com regras que prescrevem, para os atos bancários, determinados efeitos. O conteúdo negativo liga-se a normas de proibição: sem definir, precisamente, o espaço próprio dos atos bancários, tais normas fixam, para ele, limites inultrapassáveis. A existência de um conteúdo positivo de relativa extensão tem a ver, no setor bancário, com as preocupações de política económica, de salvaguarda do sistema e, mais recentemente, de tutela dos consumidores que nele dominam. Os poderes de supervisão concretizam todos esses elementos. Dada a natureza predominantemente relativa das situações bancárias, o conteúdo positivo dos diversos atos configura-se, prevalentemente, através de deveres cominados ao banqueiro. Tais deveres têm as mais diversas origens e configurações.
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Os deveres de competência, de adequação e de eficiência: o RGIC contém um Título VI relativo às regras de conduta do banqueiro. Aí, no tocante a deveres gerais, surgem-nos quatro figuras: A competência técnica – artigo 73.º RGIC; Outros deveres de conduta – artigo 74.º RGIC; O critério de diligência – artigo 75.º RGIC; O dever de informação e de assistência – artigo 77.º RGIC. A competência técnica dá azo a deveres de qualidade e de eficiência: o banqueiro deve assegurar ao cliente, em todas as atividades que exerça, «elevados níveis de competência técnica». A lei prossegue que, para tal, o banqueiro há de dotar «a sua organização empresarial com os meios materiais e humanos necessários para realizar condições apropriadas de qualidade e eficiência». Esta norma é importante. A atividade bancária é dominada por parâmetros tecnológicos e culturais em permanente ascensão. Podemos apontar exigências físicas, exigências de serviços e exigências bancário-culturais. A prossecução destes objetivos obriga o banqueiro a um esforço permanente de reorganização do trabalho e dos métodos e de formação do seu pessoal. Para oferecer boas condições ao seu cliente, o banqueiro terá e racionalizar os custos o que, no limite, poderá pôr em causa o objetivo pretendido. Trata-se, em suma, da eterna tensão entre a qualidade e o preço, num drama que, bem conhecido já da indústria convencional, chega, agora, também à banca. Particularmente vincado é o tema no domínio do pessoal bancário: uma redução nos custos passa pela utilização de computadores, em substituição dos tradicionais empregados e pelo outsourcing e portanto: pelo recurso a prestadores de serviços altamente especializados, mas alheios à instituição bancária considerada. Evidentemente: no limite, o banqueiro perde o capital humano, fundamental para assegurar a sua própria competência técnica. Os grandes banqueiros procuram solucionar o dilema, designadamente, pela especialização de estabelecimento. A mobilidade do banqueiro e a sua capacidade de surgir, no momento certo, perto do cliente, é decisiva. Todas as hipóteses estão em aberto, num devir permanente ditado e temperado pelas regras da arte bancária, da supervisão do banco central, da livre concorrência e da tutela dos utentes. A competência técnica, assim entendida, dever ser aproximados deveres prescritos no RGIC quanto às relações com os clientes, sob a epígrafe desnaturada e introduzida pelo Decreto-Lei n.º 2/2008, «outros deveres de conduta» - artigo 74.º RGIC – e quanto ao critério de diligência – artigo 75.º RGIC. As relações com os clientes levam o legislador a referir deveres de diligência, de neutralidade, de lealdade, de descrição e de respeito consciencioso dos interesses confiados ao banqueiro. Tais deveres só verbalmente podem ser isolados uns dos outros: a sua associação dá corpo à ars bancaria moderna. O critério de diligência, aparentemente orientado para os administradores e para o pessoal dirigente mas, no fundo, destinado ao próprio banqueiro, enquanto instituição, aponta para a bitola do banqueiro criterioso e ordenado. Trata-se da recuperação, com fins bancários, com fins bancários, da figura do bonus pater familias, prudente, ordenado e dedicado. Pergunta-se se os artigos 73.º, 74.º e 75.º RGIC, com o conjunto de deveres de adequação e de eficiência que deles resultem, se podem considerar como verdadeiras normas de conduta, fontes de direitos para os clientes ou se, pelo contrário, serão meras regras programáticas. O Direito Bancário, como Direito moderno e dinâmico, tem de ser preciso nos critérios e nas soluções. Ele não pode compadecer-se com regras vagas e imprecisas como as que temos vindo
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 a examinar. Se bem se atentar, apenas o mercado poderá, em última instância, afirmar se o banqueiro cumpre ou não os seus deveres de adequação e de eficiência. Os artigo 73.º, 74.º e 75.º RGIC são, assim, meras normas programáticas e de enquadramento. Na prática, eles terão de ser completados por outras regras, de natureza legal ou contratual, de modo a dar azo a verdeiros direitos subjetivos ou, pelo menos, a regras precisas de conduta, suscetíveis de, quando violadas, induzirem responsabilidade bancária Com essa prevenção, os preceitos em causa são significativos, sendo relevante a atenção que o legislador dispensou. Além disso, eles podem combinar-se com outras regras, de modo a proporcionar normas claras e precisas, próprias da área jurídico-económica aqui em estudo.
Conteúdo negativo; conformação legal: possibilidade e determinabilidade: o conteúdo das situações jurídicas bancárias deve obedecer às regras dos negócios jurídicos. Falaremos, a tal propósito e genericamente em conformação legal. No moderno Direito Bancário, tem vindo a ser acentuada a necessidade de se respeitar a lei civil: as normas especificamente bancarias são bastante raras. No fundo, mostra a experiência que os mais diversos desvios e abusos encontram soluções equilibradas perante as regras clássicas do Código Civil. O ato bancário deve ser física ou legalmente possível, conforme com a lei e determinável – artigo 280.º, n.º1 CC. A possibilidade é exigida pelo Direito Português- Admitir atos impossíveis equivale, pela natureza das coisas, a sujeitar o agente às consequências do incumprimento: nessa altura, parece construtivamente mais fácil formular, desde logo, um juízo de incumprimento do que imaginar atos impossíveis, depois não cumpridos. Não obstante, a atual doutrina obrigacionista sublinha que o próprio juízo de impossibilidade se reporta à prestação principal: a que o próprio juízo pode conservar-se assente nos deveres acessórios que subsistam. A conformidade com a lei é um requisito óbvio. No campo bancário, múltiplas regras de ordem pública, desenvolvidas, designadamente, pelo poder regulamentar do Banco Central, podem inviabilizar diversos atos, ferindo-os de nulidade. A determinabilidade obriga a recordar a distinção entre atos indeterminados e atos indetermináveis. No primeiro caso, encontramos uma atuação desconhecida, aquando da celebração do negócio, mas dotada de elementos que podem proporcionar a sua determinação, antes do cumprimento; é o que sucede nas hipóteses dos artigos 400.º e 883.º CC. No segundo, o ato é indeterminável, porquanto, na celebração, não é, de todo, configurável a feição que ele irá assumir afinal. Trata-se, em suma, de um ato aleatório, que pode facultar largas margens de arbítrio e que, inclusive, pode ser configurado como doação de bens futuros, vedada pelo artigo 942.º, n.º1 CC. A jurisprudência portuguesa tem vindo – e bem – a invalidar negócios bancários de conteúdo indeterminável.
Segue; bons costumes e ordem pública: o conteúdo bancário deve ser conforme com os bons costumes e a ordem pública – artigo 280.º, n.º2 CC. De acordo com a técnica hoje pacífica, podemos avançar que os bons costumes abrangem duas áreas: A das regras de comportamento pessoal, sexual e familiar que, embora não explicitadas no Código Civil, são reconhecidas e observadas na sociedade; A dos códigos de conduta e deontológicos, a observar em determinadas profissões. A primeira categoria de atuações contrárias aos bons costumes não é de fácil configuração no Direito Bancário, salvo o que, abaixo, se dirá quanto ao fim dos negócios. Em princípio, o Direito Bancário move-se num plano estritamente patrimonial, sendo-lhe indiferente o que se passe nas esferas das pessoas intervenientes. A segunda categoria tem um papel crescente. Os códigos
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 de conduta exprimem uma deontologia bancária que autolimita o banqueiro. A inobservância de regras deontológicas significativas é indutora de nulidade, por via da violação da regra dos bons costumes, prevista no artigo 280.º, n.º1 CC. Repare-se: a não ser esta construção, os códigos de conduta apenas poderiam ser aproveitados como normas de proteção, para efeitos de indemnização. Podemos ainda fazer aqui intervir a ética bancária, manifestação especializada da ética dos negócios. A ordem pública exprime, por seu turno, o conjunto de princípios injuntivos que não podem ser postergados pela autonomia privada. A ordem pública internacional representa o núcleo duro desses princípios que resiste, inclusive, à própria aplicação da lei estrangeira. No Direito Bancário surgem importantes vetores de ordem pública, por exemplo, no tocante aos limites existentes para a remuneração do capital. Encontraremos outras precisões a propósito do mútuo e da usura. O artigo 281.º CC configura a hipótese de apenas o fim do negócio jurídico ser contrário à lei ou à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes. Nessa eventualidade, o negócio apenas seria nulo quando o fim fosse comum a ambas as partes. A doutrina e a jurisprudência têm apontado a existência de um dever de não ingerência, por parte do banqueiro, nos negócios do seu cliente. Assim, na prática dos diversos atos bancários, o banqueiro teria mesmo a obrigação de não indagar o fim último dos atos praticados. Trata-se de um dever que serve o cliente mas, em simultâneo, o próprio banqueiro: este não poderia ser responsabilizado por finalidades que deveria desconhecer. O raciocínio afigura-se correto, com duas precisões: ele é válido para operações de caixa – portanto, operações passivas e conexas, tais como receção de depósitos ou realização, na base destes, de pagamentos – e conhece exceções legais, designadamente as induzidas das regras sobre branqueamento de capitais. Noutras operações, em particular na concessão de créditos significativos, a finalidade do negócio consta, mesmo e em regra, do próprio contrato. O banqueiro tem, nos termos gerais que norteiam a conclusão e a execução dos contratos, um dever especial de constatar a efetividade e a realização do fim em causa. Nestas hipóteses, o artigo 281.º é claramente aplicável, no domínio bancário. Os bons costumes e a ordem pública têm vindo a encontrar, no Direito Bancário, uma aplicação crescente. Inicialmente eles ocorrem, na jurisprudência alemã, a propósito da concessão indevida de crédito ou da sua não concessão, quando devesse ter lugar. Mais tarde, eles são usados para defender certas categorias de pessoas perante práticas bancárias agressivas. O controlo na base dos bons costumes vem-se generalizando. Estão em jogo algumas figuras a estudar no lugar próprio.
Secção II – Segredo Bancário 32.º - O segredo bancário e a sua justificação
O segredo em geral: diz-se obrigação de sigilo ou segredo o dever de não revelar determinados conhecimentos ou informações. Trata-se de um dever de non facere; o seu cumprimento pode, todavia, num plano acessório, exigir atuações positivas fechar portas e gavetas, usar cofres ou codificar elementos consoante a intensidade do dever. No campo contratual, o dever de segredo é, à partida, um dever acessório, cominado pela boa fé. Toas as informações ou conhecimentos
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 que um cocontratante obtenha, por via do contrato, não devem ser usados, fora do âmbito do contrato, para prejudicar a outra parte ou fora das expectativas dela. A regra do sigilo contratual corresponde a uma concretização da tutela da confiança. Pode dizer-se que a confiança é tanto mais forte quanto maior for a personalização da relação. O dever de sigilo manifestou-se, historicamente, em concreto. Pensemos no segredo de confissão dos padres católicos, de dimensão sacra. No campo jurídico, a posição de certas profissões como a dos médicos ou dos advogados, que têm acesso à mais íntima esfera dos seus clientes, é elucidativa. O dever de segredo, aqui, para além de uma resultante contratual, é, ainda, imposto por deontologias profissionais, sancionadas, em certos casos, por comissões e órgãos deontológicos próprios. Movemo-nos, aqui, num estrito plano pessoal. O segredo deixa, progressivamente, de ser uma exigência da tranquilidade contratual e da confiança bilateral, surgida entre os contratantes. Ele assume a dimensão de uma exigência pública, necessária para o funcionamento das instituições. O passo seguinte tema ver com a oponibilidade do sigilo a terceiros. Desta feita, o problema põe-se não já perante indiscrições do cocontratante, mas em face de outras entidades que, a qualquer título, tenha – ou possam ter – acesso às informações. Nessas condições está, desde logo, o próprio Estado. O segredo aproxima-se, desta forma,, do direito à intimidade sobre a vida privada e, mais latamente, dos direitos fundamentais relativos à personalidade. Estes, por seu turno, também sofreram uma evolução. No primeiro tempo eram, essencialmente, destinados a deter o Estado; posteriormente, eles vieram a mostrar-se eficazes, na tutela das diversas posições erga omnes. O desenvolvimento da Ciência do Direito e dos meios jurisdicionais de garantia das posições das pessoas vieram, progressivamente, a assegurar efetivas áreas de segredo profissional. O Estado e as ancestrais tendências invasivas humanas que se lhe acolhem vieram, daí, a desencadear uma contra ofensiva. Sob bandeiras como as da investigação criminal ou da voracidade fiscal, o Estado tem vindo a multiplicar as iniciativas tendentes a limitar, ou , até, abolir diversos segredos profissionais. Para isso, dispõe de elementos poderosos e de uma opinião pública facilmente mobilizável para cruzadas retorcivas e niveladoras.
Evolução geral da base positiva: o segredo bancário terá acompanhado, desde sempre, a profissão de banqueiro. Encontramos referências implícitas, nesse domínio, na antiga Babilónia. Subsequentemente, o segredo impôs-se nos usos da banca sendo severamente sancionado pela prática: nenhum banqueiro conhecido pela indiscrição seria procurado pelos clientes. O aparecimento de instituições bancárias formais levou à consignação, em textos estatutários e em cláusulas contratuais gerais, do dever de segredo. Como as mais antigas, surgem referidas as experiências do Banco de Santo Ambrósio, de Milão, em 1593 e do artigo 6.º das cláusulas da Hamburger Bank, de 1619. Em França, prescrições sobre segredo bancário datam de 1726, enquanto os estatutos do Banco instituído, em 1756, por Frederico o Grande, da Prússia, no artigo 19.º, faziam severas injunções nesse sentido. No tocante ao Direito Bancário privado, a necessidade do segredo deu azo a prescrições legislativas ou a simples – mas eficazes – consignações contratuais. No Direito alemão, o segredo bancário, derivado, pela doutrina, da confiança e apoiado na Constituição está formalmente consagrado no artigo 2.º, n.º1 das cláusulas contratuais gerais dos bancos. Em França dispunha o artigo 57.º da Lei Bancária de 1984, o qual remetia ainda para a lei penal as hipóteses de violação. Hoje, esse mesmo preceito consta do Código Monetário e Financeiro. Em Itália, o segredo bancário tem sido reconduzido aos usos, integrando-os no contrato por via do artigo 1374.º do Código Civil; aponta-se, ainda, uma consagração indireta na Nova Lei Bancária, de 1993. No Luxemburgo cabe referir uma
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 consagração legislativa expressa, enquanto na Suíça, a um uso muito arreigado, foram acrescentadas prescrições legislativas, historicamente destinadas a evitar as arremetidas de agentes nacional socialistas. O segredo bancário tem ainda sido objeto de considerações a propósito do aparecimento de bases de dados informatizadas e de diversos diplomas destinados a tutelar os direitos das pessoas, perante os perigos daí resultantes. As fusões de bancos, quando impliquem novos acessos às bases de dados preexistentes, põem problemas a esse nível, o mesmo sucedendo com o outsourcing. Na própria vida dos negócios, em geral, a informação passa a ser um bem com níveis pessoais, a manusear com cautela. A teia e interesses contrapostos, no campo do segredo bancário, tem ainda vindo a complicar-se: o próprio banqueiro, quando pretenda informações sobre o seu cliente ou quando, sem responsabilidades, procure prestar informações desse teor, contribui para apor limites no segredo e nas obrigações que o reforçam. Algo deve ser acrescentado. A sua radicação em lei expressa, a tanto destinada, parece deixá-lo à mercê do legislador. Deve no entanto ficar claro que o segredo bancário tem sedes mais profundas: elas podem ser cumulativas. Desde logo, o segredo bancário tem base contratual: seja no contrato bancário geral, seja nos diversos negócios bancários que venham a ser celebrados. Trata-se de uma solução que pode emergir diretamente do contrato ou que pode ocorrer por via dos usos ou de cláusulas contratuais gerais. Ora, o Estado não pode intervir arbitrariamente nos contratos celebrados entre privados: eles estão genericamente protegidos pelos artigos 62.º, n.º1 CRP (propriedade privada), artigo 80.º, alínea c) CRP (iniciativa privada) e artigo 86.º, n.º2 CRP (não intervenção na gestão das empresas). De seguida, o segredo bancário sempre surgiria como concretização do dever de boa fé: não sendo específico da realidade bancária ele tem, aí, um relevo profundo fácil de entender. Finalmente, o segredo bancário tem a ver com direitos de personalidade e com a inerente tutela constitucional: direitos do cliente, sobretudo mas, também, direitos do banqueiro. Trata-se de uma posição dominante na doutrina que tem acolhimento na melhor jurisprudência nacional e que, como é evidente, não é incompatível com certas limitações.
A experiência portuguesa e a sua evolução até ao RGIC: documentam-se, no século XVIII, referÊncias portuguesas ao segredo no domínio comercial. Seria, no entanto, necessário aguardar o aparecimento dos bancos para que tal segredo tomasse corpo. O Regulamento Administrativo do Banco de Portugal, de 28 janeiro 1847, dispunha, no seu artigo 83.º: «As operações do Banco, e os depósitos particulares, são objeto de segredo. «O empregado que o revelar será rempreendido, se da revelação não resultar damno; resultando será despedido». O Regulamento Administrativo do Banco de Portugal, aprovado em 23 abril 1891 e revogado – apenas – pelo artigo 3.º Decreto-Lei n.º 337/90, 30 outubro, dispunha no seu artigo 221.º: «As operações do banco e os depositos dos particulares serão assumptos de segredos para todo o pessoal da séde e das delegações, qualquer que seja a sua categoria. «Os empregados que as revelarem serão reprehendidos, se da revelação não resultar damno; resultando, serão despedidos». Para além das regras, cumpre assinalar a inexistência de tutela penal bancária, perante os Códigos Penais de 1852 e de 1884. O segredo bancário era, então, matéria privada, do foro do
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 banqueiro e do seu cliente. A História mostra que a consagração, em lei formal, do segredo bancário ocorre por via de crises ou de graves agressões à deontologia e à arte bancária. Admitimos que a popularização da banca tenha, também, contribuído para isso. Num cenário de estreito relacionamento pessoal entre o banqueiro e o cliente, o segredo era evidente: mal haveria que reafirma-lo. A massificação perturbou esse esquema. A evolução do segredo bancário, em Portugal, segue esta linha. Num primeiro tempo, ele seria derivado dos contratos e da boa fé- Além disso, ele assentava na invocação dos usos comerciais. A primeira consagração legislativa do sigilo bancário data de 1967: o Decreto-Lei n.º 47.909, 7 setembro desse ano, que criou o Serviço de Centralização de Riscos de Crédito, – artigo 1.º, n.º1, «com o objeto de centralizar os elementos informativos respeitantes aos riscos da concessão e aplicação do crédito bancário e parabancário». Segundo o artigo 3.º, n.º1, as instituições de crédito ficavam obrigadas a fornecer, ao Banco de Portugal, os elementos informativos pedidos. Continuava o n.º2: «Estes elementos não poderão ser utilizados para outros fins que não sejam os do Serviço de Centralização (…) ou os de elaboração para estatística» Rematando: «Não podem, em qualquer aso, os elementos informativos fornecidos pelas instituições ser suscetíveis de difusa violadora do princípio do segredo bancário que deve proteger as operações de crédito em causa». O artigo 5.º, do mesmo diploma, também relevava, em termos de segredo bancário. O sigilo era sancionado pelo artigo 6.º: «1. A violação do dever de segredo (…) por parte de administradores, membros do conselho fiscal, diretores, gerentes, empregados e outros servidores das instituições de crédito (…) constitui crime de violação do segredo profissional». Tratava-se de uma remissão para o artigo 290.º do Código Penal de 1886, que tutelava o dever de segredo dos empregados públicos. Durante a Revolução de 1974-75, o segredo bancário nem sempre terá sido respeitado, pelas pessoas que tinham acesso às informações. Segundo a voz corrente, muitos cliente ter-se-ão acolhido a instituições estrangeiras, dentro e fora do país, para prevenir fugas de informação. Além disso, recorria-se ao entesouramento de moeda que, deste forma, ficava arredada do circuito bancário. Nessas condições, não admira que o legislador tenha intervindo no sentido de reforçar o segredo bancário. Este surge nos artigos 63.º e 64.º da Lei Orgânica do Banco de Portugal, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 644/75, 15 novembro e nos artigos 7.º e 8.º Decreto-Lei n.º 729-F/75, 22 dezembro, que se ocupou da orgânica de gestão e fiscalização das instituições de crédito nacionalizadas. O segredo bancário foi, ainda, diretamente visado por uma Resolução do Conselho de Ministros de 19 dezembro 1975 e, de modo indireto, pela reformulação do artigo 290.º Código Penal 1886, levada a cabo pelo Decreto-Lei n.º 475/76, 16 junho. Havia que ir mais longe. Assim, o Decreto-Lei n.º 2/78, 9 janeiro, veio, formalmente, estabelecer o segredo bancário. É, pois, chegado o momento de se ensaiar (um) diploma do âmbito geral, caracterizador do segredo bancário, até porque, por um lado, se impõe, também, abranger as instituições de crédito não nacionalizadas e, por outro, a Lei Orgânica do Banco de Portugal e o texto regulador da orgânica de gestão e fiscalização das instituições nacionalizadas não alcançaram, na matéria, a desejável uniformidade. Passa, deste modo, Portugal a enfileirar no numeroso grupo de países nos quais estão em vigor disposições
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 regulando, expressamente, o segredo bancário. A violação do dever de segredo era sancionada, civil e criminalmente – artigo 3.º. O Decreto-Lei n.º 2/78 só previa dispensa mediante autorização dada pelo órgão de direção do banco, quando se tratasse de factos atinentes à instituição – artigo 2.º, n.º1 – ou pelo cliente, quando estivessem em jogo relações a este respeitantes – artigo 2.º, n.º2. A solução estabelecida foi considerada forte, dentro dos diversos sistemas de tutela do sigilo bancário. Havendo recusa do próprio, apenas era possível aceder à informação nos casos em que lei especial o permitisse e mediante decisão do Tribunal.
O regime do RGIC: a evolução posterior foi marcada por um certo enfraquecimento do segredo bancário. Tal enfraquecimento deu-se, no entanto, perante o Estado, por exigências policiais e fiscais e não, propriamente, perante os particulares. O Decreto-Lei n.º 2/78 manteve-se em vigor, até ser revogado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, 31 dezembro – artigo 5.º, n.º1 – que aprovou o RGIC. Tal revogação ficou a dever-se ao facto de o próprio RGIC ter chamado a si a matéria, regulando-a, aliás, em termos mais aperfeiçoados. O RGIC dedicou, ao segredo profissional, o Capítulo II, do Título VI. Dispõe o seu artigo 78.º: «1. Os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços. «2. Estão designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e os seus movimentos e outras operações bancárias. «3. O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços». O artigo 79.º só permite a revelação, mediante autorização do cliente – n.º1. O n.º2 admitia as seguintes exceções: revelações ao Banco de Portugal, à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e ao Fundo de Garantia de Depósitos – alíneas a), b) e c); revelações nos termos previstos na lei penal e de processo penal – alínea d); perante disposição legal que limite expressamente o dever de segredo – alínea e). A Lei n.º 94/2009, 1 setembro, introduziu uma nova alínea e), passando a antiga a alínea f). Essa nova alínea permite a revelação dos factos sujeitos a segredo «à administração tributária, no âmbito das suas atribuições». Tem interesse relevar os preceitos penais que delimitem o dever de segredo. Quanto ao Código Penal, consigne-se o artigo 195.º, na versão aprovada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, 15 março. Repare-se que desapareceu a anterior exclusão de ilicitude, prevista no revogado artigo 185.º Código Penal. Embora o sistema vigente permita consignar algumas situações de exclusão de ilicitude, através do esquema geral do artigo 36.º Código Penal, perante o conflito de deveres, parece-nos claro que, da reforma de 1995, resultou um reforço da tutela penal do segredo profissional e, para o caso, do segredo bancário.
A defesa do segredo bancário fundamentos: o segredo bancário deve ser preservado, nas nossas sociedades. Em termos jurídico-positivos, o segredo bancário começa por se apoiar na própria Constituição e, designadamente, nos seus artigos 26.º, n.º1 e 25.º CRP. Como ponto de partida, recordamos que a propriedade privada é expressão e é condição da liberdade das pessoas: sem possibilidade de decisão económica e de livre autonomia patrimonial – autonomia
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 que, para o ser, requer pelo menos alguns meios – não há liberdade em nenhuma aceção. A aventura das democracias populares demonstrou-o, em todos os níveis. Pois bem: uma esfera de resguardo e de tranquilidade, para o ser, pressupõe também o resguardo da propriedade ou de alguma propriedade. Esta, na Idade Média, traduzia-se em terras, incluindo a cabana ou a courela. Atualmente, a propriedade é disponibilidade de meios económicos, dotados, em regra, de expressão bancária. O Direito Bancário acompanha, hoje, quase todas as operações patrimoniais praticadas pelas pessoas. O banqueiro pode, através da análise dos movimentos das contas de depósitos ou dos movimentos com cartões, seguir a vida dos cidadãos. O banqueiro – até por ter muitos milhares de clientes – não o fará: não o deve fazer. Mas facultar tais elementos a terceiros é pôr cobro à intimidade das pessoas. Além do problema da intimidade privada, o desrespeito pelo segredo bancário põe ainda em causa a integridade moral das pessoas atingidas. A revelação de depósitos, movimentos e despesas pode ser fonte de pressão, de troça ou de suspeição. Os movimentos que labutam pelo fim do segredo bancário distinguem-se, ainda, pelo apelo público à delação e à denúncia: algo que ainda há pouco seria considerado indigno. Numa sociedade humanista, tudo isto é impensável. Sendo assim, o segredo bancário só cessa com o consentimento do cliente: é o que resulta do artigo 79.º, n.º1 RGIC e do artigo 195.º Código Penal. Tal consentimento equivale a uma limitação voluntária de um direito de personalidade – o direito a reserva sobre a intimidade da vinda privada, artigo 80.º CC – dotado de cobertura constitucional – artigos 25.º, n.º1 e 26.º, n.º1 CRP e relativos aos direitos à integridade moral e à reserva da intimidade da vida privada e familiar. Há. Por isso, que lhe aplicar o regime do artigo 81. CC, donde resulta que: O consentimento é nulo por contrário à ordem pública, isto é, se surgir de tal modo que envolva um atentado a valores injuntivos da ordem jurídica; designadamente: o consentimento terá de ser minimamente delimitado, quanto aos atos a revelar e quanto ao período a que respeitem: ninguém se pode despojar, ilimitadamente, do seu segredo bancário; O consentimento é sempre revogável ainda que envolva uma obrigação de indemnizar. O segredo bancário deriva, ainda, da existência de uma relação jurídica bancária, de base contratual. Ao concluir a abertura de conta, o banqueiro e o seu cliente, explícita ou implicitamente, assentam em que o sigilo será respeitado. Quando o não façam: o sigilo sempre se imporia como dever acessório, imposto pela boa fé (artigo 762.º, n.º2 CC). O banqueiro, ao quebrar o sigilo, viola a relação bancária básica. Além disso não vemos a que título poderá um terceiro – seja ele o Estado – imiscuir-se numa relação contratual, quebrando o segredo. Os contatos também são propriedade privada: devem ser respeitados pelo Estado. Eles desfrutam da proteção resultante do artigo 62.º, n.º1 CRP. Temos, ainda, razões públicas que recomendam a defesa do segredo bancário. A experiência de 1975 vai-se desvanecendo: na altura, parecia bem que ativistas políticos devassassem as contas bancárias das pessoas com quem não concordassem politicamente. O Estado estabeleceu um segredo máximo, para defender o sistema. Hoje, os ativistas reivindicam-se de democracia. Todavia: é naïf pensar que, por via bancária, se vão descobrir as grandes manigâncias e os grandes tráfegos. Umas e outros podem ser mascarados de movimentos legítimos e titulados ou deslocalizados, para paraísos sem interferência. Apanham-se, sim, os (pequenos) incautos e incomoda-se muita gente, por puro sensacionalismo ou por retorção pessoal ou política. O perigo de ingerência dos Estados
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 modernos na vida das pessoas, ainda que a coberto de boas causas, como o combate ao branqueamento ou à fuga fiscal, abaixo referidos, é muito real. Os juristas devem defender a sua Ciência. Apenas valores claramente superiores – e, em princípio, de natureza não patrimonial – poderão consentir sob a forma de lei com cobertura constitucional, limitações ao segredo bancário; além disso, tais limitações são claramente excecionais. Nada fazer é deixar perfilhar, no horizonte, o vulto orewliano do Grande Irmão.
A proteção de dados pessoais em face da informática: o segredo bancário vem, ainda, a ser tutelado pela Lei de Proteção de Dados Pessoais Face à Informática, aprovada pela Lei n.º 10/91, 29 abril, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 67/98, 26 outubro – a Lei de Proteção de Dados Pessoais75. Efetivamente, os elementos tutelados pelo segredo bancário constam de ficheiros automatizados, de bases e bancos de dados pessoais. A constituição de tais bases e a sua atualização fora do estritamente permitido pelos clientes submete-se à apreciação da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), que funciona junto da Assembleia da República. Também se deve referir a Lei nº. 41/2004, 18 agosto, que veio transpor a Diretriz n.º 2002/58/CE, 12 julho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no setor das comunicações eletrónicas. Esta Lei foi alterada pela Lei n.º 46/2012, 29 agosto, a qual transpõe a Diretriz 2009/136/CE. Temos, aqui, uma instância de proteção que, além do seu papel intrínseco, confere mais uma linha significativa ao sistema, no seu todo: não pode, o legislador, desfazer sem critério o que, laboriosamente, vai construindo. O intérprete, por seu turno, deve ater-se ao sentido global do ordenamento.
33.º - Limitações ao sigilo bancário: branqueamento e fiscalidade
O regime processual do levantamento: o sigilo bancário conhece algumas exceções. Perante o Direto privado o segredo só cede perante quem tenha um direito bastante relativo ao bem que esteja – ou possa estar – na posse do banqueiro. É o que sucede em face dos sucessores do cliente ou os seus credores, em processo executivo. No Direito Público, para além dos casos específicos do branqueamento e da fuga fiscal, a quebra do segredo exige imperiosas razões de interesse geral, a confirmar pelo tribunal. É totalmente insuficiente afirmar que a administração da justiça deve prevalecer sobre a proteção do consumidor de serviços financeiros e da confiança na banca, demasiado divulgada na jurisprudência atual: por essa linha, admitir-se-ia o soro da verdade, o polígrafo imposto ou a tortura. O segredo protege a personalidade, no sentido pleno do termo. O regime processual da quebra do sigilo mostra o cuidado posto pelo ordenamento, nesta matéria. O artigo 135.º Código Processo Penal, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 317/95, 28 novembro e, por último, pela Lei n.º 48/2007, 29 agosto, sob a epígrafe «segredo profissional», assim mostra. A ei de processo penal pôs a maior dignidade na quebra do segredo. O artigo 416.º, n.º4 CPC 2013, equivalente ao artigo 519.º, n.º4 CPC 1961, remete a quebra do sigilo, para o disposto no processo penal. Resta sublinhar que a prevalência do interesse preponderante deve ser tomada em termos substantivos e valorativos: apenas on interesses subjacentes a um crime grave prevalecem sobre os bens de personalidade em jogo 75
A Qual transpõe para a ordem interna a Diretriz n.º 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 outubro.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 no segredo: ela deve limitar-se ao necessário enquanto o segredo se mantém como tal, fora do processo onde foi revelado.
O levantamento perante os tribunais; a) situações públicas, até 1 março 2011: aparentemente, a quebra do segredo profissional, a decidir pelos tribunais nos termos das leis, acima indicadas, prestar-se-ia a dúvidas. A prevalência do interesse preponderante surge, na verdade, como um conceito indeterminado, a concretizar perante os problemas a decidir. Adiantamos, todavia, que, na prática as situações que justificam a quebra do segredo – para o caso: bancário – acabam por ser bastante consensuais. Num primeiro momento, os tribunais vieram reafirmar o sentido firma da tutela do segredo, nos termos do Decreto-Lei n.º 2/78. Segundo dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, o sigilo só cederia quando a lei o determinasse. Os tribunais foram, depois, assumindo uma feição mais favorável à quebra do segredo bancário, perante o problema dos crimes. Subsequentemente, referem-se as situações nas quais se justifica a quebra do segredo, particularmente quanto a factos que originem processo-crime. O artigo 185.º Código Penal, na versão anterior à reforma de 1995, e a afirmação de que o «interesse na boa administração da justiça prevalece sobre o da proteção do consumidor de serviços financeiros e da confiança na banca», passaram, depois, a animar a jurisprudência sobre segredo bancário. Trata-se de uma orientação reforçada pela alteração, introduzida no artigo 135.º, n.º2 CPP, pelo Decreto-Lei n.º 317/95, 28 novembro, que permite ao Tribunal decidir, em certos casos, de prestação de testemunho, com quebra do segredo profissional, quando tal se mostre justificado face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. Alguma jurisprudência chega mesmo a proclamar que o ius puniendi se sobrepõe ao sigilo bancário enquanto os esquemas que permitam decidir a quebra vêm sendo aperfeiçoados. É muito importante a posição do Supremo Tribunal expressa em STJ 17 fevereiro 1998: «Com base no dever de colaboração para a descoberta da verdade, a parte não pode ser forçada, em princípio, a prescindir de direitos de que seja beneficiária, como é o direito a que os bancos respeitem o dever de sigilo bancário (artigo 519.º CPC)». Na evolução mais recente sobre o levantamento do segredo por razões públicas, encontramos algumas flutuações. Da jurisprudência mais recente, podemos respigar as seguintes diretrizes: A recusa legítima, de uma instituição de crédito revelar elementos abrangidos pelo segredo bancário só pode ser ultrapassada pela via do artigo 135.º, n.º3 CPP; Pode recorrer à instituição de crédito, a quem tenham sido solicitados elementos cobertos pelo sigilo; Justifica-se a quebra do sigilo bancário, para investigar crimes fiscais; Idem, num caso em que um contribuinte adquiriu quotas por um valor muito superior aos rendimentos declarados e sem explicar a sua proveniência. Mesmo para além do sigilo bancário, retemos, quanto ao segredo profissional: Pode justificar-se o levantamento do segredo de advogado;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Num caso de abuso de criança, o consentimento do representante desta exclui o dever de sigilo do médico. Em todos estes casos, temos: Uma ponderação de interesses que revela a prevalência dos valores públicos; Essa prevalência não é automática: antes ressalta em concreto; A ponderação é levada a cabo por um tribunal da Relação. Como se vê, toda esta matéria tem um peso e uma dignidade que não se compadeciam com ligeirezas.
Segue; após 1 março 2011: a Lei n.º 36/2010, 2 setembro, veio, em conjunto com a Lei n.º 37/2010, do mesmo dia, constituir um pacote anti sigilo bancário. Comecemos pela primeira que, prevendo 180 dias de vacatio, entrou em vigor em 1 março 2011. No essencial, ela veio dar uma nova redação ao artigo 79.º, n.º2, alínea d) do RGIC. Onde antes se dizia que, fora de autorização do particular visado, os elementos cobertos pelo dever de segredo só podiam ser revelados «nos termos previstos na lei penal e do processo penal» veio dizer-se, agora, que tal poderia ocorrer «às autoridades judiciais, no âmbito de um processo penal». Aparentemente, desaparecem as cautelas processuais existentes e, designadamente, as do artigo 135.º CPP, que obrigavam a um específico incidente de levantamento, a decidir pelo Tribunal superior. Efetivamente, passou a ser esse o entendimento da jurisprudência. A medida faz sentido: o incidente de levantamento do sigilo, em investigações criminais urgentes, podia prejudicar o processo. Todavia, a banalização do levantamento a qualquer investigação, decidida apenas pelo MP e isso numa altura em que o segredo de justiça atingiu a estaca zero, afigura-se demasiado. Exigir-se-ia, sempre, uma decisão do juiz, perante um pedido devidamente justificado. A partir de agora, corremos o risco de qualquer investigação de conteúdo patrimonial começar logo com um levantamento de sigilo. E isso quando é mais do que evidente que o prevaricador terá colocado os seus fundos em bancos que respeitem o segredo, designadamente em off shores.
Segue; c) situações privadas: nas relações privadas, o levantamento do sigilo bancário só pode ocorrer em conjunturas muito particulares. No fundo, o que se verifica é uma situação global que faz, ao sigilo, perder o seu alcance. Assim: O sigilo não pode ser oposto aos herdeiros do cliente do banqueiro; na mesma linha, ele pode ser levantado em processo de inventário; Quando um dos cônjuges recuse o levantamento do sigilo, há que recorrer ao suprimento judicial previsto no artigo 1684.º, n.º3 CC; de todo o modo, o sigilo do marido cede perante interesse da mulher em conhecer os bens existentes, em ação de partilha dos bens do casal ou num divórcio litigioso; O sigilo cessa perante o arrolamento; neste último caso, o Supremo teve o cuidado de explicar que se tratava, apenas, de revelar o essencial, sem pormenores; também entendeu que, no arrolamento de conta bancária, dado o segredo, bastava indicar o estabelecimento e o nome do titular; O sigilo cede perante a penhora;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 O sigilo não vigora nas relações internas entre o banco e o seu trabalhador: o arguido de depósitos irregulares na própria conta pode ver o empregador inspecionar a mesma, para efeitos disciplinares; entendeu-se, porém, que o sigilo pode impedir o exercício da ação disciplinar; O sigilo pode ceder para e apurar a validade de certos negócios jurídicos, para se fixarem alimentos ou para averiguar uma mega fraude; Não pode, com base no sigilo, recursar-se a indicação de quem são os sócios de um cooperativa de crédito. De todo o modo, a jurisprudência atual deixa sempre pairar a exigência de uma concreta ponderação de interesses, nunca devendo a quebra do sigilo ir além do necessário. Trata-se de uma orientação que merece inteiro aplauso. O segredo é concedido, em primeira linha, em benefício do cliente: não do banqueiro, embora surja evidente que este, para além do dever, tem também todo o interesse na sua defesa. Parece ainda resultar um certo abrandamento no tocante à litigiosidade ligada ao segredo bancário. Os operadores jurídicos – particularmente as partes interessadas – têm uma consciência crescente dos limites privados do segredo. Assim, quando solicitadas, prestam espontaneamente as informações pedidas.
O branqueamento de capitais: branqueamento designa, em geral, a utilização de banqueiros para dissimular a origem criminosa da obtenção de fundos. Temos elementos interessantes na Alemanha, em França e em Itália e, ainda, em países que não pertencem à União Europeia. O problema liga-se ao crime organizado e ao tráfego de droga. O artigo 368.º-A Código Penal, aditado pela Lei n.º 11/2004, 27 março, refere: «factos ilícitos típicos de lenocídio, abuso sexual de crianças ou de menores dependentes, extorsão, tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, tráfico de armas, tráfico de órgãos ou tecidos humanos, tráfico de espécies protegidas, fraude fiscal, tráfico de influência e demais infrações referidas no n.º1 do artigo 1.º da Lei n.º 36/94, 29 setembro». A dimensão assumida por estes temas levou ao aparecimento de instrumentos internacionais determinados a combate-los, com relvo para a Diretriz n.º 91/308/CEE, do Conselho, 10 junho; transposta para a ordem interna pelo Decreto-Lei n.º 313/93, 15 setembro. A Diretriz foi alterada pela Diretriz n.º 2001/97/CEE, 4 setembro. Esta foi transporta pela Lei n.º 11/2004, 27 março. Entre outros aspetos, este diploma previa o seguinte: Uma obrigação do banqueiro de identificar o seu cliente habitual ou o ocasional que efetue uma transação que atinja ou ultrapasse os 12500€ e de apurar, na hipótese de atuação por conta de outrem, quem é o dominus (artigo 15.º); Um dever do banqueiro de denunciar à autoridade judiciária competente suspeitas de operações capazes de implicar o crime de branqueamento (artigo 18.º); Um dever de não praticar atos de branqueamento (artigo 4.º). O Decreto-Lei n.º 325/95, 2 dezembro, viera punir o branqueamento de fundos provenientes de crimes de terrorismos, tráfego de armas, extorsão de fundos, rapto, lenocídio, corrupção e outras infrações. Além disso – artigo 3.º - alargou a estas situações os deveres do banqueiro já
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 impostos quanto à matéria dos fundos provenientes do tráfego de droga. Tudo isto deve ser articulado, no processo, de modo a permitir a defesa dos arguidos. O Decreto-Lei n.º 325/95 acabaria por ser revogado pela Lei n.º11/2004, 27 março, que absorveu as suras regras. Lei essa que foi substituída pela Lei n.º 25/2008, 5 junho. Temos, hoje, toda uma produção legislativa referente à matéria do branqueamento. A matéria do branqueamento vem surgindo com parte de um subsistema – o do Direito Penal financeiro – cujo manuseio exige, hoje, um conhecimento e uma prática cada vez mais especializados. A globalização da economia e a facilidade com que se transferem fundos para qualquer ponto do Planeta torna agudos problemas antigos, merecendo a atenção dos legisladores. O terrorismo internacional constituiu mais um ensejo, nesse sentido. O legislador europeu reformulou os seus quadros. Foram adotadas as Diretrizes n.º 2005/60(CE, 26 outubro e Diretriz n.º 2006/70/CE, 1 agosto. Estes diplomas foram transpostos pela Lei n.º 25/2008/Cem 5 junho. Este diploma aplica-se a entidades financeiras (artigo 3.º) e não financeiras, tais como casinos e pagadores de apostas (artigo 4.º), sujeitandoas aos seguintes deveres gerais (artigo 6.º), depois explicitados: a) Dever de identificação; b) Dever de diligência; c) Dever de recusa; d) Dever de conservação; e) Dever de exame; f)
Dever de comunicação
g) Dever de abstenção; h) Dever de colaboração; i)
Dever de segredo;
j)
Dever de controlo;
k) Dever de formação. No fundo, está em causa um dever de conhecer a realidade financeira a que se reportem e de comunicar as anomalias às entidades competentes. São proibidas as relações com bancos de fachada (artigo 30.º, n.º1). Os próprios advogados e solicitadores devem comunicar ao bastonário da Ordem e ao presidente da Câmara dos Solicitadores, respetivamente, as «operações suspeitas», as quais, «sem filtragens», as restransmitirão ao Procurador geral da República e à Unidade de Informação Financeira (artigo 35.º, n.º1). A fiscalização dos deveres em jogo é atribuída à CMVM e ao Instituto de Seguros de Portugal, conforme as atribuições – artigo 38.º, alínea a). Fica previsto todo um esquema sancionatório aplicável, inclusive, aos advogados (artigo 58.º, n.º1). Foi alterada a Lei n.º 52/2003, 22 agosto (artigo 61.º), revogandose a Lei n.º 11/2004, 27 março (artigo 65.º). A própria Lei n.º 25/2008, 3 outubro, foi alterada pelo Decreto-Lei n.º 317/2009, 30 outubro e pela Lei n.º 46/2011, 24 junho. Estamos perante normas graves, que vêm bulir com a deontologia de várias profissões. O jurista deverá consideralas justificadas, pelo menos enquanto mantiverem os perigos graves que pretendem enfrentar.
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Secção III – A informação bancária 35.º - A informação ao cliente
O tema: o Direito Bancário, enquanto Direito do dinheiro e dos setores sociais especializados no seu manuseio é, crescentemente, um Direito de serviços. À partida, uma parte importante do estatuto jurídico do dinheiro seria dado por Direitos Reais – a propriedade da moeda ou dos metais preciosos – e pelos contratos translativos de direitos reais – a compra e venda, a troca e o mútuo. No entanto, a desmaterialização da moeda veio obrigar ao recurso a esquemas obrigacionais de teor cada vez mais abstrato. «Ter dinheiro» é, na maioria dos casos, dispor de um crédito mobilizável sobre um banqueiro; fazer um pagamento é ceder esse crédito a um terceiro o qual, por seu turno, vai transferir o inerente débito para outro banqueiro. As operações monetárias mais simples são, no fundo, atuações simbólicas dos operadores, uns perante os outros, atuações essas a que se associa o surgimento de vínculos abstratos. Tudo isto só é possível através de comunicações permanentes entre todos os intervenientes ou, em termos mais analíticos, de informações. Se o núcleo bancário mais duro – o do dinheiro e das operações a ele relativas – vive já sob o signo da informação, muito mais isso sucede com a restante atividade do banqueiro. A relação bancária duradoura, estabelecida entre o banqueiro e o seu cliente, é uma relação de permanente informação entre as partes. Informações sobre o passado – os banqueiros têm arquivos inesgotáveis, aos quais o cliente recorre em permanência para reconstituir a sua própria atividade – informações sobre o presente – qualquer operação, até porque abstrata, não pode ser concluída sem uma permanente troca de elementos informativos – e informações sobre o futuro: que negócios desenvolver, em que circunstâncias e com que alternativas. Para além disso, o banqueiro pode dar apenas com autorização do próprio – informações sobre o seu cliente a terceiros; os banqueiros trocam informações entre si; o banqueiro aconselha o seu cliente, informando-o dos distintos elementos, antes e depois da contratação. O Banco Central pede e dá informações sobre os mais diversos campos da atividade bancária, incluindo elementos relativos aos clientes. Há zonas inteiras da banca que se dedicam, apenas, a informações. O Direito Bancário é um Direito de informações. É certo que essa afirmação vale, em grande parte, para todos os setores sócio económicos das modernas sociedades pós-industriais: afinal, a extrema divisão do trabalho só é pensável perante um teia permanente de informações entre todos os intervenientes. Mas no Direito Bancário, em face da perfeita predeterminação dos intervenientes – banqueiro e cliente – e tendo em conta o valor das operações e a necessidade extrema da precisão, as informações redobram de valor e assumem um papel pioneiro, em termos de regulação. Digamos que, no Direito Bancário, as informações surgem como objeto principal de muitas obrigações, como as derivadas de um contrato de acompanhamento ou de aconselhamento. Mas mesmo acessórias, elas assumem um peso particular pelo setor onde ocorrem. Ao longo de todo o Direito Bancário, vamo-nos deparar com as mais diversas manifestações do dever de informar. Qualquer situação jurídica bancária postula informações. Parece-nos, assim, especialmente adequado, sem prejuízo pelo desenvolvimento das diversas rubricas, referenciar os grandes quadros que norteiam a obrigação de informar.
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Modalidades: a presença, acima referida, de numerosas manifestações de deveres de informar, no Direito Bancário, recomenda que se proceda à sua classificação, agrupando os deveres existentes em modalidades características. São vários os critérios possíveis. De acordo com a fonte, os deveres de informação podem resultar: De cláusulas gerais; De lei estrita. No primeiro caso, o dever de informação decorre de prescrições indeterminadas, também ditas cláusulas gerais, com relevo para a boa fé in contrahendo ou para a observância de ao fé na execução dos contratos – artigos 227.º, n.º1 e 762.º, n.º2 CC. No segundo, o dever é inculcado por lei expressa a tanto dirigida: o artigo 573.º CC é o mais característico exemplo. Pode incluirse aqui, também o dever de informação que tivesse sido expressamente pactuado por contrato. O dever de informação, proveniente de cláusulas gerais, pode, ainda, subdividir-se; temos: Cláusulas gerais legais, quando a própria lei as prescreva diretamente; tal a situação das remissões para a boa fé objetiva; Cláusulas gerais honorárias ou doutrinárias, quando haja que recorrer a doutrinas, tais como a dos deveres do tráfego, acima referenciados. Também o dever derivado da lei estrita admite uma subdistinção. Assim, encontramos: Lei estrita geral: o caso do artigo 573.º, que prevê, em termos gerais, a hipótese de surgimento do dever de informar; Lei estrita específica: as diversas hipóteses em que a lei manda comunicar, avisar ou informar alguém, de alguma coisa; no Direito Bancário temos, como exemplo, o artigo 75.º, n.º1 RGIC. De acordo com o conteúdo, o dever de informação pode ser: Indeterminado: quando não seja possível determinar previamente o seu conteúdo. Tal a situação das informações in contrahendo; Preciso: quando a sua predeterminação seja viável. Pense-seno caso do dever de comunicar a receção tardia ou a cedência do locado, previstos, respetivamente, nos artigo 229.º, n.º1 e 1038, alínea g), ambos CC. Entre os dois extremos apontados, há múltiplas graduações possíveis. Tendencialmente, poderemos considerar que os deveres de informação decorrentes de cláusulas gerais são indeterminados, enquanto os provenientes de leis estritas específicas são precisos. Mas não fatalmente. Ainda quanto ao conteúdo, é possível distinguir: Deveres de informação substanciais: o obrigado está adstringido a veicular a verdade que conheça, descrevendo-a, em termos explícitos; Deveres de informação formais: o obrigado fica vinculado, apenas, a transmitir uma mensagem prefixada ou, se se quiser, codificada. Assim, no caso da boa fé in contrahendo, o obrigado deverá descrever toda a realidade relevante para a contraparte, procurando termos adequados para o fazer com fidelidade; já no dever de
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 comunicar uma receção tardia, o obrigado apenas dirá: recebi tarde, fora de tempo ou equivalente. Em princípio, a substancialidade variará na razão inversa da precisão: quanto mais preciso for um dever, mais formal será o seu cumprimento; quanto mais indeterminado, maiores as exigências da substancialidade. Surge, daqui, o critério da autoria da determinação dos deveres de informação. Temos duas hipóteses básicas: Determinação autónoma: quando o próprio obrigado tenha o encargo de, à medida que a situação progrida, ir fixando os termos a informar e a matéria a que respeitem: pense-se na culpa in contrahendo; Determinação heterónoma: sempre que a fixação da informação não caiba ao próprio. E então, duas subhipóteses: Determinação automática: quando resulte, objetivamente, da situação em causa; Determinação pelo beneficiário: sempre que caiba, a este, proceder à configuração do dever de informar. Por fim, encontramos o critério dogmático ou critério da inserção no vínculo. A informação pode ser objeto de prestação principal, de prestação secundária ou de deveres acessórios. Perante um contrato cujo objeto seja, precisamente, o aconselhamento e a informação, esta vai surgir como objeto da prestação principal, a cargo do banqueiro. Num negócio com diversos elementos é plausível a presença de cláusulas não dominantes que prevejam informações: a prestação é secundária. Finalmente, em qualquer situação contratual ou, mesmo, pré ou póscontratual, a boa fé pode determinar a prestação de informações: trata-se de um dever acessório. Estas diferenciações são relevantes para a determinação do âmbito e da intensidade da informação a prestar.
Informação ao cliente: numa situação bancária, ambas as partes ficam – ou podem ficar – adstritas a trocar determinadas informações. O Direito Bancário tem vindo, porém, por evidentes razões de ordem prática, a concentrar-se sobre as informações a prestar pelo banqueiro. Como base de estudo, devemos assentar em que o problema se põe, apenas, quando o banqueiro deva informar, a título principal, secundário ou acessório, nos termos acima explanados: integra-se, assim, o artigo 485.º, n.º2 CC. Ora, à partida, não há qualquer dever geral, por parte do banqueiro, do prestar informações: o banco não é, por profissão, uma agência de informações e mesmo esta teria de ser contratada, para informar. Por isso, o dever de informação só ocorre quando o banqueiro o tenha assumido ou quando a boa fé o exija. Fora dessas hipóteses, o banqueiro que preste uma informação coloca-se no âmbito do artigo 485.º, n.º1 CC: só é responsável se agir com dolo. Quando se trate de um cliente – portanto, de um a pessoa que, com um banqueiro, mantenha uma relação de negócios contínua e duradoura – o banqueiro poderá estar obrigado a prestar as informações que, ex bona fide, tenham a ver com a relação em curso: além disso, há deveres de informação relativos aos contratos concretos, nos termos gerais. Se atentarmos na configuração assumida pelo dever de informar, no Direito Bancario, notaremos algumas particularidades, dignas de menção. No Direito Comum, a informação diz, essencialmente, respeito a questões de facto: o regime jurídico presume-se conhecido por todos, sendo estranho – embora apenas em princípio – um qualquer dever de ensinar o Direito. Já no Direito Bancário, a informação requerida aos bancos é, no essencial, de
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 tipo técnico-jurídico. A factualidade ligada aos negócios bancários, particularmente os que tenham a ver com dinheiro é, em regra, bastante simples. Já o regime jurídico envolvido pode tornar-se mais complexo, sobretudo por assentar, muitas vezes, em usos bancários ou em cláusulas contratuais gerias, de apreensão mais complexa. A informação bancária contempla, em geral, a situação de especial carência, em que se encontre o cliente do banqueiro. Além de atinente principalmente, a questões jurídicas, ela deve, ainda, ater-se ao essencial, de modo a poder ser útil. A instituição financeira tem conhecimentos e experiência para, perante cada negócio, reconhecer, de imediato, o ponto que deve ser informado, ao cliente. No moderno tráfego bancário, os clientes valorizam muito a exata prevenção dos riscos e a rapidez da prestação da informação. As previsões que o banqueiro faça sobre a evolução de variáveis económicas só devem ser comunicadas ao cliente sob reserva, a menos que estejam disponíveis elementos muito seguros. Sem entrar em exageros, podemos considerar que, mercê dos valores sociais, económicos e mesmo éticos, aqui envolvidos, o banqueiro deve desenvolver uma certa atuação pedagógica, junto dos clientes: uma postura reforçada pela crise de 2009/2015. Essa atuação não irá ao ponto de descaracterizar a atividade bancária, como comercial e lucrativa. No entanto, ela terá de ser suficientemente efetiva para levar, como exemplo, o banqueiro a recomendar, ao cliente particular interessado num determinado produto, uma solução diversa que, em concreto, se mostre mais apelativa, para este. O banqueiro deve também ponderar bem o que diga quando saiba que, na base disso, o seu cliente irá tomar importantes decisões. Em suma: a informação bancária distingue-se da comum por ser – tendencialmente – técnico jurídica, simples, direta e eficaz. Ela é muito diversificada, segundo os produtos a que respeite, dobrando-se, ainda de deveres de acompanhamento e atingindo novos níveis com a automação. A matéria alarga-se, ainda, através das informações ao mercado. O dever de informar, a cago do banqueiro, pode determinar conflitos de interesses. No limite, há produtos que o banqueiro coloca junto dos seus clientes e que nunca encontrariam contraparte se tudo fosse informado. Aparentemente pelo menos, o banqueiro perde bons negócios, quando informe os seus clientes. Mas no médio e longo prazo: o cliente satisfeito é um cliente fidelizado. Cabe ao banqueiro encontrar um ponto de equilíbrio. O problema pode agravar-se quando os produtos sejam colocados por funcionários zelosos, eventualmente ganhadores de bónus. De novo, há que fazer intervir a ética dos negócios, desta feita, através de adequada formação profissional.
Segue; o problema do ónus da prova: perante o dever de informação do banqueiro, pergunta-se, em termos práticos, pelo tema do ónus da prova. Quem deve provar o quê, em caso de litigio. Pelas regras gerais, quem invoque o direito à informação deve provar os respetivos factos constitutivos (artigo 341.º, n.º1 CC). Neste caso, o cliente deverá provar a sua própria ignorância concreta e o conhecimento do banqueiro, bem como os danos daí resultantes. Além disso, é conforme com o sistema cometer a quem tenha o domínio dos factos, o risco da sua demonstração. Leis especiais, como a das cláusulas contratuais gerais, cometem ao utilizador o ónus de provar certas comunicações. Inferimos daqui que a prova a exigir ao cliente do banqueiro é bastante elementar: muitas vezes, o próprio dano, por presunção hominis, permitirá inferir a necessidade de informação prévia e a sua falta. Nessa altura, compete ao banqueiro provar os factos que delimitem ou que extingam o direito à informação. Interessante mas perigosa é a teoria da existência de um ónus de autoinformação, representado, de resto, em doutrinas como a francesa, pouco amigas da técnica dos deveres acessórios. Cada um teria, na vida contratual, de se informar sobre os negócios; cumprido esse ónus, poderia pedir informações. De facto, se cada um se informar previamente, nada mais há a informar. Mas o
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Direito visa questões concretas em sociedades reais. O cliente que frequente um banco fica, só por isso, tranquilo e intimidado. A pessoa normal confia. Dentro do razoável, o ónus da informação é do banqueiro. Cuidado com a política do real: num litígio, é muito difícil, ao particular, provar seja o que for contra o banqueiro. Sobrecarregá-lo com um ónus de autoinformação é deitar abaixo todo o esforço já secular de estabelecimento, na relação bancária, de um equilíbrio substancial.
As fontes sobre o dever de informar: o Direito atual confronta o bancário com múltiplos deveres de informar. Particularmente na fase que antecede a conclusão de negócios bancários concretos, temos as fontes seguintes gerais: O artigo 227.º, n.º1 CC, quanto à culpa in contrahendo; O artigo 573.º CC, sobre a obrigação legal de informação; Os artigo 5.º e 6.º LCCG, sempre que, como é, de resto, habitual, o negócio projetado se conclua por adesão a cláusulas contratuais gerais; O artigo 8.º Lei Defesa Consumidor, sempre que o cliente tenha esse estatuto; O artigo 9.º, n.º1, alíneas a) e b) Decreto-Lei n.º 57/2008, 26 março, que proíbe a omissão ou a insuficiência de informação como prática comercial enganosa e, como tal, vedada. Além disso, temos de contar com preceitos bancários específicos. Assim: O artigo 75.º RGIC, sobre o dever de informar os clientes sobre a remuneração oferecida pelos produtos e o preço dos serviços prestados; O Decreto-Lei n.º 51/2007, 7 março, que regula as práticas comerciais das instituições de crédito e assegura a transparência da informação por estas prestada no âmbito do crédito habitacional, alterado pelo Decreto-Lei n.º 226/2012, 18 outubro; O artigo 4.º Decreto-Lei n.º 240/2009, 22 dezembro, quanto à informação sobre o arredondamento da taxa de juro; O aviso n.º 8/2009, 29 setembro, do Banco de Portugal, quanto a múltiplos deveres bancários mínimos de informação; O Decreto-Lei n.º 133/2009, 2 junho, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 42-A/2009, 28 março, sobre crédito ao consumo, com um largo dever de informar (artigo 6.º); O Decreto-Lei n.º 95/2006, 19 maio, sobre a contratação de produtos financeiros à distância (artigos 11.º a 18.º); O Decreto-Lei n.º 211-A/2008, 3 novembro, quando o negócio bancário em jogo possa ser considerado um «produto financeiro complexo»; O Decreto-Lei n.º 227/2012, 25 outubro, que prevê, para cada instituição de crédito, um Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI) e um Procedimento Extra Judicial de Situações de Incumprimento (PERSI), de modo a proteger os particulares
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 endividados, prevendo uma série de informações a prestar, pela banca, a esses mesmos particulares: artigo 6.º, 7.º, 13.º, 15.º, n.º2 e outros. Estas referências não são exaustivas. Perante este universo, como articular as fontes em presença? A resposta deriva da natureza das normas concorrentes e da determinação do seu escopo, o que envolve a sua cuidada dogmatização. Frente a frente, podemos orientar três teorias: A Teoria da Consumpção: explica que o concurso de deveres de informação se resolve com a prevalência das normas que se ocupem do setor considerado. Tais normas consomem, no seu campo de aplicação, os valores compreendidos nas regras gerais. Levada ao extremo, esta teoria defenderia, no campo bancário, apenas os deveres de informação previstos no RGIC. Mas não: outros diplomas, com incidências igualmente bancárias, sempre teriam aplicação; A teoria da Especialização: parte da prevalência da lei especial sobre a lei geral, no campo de aplicação da primeira. Distingue-se da consumpção por ser analítica, isto é: norma a norma, verifica-se se existe uma regra especial para a banca ou uma regra ainda mais especial para o produto bancário considerado. Prima facie, a teoria está certa. Todavia, verifica-se que a especialização pode ser apenas formal, deixando sem solução clara certos casos concretos; A Teoria do Escopo das Normas: perante qualquer norma sobre deveres de informar, há que averiguar o objetivo por ela prosseguido. Este é, em regra, obtido pelo conhecimento do seu regime, através da interpretação, dominada pelo elemento teleológico. Assim, se se visa proteger o consumidor, prevalecem as normas que permitem o efetivo conhecimento da informação. Se se procura a tutela do mercado, vencem as que assegurem a transparência e a acessibilidade da informação. Impõe-se uma ponderação em cada caso concreto.
Natureza e limites; a legítima ignorância: os deveres de informar dão corpo a relações específicas. Eles relacionam duas pessoas em concreto: o banqueiro e o cliente do banqueiro. Têm base legal, o que não atinge a natureza obrigacional assumida. No que não seja infletido por regras especiais da banca, designadamente no estabelecimento de (meros) encargos, as obrigações de informação seguem o regime geral do Direito Civil. A responsabilidade que resulte da sua inobservância é obrigacional (artigos 798.º, e seguintes CC) e não aquiliana (artigos 483.º e seguintes CC): um dado importante, visto originar a preciosa presunção de culpa, sem a qual ficará bloqueada, na prática, qualquer responsabilidade do segurador. Sem prejuízo pela determinação precisa dos deveres de informação pré contratuais, cumpre ponderar a sua imensa complexidade. Não é credível que algum banqueiro consiga desenvolver, com êxito, a sua atividade, se se preocupar com a escrupulosa informação prevista em múltiplos diplomas legais. No mínimo, assustaria a sua clientela. A simples leitura passiva das cláusulas contratuais gerais bancárias representa, logo por si, um feito. Por outro lado, nada obriga o cliente do banqueiro a acolher toda (ou, sequer, alguma) a informação disponibilizada. Ele informar-se-á se quiser e ouvirá o que se lhe diga, também, se o pretender. Deve ainda acrescentar-se que o excesso de informação é contraproducente. Se se transmitir um dado a uma pessoa, ela escutará e, se for considerado relevante, retê-lo-á- Mas se ela for confrontada com dezenas de elementos, ignorá-los-á ou esquecê-los-á rapidamente. O mecanismo do esquecimento foi montado, pela
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 evolução, para defesa do cérebro humano e das pessoas. O cliente do banqueiro tem, como qualquer particular, consumidor e/ou aderente Às cláusulas contratuais gerais bancárias, o direito à legítima ignorância (Grigoleit). Basta-lhe confiar no segurador e nas leis do Estado. Este estado de coisas tem consequência, em três níveis: Obriga o banqueiro a ser seletivo no cumprimento dos deveres de informar, numa regra que também se aplica ao cliente do banqueiro; na prática, perante cada tipo de contrato, haverá um ou dois alertas que podem levar a contraparte a ponderar; summo rigore, é isso que deve ser dito; Conduz a que apenas em concreto se possa ajuizar da direção e da intensidade da informação; Implica que o Estado, através das suas leis, através das ações inibitórias, nas cláusulas contratuais gerais bancárias e através da supervisão, mantenha elevados padrões de tutela da parte fraca. Os tribunais, quando chamados a decidir, devem ter estas dimensões em conta.
36.º - As informações do cliente e ao mercado
Informações do cliente: outro ponto relevante das informações bancárias tem a ver com as que o banqueiro preste – ou possa prestar – sobre o seu próprio cliente. Mercê da amplitude hoje assumida pela atividade bancária, o banqueiro conhece os meandros da vida patrimonial e pessoal dos clientes. Um negócio simples, como o da obtenção de um crédito para habitação, levará, como operações de rotina, o banqueiro a ficar na posse das declarações de rendimentos do cliente, de uma descrição do seu património e até do seu estado de saúde, já que, em regra, essas operações são acompanhadas de seguros de vida, precedidos de exame médico, a que o banqueiro tem acesso. Além disso, o cliente fornece, normalmente, ao seu banqueiro, elementos pessoais de tipo confidencial. Daqui resulta que o banqueiro, por vezes melhor do que a mais cuidadosa autoridade policial, está na posse de informações importantes sobre o seu cliente. Pode prestá-las? Todas as informações relativas ao cliente estão a coberto do dever de segredo. O banqueiro só as poderá revelar: Com autorização do cliente; Nos casos previstos pela lei, mediante prévia autorização jurisdicional; Limitadamente, no âmbito do Serviço de Centralização de Riscos de Crédito. As informações relativas ao cliente são, por vezes, solicitadas no domínio dos negócios, particularmente no tocante às relações interbancárias. O cliente que inicie uma relação bancária nova poderá fornecer ao banqueiro diversas referências abonatórias e, designadamente, a indicação de contactos anteriores, com outros bancos. Nessa altura, passamos a distinguir: Informações de ordem geral, sobre a existência e a normalidade de relações bancárias prévias;
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 Informações específicas, sobre operações concretas, sobre os volumes envolvidos em relações bancárias ou sobre quaisquer outros elementos específicos do conhecimento do banqueiro. Em relação às primeiras, deve entender-se que o cliente, ao dar, como referência, um banqueiro, está já a autorizar a sua revelação, mas apenas ao destinatário da referência. Em relação às segundas, o cliente terá de contatar diretamente o seu banqueiro e autorizá-lo a prestar a informação pretendida. Tudo isto, que resulta, noutros ordenamentos, dos usos e das cláusulas contratuais gerais, impõe-se, entre nós, por via do regime da limitação voluntária dos direitos de personalidade. Este regime da informação sobre o cliente funciona no interesse de ambas as partes envolvidas: cliente e banqueiro. Este pode ser responsabilizado por informações incorretas; além disso, nenhuma vantagem direta lhe advém de prestar informações sobre o seus clientes, para além do acréscimo de trabalho que tal representa. Por isso, deve entenderse que o banqueiro não tem qualquer dever geral de prestar informações sobre o seu cliente. Mesmo quando autorizado, o banqueiro só informa se o entender ou se a isso for obrigado, por contrato ou por lei. As informações a prestar os casos previstos pela lei seguem quanto acima se disse, sobre segredo profissional. Elas respeitam apenas a factos e devem cingir-se ao estritamente necessário para o acatamento dos preceitos em jogo.
Informação ao mercado: a integração do mercado financeiro, com a aproximação crescente entre a banca, os seguros e o mercado mobiliário, potencia novos deveres de informação, de âmbito diverso. Recordamos o artigo 7.º CVM, epigrafado qualidade da informação. As informações mobiliárias têm um campo lato. Além da área clássica das informações privilegiadas, procede-se a um agravamento da responsabilidade por informações inexatas ao mercado de capitais, óbvia quando dolosamente propaladas nos meios de comunicação social. Ficam abrangidas as responsabilidades dos emitentes, das sociedades e dos titulares dos órgãos das sociedades. Na definição de tais deveres e nas consequências envolvidas ter-se-á ido demasiado longe: haverá que por limites, sob pena de deprimir (ainda mais) o mercado. Os banqueiro surgem como agentes privilegiados, no tocante a informações a prestar ao mercado. Para além das indicações mais diretas que deem aos seus clientes, os banqueiros são operadores ativos na confeção da opinião pública do mercado. Para além dos vetores bancários, acima vistos, há que tem em contra a integração com os mercados mobiliários e seguradores. A aplicação de deveres é cumulativa.
Secção IV – Responsabilidade Bancária 37.º - A responsabilidade do banqueiro
O problema em geral: no decurso da sua atividade profissional, o banqueiro pode, como qualquer outro interveniente, perpetrar factos ilícitos. Quando isso suceda, e uma vez reunidos os demais requisitos legais, ele é responsável. A responsabilidade bancária é a responsabilidade profissional do banqueiro. Não corresponde, pois, a todas as situações nas quais um banco pode
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 ser responsabilizado. Ficaria para o núcleo de uma responsabilidade especificamente bancária, a área corresponde ao não cumprimento, pelo banqueiro, dos seus específicos deveres: seja no plano contratual, seja no plano legal. Mais complexa seria a hipótese de uma responsabilidade aquiliana específica do banqueiro, por lesão de direitos absolutos, em virtude da inobservância de normas genéricas e, isso, provocando danos. À partida, a profissão do banqueiro não parece ser de molde a provocar especiais danos: ela não envolve perigos para a integridade das pessoas e dos bens. Estaríamos, assim, perante hipóteses marginais. Por vezes, porém, a atividade da banca pode surgir associada a diversos prejuízos, particularmente no aspeto característico da concessão de crédito. Nas diversas ocorrências de insolvência ou similares, que traduzem danos para o devedor ou para os seus credores, intervêm, na prática, sempre bancos, seja como principais credores, seja como entidades cuja intervenção, a dar-se, poderia evitar ou retardar a insolvência. A essa presença da banca soma-se a ideia difundida da força económica das instituições de crédito às quais, em nome de uma equidade informe, poderiam ser pedidos sacrifícios, mesmo sem uma clara base jurídica.
Um serviço público? A especificidade do debate: à ideia vaga de permanente responsabilização da banca foi dado corpo, em França, através das considerações de Houin. Entre outros aspetos, Houin veio defender a tese de que a banca desenvolveria um serviço público: ela escaparia, assim, à lógica do Direito Privado, encontrando-se adstrita a servir o público, ainda que com danos para si. Tal orientação foi prontamente rejeitada pela própria doutrina francesa: a atividade bancária tem efetiva relevância social, em termos que não suscitam dúvidas; no entanto, ela pauta-se por parâmetros de eficiência, de rendibilidade e de dinamismo que não são, assumidamente, os que devem presidir aos serviços públicos. A rejeição da tese de Houin, hoje remetida para o nível das curiosidades doutrinárias, não impediu, contudo, a formação de um espaço autónomo de debate sobre a responsabilidade do banqueiro. Esse espaço intensificou-se quando, sobre ele, direta ou indiretamente, incidiram encontros de juristas. Tais encontros concluíram, de modo geral, pela inconveniência em onerar a banca com particulares situações de responsabilidade as quais, em última análise, acabariam por se repercutir negativamente sobre os utentes. E em consonância com esse aspeto da política legislativa, concluíram também pela inexistê3ncia de meios jurídicos positivos específicos para efetivar situações de responsabilidade acrescida, a cargo do banqueiro, particularmente nas hipóteses de recusa de crédito. Pode adiantar-se que o aparecimento de uma doutrina específica relativa à responsabilidade do banqueiro pela concessão – ou não concessão – do crédito é um fenómeno circunscrito à doutrina francesa, com alguns reflexos na belga. Assenta, aí, numa particular técnica de tratar a responsabilidade civil – e que passa pela não distinção entre a culpa e a ilicitude – técnica essa que deve considerar-se ultrapassada pela evolução geral da Ciência Jurídica continental dos nossos dias. Não obstante, é no espaço alemão que o temo tem merecido – independentemente de quaisquer linhas de solução – os estudos mais aprofundados, acompanhados de uma jurisprudência sugestiva. A panorâmica alemã é complementada pela rica experiência bancária suíça. Estas lições têm especial interesse uma vez que o Direito Português neste aspeto como noutros, está em mais próximo do alemão do que do francês, sem prejuízo de especificidades importantes. No espaço jurídico – e, sobretudo, o espaço jurídico-privado – não há entidades irresponsáveis. Os bancos não poderiam ser exceção. Mas a uma situação inicial, em que a responsabilidade do banqueiro, particularmente no tocante à concessão ou não concessão do crédito ligada a conjunções emocionais, deve seguirse uma análise serena e científica, que faculte as respostas claras e precisas de que esse setor
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 tão importante carece. As características de responsabilidade civil em Portugal justificam que se estude separadamente as experiências francesas e alemã.
A experiência francesa: no tocante à responsabilidade do banqueiro, pode ser comodamente introduzida através de um caso judicial. Em 7 janeiro 1976, a Cassação Francesa, através da sua Secção Comercial, admitiu a competência de um síndico de falência para interpor uma ação contra um banco, credor do falido. A ação de fundo destinar-se-ia a responsabilizar o banco em causa por prejuízos sofridos pelos demais credores da massa, em consequência de múltiplos créditos bancários que ele concedera: a entidade falida piorara, consideravelmente, a sua situação patrimonial quando, afinal, uma falência solicitada em tempo útil teria minorado os danos ocorridos. Com esta decisão, a Cassação Francesa alterou a sua própria jurisprudência anterior que não reconhecia, ao síndico de falência, semelhante capacidade. Tratava-se, apenas, de aplicar o dispositivo geral da responsabilidade civil, tal como resulta do Código Napoleão, em face de um delito alegadamente cometido por um banco. Perante isto – e uma vez que a decisão judicial é, sempre, a solução de um problema concreto e não a colocação genérica e abstrata de uma regra jurídica – compreende-se a via seguida pela Cassação Francesa, procurando, no caso, fazer certa justiça. Tomados em si, os fundamentos da decisão são apresentados de modo vago. A condenação do banqueiro por danos sofridos pelos credores do falido – portante pela concessão de crédito – repousa na ideia de falta (faute). A teoria do serviço público, acima referida e rejeitada, ainda que por vezes mencionada como tópico argumentativo, não tem fundamentado decisões condenativas da banca. Tudo se mantém, pois, no campo do Direito Privado. Segundo o artigo 1382.º CC francês, «todo o feito humano que cause ano a outrem obriga aquele por cuja falta tenha ocorrido, a repará-lo». A falta tem sido definida como «cometer um ato proibido ou abster-se de um ato prescrito, em condições tais que se fique sujeito à censura». A utilização da falta permite à doutrina e jurisprudência francesas responsabilizar o banqueiro pela concessão de créditos, quando esta se venha a revelar danosa para terceiros, sem grande esforço explicativo. A falta, em termos analíticos, exprime um misto de ilicitude, isto é, de censura normativa e de inobservância de comandos legais. Esta indefinição permite-lhes abarcar situações incaracterísticas ou insuficientemente indeterminadas. A afirmação dever ser matizada, na prática: é possível, pela repetição de decisões e pela análise dos problemas, atingir níveis elevados de precisão. Saídas deste tipo, com base na falta, seriam inviáveis nos Direitos alemão e suíço. Apenas na Bélgica a doutrina da falta conheceu um relativo acolhimento. A doutrina, ainda que admitindo a possibilidade de condenar o banqueiro que, com falta, prejudicasse terceiros, previne contra os excessos a que tal linha pode dar lugar. As incipiências da falta e a sua incapacidade para conferir, às decisões, o mínimo de previsibilidade requerido pela segurança jurídica não deixam de ser sentidas pela doutrina francesa. Esta esforça-se, assim, por descobrir deveres mais precisos, a cargo do banqueiro. Este incorreria em deveres de discernimento, de informação e de vigilância: discernimento para não financiar atividades ilícitas; informação para se inteirar da verdadeira situação do cliente; vigilância para acompanhar a utilização dada aos financiamentos. O grau de diligência posto pelos bancos na prossecução desses deveres fica pouco claro nos escritos franceses da especialidade. Jean Stoufflet, especial defensor da responsabilidade específica dos bancos, não deixa de notar que deveriam ser visados os que, conscientemente, prejudicassem terceiros. Surge também como elemento moderador a exigência de um nexo de causalidade entre a falta e o dano registado em terceiro. Este aspeto, embora pouco aprofundado pela sempre elegante mas imprecisa doutrina francesa, tem um relevo considerável na delimitação dos danos relevantes. Basta
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 enfocar que os deveres de indagação, de informação e de vigilância visam, antes de mais, proteger o próprio banco a sua violação não é, à partida, uma causa adequada para prejudicar terceiros. A jurisprudência francesa, apesar da relativa ventilação doutrinária existente, é muito cautelosa na responsabilização do banqueiro pela concessão do crédito. A doutrina mais recente alaga o âmbito da responsabilidade do banqueiro. Esta é apresentada como uma garantia oferecida ao público como contrapartida da confiança e das prerrogativas reconhecidas ao banqueiro: só ele pode comerciar com o dinheiro. Enquanto responsabilidade profissional esbate-se, nela, a contraposição contratual/delitual, mercê de uma multiplicação de deveres bancários. Aguarda-se a concretização destas leituras.
A experiência alemã: no domínio da responsabilidade do banqueiro, a experiência alemã segue uma via bastante diferente da francesa. Logo à partida, a doutrina nega, de princípio, qualquer responsabilidade do banqueiro pela concessão de crédito ou afirma a existência, na Alemanha, de menores armas dos credores contra os bancos. Como decisão exemplar, pode utilizar-se a do Reichsgericht de 9 abril 1932. Fora, aí, solicitada, a condenação de uma caixa de poupança que, tendo concedido uma série de créditos a um devedor inadimplente, acabara por prejudicar os terceiros, também credores. A possibilidade legal a considerar residia no §826 BGB, segundo o qual é responsável aquele que, atuando dolosamente contra os bons costumes, provoque danos a outrem. Analisando o problema, o Reichsgericht isolou cinco casos em que tal situação poderia ter lugar: Dilação da falência, com o fito de obter garantias próprias mais vantajosas, em detrimento dos restantes credores; Exploração do devedor, fortemente dependente do credor em causa e capaz de aceitar, por isso, as condições que lhe sejam postas; Apropriação fática do negócio ficando o devedor reduzido a mero homem de palha; Crédito-burla, tendente a fazer crer a terceiros numa boa situação patrimonial do devedor; Atentado aos credores, através da obtenção de garantias a tanto destinadas. A orientação prefigurada era bastante circunspeta; a multiplicação apontada de casos apenas traduzia uma preocupação de análise. No entanto e porque, dela, se poderia retirar um certo relaxamento na verificação dos requisitos postos pelo §826.º BGB, ela foi prontamente revista pelo próprio Reichsgercht que, meses volvidos, a veio criticar, em nova decisão, afirmando simplesmente a necessidade de se pretender enganar os credores. Pouco antes, aliás, ainda o Reichsgericht negara a existência de qualquer dever de prevenir os credores da nova concessão de créditos. Até aos nossos dias, pode afirmar-se que uma jurisprudência constante, continuada pelo atual Tribunal Federal, apenas admite a responsabilidade dos bancos pela concessão de créditos quando, atentando dolosamente contra os bons costumes, eles o tenham feito para prejudicar os restantes credores. Outra possibilidade, já ensaiada, consistiu em fazer declarar nulos os negócios que prejudicassem os terceiros credores, por contrariedade aos bons costumes. Assim amparada na jurisprudência, não admira que a presente orientação tenha acolhimento doutrinário pleno; certas posições aparentemente dissonantes têm, na realidade, a ver com aspetos pré contratuais e não com a pura responsabilidade pela concessão de crédito. O requisito do dolo não suscita particulares problemas. A ideia de bons costumes não suscita
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 particulares problemas. No Direito alemão, recordamos que ela tem um elevo especial: constitui a disposição básica da lei contra a concorrência desleal. A ponderação do seu conteúdo, efetuada com base nas decisões judiciais eu deles façam aplicação, revela duas áreas diferenciadas: Por um lado, os bons costumes correspondem a concretizações de valores e princípios imanente à ordem jurídica; Por outro, eles abrangem comportamentos nos domínios da atuação sexual e familiar onde o legislador não pode ou não quis ser explícito e, ainda, regras próprias de certas deontologias profissionais. A dualidade é marcada e dificulta, em extremo, a formulação unitária do conceito. No Direito Português, contudo, não se coloca tão grande dificuldade. Na verdade, o Código Civil de 1966, aproveitando a elaboração doutrinária que o antecedeu, consagrou, como noções separadas, a ordem pública e os bons costumes. O balanço da experiência alemã permite concluir, na prática, pela inexistência de um esquema de responsabilizar o banqueiro perante a concessão de crédito, ainda que, daí, resultem danos para terceiros. Trata-se de um ponto importante para a determinação da responsabilidade do banqueiro em geral. O esforço analítico jurisprudência, na qual a decisão do antigo Reichsgericht de 9 abril 2932 assume ainda uma posição liderante, destrinça, de facto, diversas possibilidades fá-lo, porém, em termos que, no plano da efetividade, evitam uma responsabilidade específica dos bancos. A bitola dos bons costumes – que abrange, na linguagem científica portuguesa, quer os bons costumes em si, quer a ordem pública apenas permitiria sancionar casos estranhos e extremos; a exigência de dolo, posta pelo §826.º BGB, para que a violação dos bons costumes facultasse um dever de indemnizar, estreita ainda mais um crive já de si bem apertado. Afinal, seria responsabilizado o banqueiro que, atentando dolosamente contra princípios fundamentais da ordem jurídica ou contra uma particular deontologia profissional – que não surge explicitada – concedesse crédito a outrem para prejudicar terceiros. Sendo tradicional, esta orientação mantém-se, dobrada pela afirmação da inexistência de um dever de sanear empresas.
O Direito português: o aprofundamento anterior permite explicitar a solução jurídica portuguesa para o problema da eventual responsabilidade do banqueiro por danos causados a terceiros, pela concessão de crédito. Num primeiro momento, cabe afastar a existência de uma responsabilidade pública dos danos pela concessão de crédito. Os bancos movem-se, em Portugal, no seio do Direito Privado. Doutrinas como a do serviço público de Houin, ou similares banqueariam, em Portugal, por maioria de razão: ao desamparo doutrinário somar-se-ia a total ausência de base legal. Uma solução de tipo francês, assente na falta, seria inviável no Direito Português. Ao contrário do esquema napoleónico, o Código Civil português separa, no domínio dos pressupostos da responsabilidade civil aquiliana, a culpa da ilicitude. Assim, em qualquer situação de imputação delitual, é necessário apontar uma norma jurídica violada. Na sequência de tal violação, poder-se-á, então, formular um juízo de censura sobre o comportamento do agente que, em conjunto com os demais elementos postos, por lei, para o efeito, dê azo ao dever de indemnizar. As soluções imprecisas, de elevado teor afetivo, assentes numa falta informe, não têm cabimento, traduzindo, caso fossem adotadas, um retrocesso sem precedentes na evolução científica do ordenamento português. Na responsabilidade obrigacional, como hoje sustentamos, a situação já estaria mais próxima do sistema napoleónico; mas aí a existência de prévias obrigações específicas impede duvidas e imprecisões. A orientação
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 alemã, pelo contrário, encontraria, no Direito Português, um ambiente mais favorável: neste ponto como noutros, o paralelo entre os dois ordenamentos é nítido, mesmo quando efetuada a destrinça entre os bons costumes e a ordem pública. Na concessão de crédito, o banqueiro deve abster-se de prejudicar terceiros, atentando contra os bons costumes ou contra a ordem pública. No primeiro caso, assistir-se-ia, por exemplo, à celebração de negócios bancários com fitos atentatórios da moral sexual ou familiar ou, ainda, contrariando aspetos deontológicos. No segundo, o comércio bancário processar-se-ia contra vetores básicos injuntivos, impondo, por exemplo, atividades ilícitas ao utente ou assentando, quiçá, em discriminações de tipo rácico. Tudo isto surge académico: não se vê como, na prática, possam ocorrer semelhantes prevaricações e como elas possam ser demonstradas. Na atualidade, o banqueiro é uma instituição complexa: a concessão de crédito implica a intervenção de várias pessoas, o que impossibilita a prática dos clássicos delitos civis, de base individual. De pé ficaria, afinal, apenas a inobservância de uma deontologia bancária. Cabe ainda ter presente uma eventual atribuição de crédito em violação da ordem pública ou dos bons costumes apenas acarretaria – só por si – a nulidade dos negócios implicados – artigo 280.º, n.º2 CC. Para, daí, passar à responsabilidade para com terceiros, seria também necessário que o comportamento prevaricador visasse prejudica-los e, efetivamente, o fizesse. Doutra forma, faltaria seja a culpa, seja o nexo causal. Pode pois concluir-se que, à semelhança do que sucede na experiência alemã, uma responsabilização contra os bons costumes ou contra a ordem pública, é uma possibilidade teórica, com pouca substância prática. O processo tradicional de tutela dos credores reside na ação pauliana. O relevo deste meio para o problema em estudo é, à partida, escasso: a ação pauliana visa a subsistência de certos negócios e não a indemnização de prejuízos. Ora a impugnação do negócio bancário que prejudicasse os credores do utente da banca teria, para eles, um escasso relevo. Acresce ainda que os requisitos da ação pauliana são, na temática em estudo, de difícil verificação. Os negócios bancários são, por definição, onerosos. A impugnação requereria, pois, má fé do banqueiro e do seu cliente – artigo 612.º, n.º1 CC. A orientação tradicional exigiria, a tal propósito, o consilium fraudis entre o banco e o utente, isto é, a intenção comum de prejudicar o terceiro; a orientação mais recente, aparentemente consagrada no Código Civil – artigo 612.º, n.º1 – contentar-se-ia com o conhecimento desse prejuízo. Não obstante esta abertura, apresenta-se clara a dificuldade prática da concretização da figura: recorde-se a natureza institucional que, na atualidade, é assumida pela banca. Podese, porém, ir mais longe. O sucesso da pauliana requer o eventus damni – artigo 610.º, alínea b CC – isto é, exige que o ato a impugnar provoque, para o credor, a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade. Ora um crédito bancário não pode, por si, ter tal efeito. O cliente do banco adstringe-se, de facto, a um cumprimento eu, futuramente, poderá prejudicar os seus restantes credores. Mas recebe, em troca, um financiamento que integra o seu ativo patrimonial. O prejuízo não advirá, pois, do crédito bancário mas antes do destino que, a esse crédito, seja dado pelo cliente do banco. Em regra, isso já não respeita ao banqueiro. Mas assim não será quando, a pretexto de concessão de novos créditos, o banqueiro consiga garantias que vão prejudicar os outros credores ou – pior ainda! – quando se trate de garantias concedidas, em detrimento dos credores, para assegurar o cumprimento de terceiros. Nessa altura, o banqueiro sujeita-se à pauliana, nos termos gerais, resultando a sua má fé do próprio mérito da causa.
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38.º - Concretização da responsabilidade bancária
Responsabilidades obrigacional e aquiliana; a causalidade: na concretização – agora em geral – da responsabilidade do banqueiro, perante o Direito Positivo português, é hoje fundamental a contraposição entre responsabilidade obrigacional e aquiliana. Elementos importantes foram, de resto, já obtidos pela análise das experiências alemã e francesa. Em diversos escritos publicados até cerca de 1986, defendemos que, no Direito português, se processava uma acentuada aproximação entre as responsabilidades obrigacional e aquiliana. A evolução teria sido completada pelo Código Civil que, nos seus artigos 562.º e seguintes, tratou unitariamente o dever de indemnizar. Mais tarde, porém, viemos a abandonar essa orientação. O iter seguinte é complexo, não cabendo agra das ele, conta. Apenas se focam as conclusões fundamentais. Os Direitos continentais europeus conhecem, hoje, dois grandes sistemas de responsabilidade civil. O sistema francês ou napoleónico, baseado na unidade dos pressupostos ético-jurídicos da responsabilidade civil, expressos, de modo indiferenciado, pela locução faute e o sistema germânico, assente na dualidade desses mesmos pressupostos, expressos, diferenciadamente, pelas ideias de culpa e ilicitude. Ou seja: ao passo que, para o Direito francês, a responsabilidade exige que alguém pratique um dano com faute para o alemão, requer-se um dano ilícito e com culpa. A faute seria, pois, um misto de ilicitude e de culpa. A razão da diferenciação deve ser procurada no analitismo da Ciência Civil alemã, no século XIX, e na maior maturação que teve o Código Civil de 1896. A Rudolf von Jhering se deve o mérito de ter feito a destrinça entre culpa e ilicitude, em termos que perdurariam, nas subsequentes doutrinas civil e penal. O sistema português era, no século XIX, de inspiração francesa. Assim, nos clássicos civilistas da época, encontramos o termo culpa com o sentido de faute, isto é: abrangendo, de modo indiferenciado, a culpa e a ilicitude. Com Guilherme Moreira, deu-se a transposição para o pandectismo. No tocante à responsabilidade civil, Guilherme Moreira operou a receção contraposta de culpa e de ilicitude. Mais perfeito, o esquema em breve foi acolhido, pela generalidade da doutrina. Mas nunca totalmente: num fenómeno tipicamente jurídico, a receção opera não por substituição dos conceitos velhos pelos novos, mas pela junção, a conceitos velhos, de conceitos novos. O sistema unitário ou napoleónico sobreviveu. No campo civil, o esquema português é, hoje, misto: Na responsabilidade contratual domina a orientação napoleónica; a culpa equivale à faute e traduz, em simultâneo, a ilicitude; Na responsabilidade aquiliana singra a orientação germânica: culpa e ilicitude estão contrapostas. A demonstração jurídico-positiva mais clara, do exposto, resulta do confronto entre os artigos 483.º, n.º1 e 799.º, n.º1 CC. No primeiro preceito, há uma clara contraposição entre a culpa e a ilicitude, seguindo o estilo germânico. No artigo 799.º, n.º1 surge, porém, uma denominada «presunção de culpa», contra o devedor inadimplente. Uma presunção de culpa só poderia significar que se presume a ausência de causas de excusa: doutro modo, havendo ilicitude, haveria culpa. Ora nunca se presume a existência de qualquer causa de excusa, pelo que o artigo 799.º, n.º1, assim entendido, seria inútil. A presunção de culpa desse preceito é, na realidade, uma presunção de ilicitude. Perante a falta de cumprimento, presume-se que:
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 O devedor não cumpriu, violando as normas jurídicas que mandam cumprir – ilicitude; O devedor incorre no correspondente juízo jurídico de censura – culpa. Há uma presunção de faute. A demonstração pode ser complementada com a invocação de causalidade, também incluída na faute, mas não na ilicitude/culpa. A natureza hibrida da responsabilidade civil portuguesa tem consequências importantes, na responsabilidade bancária. Na presença de um acordo entre o banqueiro e o seu cliente ou, de modo mais lato, na de vínculos obrigacionais específicos, a simples falta do resultado normativamente prefigurado implica presunções de ilicitude, de culpa e de causalidade. Competirá, pois, ao devedor inadimplente apresentar alguma causa de extinção de obrigação ou de justificação do inadimplemento. Já se estivermos perante a inobservância de deveres genéricos, tudo fica nas mãos do prejudicado que deverá provar os diversos pressupostos de responsabilidade civil. Pensamos que esta solução global, ditada, de certo modo, pelos acasos de devir históricocultural, conduz a soluções particularmente justas e adequadas. No Direito Bancário como, em geral, na vida dos negócios e na vida pessoal, os acordos devem ser cumpridos a todo o custo, apenas com mos limites últimos da boa fé. É um minimum de coesão social que tem de ser exigido, sob pena de tudo converter em litígios. Na falta de acordos ou de vínculos específicos similares, a regra é a da liberdade. Apenas perante violações comprovadas alguém pode ser responsabilizado. A causalidade deve ser tomada na aceção moderna: são imputados os danos correspondentes ao círculo de bens tutelado pela norma jurídica violada. Trata-se de uma orientação que obriga a indagar o escopo da norma atingida. Como veremos, este método permite, na prática, delimitar danos que, de outro modo, pareceriam ilimitados.
Aplicação perante o dever de informar: vamos testar a aplicação das considerações acima explanadas ao Direito Bancário, através do regime do dever de informar e da responsabilidade dele resultante. Dado o sentido profundo hoje assumido, em Portugal, pela contraposição entre as responsabilidades obrigacional e aquiliana, os próprios pressupostos de responsabilização são diversos. Numa situação de tipo obrigacional, a mera falta de informação do beneficiário responsabiliza, automaticamente, o obrigado; joga, contra ele, a presunção de culpa – portanto: de faute ou de culpa/ilicitude – prevista no artigo 799.º, n.º1 CC. O responsabilizado só se liberará se lograr provar que, afinal, prestara a informação ou que beneficiaria dalguma causa de justificação ou de excusa. Já numa situação de tipo aquiliano, a mera falta de informação a nada conduz. O prejudicado terá de provar todo o condicionalismo que originaria o dever de informar por parte de outrem e, depois, de demonstrar que o visado não cumpriria, com culpa, tal dever. O dever de informar torna-se, assim, muito mais operacional, quando tenha estrutura obrigacional. As razões dessa acrescida tutela têm sido firmadas, designadamente, por ClausWilhelm Canaris, através dos seus estudos sobre a confiança. É um ponto importante, que permite, da responsabilidade civil, retirar elementos de relevo, no tocante à própria configuração dos deveres bancários. Numa situação que relacione particularmente duas pessoas – culpa in contrahendo ou execução contratual, por exemplo – as partes são levadas a confiar uma na outra. Quando o façam, elas baixam as suas defesas naturais, tornando-se, mutuamente, vulneráveis. Gera-se uma situação em que os envolvidos descuram a preocupação de obter informações, pelos seus próprios meios. Na base da confiança gerada, as partes praticam novos atos. Tudo isto, hum por excelência, deve ser tutelado pelo Direito. Por isso se gera uma situação que dá azo a obrigações específicas de informar, fruto de responsabilidade obrigacional, no caso
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 de inobservância. Não havendo qualquer ligação específica, não ocorrem as razões de tutela acima referenciadas. O Direito dispensa, apenas, a tutela aquiliana. Na posse de dados básicos sobre o regime, pergunta-se como se articulam, entre si, os deveres de informação, com a inerente responsabilidade. No tocante a deveres de proteção, Canaris formulou uma doutrina que, em geral, é hoje acolhida no Direito alemão: a doutrina dos deveres unitários de proteção. Segundo essa doutrina, nos preliminares surge um dever de proteção que se manteria, depois, a vigência contratual. Tal dever subsistiria, ainda, na hipótese de nulidade do contrato, sobrevivendo-lhe post pactum finitum. Trata-se de uma doutrina que pode ser transposta para os deveres de informação. Mas apenas com o seguinte alcance: há uma pressão niveladora, que intenta aproximar os regimes da informação, nas diversas situações. Tal pressão, que corresponde a expectativas clássicas de redução da complexidade e de uniformização é, porém, contrariada por exigências diferenciadoras, nos casos concretos. Em cada situação haverá, pois, eu ponderar os interesses e valores em presença. Uma visão global desta matéria é tarefa do Direito das Obrigações. A responsabilidade por questões ligadas às informações prestadas pelo banqueiro domina boa parte do panorama da responsabilidade bancária. A literatura é considerável, obrigando a lidar com os quadros da responsabilidade aquiliana e obrigacional. A responsabilidade bancária concretiza-se, como hipóteses clássicas: perante o banqueiro que atesta factos inexatos ou que dá falsas indicações a um terceiro, perante a administração de patrimónios, perante o giro bancário, perante os cheques, perante elementos de que tenha conhecimento que possam pôr em jogo um mútuo que vai celebrar, perante recomendações de produtos arriscados a clientes inexperientes e perante informações que determinem importantes decisões, mesmo em clientes experientes. A responsabilidade bancária pode alargar-se a situações nas quais o banqueiro remete o cliente para outros prestadores de serviços. O banqueiro responde ainda, em geral, pelo risco das falsificações. A conjuntura bancária, que precedeu a crise de 2007/2015, marcada pela desregulamentação, pela liberalização do tráfego internacional e pela erosão dos juros, ofereceu novas situações de responsabilização. Importante é o recente ficção responsabilizador, através da apresentação, a entidades menos informadas, de derivados de alto risco, que estas vieram a subscrever. Temos, ainda, possibilidades curiosas através da administração de facto exercida por um banqueiro e em relação a um cliente: perante uma empresa em perigo, pode suceder que o banqueiro principal credor venha, de facto, a exercer funções de gestão. Será responsável, enquanto administrador, pelas decisões que tome? Pergunta-se, também, até onde poderá responder um banqueiro que adote modelos de financiamento com implicações estruturantes que se venham a demonstrar inidóneas. Em tese, o banqueiro tem um dever razoável e comedido, de esclarecer em termos sensatos e perante os elementos disponíveis. Na dúvida, deverá comunica-la ao cliente, sem gerar falsas expectativas. Hipótese específica de responsabilidade bancária é a derivada do churning, expressão que traduziríamos por desnatamento. O banqueiro que tenha a seu cargo a administração de determinada importância poderia encetar a prática de multiplicar, desnecessariamente, as operações por forma a aumentar a cobrança de comissões e taxas equivalentes: os bens entregues ao banqueiro ficarão, assim, desnatados. Haverá responsabilidade bancaria – no caso de se tratar de um banqueiro – por diversas vias e, no limite, por atuação desleal, contrária à boa fé.
A prática judicial portuguesa: até há poucos anos, não era muito significativa a produção jurisdicional portuguesa sobre temas de responsabilidade bancária. Mais recentemente, têm vindo a multiplicar-se os caso, em termos que confirmam, em geral, as construções acima
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 referenciadas. Quando assuma um compromisso, ainda que de modo indireto, o banqueiro deve cumpri-lo, sob pena de ser responsabilizado pelos danos. O banqueiro é, ainda e nos termos gerais, responsável pelos atos dos seus empregados, particularmente do trabalhador infiel que faça suas importâncias recebidas do cliente. Os tribunais têm sancionado algumas situações de demora injustificada no desenvolvimento de atuações bancárias. A esse propósito, acentua-se a quebra da confiança que tal demora representa e a facilidade com que, hoje, se podem transmitir informações, o que aumenta o dever de diligência do banqueiro. Assim, o banco que demore a concretização de uma operação mobiliária ao ponto de, de permeio, ser apanhada por um crash bolsista é responsável, com presunção de culpa; e isso embora o risco da alteração de cotações corra, em regra, pelo cliente; também há responsabilidade em cobrar um cheque no dia 24 e, no dia 27, por deficiência de informação interna, devolver por suposta falta de provisão um cheque que tinha, por pressuposto, a cobrança do primeiro; outro tanto poderia suceder perante o banco que só ao fim de 19 dias se apercebe de que determinado cheque, que havia creditado, afinal, não estava assinado, também aqui se presumindo a culpa do banqueiro; e culpa ainda do banqueiro se presume no caso extremo em que ele demora um ano a comunicar o extravio de um cheque. O banqueiro responde igualmente quando permita o levantamento de um depósito por pessoa não autorizada: pelo capital e pelos juros. Finalmente: ele é responsável por não examinar minimamente a regularidade de uma sucessão de endossos. Se bem se reparar, em todos estes casos estão em causa deveres de diligência e de informação. O facto de, neles, se optar pela via da responsabilidade obrigacional facilita, naturalmente, o funcionamento do instituto 76 . A jurisprudência tem vindo a responsabilizar o banqueiro em situações relacionadas com os cheques. Assim sucederá quando o banqueiro, tendo pago um cheque falsificado, não logre ilidir a presunção de culpa que sobre ele recaíra. Numa hipótese de cheque cruzado, o Supremo entendeu que o banqueiro responde quando: «se prove que aceitou sem precauções, a remessa de alguém que havia desviado o cheque em seu proveito, nomeadamente por endosso falso». A aparente restritividade do Supremo resulta, aqui, do facto de o endosso não ter, em princípio, controlo material: há pois um suplemento de factos a produzir. O cliente que saque cheques sem provisão provoca, por parte do banqueiro, o dever de rescindir a convenção de cheque – artigo 1.º Decreto-Lei n.º 454/91, 28 dezembro, com alterações subsequentes. Assim, se entregar cheques com violação do dever de rescisão, deve pagá-los, por força do artigo 9.º desse mesmo diploma, independentemente de se mostrarem reunidos os requisitos do artigo 483.º CC. Questão específica, que culminou com o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2008, 28 fevereiro 2008, é a de saber se uma instituição de credito pode recusar o pagamento de um cheque com fundamento em ordem de revogação recebida do sacador do seu cliente. O Supremo optou pela negativa, ficando envolvida a responsabilidade do banqueiro.
Danos morais, pontos em aberto e cautela: tem o maior interesse pelo significado que envolve no domínio da humanização do Direito Bancário e do mundo dos negócios em geral, a jurisprudência nacional sobre a condenação do banqueiro em danos morais. O problema pôs-se em 1999: numa conta conjunta, um banqueiro entendeu dever compensar determinado débito
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De notar que o banqueiro que tenha extraviado um cheque que lhe tenha sido entregue para cobrança pelo seu cliente, pode propor ação de enriquecimento sem causa contra o emitente do título, uma vez pago ao cliente o valor constante do título.
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Direito Comercial | Sr.º Professor António Menezes Cordeiro 2015/2016 de um titular, inteiramente e sem atentar em que nem todo o saldo podia ser, juridicamente, do devedor. Diz o acórdão em causa77: «No caso dos autos não podemos deixar de reconhecer que a conduta do [banqueiro] ao levantar todas as economias de um casal, de pessoas idosas destinadas a fazer face exatamente às despesas de saúde, sem ter em consideração que se tratava de conta coletiva e que a dívida era da responsabilidade de um dos titulares, não pode deixar de ser considerada, pelo menos, negligente». Temos, ainda, a responsabilidade do banqueiro por inclusão de um cliente em lista de pessoas que oferecem risco, atingindo o seu bom nom e reputação: um tema sancionado repetidamente pelo Supremo. Também na hipótese indevida de revogação da convenção de cheque, o banqueiro pode ser responsabilizado pela violação dos direitos de personalidade do cliente. As indemnizações têm vindo a ganhar significado de acordo com o que sucede, em boa hora, em todo o domínio da responsabilidade civil. A jurisprudência ainda não sancionou devidamente as violações, por parte do banqueiro, do dever de informar devidamente o cliente, perante negócios de risco especial. Assim, mesmo na hipótese quase académica de o banqueiro recomendar a um cliente um recurso a uma operação em divisas estrangeiras a qual, mercê das oscilações das taxas de câmbio, se veio a revelar ruinosa – sem ter alertado para tal risco – não foi cominada a responsabilidade. Trata-se de um ponto a rever, com vantagens para a confiança dos particulares e do próprio tráfego bancário. A referência a estas situações particulares de jurisprudência não deve fazer esquecer que a responsabilidade do banqueiro não dispensa a verificação dos requisitos da responsabilidade civil. A sua responsabilização pela violação de obrigações em que ele não seja parte só é atendível havendo abuso do direito. Para além isso, o banqueiro, como titular dos fundos, corre, em geral, o risco das falsificações que possam ocorrer: em rigor, já não se trata de responsabilidade. Verifica-se, ainda, que os bons banqueiros, hoje em dia, evitam litígios com os seus clientes habituais. Assim, perante falhas de entendimento ou lapsos do próprio banco, quando estejam cientes da boa fé dos clientes, os banqueiros preferem, em nome do sossego e da confiança nos negócios, arcar com algum prejuízo pontual, cobrindo quaisquer danos: não arruínam uma relação mutuamente proveitosa, com danos na opinião pública, através de um litígio, ainda que promissor.
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RCb 23 novembro 1999.
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