Descartes e o Método Analítico Prof. Daniel Bertoglio “Nada omiti, a não ser propositadamente. Previ que certas pessoas, que se vangloriam de tudo saber, certamente não deixariam de afirmar que eu nada teria escrito além daquilo que já lhes era de antemão conhecido – se se para elas eu me houvesse tornado suficientemente compreensível.” Descartes (1596-1650)
As palavras que acabamos de citar não denotam, por certo, nenhuma modéstia, e tampouco são prova de estima demasiada para com os seus concidadãos. Com efeito, o Cavaleiro René Descartes de Perron, embora andasse modestamente trajado, quanto à sua apresentação exterior – toda toda a Europa conhecia aquele vulto pequeno metido em um tafetá (tecido de seda, armado e com um certo brilho) eternamente eternamente verde, que só denotava a sua ascendência nobre através da espada e do chapéu de plumas – foi, foi, contudo, descrito como frio e egoísta, e é certo que estava plenamente convencido da imensidão de seu espírito. espírito. Aquele homem brilhante, teimoso, vivo, avulta em vários sentidos entre as maiores figuras da história da vida espiritual. Tem T em sido dito, freqüentemente, que o pensamento moderno só tem início concreto em Descartes, que ele foi o primeiro a levar novamente a sério a exigência de cumprir rigorosamente o racionalismo e de conceber o mundo de maneira puramente intelectual. “Penso, logo existo” – todos todos conhecemos a proposição fundamental de sua filosofia. Na tenaz e multissecular guerra de emancipação sustentada pelo pensamento pensamento cient cient ífico contra os dogmas eclesiásticos e o arbítrio arbítrio das autoridades, esta proposição significa um marco entre duas épocas. Naturalmente, as tradições nunca são nítidas, jamais pertencem a um único homem; e o próprio Descartes se encontra exatamente entre as duas épocas. Além disso, ele se sentiu durante toda a vida mais como espectador do que como ator no grande palco deste mundo, e o papel de revolucionário pouco lhe quadrava. “Conseqüentemente estava convencido de que seria, deveras, profundamente insensato se u m cidadão qualquer quisesse reformar o Estado, ou mesmo apenas as ciências comuns e seu sistema de ensino ensino solidamente estabelecido estabelecido de tal tal modo que alterasse alterasse tudo desde a base e con cerne ne à s mi nh as própr i as opi ni ões, es, por arrasasse o conjunto, para reconstruí-lo; no qu e concer outr o lado, jul j ul guei guei não poder poder r eali zar zar coisa melh melh or do que der der ri ba-l as em em seus seus fu ndamentos ndamentos par a pr eencher em seguida segui da o vácuo, quer com outr ou tr as opini ões, es, quer qu er com as mesmas mesmas,, u ma vez justificadas pela razão.”
Cedo faz-se sentir o cepticismo cepticismo filosófico. f ilosófico. René Descartes, segundo segundo filho do fidalgo fidalgo e parlamentar Joaquim Joaquim Descartes, Descartes, cumulava de perguntas, perguntas, desde desde pequeno, pequeno, seu meio meio ambiente, a ponto de o pai costumar chama- lo seu “pequeno filósofo”. Na ótima escola dos jesuítas, em La Fleche, ao qual ingressou aos oito anos de idade, o menino estudou com esforço mínimo as ciências lá ensinadas, além de que ainda se lançava sobre todos os livros de que se podia apoderar. “Contudo, ao haver concluído o curso, após o que se é geralmente admitido na categoria dos sábios, alterei radicalmente radicalmente minha opinião, opinião, pois encontrava-me encontrava-me enredado enredado numa profusão tal de
dúvidas e equívocos, que parecia não haver tido outro proveito de minha atividade estudantil senão a convicção mais e mais profunda de minha ignorância.”
A única ciência que lhe agrada é a matemática, onde ele encontra deduções exatas e um método que permite inferir, com plena segurança, assuntos desconhecidos a partir de outros, conhecidos. Já na escola, tal como é apresentada, não o satisfaz, parece-lhe artificial e incoerente, porque os próprios teoremas já servem de tese, em cada caso, posto o que são penosamente demonstrados. Clama então por uma real análise da geometria; propõe-se depurar a álgebra de todos os traços supérfluos e traze-la à perfeição, desenvolvendo as linhas mestras de seu portentoso método, que associou a álgebra à geometria. Já na escola René Descartes observa: é impossível imaginar-se uma coisa tão absurda e fantástica que já não tenha sido enunciada por um filósofo ou outro, e, conseqüentemente, rejeita, por inteiro a filosofia existente.
Já na escola adota as máximas que irão orientar sua vida: submeter-se às leis do país e da religião; ser conseqüente e decidido em suas ações; não tomar por verdadeiro senão aquilo que já tenha sido claramente reconhecido como tal; trabalhar para conquistar-se a si e não conquistar o prazer ou a fortuna; e sobretudo aperfeiçoar o bom-senso e pesquisar a verdade de todas as coisas durante a vida inteira. O programa, como vemos, ficou estabelecido, embora mais negativo do que positivo. No livro do universo ele espera achar aquilo que os livros não lhe souberam revelar: encontrar um método fidedigno e um ponto fixo no mar de dúvidas. Contudo concluído o seu curso escolar, o jovem Descartes não se lança na execução do seu programa. O pai o destinou à carreira das armas, uma vez que o irmão mais velho já herdara dele a carreira jurídica; para isso, porém, também não há pressa. Aliás, para nada tem pressa; nem mesmo para as diversões galantes da vida social. É verdade que inicialmente o jovem se lança no tumulto da jeunesse dorée, de Paris; breve, porém, estes divertimentos ociosos o enfastiam e ele abandona subitamente os círculos alegres, para enterrar-se temporariamente num casarão solitário do bairro St. Germain, onde se dedica à ciência. No ano de 1617, finalmente ingressa como cadete voluntário nos serviços do Príncipe Maurício de Orange (no Brasil é conhecido como Príncipe Maurício de Nassau), governador interino dos Países-Baixos, em Breda. Também aqui Descartes permaneceu como espectador; não possuía a mínima ambição guerreira e acompanhou o exército a expensas próprias, como mero observador de manobras. Uma única vez aceitou soldo, tendo guardado a moeda como curiosidade. Em Breda, Descartes viu fixado, certo dia, um cartaz que continha fórmulas matemáticas; o que imediatamente despertou sua curiosidade. Recorreu à primeira pessoa que passava, pedindo que lhe traduzisse o texto para o francês ou o latin. Casualmente esta pessoa estranha era Isaak Beeckman, conhecido sábio de Middelburg. O famoso homem deve ter ficado deveras surpreendido ante a curiosidade do jovem cadete francês; verteu-lhe o texto – um desafio a todo o mundo para a resolução de certo problema geométrico – não sem acrescentar, em tom de leve ironia, uma condição: o jovem deveria resolver o problema e apresentar-lhe a solução, para que a examinasse. Descartes pôs-se a trabalhar imediatamente, e graças a seu novo método conseguiu vencer o problema em poucas horas. Já no dia seguinte levou a solução a seu gentil tradutor, a partir de então desenvolveu-se grande amizade entre ambos. Sem dúvida Descartes encontrava grande prazer, nesta época, em seu talento matemático, de que, provavelmente, nem ele próprio suspeitaria. Doravante a matemática será sua
companheira por toda a vida, e freqüentes são as referencias que faz a ela em sua filosofia: finalmente encontra algo que o interessava realmente, e que afinal tinha pé e cabeça. Apesar de tudo, porém, Descartes não nascera para a matemática pura; considera a geometria “um exercício útil para o intelecto” e despreza os calculadores e geômetras: “Pois, com efeito, nada existe mais insensato do que ocupar -se tão fervorosamente com simples números e figuras imaginárias a ponto de dar a entender que nos desejamos satisfazer com o conhecimento de tais futilidades; e entregar-se de tal forma a estas demonstrações superficiais, encontradas mais por acaso do que pela arte consciente, a que a gente se desacostuma da razão mesma, s ob certos aspectos.” É unicamente o
método que o interessa, não o resultado nem o argumento. Entretanto, parece que com o tempo o próprio Descartes ficou farto dessa existência pacífica e calma, durante a paz armada de Breda. Decide-se a tomar parte nas guerras da Reforma – primórdios das lutas da Guerra dos Trinta Anos – que se estavam iniciando na Boêmia. Vacilou durante muito tempo, não sabendo a que partido filiar-se – prova de que seu interesse pelos sucessos bélicos e políticos da época não era dos maiores. Finalmente põe-se a serviço do Duque da Baviera, assistindo ainda, em sua tranqüila viagem de ida, à coroação do imperador em Franckfurt – o espetáculo de maior fausto que a época pode apresentar – encontra-se com seu exército e acampa com ele em Neuburg sobre o Danúbio. “Aqui”, diz ele, “permaneci durante todo o inverno num alojamento em que, sem entretenimento dispersivo algum, e livre, f elizmente, de todas as preocupações e paixões, ficava encerrado o dia inteiro em meu quarto, sozinho, dispondo de tempo bastante para me entreter exclusivamente com meus pensamento.” Estes pensamentos, porém, “de início meros prelúdios da imaginação, breve porém avançado mais ousadamente de uma cogitação a outra ”, giravam aglutinados em torno do mesmo
tema: De que maneira é possível chegar à verdade, atingir a clareza e a certeza que nos põem em condições de compreender o mundo em sua plenitude? Na solidão dos dias de inverno da planície sul-alemã Descartes, em luta muda, alça-se à máxima intensidade e paixão do pensamento. Não abandona seu quarto durante dias e dias sucessivos; luta com seu anjo tutelar numa meditação voluntária: não te deixarei, se me não coroares de êxito. O desespero assalta-o, e, como Fausto, recorre a poderes mais altos, à magia. Procura sondar a misteriosa irmandade dos rosa-cruz, sujos os membros, segundo se dizia, possuíam todos os segredos, e promete uma peregrinação a Nossa Senhora de Loreto, para o caso de obter sucesso completo. Seu único ponto de apoio é a matemática, onde possui seu método e onde reinam clareza e segurança completas. E assim germina, finalmente, em seu pensamento a idéia de que deveria ser possível transferir o método da matemática à filosofia, desenvolver uma ciência universal, uma mathesis universalis que, partindo de pontos fixos, como a matemática de seus axiomas, irá resolver um por um os enigmas do universo, com início numa única certeza, plenamente evidente. Esta certeza, Descartes a encontra finalmente na sua sentença: “ Penso, logo existo.” Eis o ponto arquimediano, a partir do qual pretende mover a terra. Nada daquilo que a experiência, os sentidos e mesmo o raciocínio me ensinam, é certo. Tudo sucumbe à dúvida – mesmo o que penso saber, um espírito malévolo poderia iludir-me, a vida poderia ser um sonho. Contudo, o fato de eu duvidar, e de eu ser um céptico – isto não admite mais dúvida. A aplicação do método analítico ao espírito humano, ao próprio pensador – e a certeza assim obtida – eis em que consistem os frutos daquela batalha espiritual que Descartes travou vitoriosamente, no inverno de 1619. “A 10 de novembro de 1619” , escreve ele em seu diário , “descobri, cheio de entusiasmo, as bases de uma
e imediatamente após, ainda conturbado pelas agitações do êxtase espiritual, Descartes tem três sonhos estranhos: no primeiro viu-se impelido pelo vento, com os movimentos tolhidos, a procurar abrigo numa igreja; no segundo parecialhe ouvir uma voz tonitruante e viu um mar de centelhas ao redor de si; no terceiro abria as poesias de Ausônio e lia as palavras: Quod vitae sectabor iter? (“Qual dos caminhos maravilhosa ciência”,
que a vida me oferece deverei seguir?”). Ele próprio nos dá a interpretação destes
sonhos: após demorado período de esmorecimento e de agitações íntimas, ouvira finalmente a voz da verdade e divisara sua luz, vira uma claridade súbita e encontrara uma orientação segura para sua vida. A maravilhosa ciência a que estamos aludindo não é, por certo, a geometria analítica, conforme se afirmou – muito ao contrário trata-se da mathesis universalis, da nova filosofia. “Um estudo atento de tudo isso fez com que eu concluísse que todas as ciências cujo o objetivo é a pesquisa da ordem e da proporção, pertencem à matemática, não importando onde se busca a proporção, se em números, figuras, astros, sons ou outros entes quaisquer; e que, em conseqüência, deveria existir uma ciência universal que, alheando-se de toda aplicação particular, perscrutasse tudo o que se refere a ordem e proporção, merecendo por isto o nome próprio, venerável por sua idade, de matemática , da qual as outras ciências nada mais são do que meros capítulos.”
Muito tempo ainda deveria transcorrer antes que Descartes cumprisse seu propósito de criar novos fundamentos para a ciência, com base nesta origem agora firmada. Inicialmente corre o mundo, observando aqui, cultivando relações matemáticas e científicas mais adiante. Dirige-se a Hungria, à Holanda, ao Tirol e à Itália, fixando-se em Paris, onde retoma o contato com Mersenne, seu colega de estudos, e outros sábios. A este círculo pertence também o sábio Cardeal Bérulle, que consegue fazer com que ele pusesse de lado todos os outros trabalhos e desenvolvesse seus projetos filosóficos. Descartes deixa Paris e vai à Holanda, onde vive ora no campo, ora nas cidades, retirado, co mo espectador desinteressado. Aqui, em seu “amado eremitério holandês”, nascem suas grandes obras, entre elas o famoso Discur so sobr e o mé todo de bem – ou uma Discusão sobr e o uti lizar a r azão e de encontrar a verdade nas ciênci as mé todoa seguir par a chegar -se ao uso acertado da r azão e àpesqui sa científica da verdade, como também se traduziu. Esta obra é incontestavelmente a mais elucidativa
sobre Descartes, o homem e o filósofo; para nós, também, é a mais importante, pois contém seu mais valioso trabalho matemático, a Geometria . Apartado do grande mundo, lá viveu Descartes durante vinte anos. Somente em 1649 abandona a Holanda definitivamente, seguindo para Estocolmo a convite da Rainha Cristina da Suécia. Sua decisão de viajar não foi tomada sem relutância. Propusera-se atingir idade avançada, apesar de sua saúde delicada, e temia as inclemências do inverno boreal – e o que é mais, o mau hábito da jovem rainha de deslocar suas tertúlias filosóficas para as primeiras horas da madrugada: às 5 horas da manhã Descartes devia se encontrar na biblioteca do palácio. Descartes, que já na escola dos jesuítas gozara do privilégio de permanecer na cama uma hora a mais, pela manhã, que conservara este hábito durante toda a vida e a quem, segundo dizia, acorriam as melhores idéias, na cama, durante estas meditações matinais! Seus presságios cumpriram-se – não suportou o norte selvagem. Em fevereiro de 1650 sucumbiu à pneumonia, com a idade de apenas 53 anos. Texto Integral do Livro: A M agia dos Números