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CRISTIANISMO SEM CRISTO O EVANGELHO ALTERNATIVO ALTERNATI VO DA IGREJA IGREJA ATUAL ATUAL
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Cristianismo sem Cristo Michael Horton O Cristianismo sem Cristo © 2010, Editora Cultura Cristã. © 2008 by Michael Horton. Originalmente publicado em inglês com o título Christless Christianity pela Baker Books, uma divisão da Baker Book House Company, Grand Rapids, Michigan, 49516, USA. Todos os direitos são reservados.
Ia edição -2010 3.000 exemplares
Conselho Editorial
Ageu C irilo de Magalhães, Jr. Alderi Souza de Matos André Luis Ramos Cláudio Marra (.Presidente ) Fernando Hamilton Costa Francisco Solano Portela Neto Mauro Fernando Meister Tarcízio José Freitas de Carvalho Valdeci da Silva Santos
Produção Editorial Tradução
Neuz a Batista Ba tista Revisã o
Bruna Perrella Brito Eduardo de Assis Formatação
OM Designers Gráficos Capa
Magno Paganelli
P359a
Horton, Michael Cristianismo sem Cristo / Michael Horton; [tradução Neu za Batista] Ba tista] - São Paulo: Cultura Cristã, 2010. 208p.; 16x23 cm Tradução de Christless Christianity ISBN 978-85-7622-312-2 978-85-7622-312-2 1. Igreja Igreja 2. Vida Cristã I. Horton, Μ . II. Título CDD21ed.-261.5
s ÉDITORR CUlTURfí CRISTfí R. Miguel Teles Teles Jr., Jr., 394 394 - Cambuci - SP - 01540-040 01540-040 - Caixa Postal Postal 15 15.13 .1366 Fone (011) 3207-7099 3207-7099 - Fax (011) (011) 3279-1255 - www.editoraculturacrista.com.br Superintendente: Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas Vargas Editor: Editor: C láudio Antônio Batista Marra
Para Para nosso Senhor Senh or Jesus Jesu s Cristo, por intermédio de quem recebemos, agora, a reconciliação" (Rm 5.11).
Sumário Prefácio 9
Libertando uma igreja cativa
Agradecimentos
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Cristianismo sem Cristo O cativeiro americano da igreja
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Denunciando o nosso cativeiro
Deismo moralista e terapêutico
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Palavras suaves e cristianismo sem Cristo
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Como transformamos boas-novas em bons conselhos
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Seu próprio Jesus pessoal
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6 Pregando Cristo A mensagem e o meio
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Um chamado à resistência
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Prefácio Libertando uma igreja cativa
Aqui estamos nós, na igreja norte-americana - conservadora ou liberal, evangélica ou tradicional, protestante ou católica, emergente ou não - indo muito bem, obrigado por perguntar. Assim, estamos ocupados em diminuir dimensões, em tomar-nos culturalmente relevantes, em chegar, em atrair, em fazer discípulos, em administrar o maquinário, em utilizar princípios bíblicos sem complicações, em comemorar a recuperação, em facilitar para 0 usuário, em descobrir a vida com propósito, em praticar paz com justiça, em utilizar as disciplinas espirituais, em crescer na autoestima, em reinven tar a nós mesmos como empresários eclesiásticos eficazes e, em geral, em nos sentir muito melhores pelas nossas próprias conquistas. Nota alguma coisa faltando neste belo quadro? Jes us Cristo! Sim, Jesus Cristo. Na novela absurda e de humor negro Wise Bloo d , de Flannery O’Connor, seu antipregador, Hazel Motes, prega uma “igreja sem Cristo”, onde ninguém verte sangue e não há redenção, “porque não há pecado nenhum para redimir” e “o que está morto, morto fica”.1Eu sempre enxerguei 0 livro de O’Connor como uma sátira ultrajante e improvável. Daí, aparece Mike Horton e fala na “igreja sem Cristo” como a nossa re alidade eclesiástica difusa. Ele nos acusa de conseguir o que nunca foi re alizado em toda a história da cristandade. De alguma forma, conseguimos pregar Cristo crucificado de tal maneira, que poucos são ofendidos; 0 que foi uma vez um Deus que não se deixa controlar, de repente, parece bonzinho, e o evangelho faz todo sentido - assim como estamos acostumados a fazer sentido. Nós simplesmente não podemos suportar nos submetermos às maquinações de um Deus vivo, determinado a nos ter em seus termos e não nos nossos. Então, inventamos um deus em nossos próprios termos. Um cristianismo contemporâneo frouxo é o resultado.
1O’Conn or, Flannery. Wise Blood. Nova York: Harcourt, Brace, 1952; reproduzido, Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 2007, pág. 101.
Este é um livro implacável, mas bem escrito, ritmado e maravilhosa mente fundamentado na Reforma clássica do cristianismo. Nossa pobre e antiga igreja, conciliatória e transigente, é submetida a uma crítica teológi ca desmoralizadora. Aqui, as raízes do nosso mal-estar teológico atual são expostas, e vemos os caminhos errados que tomamos quando começamos a nos levar mais a sério que a Deus. O tédio e o costume da igreja contempo rânea são atacados. Michael Horton diagnostica nosso problema com uma franqueza inevitável e impressionante. Deísmo terapêutico e utilitário é desnudado e derrotado com a melhor arma que Deus nos deu - 0 evangelho de Jesus Cristo. O cristianismo evangélico presunçoso é denunciado como o recruta mais novo para a causa do liberalismo insípido e culturalmen te comprometido. Eu sou julgado no processo. A Eclesiologia insossa de Robert Schuller está sobre todos nós. Meus sermões são apenas um pouco menos bobos e transigentes que os de Joel Osteen. Mea culpa. Mea culpa. Mea culpa.
Mas este livro não é só crítica. Horton constrói um maravilhoso argu mento de esperança. Seu sermão não é só severidade, mas é também re vigorante e fortalecedor. No processo de leitura desta polêmica induzida de Jesus, você será chamado a retomar ao poder do evangelho. Deus nos perdoe por vender o nosso grande tesouro intelectual - o evangelho de Deu s conosco — por uma trivialidade de autoajuda e pragmática, balbuciar psico lógico e utilitário. Horton alegremente nos relembra de que 0 pensamento teológico é mais interessante que todas as distrações que nos mantêm ocupados, porém desnutridos. As peculiares boas-novas de Jesus Cristo são melhores que qualquer coisa que William James ou Charles G. Finney e seus numerosos herdeiros têm para oferecer. A determinação de Deus em Jesus Cristo de amar os pecadores e de mobilizá-los na invasão que é 0 seu reino é muito mais relevante para a nossa verdadeira condição que nossa inclinação para satisfazer as necessidades dos consumidores narcisistas norte-americanos. Tenha uma maravilhosa aventura ao ler este livro. Aprecie ser atraído para o novo e singular mundo do cristianismo vibrante da operação de res gate do evangelho ousado de Horton. No processo, você será libertado do nosso cativeiro cultural, de modo tal que você novamente ficará livre para adorar, em palavra e em ação, o Cristo ressuscitado. Vamos colocar Cristo de volta no cristianismo. William Willimon Bispo da Igreja M etodis ta Unida Birmingham, Alabam a
Agradecimentos Embora eu me sinta em débito para com muitos por este livro, especialmen te para com aqueles que forneceram exemplos maravilhosos de fidelidade ao evangelho ao longo de muitos anos, vou limitar meus agradecimentos à equipe Baker, incluindo Bob Hosack e Mary Wenger, mas especialmente a Jack Kuhatschek, cujo incentivo e orientação paciente deste projeto provou ser inestimável. Finalmente, agradeço aos meus colegas e aos estudantes do Seminário de Westminster, na Califórnia; ao White Horse Inn e aos funcio nários da Mo dem Refo rmation’ , à Igreja Unida Reformada de Cristo, e, so bretudo, a minha esposa, Lisa, e aos nossos filhos, James, Olivia, Matthew e Adam, porque são sempre o lembrete para mim da razão da importância destas questões.
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O cristianismo sem Cristo O cativeiro americano da igreja
Como seriam as coisas se Satanás assumisse por completo o controle de uma cidade? Mais de meio século atrás, 0 pastor presbiteriano Donald Grey Bamhouse, em seu sermão semanal, descreveu 0 que imaginou que seria o cenário, sendo transmitido nacionalmente pela rádio CBS. Barnhouse especulou que, se Satanás assumisse 0 controle da Filadélfia, to dos os bares seriam fechados, a pornografia seria banida e as ruas imacu ladas ficariam cheias de pedestres bem-arrumados que sorririam uns para os outros. Não haveria xingamentos. As crianças diriam “sim, senhor” e “não, senhora”, e as igrejas estariam cheias todos os domingos... Onde Cristo não seria pregado. É fácil desviarmos a atenção de Cristo como a única esperança para os pecadores. Quando tudo é medido pela nossa felicidade e não pela san tidade de Deus, o sentimento de sermos pecadores se toma secundário, talvez mesmo ofensivo. Se formos um povo bom que perdeu 0 caminho, mas com instruções e motivações corretas, podemos nos tomar pessoas melhores, precisamos apenas de um treinador de vida, não de um reden tor. Ainda podemos emitir parecer favorável a uma visão elevada de Cris to e à centralidade da sua pessoa e obra, porém, na prática, não estamos “olhando firmemente para 0 Autor e Consumador da fé” (Hb 12.2). Um monte de coisas que nos desviam de Cristo nestes dias são, de fato, boas mesmo. A fim de distrair nossa atenção, tudo o que Satanás tem a fazer é lançar diversos modismos espirituais, cruzadas morais e políticas, bem como outras operações “relevantes” em nosso campo de visão. Focalizar a conversa em nossa pessoa - desejos, necessidades, sentime ntos, expe riências, atividades e aspirações - nos estimula. Até que enfim, estamos falando de algo prático e relevante.
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Cristianismo sem Cristo
Por mais instigante que a ilustração de Bamhouse pareça, ela é ape nas uma elaboração de uma observação, feita ao longo da história da re denção. Onde quer que Cristo for, verdadeira e claramente, proclamado, Satanás estará presente, fazendo oposição máxima. As guerras entre as nações e as inimizades nas famílias e bairros nada é mais que a vigília da cauda da serpente, enquanto busca devorar a igreja. No entanto, mesmo nessa busca, ele é mais sutil que imaginamos. Ele nos embala para dorm ir enquanto aparamos nossa mensagem para caber na banalidade da cultura popular e invocamos 0 nome de Cristo por qualquer coisa, exceto pela salvação do juízo vindouro. Embora, sem dúvida, ele instigue seus dis cípulos na terra a perseguir e a matar os seguidores de Cristo (com mais martírios no mundo todo, com uma média anual maior que em qualquer época anterior), Satanás sabe, por experiência, que semear heresia e eisma é muito mais eficaz. Embora o san gue dos mártires seja a sem ente da igreja, a assimilação da igreja pelo mundo silencia o testemunho.
Acho que a igreja de hoje está tão obcecada em ser prática, relevante, útil, bem-sucedida e, talvez, até mesmo aceita, que ela quase reflete em si mesma 0 mundo. Com exceção da embalagem, praticamente tudo que podemos encontrar na maioria das igrejas atuais pode ser satisfeito por um sem-número de programas seculares e grupos de autoajuda. Cristianismo sem Cristo. Soa um pouco duro, não é mesmo? Um pou co superficial, às vezes desatento, até mesmo um pouco centrado no hu mano em vez de centrado em Cristo de vez em quando, mas sem Cristo ? Deixe-me ser um pouco m ais preciso sobre o que suponho ser a dieta nor mal de muitas igrejas por toda parte hoje: “Faça mais, esforce-se mais”. Acho que esta é a mensagem difundida além da ilusão atual. Ela pode ser exibida de uma forma mais antiga e conservadora, com ênfase recor rente nos absolutos morais e nas advertências sobre a queda no abismo do mundanismo que, muitas vezes, pode fazer-nos ficar em dúvida se, afinal, somos salvos por causa de nosso medo ou pela fé. O céu e o infer no ainda figuram de forma proeminente nesta versão. Especialmente nos “dias santos importantes” do calendário da igreja americana (isto é, Dia do Memorial, Dia da Independência, Dia dos Pais, Dia das Mães), muitas vezes com bandeiras norte-americanas gigantes, uma proteção colorida e canções patrióticas incluídas, esta versão mais inflexível de “faça mais, esforce-se mais” ajudou na progressão da cultura das guerras. Ao mesmo tempo, os organismos m ais liberais podem ser igualmente estridentes com sua lista “faça mais, esforce-se mais” na esquerda e suas chamadas sema nais para ação em lugar da clara proclamação de Cristo. Reagindo contra esta versão extrema de fundamen talistas e de liberais julga dores, surgiu outra geração que queria atenuar o rigor, no entanto a mensagem “faça mais, esforce-se mais” ainda predominou - desta vez,
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em tom pastel suave de Stuart Smalley, de Al Franken, do que no tom de censura de Church Lady, de Dana Carvey, ambos no programa Saturday Night Live. Nessa versão, Deus não fica zangado se você não consegue ser bem-sucedido. Os riscos não são tão altos assim: sucesso ou fracas so nesta vida, não no céu ou no inferno. Não há mais mandamentos; o conteúdo desses sermões, hinos e livros bestsellers são suge stões úteis. Se você não consegue fazer que as pessoas fiquem melhores com varas, use incentivos. Cada vez mais, a liderança está sendo assumida por uma geração mais jovem , que foi criada no exagero e na hipocrisia, e está cansada da orien tação narcisista (ou seja, eu-centro ) da geração de seus pais. Os jovens se sentem atraídos por ideais de salvação muito além do individualismo legalista da salvação como seguro-contra-incêndio. Eles estão fartos tam bém do individualismo consum ista da salvação com o aperfeiçoamento pessoal. Em lugar destas coisas, estão ansiando, desesperadamente, pela transformação autêntica e genuína que produz comunidade verdadeira e atos de amor, que contempla, de forma mais eficaz, as crises social e glo bal dos nossos dias e não as lamúrias limitadas de outrora. Apesar das diferenças significativas entre as gerações e os tipos de ministério das igrejas, semelhanças essenciais permanecem. O foco ain da parece ser nossa pessoa e atividade, em vez de Deus e de sua obra em Jesus Cristo. Em todas essas abordagens, há a tendência de fazer de Deus um personagem coadjuvante no filme da nossa própria vida, em vez de sermos reescritos como novos personagens no drama da redenção de Deus. Assimilando o perturbador, 0 surpreendente e o poder de desorien tação do evangelho das “necessidades sentidas”, das crises morais e das manchetes sócio-políticas de nosso tempo, acabamos por dizer bem pouca coisa diferente do que o mundo pode escutar ouvindo Dr. Phil, Dra. Laura ou a Oprah. Além da pregação, nossas práticas revelam que estamos focados em nós mesmos e em nossas atividades mais que em Deus e em sua obra salvadora entre nós. Em todos os sentidos, do ortodoxo ao liberal, do católico-romano ao anabatista, da nova era ao conservador, a “busca pelo sagrado” é, em grande medida, orientada para o que acontece dentro de nós, na nossa pró pria experiência pessoal, e não no que Deus fez por nós, na História. Até mesmo 0 Batismo e a Ceia são descritos como “meios de com promisso” em vez de “meios da graça” , por conservadores e evangélicos progressistas, em uma multidão de teologias sistemáticas contemporâneas. Em lugar de dei xar que “habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo; instruí-vos e acon selhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com gratidão, em vosso coração” (Cl 3.16), o propósito de cantar (a “hora de adoração”) parece hoje mais concentrada
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Cristianismo sem Cristo
na nossa oportunidade de manifestar nossa devoção individual, experiên cia e compromisso. Vamos à igreja, ao que parece, mais para celebrarmos nossa própria transformação e para recebermos novas ordens de marcha para transformarmos a nós mesmos e o nosso mundo que sermos modifica dos pelo evangelho. Em vez de sermos arrebatados para o novo mundo de Deus, chegamos à igreja para descobrir como podemos tomar Deus rele vante para 0 “mundo real” que 0 Novo Testamento identifica como aquele que, na realidade, desaparece. A maioria das pessoas acredita em Deus, afirma que Jesus Cristo é, em certo sentido, divino, e acredita que a Bíblia é a Palavra de Deus. O pesqui sador evangélico George Bama descobriu que 86% dos adultos norte-ame ricanos descrevem sua orientação religiosa como cristã, enquanto apenas 6% se descrevem como ateus ou agnósticos.2A julgar pelo seu sucesso comercial, político e nos meios de comunicação, o movimento evangélico parece estar crescendo. Mas ainda é cristão ? Não estou fazendo a pergunta levianamente ou simplesmente para pro vocar uma reação. M inha preocupação é que estamos chegando, pe rigosa mente, perto do lugar da vida cotidiana da igreja em que a Bíblia é mina da por citações “relevantes”, mas é, em grande parte, irrelevante em seus próprios termos; Deus é usado como um recurso pessoal, em lugar de ser conhecido, adorado e confiado; Jesus Cristo é um treinador com um plano de jogo bom para nossa vitória, em vez de um Salvador que já alcançou a vitória para nós; a salvação é mais uma questão de ter nossa vida melhor agora que ser salvo do julgamento de Deus pelo próprio Deus, e o Espírito Santo é uma tomada elétrica que podemos ligar para obter o poder necessá rio para sermos tudo o que podemos ser. A medida que este novo evangelho se toma mais evidentemente ame ricano que cristão, todos nós temos de dar um passo para trás e perguntar se o movimento eva ngélico é um movimento cultural e político crescente, que tem uma ligação sentimental com a imagem de Jesus mais que com 0 testemunho de “Jesus Cristo e este crucificado” (1C0 2.2). Não temos demonstrado, nas últimas décadas, que temos muito estômago para essa mensagem que o apóstolo Paulo chamou de “pedra de tropeço e rocha de escândalo5’ (Rm 9.33) e “loucura para os gentios” (1C0 1.23). Longe de entrar em conflito com a cultura do consumismo, a religião atual parece não só estar em paz com 0 narcisismo, mas lhe empresta legitimidade espiritual. Antes de lançar este protesto, devo esclarecer, com precisão, o que não estou dizendo. Primeiramente, reconheço que há muitas igrejas, pastores, missionários, evangelistas e cristãos de grande valor, ao redor do mundo, 2Barna, George. The Second Coming o f the Church. Nashville: Word, 1998, pág. 67.
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proclama procl amando ndo Cristo C risto e cumprindo cum prindo suas vocaçõ vo cações es com c om integridade integ ridade.. Peço Peç o des de s culpas, antecipadamente, por não contar esse outro lado da história com suas exceções verdadeiramente notáveis. No entanto, duvido que eles se importem, já que muitos deles demonstram preocupações semelhantes so bre o estado es tado do cristianis crist ianismo mo nos EUA. Em segundo lugar, não estou argumentando, neste livro, que já chega mos ao cristianismo sem Cristo, mas sim que estamos a caminho. Não é precis pre cisoo hav haver er o abando aba ndono no exp explícit lícitoo de qua qualqu lquer er ensino ens ino fundam fun dam ental en tal cris cr is tão, apenas uma série de distorções sutis e de distrações não tão sutis. Até mesmo coisas boas podem nos levar a desviar o olhar de Cristo e a considerar o evangelho como algo garantido, que precisávamos para a conversão, mas que agora podemos assumir com segurança e colocar em segundo plano. O centro do palco, entretanto, é para outro alguém ou para outra coisa. Vou citar estudos recentes que demonstram que, na verdade, 0 fato de a pessoa ter sido criada em uma família e em uma igreja evangélica não importa mais - a compreensão básica do enredo do drama bíblico e de seu personagem principal é tão improvável para os jovens da igreja como para par a os que não têm igreja. igrej a. Deus e Jesus Jes us ainda ain da são impor im portan tantes tes,, porém por ém mais como parte do elenco de apoio do nosso próprio show. Mais inte ressados em nossas próprias tramas sem profundidade, estamos perdendo nossa confiança no que a dramaturga inglesa Dorothy Sayers chamou de “a maior história jamais contada”. Assim, muito do que estou chamando de “cristianismo sem Cristo” não é profundo 0 suficiente para constituir heresia. Como a música Muzak Muzak?* ?* que é fácil de escutar e que toca ubiquamente em segundo plano em estabelecimentos comerciais, a mensagem do cristianismo atual tornou-se simplesmente trivial, sentimental, aceita da e irrelevante. Em terceiro lugar, não estou questionando o cristianismo americano quanto ao seu zelo. zelo . O apelo feito por líderes cristãos de “atos, não cr edos” é, sem dúvida, motivado por preocupações sérias para serem testemunhas de Cristo em um mundo despedaçado. Não duvido da sinceridade dos que dizem que temos a doutrina correta, contudo não a estamos vivendo. Pelo contrário, simplesmente não concordo com a avaliação deles. Acho que nossa doutrina tem sido esquecida, presumida, ignorada e até mesmo deformada e distorcida pelos hábitos e rituais da vida cotidiana em uma cultura narcisista. Estamos igualando as perturbadoras e desorientadoras 3* Muzak: nome de uma empresa norte-americana que cria músicas para ambientes e um termo utilizado para se referir à música de elevador ou música em ambientes de espera. No geral, este termo é usado para músicas mais sofisticadas, desenvolvidas principalmente para este fim [N. da R.].
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novas do céu à banalidade de nossas próprias próprias necessidades imediatas sen tidas , que interpretam Deus como um comprador pessoal para os adere ços do nosso filme-vida: felicidade como entretenimento, salvação como bem be m-es estar tar terapê ter apêutic uticoo e missão m issão como com o êxito ê xito pragmá pra gmático tico un unica icame mente nte medi me di do em termos de números. Então, em minha opinião, estamos vivendo nosso credo, mas ele está mais para o sonho americano que para a fé cristã. Meu argumento neste livro é que a forma mais dominante dom inante do cristianismo de hoje reflete “um zelo por Deus” De us” que é, no entanto, sem conhecime conhe cimento nto - particularm partic ularmente ente,, como 0 próprio Paulo especifica, 0 conhecimento da justificação de Deus dos ímpios apenas pela graça, por meio da fé em Cristo somente, independente mente das obras (Rm 10.2, veja vs. 1-15). Em quarto lugar, há uma série de questões que gostaria de abordar so bre nosso cativeiro cative iro americano, ameri cano, as quais não serão estudadas estud adas aqui. Já tratei da maioria delas em outras ocasiões, especialmente em Mad e in Am eric a , Power Religion Religion e Beyond Bey ond Culture Wars.4 Wars.4 Os ídolos que identificam a causa cristã com ideologia política de esquerda ou de direita são meramente sin tomas de que Cristo não está sendo considerado como suficiente para a fé e para a prática prá tica da d a igreja igre ja atual. Enquanto a mídia segue segu e a muda m udança nça crescente cresc ente,, entre muitos jovens evangélicos, de políticas mais conservadoras para mais progressis progre ssistas, tas, as manch m anchetes etes reais r eais devem dev em ser se r que 0 movimento está voltando à igreja para crescer na graça e no conhecimento de Jesus Cristo, em vez de tomar-se um bloco demográfico nas guerras culturais. Então, meu foco, neste livro, é se Cristo está, pelo menos, sendo amplamente proclamado no país onde metade meta de da populaç p opulação ão afirma ser se r evangélica. evang élica. Quando se dá valor para o evangelho, frequentemente ele é um meio para um fim, como transforma transf ormação ção pessoal ou social, socia l, amo a morr e serviço se rviço ao nos no s so próximo e outras coisas que, em si, são os efeitos maravilhosos do evan gelho. No entanto, as boas-novas a respeito de Cristo não é um trampolim para algo maior ma ior e mais relevante. relevan te. Percebendo Perceb endo ou não, no universo unive rso não há nada mais relevante para nós, culpados portadores da imagem de Deus, que a boa notícia de que ele encontrou uma forma de ser “justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.26). Ele é “o poder de Deus para a sal vação” (Rm 1.16) não só para o começo, mas para o meio e o fim também - a única coisa coisa que cria 0 tipo de mundo novo ao qual nossa nova obediên cia corresponde como uma resposta razoável. Nos capítulos capítu los seguintes, seguinte s, forneço estatísticas estatístic as que comprovam comp rovam a notável notáv el conclusão de que aqueles criados em igrejas “que creem na Bíblia” sabem 4Horton, Michael S. Made in America: The Shaping o f Modern Amer ican Evangelic alism. Grand Rapids: Rapids: B aker , 1991; Horton (org.), Power Religion : The Selling Out of the Evangeli cal Church? Chicago: Moody, 1992; Horton, Beyo nd Culture Wars. Wars. Chicago: Moody, 1994.
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tão pouco do conteúdo da Bíblia quanto seus vizinhos incrédulos. Cristo é onipresente nesta subcultura, porém mais como um adjetivo {cristão) que como um substantivo. Enquanto nadamos em um mar de coisas cristãs, Cristo é reduzido, cada vez mais, a símbolo de uma subcultura e das indús trias que a alimentam. Assim como você realmente não precisa de Jesus Cristo a fim de ter camisetas e canecas de café, eu também não consigo entender por que ele é necessário para a maioria das coisas que ouço aos montes de pastores e de cristãos falando na igreja, nestes dias. Acredito que não nos demos conta do grau de nossa esquizofrenia: todos os anos, condenamos a comercialização do Natal pela cultura, en quanto assumimos uma abordagem consumidor-produto-venda em nossas própria pró priass igreja s, todas toda s as a s sema s emanas. nas. Lam entamos enta mos a cres c resce cente nte secu se culari lariza zaçã çãoo da sociedade, enquanto garantimos que as gerações, atualmente sob nos sos cuidados, saibam ainda menos que seus pais e sejam menos moldadas pela pel a nutriçã nutr içãoo pactuai pac tuai que sustent sus tentaa a vida v ida em Cristo Cris to ao longo lon go de geraçõ ger ações. es. Ao mesmo tempo em que chamamos nossa rendição de missão e de rele vância de cultura narcisista, acusamos os secularistas de esvaziamento do discurso público das crenças e dos valores que transcendem nossa grati ficação instantânea. Enquanto tomamos o nome de Cristo em vão para nossas próprias cau sas e posições, banalizando sua Palavra de todas as maneiras, expressamos indignação quando um filme banaliza Cristo ou retrata os cristãos de forma negativa. Embora os cristãos professos sejam a maioria, frequentemente gostamos de fingir que somos um rebanho perseguido, preparado para um abate iminente por meio das energias combinadas de Hollywood e do Parti do Democrata. Entretanto se nós, alguma vez, fomos, de fato, perseguidos, porventu porv entura ra foi por p or causa c ausa de nossa postura postu ra ofensiva ofe nsiva e autoj a utojusti ustiça ça ou porque porqu e não enfraqueceríamos enfraqueceríamos a ofensa da cruz? Na minha experiência, com prova da por inúmeras histórias de outras pessoas, crentes que desafiam o proces so antropocêntrico de banalizar a fé são mais propensos a ser perseguidos - ou, no mínimo, vistos vistos como problemáticos - pela igreja deles. A minha preocupa preoc upação ção não é que Deus seja tratado tr atado de d e forma for ma tão tã o banal ban al na n a cultura, cu ltura, mas que não seja levado a sério em nossa própria fé e prática. Matando-nos suavemente Meu argum ento neste nest e livro não é que o evan gelicalism geli calism o5* o5* está se torn an do teologicamente liberal, mas que está se tornando teologicamente vazio.
Longe de produzir uma complacência presunçosa, núcleos de convicções 5*Tradução para o termo em inglês evangelicalism, que também pode significar “adesão aos princípios princíp ios das da s igrejas igr ejas evang e vang élicas” élica s” [N. da R.].
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evangélicas - centralizados centralizados em “Cristo “Cristo e este crucificado” crucificado” - conduziram conduziram três séculos de missões evangélicas. O ministério de John Stott, um dos principai princ ipaiss líderes desse dess e consenso conse nso pós-guerra pós-gu erra,, incorporou incorp orou esta integraçã integr açãoo da proclamação centrada em Cristo com paixão missionária. No entanto, quando questionado sobre como ele avalia esse movimento mundial, em uma edição da revista Christianity Today, Stott só pôde responder: “A res posta pos ta é crescimento sem profundidade ”.6 Certamente, existem sinais de que as fronteiras teológicas do movimen to estão se alargando - e eu vou abordar alguns alguns exemplos neste livro. Além disso, 0 vazio e o liberalismo têm tipicamente andado de mãos dadas quan do se trata de fé e prática na igreja. igreja. O liberalismo começ ou por subestim ar a doutrina em favor do moralismo e da experiência interior, perdendo Cristo por po r hierarquia. hiera rquia. No entanto, entanto , é mais m ais tolice que here h eresia sia que está nos matando mata ndo suavemente. Deus não é negado, mas banalizado banalizado - usado para nossos pro gramas de vida, e não recebido, adorado e usufruído. Cristo é uma fonte de capacitação, mas é amplamente reconhecido entre nós, hoje, como fonte de redenção para 0 impotente? Ele ajuda 0 moralmen te sensível a se tomar melhor, mas salva 0 ímpio - incluindo incluindo os cristãos? cristãos? Ele sara as vidas destruídas, mas levanta aqueles que estão “mortos nos vossos delitos e pecados” (Ef 2.1)? Terá Cristo vindo meramente para me lhorar nossa existência em Adão ou para terminá-la, arrebatando-nos para a sua nova criação? Será o cristianismo somente sobre transformações es piritual piritu al e moral, m oral, ou sobre a morte e a ressurre re ssurreição ição - juízo juí zo e graça graç a radical? radic al? E a Palavra de Deus um recurso para 0 que já decidimos que queremos e precisam prec isamos, os, ou é o Deus vivo e crítica c rítica ativa da nossa religião, religião , moralidad mora lidadee e experiência piedosa? Em outras palavras, a Bíblia é a história de Deus centrada na obra redentora de Cristo, que reescreve nossas histórias, ou é algo que usamos para tomar nossas histórias um pouco mais emocionantes e interessantes? Os conservadores e os liberais moralizam, minimizam e banalizam Cris to de maneiras diferentes, é claro que com as diversas agendas políticas e sociais, mostrando sua fidelidade fidelidade quer à cultura de elite elite quer à cultura popu popu lar, mas ainda é moralismo. Segundo o bispo metodista William Willimon: Devido à falta de confiança no poder de nossa história para efetuar aquilo que ela fala, para evocar um novo povo do nada, nossa comunicação perde a coragem. Nada é dito que não possa ser ouvido em outro lugar. (...) Em contex tos conservadores, o discurso do evangelho é negociado para a afirmação dogmática e moralismo, moralismo, psicologias de 6Entrevista com John R. W. Stott, Christianity Today, outubro de 2006, pág. 96.
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autoajuda e mantras-soníferos. No discurso mais liberal, a conversa anda, na ponta dos pés, em tomo do escândalo do discurso cristão e acaba como uma inócua, porém cor tês, afirmação da ordem dominante. Incapazes de pregar a Cristo e este crucificado, nós pregamos a humanidade e esta melhorada.7 Os liberais podem ter sido pioneiros na teoria de que há salvação em outros nomes além do nome de Jesus Cristo, mas nenhum grupo na his tória modema tem desejado que 0 público em geral faça orações não seetárias - isto é, com ou sem Jesus Cristo - tanto como os evangélicos con servadores. Quando se trata de colocar Deu s de volta em nossas escolas , podemos deixar Jesus para trás. Jesus tem sido vestido como um C EO,8*treinador de vida, guerreiro de cultura, revolucionário político, filósofo, copiloto, companheiro de sofri mento, exemplo moral e parceiro na realização de nossos sonhos pessoais e sociais. Mas, em todas estas formas, estamos reduzindo o personagem central no drama da redenção a um apoio para nossa própria peça? Como os liberais de outrora, um número crescente de líderes evangé licos gostam de colocar o ensinamento de Jesus sobre o reino - especial mente, o Sermão da Montanha - em contraste com a ênfase mais doutrinai encontrada, sobretudo, nas epístolas de Paulo. Muitos comemoram esta ênfase no Cristo-como-exemplo em vez de no Cristo-Redentor como o prenúncio de um novo tipo de cristão, mas é isto realmente um antigo tipo de moralista? Indiferente se sabe que a morte de Cristo é con siderada um sacrifício vicário, o discipulado - carregar nossa cruz - torna-se o tema mais interessante. Não importa que os discípulos sejam pessoas que aprendem alguma coisa antes de saírem para chamar a atenção por suas atividades zelosas. Novamente, não estou dizendo que estes irmãos sejam liberais, mas que não há diferença perceptível para nosso testemunho se ignoramos ou negamos a mensagem de Cristo e sua cruz. Quando o foco passou a ser “o que faria Jesus?” em vez de “o que Jesus fez?” , os rótulos não importam mais. Os conservadores têm sido igualmente propensos a se concentrarem no primeiro e não no segundo, nas últimas décadas. Religião, espiritualidade e seriedade moral - que, segundo Paulo, têm “forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder” (2Tm 3.5) - podem continuar a prosperar em nosso meio precisamente porque evitam o escân 7Willimon, William H. Peculiar Speech: Preaching to the Baptized. Grand Rapids: Eerdmans, 1992, pág. 9. 8*Ch ief Executive Officer, designa o mais alto cargo executivo de uma organização, equiva lente, em português, ao cargo de diretor geral [N. da R.].
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dalo de Cristo. Ninguém vai criar confusão se você achar Jesus útil para seu bem -estar pessoal e relacionamentos, ou mesmo se você pensar que ele foi 0 maior homem da História - um modelo digno de devoção e de imitação. No entanto comece a falar sobre a crise real - na qual nossos melhores esforços são como trapos imundos e Jesus veio para carregar sobre si a condenação dos pecadores desamparados, que põem sua confiança nele e não em si mesmos - e as pessoas começam a se mexer em seus lugares, até mesmo nas igrejas. Discipulado, disciplinas espirituais, mudança de vida, transformação cultural, relacionamentos, casamento e família, estresse, dons espirituais, dons financeiros, experiências radicais de conversão, curiosidades do fim dos tempos (que, às vezes, parecem ter menos a ver com o retomo de Cristo que com a correspondência das manchetes de jornais) e relatos de supera ção de obstáculos significativos por meio do poder da fé - esta é a dieta constante que estamos recebendo hoje. Corremos 0 risco de nos consu mir inteiramente, porque tudo gira em tomo de nós e do nosso trabalho, e não ao redor de Cristo e de sua obra. Até mesmo importantes exortações e mandamentos bíblicos se tomam deslocados de seu indicativo ambiente evangélico. Em vez de 0 evangelho nos dar novas ideias, experiências e motivação para obediência grata, depositamos o poder de Deus em nossa própria piedade e em nossos próprios programas. Não desejo consertar tudo. Algumas de minhas avaliações podem aca bar por ser demasiadamente radicais ou mal inform adas. Espero que não, porque essas questões são por demais importantes para serem tratadas com descaso. Os leitores certamente vão encontrar um monte de boas notícias intercaladas com más notícias neste livro, mas admito, desde o início, que, no todo, não é uma missiva alegre. Estou contando com a in dulgência dos leitores para esperarem por uma se qüência deste livro mais construtiva. Se este livro pelo menos levantar questões que provoquem uma análise mais profunda de nosso testemunho no mundo de hoje, já terá valido a pena. Meu alvo não é qualquer ala em especial, movimento, pessoa ou grupo. Todos nós somos vítimas, bem como cúmplices, em nosso cativeiro. Na verdade, meu sentido de urgência é motivado pela minha impressão de que “o cristianismo sem Cristo” é invasivo, atravessa o espectro liberal-conservador e todas as linhas denominacionais. Na verdade, quando escrevi algu mas das ideias deste livro para um artigo, em uma revista recentemente, um editor católico exclamou: “Ele está escrevendo sobre nós!”. Na verdade, eu estou escrevendo sobre “nós” - todos os que professam 0 nome de Cristo, tanto como ministros quanto como testemunhas. Seria mais fácil se pudéssemos identificar um escritor em especial, um círcu10 de escritores ou movimentos como um inimigo isolado. No entanto,
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nenhuma denominação está livre desse cativeiro, incluindo a minha, e ninguém, incluindo eu mesmo. Assim, não existe nenhuma posição de pureza antisséptica que eu possa fingir ocupar, da qual possa limpar o res tante do chão. O máximo que qualquer um de nós pode fazer é dize r como Isaías, quando ele teve a visão de Deus em sua santidade: “Ai de mim! Estou perdido! Porque sou homem de lábios impuros, habito no meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o S e n h o r dos Exércitos!” (Is 6.5).
Denunciando o nosso cativeiro Deísmo moralista e terapêutico
Vários anos atrás, um teólogo tradicional me contou uma experiência que teve em uma megaigreja evangélica. Ele estava visitando seus filhos e hetos durante o feriado da primavera. Na igreja, eles assistiram ao Dominga de Páscoa, mas nada sugeria, de modo visível, que aquele fosse um culto cristão, porém esse eminente teólogo tentou refrear sua opinião. Não houve saudação da parte de Deus ou qualquer coisa que mostrasse que aquela fosse uma reunião de Deus. Os cânticos eram quase exclusivamente sobre as pessoas, seus sentimentos e suas intenções de adorar, de obedecer e de amar, mas não era possível saber de quem eles estavam falando ou p or quê. Ele concluiu: “Bem, os evangélicos não têm uma liturgia definida. Eles devem ter colocado todo o conteúdo no sermão, então vou esperar” . No entanto, sua paciência não foi recompensada. Apesar de ser Páscoa, a mensagem (sem um texto definido) era sobre como Jesus nos dá força para superar nossos obstáculos. Sem pelo menos uma bênção, esse teólogo foi embora desanimado. Ele tinha ido a uma igreja evangélica, n a Páscoa, e, em vez de encontrar Deus e o anúncio de uma verdadeira vitória sobre o pecado e a morte por Jesus Cristo, encontrou outros cristãos que estavam recebendo solidariedade e instruções para tomar a Páscoa deles realidade em suas vidas. Pressionado pelas insistentes perguntas de seu genro quanto à sua reação ao culto (tais como “falou ao seu coração?”), o teólogo rompeu seu silên cio: “Presumo que você esteja tentando ‘me evangelizar’ neste momento”, disse ele. “Mas não houve ‘evangelho’ em nenhuma parte daq uele culto que pudesse me converter se eu já não fosse um convertido... nem mesmo nas igrejas mais liberais em que já estive o culto foi tão desprovido de Cristo e do evangelho. E como se fosse: Deus querríV ’
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Depois desta ocasião, um teólogo metodista tradicional me contou uma experiência quase idêntica - curiosamente, também na Páscoa - em uma igreja presbiteriana conservadora, conhecida ao redor da universidade por seu ministério “crente na Bíblia” e “centrado em Cristo”. Ele também saiu desiludido (o sermão foi algo sobre como Jesus venceu seus reveses e, as sim, nós também podemos vencer), fundamentando ainda mais sua avalia ção de que os evangélicos são tão propensos quanto os tradicionais de hoje a falar em psicologia, política ou moralismo popular em vez do evangelho. Estes relatos, porém, são anedotas isoladas que poderiam ser encontra das em qualquer período da história da igreja? Fundamentando a acusação Com base em numerosos estudos conduzidos por seu grupo de pesquisa, George Bama concluiu que “para um número crescente de americanos, Deus - caso pelo menos se acredite em uma divindade sobrenatural - existe para o prazer da humanidade. Ele reside no reino celestial exclusivamente para proveito e benefício nosso. Embora sejamos espertos demais para con fessar isso em voz alta, vivemos pela noção de que o verdadeiro poder não é acessado olhando para cima, mas nos voltando para dentro de nós”.1 A menos que algo mude, Bama pensa:
Será cada um por si, sem dúvidas ou arrependimentos so bre as implicações pessoais ou sociais deste modo de vida incrivelmente egoísta, niilista e narcisista. (...) A maioria dos americanos tem pelo menos um consenso intelectual quando se trata de Deus, de Jesus Cristo e dos anjos. Eles acreditam que a Bíblia é um bom livro cheio de histórias e lições importantes. E acreditam que a religião é muito im portante em sua vida. Mas este mesmo grupo de pessoas, incluindo muitos cristãos professos, também acredita que as pessoas são intrinsecamente boas e que nosso principal objetivo é aproveitar a vida, 0 melhor possível.2 Oitenta e dois por cento dos americanos (e uma maioria de evangélicos) consideram que a máxima de Benjamin Franklin: “Deus ajuda a quem se ajuda”, é uma citação bíblica. Uma maioria acredita que “todas as pessoas oram ao mesmo deus ou espírito, não importa o nome que eles usam para esse ser espiritual” e que “se uma pessoa for boa no geral ou fizer várias 1Barna, Second Coming o f the Church, pág. 7. 2Ibid., págs. 8, 21.
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coisas boas para os outros durante sua vida, ela vai ganhar um lugar no céu”.3Assim sendo, não deveríamos nos ter surpreendido quando o presi dente Bush disse: “Eu acredito que todo o mundo, muçulmanos, cristãos ou pessoas de qualquer outra religião, reza para o mesmo Deus. Isso é o que eu acredito”.4 Depois de citar uma série de relatórios, Bama concluiu: Em resumo, a espiritualidade da América é cristã ape nas no nome. (...) Queremos experiência mais que co nhecimento. Preferimos escolhas a absolutos. Abraçamos preferências em vez de verdades. Buscamos conforto no lugar de crescimento. A fé deve ser de acordo com nossos termos ou não a aceitamos. Nós nos entronizamos como supremos árbitros da justiça, governantes supremos de nossa própria experiência e destino. Somos os fariseus do novo milênio.5 Dentre os falsos pressupostos que estão “matando o ministério” hoje, estão as convicções de que “os americanos têm uma compreensão sólida dos princípios básicos do cristianismo”, de que “as pessoas que acreditam em Deus acreditam no Deus de Israel” conhecido na Escritura ou de que os não cristãos estão interessados na salvação, visto que a maioria dos ameri canos “está confiando em suas próprias boas ações, em seu bom caráter ou na generosidade de Deus”, à parte de Cristo.6 Os estudos de Bama sugerem que a maioria dos americanos valoriza 0 tempo e a eficiência acima de tudo, minimiza compromissos em longo prazo, mantém a “independência e a individualidade a todo o custo”, até mesmo a ponto de ser cética em relação às instituições, às pessoas e às autoridades. Afinal de contas, as pessoas escutam todos os dias “você é único”, e você não deve submeter-se às expectativas dos outros. Acima de tudo, “confie em seus sentimentos para guiá-lo. Basear-se em princípios ab solutos impõe limitações irrealistas sobre você. Só você sabe o que é certo ou melhor para você, em qualquer momento, nas circunstâncias presentes”. Finalmente, ,',‘estabeleça metas e alcance-as... Divirta-se... Manten ha-se em boa saúde... Descubra e concretize o propósito de sua vida"? Estes são os principais valores de acordo com pesquisas de Bama sobre os americanos }Ibid., págs. 21-22.
Presidente George W. Bush em uma entrevista em 04.10.2007, por Al Arabiya, relatado por Molly Iverson, “Between the Times”, Modern Reforma tion , novembro-dezembro de 2007. 5Barna, Second Coming o f the Church, pág. 23. 6 Ibi d ., págs. 25-28. 7 Ibid ., págs. 60-61.
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adultos de hoje. Apesar de seu diagnóstico, as receitas do próprio Bama (que vou retomar em um capítulo posterior) são mais susceptíveis de agra var a doença em vez de curá-la. Há mais de uma década, tive a oportunidade de entrevistar Robert Schul ler em nosso programa de rádio. Durante nossa conversa de duas horas, 0 autor best-seller e tele-evangelista reiterou seus argumentos de Self-Este em: The New Reformation. Uma igreja, disse ele, pode se dar ao luxo de pensar em um Deus como 0 centro, mas uma missão precisa colocar os seres humanos no centro. “Foi apropriado Calvino e Lutero pensarem teocentricamente”, escreveu Schuller, mas, agora, “a balança deve pender para 0 outro lado”, na direção da “abordagem das necessidades humanas”. Na verdade, “a teologia clássica cometeu um erro em sua insistência na teolo gia centrada em Deus , e não centrada no homem". Pecado é definido como “qualquer ato ou pensamento que rouba a mim mesmo ou a outro ser huma no de sua autoestima. (...) E 0 que é inferno? É a perda do orgulho, que vem naturalmente depois da separação de Deus - a fonte suprema e infalível do senso de autorrespeito da nossa alma. (...) Uma pessoa está no inferno quan do perdeu sua autoestima”. “A cruz santifica a satisfação do ego.”8 Perguntei ao Dr. Schuller como ele interpretaria a seguinte exortação de Paulo a Timóteo: Sabe, porém, isto: nos últimos dias, sobrevirão tempos difíceis, pois os homens serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, mais amigos dos prazeres que amigos de Deus, tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, 0 poder. Foge também destes (2Tm 3.1-5). Antes mesmo de eu terminar de articular minha pergunta, meu distinto convidado respondeu apressado a estas palavras apostólicas, dizendo: “Eu espero que você não pregue isso. Vai magoar um monte de gente bonita”. O desafio diante de nós como testemunhas cristãs é se vamos oferecer Jesus Cristo como a chave para 0 cumprimento de nossa preocupação nar cisista ou como o Redentor que nos liberta da culpa e do poder do pecado. Será que Cristo veio para impulsionar nosso ego ou para crucificá-lo e nos levantar como novas criaturas, com nossa identidade nele? De acordo com 0 apóstolo Paulo, há glória esperando por nós, com certeza, mas é a glória 8Schuller, Robert. Self-Esteem: The New Reformation. Waco: Word, 1982, págs. 12-15, 64,75. ’
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que vem a nós por força de nosso ser em Cristo: “Morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus. Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então, vós também sereis manifestados com ele, em glória” (Cl 3.3-4). Nossa justiça diante de um Deus santo não é inerente; é um dom para aqueles que são injustos em si mesmos. Falando nisso, não acho que isso signifique que podemos simplesmente anular o desejo de realização e felicidade. O evangelho não supre nossos objetivos narcisistas nem nega a verdade de que são uma perversão. As pes soas foram criadas para significado, propósito, alegria e satisfação. Como C. S. Lewis nos lembra, não é que nossos desejos sejam fortes demais, mas sim muito fracos.9 Enquanto Deus quer nos dar vida eterna, nós nos con tentamos com a satisfação trivial das necessidades superficiais, em grande medida criadas dentro de nós pela cultura de marketing. Somente quando a lei de Deus - sua santidade, majestade e vontade moral - cria em nós um sentimento da nossa ofensa moral a ele, 0 evange lho comunica respostas mais profundas daquilo que nossas necessidades sentidas e nossos desejos baratos apenas mascaram. Meus filhos ficariam encantados se eu lhes dissesse que, em vez das três refeições habituais, hoje nós lhes danamos um pacote grande de doces variados, e dificilmente eles seriam os únicos a reagir dessa forma. Quando minha esposa e eu deixa mos de satisfazer suas vontades, é porque sabemos que ficariam doentes se apenas seguissem seus desejos imediatos. Da mesma forma, Deus quer encher nossas vidas com alegria, mas, antes de permitir que ele nos conte a história, já decidimos, dentro dos estreitos limites de nossa experiência, o que nos dá alegria. Reagindo contra uma tendência legalista e hipócrita na sua infância, muitos americanos abandonaram completamente a igreja. Aqueles que vol tam quase sempre o fazem em seus próprios termos. A mensagem deve ser superficial e positiva, e a forma em que é apresentada deve ser divertida e inspiradora. Eles estão prontos para algo de utilidade e de ajuda, mas não para algo chocante e perturbador. Como David Brooks observou sobre a ge ração do pós-guerra em geral, os Boo mers10*são parte do Lea ve It to Beav er [Foi sem querer], moralistas burgueses com uma vaga sensação de valores e nostalgia pela comunidade e, em parte, revolucionários boêmios dos anos 60 e 70 do século 20, que resistem às tradições, aos compromissos, às con vicções e às estruturas que uma verdadeira comunidade exige.11 9Lewis, C. S., The Weight o f Glory. São Francisco: Harper Collins, 2001, pág. 26. 10*Vem da e xpressão Bab y Boom, que se refere à explosão demográfica nos Estados Unidos, no pós Segunda Guerra Mundial. São considerados Boo mers norte-americanos que nasce ram entre entre 1946 e 1965. Também são conhecidos como “bebês da guerra” [N. da R.]. " Brooks, David. Bobo s in Para dise: The New U pper Class and How They Got There. Nova York: Simon and Schuster, 2000.
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Neste contexto, conforme descreveu a revista News week, as igrejas “têm desenvolvido um sistema de cristianismo pegue e escolha, no qual os indi víduos levam o que querem (...) e largam 0 que não se ajusta a seus objeti vos espirituais. O que muitos deixaram para trás é uma visão generalizada do pecado” .12Uma década depois, a Newswee k acrescentou, em outra his tória de capa sobre a busca pelo sagrado, o seguinte: Disfarçada em linguagem secular de psicoterapia, a bus ca pelo sagrado virou bruscamente para o interior - uma busca privada. O objetivo, ao longo dos últimos 40 anos, tem sido descrito de forma variada como paz de espírito, consciência superior, transformação pessoal ou - em sua encarnação mais banal autoestima. (...) Nesse ambiente, muitos americanos saem pulando de uma tradição para ou tra, provando agora 0 néctar desta sabedoria tradicional, depois daquela. Mas, como borboletas, permanecem prin cipalmente suspensos no ar.13 Foi o psicólogo secular Karl Menninger quem denunciou (em um livro intitulado Whatever Became o f Sin?) que a supressão crescente da realidade da culpa nas igrejas estava, na verdade, contribuindo para as neuroses, em vez de evitá-las.14 Pouco tempo atrás, li um artigo no Wall Street Journal com um relato semelhante, cujo título era “To Hell with Sin: When ‘Being a Good Person’ Excuses Everything” [Pro inferno com o pecado: quando ‘ser uma boa pessoa’ desculpa tudo].15Não é um pouco estranho quando o mundo tem de se queixar de que as igrejas pararam de falar sobre pecado? Mais recentemente, Robert Jay Lifton, um pioneiro em neuropsicologia, argumentou que o ego de hoje está incansavelmente empenhado na reinvenção, especialmente a fim de se livrar de uma sensação persistente de culpa, que gera tremenda ansiedade apesar de sua origem desconhecida. A sugestão de seu trabalho é que, quando as pessoas sabem por que se sentem culpadas e são capazes de encontrar uma resposta para isso, se tomam mais estáveis em suas identidades.16Como C. FitzSimons Allison alegou, trocar as categorias bíblicas pecado e graça por tais categorias terapêuticas, como
12Wo odw ard , Kenneth. Newsweek, 26 de setembro, 1984. 13Wo odwa rd, Kenneth. Newsweek, 28 de novembro, 1994, pág. 62. 14Menninger, Karl. Whatever Became o f Sin? Nova York: Hawthorn Books, 1973. 15 Ke rste n, Katherine A. “To Hell with Sin: When ‘Being a Good Pers on’ Excuses Everything , Wall Street Jour nal , 17 de setembro de 1999. 16Lifto n, R obert Jay. “The Protean S elf ’, em And erson , Walter Truett (org.), The Truth about the Truth. Nova York: Putnam, 1995, págs. 130-135.
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disfunção e recuperação, representa “crueldade pastoral”.17Se nos sentimos culpados, talvez seja porque realmente somos culpados. Mudar de assunto ou minimizar a gravidade desta condição, na verdade, acaba por deixar as pessoas sem a boa-nova libertadora que 0 evangelho traz. Se nosso verda deiro problema são sentimentos ruins, então a solução é bons sentimentos. A cura só pode ser tão radical quanto a doença. Como qualquer droga recre ativa, 0 cristianismo light pode fazer as pessoas se sentirem melhores por um momento, mas não reconcilia os pecadores com Deus. Ironicamente, psicólogos seculares como Menninger estão escrevendo livros sobre o pecado, enquanto muitos líderes cristãos estão convertendo 0 pecado - uma condição da qual não podemos nos libertar - em disfunção, e a salvação em recuperação. Em seu best-seller The Triumph o f the Thera peu tic, Philip Rie ff descreve como a psicologia popular transformou nossa cosmovisão inteira, incluindo a religião. “O homem cristão nasceu para ser salvo”, escreveu ele. “ O homem psicológico nasceu para ser feliz.” 18 Neil McCormick, um colunista do jornal londrino Daily Telegraph, reconta as aulas de educação religiosa que ele e seu amigo de infância, Bono, do U2, receberam em uma escola não denominacional, mas principalmente protestante, em Dublin. As aulas eram “caracterizadas por um tipo de libe ralismo cristão confuso, ministradas por uma bem-intencionada, mas - no que me diz respeito - jovem professora chata e ineficaz chamada Sophie Shirley”. McCormick recorda: Havia leituras bíblicas e discussões de classe, nas quais Jesus assumia o caráter de um hippie beatífico, enquanto Deus parecia ser personificado como um tio velhote que só queria o melhor para sua extensa família - se as coisas fossem mesmo assim, eu me perguntava, por que eu ficava acordado à noite me perguntando se os tormentos do infer no me esperavam quando morresse? Eu metralhava esta e outras questões relacionadas à minha paciente professora, mas nunca recebia respostas satisfatórias, apenas chavões sobre Jesus me amar.19 Outro dia, vi uma cena de E.R. 20* na NBC que apoia fortemente a ex periência de McCormick. Deitado em sua cama de hospital, morrendo de 17Allison, C. FitzSimons. “Distractions”, Mo dem Refor matio n, setem bro-outubro de 2007. 18Rieff, Philip. The Triumph of the Therapeutic : Uses of Faith after Freud. Nova York: Har per & Row, 1966, págs. x-xii. 19McC orm ick, Neil. Killing Bono. Nova York: Simon & Schuster, 2004, pág. 12. 20‘ Seriado de televisão que era transmitido pela emissora Globo com o nome de Plantão Médico [N. da R.].
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câncer, um policial aposentado confessa a uma capelã sua culpa, oculta há muito tempo, por permitir que um homem inocente fosse incrimina do e executado. Ele pergunta: “Como posso ao menos ter esperança de perdão?”, e a capelã responde: “Às vezes, acho que é mais fácil se sentir culpado que perdoado”. “O que isso significa?” “Que talvez sua culpa pela morte dele tenha se tomado o motivo de sua vida. Talvez você precise de uma nova razão para seguir em fren te .” “Eu não quero seguir em fren te ”, diz o moribundo. “Você não vê que estou morrendo? A única coisa que está me segurando aqui é que estou com medo - estou com medo do que vem a seguir.” “O que você acha que é?”, pergunta a capelã delicadamente. Ficando mais impaciente, o homem responde: “Me diga você. Será que há expiação possível? O que Deus quer de mim?”. Depois que a capelã res ponde: “Acho que cabe a cada um de nós interpretarmos, por nós mesmos, o que Deus quer”, 0 homem olha para ela com grande perplexidade. “En tão, as pessoas podem fazer qualquer coisa? Elas podem estuprar, matar, roubar - tudo em nome de Deus e está tudo bem?” Cada vez mais intenso, o diálogo chega ao seu clímax. “Não, não é isso o que estou dizendo”, a capelã responde. “Então, o que você está dizendo? Porque tudo o que estou ouvindo é alguma coisa de Nova Era, Deus é amor, faça o que bem quiser!... Não, eu não tenho tempo para isso agora.” “Você não entende”, contesta a capelã. ‘'Não, você não entende!... Eu quero um capelão real, que acredite em um Deus real e em um inferno realV Não entendendo o conflito desse homem, a capelã se recompõe e diz, em tom de condescendência familiar disfarçado de compreensão: “Eu ouço você dizer que você está frustrado, mas você precisa perguntar a si mesmo...”. “Não”, 0 homem interrompe, “eu não.preciso me perguntar nada. Eu preciso de respostas, e todas as suas perguntas e todas as suas incertezas estão somente piorando as coisas”. Sem mais para avaliar do que o tom dele, ela o incentiva a ter calma. “ Eu sei que você está chateado”, começa e acaba por provocar sua explosão final de frustração: “Deus, eu preciso de alguém que me olhe nos olhos e me diga como encontrar perdão, porque meu tempo está no fim \”. Recentemente entrevistado para um artigo no USA Today para o fim de semana de Páscoa, fui questionado sobre como a ressurreição de Cristo ainda pode ter algum significado quando parece não responder ao tipo de problema que estamos habituados a pensar estar além de nós. A história pu blicada, com o título “Is Sin Dead?”, começou por relatar uma preocupação crescente: “Como podem os cristãos celebrar a expiação de Jesus por seus pecados e a prom essa de vida etem a em sua ressurreição se não se reconhe cem como pecadores?’’.21
21Gro ssm an, Cathy Lynn. “Is Sin Dead?”, USA Today, 19 de março de 2008.
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A autora cita vários pesquisadores sociais que concordam que pecado está sendo definido por nossos próprios padrões e metas, e não por qualquer medida objetiva em relação a Deus. Embora concordando que existe algo como o pecado, eles dizem que a maioria das pessoas o define ‘“de uma forma muito pessoal e autogratificante’ - eu tenho de fazer 0 que é melhor para mim; não sou tão pecador como a maioria” . Ironicam ente, enquanto Robert Schuller, ordenado na Igreja Reformada na América, incentiva as pessoas a trocarem as categorias de pecado e justificação pelas de vergonha e autoestima, este artigo cita a preocupação do papa Bento XVI de que o mundo hoje “está perdendo a noção de pecado”. O papa delibera: “As pe s soas que confiam em si mesmas e em seus próprios méritos estão, por assim dizer, cegas pelo seu próprio eu e seu coração está endurecidos pelo pecado. Em contrapartida, aqueles que se reconhecem como fracos e pecadores se entregam a Deus e dele obtêm graça e perdão”. É citado alguém que, apesar de ter sido criado na conservadora Igreja Luterana do Sínodo de Missouri, se descreve agora como um ateu. “Mas eu acho que a Bíblia tem um monte de boas histórias. E eu me ligo na história da Páscoa, da redenção e do renascimento. Ela me diz que você vai cometer erros e terá outra chance de fazer o bem no futuro” (algo próximo desta interpretação foi oferecido pelo líder evangélico Rick Warren, no último Natal, quando falou a uma audiência nacional de televisão que Cristo veio ao mundo para nos dar um do-over , *como no golfe). O artigo inclui uma citação de Barry Kosmin, professor de políticas pú blicas que estuda 0 secularismo. “As pessoas seculares ainda acreditam que há pecado, julgamento e punição”, diz ele, mas 0 secularismo desafia qual quer padrão universal estabelecido por Deus, principalmente culpa moral perante esse Deus. Naturalmente, as pessoas cometem erros e prejudicam os outros, “porém, se forem consideradas culpadas, a punição, é claro, tem de ser neste mundo, não no próximo. As pessoas seculares não queimam no inferno, e sim no tribunal da opinião pública”. Independente de ser expresso nos tons mais severos do fundamentalismo ou nos tons mais suaves do sentimentalismo, 0 tipo de religião que estes exemplos apresentam é o que Paulo chamou de “a justiça decorrente da lei” em oposição a “a justiça decorrente da fé” (Rm 10.5-6). “Dou testemunho de que eles têm zelo por Deus, porém não com entendimento. Porquanto, desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à que vem de Deus. Porque o fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê” (Rm 10.2-4).
*Quando um jogador de golfe dá uma tacada e fica insatisfeito com o resultado, ele pode optar por dar uma segunda tacada, que é chama de do-over [N. da R.].
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Eu me dou conta de que um grande número de pessoas que talvez gra vitem em tom o de uma abordagem mais terapêutica para a vida, incluindo a sua fé, no entanto empacariam na acusação de obras de justiç a. A chave para minha crítica, porém, é que, uma vez que você faz sua paz de espírito em vez de paz com Deus, que é o principal problema a ser resolvido, todo o evangelho é radicalmente redefinido. Mais do que isso, uma cosmovisão terapêutica distorce gravemente os termos do evangelho, ainda que as mesmas palavras continuem a ser empregadas. Sentir-se bem é mais importante que ser bom; na verdade, as sentenças normativas externas ao ego estão fora de lugar. A pessoa pode sentir-se culpada, mas ninguém realmente é culpado diante de Deus. Exatamente 0 que a lei de Deus veio fazer - a saber, despojar-nos de nossas pretensões de ter tudo sob controle - só pode ser considerada uma agressão violenta contra 0 valor funda mental da autoestima. “Como posso eu, um pecador, ser justo diante de um Deus santo?”, isso simplesmente está fora do campo de detecção em uma mentalidade terapêu tica. Uma vez que o ego seja entronizado como a fonte, o juiz e a meta de toda a vida, 0 evangelho não precisa ser negado, porque ele é irrelevante. Mas as pessoas precisam ver - para seu próprio bem - que a autorrealização, a autossatisfação e a autoajuda são todas distorções contemporâneas de uma heresia antiga, que Paulo identificou como obras de justiça. Diagnosticando a doença: deísmo moralista e terapêutico O povo americano sempre foi 0 povo do pod emo s fazer. Ao nos erguermos pelo esforço próprio, assumimos que somos pessoas de bem, que poderí amos fazer melhor se unicamente dispuséssemos de métodos e instruções corretos. Acrescente a isso 0 triunfo da cultura popular terapêutica e che gamos ao que o sociólogo Christian Smith chamou de “deísmo moralista e terapêutico”.23 Além dos psicólogos, os sociólogos também estão documentando o fato de que o cristianismo - incluindo 0 evangelicalismo - está menos interes sado na verdade que na terapia e mais focado nos consumidores que em fazer discípulos. James Davison Hunter, Robert Bellah, Wade Clark Roof e muitos outros têm feito estas colocações em seus exaustivos estudos da religião nos EUA. No entanto, existem dois sociólogos que têm contribuído significativamente para a condição espiritual que vou destacar neste capítu10: Christian Smith e Marsha Witten. Smith, Christian; Denton, Melinda Lundquist. Soul Searching : The Religious and Spiritu al Lives o f American Teenagers. Nova York: Oxford University Press, 2006, págs. 162-171, 258, 262.
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De 2001 a 2005, na Universidade de Carolina do Norte (agora Notre Dame) o sociólogo Christian Smith liderou uma equipe em um notável estudo da espiritualidade dos adolescentes de hoje. De suas exaustivas entrevistas, Smith concluiu que a forma dominante de religião ou de es piritualidade dos jovens americanos da atualidade é o “deísmo moralista terapêutico”. É difícil definir essa espiritualidade um tanto amorfa, especiai e ironicamente uma vez que “22% dos deistas adolescentes em nossa pesquisa relatou sentir-se muito ou extremamente perto de Deus (contudo o Deus em que acreditam não está envolvido no mundo de hoje)”.24Apa rentemente, 0 envolvimento de Deus é restrito à esfera interna do mundo privado de cada um. Smith observou que a maioria dos adolescentes - incluindo aqueles cria dos em igrejas evangélicas que dizem que sua fé é “muito importante” e que faz grande diferença em suas vidas - é “incrivelmente desarticulada” sobre o conteúdo concreto da fé.25 “Quem entrevista os adolescentes”, conta ele, “encontra pouca evidência de que os agentes de socialização religiosa nes te país” - os pais, os pastores e ao professores - “estão sendo altamente eficazes e bem-sucedidos com a maioria dos seus jovens”.26 Em contraste com as gerações anteriores, que pelo menos tinham algum conhecimento residual da Bíblia e os ensinamentos cristãos básicos, parece que há bem pouca capacidade para afirmar, refletir ou examinar suas próprias crenças, quanto mais para relacioná-las à vida diária. Muitos jovens parecem estar vivendo no clima artificial e no círculo familiar de amigos no grupo de jovens, ambos os quais eventualmente vão perder sua influência, especial mente na faculdade. Smith define deísmo moralista terapêutico como expressão deste tipo de teologia em ação: 1. Deus criou o mundo. 2. Deus quer que as pessoas sejam boas, educadas e justas umas para com as outras, como é ensinado na Bíblia e na maioria das religiões mundiais. 3. O objetivo central da vida é ser feliz e se sentir bem consigo mesmo. 4. Deus não precisa estar particularmente envolvido na vida de nin guém, exceto quando ele é necessário para resolver um problema. 5. Boas pessoas vão para o céu quando morrem.27 24 Ibid., pág. 42. 25Smith examinou suas descobertas conosco no programa de radio White Horse Inn, dispo nível no site www.whitehorseinn.org . Smith; Denton, Soul Searching, pág. 27. 27 Ibid., págs. 162-163. 21'
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A sensação que se tem ao ler 0 estudo de Smith é coerente com mi nha própria experiência anedótica da religião popular atual. Basicamente, a mensagem é que Deus é bom e nós somos bons, por isso devemos todos ser bons. Será que os jovens criados em lares e em igrejas evangélicas realmente acreditam nisso? De acordo com os relatórios de Bama, para não mencionar os estudos de sociólogos como Smith, James Hunter, Wade Clark Roof e outros, a resposta trágica é sim.2* Esta abordagem, diz Smith, reflete estu dos semelhantes da geração de seus pais. Smith mostra que, na teologia de trabalho daqueles que estudou, “ser religioso é ser bom e nada tem a ver com perdão. (...) E inacreditável a proporção de adolescentes protestantes conservadores que parecem não compreender os conceitos elementares do evangelho com relação à graça e à justificação. (...) Isso ocorre em todas as tradições”.29Mesmo as pessoas jovens luteranas que eram ativas na igreja não conseguiam definir graça ou jus tificação , diz ele, destacando a dispa ridade entre o que as igrejas dizem que acreditam e o que estão realmente comunicando semana após semana. Seja o que for que as igrejas digam que acreditam, as respostas in coerentes oferecidas por aqueles que são entregues aos cuidados de seu ministério fundamentam meu argumento de que uma religião moralista de autossalvação é nossa configuração padrão como criaturas caídas. Se não formos ensinados, de forma explícita e regular, o contrário, vamos sempre tomar a mensagem de operação de resgate de Deus em uma mensagem de autoajuda. Recentemente, me deparei com um artigo no jornal sobre o notável su cesso de um website chamado dailyconfession.com. “Salas de bate-papo e sites confessionais estão explodindo em popularidade - o dailyconfession. com recebe diariamente até 1.3 milhões de acessos —os jovens se sentem à vontade, compartilhando segredos íntimos e buscando aconselhamento on line". Um usuário do site de 19 anos de idade relatou: “A ideia de confessar não é necessariamente sobre 0 certo e 0 errado. É sobre descarregar um fardo. É quase catártico” .30 Reconhecemos, aqui, a confluência de espiritualidade gnóstica (individu alista, desencarnada, privada) e o deísmo moralista terapêutico. De acordo com uma cosmovisão bíblica, a confissão do pecado é sobre certo e errado. Pecados reais são realmente perdoados por um Deus que está intimamente 28Veja especialmente H un ter, James D. Evang elical ism : The Coming Generation. Chicago: University o f Chicago Press, 1987, capítulo 2. 29Entrevista com Cro m art ie, Michael. “What American Teenagers Believe: A Conversation with Christian Smith”, em Books & Culture, janeiro -fever eiro de 2005, pág. 10. 30Briggs, David. “More Sinners Are Lining Up at the Virtual Confessional”, Religion News Service, San Diego Union-Tribune, domingo, 14 de abril de 2007, seção Religion and Ethics.
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envolvido em nossa vida cotidiana. Em uma cosmovisão terapêutica, não há pecado nem culpa a ser perdoados por Deus, mas apenas os pesos e os sentimentos de culpa por não corresponder às expectativas de si mesmo ou de outros seres humanos. Em outras palavras, para o cristianismo, existe culpa objetiva e justificativa; na terapia moralista, só existe culpa subjetiva e uma libertação catártica simplesmente contando alguém sobre isso. “Kate, uma moça de 23 anos de idade, do Texas, que se descreve como espiritual, mas não religiosa, tem visitado dailyconfession.com quase todos os dias, por cinco anos. ‘Eu gosto de ler as confissões de pessoas porque é bom saber que não sou mais egoísta, mesquinha, vaidosa, estranha ou ma cabra do que qualquer outra pessoa nos EUA’, ela escreveu em um e-mail a um repórter.”31 Mas isso significa que confissão não é uma questão de coração quebrantado por ofensas a Deus e de recebimento de seu perdão; pelo contrário, é uma questão de justificar-se como não sendo pior do que a média. Por mais que falemos de um relacionamento p esso al com Deus por meio de Jesus Cristo, não parece haver relacionamento algum, exceto com o ego. A confissão é boa para a alma - ou seja, uma forma de terapia. Talvez o resultado de toda essa ênfase sobre meu relacionamento pess oal com Jesu s signifique, afinal, que Jesus realmente se toma meu alter ego. Muito diferente é a confissão de Davi no salmo 51: “Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mau perante os teus olhos, de maneira que serás tido por justo no teu falar e puro no teu julgar. Eu nasci na iniqüidade, e em pecado me concebeu minha mãe. (...) Não me repulses da tua presença (vs. 4-5, 11a). Embora a confissão tenha sido feita após seu adultério com Bate-Seba e o assassinato do marido dela, Urias, o fato que toma 0 pecado tão completamente pecaminoso é que, em última análise, é cometido contra Deus. Essa relação vertical com Deus (lei e evangelho) não nos permite reduzir a confissão ao plano horizontal de nossos vizinhos (moralismo) ou de nosso eu interior (terapia). Um diagnóstico teológico O termo teológico para esta moléstia é pelag ianis mo. Um monge britânico do século 4 d.C., chamado Pelágio, ficou horrorizado com a imoralidade que viu quando chegou a Roma, 0 centro da cristandade. Assumindo que a ênfase do bispo africano Agostinho sobre o desamparo humano e a graça divina estava na raiz, Pelágio e seus seguidores negaram o pecado original. O pecado não é uma condição humana universal, mas simplesmente uma escolha que cada um de nós faz. Com nosso livre-arbítrio, podemos optar 31Ibid.
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por seguir o mau exemplo de Adão ou 0 bom exemplo de Jesus. Apesar de ter sido oficialmente condenado pela igreja (até mesmo na sua forma mais suave “semipelagiana”), o pelagianismo sempre foi uma ameaça constante. Afinal de contas, é nossa teologia mais natural. Conquanto afirmando que está em nosso próprio poder ser bom ou ruim - e, assim, merecer a vida eterna ou morte eterna - o semipelagianismo, no entanto, acreditava que algum auxílio da graça divina era necessário. O arminianismo, assim chamado em homenagem ao teólogo holandês do final do século 16 que rejeitou o calvinismo, entretanto, deu mais um pa sso para longe das convicções pelagianas, afirmando a necessidade da graça. Mas 0 arminianismo ainda afirma que a salvação é um esforço de cooperação entre Deus e os seres humanos. Como vou deixar mais claro em vários pontos ao longo deste livro, des de o Segundo Grande Avivamento, especialmente evidente na mensagem e nos métodos do evangelista Charles G. Finney, o protestantismo americano tem sido mais pelagiano que arminiano. Na verdade, o teólogo arminiano Roger Olson recentemente fez uma observação semelhante.32 Negando o pecado original, Finney afirma que só somos culpados e cor ruptos quando escolhemos pecar.33A obra de Cristo na cruz não poderia ter pagado nossa dívida, ela só ppderia servir como um exemplo e uma influên cia moral para nos convencer a arrepender-nos. “Se ele tivesse obedecido à lei como nosso substituto, então por que nosso retomo à obediência pessoal é insistido como uma sine qua non de nossa salvação?” A expiação é sim plesmente “um incentivo à virtude”. Rejeitando a ideia de que “a expiação foi literalmente o pagamento de uma dívida”, Finney só pode admitir: “É verdade que a expiação, por si só, não assegura a salvação de ninguém” .34 A justificação pela imputação da justiça de Cristo não é apenas “um absurdo”, diz Finney, mas prejudica toda a motivação para a santidade pessoai. O novo nascimento não é um dom divino, e sim o resultado de uma escolha racional para deixar 0 pecado pela obediência. Os cristãos podem perfeitamente obedecer a Deus nesta vida se escolherem, e só desta maneira são justificados. Na verdade, ele diz que “a total presente obediência é uma condição de justificação”. Ninguém pode ser justificado “enquanto o pecado, 12Olson, Roger. Armin ian Theology. Downers Grove, IL: Inter Varsity, 2005, pág. 28 (in cluindo nota de rodapé 20). Além disso, fiquei impressionado com o fato de que amigos arminianos, como o teólogo m etodista Thomas Oden, defenderam o núcleo evangélico (isto é, a Reforma), ensinamentos como justificação, mesmo quando alguns protestantes conser vadores pareciam desinteressados na doutrina. Claramente, a divisão teológica de nossos dias é menos denom inacional que teológica. 3 Finney, Charles G. Finney's Systematic Theology>Minneapolis: Bethany, 1994 (repr.) págs. 31, 179, 180,2 36. ’ }*Ibid., págs. 206, 209.
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qualquer grau de pecado, permanece nele”. Finney declara com relação à fórmula da Reforma, “simultaneamente justificado e pecador”: “Este erro matou mais almas, eu temo, que todo 0 universalismo que sempre amaldi çoou o mundo”, pois “sempre que um cristão peca, fica sob condenação e deve arrepender-se e fazer suas primeiras obras, ou ficar perdido” .35 Como já foi dito, não pode haver nenhuma justificação no sentido forense ou judicial, mas em razão da obediência universal, perfeita e ininterrupta a lei. (...) A doutrina de uma justiça imputada ou de que a obediência de Cristo à lei foi reputada como nossa obediência é fundada em uma premissa altamente falsa e absurda, pois a justiça de Cristo não podia fazer mais que justificá-lo. Ela nunca pode ser imputada a nós. (...) Era naturalmente impossível, então, para ele, obedecer em nosso favor. Representar a expiação como base da justificação do pecador tem sido uma triste ocasião de tropeço para muitos.36 Referindo-se “aos autores da Confissão de Fé de Westminster ” e à sua visão de uma justiça imputada, Finney pondera: “Se isto não é antinomianismo, eu não sei o que é” .37 Deve-se observar que estas posições são muito mais radicalmente antitéticas à teologia da Reforma (com a qual os evangélicos supostamente se identificam) do que as condenações dos pontos de vista dos reformadores por Roma, no Concilio de Trento. A mensagem de Finney foi, certamente, moralista. Por vários métodos, o evangelista poderia induzir ao arrependi mento, por meio de experiências de crises constantes que geram autotransformação. Foi realmente uma orientação terapêutica. E, como seus críticos observaram, era um sistema de religião que nem sequer parecia precisar de Deus. Salvação e aperfeiçoamento moral estavam inteiramente nas mãos do evangelista e do convertido. As implicações deístas são, também, eviden tes. Mesmo que o evangelho seja formalmente confessado, ele se toma uma ferramenta para a engenharia pessoal e para a vida pública (salvação pelas obras) em vez de um anúncio de que a justa ira de Deus para conosco foi satisfeita e seu favor imerecido foi livremente concedido em Jesus Cristo. A intervenção direta de Deus, pessoal e milagrosa para nossa salvação, parece desnecessária, tal como sugerido no título de um dos sermões mais famosos
i5Ibid., págs. 46, 57. 36Ibid., págs. 320-322. ” Ibid.
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de Finney, “Sinners Bound to Change Their Own Hearts” [Pecadores com pelidos a mudarem seu próprio coração]. Esta preocupação que expressei não é limitada a alguns calvinistas e luteranos mal-humorados. “A autossalvaçâo é o objetivo de grande parte de nossa pregação”, segundo o bispo da Igreja Metodista Unida, William Willimon.38 Ele percebeu que grande parte da pregação contemporânea, independente de ser tradicional ou evangélica, assume que a conversão é algo que nós geramos por meio de nossas próprias palavras e sacramentos. “A este respeito, somos herdeiros de Charles G. Finney”, que pensava que a conversão não era um milagre, mas um “resultado puramente filosófico [isto é, científico] do uso correto de meios da natureza”. Esquecemos que já houve uma época em que os evange listas eram forçados a defender suas “novas medidas” para avivamentos, que já houve uma época em que os prega dores tinham de defender sua preocupação com a resposta do ouvinte para seus detratores calvinistas, que achavam que o evangelho era mais importante que seus ouvintes. Eu estou aqui argumentando que avivamentos são milagrosos, que o evangelho é tão singular, tão contra a natureza de nossas inclinações naturais e as paixões de nossa cultu ra que nada menos que um milagre é necessário para que haja audiência verdadeira. Minha posição é, portanto, mais próxima à do calvinista Jonathan Edwards que da posição de Finney.39 Não obstante, “o futuro hom ilético, infelizmente, está com Finney, não com Edwards”, levando ao tipo de marketing pragmático expresso por George Bama: Jesus Cristo era um especialista em comunicações. Ele co municava sua mensagem de maneiras diversas e com resul tados que seriam um crédito para a publicidade moderna e para as agências de marketing. (...) Promovia seu produto da forma mais eficiente possível: pela comunicação com as “perspectivas quentes”. (...) Entendia seu produto comple tamente, desenvolveu um sistema de distribuição sem pa ralelo, promoveu um avançado método de promoção que 38Willimon, William. The Intrusive Word: Preaching to the Unbaptized. Grand Rapids: Eerdmans, 1994, pág. 53. 39Ibid., pág. 20.
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penetrou em todos os continentes e ofereceu seu produto a um preço que está ao alcance de todo consumidor (sem fazer o produto tão acessível que perdesse seu valor).40 A pergunta que certamente surge em face de tais observações é saber se é possível dizer que Jesus fez alguma coisa nova. “Infelizmente”, acrescenta Willimon, “a maior parte da pregação evangelistica que conheço tem a ver com um esforço para arrastar as pessoas ainda mais para 0 fundo em suas subjetividades, e não com a tentativa de resgatá-las delas”. Nossa real necessidade, independente de a sentirmos ou não, é distorcer e ignorar a verdade sistematicamente. Por isso, precisamos de “uma palavra externa. (...) Então, em certo sentido, não descobrimos o evangelho, ele nos descobre. ‘Não fostes vós que me escolhestes a mim; pelo contrário, eu vos escolhi a vós outros’ (Jo 15.16)”. Willimon conclui: “A história é euangelion, boas-novas , pois se trata de graça. Contudo, tam bém novidade, porque não é conhecimento comum, não o que nove em cada dez americanos, em média, já sabem. O evangelho não chega natura l mente. Ele vem como Jesus” .41 Não estou apontando 0 dedo para nenhuma tradição. Esta tendência gene ralizada ao pelagianismo no cristianismo atual é evidente, mesmo nas igre jas que traçam sua história diretamente à Reforma. Sociólogos da religião, como Christian Smith e James D. Hunter, lembram que leigos luteranos e reformados de hoje compartilham de muitos desses mesmos pressupostos. Vale a pena observar que Norman Vincent Peale foi ordenado na Igreja Reformada na América, como também Robert Schuller. Além disso, tenho ouvido sermões em igrejas presbiterianas e reformadas mais conservadoras que poderiam se encaixar facilmente no perfil do deísmo moralista terapêu tico de Smith. Brian Gerrish, um teólogo tradicional da Universidade de Chicago, declara a crise: “O testemunho reformado da graça pode ser ainda mais necessário hoje que era no século 16, já que, agora, o pelagianismo parece confortavelmente à vontade nas igrejas reformadas .42 Como a pregação revela esta tendência secularizante A tendência pelagiana do cristianismo popular de nossos dias - que Smith chamou de “deísmo moralista terapêutico” - pode ser confirmada pelo estudo ·0 Ibid., pág. 21, citando Barn a, Mark eting the Church: W hat They Nev er Taught You about Church Growth. Colorado Springs: NavPress, 1988, pág. 50. 41 Ibid., págs. 38,43 , 52. 42Gerrish, B. A. “Sovereign Grace: Is Reformed Theology Obsolete?”, Inter preta tion 57, n°.l (janeiro, 2003), pág. 45.
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da socióloga Marsha Witten. Em All Is Forgiven: The Se cula r Message in America n Pr otestantism [Tudo é perdoado: a mensagem secular do protes tantismo americano], Witten revela seus resultados dos estudos de textos de 47 sermões sobre a parábola do filho pródigo (Lc 15.11-32), pregados entre 1986-1988 por vários pastores em duas denominações: a Igreja Presbite riana (EUA) e a Convenção Batista do Sul. Ela começa 0 livro contando sobre uma tarde de Sexta-Feira Santa de 1990. Enquanto estava ouvindo A Paixão Segundo São Mateus , de Bach, “com 0 coral antifonal chamando tristemente a Jesus do seu túmulo”, o correio diário chegou e Witten abriu 0 primeiro envelope mais grosso. Era um material promocional para o lan çamento de uma nova igreja batista em seu bairro: Oi Vizinho! Finalmente! Uma nova igreja para aqueles que desisti ram de ir à igreja! Sejamos francos. Muitas pessoas não são ativas na igreja nestes dias. POR QUÊ? Muitas vezes, - Os sermões são chatos e não têm nada a ver com a vida do dia a dia. - Várias igrejas parecem mais interessadas em sua carteira que em você. - Os membros não são gentis para com os visitantes. - Você tem dúvida sobre o tipo de cuidados do berçá rio para seus pequenos. Você acha que ir à igreja deveria ser agradável? BEM, NÓS TEM OS BOAS-NOVAS PARA VOCÊ! A Valley Church é uma nova igreja, projetada para aten der às suas necessidades na década de 90 [século 20]. Na Valley Church, você vai: - Fazer novos amigos e conhecer seus vizinhos. - Apreciar música emocionante com um sabor con temporâneo. - Ouvir mensagens positivas e práticas que vão elevá-lo a cada semana. • Como se sentir bem consigo mesmo. • Como superar a depressão.
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• Como ter uma vida plena e bem-sucedida. • Como lidar com seu dinheiro, sem que ele manipu le você. • Os segredos da vida bem-sucedida em família. • Como superar o estresse. - Confie seus filhos aos cuidados do berçário realiza do por trabalhadores dedicados. POR QUE NÃO SE ANIMAR EM VEZ DE TER UMA DECE PÇÃO NESTE D OM INGO?43 Witten, que se descreve como uma não cristã, usa esta ilustração - A Paixão Segundo São Mateus contrastando com os materiais promocionais da nova igreja - para enquadrar as conclusões a que ela chega após exten sos estudos. Enquanto a primeira é alimentada por um rico sentimento da majestade, da santidade e da misericórdia de Deus, bem como pelo esforço genuíno da fé, a última é “otimista, despreocupada e puramente mundana”, como um anúncio de um produto qualquer. O cristianismo americano, hoje, vive a contradição entre “o espiritual e o psicológico, o transcendente e o pragmático” .44 De acordo com a conhecida “teoria da secularização” de Max Weber, a religião —nas condições da modernidade —passa por várias fases. Primeiro, a religião é privatizada, seu domínio foi encolhido para a ilha da subjeti vidade privada. Afirmações como “Jesus está vivo” e “Jesus é o Senhor não são mais consideradas como alegações objetivas, públicas e baseadas em eventos históricos, mas se tomam referências a uma experiência pesso al de alguém. Quanto à afirmação “Jesus está vivo”, nas palavras de uma famosa canção gospel: “Você me pergunta como eu sei que ele vive. Ele mora dentro do meu coração”. E, tipicamente, “Jesus é o Senhor” refere-se à minha decisão pessoal para tomar Jesus meu Senhor e Salvador. Enquan to os apóstolos testemunharam acontecimentos históricos dos quais foram testemunhas oculares, “dar seu testemunho”, no cristianismo evangélico de hoje, significa falar sobre a experiência interior de transformação moral de alguém. Uma vez privatizada, a religião toma-se relativizada. Não há mais a verdade, e sim sua verdade. Visto que crenças religiosas não são mais
43Witten, Marsha. All Is Forgiven: The Secular Message in America n Protestantism. Prince* ton: Princeton University Press, 1993, págs. 3-4. 44 I b i d pág. 4.
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reivindicações sobre os eventos públicos, elas só podem ser justificadas em termos do que cada indivíduo acha significativo, útil e transformador.45 A fé objetiva, histórica e baseada no credo do cristianismo tradicional não pode ser traduzida em termos puramente subjetivos. No entanto, pre cisamente porque a religião atual tem “alimentado” muito sua oposição às formas mais tradicionais de cristianismo em favor da experiência soberana interior do indivíduo, ela não apenas sobrevive , mas prospera na atmosfera deste processo de secularização. Um tipo de religião que a maioria dos cristãos pré-modemos teria considerado quase herético pode tornar-se, na experiência contemporânea, o epitome da ortodoxia. Então, esses mesmos processos de secularização moderna que levaram à rejeição, por parte dos cristãos tradicionais, da fé e da prática na Europa tornam-se o motor do renascimento religioso perpétuo nos Estados Unidos. Como resultado, o discurso religioso se toma semelhante à raciona lidade pragmática das regras, das etapas, das técnicas e dos programas para a transformação pessoal e bem-estar. Como o filósofo William James tomou explícito, 0 teste da verdade é “seu dinheiro-valor em termos expe rimentais .46No entanto, muito antes de James, a história do avivamento já estava assimilando reivindicações cristãs para a eficiência pragmática, mensuráveis não só em números de convertidos, mas em dólares. “O que recebo pelo meu trabalho é apenas cerca de U$ 2 por alma”, 0 evangelista Billy Sunday calculou, “e recebo menos proporcionalmente pelo número que eu converter que qualquer outro evangelista vivo”.47 Em seu Prêmio Pulitzer, ganhando o Anti-lntellectualism in Am eric an Life , Richard Hofstadter contrastou a cultura altamente letrada dos puritanos da Nova In glaterra e a cultura de depois do reavivamento. “Tudo o que seriamente diminuiu o papel da racionalidade e da aprendizagem na religião ameri cana inicial viria mais tarde diminuir seu papel na cultura secular”, ele observa. “O sentimento de que as ideias devem, acima de tudo, ser feitas para funcionar; o desprezo pela doutrina e pelos refinamentos das ideias; a subordinação dos homens de ideias aos homens de poder emocional ou
45Sobre o argumento de Weber, veja seu trabalho “Science as a Vocation”, em From Max Weber. Essays in Sociology, H. Gerth e C. W. Mills (org.). Nova York: Oxford University Press, 1946, págs. 129-60. A literatura sobre esta questão é vasta, mas dois livros são espe cialmente críticos para se obter uma visão sobre interpretações sociológicas contemporâneas da teoria de Weber: Berger, Peter. The Sacred Canopy. Garden City, NY: Doubleday, 1967; Luckm ann, Thomas. The Invisible Religion. Londres: Collier-Macmillan, 1967. 46James, William. Pragmatism. Nova York: Meridian, 1955 (reimpressão), págs. 192-195. Citado em Hofstadter, Richard. Anti-ln tellec tualism in Ame rican Life. Nova York: Vin tage, 1963, pág. 115.
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de habilidades manipulativas dificilmente são inovações do séc ulo 20: são heranças do protestantismo americano.”48 Se 0 cristianismo for sobre verdade pública entregue por meio de uma Palavra externa, então o ministério e o evangelismo exigem líderes instruidos que possam expor e aplicar essa verdade em benefício daqueles que estão sob seus cuidados. Em contrapartida, se o cristianismo for reduzido à experiência pessoal, então sua liderança consistirá dos empresários mais bem-sucedidos e dos gestores de eventos extraordinários. Em seu recente livro Head and Heart, o historiador católico Garry Wills observa: A reunião do acampamento estabeleceu o padrão para credenciamento de ministros evangélicos. Eles foram va lidados pela resposta da multidão. Credenciamento orga nizacional, pureza de doutrina e educação pessoal eram inúteis aqui - na verdade, alguns ministros instruídos ti veram de fazer uma simulação de ignorância. O ministro foi ordenado por baixo, pelo convertido que ele fez. (...) A religião faça-você-mesmo pedia por um ministério fa brique-você-mesmo.49 Wills repete a conclusão de Hofstadter de que “o sistema de estrelas não nasceu em Hollywood, mas na trilha de serragem dos rea vivalistas”.50 Onde 0 Transcendentalismo Americano e o Romantismo (o equivalente do século 19 ao movimento da Nova Era) atraíram intelectuais de Boston, Charles Finney e seu legado reavivalista representam “um romantismo alternativo”, uma versão popular da autossuficiência e da experiência in terior, “retomando de onde 0 Transcendentalismo parou”. Emerson es creveu: “O auge, a divindade do homem é para ser autossustentada, não precisa de dom, de nenhuma força estranha” - de nenhum Deus externo, com uma Palavra externa e com sacram entos ou ministério fo rmal.51 E o reavivamento, de sua própria maneira, estava popularizando esta religião distintamente americana na fronteira. William James estava proclamando 0 valor soberano da utilidade pragmática em Harvard, enquanto Finney e seus herdeiros já estavam convertendo protestantes americanos, pela razão, ao pragmatismo. A eficiência era a regra para o sucesso na religião como no negócio; desde então, os novos movimentos são julgados pelos 48Hofs tadter, Anti -Inte llectu alism in Americ an L ife , pág. 55. 49Wills, Garry. H ea d e Heart·. American Christianities. Nova York: Penguin, 2007, pág. 294. 50Ibid ., pág. 302. 51Em erso n, Ralph Waldo, citado em ibid., pág. 273.
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evangélicos em termos de se “funcionam” ou não em relação à experiên cia subjetiva e à transformação moral. O estudo de Witten apoia essa interpretação.52 Primeiro, o Deus trans cendente de majestade e santidade sucumbiu a uma familiaridade casual. Apesar de apenas um em cada dez americanos dizer que alguma vez duvi dou da existência de Deus, a maioria diz que vê Deus exclusivamente como um amigo e não como um Rei, e “apenas uma pequena minoria” relata já ter experimentado medo de Deus. Em segundo lugar, como a religião é pri vatizada se tornando uma espécie de utilidade terapêutica, 0 pecado e a re denção são traduzidos em categorias subjetivas em vez de objetivas. Cristo, então, é uma resposta para sentimentos ruins, não para algum estado real de inimizade ou culpa diante de Deus. Tudo o que costumava ser considerada uma obra soberana de Deus, por meio de seus meios nomeados de pregação e do sacramento, é, agora, atribuído ao ego (ou ao evangelista) trabalhan do com etapas mais eficientes e técnicas. Reconhecemos essa orientação pragmática na literatura como-fazer, que enche as prateleiras das livrarias cristãs e estudos de pastores. Até Billy Graham escreveu um best-seller intitulado How to Be Born Again. Witten assinala que “os livros de autoajuda cristãos (...) surgiram nas décadas de 40 e 50 do século 20, com a publicação de Norman Vincent Peale, The Power o f Positive Thinking [O poder do pensamento positivo] e Peace o f Mind [Paz de espírito], de Joshua Loth Liebman”. A revolução te rapêutica que estava varrendo os corredores das escolas de teologia liberal foi associada ao pragmatismo de revivamento. O foco nos estados interiores também encoraja 0 discurso orientado, sobretudo, para o presente - para a “vida” na tural, a vida na Terra. A preocupação com o negócio prag mático da vida tem o papel de diminuir a atenção para as suntos do “além”. Juntamente com as forças culturais que tiraram a ênfase das noções de castigo divino pelo erro, a orientação do “agora” reduz a força de falar sobre o peca do e suas conseqüências. (...) Uma formulação extrema é o caso do “sheilaísmo”, uma religião privada, inventada por uma das pessoas citadas na entrevista Habits o f the Heart : os dogmas de fé de Sheila consistem de mensagens de “sua própria pequena voz”.
52Citações neste e nos cinco parágrafos seguintes (exceto as referências da Escritura) são de Witten, Al l Is Forgiv en, págs. 5, 6, 15, 20-23, 131.
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Não mais mártires - isto é, testemunhas - para a singular intervenção de Deus na História - na encarnação, na vida, na morte e na ressurreição de Cristo - nós nos tomamos clientes satisfeitos que oferecem testemunhos de quanto um relacionamento pessoal com Jesus tem melhorado nossa vida. Neste contexto pragmático e terapêutico, faz pouco sentido falar de Jesus como “o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14.6), fora do qual não há salva ção. Preferimos louvar a Cristo como alguém que achamos pessoalmente útil e significativo quando nos deparamos com os desafios da vida. Igrejas em crescimento e em presas em crescimento seguem os mesmos procedimentos padrão de eficiência pragmática. Não só o evangelismo, mas a vida cristã também pode ser acomodada à secularização e à rotina moder na. Existem procedimentos padrões que funcionam tanto na produção de conversões e aperfeiçoamento moral como na produção do maior número de coisinhas pela menor despesa. Ninguém tem de negar explicitamente qualquer artigo do credo cristão a fim de mudar o foco do conteúdo da verdade pública do cristianismo para o assunto pragmático e para as cate gorias terapêuticas da religião como-fazer. Cristo ainda pode ser chamado de Salvador , mas realmente salvamos a nós mesmos pelo conhecimento, seguindo os passos do novo nascimento e da “vida vitoriosa”. Witten evidencia estas observações, acrescentando: “Levada ao extre mo, esta conversa constitui um guia de faça-você -mesm o para satisfação pessoal, com algumas poucas menções a Deus, à fé e à oração jogadas den tro para se marcar como religioso ”. Como resultado desses processos, diz Witten, “os ensinamentos de uma religião já não dão sentido à vida de seus adeptos no mundo; a vida deles no mundo determina tanto os significados como a pertinência de seu credo”.53 Como podemos ver então, o processo de secularização é muito mais penetrante que as diferenças teológicas entre conservadores e liberais. Não somos humanistas seculares, mas nós mesmos estamos secularizando a fé pela transformação de sua mensagem singular em algo menos impressio nante para a psique americana. Isso pode significar, porém, que precisamen te as versões numericamente mais bem-sucedidas da religião serão menos amarradas ao drama bíblico do resgate centralizado em Cristo. Os estudos de Witten revelam que houve bem pouca diferença entre os sermões da Igreja Presbiteriana Tradicional e da Igreja Batista do Sul, as quais ela tomou como amostra. “As raízes calvinistas da prática religiosa nos EUA Colonial”, ela escreve, foram gradualmente desgastadas por “ideo logias populares de voluntarismo, democratismo e pragmatismo”, fazendo 53Citações neste e nos 20 parágrafos seguintes (exceto as referências da Escritura) são d e ibid., págs. 24, 30, 33-35, 40, 41, 44-47, 50, 53, 63, 76, 80, 81, 84, 85, 92, 95, 101, 104-7, 109-115, 117, 119, 120, 125, 127.
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que a visão de que os seres humanos não podem “contribuir para a própria salvação parecesse menos plausível”. Enquanto os pastores e os teólogos confessionais reformados e pres biterianos, em meados de 1800, desafiaram a ênfase no ego em vez de em Deus, bem como a vontade humana sobre a iniciativa graciosa de Deus, o reavivalismo finalmente ganhou campo. Como resultado, “as princi pais categorias de discurso evangélico sobre Deus tendem a enfatizar a experiência pessoal de alguém de uma divindade imanente”. Witten acrescenta: “Quando Deus é visto em termos transcendentes em tudo, suas qualidades temíveis são minimizadas ou banidas do discurso e subs tituídas pela figura de um superadministrador de um pensamento claro e bem organizado, cuja função principal é planejar, de forma eficiente, os assuntos do universo”. Este pensamento, sem dúvida, contribui para o fenômeno que Smith caracterizou como deísmo moralista terapêutico. Deus é basicamente o ideal Secretário de Segurança Interna - Intern a significando minha pró pria felicidade pessoal, ou o bem-estar nacional, independente de ser defi nida pela política de esquerda ou de direita. Claro que, quando os assuntos do universo são centrados em mim e na minha felicidade, este deísmo genérico toma-se terapêutico, com especial foco em “Deus como papa i e De us como s ofredor ”. Em um paradigma terapêutico, não só 0 membro da igreja, mas 0 pró prio Deus é colocado no sofá enquanto nós interpretamos, com empatia, os sentimentos dele. Deus nunca está com raiva ou é crítico em relação às pessoas; na verdade, ele é mais angustiado que nós, visto que sabe o quanto nossas ações podem nos prejudicar. Ele está simplesmente esperando que nós alcancemos nosso bom-senso, como o pai da parábola do filho pródigo. Podemos até nos sentir inclinados a sentir pena desta divindade. Estas amostras de sermões tratam Deus exclusivamente como o amante extravagante . Na verdade, 0 amor supera a lei; Deus põe de lado qualquer questão de mérito, dever ou realização, e simplesmente abraça o filho pró digo. Deus nunca nos surpreende realmente, porque seu comportamento é sempre previsível: nunca faria nada para nos ofender. Por conseguinte, não há nenhuma sugestão de que precisamos de um mediador de algum modo, de acordo com esses sermões. O amor de Deus não precisa ser correlacio nado com a sua santidade, retidão e justiça. Está tudo bem —sem qualquer menção ao autossacriflcio de Cristo como o único caminho da reconcilia ção. Uma vez que, em geral, o amor de Deus, aparentemente, supera sua justiça e santidade, as “boas-novas” oferecidas aqui eliminam qualquer ne cessidade da história real registrada nos Evangelhos. Se o amor de Deus tão facilmente ignora sua justiça, santidade e retidão, então a morte de Cristo na cruz parece um desperdício cruel.
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Witten escreve: “A noção relativamente fraca das capacidades de um Deus temível com respeito ao julgamento é reforçada por uma quase total ausência de construção discursiva de ansiedade em tomo de um estado futuro”. São “sentimentos negativos”, não um perigo objetivamente ne gativo, que esses sermões enfatizam como resolvidos pelo evangelho. “O transcendente, majestoso e impressionante Deus de Lutero e Calvino cuja imagem instruiu as primeiras visões protestantes do relacionamento entre 0 ser humano e o divino - passou por um abrandamento de compor tamento em toda a experiência americana do protestantismo, com apenas pequenas interrupções.” Quando adotamos uma abordagem centrada no humano que assimila Deus para nossa própria experiência e felicidade, 0 mundo não é mais cria ção de Deus; também ele, como Deus, existe para nosso próprio bem-estar pessoal. Tudo o que existe está lá para nosso consumo, para nossa felic id a de. Assim, por exemplo, drogas e promiscuidade sexual não estão erradas porque ofendem a Deus, de acordo com a maioria desses sermões, mas porque não se podem comparar com a alegria e a felicidade de viver do jeito de Deus. Elas não são erradas e insatisfatórias; elas acabam. Toda a ênfase está na fe st a e na felicida de , como na afirmação de um sermão: “E bom ser um cristão” . Quando você está tentando vender um produto como transformação terapêutica, não pode haver nenhuma ambigüidade, nenhum sentimento de ansiedade, tensão ou luta. Nesses sermões, outra ênfase recorrente é que os seres humanos são vítimas e estar perdido já não mais significa maldição, mas carência de orientação na vida. Nos sermões da Igreja Batista do Sul, o mundo é o chi queiro onde o filho pródigo desperdiçou sua herança, com muitos sermões entrando em grandes detalhes de Jesus em “coquetéis, observando a vileza de Sodoma em suas salas de estar, enquanto seus habitantes tentam fugir da realidade com cocaína”. Enquanto isso, a igreja é a família. Os sermões da Igreja Batista do Sul focaram muito mais os pecados do filho pródigo, centrando em sua rebeldia contra o lar e em seus valores, muitas vezes entrando em grandes detalhes, a fim de tomar o filho desobe diente tão relevante para os adolescentes contemporâneos quanto possível. O resumo mais comum de sua culpa, nesses sermões, foi o de que ele rejei tou sua própria dignidade e autorrespeito. “Para os pregadores presbiteria nos, em contrapartida, o irmão mais velho, o responsável, o religiosamente obediente, contudo sem alegria, é aquele mais provável de servir como o emblema do pecado.” Quando os pastores fornecem exemplos nestes sermões que falam sobre o pecado, diz Witten, eles os despersonalizam, generalizam e, normalmen te, os desviam para os que são de fora. Sem desculpar o pecado deles, diz um pastor batista do Sul: “Nós devemos ir até os pobres, os negros, os
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hispânicos, os bebedores de cerveja e os divorciados”. O desvio do pecado para os estranhos dificilmente poderia ser mais óbvio. A principal e stratégia presbiteriana, no entanto, foi a de resistir a oferecer avaliações sobre os dois irmãos, bem como algum tipo de empatia por eles. Nenhum dos sermões fala do pecado em termos teológicos, “exemplificado na omissão da doutri na fundamental do pecado original’’. Finalmente, Witten começa a estudar 0 que parece ser a principal ênfa se nesses sermões: “A autotransformação”. Antigamente, a pregação dava lugar importante para a transformação, diz ela, que era “somente pela gra ça de Deus”: a morte do velho eu e a vida do novo eu em Cristo. “Este vocabulário agostiniano prevaleceu no discurso calvinista durante os pri meiros anos do protestantismo americano”, mas rapidamente sucumbiu à modificação que continua até os dias atuais”. Nos pontos em que as noções anteriores identificavam o amor-próprio como a raiz do pecado original, os reavivalistas apelaram para ele como a motivação para a conversão. Com confiança crescente na capacidade humana em geral e “ênfase nas doutri nas arminianas do livre-arbítrio”, 0 pecado se transformou “em noções de pecado, como erros de comportamento passíveis de correção por educação moral adequada”. Tal como todos os comportamentos, o pecado poderia ser administrado de acordo com princípios previsíveis. Onde os pontos de vista antigos consideravam a tentativa de construir autonomamente nossa própria identidade como parte da futilidade do ser, nas palavras de Agostinho, “ao redor de nós mesmos”, Witten constatou que muitos dos sermões que ela avaliou assumiram o “ego autocriado” da cultura secular. Deus ajuda neste esforço, mas o sentido do ego como cria do para os propósitos de Deus, ego que caiu em pecado, mas é redimido e remodelado por Deus, é, pelo menos, silenciado pela suposição original (autônoma e terapêutica). Cada vez mais, os americanos passaram a ver as igrejas - com seus nomeados meios de graça como subordinados às “aulas de Bíblia, às reuniões de oração, aos grupos beneficentes - como organiza ções para-eclesiásticas”. Portanto, a fé tornou-se cada vez mais privatizada, com oportunidades para expressar os sentimentos das pessoas, a linguagem da fé “frequentemente atada ao sentimentalismo”. Os liberais e os reavivalistas enfatizam a transcendência de Deus e ten dem a ver a Palavra dele como algo que brota de dentro da pessoa, e não como algo que vem de fora para a pessoa. “A chave para a salvação, portan to, encontra-se dentro de si; 0 custo para o indivíduo é ouvir e ser receptivo a essa voz interior. Também, desde que 0 pecado foi amplamente conside rado como erro ou ignorância (em conformidade com as crenças liberais na bondade essencial do ser humano), prevaleceu a visão de que a mudança de comportamento pode acontecer por meio da educação sobre as questões éticas e morais” (grifos do autor).
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Isso abriu a porta para um entendimento psicologizado da fé em Deus “como uma espécie de terapia que ajuda os homens a lidarem com as de mandas do mundo real”. Os conservadores e os liberais podem discutir so bre questões específicas relacionadas à integração da teologia com a psico logia, mas ambos assumem interpretações psicologizadas de seu credo. A conversão é basicamente autorrealização. A narrativa central dos sermões da Igreja Batista do Sul era “a transfor mação por meio da conversão”, mas ambas expressas em termos terapêu ticos. A conversão depende de nós, mas é relativamente fácil de conseguir. Ela requer apenas “autoconsciência emocional, abertura e receptividade”, coisas que, evidentemente, todas as pessoas são capazes de realizar. A con versão traz “ligação com Deus”, relacionamentos significativos e triunfo sobre os problemas diários da pessoa. A ênfase na transformação repousa sobre importantes mudanças teo lógicas: a primeira é a ênfase no livre-arbítrio. Um tema recorrente é 0 de que nada é mais essencial para o ego que o livre-arbítrio. Como disse um pastor batista do Sul: “Em seu grande amor, Deus nos libertou para nos tor narmos e sermos, para tomarmos conta de nosso próprio destino e sermos responsáveis por ele”. A segunda ênfase dessa mudança é “a inata bondade humana”. Um pastor presbiteriano colocou desta maneira: “Quando Jesus diz que [o filho pródigo] caiu em si, ele nos faz o elogio mais alto, pois sugere que há algo dentro do ser humano que, inatamente, quer bondade e amor, que quer estar em casa e em harmonia com a vontade de D eus”. Um sermão batista do Sul inclui a seguinte citação: Quando você consegue 0 que quer na sua luta pela riqueza E 0 mundo faz de você rei por um dia, Então vá até o espelho e olhe para si mesmo E veja o que esse cara tem a dizer. Pois não é o julgamento de seu pai, mãe ou esposa Que deve contar; A pessoa cujo veredicto mais conta em sua vida É aquela que o está olhando do espelho. Observe que “a pessoa cujo veredicto mais conta na sua vida” é a pró pria pessoa e não Deus. Outro elemento nesta ênfase na transformação é a “psicologia da aber tura, da confiança, da autorrevelação e da autenticidade”. O foco é qua se exclusivamente antropocêntrico em vez de teocêntrico, e a visão dos seres humanos é basicamente pelagiana ou pelo menos semipelagiana. “Até agora, o discurso desses sermões reconheceu uma natureza funda mentalmente humana no centro de cada pessoa: inatamente boa, aberta à
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autocompreensão e necessitada de libertar 0 artifício que esconde sua ver dadeira identidade.” Embora esta seja identificada como a doutrina cristã de conversão, o veredicto de Witten é difícil de contestar: não há nada aqui que não possa ser encontrado em alternativas seculares. A mensagem passada ao longo desses sermões é: busque a Deus; tom e-se vulnerável. Mas não há nada aqui que daria uma razão quanto ao motivo pelo qual “receber Deus no coração” seja “o único recurso possível para a realiza ção da individualidade verdadeira”. Para este processo transformador de conversão, sempre há procedimen tos eficazes que se tomam rotineiros e padronizados. Witten mostra que, e s pecialmente nos sermões da Igreja Batista do Sul, o próprio discurso “perde a força em um apêndice técnico, em que os pregadores inserem a fala sobre os procedimentos de se obter salvação”. Um pastor os formaliza a partir da parábola: reconhecimento, realização, responsabilidade e restauração. Esta última é basicamente uma conquista da vontade e da ação humanas. Na verdade, quando chega a hora em que eles enumeram os “procedimentos eficazes”, que necessitam de “esforço humano em várias frentes”, a con versão, finalmente, parece “não ser tão fácil como anunciada”. Entre as observações típicas de conclusão, encontra-se a seguinte: “Abra-se para a salvação que Deus quer trabalhar em sua vida”. Então, em vez de apresentar às pessoas a um Deus majestoso, que, no entanto, condescendeu em misericórdia para salvar quem não pode salvar a si mesmo, esses sermões - mesmo tendo a parábola do filho pródigo como seu texto - proclamam uma mensagem que pode ser resumida como deísmo moralista terapêutico. Como um produto, a experiência de Deus pode ser vendida e comprada com a confiança de que o cliente ainda é rei. Declara ções que teriam chocado as gerações anteriores de protestantes tradicionais são recebidas como uma coisa natural, mesmo entre os evangélicos de hoje, tais como na defesa de George Bama de “um princípio fundamental da co municação cristã: o público, não a mensagem, é soberano” .54 Nossa heresia natural Identifiquei o pelagianismo como a configuração padrão do coração hu mano: a religião da autossalvação. Grande parte do cristianismo nos EUA, como em outros lugares, não chega a ser totalmente pelagiano. Se pergunta rem diretamente se podemos salvar a nós mesmos por esforço moral, fora da graça, suspeito que a maioria dos evangélicos responderia negativamente. No entanto, a graça é vista pelos evangélicos principalmente como era pela
54Barna, Mark eting th e Church, pág. 145.
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igreja medieval: como assistência divina para 0 processo de transformação moral, não como um processo unilateral de resgate divino. Se formos apenas retrógrados, só precisamos de orientação; doentes, precisamos de remédios; fracos, precisamos de força. A graça radical, no entanto, responde à pecaminosidade radical - não simplesmente a erros morais, falta de zelo ou letargia espiritual, mas à condição que a Bíblia de fine como nada menos que condenados, “filhos da ira”, “mortos nos vossos delitos e pecados” (Ef 2.1, 3). Na maioria dos casos, eu sugiro, é o semipelagianismo que domina o cristianismo atual, tal como aconteceu na igreja medieval. E nquanto o agostinianismo afirma que Deus faz toda a obra de salvação e o pelagianismo coroa nossas conquistas morais com a graça da aceitação, o semipelagianismo diz que a salvação é um processo que depende da cooperação entre Deus e os seres humanos. O termo técnico para esta posição é sinergismo (trabalhando juntos). Donald Bloesch lamenta: “Deve-se reconhecer (...) que, em grande parte do protestantismo popular, o sinergismo (salvação por meio da graça e do livre-arbítrio) é ainda mais evidente que no catolicismo, e a razão e a experiência humanas figuram mais proeminentes que a Escri tura em determinar as normas para a fé”.55 Onde aterrissamos nestes assuntos talvez seja o fator mais importante de como encaramos nossa própria fé e prática, e as comunicamos ao mundo. Se não somente 0 não regenerado, mas também o regenerado está sempre dependente, a todo o momento, da livre graça de Deus revelada no evan gelho, então nada pode levantar aqueles que estão espiritualmente mortos ou continuamente dar vida ao rebanho de Cristo, a não ser o Espírito traba lhando por intermédio do evangelho. Quando isso acontece (e não apenas uma vez, mas cada vez que encontramos o evangelho de novo), o Espírito nos transforma progressivamente à imagem de Cristo. Comece com Cristo (isto é, com o evangelho) e você ganha a santificação em troca; comece com Cristo e passe para outra coisa e você perde os dois. Isso significa que não importa quais métodos, truques ou estímulos a pessoa possa empregar, ou quanta energia seja investida no sentido de tor nar a mensagem relevante, nosso testemunho cairá em ouvidos surdos se Deus não agir graciosamente. Em contrapartida, se adotarmos as suposições pelagianas ou semipelagianas, vamos carregar 0 fardo de tentar produzir conversões confiando em nossa própria inteligência e poder de comunica ção em vez de confiar na Palavra de Deus e no Espírito. Se a reforma e o arrependimento do nosso cativeiro da religião tiverem mesmo de ocorrer, o pecado tem de ser redescoberto. O pecado original, 55Bloesch, Donald. God, Authority, and Salvation, vol. 1 o f Essentials o f Evangelical Theo logy. São Francisco: Harper & Row, 1978, pág. 10.
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como G. K. Chesterton observou, “é a única parte da teologia cristã que pode realmente ser provada” . Posteriormente, ele disse: “Todo 0 argumento real sobre religião gira em tomo da questão de saber se um homem que nasceu de cabeça para baixo pode dizer quando vira. O paradoxo principal do cristianismo é que a condição normal do homem não é sua sanidade ou condição sensível; que 0 normal, em si, é uma anom alia”.56Contudo, supri mimos esta verdade com grande sofisticação, colocando um engenho con fortável em nossas vidas, apesar de nosso incômodo sentimento de culpa. Tomar o evangelho relevante pode facilmente assumir a forma de adequá10 à condição anormal que chegamos a considerar como normal. Jesus lamentou que os líderes religiosos de seu tempo fossem como crianças brincando de faz de conta de funeral ou de festa, mas eles não conseguiam nem chorar por seus pecados quando João Batista veio, nem dançar em comemoração à chegada do Filho do Homem (Mt 11.16-19). Do mesmo modo, hoje a pregação da lei, em todo seu julgamento tenaz, e a pregação do evangelho, em toda sua doçura surpreendente, fundem-se em uma mensagem confusa de exortação suave para uma vida mais sa tisfatória. Por conseguinte, não sabemos como lamentar nem como fazer uma festa. As más notícias não se contrapõem nitidamente às boas notícias; ficamos contentes com as notícias toleráveis que eventualmente falham em trazer convicção ou conforto genuíno, mas que nos mantêm na esteira da ansiedade, desejando 0 próximo reavivamento, técnica ou movimento para elevar nosso espírito e nos arremessar para a glória celestial. Sem 0 reconhecimento sério do pecado original, acrescenta Chesterton, podemos facilmente nos tomar peões passivos no jogo dos ditadores e dos democratas. Foi a doutrina da perfectibilidade humana que trouxe os tira nos para o palco do mundo, com os aplausos de adoração das massas, mas 0 ensino bíblico nos desperta de nosso sono moralista, identificando Deus como o único objeto de confiança de nossa fé.57 Obviamente, é uma generalização, no entanto Chesterton está correto quando diz que o “anel externo” do cristianismo é 0 desespero - a cons ciência do sentimento trágico da vida por causa do pecado original, en quanto seu “anel interior” é a “a vida dançando como crianças, e bebendo vinho como os homens; pois 0 cristianismo é o único quadro para liberdade pagã. (...) Mas, na filosofia modema, o caso é 0 oposto; seu anel extemo é obviamente artístico e emancipado; seu desespero é interior”. Porque seu artigo principal é que a vida não tem sentido ou finalidade transcendente, “não se pode esperar encontrar qualquer romance; seus romances não terão 56Chesterton, G. K. Orthodoxy: The Romance o f Faith. Nova York: Doubleday, 1990, págs. 15, 158. 57Ibid ., pág. 157.
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enredos. (...) A pessoa não pode encontrar nenhum significado em uma sei va de ceticismo; mas o homem que caminha por uma floresta de doutrina e propósito vai encontrar cada vez mais significado. Aqui, tudo tem uma história ligada a seu fim, como as ferramentas ou fotos na casa do meu pai, porque é a casa de meu pai. Eu termino onde comecei - na extremidade direita. Entrei, ao menos, pelo portão de toda boa filosofia. Cheguei à minha segunda infancia”.58O faz de conta do funeral é apenas o aquecimento para o da festa.
**Ibid., págs. 157-158.
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Palavras suaves e cristianismo sem Cristo Nós, americanos, não somos conhecidos no mundo como pessoas que se envergonham. Pelo contrário, somos um povo muito autoconfiante. A últi ma coisa que queremos ouvir de alguém é que não podemos fazer nada para nos salvar do problema mais grave que já tivemos ou que vamos ter - que estamos inteiramente à mercê de Deus. Sem um milagre, o sucesso religio so neste ambiente sempre vai para aqueles que podem efetivamente apelar para este espírito “de isso pode ser feito” e empurrar o mais longe possível qualquer coisa que possa tirar nosso arrogante ego do equilíbrio. Quando procuramos respostas definitivas, voltamo-nos para dentro de nós mesmos, confiando em nossa própria experiência, em vez de olharmos para fora de nós, para a externa Palavra de Deus. Nos dias da infidelidade de Judá, Deus censurou os falsos profetas por desejarem popularidade. “Curam superficialmente a ferida do meu povo, dizendo: Paz, paz; quando não há paz. Serão envergonhados, porque co metem abominação sem sentir por isso vergonha; nem sabem que coisa é envergonhar-se” (Jr 6.14-15). Da mesma forma, Paulo teve de defender seu ministério contra aqueles que chamou de superapóstolos, os quais atraíam os discípulos para si por meio de suas habilidades melhores de comunica ção e uma mensagem mais agradável para os gregos. Se, na verdade, vindo alguém, prega outro Jesus que não temos pregado, ou se aceitais espírito diferente que não tendes recebido, ou evangelho diferente que não tendes abraçado, a esse, de boa mente, o tolerais. Porque suponho em nada ter sido inferior a esses tais apóstolos. E, embora seja falto no falar, não 0 sou no conhecimento; mas, em
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Cristianismo sem Cristo tudo e por todos os modos, vos temos feito conhecer isto (2C0 11.4-6).
No encerramento de sua Carta aos Romanos, Paulo apela aos santos: “Rogo-vos, irmãos, que noteis bem aqueles que provocam divisões e escân dalos, em desacordo com a doutrina que aprendestes; afastai-vos deles, por que esses tais não servem a Cristo, nosso Senhor, e sim a seu próprio ventre; e, com suaves palavras e lisonjas, enganam 0 coração dos incautos” (Rm 16.17-18). Paulo advertiu a Timóteo que as pessoas, por a mor a si mesmas, vão atrás de mestres que lhes digam exatamente o que querem ouvir (2Tm 3.2-4; 4.3-5). Muito do que chamamos de relevância, Paulo menciona nessa passagem como ateísmo. “Suaves palavras e lisonjas” fazem parte da dieta básica da religião ame ricana bem-sucedida atualmente. E é quase sempre anunciada como a mis são mais eficaz e relevante. “Fazer jogo rápido e solto com a Bíblia exigia uma audiência liberal nos dias de Norman Vincent Peale”, observa 0 teólogo de Yale, George Lindbeck, “mas, agora, como 0 caso de Robert Schuller indica, os conservadores pro fessos o engolem”. 1Projetado para um lugar de grande destaque por meio de seu livro bests eller, Power o f Positive Thinking, Peale foi repreendido por protestantes conservadores por deixar de fora os aspectos mais importantes da proclamação cristã em favor de uma mensagem otimista de autoajuda. Robert Schuller, pastor fundador da Catedral de Cristal e 0 discípulo mais proeminente Peale, ajudou a fazer deste evangelho, essencialmente americano, 0 mais bem-sucedido nos círculos evangélicos. Estimulados po r seu ministério na televisão, os best-sellers de Schuller incluem Self-Este em: The New Reformation , Self-Love, Believe in the God Who Believes in You e Be-H appy Attitudes. Não apenas os evangélicos têm se equiparado aos seus rivais liberais em acomodar a religião à cultura secular, mas agora estão claramente na liderança. Na autoajuda secular, as vendas dos gurus chegam perto dos concorrentes evangélicos. Dando um passo além do “pensamento positivo” genérico, uma versão do pentecostalismo conhecida como o movimento Palavra de Fé está espa lhando o evangelho da prosperidade para os confins da terra. Principalmen te por meio de seu império de radiodifusão e de impressão, essa mensagem está se espalhando rapidamente em dois terços do mundo, especialmente na África. Em uma tese sobre missão e globalização, Wanyeki Mahiaini obser va: “Se você perguntar aos nossos tele-evangelistas por que concordam com 1Lindbcck, George. “The Church,s Mission”, em Burnham, Frederic B. (org.). Postmo dern Theology: Christian Faith in a Pluralist World. Sào Francisco: Harper-San Francisco, 1989, pág. 45.
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T. D. Jakes, por exemplo, ou com Benny Hinn, e por que discordam de John Stott ou de outros professores verossímeis da Bíblia, você vai descobrir que as conclusões a que chegaram não são realmente deles. Estão meramente repetindo as tendências e os preconceitos que são comuns no Ocidente”.2A comemoração da expansão muito anunciada do cristianismo em dois terços do mundo (mais notavelmente nos últimos anos, no The Next Christendom , de Philip Jenkins) deveria ser, pelo menos, atenuada pelo fato de que o evangelho da prosperidade é a versão mais explosiva deste fenômeno. Numerosos teólogos têm apontado as semelhanças impressionantes en tre a mensagem da prosperidade e o antigo gnosticismo.3 Como a antiga heresia, a mensagem da Palavra de Fé assume um dualismo acentuado entre espírito e matéria, prometendo domínio sobre as circunstâncias externas da pessoa por intermédio do aprendizado dos princípios secretos do reino invisível. Embora a própria criação seja, em si mesma, corrompida (apre sentada, frequentemente, como “o natural”), estes professores afirmam que o eu interior é divino. “Você não tem um Deus vivendo em você”, instrui Kenneth Copeland. “Você é um; é parte integrante de Deus.”4 Talvez não haja maior exemplo do cativeiro da igreja americana que aquele que pode ser identificado no notável sucesso de Joel Osteen. A me dida que reflete qualquer teologia que seja, sua mensagem representa uma convergência de autoajuda pelagiana e autodeificação gnóstica. Se um moralismo brando do liberalismo protestante se tomou parte da dieta evangé lica por intermédio de Schuller, Osteen alcançou o sucesso questionável ao fazer da filosofia “imagine e afirme” de Kenneth Copeland e Benny Hinn tendência atual. Osteen representa uma variedade do deísmo moralista terapêutico que, em versões menos extremas, parece caracterizar grande parte da religião popular de hoje. Basicamente, Deus está lá para você e sua felicidade. Ele tem algumas regras e princípios para você conseguir 0 que você quer da vida e, se você segui-las, pode ter o que quiser. Basta declarar isso e a pros peridade virá a você.5Deus como comprador pessoal. 2Mahiaini, Wanyeki. “A View from Africa”, em Tiplady, Richard (org.). One World or Many? The Impac t o f Globa lization on Mission. Pasadena: William Carey Library, 2003, p á g .161. McConnell, D. R. A Differe nt Gospel: Biblic al an d H istor ical Insig hts into the Word o f Faith Movement. Peabody, MA: Hendrickson, 1995 (edição atualizada). Um pentecostal que fez graduação na Oral Roberts University, McConnell oferece am pla citação e avaliação desta alegação. 4Copeland, Kenneth. “The Force of Love”, Praise the Lord broadcast (TBN), gravado em 5 de fevereiro de 1986; audio tape # 02-0028, 1987. 5Esta posição está extensivamente documentada em Horton (org.), The Agony o f Deceit. Chicago: Moody, 1990.
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Embora os defensores explícitos do evangelho da prosperidade possam ser em menor número que sua influência sugere, seus grandes nomes e au tores de best-sellers (T. D. Jakes, Benny Hinn, Joel Osteen e Joyce Meyer) fornecem uma cosmovisão pagã com um sabor tipicamente americano. É basicamente o que Lutero chamou de a “teologia da glória” : como posso eu, aqui e agora, subir a escada e alcançar a glória que Deus nos prometeu após uma vida de sofrimento? O contraste é a teologia da cruz : a história da descida misericordiosa de Deus até nós com grande sacrifício pessoal - uma mensagem que o apóstolo Paulo reconheceu ser ofensiva e insensata para os gregos. A atração dos americanos por esta versão da história d a glória é eviden te no sucesso surpreendente do best-seller de Joel Osteen, Your Best Life Now: Seven Steps to Living at Your Full P otential [O melhor de sua vida agora: sete passos para viver 0 seu potencial completo] e, na seqüência, Become a Better You [Tome-se melhor]. Além de sua personalidade en cantadora e simplicidade, a atração fenomenal de Osteen está, sem dúvida, relacionada a seu modelo simples e suave do evangelho americano: uma mistura de elementos cristãos e culturais que ele escolheu não por meio de algum treinamento formal, mas como filho e produtor de televisão de um evangelista batista da prosperidade que era um dos favoritos no Trinity Broadcasting Network6*(TBN). O pastor da Igreja de Lakewood, em Houston, que agora é o dono do Centro Compaq, não dá a impressão imediata de um evangelista bri lhante com jatos e iates, mas a de um vizinho charmoso que tem sempre algo bom para dizer. Não há manchetes televisionadas, lenços de oração abençoados ou outras excentricidades do tele-evangelismo de ontem. No entanto, os princípios básicos da Palavra da Fé dominam 0 seu ensino, embora sejam comunicados em termos e ambiência que dificilmente po dem ser diferenciados da maioria das megaigrejas e outros ministérios orientados ao-que-busca.
L e i l e v e : s a l va ç ã o d a i n f e l i c i d a d e p o r fa z e r s e u m e l h o r
Não há condenação na mensagem de Osteen porque ela falha em cumprir a lei da justiça de Deus. Em contrapartida, não há nenhuma justificação. Em vez dessas mensagens, há um moralismo otimista que fica em algum lugar do meio: faça seu melhor, siga as instruções que eu lhe dou e Deus fará sua vida bem-sucedida. “Não fique sentado passivamente” , ele adverte, 6' Considera-se a maior rede religiosa do mundo e o canal relacionado à fé mais assistido
nos EUA. O ferece programação livre de comercial 24 horas, voltada para um público varia do, como protestantes, católicos e judeus [N. da R.].
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mas, por meio de um apelo suave, ele sugere que a única razão pela qual devemos seguir seu conselho é porque é útil para obtermos o que queremos. Deus é um amigo ou parceiro que existe principalmente para garantir nossa felicidade. “Você faz sua parte, e Deus vai fazer a parte dele”. “Claro que temos nossas falhas”, ele diz, porém “a boa notícia é que Deus nos ama mesmo assim”. Em vez de apenas aceitar 0 justo veredicto de Deus sobre nossa própria justiça e correr para Cristo para a justificação, Osteen aconse lha os leitores simplesmente a rejeitarem a culpa e a condenação. No entan to, é difícil fazer isso com sucesso quando o favor e a bênção de Deus sobre minha vida dependem inteiramente de quão bem eu consiga cumprir seus mandamentos. “Se você simplesmente obedecer aos seus mandamentos, ele vai mudar as coisas a seu favor.”7 Isso é tudo: simplesmente obedeça aos seus mandamentos. Tudo depende de nós, mas é fácil. Osteen parece pensar que somos pes soas basicamente boas e que Deus tem um modo muito fácil para nós nos salvarmos - não de seu julgamento, mas de nossa falta de sucesso na vida - com sua ajuda. “Deus está fazendo um registro de cada boa ação que você faz”, diz ele - como se esta fosse uma boa notícia. “Quando você passar por tempos difíceis, po r causa de sua gen eros idad e, Deus vai mover céus e terra para garantir que você esteja protegido.”8 Pode ser Lei Lev e, mas não se engane: por trás de um evangelicalismo sorridente, que evita qualquer conversa sobre a ira de Deus, existe uma determinação de assemelhar: 0 evangelho à lei, um anúncio de vitória a um chamado para ser vitorioso, indicativos a imperativos, boas-novas a bons conselhos. As más notícias podem não ser tão ruins como costumavam ser, contudo as boas-novas são apenas uma versão mais leve das más notícias: fa ça mais. Mas, desta vez, é fácil. E, se você fracassar, não se preocupe. Deus só quer que você faça seu melhor. Ele vai cuidar do restante. Então, quem precisa de Cristo? Pelo menos, quem precisa de Cristo como “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29)? O espinho da lei pode ser retirado da mensagem, mas isso significa apenas que 0 evangelho se tomou menos exigente e mais encorajador da lei, cujas exortações se destinam apenas a nos fazer felizes, não a nos medir pela santidade de Deus. Como dizia Marx sobre a cultura orientada pelo mercado: “T udo o que é sólido desmancha no ar”.9 Deus também se toma uma m ercadoria - um produto ou terapia que podemos com prar e usar para nosso bem-estar 7Osteen, Joel. Your Best Life Now: S even Steps to Living at Your Full Potential. N ova York: Warner, 2004, págs. 41-42, 57, 66, 119. *Ibid., pág. 262. 9Marx, Karl. “Bourgeois and Proletarians”, em The Communist Manifesto, 1848.
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pessoal. Exemplificando a abordagem moralista e terapêutica para a religião, a mensagem de Osteen também é um bom exemplo da incapacidade dos adeptos do crescimento rápido de chorarem diante do julgamento de Deus ou de comemorarem com a notícia da libertação pela misericórdia salvadora de Deus. Em outras palavras, toda a gravidade está perdida - tanto a gravida de de nosso problema quanto a da maravilhosa graça de Deus. Segundo esta mensagem, não somos pecadores desamparados - ímpios - que necessitam de uma visão unilateral de resgate divino (os americanos, mas especialmente os Boom ers , não recebem más notícias tão bem). Pelo contrário, somos pes soas de bem, que só precisam de um pouco de instrução e motivação. Então, enquanto muitos defensores dão testemunho de sua versão mais amável e suave do cristianismo que a repreensão legalista da sua juventude, a única diferença real é que as regras ou princípios de Deus são mais fáceis nestes dias, e tudo se refere à felicidade aqui e agora, não ao resgate da ira de Deus pela graça dele. Em seu ambiente sócio-terapêutico, o pecado está nos atrapalhando a levar adiante nosso potencial, e não a dar a glória a Deus. E “pecado” não acreditar em nós mesmos, e 0 salário de tal pecado é estar perdendo o melhor de nossa vida agora. Mas ainda há um fluxo cons tante de exortação, exigências e encargos: siga os meus passos, e eu garanto que sua vida será abençoada. Uma história da revista 7 Ime, em 2006, observou que o sucesso de Oste en atingiu até os círculos protestantes mais tradicionais, citando o exemplo de uma igreja luterana que seguiu Your Best Life No w durante a Quaresma, o tempo todo, quando, como observa 0 escritor, “Jesus estava passando pela pior fase de sua vida”.10Mesmo igrejas formalmente mergulhadas em uma teologia da cruz sucumbiram à teologia da glória no ambiente da espiritua lidade popular. Estamos nadando em um mar de moralismo narcisista: uma versão da salvação fácil de ouvir pela autoajuda. Isso é 0 que podemos chamar do falso evangelho “Deus ama você de qualquer jeito”. Não há necessidade de Cristo como nosso mediador porque Deus nunca é tão santo e nós não nunca somos tão moralmente perversos para necessitar de nada menos que a morte de Cristo em nosso lugar. Deus é nosso amigo. Ele só quer que sejamos felizes, e a Bíblia nos dá o roteiro. Não tenho nenhuma razão para duvidar da sinceridade da motivação para alcançar os não cristãos com uma mensagem relevante. Minha preo cupação, porém, é que a maneira como essa mensagem é dada realmente banaliza a fé em seu melhor e a contradiz em seu pior. Não ouvimos nada que pudesse ofender um não cristão, muito menos um crente em Cristo; nada sobre a santidade de Deus, sobre nossa condenação ou sobre Cristo 10Biema, David Van; Chu, Jeff. “Does God Want You to Be Rich?”, 77/we, 10 de sete mbro de 2006.
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suportando nossa condenação em nosso lugar. Não há nada em sua men sagem sobre a Trindade ou a ressurreição dos mortos e a era por vir. Na verdade, há pouca menção de Cristo - um ponto em que os repórteres têm pressionado Osteen nas entrevistas. O tele-evangelista ignora estas preo cupações, dizendo que pessoas diferentes têm distintos “dons”, sendo sua missão ajudar as pessoas a viverem melhor. Osteen frequentemente aponta para o fato de que seguidores de outras religiões abraçam sua mensagem (aparentemente, sem sentir qualquer necessidade de conversão) como um sinal de seu sucesso. Há bem pouco na mensagem de Osteen que não tenhamos ouvido antes, repetidamente, a partir da cultura do otimismo americano, bem expressa por Jiminy Cricket, da Disney: “Se você fizer um pedido para uma estre la, todos seus sonhos irão se realizar”. Conquanto a mensagem de Osteen esteja longe de ser única, ela é um dos exemplos mais claros de deísmo moralista terapêutico. É possível ter evangelismo sem o evangelho? Pode haver evangelismo cristão sem uma mensagem cristã? Se Deus tem importância, de acordo com esta perspectiva, é para as preocupações mais triviais, ou pelo menos para aquelas bastante secundá rias em comparação com a crise real que o evangelho enfoca. Uma pessoa pode facilmente desprender-se deste tipo de mensagem concluindo que não somos salvos por uma obra objetiva de Cristo por nós, mas por nossa sub jetiva relação pessoal com Jesus , por meio de uma série de obras que reali zamos para garantir sua graça e bênção. Deus estabeleceu todas estas leis e, agora, cabe a nós segui-las para que possamos ser abençoados. À medida que perdemos o senso da seriedade de Deus, o pecado perde seu ponto de referência. Já não há carência da glória de Deus (Rm 3.23), o pecado agora está carente da glória do ego. Tudo está sob controle muito bem sem Cristo. Deus ainda está mantendo um registro - mas apenas das coisas boas que fazemos, e os riscos não são tão elevados: não é mais uma questão de nosso lugar na vida futura, é apenas uma questão de conseguir 0 melhor proveito da vida aqui e agora. Osteen retrata a hipótese mais ampla entre os evangélicos de que somos salvos por tomarmos a decisão de ter um relacionamento pessoal com Deus. O evangelho dá a impressão de que você pode ter um relacionam ento pessoal com Jesus. Contudo, dada a falta de qualquer consideração sé ria da condição humana diante de um Deus santo, não está claro o que essa relação pessoal pode realizar. Cristo não aparece em nenhum lugar nos livros de Osteen (pelo menos até agora) como um mediador entre Deus e os seres humanos. Procura-se, em vão, encontrar um substituto pelos pecadores, o qual tenha cumprido a lei no lugar deles e carregado a culpa deles para que sua justiça pudesse lhes ser imputada. Não fica claro como ou por que um americano médio hoje sequer deveria se preocupar em ter um relacionamento pessoal
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com um rabino judeu que viveu no Oriente Médio, há dois mil anos. Viven do no Bible B e l t suponho, onde “Jesus” é um ponto de encontro para jo gos de futebol e da inauguração de shopping centers, o significado de Jesus pode ser tomado como garantido. O resultado, porém, é um apego vago e sentimental por alguém que é mais um amigo invisível que o Salvador dos ímpios, encarnado, morto e ressuscitado, que subiu e é Rei. Neste contexto, Jesus se toma 0 que você quiser que ele seja em sua vida. Se o maior problema de alguém é a solidão, a boa notícia é que Jesus é um amigo confiável. Se o grande problema é a ansiedade, Jesus vai nos acalmar. Jesus é a cola que mantém nossos casamentos e famílias juntas; ele nos dá um propósito pelo qual devemos nos esforçar para alcançar, bem como sabedoria para a vida diária. Há meias-verdades em todas estas alega ções, mas elas nunca colocam os ouvintes diante seu verdadeiro problema: que estão nus e envergonhados perante um Deus santo, e só podem ser ves tidos de forma aceitável na presença dele por estarem vestidos, da cabeça aos pés, com a justiça de Cristo. Este evangelho de submissão, compromisso, decisão e vida vitoriosa não é uma boa notícia sobre 0 que Deus realizou, mas uma demanda para salvarmos a nós mesmos com a ajuda de Deus. Além do fato de que a Escri tura nunca faz referência ao evangelho como ter um relacionamento pess o al com Jesus nem define a fé como uma decisão de pe dir a ele para entrar em nosso coração, esse conceito de salvação falha na compreensão de que todos já têm uma relação pessoa l com Deus: ou como um criminoso conde nado de pé diante de um juiz justo ou como um co-herdeiro justificado com Cristo e filho adotivo do Pai. “Como posso ser justo diante Deus?” deixou de ser uma questão de quando minha felicidade, em vez da santidade de Deus, é a questão prin cipal. Joel Osteen é simplesmente o mais recente em uma longa linha de evangelistas de autoajuda que apelam para a obsessão inata do americano em se tomar bem-sucedido pelo próprio esforço. A salvação não é, então, uma questão de resgate divino da sentença do julgamento que está por vir ao mundo, mas sim uma questão de autoaperfeiçoamento, a fim de ter seu melhor na vida agora.
Os t e e n n o
Larry King Live
Em sua entrevista com Larry King (CNN, 20 de junho de 2005), Osteen disse não ter certeza do que acontece com as pessoas que rejeitam a Cristo. Larry 11’A traduç ão para o português seria cinturão bíblico. Esta é uma região dos Estados Unidos onde a prática fervorosa da religião protestante evangélica faz parte da cultura local. O Bible Bel t está localizado na região sudeste dos Estados Unidos [N. da R.],
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King prosseguiu perguntando sobre judeus, muçulmanos e outros não cris tãos. “Eles estão errados, não estão? . Osteen respondeu: “Bem, não sei se acredito que eles estão errados. Eu creio no que a Bíblia ensina e, partindo da fé cristã, é nisso que acredito. Mas acho que só Deus julgará o coração de uma pessoa. Passei muito tempo na índia com meu pai. Não sei tudo sobre a religião dos indianos, mas sei que amam a Deus. E não sei. Eu vi a sinceridade deles. Então, não sei. Eu sei para mim e 0 que a Bíblia ensina: eu quero ter um relacionamento com Jesus’’. Larry King (e um ouvinte) deu-lhe mais algumas chances de responder à pergunta, mas ele sempre voltava para o coração: “Deus tem de olhar para seu coração”. Evidentemente, 0 juízo final não será com base no padrão de santidade e justiça de Deus, mas na pureza de nossos corações. Por certo, há verdade nessa posição. Deus irá expor todos os segredos de nosso coração, no último dia. Mas no ponto em que Osteen parece pensar que o julgamento que Deus faz de nosso coração (como sua ma nutenção de registros) é uma boa notícia, a Escritura trata como o pio r relatório possível, pois “enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperada mente corrupto; quem 0 conhecerá?” (Jr 17.9). Jesus acrescenta: “Do cora ção procedem maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias” (Mt 15.19). Meu coração tem concebido e cometido pecados que minhas mãos nunca concretizaram. Longe de ser uma praia relativamente intacta de santidade, 0 coração é a fortaleza da qual nossa revolta contra Deus e 0 próximo é lançada. Mesmo quando fiz a coisa certa, tanto quanto as outras pessoas possam concordar, se a minha sinceridade fosse pesada, ela, na verdade, penderia contra minha justiça. Por isso, é um erro perigoso pensar que nosso julgamento diante do Deus conhecedor de toda justiça possa, de alguma forma, ser favorável a nós, por meio do exame de nosso coração ou do registro de nossa vida. Fico pensan do na grande resposta de Santo Anselmo àqueles que pensavam que a morte de Cristo não foi uma substituição vicária: “Você ainda não entendeu quão grande é seu pecado”. A perspectiva de Osteen pode funcionar com os ame ricanos imergidos em uma versão sentimentalizada da heresia pelagiana de autossalvação. Mas não é cristianismo. Quando Larry King lhe perguntou se ele usa a palavra peca dores, Oste en respondeu: “Não, eu não uso. Nunca nem pensei nisso, mas eu provávelmente não vou usar. A maioria das pessoas já sabe que o que estão fazendo é errado. Quando as levo à igreja, quero é dizer-lhes que podem mudar”. O notável é que ele nem sequer pensou nisso. A primeira providência de Osteen ao banalizar o pecado é a mudança de seu foco de uma ofensa contra Deus, com conseqüências eternas, para uma ofensa contra si mesmo, que nos prejudica a saúde, a riqueza e a felici dade aqui e agora. Enquanto seus antecessores pregaram o inferno de fogo
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e enxofre para levar as pessoas a pararem de fumar, beber e participar de imoralidade sexual, 0 objetivo de Osteen é levar as pessoas a seguirem seus princípios práticos para que possam ter o melhor de sua vida agora. Não é o céu no porvir, mas a felicidade do momento —e só depende de você tomá-la realidade. Ao fazer certas coisas, você determina se o favor e a bênção de Deus chegarão para você. A segunda providência nessa banalização do pecado foi reduzi-lo a ações (comportamentos negativos) que podem ser facilmente superadas por instruções, em vez de uma condição da qual somos impotentes para nos libertar. Se eu posso parar de cometer 0 pecado x , então é logicamente possível que eu possa parar de cometer 0 pecado y, e assim por diante, até que eu, por fim, consiga evitar todos os pecados conhecidos. Se, no entanto, o pecado é, antes de tudo, uma condição e, depois, ações, então não impor ta quantos pecados eu “conquiste”, continuo sendo peca dor. Não importa quantos avanços pense ter conseguido: de acordo com Deus, “não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus” (Rm 3.10-11; citando o SI 14.1-3; 53.1-3). “Todas as nossas justiça s ” —esqueça os nossos pecados! - são “como trapo da imundícia” (Is 64.6; grifo do au tor). Portanto, agora já não podemos descansar com confiança em nossos próprios comportamentos, normas, ética judaico-cristã, virtudes, discípulado, atos de amor e bondade, e espiritualidade piedosa. Não podemos conti nuar a dividir 0 mundo de forma distinta em decente e repugnante, devemos tomar nosso lugar com as prostitutas e os publicanos em vez de com os fariseus a fim de entrarmos no reino de Deus. Será que a mensagem de Osteen tem muito em comum com o que eu acabei de dizer? Em tom, talvez. Em vez de nos considerar cristãos apenas como desqualificados para o céu em nossos próprios méritos, como os pu blicanos e as prostitutas, a mensagem dele assume que, lá no fundo, somos todos - incluindo os publicanos e as prostitutas - pessoas bastante boas, que só poderiam ser um pouco melhores. Ironicamente, ele compartilha com seus antepassados medievais uma suposição de que 0 pecado não é uma condição abrangente a partir da qual não podemos nos livrar, mas, em lugar disto, são ações particulares que podemos vencer por meio de instruções boas. E ele também tem suas próprias listas. Ele pode incluir alguns dos tabus mais velhos, mas os principais peca dos são aqueles que envolvem deixar de colocar em prática princípios de Deus para 0 sucesso. Existem diferenças importantes, obviamente. Primeiro de tudo, parece faltar qualquer dimensão vertical clara aos pecados. Ou seja, na visão de Osteen, não é evidente que 0 pecado seja uma ofensa contra Deus. Por isso, ele não fala de pecados, mas de erros ou de falhas em ser tudo 0 que podemos ser. Segundo a Bíblia, é a ofensa deles a Deus que faz que tais atitudes e ações sejam pecados, em primeiro lugar. Sem essa dimensão ver-
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íical (orientada para Deus), até mesmo atos pecaminosos perdem seu con
texto moral. Em vez disso, eles são traduzidos em linguagem terapêutica de disfunção - comportamentos insalubres que deixam de merecer o favor de Deus sobre nós em nossa busca diária de bons espaços de estacionamen to. Mas as ações pecaminosas, nessa visão, não têm também a dimensão horizontal usual: um crime contra nosso próximo. Até mesmo o evange lho social, que fez do pecado mais um delito contra nossos companheiros humanos, em vez de, em primeiro lugar e principalmente, contra Deus, re conhece como um fracasso dar a alguém o amor e o serviço que lhe devo. Na mensagem cada vez mais difundida de pregadores como Osteen, no en tanto, os pecados se tomam ofensas que eu cometo contra mim mesmo, os quais me impedem de realizar minhas próprias expectativas. E narcisismo terapêutico: eu fracassei em viver à altura de meu potencial para garantir 0 melhor de Deus para minha vida ou em seguir as instruções que conduzem à vida boa. Será que, em nosso atual universo de discurso antropocêntrico, podemos, pelo menos, captar a confissão de Davi com orientação centrada em Deus: “Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mau perante os teus olhos, de maneira que serás tido por justo no teu falar e puro no teu julgar” (SI 51.4)? Em segundo lugar, Osteen nem sequer utiliza as palavras pec ado ou pecadores, como ele próprio observou anteriormente. No lugar delas, apa rentemente, ele usa algo como erro. Não mais carente “da glória de Deus” (Rm 3.23), o pecado está aquém da minha vida melhor agora. “É difícil levar uma vida cristã?”, perguntou Larry King. “Eu não acho que isso seja tão difícil”, respondeu Osteen. “Para mim, é divertido. Temos alegria e fe licidade. (...) Eu não estou tentando seguir um conjunto de regras e outras coisas. Estou apenas vivendo minha vida”. Novamente, encontramos 0 pêndulo oscilante: recuando do legalismo decididamente não divertido de sua juventude, Osteen vai para os braços do antinomianismo (sem lei). Não me admira que ele não fale de pecados (muito menos da condição pecaminosa que toma todos - até mesmo os crentes - pecadores) já que, aparentemente, não há um conjunto de regras divinamente estabelecido que possa identificá-lo como uma ofensa. A nor ma não é justiça, mas diversão; não santidade diante de Deus, mas a felici dade diante de si mesmo. Não é evidente que Cristo - pelo menos sua encarnação, vida obediente, morte expiatória, justificação e ressurreição que dá vida - seja necessário, de alguma forma, no esquema de Osteen. “Mas você tem regras, não tem?”, Larry King pressionou, ao que Osteen respondeu: “Nós temos regras, sim. Mas a regra principal é honrar a Deus com sua vida. Viver uma vida de integridade. Não ser egoísta. Você sabe: ajudar aos outros. Mas essa é re almente a essência da fé cristã”. Observe como a vida cristã de Osteen,
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feliz, cheia de diversão e sem regras, de repente se toma a religião mais exigente possível. Ele está correto quando diz que Deus ordena uma vida de integridade e de ajuda aos outros, não sendo egoísta. Na verdade, Je sus criticou os fariseus por substituírem os mandamentos de Deus por suas próprias leis mesquinhas, os quais, na verdade, serviam para o bom propósito em relação ao nosso próximo. Mas isso é precisamente o que a lei de Deus prescreve. Jesus resume “toda a lei”: “Amarás, pois, 0 Se nhor, teu Deus, de todo 0 teu coração, de toda a tua alma, de todo 0 teu entendimento e de toda a tua força. O segundo é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mc 12.30-31). Osteen, aparentemente, acha isso mais fá cil que seguir “um conjunto de regras”. Na verdade, como o jovem rico aprendeu, não é. Eu posso deixar de, literalmente, matar meu próximo, mas se eu não sacrificar tudo para 0 seu bem, eu não 0 amei realmente. Osteen pensa que amar nosso próximo é mais fácil que seguir “um monte de regras”, mas Jesus nos mostrou que é 0 inverso. Uma pessoa pode pa recer sexualmente pura para os amigos, mas Deus sabe se o adultério foi cometido no coração dela. Osteen disse que talvez a conversa do julgamento de Deus “tenha sido por um tempo”, uma geração atrás. “Não está em mim, em meu coração, condenar os outros. Estou lá para incentivá-los. Eu me vejo mais como um treinador, como um motivador para ajudá-los a experimentar a vida que Deus tem para nós.” A primeira vista, isso soa humilde —e talvez seja quando comparado a algumas das lamúrias moralistas e hipócritas do passado, que ameaçavam o julgamento de Deus por beber um copo de vinho ou por ir ao cinema. Entre tanto a resposta para a má pregação da lei é a boa pregação da lei, não sua eliminação. Dizer “não está em mim, em meu coração, condenar os outros” é apontar para a bondade própria em vez de apontar para 0 julgamento que nos mantém responsáveis como transgressores diante de Deus. A pregação correta da lei —da santidade, da retidão, da glória e da jus tiça de Deus - não criará uma autojustiça nossa versus a deles, mas vai expor as melhores obras, feitas pelos melhores motivos e pelos melhores entre nós, como trapos de imundícia diante do julgamento perscrutador de Deus. A má pregação da lei nive la alguns de nós; a omissão da lei por Osteen não nivela nenhum de nós; a pregação bíblica da lei nivela todos nós. E, de fato, arrogância dos embaixadores criarem suas próprias políti cas, especialmen te quando contradizem diretamente a palavra de quem os enviou. Osteen parece admitir que Jesus Cristo é, de alguma forma, único e importante, mas ele infere ignorância de um ponto que Cristo deixou perfeitamente claro, ou seja, que ele é 0 único caminho para a salvação do juízo vindouro.
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Teria sido a mensagem de Jesus - embora radicalmente diferente das lamúrias desconexas do fundamentalismo - somente “por um tempo” tam bém? Porventura Jesus achou que as pessoas são basicamente boas quan do se olha dentro do coração delas? Será que ele achou que sinceridade e esforço moral bastariam para nos vestir quando comparecermos perante o Juiz de toda a terra? Se Jesus e os apóstolos claramente proclamaram a total depravação do coração humano e a redenção por Cristo somente pela fé, então Osteen não está sendo humilde quando se recusa a mostrar claramente esse anúncio central. Foi Jesus quem disse que aquele não crê nele “já está julgado” (Jo 3.18). Isso porque, para Jesus, 0 julgamento do qual ele veio para nos salvar, suportando-o por nós, tinha Deus e sua glória como ponto de refe rência, não eu mesmo e a minha felicidade temporal. A vala que havíamos cavado para nós era tão profunda que somente o Deus encarnado poderia nos tirar dela, caindo nela e subindo de volta para fora, ele próprio como nosso Substituto Vitorioso. Para Osteen, as boas-novas é, no dia do julga mento, Deus olhando para nosso coração. Segundo as Escrituras, isso é realmente uma má notícia. As boas-novas é que, para todos os que estão em Cristo, Deus vê o coração, a vida, a morte e a ressurreição de seu Filho e nos declara justos nele. Não é um dom barato, mas é um dom gratuito.
To m e -s e m e l h o r
Mais recentemente, Osteen escreveu Becom e a Better You: 7 Keys to Im provin g Your Life Every Day [Tome-se melhor: sete maneiras para melhorar sua vida]. Na identificação da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, este livro é classificado como: “ 1. Autorrealização (Psicologia) - Aspectos religiosos - Cristianismo”. Até a Biblioteca do Congresso parece saber que tipo de mensagem ele representa. “Você pode ser melhor”, Osteen encoraja. “A pergunta é: ‘Como? O que devo fazer para me tom ar melhor? ’. Em meu primeiro livro Your Best Life Now, apresentei sete passos para você viver seu pleno potencial”. Mas, com Beco me a B etter You, ele quer ir um pouco mais além. “Espero ajudá-lo a olhar par a dentro de si mesmo e descobrir as sementes da gran deza do valor inestimável que Deus colocou dentro de você. Neste livro, vou lhe revelar sete chaves que você pode usar para desbloquear as sem en tes da grandeza, permitindo que explodam em uma vida abundantemente abençoada. (...) Lembre-se, Deus colocou em você tudo o que pre cisa para viver uma vida vitoriosa. Agora, depende de você pôr isto para fora. (...) O que significa tomar-se melhor? Primeiro, você entende que D eus quer que você se tome tudo o que ele o criou para ser. Segundo, é imperativo que você entenda que Deus fará a parte dele, mas você deve fazer a sua parte
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também” (grifo do autor).12 Portanto, as piores notícias que você poderá ouvir de Osteen não é nada que você já não saiba e as melhores notícias são que, seguindo seu conselho, você pode ter mais. As sete chaves não são indicativas do evangelho; em outras palavras, anúncios da obra salvadora de Deus em Cristo —como uma antecipação profética do Messias; a encarnação; a obediência ativa de Cristo no lugar dos pecadores; sua morte, levando 0 pecado; a ressurreição vitoriosa como a cabeça de um corpo; a ascensão de Cristo para nos representar diante do Pai e enviar seu Espírito para nossos corações como uma parcela de entrada da ressurreição de nossos corpos no final dos tempos, quando ele vai retor nar em glória para julgar os vivos e os mortos. Ao contrário, as sete chaves são imperativos (comandos) que poderiam ser gerados a partir de uma série de fontes, sem qualquer apelo à Bíblia: “Para se tornar melhor, você deve: 1) Manter-se forçando para frente. 2) Ser positivo para consigo si mesmo. 3) Desenvolver relacionamentos melhores. 4) Desenvolver hábitos melho res. 5) Abraçar 0 lugar onde você está. 6) Desenvolver sua vida interior. 7) Ficar apaixonado pela vida”. Estas são coisas para você fazer, sem qualquer menção da boa-nova do que foi feito para nós, por Deus. O tema é subir mais, novamente de acordo com a teologia da glória: nossa subida autoconfiante em vez da descida humilde e sacrificial de Deus a nós. Do início ao fim, Osteen se dirige a seu público vasto como se cada pessoa fosse “filho do Deus Altíssimo”, sem nenhuma menção a Cristo como o Mediador dessa relação. Pelo contrário, simplesmente pelo fato de serem criados à imagem de Deus todos têm essas “sementes de grandeza” plantadas dentro de si - esse DNA divino: “Está tudo em você. Você está cheio de potencial. Mas você tem de fazer sua parte e com eçar a tocar nele. (...) Você tem a semente do Deus Todo-poderoso dentro de você. (...) Temos que acreditar que possuímos 0 que é preciso”. O ensino extravagante dos evangelistas da prosperidade como Kenneth Copeland e outros notáveis TBN, isto é, somos “pequenos deuses” e temos a essência da divindade dentro de nós, é promovido em menos detalhes, mas em termos explícitos. E verdade que existem apelos à Bíblia espalhados no livro de Osteen. Em quase todos os casos, no entanto, um versículo ou é retirado de seu contexto e transformado em um tipo de biscoito da sorte de uma promessa que a pessoa pode nomear e reivindicar para si mesma, ou é realmente mal interpretado para servir à colocação de Osteen. Considerando que, em Gênesis 3.11, Deus pergunta a Adão: “Quem te fez saber que estavas nu?” 1 As citações neste e nos 36 parágrafos seguintes (exceto as citações da Escritura) são de Osteen, Becom e a B etter You: 7 Keys to Improving Your Life Every Day. Nova York: Free Press, 2007, págs. 5, 9, 37, 39-41, 45, 46, 50, 56, 67, 69, 86, 87, 89, 91, 101, 103-105, 129 130,218, 236, 301,302 , 308,316.
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a fim de convencê-lo de seu pecado, Osteen faz parecer como se fosse Sa tanás que disse a Adão que ele falhou no teste e não tinha o necessário para ser bem-sucedido. Como em seu livro anterior, Osteen, aqui, nunca fala do pecado como carência da glória de Deus, mas como estar abaixo de nosso potencial. Na verdade, o apego de Osteen ao evangelho da prosperidade é ainda mais explícito em Become a Better You. Como se a Queda nunca tivesse acon tecido, Osteen escreve: “Ele programou tudo 0 que você precisa para a vitória”, embora consegui-la dependa de você. Isto exige repetir frases dia riamente: “Eu tenho 0 que preciso. Eu sou mais que um conquistador. Eu sou inteligente, eu sou talentoso. Eu sou bem-sucedido, eu sou atraente, sou um vencedor”. Considerando que, em Gálatas 3.29, Paulo argumenta que a herança da vida eterna vem com a promessa (Cristo) e não pela lei, Osteen novamente interpreta um versículo fora de seu contexto como uma promessa de pros peridade temporal. Este é um exemplo claro de como Osteen transforma até mesmo as referências mais óbvias a Cristo (como 0 cumprimento da profe cia do Antigo Testamento) em exemplos atemporais do que pode acontecer a nós se citarmos e reivindicarmos nossas bênçãos. Ele não interpreta a Escritura; ele a usa como um livro de citações para servir à sua própria mensagem de prosperidade. Em todo o livro, percebe-se a presença constante da linguagem do evan gelho da prosperidade: nós devemos declarar a bênção de Deus, fal ar de prosperidade e profetizar saúde, riqueza e felicidade em nossas vidas. Isso cria a impressão de que Deus criou tudo para nossa vitória, mas cabe a nós realmente nos ligarmos à fonte de energia e criarmos nossas bênçãos, se guindo os princípios e procedimentos adequados. Assim, apesar da retórica sobrenatural, no final das contas tudo soa deísta: Deus organizou tudo, originalmente, com as leis da prosperidade; agora, é nossa vez de agir. Seguindo 0 caminho bem pisado pelos mestres da vida vitoriosa, Osteen fala em extrair o que for preciso do reino eterno. Desta forma, até mesmo a religião se toma uma espécie de tecnologia: pelo conhecimento de princípios, fórmulas e passos certos, a prosperidade, as bênçãos e a graça podem ser suas aqui e agora. Mais uma vez, a marca da espiritualidade gnóstica é facilmente perceptível. Ele quer que tenhamos um pequeno paraíso na terra, exa tamente onde estamos. (...) Você pode realizar seus sonhos antes de ir para o céu! Como você pode fazer isso? Aces sando o poder de Deus dentro de você. (...) Entenda que de todas essas coisas você já foi libertado. Mas aqui está a pegadinha: se você não apreciar e tirar proveito de sua
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Cristianismo sem Cristo liberdade, se você não dispuser seus pensamentos, suas palavras, suas atitudes na direção certa, você não terá be nefício algum. Você pode se sentar e esperar que Deus faça algo sobrenatural em sua vida, contudo a verdade é que Deus está esperando por você. Você deve se levantar em sua autoridade, ter um pouco de determinação e resolução, e dizer: “Eu não vou viver a minha vida na mediocridade, preso a vícios, negativo e derrotado” (grifo do autor).
Deus pode ser a fonte dessa bênção em sentido último, uma vez que ele dispôs as coisas, mas receber realmente o favor de Deus e as bênçãos dele depende inteiramente da nossa atitude, ação e obediência. Osteen dedica um capítulo a “Making Your Words Work for You” [Fa zendo suas palavras trabalharem para você], fornecendo exemplos de pes soas cujas declarações positivas lhes trouxeram saúde, riqueza e felicidade. Em um capítulo intitulado “Have Confidence in Yourself’ [Tenha confiança em si mesmo], Osteen repete seu mantra, novamente torcendo as palavras da Bíblia: A Escritura diz: ‘Nossa fé se toma eficaz quando reconhecemos tudo de bom em nós . Pense sobre isso: nossa fé não é eficaz quando con sideramos nossas mágoas e dores. Não é eficaz quando ficamos focalizados em nossos defeitos ou em nossas fraquezas. Nossa fé é mais eficaz quando reconhecemos as coisas boas que estão em nós”. A coisa mais próxima que eu fui capaz de encontrar do texto citado por Osteen é a declaração de Paulo em 2Coríntios 12.9: “Ele [Jesus] me disse: A minha graça te basta, porque 0 poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse 0 poder de Cristo . É claro que, se este for o versículo que Osteen tinha em mente, ele diz exatamente 0 oposto de sua paráfrase. Na verdade, ele é parte de uma explicação do motivo de Paulo, em contraste com os superapóstolos que estavam liderando os coríntios que andavam perdidos por causa das suas suaves palavras e lisonjas” (Rm 16.18), de não se gloriar em si mes mo, mas em sua fraqueza. De fato, Paulo diz que Deus lhe pôs “um espinho na came” a fim de que ele não se exaltasse (2C0 12.5, 7: veja vs. 5-10). Em momentos de fraqueza, angústia e dificuldade, diz Paulo, quando perdemos nossa autoconfiança e colocamos nossa situação diante de Deus, estamos na melhor posição para Deus mostrar seu poder. Na única referência clara para confiar em Cristo que encontrei em seu livro, Osteen ainda se sente obrigado a nos incluir como objeto de fé: Quando cremos no Filho de Deus, Jesus Cristo, e acreditamos em nós mesmos , aí é que nossa fé se toma viva. Quando acreditamos que nós temos o que é preciso, nós nos concentramos em nossas possibilidades” (grifos do autor).
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Até quando os conceitos de pecado e redenção são empregados, eles são redefinidos. O pecado não é um estado de revolta que herdamos de Adão, são doenças, pobreza e más atitudes que herdamos de nossos ancestrais. Na Bíblia, uma maldição tem seu lugar no contexto da aliança. Por exemplo, nos antigos tratados do Oriente Próximo, que formam o padrão de pensa mento pactuai empregado na Bíblia, um imperador podia trazer juízo sobre uma tribo ou nação rebelde sob seu domínio. Esta sanção era chamada de maldição : a invocação, pelo imperador, das penalidades que eram proferi das para os violadores do tratado. No evangelho da prosperidade, entretanto, a maldição encontra-se mais relacionada ao mundo da mágica - a maneira como costumamos falar de maldições em nossa cultura de hoje. Então, onde as maldições que Deus in voca sobre a humanidade como conseqüência do pecado de Adão no jardim são uma sentença judicial, Osteen fala de maldições hereditárias , que não têm nenhuma referência óbvia ao julgamento divino. O pecado é transfor mado em linguagem de duelo de DNA. Você pode ter herdado os genes de sua avó, que incluem a maldição da diabete, mas “você precisa estabelecer com autoridade e dizer: ‘Minha avó pode ter tido isto [diabete]. Minha mãe pode ter tido isso. Mas, quanto a mim e à minha casa, nós estamos redimi dos da diabete. Eu vou viver sob a bênção e não sob a maldição.’ (...) Este tipo de bênção é para os crentes que não duvidam . Não seria estranho, en tão, se tal ensinamento levar um seguidor sincero a concluir que o fracasso em não ser curado ou em tomar-se financeiramente próspero resulte de sua própria desobediência. Se for diagnosticado com a diabete da vovó, eu seria um cético em vez de um crente? “A Bíblia chama isso de iniqüidade ”, Osteen escreve. As sim, o pecado não é uma condição de corrupção e de culpa inerentes que gera pensamentos desejos e ações pecaminosas, mas sim doenças e padrões de comportamento destrutivos transmitidos através da linhagem da pessoa, “até que alguém se levante e ponha um fim nisso . Obviam ente, esse al guém” é você, não Cristo. O caráter ético do pecado, como condição e ações específicas de trans gressão ou inconformidade com a lei de Deus, é trocado por uma concepção mágica. Ao mesmo tempo, nossa vitória sobre as maldições hereditárias é totalmente administrável por meio da tecnologia espiritual que Deus proje tou. “Deus lhe deu o livre-arbítrio. Você pode optar por mudar. (...) Graças a Deus, você e eu podemos fazer algo sobre isso.” São estas as boas-novas? Osteen redefine a redenção como libertação da dor, da doença e da po breza, bem como das más atitudes e dos hábitos negativos que nossos pais ou avós passaram para nós. “Pense a respeito disso assim: cada um de nós tem uma conta bancária espiritual. Pela maneira como vivemos, acumula mos capital ou armazenamos iniqüidade. Capital seria qualquer coisa boa:
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nossa integridade, nossa determinação, nossa piedade. Isso é acumular bên çãos. Em contrapartida, a iniqüidade inclui nossos maus hábitos, vícios, egoísmo, falta de disciplina”. ’ Em Filipenses 3, o apóstolo Paulo usa a analogia da conta bancária espi ritual para confessar que, apesar de ter sido um fariseu, respeitando escru pulosamente a lei, depois de seu encontro com Cristo ele coloca sua própria justiça na coluna de débito (chamando-a de 44refugo”, v. 8) e se apega exclu sivamente à justiça de Cristo, imputada a ele pela fé somente. Para Osteen, no entanto, é exatamente 0 contrário: 44Sua fidelidade é notada no céu. Você esta acumulando capital tanto para si mesmo quanto para as gerações vin douras . Este tema de acumular capital mediante autoaperfeiçoamento, de fato, percorre todo 0 livro Become a Better You: 44Levante-se a cada dia e dê-lhe o seu melhor. Se você fizer isso, você não apenas vai subir mais alto e fazer mais, mas Deus prometeu que sua semente, sua linhagem familiar até mil gerações, vai ter as bênçãos e 0 favor dele —tudo por causa da vida que você viveu”. Em outro lugar, ele diz: 44Deus mantém registros. Ele vê cada ato de bondade que você pratica. Ele vê cada vez que você é bom para alguém. Ele ouve cada palavra de encorajamento que você fala. Deus tem visto todas as vezes que você sai do seu caminho para ajudar alguém que nunca disse obrigado. Suas boas ações não passam despercebidas pelo Deus Todo-poderoso”. Não se engane, por trás de todos os sorrisos existe uma religião basea da em obras de retidão: 44O plano de Deus para cada uma de nossas vidas é que estejamos continuamente subindo para novos níveis. Mas quão alto vamos chegar na vida e quanto do favor e das bênçãos de Deus experi mentamos está diretamente relacionado ao nosso sucesso em seguir as indicações dele”. Deus 44está esperando por sua obediência para que ele possa liberar mais de sua graça e bênçãos em sua vida. (...) Minha per gunta é: a que altura você quer chegar? Você quer continuar a crescer? Quer ver mais das bênçãos e do favor de Deus? Se assim for, quanto mais alto subimos, mais disciplinados devemos ser; devemos obedecer o mais rápido possível”. Na verdade, não é simplesmente que Deus dá o primeiro passo e então deixa o próximo para nós. A graça é uma recompensa pelos nossos traba lhos. Você não recebe a graça a menos que você aja. Você tem de dar o primeiro passo. (...) Lembre-se: a altura a que você chega em sua vida é diretamente relacionada à sua obediência.” E se alguém tiver alguma dúvida sobre a viabilidade deste plano, Osteen oferece a si mesmo como exemplo: 44Sei que não sou perfeito, mas também sei isto. tenho a consciência limpa diante de Deus. Sei que estou fazendo o meu melhor para agradar a ele. É por isso que posso dormir bem à noite. E por isso que posso me deitar em paz. É por isso que tenho um sorriso no
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rosto. Amigo, mantenha sua consciência em paz e você vai descobrir que a vida fica cada vez melhor”. Ao contrário, Jesus e seus apóstolos ensinaram que a busca do julga mento de Deus por meio de sua lei traz condenação, incomodando minha consciência de que careço da glória de Deus. Minha consciência não é um veredicto positivo no tribunal de Deus quando olho para dentro de mim mesmo. A única razão pela qual posso dormir bem à noite é que, embora meu coração ainda esteja cheio de corrupção e eu não esteja fazendo o meu melhor para agradar-lhe, tenho no céu, à direita do Pai, 0 Filho amado, que não só fez o seu melhor para si mesmo, mas cumpriu toda a justiça para mim, em meu lugar. Assim, vemos, mais uma vez, que Osteen não abandonou o legalismo das gerações anteriores. No mínimo, 0 que fez foi intensificá-lo. Mas seus seguidores não reconhecem o nó que vai se apertando ou os encargos que vão se amontoando, porque Osteen faz parecer tudo muito fácil. Não é fá cil, porém, dizer que nossa saúde, riqueza e felicidade - assim como nossa vitória sobre 0 pecado e a morte —dependem do grau de nossa determinação e esforço. Uma visão fraca do pecado nos coloca em situação de desespero; em vez disso, ele nos encoraja a nos esforçarmos um pouco mais para nos salvarmos. É fácil. Realmente. Enquanto Jeremias diz que 0 coração é mais enganoso que qualquer ou tra coisa (Jr 17.9), Osteen diz que sua confiança diante de Deus está na jus tiça de seu próprio coração: “Posso não ter um desempenho perfeito, mas sei que meu coração está limpo. (...) Da mesma forma, quando você está fazendo seu melhor e deseja fazer 0 que é certo de acordo com a Palavra de Deus, você pode ter certeza de que Deus está contente com você. E claro que ele quer que você melhore, mas ele sabe que todos têm fraquezas”. O pecado é reduzido a “fraquezas e imperfeições humanas” que “passam através de nosso idealismo”, em vez de não se conformarem à lei de Deus. “Conquanto estejamos faz end o nosso melhor, não temos de viver condena dos, mesmo quando cometemos erros ou falhamos” (grifos do autor). Mas esse é 0 problem a: eu não faço 0 meu melhor —não apenas nos dias ruins, mas nos dias bons também. Se, de acordo com a Escritura, nosso melhor não passa de “trapo da imundícia” (Is 64.6), a condição de Osteen é, na verdade, de condenação. As boas-novas da Escritura é que Deus não nos julga de acordo com nossos registros, mas de acordo com o registro de Cristo. Mas Osteen repe tidamente afirma que Deus nos julga - ou melhor, infalivelmente nos apro va - com base em nossa bondade inerente e melhores esforços. Ele acredita que Deus “está sorrindo por causa de mim agora” não por causa de Cristo, mas porque, por mais que eu não seja perfeito, “sei que meu coração está limpo. Dentro de minha melhor capacidade, estou fazendo o que lhe agrada.
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(...) Francamente, não é por causa do que você fez ou não; Deus ama você por quem você é e por quem ele é. Deus é amor”. O Deus de Osteen é simples. Caracterizado por apenas um atributo (amor), o perdão de Deus é barato. Seu amor não exige coerência com sua justiça, santidade e retidão. Portanto, não é amor misericordioso — ou seja, compaixão para com aqueles que merecem julgamento. Em contraste, 0 Deus da Bíblia é muito mais interessante e majestoso. Para encontrar uma forma de amar os pecadores sem violar seu caráter sa grado, Deus deu seu Filho para cumprir a lei e suportar nosso julgamento em nosso lugar. O enredo do drama bíblico de redenção é rico, enquanto a história Osteen é pobre - comigo, em vez de Deus, no centro. Mais uma vez, a mensagem de Osteen - embora, talvez, um pouco mais explicitamente orientada para o evangelho da prosperidade que a maioria - não é assim tão diferente da tendência geral de um monte de religiões e espiritualidade populares que permeiam até mesmo nossos próprios círcu los evangélicos hoje. O foco está em nós, em vez de em Deus, em nossa felicidade sem a santidade de Deus, em nossa ascensão elevada por esforço moral, e não por sermos receptores da obra salvadora de Deus em Jesus Cristo. Osteen tranqüiliza seus leitores: “Sei também que, porque estou honrando a Deus e me esforçando para manter a atitude certa, ele vai me recompensar - até mesmo quando meus planos falham, ou quando as coisas não saem do meu jeito” . Tendo trocado 0 evangelho da obra, da morte e da ressurreição de Cristo por uma conversa estimulante sobre nosso fazer, declarar e elevar-se, Os teen pode declarar: “O mundo não precisa ouvir outro sermão tanto quanto precisa ver um” . Agora nós somos as boas-novas. Entretanto, uma vez que somos colocados de volta sob a lei da justiça, com base em que Osteen pode afirmar que Deus só considera as boas obras? Porventura, existe uma única passagem na Bíblia que separe o registro de Deus sendo feito desta forma, para que nossas boas obras possam trazer a gra ça e a bênção dele, mas nossos pecados não contem de jeito nenhum? Se for mos herdar as promessas de Deus pela “justiça decorrente da lei” (Rm 10.5), então o agradável panorama de Osteen dificilmente parece justificável. Assim como Joel Osteen decidiu por si mesmo a mensagem que vai pre gar, ele também determinou sua própria vocação. Em entrevistas, ele disse que não é chamado para explicar a Escritura ou expor doutrina. No livro de que estamos tratando, ele acrescenta: “Não sou chamado para explicar cada pequena faceta da Escritura ou para expor, em profundidade, doutrinas teológicas ou disputas que não alcançam as pessoas reais onde elas vivem. Meu dom é encorajar, desafiar e inspirar”. Embaixadores não escolhem o que dizem. Como ministros do evange lho, nosso dom é anunciar “todo 0 desígnio de Deus” (At 20.27). Como
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Paulo diz em Romanos 10, não ascendemos a Deus; ele desce até nós em graça. Ele envia embaixadores que vão pregar as boas-novas que lhe foram designadas; eles não enviam si a mesmos, mas são enviados por alguém para desempenhar a missão de outra pessoa. “Assim, a fé vem pela prega ção, e a pregação, pela palavra de Cristo” (Rm 10.17).
A g l ó r i a e a c r u z
Aga rre toda a glória agora. Sem cruz, sem ira, s e m julga mento. Sim ple s mente seja tudo o que você pode ser. Somos bombardeados constante
mente, em nossa cultura, pelos apelos ao nosso narcisismo nativo. A ver são religiosa desta mensage m —difundida, há algum tem po, pelos liberais e por muitos evangélicos de hoje —faz de Deus um meio para um fim, e não a finalidade para a qual fomos criados. Em todas as suas variedades, esta é a teologia da glória. Mas não é a glória que o evangelho promete para 0 porvir, para aqueles que, nesta vida, compartilham do sofrimento e da humilhação de Cristo. É a glória que nós exigimos aqui e agora, pelos nossos próprios esforços, negando a realidade do pecado e da morte. Evidentemente, Osteen está reagindo contra o legalismo da repreen são de uma geração anterior, que vencia as pessoas em favor das regras. No entanto, a alte rnativa de Osteen é diz er às pessoas: “Relaxe e dê um tempo”, pedindo a Deus para “ajudá-lo a fazer melhor na próxima vez”. Contudo a mensagem bíblica é muito mais profunda e rica, tanto nas más quanto nas boas notícias. As más notícias são muito piores do que cometer erros ou deixar de viver de acordo com as normas do fundamentalismo legalista. Os melhores esforços dos melhores cristãos, nos melhores dias, na melhor disposição do coração e mente, com os melho res motivos, carecem da verdadeira justiça e santidade que Deus requer. Nossos melhores esforços não podem satisfazer a jus tiç a de Deus. No entanto, as boas notícias são que Deus já cumpriu sua própria justiça e nos reconciliou consigo mesmo por meio da vida, da morte e da ressur reição de seu Filho. A santa lei de Deus não pode nos condenar porque estamos em Cristo. Em vez de nos apontar para Cristo, no qual os registros de Deus foram justame nte satisfeitos e a transcrição judicial deles foi pregada na cruz (Cl 2.14), Osteen descarta a ideia de qualquer registro negativo. D eus está apenas mantendo registros daquilo “que você está fazendo certo , de sua “decisão consciente para ser melhor, para viver bem e confiar nele. Deus está satisfeito porque você é gentil e cortês com as pessoas”. Portanto, nada pode pesar contra nós (não por causa de Cristo, mas simplesmente porque Deus não registra falhas), porém o favor de Deus depende de seu registro de nossas boas ações. Isso não significa que, se eu não obedecer ,
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não vou receber a bênção de Deus? E isso não significa que Deus está, de fato, mantendo um registro dos pecados? Longe da luta de Paulo em Romanos 7, Osteen faz parecer possível con trolar 0 problema do pecado por nossa própria perspectiva positiva. “Se você quiser pecar, você pode pecar. Eu peco o quanto quiser”, diz ele. “A boa notícia é que eu não quero. (...) Pare de viver em tomo de tudo o que há de errado com você e de ficar fazendo um inventário do que você não é. A Bíblia diz, em Hebreus: ‘Desvie 0 olhar de tudo o que o distrai’.” Novãmente, Osteen distorce a Bíblia para apoiar sua ideia. Hebreus 12.1-2, na verdade, diz. Também nós, visto que temos a rodear-nos tão grande nuvem de testemunhas, desembaraçando-nos de todo peso e do pecado que tenazmente nos assedia, corramos, com perseverança, a carreira que nos está proposta, olhando firmem ente para 0 Autor e Consumador da fé, Jesus, 0 qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia, e está assentado à destra do trono de Deus”. Em outras palavras, o conselho em Hebreus é olhar para longe de nós mesmos - tanto de nossos pecados quanto de nossas boas obras - e não deixar nada nos desviar de Cristo. No entanto, a mensagem inteira de Os teen representa uma distração de Cristo. Quem precisa de Cristo, se este é o evangelho: “Você não é perfeito, mas você está tentando viver melhor e Deus olha para o seu coração. Ele vê 0 interior e está mudando você pouco a pouco”? As más notícias são muito piores do que não estarmos experimentando saúde, riqueza e felicidade agora. Na verdade, estamos morrendo, e nada pode reverter esse fato. E fica pior. A morte é apenas um sintoma. Nós todos vamos ter uma causa de morte diferente mencionada no laudo médico. A morte, entretanto, é, em si, o resultado de uma condição que todos parti lham. O salário do pecado é a morte” (Rm 6.23); “ 0 aguilhão da morte é 0 pecado, e a força do pecado é a lei” (1C0 15.56). Repare que não são peca dos (ações específicas), mas pecado (uma condição) que exige nossa morte. Mesmo agora, estamos caindo aos pedaços em nosso caminho para a morte - ainda que estejamos tendo nosso melhor da vida agora. Ao mesmo tempo, as boas-novas são muito maiores do que encontrar uma maneira de mascarar nossos sintomas. Em ambas as passagens citadas anteriormente, encontramos 0 contraponto às más notícias: “O salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm 6.23; grifo do autor). “O aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei. Graças a Deus, q ue nos dá a vitória po r intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo ” (1C0 15.56-57; grifo do autor). A vitória prometida é muito maior do que alívio do estresse, da tristeza, da solidão, da decepção e, até mesmo, da doença que leva à morte: é a vitória sobre a morte eterna, por meio da ressurreição no último dia, ao compar
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tilharmos da vitória de Cristo sobre 0 túmulo. “Quando 0 corruptível se revestir da incorruptibilidade, e o mortal se revestir da imortalidade, então se cumprirão as palavras que estão escritas: ‘Tragada foi a morte pela vitó ria. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?’” (1C0 15.54-55). Cristo não lidou com os sintomas, ele foi direto à fonte: a maldição que a lei impõe, como a justa penalidade pela nossa participação no pecado de Adão. Como o primeiro Adão trouxe a morte, o último Adão trouxe a vida eterna (1C0 15.20-24). Muito maior do que viver mais tempo e se divertir mais, desfrutando as circunstâncias, é a insondável riqueza de nossa vida com Deus, reconci liados, mesmo quando éramos inimigos; vivificados, mesmo quando estávamos mortos espiritualmente; trazidos para perto, mesmo quando éramos estranhos; adotados como co-herdeiros de toda a herança, mesmo quando ainda éramos hostis para com as coisas de Deus. Ainda agora, começamos a desfrutar uma antecipação desta festa, como aqueles para os quais “agora, pois, já nenhuma condenação há” (Rm 8.1). Você não precisa de Cristo para as coisas que Osteen e muitos outros pregadores prometem hoje em dia. Não precisa da Bíblia, apenas de Tony Robbins. Não precisa do tipo de redenção que é prometida nos Evangelhos. Tampouco fica claro por que você precisa de Deus simplesmente para ter uma visão mais positiva sobre a vida. A mensagem de Joel Osteen repre senta um fenômeno muito mais amplo de assimilação do evangelho pela cultura. Seja qual for a doutrina à qual uma pessoa possa dar um parecer favorável, a história em que a religião contemporânea vive, se move e exis te faz a mensagem soar basicamente a mesma, independente de se tratar de conservadores ou liberais, batistas ou seguidores da Nova Era, pentecostais ou católicos, reformados ou arminianos, unitaristas ou luteranos. Tão he rético quanto isso possa parecer hoje, provavelmente vale a pena dizer aos americanos que não precisam de Jesus para ter famílias, finanças, saúde ou mesmo moralidade melhores. Ir até a cruz significa arrependimento - não acrescentar Jesus como um personagem de apoio para um script suficien te de outra forma, mas sim jogar fora o próprio script para fazer parte do drama escrito por Deus. Trata-se da morte e da ressurreição, não de treino e transformações. Quando tentamos encaixar Deus no filme da nossa vida , o enredo fica todo errado - e não apenas errado, mas trivial. Quando somos retirados de nosso próprio drama e representados como personagens do desenrolar do enredo de Deus, nos tomamos parte da maior história já contada. Por meio do julgamento (lei) da Palavra de Deus e da salvação (evangelho), somos transferidos de nossos próprios scripts inúteis e inseridos na grande narrativa que gira em tomo de Jesus Cristo. No processo, como Dietrich Bonhoeffer nos lembra:
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Cristianismo sem Cristo Somos desarraigados de nossa própria existência e levados de volta para a história sagrada de Deus na Terra. Ali, Deus tratou conosco, com nossas necessidades e nossos pecados, por meio da ira e da graça divinas. O importante não é que Deus seja espectador e participante em nossa vida hoje, mas que sejamos ouvintes atentos e participantes na ação de Deus na história sagrada, na história de Cristo na Terra. Deus está conosco hoje, enquanto estivermos aqui. Nossa salvação está “fora de nós mesmos” (extra nos). Eu encon tro salvação não na história de minha vida, mas somente na história de Jesus Cristo. (...) O que chamamos de nossa vida, de nossos problemas e de nossa culpa não é, de jeito nenhum, toda a realidade; nossa vida, nossa necessidade, nossa culpa e nossa libertação estão nas Escrituras.13
Jesus sabia por que veio - e não era para ajudar as pessoas a encontra rem um pouco mais de felicidade e sucesso na vida. Na verdade, sua vida foi cheia de sofrimento, sob a longa sombra do Calvário. “Precisamente com este propósito vim para esta hora”, ele disse, referindo-se à cruz (Jo 12.27). “O Filho do homem veio buscar e salvar 0 que estava perdido” (Lc 19.10; NVI). Os discípulos pensaram que 0 caminho para Jerusalém levava à vitória. Entrando como vencedores ao lado do Messias, expulsariam os romanos e inaugurariam o reino eterno de Deus. Cada vez que Jesus os lembrava de que estava indo para Jerusalém para morrer em uma cruz e ser ressuscitado no terceiro dia, eles ou não respondiam ou (especialmente no caso de Pe dro) o repreendiam por seu pensamento negativo (Mt 16.21-23; Mc 8.31 38; 10.32-45). Desde sua tentação por Satanás, Jesus tinha recebido a oferta de glória sem cruz, mas era uma falsa promessa. Por isso, Jesus repreendeu Pedro por tentar dissuadi-lo da cruz, dizendo: “Arreda, Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas de Deus, e sim das dos homens” (Mt 16.23). Podemos ser gratos por Jesus ter abraçado a cruz e, em seguida, entrado em sua glória, em vez de exigir glória antes. Paulo regularmente aborda este tema. Familiarizado com o sofrimento próprio, ele estava sempre alegre não por causa de suas circunstâncias, mas por causa da promessa do evangelho de que, depois de sofrer por um pouco de tempo, vamos participar da glória da ressurreição de Cristo. Ele advertiu a igreja sobre os falsos mestres que enganam “com suaves palavras e lison ja s” (Rm 16.18).
13Bon hoe ffer, Dietrich. Life Together. Minneapolis: Fortress, 1996, pág. 62.
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O evangelho da saúde e da riqueza que Osteen prega não pode lidar com o sofrimento. É uma teologia da glória: a oferta dos reinos do mundo aqui e agora. É possível que aqueles que tomarem este caminho tenham sua melhor vida agora. Mas, mesmo hoje, não há lugar para o sofrimento nessa religião essencialmente norte-americana - nem o sofrimento de Cristo por nossos pecados nem nosso sofrimento por estarmos unidos a ele. Em uma entrevista do New York Times , perguntaram a Osteen por que não há sofri mento. Embora ele esteja correto de que não podemos resolver esse dilema filosoficamente, não ofereceu nenhuma sugestão de que seja resolvido, em termos históricos, pela ressurreição de Cristo como as primícias da nova criação. “A resposta é que eu não sei”, disse o Sr. Osteen. “Tratamos todas as semanas de alguém cujo filho foi morto ou que perdeu seu emprego. Eu não entendo isso. Tudo o que você pode fazer é deixar Deus confortá-lo e seguir em frente. Parte da fé é não entender.”14 Como pode Deus confortar os que choram sem o evangelho? Mesmo aqui, Osteen facilmente limita a dimensão trágica de nossa existência, so brecarregando os crentes, mais uma vez, com seu dever de nomear e afir mar prosperidade em sua vida. Grande coisa a mensagem mais “positiva” de Joel Osteen: não tem nada a dizer às pessoas que estão em situação de desespero, exceto que “vai melhorar”. E se não melhorar, pelo menos não nesta vida? Poderia a mensagem de Osteen alcançar alguém que está em estágio terminal de AIDS? Ou provocar outra coisa que não cinismo em uma mãe segurando seu filho morto? No final, 0 favor de Deus - medido em termos temporais - depende inteiramente de nossa obediência. Osteen diz: “Acredito que uma das prin cipais formas pelas quais crescemos em favor é declarando. (...) E alguns de vocês estão fazendo 0 seu melhor para agradar ao Senhor. Você está vivendo uma vida santa e consagrada, mas você não está realmente experi mentando 0 favor sobrenatural de Deus. E é simplesmente porque você não 0 está declarando. Você tem de dar vida à sua fé, declarando-a”.15 Assim, a única resposta de Osteen para aqueles que estão se consumindo na tentativa de merecer o favor de Deus - embora dita com um sorriso - é fa ze r mais. “Acredite mais em seu milagre e Deus irá mudar sua situação.” É este um Deus mais amável e gentil ou um tirano sinistro que fica sempre levantando o arco, cada vez mais alto, para a gente saltar antes que ele nos dê o que queremos? O cristianismo anuncia as boas-novas de que Deus em Cristo já nos sal vou da condenação da lei, destronou a tirania do pecado e nos libertou do 14 Citado em “A Church T hat Packs Them In, 16,000 At a Time”, Ne w York Times, 18 de julho de 2005. 15Audio clip sobre The Bible Answer Man , transmissão de rádio, 26 de abril, 2004.
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regime opressor de Satanás. Mas fica ainda melhor: um dia, essa salvação será consumada no dom da ressurreição, da glorificação e da vida eterna livre da presença do pecado, da dor, do mal e da violência. De acordo com a religião popular dos EUA, podemos nos salvar, com a ajuda de Deus, de nosso sentimento de culpa e de nossa infelicidade. Osteen, pelo menos, nos ajudou a ver quão gritante é 0 contraste entre o evangelho de Cristo e a propaganda motivacional da cultura popular. C. S. Lewis observou, certa vez: “Não fui sempre um cristão. Não pro curei a religião para me fazer feliz. Sempre soube que uma garrafa de Porto faria isso. Se quiser uma religião para fazer você se sentir realmente con fortável, certamente não recomendo 0 cristianismo” .16 Em outro texto, ele escreveu: Estamos defendendo o cristianismo; não “a minha reli gião”. (...) A grande dificuldade é conseguir fazer as au diências modernas perceberem que você está pregando o cristianismo, única e exclusivamente, porque você acre dita que é a verdade; as pessoas sempre supõem que você está pregando porque gosta dele ou porque acha que é bom para a sociedade, ou algo desse tipo. Agora, uma distinção claramente mantida entre o que a fé, na verdade, diz e o que você gostaria que ela dissesse, ou o que você enten de, ou o que você acha pessoalmente útil, ou pensa que é provável - isso força seu público a entender que você está preso aos seus dados, assim como o cientista está amar rado aos resultados dos experimentos; ou seja, que você não está apenas dizendo o que gosta. Isso imediatamente o ajuda a perceber que o que está sendo discutido é uma questão sobre 0 fato objetivo - não conversa fiada sobre ideais e pontos de vista.17 Tudo depende de começarmos com o que decidimos ser nossa maior necessidade ou com o Deus em cuja presença descobrimos necessidades que nunca antes soubemos que tínhamos. Se começarmos com nós mesmos e com nossas necessidades sentidas, podemos ter espaço para uma espiritualidade que nos auxilia em nossa autorrealização e sucesso na vida, mas a questão principal será como pode mos justificar Deus em um mundo tão obviamente confuso. Se começarmos 16Lewis, C. S. “Answ ers to Questions on Christianity”, God in the Dock. Grand Rapids: Eerdmans, 1970, pág. 58. 17Lewis, “Christian Apologetics”, God in the Dock, pág. 91.
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com Deus - com sua santidade, justiça e retidão, bem como com seu amor, misericórdia e graça - então haverá uma questão muito diferente: Como pode eu, um pecador, ser justificado perante este Deus? Descrevendo seu próprio processo de conversão, Lewis explica: “Eu era o objeto, em vez de 0 sujeito neste negócio. Estava decidido, contente com o modo como as coisas ocorriam, mas, no momento em que ouvi Deus dizendo: ‘Largue sua arma e vamos conversar’ (...) escolhi, mas não parecia ser possível fazer o contrário”. 18 Não “largamos [nossa] arma” até que tenhamos desistido até mesmo da religião e da espiritualidade como nossa forma de ascensão ao céu. Não sabemos o que é relevante ou de maior preocupação até que a Palavra de Deus se dirija a nós. Discursos sobre 0 homem moderno podem ser ocasio nalmente interessantes, diz Karl Barth. Mas quem e que [humanidade] está diante de Deus, como aquele a quem é dirigido seu evangelho, é algo que Narci so, como tal, não pode descobrir em qualquer época, mes mo com toda a exatidão amorosa de sua autoanálise, autoavaliação e autodescrição, e algo que ele não pode aceitar, mesmo em sua sinceridade mais implacável. Para conhe cer a si mesmo como aquele a quem se destina, dirige e é conhecido por Deus no evangelho, ele deve, primeiro, ser radicalmente perturbado e interrompido no trabalho de autoanálise, recebendo o evangelho de Deus.19 Por meio da fé em Cristo, temos a garantia de que o juízo final já foi de terminado em nosso favor, apesar de nossa pecaminosidade, mesmo como cristãos. No meio de nosso sofrimento, dor e até mesmo da morte, podemos com segurança, nos apegar à promessa que Paulo cita de Isaías 64.4, ou seja, que “nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam” (1C0 2.9). Onde o evangelho oferece salvação da culpa e da tirania do pecado ago ra, bem como da presença e dos efeitos do pecado no futuro, a mensagem bem americana de Osteen apresenta o evangelho como salvação dos sinto mas do pecado agora, sem qualquer proclamação clara da libertação muito maior da ira de Deus. Por não enfrentar as más notícias, Osteen realmente não tem nenhuma notícia boa. Parafraseando a descrição que Jesus faz de sua geração em 18Lewis, “Cross-Examination”, God in the Dock , pág. 261. 19Barth, Karl. Church Dogmatics , IV, 3.2, pág. 803.
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Lucas 7.31-35, a mensagem de Osteen nos ensina a não cantar blues nem o hino triunfai. É mais como um zumbido monótono, constante e sem ritmo, que ouvimos no elevador ou no shopping, mantendo tudo tranqüilo e sem perturbação. As melhores notícias que Osteen tem para nós nesses livros são que, ao seguir os sete passos, ele conseguiu boas vagas de estacionamento, o me lhor assento em um restaurante e um upgrade inesperado para a primeira classe no avião. Mas 0 evangelho nos diz que Deus deu todos os passos até nós não para nos salvar do desconforto ou dos males que são comuns à humanidade nesta era presente, e sim da penalidade do pecado e da morte. Vestidos com a justiça de Cristo, não mais condenados, somos adotados e vivificados em Cristo: “Se somos filhos, somos também herdeiros, herdei ros de Deus e co-herdeiros com Cristo; se com ele sofremos, também com ele seremos glorificados” (Rm 8.17). Escolhidos por Deus antes da criação, redimidos por Cristo, justificados, renovados, sendo santificados, e, um dia, ressuscitados corporalmente em glória - que notícia poderia ser melhor do que esta? Paulo acrescenta: Para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser re velada em nós. A ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus. Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele que a sujeitou. (...) Porque sabemos que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora. E não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espíri to, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo. Porque, na esperança, fomos salvos. Ora, esperança que se vê não é esperança; pois o que alguém vê, como o espera? Mas, se esperamos o que não vemos, com paciência o aguardamos (Rm 8.18-20, 22-25).
Como transformamos boas-novas em bons conselhos Criar um filho de seis anos e trigêmeos de quase cinco anos de idade requer todos os conselhos que minha mulher e eu pudermos receber. Os livros de James Dobson têm sido muito úteis, mas também nos beneficiamos imen samente da sabedoria de não cristãos, especialmente de meu barbeiro e de sua mulher, cuja família tem sido de grande ajuda, de várias maneiras. As sim como as pessoas podem não conseguir encontrar a melhor diversão na igreja, elas talvez não obtenham a mesma qualidade de conselhos de seu pastor para a vida diária como podem receber do Dr. Phil ou da Dra. Laura. Você simplesmente não necessita da Bíblia para saber que seus filhos pre cisam de padrões regulares de sono; que o segredo para um bom casamento é o diálogo; que o divórcio é, normalmente, devastador para as crianças, e que, se você não administrar seus cartões de crédito, eles dominam você. A Bíblia nos dá muito mais sabedoria que isso, entretanto existe um número grande de famílias não cristãs que realmente obtêm um melhor desempenho em fazer a coisa certa que algumas famílias cristãs. Não é de se admirar que, hoje, a pessoa com um assuma que todas as religiões, basicamente, dizem a mesma coisa e que escolher uma como sendo a única verdadeira é arrogância. Afinal, quem não crê na regra de ouro: “Tudo o que quiseres que os homens te façam, faz tu do mesmo modo para com eles”? A lei moral que encontramos na Bíblia (especial mente os Dez Mandamentos) é bastante similar aos códigos de outras religiões e pode ser encontrada em civilizações que antecedem a entrega da lei no Monte Sinai. Uma parte de sua sabedoria flui do relacionam ento especial entre Deus e Israel, mas grande parte dela (especialmente Pro vérbios) é simplesmente uma articulação clara da maneira que Deus ligou todo mundo na criação.
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Se a religião é basicamente ética - fazer com que as pessoas façam a coisa certa - então, por que ficar incomodado por causa das diferentes for mas históricas, das doutrinas, dos rituais e das práticas que distinguem uma versão de moralidade da outra? Deixe mil flor es desabrocharem '* desde que as pessoas estejam sendo ajudadas, certo? Reduza 0 cristianismo a um bom conselho e ele se harmoniza perfei tamente à cultura do treinamento de vida. Pode parecer relevante, mas, na verdade, ele acaba perdido no mercado das terapias moralistas. Quando anunciamos o cristianismo como o melhor método de aprimoramento pessoai, inclusive com depoimentos sobre 0 quanto estamos cada vez melhores desde que “entregamos tudo”, os não cristãos podem, com toda razão, nos questionar: “Que direito você tem de dizer que a sua é a única fonte de feli cidade, significado, experiências emocionantes e aperfeiçoamento moral?”. Jesus claramente não é a única forma eficaz para uma vida melhor ou para um eu melhor. Qualquer pessoa pode perder peso, parar de fumar, melhorar um casamento e se tomar mais agradável sem Jesus. O que distingue 0 cristianismo, em sua essência, não é seu código mo ral, e sim sua história - a história de um Criador que, embora rejeitado por aqueles que criou à sua imagem, se inclinou para reconciliá-los consigo mesmo por meio de seu Filho. Essa não é uma história sobre o progresso do indivíduo para o céu, e sim a narrativa dos acontecimentos históricos da encarnação de Deus, da expiação, da ressurreição, da ascensão e do retomo, bem como da exploração de seu rico significado. Em sua essência, esta his tória é um evangelho: as boas-novas de que Deus nos reconciliou consigo mesmo em Cristo. Em 1Coríntios, Paulo declara que os gregos (basicamente gentios) não entendem o evangelho porque estão à procura de sabedoria. A filosofia grega era obcecada com ter uma vida boa, e havia diversas escolas de pensamen to sobre como alcançá-la. Assim, é surpreendente que, quando 0 apóstolo dos gentios conseguiu um lugar no fórum dos filósofos em Atenas, ele não tenha oferecido Cristo como 0 melhor caminho para “uma vida melhor ago ra”, mas tenha contado a história de como Deus é o Criador, não precisando de nada de nós, no entanto se inclinando para nos salvar por intermédio de seu Filho. Agora, todos devem se arrepender e se voltar para Cristo, pois Deus revelou a iminência do juízo final pela ressurreição de Jesus dentre os mortos (At 17). Paulo lembra os crentes de Corinto de que, apesar de ser loucura para os gregos e pedra de escândalo para os judeus, “para os que foram chamados, '* Expressão que foi utilizada por Mao Tse-Tung como slogan em uma campanha comu nista, na China. Ela tem por significado que se deve encorajar diferentes ideias, de fontes diversificadas [N. da R.].
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tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1 Co 1.24-25). O verda deiro poder e sabedoria não são encontrados em princípios para nossa vida vitoriosa, mas no anúncio da vitória de Deus em Cristo. Na verdade, Cristo não se limita a nos mostrar a sabedoria, ele “se nos tomou (...) sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção” (v. 30). Esta é exatamente a mesma situação na qual nos encontramos hoje, com 0 mundo dizendo que aceita nosso conselho prático (claro, comparando-o com outras terapias espiritu ais e morais), contanto que fiquemos longe do escândalo de Cristo e de sua morte expiatória pelos pecadores. Claro que há sabedoria divina nas Escrituras. O Deus que nos justifica por meio da fé à parte da lei também nos santifica e nos conduz por sua lei. No entanto, a sabedoria principal da Bíblia é a pessoa e obra de Cris to, prometidas na lei e nos profetas e cumpridas na nova aliança. Nada se compara à sabedoria que Deus tem mostrado na salvação dos pecadores. O alerta de J. Gresham Machen dirigido ao liberalismo protestante pode ser facilmente dirigido aos evangélicos de hoje: “O que eu preciso, antes de tudo, não é de exortação, mas de um evangelho; não de instruções para me salvar, mas do conhecimento de como Deus me salvou. Você tem alguma boa-nova? Esta é a pergunta que faço a você. Sei que suas exortações não me ajudarão. Contudo, se alguma coisa foi feita para me salvar, você vai ou não me contar os fatos?”.2 No ano passado, tive de retirar minha família do Sul da Califórnia por causa de incêndios devastadores que assolaram 0 local. Enquanto escrevia o primeiro esboço deste capítulo, não tinha certeza se nossa casa ou 0 se minário onde leciono ainda estavam de pé. A noite, no domingo anterior, tínhamos ido dormir preocupados; eu acordei às quatro da manhã da segun da-feira e liguei a televisão no noticiário. Poucas horas depois, estávamos empacotando uns poucos objetos de valor e levando a família para um lugar seguro. Minha esposa e eu precisamos de uma mudança de paradigma. É muito difícil mudar de “posso resolver isto” para “corra para as colinas!”. Uma mudança semelhante de paradigma é exatamente do que precisa mos se quisermos escapar “do furor da sua [de Deus] ira” que está chegando sobre o mundo (Ap 16.19). Temos de ser despojados de nossas folhas de fi gueira a fim de sermos vestidos com a justiça de Cristo, para que possamos estar de pé no julgam ento de um Deus santo. A questão é saber se o objetivo do ministério, hoje, é tirar nossas folhas de figueira para que possamos ser vestidos com Cristo ou nos ajudar a acrescentar mais algumas folhas. 2Machen, J. Gresham. Christian Faith in the Modern World. Nova York: Macmillan, 1936, pág. 57.
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Notícias é um tipo particular de comunicação. Elas vêm até nós de fora, tirando-nos de nossas atividades para ouvir sobre alguma coisa que acon teceu. Se for uma notícia bastante importante, pode nos mudar para sem pre. Alguns leitores vão se lembrar do lugar onde estavam quando leram a manchete “Vitória na Europa!”. Na qualidade de beneficiários do trabalho sacrificial de outras pessoas no campo de batalha, aqueles que receberam a notícia foram mudados por ela. Em vez de simplesmente irem para 0 trabalho ou voltarem para casa da escola com uma sensação inquietante de guerra, elas começaram a dançar com estranhos na rua. Há as más notícias também. Muitos se lembram de onde estavam quando souberam que John F. Kennedy tinha sido assassinado ou quando viram, pela primeira vez, as imagens da destruição das Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001. Aqueles que receberam o comunicado da morte de seus queridos ou de uma doença incurável sua nunca mais foram os mesmos depois. Notícias organi zam, desorganizam e reorganizam não só nosso sentido de mundo que nos rodeia, mas 0 mundo dentro de nós. A mensagem central do cristianismo não é uma cosmovisão, um modo de vida ou um programa de mudança pessoal e social: é um evangelho. A partir da palavra grega para “boa-nova”, normalmente usada no contexto de anunciar uma vitória militar, o evangelho é o relato de um mensageiro nomeado que chega do campo de batalha. Por isso, o Novo Testamento faz r eferência aos ofícios de apóstolo (representante oficial), pregador e evan gelista, descrevendo os ministros como arautos, embaixadores e testemu nhas. O trabalho deles é entender corretamente a história e depois relatá-la, garantindo que a mensagem seja entregue pela palavra (pregação) e pelo serviço (sacramento). O resultado é uma igreja, uma embaixada do Deus Trino, no meio dessa era de infortúnios, com todo o povo de Deus dando testemunho dos atos poderosos da redenção de Deus. Não é por acaso, então, que essa história da redenção é cham ada de boas-novas. Se fosse apenas uma informação ou um programa de autoaperfeiçoamento, seria chamada de outra coisa, algo como bom conselho , boa ideia ou boa inspiração. Mas é boa-nova porque é um anúncio de algo que alguém já conseguiu para nós. Quando nos desviamos desta comissão, começam os a pensar em nós não como embaixadores de um grande Rei e testemunhas daquilo que alguém fez por nós, mas como as estrelas do show. Em vez de relatar as notícias, nos tornamos as notícias. Na verdade, atualmente ouvimos os cristãos, m ui tas vezes, falarem de “viver 0 evangelho” e de “ser 0 evangelho” como se tudo o que fazemos e somos pudesse ser considerado um compleme nto para a vitória de Deus em Cristo Jesus. Em vez de embaixadores, arautos, repór teres e testemunhas, os pastores se tomam empresários, gestores, técnicos, terapeutas, gums do marketing e especialistas em comunicação.
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Com esta transição, 0 foco necessariamente recai sobre o que fazemos e o papel de Jesus é reduzido a um exemplo. Livros e sermões que ofere cem bons conselhos são mais bem classificados na escala de relevância que aqueles que oferecem as boas-novas. Basta visitar a livraria cristã local e comparar 0 número de livros sobre a pessoa e obra de Cristo com os corredores de literatura de autoajuda cristã. Contudo, a Bíblia fornece um foco muito diferente. Com a exceção de umas poucas passagens im portantes que nos dizem para seguir o exem plo de Cristo de am or sofredor em favor de outros, 0 Novo Testamento deixa claro que Jesus é ímpar em todos os sentidos: em quem foi, no que fez e no que disse. Somente ele podia ser Deus encarnado; somente ele poderia produzir milagres que eram sinais de sua divindade e missão messiânica; somente ele poderia inaugurar o reino com suas bênçãos e maldições; somente ele poderia morrer como um sacrifício expiatório pelos pecadores e ser ressuscitado como as primícias dos que dormem. Quando se espera que os pastores sejam treinadores mandando nos jo gos e que os seus fiéis sejam “somente estrelas” para levar o time de Jesus à vitória nas guerras culturais, o foco necessariamente recai sobre o que fazemos e não sobre o que Deus fez, assim como em nossas histórias e estratégias, e não nas histórias e estratégias de Deus. Mas isso significa que grande parte de nosso ministério, hoje, é lei sem evangelho, exortação sem notícias, instruções sem anúncio, obras sem credos, com a ênfase em “o que teria feito Jesus?” em lugar de “o que Jesus fez?”. Nenhum de nós está imune a esta acusação de que estamos perdendo nosso foco sobre a maior história jamais contada, a confiança nela e até mesmo, cada vez mais, nosso conhecimento dela. Outra maneira de falar sobre a diferença entre lei e evangelho é a dis tinção, no próprio idioma grego, entre o modo imperativo e o indicativo. Um indicativo nos diz 0 que é, de fato, o caso: por exemplo, o gato está no tapete. Um imperativo nos diz para fazer alguma coisa: ponha o gato no tapete. “Esforce-se mais” é um imperativo, não um indicativo. O modo em si (facilmente percebido no idioma grego) nos diz que isto é lei e não evangelho. Eu realmente preciso me esforçar mais, isso não está em discussão. A questão é se exortações para me esforçar mais, e até mesmo dicas especí ficas sobre como fazer isso, garantem alguma possibilidade de me levar a qualquer coisa que não seja morte espiritual à parte do evangelho. Ao nos voltarmos para a Palavra de Deus com a distinção entre lei e evangelho em mente, podemos aceitar a força total de sua vontade moral, sem tentar enfraquecê-la. Não amamos a Deus e 0 nosso próximo como Deus espera. Portanto, estamos falhando em ser tudo o que podemos ser e perdendo o melhor de Deus para nossa vida, e somos condenados como
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transgressores da vontade santa de Deus. Nossa justiça é “trapo da imundícia” (Is 64.6). Por meio do evangelho, entretanto, o Espírito nos veste com a justiça de Cristo (justificação) e nos renova (regeneração), conformandonos diariamente à imagem de Cristo (santificação). Durante todo 0 tempo, a lei me diz 0 que Deus requer, mas somente o evangelho traz a salvação tanto da sentença justa da lei como do domínio do pecado e da morte.
C o n f u n d i n d o l e i e e v a n g e l h o : l e g a l i s m o f á ci l d e o u v i r
Abrandar a seriedade da lei de Deus e 0 fato de que permanecemos diante do juízo dele como transgressores pode parecer mais tolerante, mas não é. Na verdade, é cruel. Em vez de acabar com todas as tentativas de se levan tar até Deus em autoconfiança, dando às pessoas um Salvador que cumpriu tudo para nosso resgate, este legalismo fácil de ouvir perpetua uma vida de constante ansiedade. Houve um tempo em que identificávamos o legalismo quando 0 víamos: o evangelista do estilo antigo, pregando fogo e enxofre como forma de pôr as pessoas no caminho certo. Hoje, porém, a acusação de legalismo dificilmente parece razoável. Tal como as regras dos fariseus, 0 antigo legalismo substituiu seus pró prios regulamentos por questões mais pesadas do que, na verdade, as or denadas por Deus. O pecado não era um incidente que corrompeu nossas melhores obras, mas a violação de certos tabus. Não tínhamos, necessaria mente, de amar perfeitamente a Deus e 0 próximo, mas tínhamos de ficar fora da cadeia e dos salões de bilhar. Além disso, tais infrações podem nos fazer perder joias em nossa coroa ou provocar 0 juízo de Deus em nos sa vida. Se enfrentássemos algum tipo de infortúnio, um irmão ou irmã bem-intencionada poderia perguntar: “Qual pecado oculto você traz em sua vida?”. Em versões mais graves, poderíamos perder nossa salvação. Graças à geração Boomer, que alcançou a idade adulta (tanto quanto possível) nos anos 60 e 70 do século 20, parece ter havido uma reação no sentido do antinomianismo, isto é, rebelião contra as doutrinas e as normas fixas. A culpa cstáfora; o otimismo e 0 incentivo motivacional estão dentro. Em vez de perder recompensas ou salvação, perdemos o melhor de Deus para nossas vidas aqui e agora. Francis Schaeffer costumava chamar esta religião de religião da paz e da riqueza pessoal. A mudança do conservado rismo rígido da geração de nossos pais não foi da culpa para graça ou da lei para o evangelho, mas de varas para incentivo, da ameaça agourenta para um resmungo constante para faz er melho r - sempre com um sorriso (afinal, o símbolo da geração Boom er é o rosto sorridente). Independente de expresso na política mais radical de esquerda ou na política mais conservadora de direita, o objetivo do evangelismo, do discipulado e da vida corporativa da igreja se tomou uma ve rsão mais branda
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do legalismo - um fluxo constante de exortações para segu ir o exemplo de Jesus, presumindo, ao mesmo tempo, familiaridade com 0 evangelho dele. Mais recentemente, o movimento da Igreja Emergente, se é que se pode dizer isso, intensifica o chamado para 0 discipulado, enquanto, em certos casos, até mesmo modifica 0 evangelho. Embora a política, o voca bulário, o estilo e a ambientação possam sugerir o contrário, ele represen ta 0 mesmo papel que muitos de nós recordamos da educação evangélica conservadora: faça mais. Seja um líder, não um seguidor. Realize grandes coisas para Deus. Discipulado, não doutrina (como se discípulo , que sig nifica “estudante”, e doutrina, que significa “ensino”, fossem, de alguma forma, antitéticos). É importante ressaltar que a lei e o evangelho não se referem simples mente aos Dez Mandamentos e a João 3.16, respectivamente. Tudo na Bí blia que revela as expectativas morais de Deus é lei; tudo na Bíblia que revela os propósitos salvadores e os atos de Deus é evangelho. Nem tudo na Palavra de Deus é evangelho; há uma série de exortações, mandamentos e ordens. Eles devem ser obedecidos; contudo, não é evangelho. Nem tudo do que precisamos é evangelho. Também precisamos de direção. Necessi tamos saber os mandamentos de Deus para reconhecer e confessar nossos pecados, e correr para Cristo, assim como para que eles possam nos orientar em grata obediência. Quando se trata de fazer algo, estamos respondendo à lei (obras); quando se trata de acreditar no que Cristo fez por nós, estamos respondendo ao evangelho (fé). Confundindo a fé como meio de herdar 0 dom de Deus, nossas “boas obras” se tomam os pecados mais ofensivos contra Deus. Mas, quando a fé somente recebe o dom, ela imediatamente começa a produzir o fruto da justiça. Mesmo quando coisas boas, santas e apropriadas se confundem com 0 evangelho, é apenas uma questão de tempo antes de chegarmos ao cristianismo sem Cristo : uma história sobre nós em vez de uma história sobre 0 Deus Trino que nos transporta para o drama em andamento. O Deus do fundam entalismo pode ter sido muito sem graça, mas o Deus da religião norte-am erica na contemporânea é triv ial dem ais pa ra valer o nosso tempo. A religião dos velhos tempos pode ter sido legalista,
acrescentando suas próprias regras e regulamentos à lei de Deus, mas, pelo menos, ela reconhecia que Deus ordenava certas coisas. Hoje, a questão é menos sobre medir-nos pela santa vontade de Deus do que ajudar as pes soas a se tomarem melhores por meio de um bom conselho. Independente do ponto em que os modos e os motivos mudaram, todavia, a ênfase ainda recai sobre o imperativo - coisas para fazer. A Igreja Central da Bíblia, a Igreja da Comunidade Bubbling Brook e a Igreja Episcopal de São Mateus podem dar-lhe coisas muito diferentes para fazer, mas faze r é tudo o que está em foco. É impressionante 0 que vários cristãos (incluindo muitos
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pastores) parecem considerar absolutamente certo e o que eles conside ram como incerto. Embora não haja uma única passagem na Bíblia que nos diga o que Jesus faria em uma série de questões pessoais e sociais de moralidade, economia, política e direito, muitas vezes ouvimos ousadas lamentações e afirmações feitas pelas mesmas pessoas que expressam am biguidade (disfarçada de humildade) sobre assuntos claramente abordados e tratados como questões de grande importância na Escritura. Buscando encontrar 0 caminho de volta às suas raízes, atualmente mui tos evangélicos mais jovens são atraídos para o legado anabatista. Brian McLaren explica: “Os anabatistas veem a fé cristã principalmente como uma forma de vida”, interpretando Paulo pelas lentes do Sermão da Monta nha de Jesus, em vez de 0 contrário.3A ênfase recai sobre o discipulado, e não sobre a doutrina, como se seguir o exemplo de Jesus pudesse ser con trário a seguir seus ensinamentos. O que acontece quando o Sermão da Montanha é equiparado a uma ética geral do amor e a doutrina é jogada para um plano secundário? O próprio Cristo se toma um mero exemplo para ajudar até mesmo seguidores de outras religiões a se tomarem melhores. Na verdade, indo além da maioria dos anabatistas que conheço, McLaren escreve: “Devo acrescentar, porém, que não creio que fazer discípulos deva ser igual a fazer adeptos da religião cristã. Pode ser aconselhável em muitas (não em todas!) circunstâncias aju dar as pessoas a se tomarem seguidoras de Jesus e permanecerem dentro de seus contextos budista, hindu ou judaico”.4Isso só faz sentido se o signifi cado de Cristo se baseia principalmente no exemplo moral que ele nos cha ma a imitar. “Não espero que todos os judeus ou hindus se tomem membros da religião cristã”, escreve McLaren. “Mas espero que todos que se sintam chamados se tom em judeus ou hindus seguidores de Jesus.”5 Não é de admirar, então, que McLaren possa dizer sobre os protestantes liberais: “Aplaudo a vontade deles de viver o significado das histórias de milagres, mesmo quando não acreditam que as histórias realmente aconte ceram como está escrito”.6Afinal, trata-se de obras, não de credos. Pode-se seguir Jesus com ou sem fé explícita nele. Não há nada especialmente pós -mo derno sobre nada disso, é claro. Escritores como McLaren defendem muito pouco que não possa ser en contrado, com maior sofisticação, nas faculdades de teologia alemãs e americanas, na v irada do século 20. Se nos for permitido escolher e peg ar o que quer que gostemos do Novo Testamento (mais uma vez, não se trata 3McLaren, Brian. A G enerous Orthodoxy. Grand Rapids: Zondervan, 2004, pág. 206. *Ibid., pág. 260. 5 Ibi d ., pág. 264. 6Ibid., pág. 61.
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apenas de tendência singularmente pós-modema), vamos sempre gravi tar em torno do contraste estabelecido pelo mais moderno de todos os pensadores modernos, Immanuel Kant: a religião pura (moralidade) em oposição à fé ecle siástica (doutrina). A única diferença é que, no tempo deles, isso era chamado de Modernis mo. Relacio nan do nossa causa ao espírito da época * seja lá como chamemos isso, sempre somos levados a uma forma ou outra de cultura-cristianismo - em outras palavras , ao nosso pelagianismo nativo. Percebo que 0 movimento da Igreja Emergente é doutrinariamente flui do; alguns líderes que apreciam a abordagem pós-m odema e que ainda estão sendo identificados, desconfortavelmente, com McLaren e outros preferem, muitas vezes, 0 rótulo mais geral de “emergente”. Além disso, muitas vezes eu me encontro me identificando com diversas críticas de certos aspectos da fé e da prática evangélica moderna. No entanto, muitos desses escritores (especialmente McLaren) parecem estar reagindo contra as caricaturas, re ais ou imaginárias, das formas mais completas do cristianismo evangélico pelo menos. McLaren, sem dúvida, concordaria com as críticas deste livro à influên cia, sobre a igreja, da modernidade programática, técnico-orientada, dirigi da ao consumo e individualista. Tendo sido criado em ambientes similares, partilhamos de uma reação comum contra meras afirmações e slogans, bem como contra 0 dogmatismo frequentemente irrefletido e cego que assume que temos todas as respostas e todas as outras pessoas estão erradas. Com partilho de seu interesse no horizonte mais amplo do reino de Deus para a nossa teologia e de sua preocupação de que 0 evangelho seja, com frequên cia, reduzido a uma promessa quase gnóstica de salvar a alma (ou seja, “ir para 0 céu quando morrer”), em vez de, em última instância, nas palavras do Credo dos Apóstolos, à “ressurreição do corpo” e à “vida eterna”, que in clui toda a criação. Isto leva a um tipo de cristianismo que afirma o mundo e 0 abrangente, em vez de a uma piedade puramente negativa, reacionária e reducionista. No entanto, encontrei este “novo” paradigma ao tropeçar no cristianis mo reformado. Foi dessa tradição que eu aprendi que perguntas eram boas e que, às vezes, não sei é a resposta certa; que a Bíblia não é simplesmente sobre “eu e minha relação pessoal com Jesus” ou meramente um livro-texto de doutrina ou de moral, mas uma história na qual nos encontramos - e toda 7' O autor usa a expressão “Hitching our wagon to the spirit of the age”, derivada do pro vérbio “Hitch your wagon to a star” de Ralph Waldo Emerson, que, em sua origem, tem ο significado de “aspire sempre a grandes coisas” . Mas, no uso popular, “Hitching your wagon to...” significa aproveite algo que esteja acontecendo e que esteja em destaque para promo ver uma coisa de seu interesse [N. da R.].
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a criação da qual somos parte. Além de ficar extasiado pela maravilhosa graça de Deus, também recebi um novo sentido de ser chamado para uma comunhão dos santos e um novo fundamento para a responsabilidade no mundo - não para salvá-lo, mas para amar e servir 0 meu próximo, e ser um administrador de uma criação que será renovada, em vez de ser, simples mente, um consumidor de uma criação que será destruída. McLaren, entretanto, parece nunca ter encontrado um tipo alternativo de fé evangélica para 0 panorama mais pietista e legalista no qual foi criado. Quando ele foge da doutrina da morte expiatória de Cristo como suportando 0 justo juízo de Deus em nosso lugar (ou seja, substituição penal), conheço bem a distorção que está renegando. No entanto, foi um teólogo de teologia sistemática, sábio e idoso, do seminário onde agora ensino, que nos alertou para nunca apresentar essa preciosa verdade como se um Pai vingativo es tivesse jogando sua ira sobre seu Filho. Ao contrário, ele nos instruiu, por meio das passagens relevantes, que 0 Pai entregou seu Filho por causa de seu amor, e o Filho não foi uma vítima, mas um substituto voluntário que se entregou em amor também. Independentemente das razões, McLaren - juntamente com outros pas tores e escritores, como 0 britânico evangélico Steve Chalke - vai de uma caricatura popular do cristianismo evangélico para um tipo diferente de moralismo que, muitas vezes, é indistinguível dos movimentos feitos, há muito tempo, pelo liberalismo protestante e de versões mais radicais de várias teologias da libertação. Chalke descreve a substituição penal como “abuso da criança divina” e McLaren manifesta a mesma opinião na voz de um de seus personagens de ficção.8Depois de oferecer uma caricatura da “visão convencional” da expiação de Cristo, McLaren mostra sua alterna tiva da “visão emergente”: “Deus graciosamente convida todos a voltar-se de seu caminho atual e a seguir um novo caminho. Isto”, diz ele, “é a boa notícia”.9 Enquanto, na visão convencional, 0 “pecado original” é a raiz do problema e Deus fornece salvação de sua ira como “um dom gratuito”, 0 evangelho, segundo a visão emergente, é que Jesus “inseriu, na história humana, uma semente da graça, da verdade e da esperança que nunca pode ser derrotada. (...) Todos os que encontrarem em Jesus a esperança e a ver dade de Deus descobrem o privilégio de participar de sua obra em curso de transformação pessoal e global e da libertação do mal e da injustiça” .10 8Chalke, Steve. The Lost Message o f Jesus. Grand Rapids: Zondervan, 2003, págs. 182, 183; McLaren, Brian. “The Story We Find Ourselves” em Further Adventures o f a New Kind o f Christian. São Francisco: Jossey-Bass, 2003, pág. 102. 9McLaren, Brian. Ever ythin g Must Change: Jesus, Global Crises, an d a Revo lution o f Hope. Nashville: Thomas Nelson, 2007, pág. 79. 10Ibid., págs. 79-80.
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Assim, nossas obras não são apenas fruto da salvação, mas fazem parte da “obra em curso” de Cristo. Perdida nesta visão, encontra-se a singula ridade da obra definitiva de Cristo po r nós, à parte de nós,/òra de nós, no passado, e a obra que só ele pode fazer quando voltar em glória. Jesus e a comunidade, a obra dele e a nossa, misturam-se em um evento de salvação. Radicalmente diferente do narcisismo e do individualismo do evangelho da prosperidade de Joel Osteen, a mensagem de McLaren, no entanto, com partilha de importantes semelhanças. Ele traduz o pecado e o julgamento em ações e atitudes que podemos conquistar com a agenda certa, a fim de transformar a nós mesmos e o mundo. Enquanto, para Osteen, o ponto de referência para pec ado e salvação muda de Deus para felicidade e melhoria do ego por meio da melhoria moral, para McLaren o quadro de referência é o aquecimento global, a pobreza, a AIDS e a ganância capitalista. Em muitos aspectos espelhando a confusão da Direita Religiosa do reino da graça de Cristo com sua vinda em glória e esta última com o triunfo de uma agenda especial já definida por um partido político, a Esquerda Religiosa emergente parece muito propensa a recrutar Jesus como m ascote para nos sos próprios programas de redenção nacional e global. Osteen fala de salvação inteiramente em termos de prosperidade aqui e agora, enquanto McLaren fala de salvação principalmente em termos de paz e justiça aqui e agora. Em ambos os casos, cabe a nós realiza r esta salvação, que, em certo sentido, Cristo tomou possível ao plantar uma semente em todos nós. Independente de definirmos 0 evangelho como convite de Deus a todos “para voltar-se de seu caminho atual e seguir um novo caminho” (com McLaren) ou “tomar-se melhor” (com Osteen), estamos confundindo a lei e o evangelho - o mandamento para seguir a Cristo com 0 anúncio vin do do céu de que ele venceu a morte, a condenação e a tirania do pecado, e virá novamente em poder e glória, primeiro para julgar e, em seguida, para fazer todas as coisas novas. Mesmo do lado mais conservador do movimento da Igreja Emergente (ou “Emergindo”), Dan Kimball, pastor da Igreja da Bíblia Santa Cruz, anuncia seu objetivo: “Voltar a uma forma bruta de cristianismo vintage,11* que, sem se desculpar, centra-se na vida do reino pelos discípulos de Jesus”. 12 Outro líder do movimento, Mark Oestreicher, acrescenta: “Sim, ainda acredito que a salvação vem somente por meio de Je sus Cristo. Mas será que uma dose pequena de budismo, jogada em um sistema de crenças, de algum modo mata a parte cristã, o Jesus básico?”. Naturalmente, a res posta é não, se o cristianismo for essencialmente lei em vez de evangelho. "* Por vintage, entende-se algo raro, genuíno, de qualidade [N. da T.]. 12Ki mball, Dan. The Emerging Church: Vintage Christianity fo r N ew Generations. Grand Rapids: Zondervan, 2003, pág. 26
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“Minha prima budista, exceto por sua incapacidade infeliz de aceitar Je sus, é uma cristã melhor (com base na descrição de Jesus que um cristão faz) do que quase todos os cristãos que conheço. Se estivéssemos usando Mateus 25 como um guia, ela seria uma ovelha, e quase todos os cristãos que conheço pessoalmente seriam bodes.”13 Ao contrário de McLaren, Kimball não está interessado em desafiar as doutrinas evangélicas tradicionais. No entanto, ele reflete a suposição gene ralizada de que os cristãos atualmente já compreendem e creem no evange lho, mas precisam de mais chamadas ao discipulado sério. Quando o foco da missão e do ministério está em nossa vida do reino , em vez de na pes soa que trouxe e traz seu próprio reino, conduzindo nós mesmos e nossos ouvintes para ele por meio de seu evangelho, Cristo-como-exemplo pode efetivamente substituir Cristo-como-Salvador, pelo menos na prática. É uma tragédia quando dizemos uma coisa e depois vivemos de um modo que traz vergonha para esse evangelho. Houve cristãos cuja doutri na de Cristo era magnífica, mas que apoiaram a escravidão, 0 racismo, o materialismo e uma série de outros estilos de vida que são incompatíveis com a Palavra de Deus. Evangélicos mais jovens estão em alerta para as incoerências e hipocrisias de um movimento que professa compromisso com Jesus Cristo enquanto exibe seu caso de amor profundo com o consumismo, a ganância, o militarismo e a apatia para com a mordomia da cria ção de Deus. Os comentários de Kimball soam familiares quando ele cita Mahatma Gandhi: “Gosto de seu Cristo, mas não gosto de seus cristãos. Os cristãos são tão diferentes de seu Cristo”, ou quando ele nos lembra de Ned Flanders e sua família de Os Simpsons: “Quase toda vez que os cristãos são retratados na televisão ou no cinema, são mostrados como sendo um tanto quanto ignorantes, estúpidos, mesmo sectários, geralmente se engajando em inflamadas cruzadas para acabar com os males da sociedade e converter as pessoas ao ponto de vista deles. Acrescente a tudo isso a prisão pública de um pastor ou padre por algum crime sexual” .14 Kimball põe seu dedo sobre um assunto sério. Assim como grande parte dos EUA, suspeitamos de líderes que parecem ter todas as respostas - com pouco autoquestionamento - mas que nos desviam do caminho e deixam a desilusão no rastro deles. Muitos de nós crescemos vendo nossos líderes religiosos atacarem a pornografia e os direitos dos homossexuais enquanto tinham encontros com prostitutas e garotos de programa. Mas a resposta a “estúpidos, mesmo sectários... cruzadas para acabar com os males da so ciedade” não seria simplesmente outra cruzada com uma agenda diferente? A pregação correta da lei e do evangelho é o verdadeiro antídoto para a 13Oes treic her , Mark. Citado em ibid., pág. 35. 14Kimball, The Emerging Church , págs. 79, 81.
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autojustificação de todos os matizes. É interessante notar que, quando o apóstolo Paulo teve de escrever uma carta disciplinar à igreja de Corinto por causa de sua imoralidade sexual, hipocrisia, contenda e orgulho, co meçou por ensinar-lhe o evangelho novamente. Ele não tomou como certo que seus membros já o soubessem. Na verdade, ele assumiu que, se a igreja se encontra em uma bagunça ética, o mais provável é que ainda não tenha entendido a mensagem. Só depois de pregar mais uma vez a Cristo e este crucificado , é que Paulo voltou à exortação prática de viver em função da alta vocação deles em Cristo. Além disso, os líderes mais jovens da igreja parecem ignorar a ampli tude de seus movimentos que também apresentam um apego desmedido à cultura de sua própria geração, em vez de refletir a sabedoria das gerações da igreja, em todos os tempos e lugares. Para muitos de nós que fomos criados na ilusão da “América Cristã” da direita religiosa, movimentos de igreja “emergente” podem parecer uma grande mudança, mas não é apenas uma mudança de partidos? A sociologia também é diferente: Starbucks e guitarra acústica em salas escuras iluminadas com velas, em vez do Walmart e bandas de louvor em cinemas iluminados. No entanto, em ambos os casos, o moralismo continua a empurrar o Cristo crucificado para as mar gens. Estamos totalmente desatentos, à direita, à esquerda e no meio. Enquanto escrevo, estes desafios estão sendo reconhecidos por escri tores como Dan Kimball e Mark Driscoll. Ilusões eventualmente levam à exaustão, independentemente da ideologia; só se pode desejar que a hones tidade, a vitalidade e o entusiasmo por algo mais profundo que outros Sete Passos para algo banal levem a uma redescoberta dos múltiplos passos que Deus deu e continua a dar na nossa direção, em Jesus Cristo. A pergunta para todos nós é se acreditamos que a igreja é o lugar onde o evangelho é regularmente proclamado e confirmado tanto para os cristãos quanto para os não cristãos. Como muitos líderes da Igreja Emergente, Kimball invoca um famoso verso de Francisco de Assis que eu também ouvi enquanto crescia em meio ao evangelicalismo conserva dor: “Pregue 0 evangelho em todo tempo. Se necessário, use palavras”. Kimball continua dizendo: “Nossa vida prega melhor do que qualquer coisa que possam os dizer’’15(encontramos uma declaração quase idêntica de Osteen no capítulo anterior). Se for assim, então esta é apenas mais uma má notícia, não apenas por causa das estatísticas que já vimos que provam não haver nenhum a diferença real entre cristãos e não cristãos, mas porque, apesar de minhas melhores intenções, não sou uma criatura exemplar. Os melhores exemplos e as melhores instruções - até mesmo as melhores doutrinas - não me aliviarão da batalha com o pecado que 'sIbid., págs. 185, 194.
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habita em mim até eu dar meu último suspiro. Encontre-me em meu me lhor dia - especialmente se você tiver acesso aos meus motivos ocultos, pensamentos e atitudes - e vou sempre fornecer combustível para a acusa ção de hipocrisia e vou desapontar aqueles que se tomam cristãos porque pensam que meus companheiros cristãos e eu somos 0 evangelho. Sou um cristão não porque penso que posso seguir os passos de Jesus, mas porque ele é o único que pode me carregar. Não sou 0 evangelho, somente Jesus Cristo é o evangelho. A história dele me salva não apenas por trazer-me justificação, mas por batizar-me em sua vida de ressurreição. Conformidade à imagem de Cristo (santificação) é 0 processo de mor rer para si mesm o (mortificação) e viver para Deus (vivificação) que resul ta de ser regularmente imerso na história do evangelho da vida, da morte e da ressurreição de Cristo. Outra forma de dizer isso é deslocamento (de Adão e do reino do pecado e da morte) e relocação (em Cristo). Que minha vida não é 0 evangelho é uma boa notícia tanto para mim quanto para meu próximo. Porque Cristo é as boas-novas, os cristãos, bem como os não cristãos, podem ser salvos. Para aqueles que sabem que também carecem da glória que a lei de Deus requer - mesmo como cristãos que têm, agora, um novo coração que ama a lei de Deus —as boas-novas não são apenas suficientes para criar fé, mas para nos colocar de pé de novo, garantindo nossa posição em Cristo, prontos para mais um dia de sucesso e de fracasso em nosso discipulado. Não pregamos a nós mesmos, mas a Cristo. As boas-novas - não apenas para nós, mas para um mundo (e igreja) em desesperada necessidade de boas-novas - é que 0 que dizemos prega melhor do que nossas vidas, pelo menos se 0 que estamos dizendo é a pessoa e a obra de Cristo em vez de nossa própria. Quanto mais falamos de Cristo como 0 mistério em reve lação na Bíblia e menos sobre nossa própria transformação, mais chance temos de ser realmente transformados do que de nos tomarmos hipócritas ou desesperados. Por mais que isso vá contra nossa natureza, o evangelho é o poder de Deus para a salvação, para a justificação e para a santificação. O fruto da fé é real - e não é o mesmo que o fruto de obras de justiça. Existe hipocrisia. Porque os cristãos serão sempre santos e pec adores ao mesmo tempo, haverá sempre hipocrisia em cada cristão e em cada igreja. A boa notícia é que Cristo nos salva da hipocrisia também. Ela é gerada, em especial, quando a igreja aponta para si mesma e para nossa própria vida mudada nos materiais promocionais. Talvez os não cristãos tivessem menos prazer em apontar nossas falhas se testemunhássemos, em palavra e ação, nossa necessidade e 0 dom de Deus para pecadores como nós. Se identificássemos a visibilidade da igreja com a cena de pecadores reunidos pela graça, para confessar seus pecados e sua fé em Cristo, recebendo-o com as mãos abertas, em vez de com nossos ativos esforços pa ra serm os o
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evangelho , poderíamos, pelo menos, vencer as críticas dos não cristãos com
energia. Sabemos que somos pecadores e que carecemos da glória de Deus. É exatamente por isso que precisamos de Cristo. Sei que muitos destes irmãos afirmariam que ainda somos pecadores e que ainda precisamos de Cristo, mas isso parece ser abafado por um foco humano centrado em nosso caráter e em nossas ações. Kimball escreve que 0 “objetivo final do discipulado... deve ser medido por aquilo que Jesus ensinou em Mateus 22.37-40: ‘Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendi mento’. Nós o estamos amando mais? Ame os outros como a si mesmo. Estamos amando mais as pessoas?” .16Fui criado no evangelicalismo con servador nessa mesma dieta de sermões que terminava com uma questão como esta. Uma mudança verdadeiramente radical em nossa abordagem seria a de proclamar Cristo como 0 único que cumpriu a lei em nosso lugar, suportou sua sentença e, agora, livremente nos dá sua absolvição. Só então somos verdadeiramente livres para amar de novo. Para todas as críticas incisivas do movimento da Igreja Emergente ao modelo de megaigreja, a ênfase ainda recai sobre o medir 0 nível de nosso zelo e de atividade, e não sobre a imersão das pessoas na maior história já contada. Pode ser mais séria, mais autêntica e menos consumista, mas quão diferente é essa men sagem básica daquela de Joel Osteen, por exemplo? Em todo 0 cristianismo contemporâneo, essa mensagem básica parece ser algum tipo de lei (faça isso) sem o evangelho (0 que foi feito).
D a o p u l ê n c i a p a r a o s t ra p o s : p e r d e n d o o e v a n g e l h o p o r n ã o v a l o r i z á -l o
A maior ameaça ao testemunho centrado em Cristo, mesmo em igrejas que, formalmente, confessa m a sã doutrina evangélica, é o que 0 britânico David Gibson chama de “o evangelho assum ido”.17A ideia é que o evan gelho é necessário para ser salvo, mas, depois de assinarmos o “contrato”, o restante da vida cristã é a letra miúda das cláusulas contratuais: o perdão condicional. Geralmente, vem na forma de “bem, é claro, mas. ”. Depois de um mês de domingos com exortações à parte das boas-novas, a pessoa pode perguntar: “Mas e o que dizer da parte de Deus perseverar, apesar do pecado humano, e superá-lo por nós na cruz?”. “Bem, é claro! Mas todo mundo aqui já acredita nisso. Só precisamos começar a viver isso '6Ibid., pág. 214. 17Gibs on, David. “Assumed Evangelicalism: Some Reflections En Route to Denying the Gospel”, Reformed University Fellowship at Lehigh University, http://www.ruf-lu.org/articles/Assumed%20 Evangelicalism.htm.
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na prática/’ Conseguimos pela graça, mas agora precisamos permanecer nas boas-novas (ou, pelo menos, nos tomar cristãos de primeira-classe, completos, vitoriosos, totalmente rendidos) pela obediência às várias e ta pas, listas e práticas. Houve este breve e brilhante momento de graça, mas agora 0 restante da vida cristã diz respeito às nossas experiências, sentimentos, compromisso e obediência. Sempre gravitamos de volta a nós mesmos: “Propenso a vagar, Senhor, eu sinto isso; propenso a deixar 0 Deus que amo” .18Vagamos de volta para a autoconfiança tão facilmente quanto para pecados mais óbvios. Não é de admirar que muitos cristãos se encontrem no equivalente espiritual da crise de meia-idade, perdendo seu primeiro amor, até mesmo pensando, talvez, lá no fundo, se tudo não é apenas um jogo. Tragicamente, minha geração provavelmente não vai passar melho r do que a anterior no teste de hipocrisia. Também vamos ficar muito aquém do mandato de amar a Deus e nosso próximo. O que precisamos, portanto, é de um evangelho que seja suficiente para salvar até mesmo os cristãos infiéis. Não podemos deixar de valorizar o evangelho. Ele é sempre um anúncio surpreendente que infla nossas velas com fé para uma vida ativa de boas obras. Este não é um convite à apatia moral, mas à sanidade piedosa. As más notícias são muito piores do que ocasionalmente não fazer j us ao meu po tencial. O menor pecado que percebo - não só 0 que eu fiz, mas o que não consegui fazer; não só o que minhas mãos fizeram, mas 0 que concebi em meu coração —é suficiente para me banir da presença santa e jubilosa de Deus para sempre. Mas as boas-novas são muito maiores do que as más notícias. Elas são muito maiores do que “apenas se esforce mais da próxima vez”. Na verdade, essa não é uma boa notícia de jeito nenhum, porque sei que Deus não faz a classificação em uma curva e que ele não me pediu para esforçar-me mais. Ele exige a perfeita justiça, não boas intenções. Quanto mais eu tento encobrir minha nudez na presença de Deus, mais o odeio, fúgindo em autoengano de sua presença aterradora. Entregue a mim mesmo, vou sempre acusar Deus e me desculpar - mesmo que seja usando a religião para esconder minha culpa inerradicável. A boa notícia é que a justiça de Cristo é maior do que m eu pecado. Total mente absolvido em Cristo, sou livre para confessar meus pecados, receber a certeza do perdão e prosseguir em minha obediência imperfeita, contudo conduzida pelo Espírito. Do conservador ao liberal, estão nos dizendo que precisamos nos con centrar em ações, não em credos. Claro que a pessoa e a obra de Cristo são 18Ro binso n, R obert. “Come, Thou Fount of Every Blessing”, Hym ns fo r th e Livin g Church. Carol Stream, IL: Hope Publishing, 1974.
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importantes, mas nós já cremos nisto, certo? Isso é doutrina , que já fomos informados, e não ajuda as pes soas onde elas vivem. Agora temos de salvar o mundo por meio de nossas ações santas. Nós todos entendemos a doutri na, só não a estamos vivendo. Estes são os pressupostos que ouço em todo o espectro teológico e confessional. Mas será que realmente entendemos? Não de acordo com as estatísticas que já encontramos. O evangelho é tão estranho, até mesmo para nós cristãos, que temos de começar de novo e novamente. Por isso, Deus tem graciosamente criado diferentes caminhos para fazê-lo chegar a nós: ele o proclama pela boca de outro em nome de Cristo, banha-me nele com água e coloca-o em minha mão, por meio do pão e do vinho. Por todas suas rivalidades, o liberalismo protestante, na verdade, cres ceu a partir do pietismo e, especialmente nos Estados Unidos, 0 moder nismo protestante cresceu, em parte, pelo reavivalismo. Machen escreve: “Aqui se encontra a diferença fundamental entre o liberalismo e o cris tianismo - o liberalismo está totalmente no modo imperativo, enquanto 0 cristianismo começa com um triunfante indicativo. O liberalismo apela para a vontade do homem, enquanto o cristianismo anuncia, em prim eiro lugar, um ato gracioso de Deus. (...) O liberalismo considera Cristo como um Exemplo e Guia; 0 cristianismo, como um Salvador. O liberalismo faz dele um exemplo de fé; o cristianismo, o objeto da fé”. O liberalis mo age com base na experiência religiosa, enquanto o cristianismo está atento à Palavra de Deus, que nos vem de fora.19Em cada geração, nossa tendência natural de colocar o foco de volta em nós mesmos —nossa vida interior, piedade, comunidade e ações - seca a exata raiz da fé que gera amor e serviço. A pior coisa que pode acontecer com a igreja é confundir a lei e 0 evan gelho. Quando suavizamos a lei, não desistimos de nossas próprias tenta tivas de oferecer os nossos trapos de “justiça” a Deus. Quando tom amos 0 evangelho em exigências, ele deixa de ser a Palavra salvadora de redenç ão de Jesus Cristo. Segundo as Escrituras, existem duas maneiras de herdar as bênçãos de Deus. Após a Queda, as bênçãos eternas de Deus só podem ser asse guradas por intermédio do perdão dos pecados em Jesus Cristo. Essa pro messa de providenciar um Salvador foi uma promessa unilateral a Adão e Eva após a queda, a Abraão e Sara, e a Davi; ela também aparece na nova aliança profetizada em Jeremias 31 e em outros lugares. Depois, houve as promessas temporais de terra que Deus fez a Israel, com base no com promisso da nação: “Tudo o que falou faremos” . Com o Paulo diz: “São 19Machen, J. Gresham. Christianity and Liberalism. Grand Rapids: Eerdmans, 1923, pág. 47.
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duas alianças” - um pacto de graça que conduz à vida eterna e um pacto da lei que leva à escravidão (G1 4.24-25). O problema com os judeus da época de Paulo era que tinham confundido a herança condicional de um terreno na Terra com a eleição incondicional e a redenção dos pecadores por meio da fé em Cristo. Confundir a lei e 0 evangelho é a tendência natural do coração caído. Todas as religiões —incluindo o cristianismo sem Cristo , que não é cristianismo de jeito nenhum - pressupõem alguma forma de redenção por esforço próprio. É sempre surpreendente, irracio nal e até mesmo ofensivo para os seres humanos ouvir que a salvação não depende da decisão ou do esforço humano, mas de Deus, que mos tra misericórdia (Rm 9.16). Naturalmente, achamos que, se você quiser que as pessoas façam a coisa certa, só precisa dizer a elas o que fazer e exortá-las a fazê-lo com paixão suficiente e métodos eficazes. Isso, no entanto, evita tanto a lei quanto o evangelho. Se nos desentendermos com a justiça de Deus, estamos perdidos. A lei desmascara nossas pre tensões, mostrando-nos que merecemos o julgamento de Deus por nos agarrarmos ao orgulho com nossas melhores obras e intenções - não im porta os pecados óbvios (Is 64.6). A lei ordena, mas não nos dá nenhum poder p ara cumprir suas condições. Por si só, mais conselhos (lei, ma n damentos, exortações) só vão nos levar à autorretidão ou ao desespero. No entanto, quanto mais Cristo é exposto diante de nós com o suficiente para nossa justificação e santificação, mais começam os a morrer para nós mesmos e a viver para Deus. Não mais ameaçados com o inferno ou confortados com 0 céu, o legalismo novo é 0 murmúrio otimista e alegre tocando como música de fundo. E ainda uma forma de obras de justiça, com seus incentivos e va ras. Siga meu conselho e você vai realmente se “conectar” com o melhor de Deus para sua vida. Se você não está feliz, talvez tenha decaído do favor e da bênção de Deus. Somente aqueles que estão “completamente rendidos” podem ter certeza de que estão no plano A de Deus. Aqui estão os passos para viver a vida cristã vitoriosa. Você está seguindo os passos? Tem fé suficiente? Esta orando, lendo a Bíblia, testemunhando, servindo na igreja e amando o suficiente? Esta dieta de imperativos se toma tão complexa e antropocêntrica quanto 0 antigo legalismo; é apenas legalismo leve. E quando queimam os um programa, há sempre outro best-seller , movimento ou plano ao virar da esquina. Mesmo que as gerações mais recentes estejam recuperando algumas das questões mais importantes da lei, tais como amar e servir nosso pró ximo, a lei não é o evangelho. Quando percebemos a diferença, podemos finalmente dar a cada um seu valor. Deixe a lei ser lei e o evangelho ser evangelho.
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Precisamos da lei e do evangelho, mas cada um faz coisas diferentes. Quan do os confundimos, evitamos tanto a ferida da santidade de Deus quanto o poder libertador de sua graça. Começamos a falar de viver o evangelho, de fa ze r o evangelho e até mesmo de ser 0 evangelho, como se as boas-novas fossem uma mensagem sobre nós e nossas obras, em vez de sobre Cristo e sua obra. A resposta adequada não é prescindir da lei nem suavizar suas exi gências, tomando-a um conselho útil. Antes, a resposta certa é reconhecer a diferença entre lei e evangelho. Não somos chamados para viver o evange lho, mas para crer no evangelho e para seguir a lei mediante a misericórdia de Deus. Tomar 0 evangelho em lei é uma coisa muito fácil para nós: isso acontece naturalmente. Por isso, nunca podemos deixar de dar valor para as boas-novas. Qualquer forma de faz er o evangelho e uma confusão de categorias. A lei nos diz o que fazer; o evangelho nos diz o que Deus fez por nós em Cristo. Quando se chega à questão de como nos relacionamos com Deus, fa ze r é a resposta errada. Paulo explica: “Ao que trabalha, o salário não é considerado como favor, e sim como dívida. Mas, ao que não trabalha, po rém crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça” (Rm 4.4-5). Não se trata apenas de algumas ações da nossa parte que estão excluídas aqui, mas de todo tipo de obras. “Se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça” (Rm 11.6). Princípios para a vida, conselhos práticos, segredos de vida vitoriosa, chamados para 0 discipulado e instrução, tudo cai sob a categoria de lei, in dependente de serem oferecidos com severidade ou delicadeza, ou de serem mandamentos de Deus ou nossos. A questão não é descartar estas palavras, mas: (a) nos certificarmos de que são as palavras de Deus e não nossas, e (b) reconhecermos que, mesmo quando são de Deus, elas são diferentes da palavra de Deus do evangelho - as boas-novas que, embora não tenhamos feito nenhuma das coisas que dissemos que iríamos fazer, Cristo foi feito nossa “justiça, e santificação, e redenção” (1C0 1.30). A lei nos diz o que Deus espera de nós; o evangelho nos diz 0 que Deus fez por nós. Assim, lei e evangelho não são inerentemente opostos, porém, quando se trata de como somos salvos, estes dois princípios não poderiam ser mais contraditórios. E como nossa fé, a cada momento, é ameaçada por nossa tendência natural de nos desviarmos de seu objeto —Cristo —precisamos do evangelho afixado diante de nós não apenas no começo, mas durante toda a vida cristã. O evangelho é para os cristãos também. Necessitamos ser evangelizados todas as semanas. Não é por seguirmos o exemplo de Cristo, mas pelo fato de sermos inseridos em Cristo, vestidos com Cristo e unidos a Cristo - enquanto o Espírito cria a fé por meio do evangelho - que somos não apenas justificados, mas santificados também.
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P o r q u e a l e i f a z s e n t id o e o e v a n g e l h o p a r e c e e s t ra n h o
O argumento de Paulo em Romanos 1—3 é que os pagãos são culpados diante de Deus com base na lei, visto que ela está escrita em suas consciên cias. A existência e os atributos de Deus “claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis” (Rm 1.20). Criado à imagem de Deus, em perfeita santidade e retidão, Adão devia conduzir toda a criação ao descanso do sábado eterno. Assim como Deus completou sua obra e, em seguida, entrou em sua entronização sobre a criação, era para seu auxiliar seguir em sua formação como chefe representativo da humani dade. Dotados de glória, beleza, bondade e justiça, estávamos devidamente equipados para a tarefa que estava diante de nós. Então, Adão abusou de sua liberdade, conduziu a si próprio, sua esposa e sua posteridade —de fato, toda a criação - para debaixo da maldição da lei de Deus. Paulo diz que este senso moral - a consciência da existência de Deus e a nossa responsabilidade perante a sua lei —é inato em cada um de nós (Rm 1.32; 2.12-16). Eu me deparei com uma entrevista do príncipe Hassan bin Talai, da Jordânia (irmão do falecido rei Hussein), que está ten tando iniciar as conversações entre as várias religiões no Oriente Médio. “Continuo dizendo que, se todos nós observássemos os Dez Mandamen tos, não teríamos sucumbido a tanta dor em primeiro lugar”, diz o prínci pe Hassan. “Independente de ser a Lei Áurea, o Caminho Reto ou os Dez Mandamentos, reconhecemos que não temos necessidade de reinventar o código de conduta.”20 Existe um monte de consenso sobre a lei: “Tudo o que quiseres que os homens te façam, faz tu do mesmo modo para com eles” não é um preceito único do cristianismo. E aqui deveríamos estar ansiosos para encontrar har monia em nossa conduta em um mundo repleto de conflitos. Em uma his tória recente no Los Angeles Times, o escritor Steve Padilla assinalou que mesmo 0 bem conhecido ateu Sam Harris certa vez escreveu que “há clara mente uma dimensão sagrada para nossa existência, e chegar a um acordo com ela poderia muito bem ser o maior objetivo da vida humana”. Harris acrescentou que está “interessado na experiência espiritual. (...) Existe tal coisa como uma experiência significativa, profundamente transformadora, que pode ser muito duramente alcançada. Você pode ter de entrar em uma caverna por um mês ou por um ano para ter certas experiências. Toda a lite ratura contemplativa é algo que leio e levo muito a sério. O problema é que também é cheia de superstição e dogma religioso, [então] você tem de ser
20Co melis H ulsman com o príncipe Hassan, “The Peacebuilding Prin ce”, Christianity Today, fevereiro de 2008, pág. 64.
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um consumidor seletivo da literatura”.21 Referindo-se aos colegas cristãos nas ciências, o biólogo e ateu zeloso Richard Dawkins se diz perplexo, não tanto pela crença deles em um legislador cósmico de algum tipo quanto pela crença deles nos detalhes da religião cristã: a ressurreição, o perdão dos pecados e tudo” .22O filosofo iluminista Immanuel K.ant confessou que, quanto mais velho ficava, mais convencido estava do “céu estrelado aci ma e a lei moral dentro”. Por isso, a “religião pura” (moral) é universal e útil, enquanto as “fés eclesiásticas” são supersticiosas e divisoras. Trate a religião como terapia privada para melhorar nossas vidas e nos to ma r pes soas melhores e ela terá seu importante lugar; trate a como verdade pública - boas-novas para todo o mundo - e ela provocará enorme ofensa. Ilumi nação moral e espiritual é uma coisa; redenção por uma operação unilateral de resgate divino é outra. Ainda assim, como um assassino foge da cena do crime, fugimos da voz que clama “Adão, onde estás?”. Nós nos cobrimos como o fizeram Adão e Eva, com folhas de figueira. Gostamos de moralidade e espiritualidade, mas não de dogmas sobre pecado, julgamento, expiação e graça. Conquanto estejamos no controle (ou, pelo menos, pensemos que estamos), usando a dimensão do sagrado” para nossos próprios fins, até mesmo um ateu pode manifestar algum interesse. Entretanto, no momento em que somos coloca dos de volta na posição de comparecermos perante Deus, em seu tribunal, nossa fábrica de distorcer os fatos opera em plena capacidade. “A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça” (Rm 1.18). Embora Deus tenha tomado o povo judeu sob seu cuidado especial e lhe dado uma versão escrita desta lei, ele também demonstrou que era trans gressor, como o restante de nós, descendentes de Adão (Rm 5). Eles trans grediram a aliança, como Adão” (Os 6.7). Após a Queda, ninguém pode ser salvo por sua própria justiça. Pelo contrário, a lei acusa toda humanidade, tanto gentios quanto os judeus, “para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem 0 pleno conhecimento do pecado” (Rm 3.19-20). Assim como um espelho expõe nossos rostos sujos, mas não os pode limpar, a lei revela a vontade moral de Deus, mas não dá nenhum poder para cumpri-la. Somente quando outra palavra foi falada, Adão e Eva foram detidos em seus caminhos e surpreendidos pelas boas-novas da vinda de um redentor. Despojados de suas folhas de figo, eles foram vestidos por Deus com 21P adilla , Steve. “Ra bbi, Atheist Debate with Passion, H umor”, Los Ange lesTim es, 29 de dezembro de 2007, pág. B2. Dawkins, Richard. The God Delusion. Nova York: Houghton Mifflin, 2006, pág. 99.
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peles de animais (Gn 3.15-16,20-21), prefigurando o Cordeiro de Deus (Jo 1.29). E para estas boas-novas que Paulo se volta nos versículos seguintes: “Agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os que creem” (Rm 3.21-22). Portanto, a lei revela a retidão que é Deus, pela qual somos julgados (e, por conseguinte, condenados); o evangelho revela a justiça que Deus livremente dá aos pecadores por meio da fé em Jesus Cristo. Nos próximos três capítulos, Paulo revela a b oa-nova surpreendente de que Deus justifica 0 ímpio. A salvação, do começo ao fim, é sua obra por nós, e não uma questão de nós nos salvarmos ou mesmo de cooperarmos com ele. É uma operação de resgate divino. Até mesmo nossa santificação é baseada na obra de Deus de nos justificar e nos unir, pelo seu Espírito, à morte e à vida de Cristo (Rm 6). Então, há realmente apenas duas religiões no mundo: a religião do esfor ço humano para ascender a Deus por meio de obras, sentimentos, atitudes e experiências piedosas, e a religião das boas-novas da descida misericor diosa de Deus até nós em seu Filho. As religiões, filosofias, ideologias e espiritualidades do mundo diferem apenas nos detalhes. Independente de estarmos falando do Dalai Lama ou do Dr. Phil, do Islã ou da Oprah, de liberais ou de conservadores, a convicção mais intuitiva é a de que somos boas pessoas que precisam de bons conselhos, não pecadores impotentes que precisam das boas-novas.
A p r e g a ç ã o c o r r e t a d a l e i
A lei é boa, mas eu não sou, Paulo nos relembra (Rm 7.7-24). Ela é o pa drão permanente da perfeita santidade de Deus e a revelação de sua santa vontade para nossas vidas. Primeiramente, ela vem para nos matar - não para nos melhorar, mas para acabar com nossa vida em Adão, expondo-nos pelo que realmente somos. “O mandamento que me fora para vida, verifi quei que este mesmo se me tomou para morte” (Rm 7.10, cf. 2C0 3). Em segundo lugar, a lei guia aqueles que são justificados à parte dela. Uma vez que já não pode condenar o crente e, na verdade, deve reconhecê-lo como justo por causa de sua justificação em Cristo, a lei é, agora, uma amiga. Como Paulo diz em Romanos 7, agora ele ama a lei, mesmo quando lhe desobedece. Os não cristãos não se reconhecem na luta de Paulo. Preocu pados com os maus hábitos que podem levar à obesidade, ao alcoolismo, aos relacionamentos destruídos, à perda do emprego ou à decepção devido ao fracasso em alcançar seus objetivos pessoais, os incrédulos, contudo, não lutam com o paradoxo do amor deles por Deus e a vontade moral dele, de um lado, e os pecados deles em andamento, do outro. Discussões sobre salvar a família ou salvar a Terra de uma catástrofe ambiental são ouvidas
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pelos não cristãos. Mas discursos e ações dos quais a igreja testemunha - 0 julgamento de Deus e a justificação dos pecadores por meio de Cristo - são estranhos aos ouvidos deles. Assim, a lei funciona, antes de tudo, para me matar, acabar com minha autocriação - todas as tentativas de escrever o filme de minha vida e rein ventar meu caráter. O evangelho me insere em um novo enredo: “Vivo em Cristo”. E agora a lei me dá sentido concreto quanto ao que significa viver essa vida em amor para com meus irmãos, bem como para com vizinhos e colegas de trabalho. A lei não pode santificar e não pode justificar. Embora já não possa me condenar, a lei também não pode produzir em mim o desejo de guardá-la; ela só pode me dizer o que Deus exige. Mesmo como cristão, minha fé vai, na verdade, ser enfraquecida se eu assumir que já conheço o evangelho e agora só preciso de uma dieta cons tante de instruções. Vou, naturalmente, recair em meu impulso moralista e concluir que ou estou completamente rendido ou que não posso ser bemsucedido e é melhor parar de tentar. Quando minha consciência me leva ao desespero, a exortação para me esforçar com mais afinco somente aprofun da a minha autorretidão ou minha depressão espiritual. Em outras palavras, ela me afasta de minha posição em Cristo e, aos poucos, me traz de volta àquele lugar onde estou centrado em mim. Para a consciência encontrar paz com Deus, não pode haver nenhuma ajuda da lei; na verdade, é a lei que desperta minha consciência para minha total pecaminosidade. Logo, é fundamental ter em mente que a lei é inata e intuitiva, enquanto o evangelho é uma proclamação externa. O mandamento para amar não é surpreendente, desorientador ou estranho; é familiar para nós. Sabemos, por natureza, 0 que devemos fazer. Da mesma maneira que os “gregos”, que “procuram sabedoria”, como Paulo explicou, a maioria de nossos colegas americanos não está à procura de salvação do julgamento iminente de Deus, mas de ajuda para seus dilemas morais. Ninguém ficará ofendido se lhe dis sermos que é uma boa pessoa e que poderia ser um pouco melhor. A ofensa vem quando dizemos às pessoas que elas (e nós) são ímpias que não podem impressionar a Deus ou escapar de seu tribunal. Até que nossa pregação da lei tenha exposto nossos corações e a santidade de Deus a esse nível profun do, nossos ouvintes jamais irão para Cristo em busca de segurança, mesmo que venham até nós para conselho. Como as boas-novas sobre a decisão de Deus de salvar os seres humanos depois que pecaram e, portanto, não tinham razões para esperar qualquer coisa a não ser o julgamento, o evangelho não está apenas fora de nossa consciência, mas contraria o espírito de nossa maneira comum de pensar. Gostamos de separar o certo do errado, mesmo que nunca tenhamos lido a Bíblia. O que Paulo chama de “a justiça decorrente da lei”, pelas obras (em contraste com “a justiça decorrente da fé” em Cristo), é natural para nós
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(Rm 10.5-6). Até mesmo pessoas que são cristãs há bastante tempo gravi tam em tomo de fazer algo para se salvar em vez de receber a salvação que já foi cumprida por outra pessoa. Nosso padrão é a lei, e não 0 evangelho, imperativos (coisas para fazer ou sentir) no lugar de indicativos (coisas para acreditar). É a lei, e não 0 evangelho, que é um bem, é claro, mas...”. Todo mundo assume a lei. É o evangelho, uma notícia surpreendente, que nenhum de nós tinha o direito de esperar. Como tal, a notícia tem de ser contada - novamente, de novo e sempre. E as únicas pessoas que podem contá-la são aquelas que ouviram a história, cantaram na e podem anunciá-la aos outros. Para aqueles que pensavam em si mesmos como pessoas muito boas, Jesus ergueu o espelho do amor verdadeiro a Deus e ao próximo, deixando seus ouvintes rejeitarem a ele ou à sua própria justiça para serem vestidos com a obediência de Cristo. Paulo, o fariseu, percebeu esta bifurcação na estrada e, apesar de sua obediência externa ao código mosaico ser impecá vel pelos padrões humanos, disse que, então, considerava como “refugo” todo este acúmulo de realizações “para ganhar a Cristo e ser achado nele, não tendo uma justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé” (Fp 3.8-9). Ele tomou 0 seu lugar com o publicano na parábola de Jesus, em vez de com 0 fariseu, e foi para casa justificado (Lc 18.13-14). Longe de ser um Moisés mais amável e gentil, Jesus expôs o impulso interior da lei. As pessoas poderiam talvez deixar de dormir com o côn juge do outro, mas tom ar 0 desejo equivalente ao adultério foi, como se costuma dizer, 0 fim da picada”. Mais uma vez, somos lembrados do argumento de Jesus de que, quando João Batista veio com a gravidade da lei e do julgamento, os líderes religiosos não lamentaram sua c ondição de perdidos e, quando o Filho do Homem veio com a alegria do evangelho, não dançaram (Mt 11.17). ’ Em minha experiência, este é 0 lugar onde vários cristãos estão viven do hoje: não se sentindo muito ameaçados pela sentença de morte da lei, também não estão regularmente ouvindo a notícia libertadora das boasnovas do evangelho. Nossa intuição nos diz que, se apenas ouvirmos a pregação mais prática (isto é, exortações tocantes para seguir a Jesus), vamos melhorar. Quando essa se toma a principal dieta, no entanto, des cobrimos que não estamos melhorando. Nem choramos nem dançamos. Mas nos leve para dentro do átrio de um Deus santo, onde somos comple tamente desnudados, e nos fale sobre o que Deus fez em Cristo para nos salvar; conte-nos sobre os maravilhosos indicativos do evangelho - das intervenções surpreendentes de salvação de Deus no palco da História, apesar da rebelião humana - e a vela tremulante da fé se inflamará, dando luz aos outros.
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A lei guia , mas não dá. Para todos os que procuram ser agradável a Deus por meio da obediência, do amòr, da santidade e do serviço, o chamado para a obediência só condena. A lei nos mostra o que não fizemos e, quanto mais a ouvimos corretamente, mais realmente perdemos nossa autoconfiança moral e nos apegamos a Cristo. Ela para nossa máquina interior que distor ce os fatos, criando uma falsa visão de Deus e de nós mesmos. Nesta pregação da lei, o pecado é reconhecido como um estado que pro duz certos atos, e não o contrário. O objetivo de tal pregação é nos conduzir ao tipo de confissão que encontramos no Catecismo de Heidelberg'. Mesmo que minha consciência me acuse de ter pecado gravemente contra todos os mandamentos de Deus, de não ter guardado nenhum deles e de ser ainda inclinado a todo mal, todavia Deus me dá, sem nenhum mérito meu, por pura graça, a perfeita satisfação, a justiça e a santidade de Cristo. Deus me trata como se eu nunca tivesse cometi do pecado algum ou jamais tivesse sido pecador e como se, pessoalmente, tivesse cumprido toda a obediência que Cristo cumpriu por mim.23 A pregação apropriada da lei vai nos levar ao desespero de nós mesmos, mas apenas para que possamos, finalmente, olhar para fora de nós, para Cristo. Paulo contrapõe “a justiça decorrente da fé” à “justiça decorrente da lei”. Quando se trata da forma como a pessoa é justificada - aceita como justa diante de Deus - nada poderia ser mais contrário do que a lei e o evangelho. A lei não oferece ajuda às almas desobedientes, mas garante certa e justa condenação. Ela não veio para encorajar e edificar ou como uma estratégia para a vitória, do tipo “mantenha a cabeça erguida”, mas para m atar —para acabar com 0 domínio do pecado em sua essência, ou seja, o orgulho do autogovemo e da autoconfiança. Uma vez desiludida de qualquer esperan ça de bons conselhos e aperfeiçoamento moral, a pessoa, então, corre para Cristo, para obter segurança. Fico sempre irritado com meu check-up médico anual, principalmente porque a enfermeira me pesa e, a cada vez, 0 resultado é cerca de 4 kg a mais do que quando peso a mim mesmo. Em casa, posso mexer um pouco na balança, mas a enfermeira, no consultório do médico, não deixa nem mesmo eu esvaziar meus bolsos. Quando ela me pesa, 0 resultado vai para 23 The Heidelberg Catechism, Lord’s Day 23, Pergunta 60, em Psalter Hymnal: Doctrinal Standards and Liturgy o f the Christian Reforme d Church. Grand Rapids: CRC Board of Publications, 1976, pág. 30.
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o gráfico. Ofereço uma racionalização; ela sorri, como se já tivesse ouvido isso milhares de vezes antes, mas não faz ajustes em seu cálculo. Somos brilhantes na racionalização e na manipulação de evidências. As pessoas detêm a verdade” (Rm 1.18). Somos “doutores da distorção dos fatos”. Ao contrário do conselho piedoso de outras pessoas ou dos padrões que estabelecemos para nós mesmos, a lei de Deus é a balança fiel que não podemos adulterar, pesando-nos em comparação com a santidade de Deus, não com a do vizinho do lado. Mas quantas vezes somos pesados na balan ça de Deus, nus em sua presença e desprovidos de desculpas?
O e va n g e l h o d o a m o r
Partimos da caricatura do personagem de Dana Carvey, do Saturday Night Live , Church Lady, com seu ar de superioridade moral e palavras de de saprovação, para a caricatura sentimental e terapêutica de A1 Franken, de Stuart Smalley, no mesmo programa. Cada monólogo de “psicobaboseira” é encerrado com Smalley fazendo 0 público repetir depois dele “eu sou bom o suficiente, eu sou inteligente o suficiente e ora, dane-se, as pessoas gostam de mim . Muitas pessoas pensam que isso representa uma mudança refrescante do legalismo para uma forma mais positiva de espiritualidade. Mas não é esta apenas outra versão da religião no imperativo, uma versão diluída da lei? E se o mundo ridiculariza esse moralismo terapêutico, a quem estamos tentando impressionar? Durante uma viagem recente, enquanto passava pelos canais de televisão à procura de noticiários, aconteceu de parar no programa de Joyce Meyer, uma evangelista da prosperidade popular. Bem como Joel Osteen, Meyer reflete a antipatia dos Boomers por sua educação rigorosa. Após insultar a religião de regras de seu passado, Meyer disse: “Finalmente, percebi que o evangelho não tem nada a ver com regras, tem a ver com amar a Deus e uns aos outros. Então, 0 que você fez esta semana para ajudar alguém que você conhece?”. Já encontramos um tema semelhante em Joel Osteen: 0 cristia nismo não é um monte de regras; sua essência é amar a Deus e o próximo. Como vimos, esse sentimento é expresso por todo o espectro, do conserva dor ao liberal, da tradicional à megaigreja e desta à Igreja Emergente. Não muito tempo atrás, também me deparei com um trecho da obra de João Calvino na qual ele observou que muitos de seus amigos católico-romanos estavam também reagindo contra as regras e regulamentos de sua juventude, dizendo que só precisamos amar uns aos outros. “Como se isto fosse fá cilV\ exclama Calvino. Como Meyer, o que os contemporâneos de Calvino não perceberam é que o amor é, na verdade, 0 resumo da lei. Os mandamentos de Deus es tipulam o que 0 amor a Deus e ao próximo significa. Na Bíblia, a lei sim
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plesmente expõe 0 que significa amar a Deus e ao próximo. Muito antes de Jesus resumir a lei desta forma (Mt 22.39), ela foi entregue pela mão de Moisés (Lv 19.18,34) e Paulo reiterou a questão (Rm 13.8-10). Posso mui to bem ser capaz de me conter para não roubar a mulher e o carro de meu vizinho, mas dou ao meu vizinho o que lhe devo? Porventura, já vendi tudo 0 que tenho e dei aos pobres? Foi assim que Jesus definiu a lei e constran geu as pessoas (como 0 jovem rico) a perceberem que elas não gua rdavam todas estas coisas desde as suas juventudes (Mt 19.20). Sempre fico surpreso ao ouvir as pessoas sugerirem que 0 Deus do An tigo Testamento (e, talvez, a educação fundamentalista delas) é mais orien tado pela lei e julgador, enquanto 0 Deus do Novo Testamento é amável e tolerante. Fico ainda mais surpreso quando elas recorrem a Jesus no Sermão da Montanha. Não só dormir com a mulher de teu próximo, mas cobiçá-la em seu coração; não apenas não matar alguém, mas odiar seu vizinho; não só roubar, mas privar seu vizinho de seus recursos materiais: isso é o que Jesus diz que a lei verdadeiramente exige de nós. Por isso, dificilmente se pode dizer que seja notícia boa quando as pessoas informam que Deus exigia um monte de regras, mas, agora, nos diz apenas para amá-lo e uns aos outros. Definido desta forma, amar a Deus e 0 próximo é muito mais difícil do que seguir algumas regras. Quando Jesus define a lei do amor - até mesmo mais que isso, incorpora-a em sua própria pessoa e ações - eu estou perdi do. Antes de cantar “Que amigo temos em Jesus”, me encontro junto com Pedro, dizendo: “Senhor, retira-te de mim, porque sou pecador” (Lc 5.8). E Pedro não sentiu isso apenas uma vez, quando conheceu Jesus. Sua jornada com o Mestre oscilou de pontos altos, como sua confissão de Jesus como 0 Cristo, ao ponto mais baixo de negar Cristo por três vezes, e de volta ao ponto mais alto, sendo martirizado por seu testemunho de seu Salvador. Como a de Pedro, nossa vida cristã é uma montanha-russa de fidelidade e infidelidade. Visto que sempre voltamos ao triunfalismo autoconfiante (lembre-se do protesto de Pedro, “eu nunca vou negá-lo!”, um pouco antes de fazê-lo), precisamos ouvir 0 veredicto de Deus sobre nossa justiça por meio da lei e sua garantia de perdão no evangelho. O exemplo de Jesus não é uma boa notícia, contudo um fardo terrível, a menos que ele seja, antes de tudo, o que me salva de minha incapacidade de segui-lo. Aqueles que pensam que podem se enrolar nas folhas de figueira das suas intenções e ações de amor a Deus e ao próximo terão uma grande sur presa. “Apenas ame a Deus e as pessoas” não é 0 evangelho; é justamente essa santa exigência da lei que tristemente falhamos em cumprir. No ponto em que grande parte da pregação de hoje (ilustrada pelo comentário de Joyce Meyer, acima) oferece uma falsa distinção entre lei e amor, a distin ção bíblica é entre lei e evangelho. Nosso amor a Deus e ao próximo é a
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essência da lei; 0 amor de Deus para conosco em Jesus Cristo é a essência do evangelho. “Nisto consiste 0 amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou 0 seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1J0 4.10).
M a n d a m e n t o s , n ã o s ug e s tõ e s
O que todos nós precisamos hoje é de um novo encontro com a lei de Deus em sua força total. Quando os israelitas ouviram Deus comunicar sua lei no Monte Sinai, até Moisés tremia de medo (Hb 12.21). O povo estava aterro rizado e disse a Moisés: “Fala-nos tu, e te ouviremos; porém não fale Deus conosco, para que não morramos” (Êx 20.19). Por que esta reação? É-nos dito que eles “já não suportavam o que lhes era ordenado” (Hb 12.20). A lei de Deus não é uma lista de sugestões. Nem tampouco a principal razão para ela é nossa felicidade, embora tenhamos sido criados à imagem de Deus e, portanto, projetados para encontrar nossa profunda satisfação em glorificar e desfrutar a Deus. A lei é uma expressão da própria glória de Deus — seu caráter moral. Além disso, o pacto da lei jurado por Israel no Monte Sinai não foi “vamos tentar realmente ter 0 melhor de nossa vida agora”, e sim “tudo 0 que falou faremos”. Para confirmar o juram ento deles, Moisés aspergiu sangue sobre 0 povo, confirmando visualmente o compro misso deles com o cumprimento pessoal e perfeito dos termos do pacto. Não é de admirar que os israelitas, aterrorizados pela voz de comando de Deus, pedissem a Moisés para ser 0 mediador deles. No entanto, quando Moisés estava ausente da congregação, recebendo a lei de Deus na monta nha, 0 povo decidiu construir uma representação de Deus mais agradável - o bezerro de ouro - 0 qual, em vez de inspirar temor e medo, encorajavaos a uma forma mais leve de culto: “O povo assentou-se para com er e beber e levantou-se para divertir-se” (Êx 32.6). Se a voz da lei de Deus não nos descentralizar, nos desequilibrar e julgar nossos melhores esforços como carentes da glória de Deus, nunca correre mos para Cristo como nosso Mediador, superior a Moisés. Em vez disso, vamos inventar nossas próprias representações de Deus - nossos bezerros de ouro atuais - sugestões gentis para a vida e conselhos úteis que nos em balam a pensar que finalmente temos um Deus amigo que não provoca o grito “ó Deus, sê propício a mim, pecador!” (Lc 18.13). Não há equilíbrio entre a lei e o evangelho. A lei nos diz o que devemos fazer; o evangelho nos diz o que Deus fez por nós. Estas são duas palavras distintas; cada uma deve ser ouvida em seus próprios termos, com toda a intensidade de sua sentença e absolvição. Ao justificar os pecadores, Deus não abranda sua retidão que é revelada em sua lei, mas imputa a justiça de Cristo a cada crente. Desta forma, a justiça de Deus não é sacrificada
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por seu amor; mas sim seu amor e sua justiça são mutuamente satisfeitos. Somos salvos pelas obras - na verdade, por perfeito amor e obediência. No entanto, a obra é de Cristo e não nossa, a qual serve de base para nossa confiança: “Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1). A boa notícia é: “Agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; justiça de Deus me diante a fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os que creem”; visto que os pecadores são “justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé” (Rm 3.21-25).
Q u a n d o q u e s t õ e s s e c u n d á r i a s s e t o r n a m p r im á r ia s
Por que Jesus veio? Qual era sua missão? O próprio Jesus responde: “Tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mt 20.28). Quando foi repreendido pelos seus discípulos por atrapalhar o plano deles falando sobre cruz, Jesus disse: “Precisamente com este propósito vim para esta hora” (Jo 12.27; gri fo do autor). Quando Filipe pediu a Jesus para mostrar-lhes o caminho para o Pai, Jesus disse que ele é o Caminho (Jo 14.8-14). Da mesma forma, Paulo disse aos coríntios que não só estava, única e exclusivamente, determinado a pregar somente Cristo, mas “Cristo cruci fic ad o ”, embora fosse “escândalo para os judeus, loucura para os gentios” , uma vez que é a única boa notícia capaz de salvar ambos (1C0 1.23; veja 1C0 1.18-2.1-2). Paulo sabia que os pregadores até usariam o nome de Jesus, porém, muitas vezes, ele foi usado como algo ou alguém que não o sacrifício vicário para os pecadores (2C0 11.4-6). Os fariseus questionaram Jesus sobre casamento e divórcio, adultério e impostos, e o criticaram por colher grãos no sábado e por comer e beber com publicanos e pecadores (Mt 11.19). Focados em prenunciar 0 reino de Deus, observando estritamente as regras dos mais velhos - e tentando pegar Jesus em armadilhas sobre questões jurídicas - eles se desviaram da verdadeira missão do Messias. Olhando para si mesmos quando deveriam estar olhando para Cristo como “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29), se desviaram. O mesmo ocorreu com os próprios discí pulos, que m udavam de assunto quando Jesus falava da cruz, enquanto eles se aproximavam de Jerusalém. Os discípulos estavam pensando no dia da entrada na cidade, com 0 julgamento final e a consumação do reino em toda sua glória. Jesus sabia, entretanto, que o único caminho para a glória era pelo caminho da cruz. Jesus contrasta a falsa piedade do fariseu com a fé verdadeira e o arrepen dimento do cidadão de seu reino em sua famosa parábola em Lucas 18:
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Cristianismo sem Cristo Dois homens subiram ao templo com o propósito de orar: um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, posto em pé, orava de si para si mesmo, desta forma: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros, nem ainda como este publicano; jejuo duas vezes por semana e dou 0 dízimo de tudo quanto ga nho. O publicano, estando em pé, longe, não ousava nem ainda levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizen do: O Deus, sê propício a mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque todo o que se exalta será humilhado; mas o que se humilha será exaltado (Lc 18.10-14).
Jesus disse aos fariseus: “Vós sois os que vos justificais a vós mesmos diante dos homens, mas Deus conhece 0 vosso coração; pois aquilo que é elevado entre homens é abominação diante de Deus” (Lc 16.15). Enquanto Jesus basicamente parecia ignorar os saduceus, uma vez que eles prova velmente viam-se como irrelevantes, ele advertiu repetidamente contra “o fermento dos fariseus”, que é “a hipocrisia” (Lc 12.1). Na parábola que Jesus conta, 0 fariseu até mesmo ora: “Ó Deus, graças te dou porque não sou como (...) este publicano”. A única coisa pior do que a autojustiça dele é que ele finge dar a Deus um pouco de crédito por isso. Todos nós já assistimos a alguma cerimônia de premiação em que os beneficiários reconhecem as pessoas sem as quais tal sucesso não teria sido possível. Isso é completamente diferente, entretanto, de ser o beneficiário da herança de alguém que, no exato momento da elaboração do testamento, foi tratado como um inimigo pelo herdeiro. Assim, todas as perguntas que os líderes religiosos faziam para Jesus eram questões legais: o que fazer na situação x ou / ? Qual é a única coisa que preciso fazer para obter a vida eterna - além de todos os mandamentos da lei, que tenho guardado? Jesus força estes questionadores (como 0 jovem rico) a reconhecer que não têm realmente guardado a lei. Da mesma forma, Paulo desafiou os gálatas: “Todos quantos, pois, são das obras da lei estão debaixo de maldição; porque está escrito: Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no livro da lei, para praticá-las. E é evidente que, pela lei, ninguém é justificado diante de Deus, porque o justo viverá pela fé (G1 3.10-11; grifo do autor). Estes são os termos. Não há avaliação em curva; não há férias por bom comportamento ou boas intenções. Isso deveria nos colocar de joelhos, confessando nossa impotência absoluta, mas, em vez disso, muitas vezes, desperta nossa autojustiça. Neste último caso, evita mos a nobre obra da lei de nos conduzir para fora de nós mesmos a Cristo. Os bons princípios ordenados por Deus, na verdade, se tomam um desvio
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em vez de um mestre para nos conduzir a Cristo. As boas-novas, Paulo acrescenta, é que “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar” (G1 3.13). Os judeus, diz Paulo, trope çam em Cristo. Ele é a rocha de escândalo que está no caminho de nosso ativismo “transformacional”. Os gentios amam a sabedoria, então lhes mostre um Jesus que é mais inteligente em resolver os enigmas da vida diária e a igreja vai ter uma multidão de adeptos. Paulo diz que seus contemporâneos judeus amam sinais e prodígios. Então diga às pessoas que Jesus pode ajudá-las a ter uma vida melhor agora, ou trazer o reino da glória, ou expulsar os roma nos e provar a sua integridade perante os pagãos, e Jesus será laureado com louvor. Dê-lhes alguma sabedoria moral de sua própria tradição de fé que possa ajudá-las a ser melhores pais e cônjuges, e talvez ouçam - contanto que você não forneça sugestões e ordens que Deus usará como base para julgar no último dia. Mas proclame Cristo com o o Servo So fredor, que morreu e ressuscitou, e todo mundo se pergunta quem mudou o assunto. A igreja existe para mudar o assunto de nós e de nossos atos para Deus e seus atos de salvação, e de nossas várias missões de salvar o mundo para a missão de Cristo, que já realizou a redenção. Ele nos envia ao mundo, isso é certo, mas não para salvá-lo. Ao contrário, ele nos envia ao mundo para dar testemunho de Cristo como único Salvador, assim como para amar e servir nosso próximo em nossa vocação secular. O mal está em nosso interior, não fora de nós; a salvação é que vem de fora de nós mesmos. Nada que a igreja faz amplia, completa ou cumpre a total e suficiente obra de Cristo, feita uma vez por todas, de viver, morrer e ressuscitar pelos pecadores. Assim, chega de nós. Somos os pecadores que ele salva, não os redentores que ele inspira. Esse é 0 conteúdo de nosso testemunho, a razão pela qual somos arautos das boas-novas em vez de meros fornecedores de bons conselhos. E mesmo em termos de impacto evangelístico, estou con fiante de que esta orientação é mais eficaz com os não cristãos. Eles podem não gostar de nossa mensagem de qualquer maneira, mas, pelo menos, po dem ficar aliviados ao verem que paramos de nos colocar como o caminho, a verdade e a vida. Se a mensagem que a igreja proclama faz sentido sem a conversão; se ela não ofende os crentes de longo tempo de vez em quando, de modo que também precisem morrer mais para si mesmos e viver mais para Cristo, en tão isso não é o evangelho. Quando se fala de Cristo, muitas coisas podem acontecer, nenhuma delas, necessariamente, terá um impacto duradouro. Quando Cristo é proclamado em seu ofício de Salvador, a igreja se toma um teatro de morte e ressurreição.
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P e r d e n d o o s i g n if ic a d o : t ra n s f o r m a n d o a B íb l i a e m
de instruções para a vida
Manual
E possível ser um fundamentalista crente na Bíblia e não entender que Cris to é a totalidade, assim como a substância de sua mensagem? Os fariseus eram os guardiões da Escritura, tão preocupados em segui-la rigorosamente que até mesmo planejaram diversas restrições para prote ger seus mandamentos. Se a lei mandava que se descansasse dos trabalhos normais no sábado, os líderes religiosos insistiam que uma pessoa pobre deixasse de colher grãos no sábado, mesmo para a sobrevivência. Na ver dade, logo depois de Jesus ser repreendido pelos fariseus por deixar seus discípulos fazerem exatamente isso, ele lhes disse: “Examinais as Escritu ras, porque julgais ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de mim. Contudo, não quereis vir a mim para terdes vida” (Jo 5.39-40). As Escrituras que ele tinha em mente era o que chamamos de Antigo Tes tamento. Eles eram zelosamente comprometidos com a Bíblia, mas não a compreenderam. Depois de sua ressurreição, Jesus encontrou alguns de seus discípulos ao longo da estrada de Emaús que se sentiam deprimidos e os animou, fa zendo-os recordar as Escrituras, dizendo: “Porventura, não convinha que 0 Cristo padecesse e entrasse na sua glória? E, começando por Moisés, discorrendo por todos os Profetas, expunha-lhes o que a seu respeito cons tava em todas as Escrituras” (Lc 24.26-27). Não admira que seus corações ardessem dentro deles enquanto Jesus lhes expunha as Escrituras (v. 32). A parte de Cristo, a Bíblia é um livro fechado. Leia-a com ele no centro, e é a maior história já contada. A Bíblia é banalizada quando é reduzida a um manu al de instruções de vida. Qual é o sentido dos livros históricos, dos salmos, da literatura de sabedoria e dos profetas? De acordo com os após tolos - e 0 próprio Jesus - a Bíblia é um drama sendo desenrolado, que tem Jesus Cristo como seu personagem central. Como as próprias narrativas deixam bastante claro, os santos do Antigo Testamento não foram heróis de fé e obediência, mas pecadores que, apesar de sua própria hesitação, rece beram fé para se apegarem à promessa de Deus. De acordo com o apóstolo Paulo, o próprio Antigo Testamento proclamou este evangelho da livre jus tificação em Cristo por meio da fé somente: “Agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas” (Rm 3.21). Em sua primeira carta, 0 apóstolo Pedro recorda os crentes da “alegria indizível e cheia de glória” resultante do fato de que estavam “obtendo o fim da vossa fé: a salvação da vossa alma”. Então, ele acrescenta: Foi a respeito desta salvação que os profetas indagaram e inquiriram, os quais profetizaram acerca da graça a vós ou tros destinada, investigando, atentamente, qual a ocasião
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ou quais as circunstâncias oportunas, indicadas pelo Espí rito de Cristo, que neles estava, ao dar de antemão teste munho sobre os sofrimentos referentes a Cristo e sobre as glórias que os seguiriam. A eles foi revelado que, não para si mesmos, mas para vós outros, ministravam as coisas que, agora, vos foram anunciadas por aqueles que, pelo Espírito Santo enviado do céu, vos pregaram o evangelho, coisas essas que anjos anelam perscrutar (lP e 1.8-12). Não é de surpreender que, de acordo com Jesus, a Bíblia inteira é sobre ele e que Pedro diga que os anjos anseiam por entender as boas-novas que são (ou deveriam ser) trazidas semanalmente por arautos, mas resolvemos que outro alguém ou algo deveria ser o foco de nossa pregação e adoração esta semana? “Sim, mas já entendemos tudo isso”, ouço alguém dizer. En tendemos? Não, a menos que, por natureza, sejamos justos em nós mesmos e autoconfiantes, respondendo a lei com o juramento dos israelitas no Mon te Sinai: “Tudo o que falou faremos”. É tão fácil perder Cristo por falta de atenção quanto é fácil perdê-lo por meio da negação. Continuamos esperando os liberais “perderem a bola”, quando as igrejas conservadoras são, com frequência, igualmente passíveis de se interessarem por alguém ou algo dife rente do Cristo cru cificado nesta semana. Uma mulher que estava com problemas em seu casamento disse a um pastor amigo meu que ela decidiu visitar a igreja dele porque a igreja dela estava passando por uma fase de “como ter um casamento melhor”. “O que eu mais preciso ouvir neste momento é quem Deus é e o que Cristo fez por mim, por mais que eu esteja agoniada. Meu casamento precisa de um monte de coisas, mas disso mais do que qual quer outra coisa.” Ela estava certa. Cristianismo sem Cristo não significa religião ou espiritualidade des provida das palavras Jesus, Cristo, Senh or ou até mesmo Salvador. Signi fica que a forma como esses nomes e títulos são empregados os deslocará de seu local específico no desdobramento histórico da trama da rebelião humana e do resgate divino, e de práticas como o Batismo e a Ceia. Jesus como treinador de vida, terapeuta, amigo, outro significativo, fundador da civilização ocidental, messias político, exemplo de vida radical e outras inúmeras imagens podem nos distrair do escândalo e da loucura de “Cristo e este crucificado”. Este evangelho pode até ser acrescentado ao final de sermões. A questão, porém, é se estamos pregando a Palavra de Gênesis ao Apocalipse como um testemunho de Cristo ou como um recurso para escrever nossa própria história. Em outras palavras, deixar-se levar em direção ao cristianismo sem Cristo pode acontecer por meio da adição, bem como da subtração. Em
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Screwtape Letters de C. S. Lewis, 0 diabo instrui seu comparsa, Cupim, a
manter os cristãos distraídos de Cristo como o Redentor da ira de Deus. Em vez de, incomodamente, anunciar sua presença por ataques diretos, Cupim deveria tentar fazer as igrejas se interessarem pelo cristianismo e algo mais: 0 cristianismo e a guerra, o cristianismo e a pobreza, o cristianismo e a mo ralidade, e assim por diante. Ouvi alguém dizendo: “Mas temos de tomar Jesus e o evangelho re levantes para as pessoas de nosso tempo e lugar”. Porém que é dito sobre Jesus Cristo se a relevância de sua pessoa e obra não podem se garantir por conta própria? Claro, Cristo veio como “ 0 Cordeiro de Deus, que tira 0 pe cado do mundo” (Jo 1.29), mas ele pode me ajudar a conseguir aquela pro moção no trabalho ou aliviar meu estresse? Pode fazer meus filhos espertos para que fiquem longe das drogas? “Cristianismo e...” já pressupõe que o cristianismo, em si, não é interessante. Mas como um adjetivo para outras coisas (aeróbica cristã, valores cristãos, música cristã, etc.), é nada m ais que uma marca valiosa. Tão contra 0 senso comum quanto possa parecer, estar fundamentado no evangelho de Cristo alivia 0 estresse em locais profundos que nem sequer sabíamos que tínhamos dentro de nós mesmos; tenho teste munhado inúmeros casos de jovens liberados do tédio induzido por vícios e padrões pecaminosos, tomando-se fascinados com a maravilhosa graça de Deus em seu Filho. Ninguém precisava lhes dizer que as drogas eram erradas; eles sabiam disso. E todas as palestras banais sobre autoestima e chamados emotivos de acampamentos para “entregar tudo” só os deixaram mais cínico. A pregação genuína da lei diagnostica a condição pecaminosa - a raiz, e não apenas 0 fruto - e 0 evangelho é sua solução radical. Muitas vezes, na pregação popular de hoje, parece que o objetivo é seguir pela interpretação da passagem a fim de chegar à aplicação con temporânea que, normalmente, evidencia as fixações do próprio pregador e sua dieta recente de leitura ou filmes. Normalmente, aplicação igualase à lei - listas para fazer - em vez de usar a passagem para realmente absolver os pecadores de sua culpabilidade e reescrevê-los em seus novos papéis como aqueles que foram transferidos da autoridade da aliança de Adão para a de Cristo. Claro que não estou negando, não mais do que C. S. Lew is, que os cris tãos devem ter um interesse em questões urgentes da atualidade ou que existe um lugar importante para a aplicação do ensino bíblico à nossa con duta no mundo. Mas, da mesma maneira que Lewis, estou preocupado por que, quando a mensagem básica da igreja é menos sobre quem é Cristo e o que ele fez de uma vez por todas para nós e mais sobre quem somos e o que temos de fazer para tomar a vida dele (e a nossa) relevante para a cultura, a religião que é feita “relevante” não é mais o cristianismo. Independente de quanto seu nome seja invocado, uma religião que se transforma em “o que
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faria Jesus?” não é a fé cristã. Não pensar que 0 “Cristo crucificado” é tão relevante quanto “Cristo e valores da família”, ou “Cristo e a América”, ou “Cristo e a fome no mundo”, faz-nos assemelhar o evangelho à lei. Quando as pessoas pedem uma pregação mais prática , ou uma mensa gem mais relevante que Cristo e este crucificado, estão recuando para a lei em vez de ir para o evangelho. Outra maneira de dizer isso é que preferimos dar a Deus um papel de coadjuvante no filme filme de nossa vida - a história da nossa própria própria glória glória - em vez de sermos reformulados reformulados em seu drama da redenção redenção em progresso. progresso. Como Deus pode consertar meu casamento? Como ele pode me tomar um líder mais eficaz? Como posso superar o estresse e gerir meu tempo e minhas finanças melhor? Essas perguntas não são ruins. Na verdade, verda de, as Escrituras Escr ituras trazem traze m sabedoria sabed oria sólida sobre essas essa s questões. ques tões. Mas não são as questões mais importantes, nem mesmo para os cristãos de toda uma vida. A menos que Cristo seja pub licame lica mente nte exibido ex ibido como c omo crucific c rucificado ado - afixa do diante de nós, semana após semana, na Palavra e nos Sacram entos - nós, como os gálatas, deixamo-nos levar em direção à visão de que começamos com Cristo e seu Espírito e, depois, acabamos lutando por nossa própria justiç ju stiç a diante diant e de Deus (G1 (G1 3.1-3). Uma vez que até mesmo mes mo os cristãos cris tãos per manecem, ao mesmo tempo, pecadores e justificados, sempre gravitamos de volta a nós mesmos: 0 que acontece dentro de nós, o que podemos medir e controlar, 0 que podemos ver e sentir. Onde quer que a Palavra de Deus enfoque nosso mundo, temos de tes temunhar tanto de sua lei quanto de sua promessa. No entanto, os ministros não são instruídos para serem especialistas em economia, negócios, direito e política. As pessoas podem obter conselhos financeiros, conjugais e para criação de filhos muito melhores de parentes ou mesmo de vizinhos não cristãos do que de seu pastor. Em vez disso, os ministros são instruídos para serem sere m sábios nas Escrituras, Escritu ras, que estão centrada cent radass no drama dra ma da reden red en ção. Eles não são enviados em sua própria missão, mas são embaixadores e arautos enviados por Deus a um mundo de pecado e morte. São chamados para procla pro clama marr a mensage men sagem m mais importante impor tante e releva re levante, nte, que não pode ser ouvida em qualquer outro lugar. Uma vez liberados pelo evangelho da condenação da lei, nossos cora ções ficam cheios de gratidão. A lei não só nos leva a Cristo, ela diz à fé criada pelo evangelho o que fazer. No início de meu casamento, achava muito importante comprar para minha esposa presentes de Natal e de ani versário que queria que ela tivesse. Assim, fiquei chateado quando ela estra gou a surpresa ao me dizer 0 que realmente queria. “Por que não posso ser espontâneo?”, perguntei a ela. “Então, este é realmente um presente meuT' Levou um tempo para eu perceber que estava, na verdade, sendo egoísta. Da mesma forma, a lei de Deus nos diz o que Deus aprova - com o que
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seu coração se deleita. Ele não nos pede para sermos espontâneos, criativos ou teimosos, mas para fazermos as coisas que ele considera como justas, santas, verdadeiras e boas. Mesmo quando grande parte da pregação e da literatura cristã popular de atualidade centra-se em imperativos, são, muitas vezes, nossas suges tões inteligentes (disfarçadas de “aplicações”) em vez de implicações claras de uma determinada passagem. Por isso, precisamos de atenção renovada para par a a Palavra Pala vra de Deus não apenas para proclama proc lamarmos rmos adequad ade quadame amente nte e recebermos 0 evangelho, mas para dirigirmos nossa obediência aos seus mandamentos corretamente. Nem Ne m mesmo mes mo esta pregação prega ção da lei como regra de gratidão grati dão cristã crist ã pode, contudo, ter a última palavra. Provavelmente, todos nós ouvimos sermões que, depois de expor as expectativas de Deus ou 0 exemplo de alguém na Bíblia, conclui: “Será que isso descreve você?”. Se você me julgar julg ar pela jus ju s tiça que Deus exige, não posso verdadeiramente responder sim nesses mo mentos. A boa notícia é que, por causa da justiça justiç a de Cristo ter sido cre ditada a mim, ela me descreve. Embora também esteja sendo renovado conforme a semelhança de Cristo, esta santificação (ao contrário de justificação) per manece inacabada, parcial e, muitas vezes, ambígua para mim e para os ou tros. Isso significa que vou ter de de decidir isso baseado na promessa promes sa de Deus, e não na minha experiência. Não Nã o me vejo como um vencedor , mas Deus diz que, apesar de nosso sofrimento e das lutas contínuas com 0 pecado que habita em nós, “em todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio m eio daquele daque le que q ue nos amou” amou ” (Rm 8.37). Sou S ou um benefic be neficiário iário da d a vitória vitór ia de Cristo sobre a culpa e a tirania do pecado. Diga-me quem eu sou em Cristo (o indicativo) e agora, de repente, tendo em conta “as misericórdias de Deus”, os mandamentos (imperativos) tornam-se meu sacrifício “agra dável” (Rm 12.1). Por que deveria querer sujeitar-me, por mais tempo, ao padrão pad rão de pensame pens amento nto deste mundo quando fui escrito no enredo enred o de Deus como um co herdeiro, com Cristo, do reino do céu (vs. 2-21)? Quando 0 evangelho de Cristo como Salvador é é deixado de lado, já não somos constantemente constantemente convertidos convertidos - não só de nossa imoralidade, ganân cia e egoísmo, mas de nosso orgulho espiritual, hipocrisia e autoconfiança - para aquela fé em Cristo a qual unicamente unicamente pode produzir 0 fruto do Es pírito, que abençoa aben çoa a comunhão comun hão dos santos e parte pa rte em serviço serviç o amoroso amo roso ao nosso próximo.
A t r e v a s e a s e r u m D a n i e l !
A Bíblia não é um manual de instruções para a vida diária. Naturalmente, ela revela a vontade moral de Deus para nossas vidas, mas é a história de redenção que é central.
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Quantas vezes ouvimos o Antigo Testamento ser interpretado como uma coleção de histórias histórias piedosas que podemos usar para nossa vida diária? Em Gênesis, Gênesis, podemos ter um sem-número de heróis para imitar e de vilões para fugir. Nunca soube, ao crescer no evangelicalismo, que o Antigo Testamen to era a respeito de Cristo. Pensava que era sobre os heróis da Bíblia, cujo caráter devia ser imitado. Seja fiel como Abraão, consagrado como Moisés, e assim por diante. A vida vida de Josué pode ser explorada à procura de princí pios de liderança, lidera nça, e todos to dos nós devemos deve mos nos atrever atre ver a ser um Daniel. Danie l. Qua Quais is eram as cinco pedras lisas que eu poderia encontrar em meu alfoije para matar os Golias de minha vida, assim como Davi fez? A Bíblia não é parecida com as fábulas de Esopo: uma coleção de his tórias curtas que terminam com um princípio moral. Abraão foi, de muitas maneiras, um fracasso moral: dormiu com sua serva, quando Deus havia prometido prom etido um herdeiro herd eiro por meio mei o de sua esposa, espo sa, Sara; Sara ; mentiu me ntiu a um rei, di zendo-lhe que Sara era sua irmã, a fim de safar-se de uma situação difícil - e assim por diante. diante. Nem mesmo sua disposição disposição de sacrificar Isaque é um exemplo para nós, mas uma ocasião para Deus prenunciar Cristo como 0 cordeiro cordeiro preso no mato para que Isaque Isaque - e o restante de nós - pudesse sair livre. Jacó era um trapaceiro, mas Deus o havia escolhido; apesar de ele ter continuado continuado a com eter pecados terríveis terríveis ao longo de sua vida, Deus manteve ma nteve sua promessa graciosa. Josué não é uma fonte para princípios de liderança, liderança, a menos que estejamos pensando em liderar uma campanha de destruição contra nações idólatras, idólatras, para estabelecer a justiça na terra santa de Deus. No entanto, à luz da história da redenção, Josué e seu ministério apontam para frente, para a pessoa e para a obra de Cristo. Davi pode ser apresentado apresentado como um exemplo heroico somente de modo ambíguo. Seu papel principal na História é prenunciar seu Filho maior, que assumiu o trono eterno e o qual Deus prometeu incondicionalmente aos herdeiros herdeiros de Davi. Em bora descrito descrito como “um homem s egundo o coração de Deus”, Davi cometeu adultério e encobriu seu crime enviando o m arido da vítima - um dos soldados leais de Davi - para morte certa na batalha. Ele não foi autorizado a construir 0 templo por causa da violência do seu reina do, e sua família produziu um rei horrível após o outro. No entanto, Deus manteve sua promessa unilateral de preservar um rei davídico no trono de Judá, para sempre. Deus, e não Davi, foi o herói; Cristo, como o Filho real de Davi, e não minha imitação de Davi, é o ponto essencial. Inúmeros outros exemplos podem ser apresentados. Até mesmo a “Ga leria dos Heróis da Fé”, em Hebreus 11, é equivocada. O escritor sempre menciona que venceram pela fé em Cristo, não por suas obras. Na verdade, Deus superou os pecados deles para continuar seus propósitos redentores, trabalhando por meio da loucura e da fidelidade deles. A questão é demons trar que que a loucura de Deus é mais sábia que a sabedoria humana e a fraqueza
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dele é maior do que a força humana. Além disso, os exemplos selecionados nesse capítulo de Hebreus são exatamente como Davi: em cada caso, santo e pecador simultaneamente. Na verdade, Paulo apela a Abraão e Davi, em Romanos 4, como exemplos para nós, mas como pecadores que foram jus tificados pela fé em Cristo somente. Pelas expectativas moralistas muitas vezes assumidas, não é de se ad mirar que as pessoas achem o Antigo Testamento muito chato e muito do Novo Nov o Testamento Testam ento misterioso. mist erioso. Compare Compa re esta abordage abo rdagem m com a interpreta inte rpretação ção de Lutero da história de Davi e Golias, por exemplo: Quando Davi venceu o grande Golias, a boa e encorajadora notícia chegou aos judeus: seu inimigo terrível ha via sido abatido, eles haviam sido resgatados e tinham obtido alegria e paz; eles cantaram, dançaram e foram feIizes por isso (1 Sm 18.6). Assim, este evangelho de Deus ou do Novo Testamento é uma boa história e um relato enviado a todo 0 mundo pelos apóstolos, falando de um verdadeiro Davi que lutou contra o pecado, a morte e o diabo, e os venceu e, desta maneira, resgatou todos os que estavam cativos pelo pecado, aflitos com a morte e dominados pelo diabo.24 Como comenta Graeme Goldsworthy: O ponto importante a salientar é que Lutero fez a ligação entre os atos salvíficos de Deus por meio de Davi e os atos de salvação de Deus por meio de Cristo. Uma vez que vemos esta conexão, é impossível usar Davi como um mero modelo para a vida cristã, visto que a vitória dele foi vicária e os israelitas só podiam se alegrar com o que foi conquistado para eles. Em termos de nossos princípios interpretativos, vemos a vitória de Davi como um evento de salvação no qual a existência do povo de Deus na terra prometida estava em jogo.2 jogo. 25 Em vez de desenhar uma linha reta da aplicação da narrativa para nós, que normalmente moraliza ou alegoriza a história, somos ensinados, pelo 24Lutero, Martinho. Word Word an d Sacrament, vol. 35 de Luther’s Works (edição americana). Filadélfia: Muhlenberg Press, 1960, pág. 358, citado por Goldsworthy, Graeme. The Gol dsworthy Trilogy. Carlisle, UK: Paternoster Press, 2000, pág. 129. 25Goldsw orthy, The G oldswor olds wor thy Trilogy> Trilogy>, págs. 128-129.
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próprio Jesus, a com preender estas passagens à luz do lugar delas no drama da redenção que conduz a Cristo. Não obstante a teologia oficial grafada em papel, a pregação moralista (a bandeira dos conservadores e igualmente a dos liberais) assume que não somos realmente pecadores impotentes que precisam ser resgatados, mas gente decente que precisa de bons exemplos, exortações e instruções. Os incrédulos, por certo, precisam ser salvos, mas os crentes precisam ser in centivados com bons exemplos. No entanto, continua Goldsworthy: Não somos salvos por nossas vidas mudadas. A vida mu dada é o resultado de ser salvo, e não a base disso. A base da salvação é a perfeição na vida e na morte de Cristo apresentada em nosso lugar. (...) Pela volta à interpre tação alegórica, de um lado, ou ao literalismo profético, do outro, alguns evangélicos têm jogado fora os ganhos hermenêuticos dos reformadores em favor de uma abor dagem medieval à Bíblia. (...) Os evangélicos tinham a reputação de levar a Bíblia a sério. Mas até mesmo eles têm tradicionalmente propagado a ideia da leitura devocional breve a partir da qual uma “bênção do Senhor” pode ser arrancada.26 Mais uma vez, tudo depende de se usamos a Bíblia para corrigir nossos próprios problemas interiores ou para ouvir Deus falando conosco por meio da sua Palavra, chamando-nos para fora de nós mesmos para nosso Re den tor na História. Independente do que tenhamos no papel como a sã doutrina evangélica, uma dieta regular de pregação moralista, ministério de jovens, escola do minical, literatura devocional e ajuda aos necessitados sempre produzirão igrejas cheias de pelagianos praticantes. Goldsworthy chama a atenção para essa diferença: O ponto central de virada no pensamento evangélico que exige atenção especial é a mudança que ocorreu a partir da ênfase protestante sobre os fatos objetivos do evange lho na História, para a ênfase medieval na vida interior. O evangélico que vê a obra transformadora interior do Espírito como o elemento fundamental do cristianismo, em breve, perde o contato com a fé histórica e com o evangelho histórico. (...) O cristianismo direcionado para 26Ibid., págs. 131, 136-137.
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Cristianismo sem Cristo o interior, que reduz 0 evangelho ao nível de qualquer outra religião do homem interior, poderia muito bem usar um texto dos apócrifos para servir como seu epitáfio pessoai para os reformadores: “Há outros que são lembra dos; pois eles estão mortos, e é como se nunca tivessem existido” (Ben Sirah 44.9).27
Será sempre contra nossa natureza sermos conduzidos para fora de nós pela Palavra de Deus, mas é só por meio desta interferência graciosa de um Deus soberano que vamos receber e, então, expressar a verdadeira fé, esperança e amor. Não só em seu conteúdo, mas em sua form a o evangelho não é sobre nós e o que temos feito, entretanto sobre Deus e sua história de sucesso. Afinal, ele é notícia. Recentemente assisti a uma conversa na PBS entre apresen tadores aposentados de notícias da televisão. Uma questão interessante que todos os três participantes colocaram foi que 0 jornalismo (em especial na televisão) tinha mudado de um slogan antigo do tipo “todas as notícias que você precisa saber” para “todas as notícias que você pode usar”. Até notí cias foram transformadas em terapia e entretenimento. Por definição, no entanto, notícia é algo que você ainda não sabe e pode não achar que seja lá tão útil. Alguém tem de lhe contar 0 que aconteceu. Além disso, você ouve as notícias. Em outras palavras, é um destinatário. Você não fez a notícia, mas, se a notícia for significativa o suficiente, ela pode fazer você.
Credos e ações : do utrina, doxologia e deveres
O livro de Romanos é a apresentação mais sistemática da fé cristã da Bíblia. Paulo nos contou a má notícia: todo mundo, judeus e gentios igualmente, está em Adão e sob a condenação da lei. No entanto, isso apenas prepara o terreno para a boa notícia de que todo mundo que tem fé em Cristo é jus tificado. Depois de revelar esta cintilante joia para nossos olhos curiosos, Paulo refuta a objeção que este evangelho de graça gratuita sempre refutou: a saber, que ele conduzirá à licença moral. No entanto, mesmo aqui, a res posta não é reinar em graça, como se fosse uma abundância de uma coisa boa, e sim a explicação de como Cristo é a resposta para o poder, bem como a penalidade do pecado. Aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou. Que diremos, pois, à vista destas 27Ibid., pág. 137.
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coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as coisas? Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu ou, antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós. Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? (Rm 8.30-35). O que pode nos separar do amor de Cristo? Nada. Absolutamente nada. Cada subida leva-nos a vistas cada vez mais altas, por todo 0 caminho atra vés dos propósitos da graça eletiva de Deus, o que vemos nos capítulos 9-11, até que Paulo chega ao ápice: Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus ju ízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conse lheiro? Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Rm 11.33-36). Passamos da doutrina para doxologia e só depois encontramos a transi ção de Paulo para aplicação. Observe como o chamado de Paulo para o discipulado se alimenta de um foco explícito e constante na doutrina que ele explicou nos últimos 11 capítulos: “Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericór dias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável aDeus, que é 0 vosso culto racional” (Rm 12.1; grifo do autor). Alémdisso, na frase seguinte, ele nos impulsiona a mais profunda transformação não sim plesmente por uma vontade moral maior, mas por primeiro mudar nosso pensamento: “Não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (v. 2). O credo leva às ações; a dou trina alimenta a doxologia, gerando amor e serviço aos santos, bem como aos nossos vizinhos incrédulos (vs. 6-15). Paulo usa o mesmo argumento em 2Coríntios 9, onde diz que a gene rosidade dos que servem ao corpo de Cristo, tanto material quanto espiri tualmente, “redunda em muitas graças a Deus”. Tais ajudas “glorificam a
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Deus pe la obediência da vossa confissão q uanto ao evang elho de Cristo ”. Isso vai testemunhar “em virtude da superabundante graça de Deus”, e o apóstolo só pode concluir com a exclamação: “Graças a Deus pelo seu dom inefável!” (vs. 11-15; grifos do autor). Os dons vêm de Deus para nós e, por meio de nós, para os outros, enquanto as ações de graças sobem a Deus. Não é de admirar que o Catecismo de Heidelberg se desenvolva por meio de três vertentes: culpa, graça e gratidão. Esse é o movimento que encontramos nos salmos e nas cartas de Paulo. Aqueles que são muito per doados amam mais (Lc 7.47). Não há nada de errado em ser profundamente tocado pela verdade. Na realidade, as boas-novas geram doxologia; por tanto, se não formos afetados pela doutrina ou motivados por ela a amar o nosso próximo, então provavelmente teremos entendido mal alguma coisa. O salmo 45 começa assim: “De boas palavras transborda 0 meu coração” (v. 1) e, em seguida, recita 0 tema: 0 triunfo do Messias de Deus na Terra. Os salmos tipicamente seguem este padrão: contam a história dos triunfos de Deus apesar da infidelidade de seu povo, elevam louvores ao caráter de Deus e, finalmente, passam à resposta de grata obediência. Tenho obser vado que, muitas vezes, em locais onde cânticos de louvores são extraídos dos salmos, eles são trechos quase sempre tirados da segunda ou terceira seção, sem a primeira. Em vez de começar com as boas-novas dos atos poderosos de Deus, começamos com nossa resposta: “Eu te louvo”; “eu te amo, Senhor”; “eu vou te servir”; “eu vou me prostrar e te adorar”, etc. Mas isso significa que estamos incentivando fé em fé, confiança em nossa própria experiência e louvor, em vez de fé em Cristo como o amém às pro messas de Deus. Em outras palavras, a parte do salmo que tais exemplos ilustram é o serviço razoável sem a esperança das misericórdias de Deus. Os atos de Deus são deixados em segundo plano na expressão de nosso zelo e empenho. Isso é ter a lei sem o evangelho, tirar o serviço razoável para fora de seu ambiente original da história da redenção. Para Paulo, no entanto, a adoração agora é razoável, porque é a resposta sensata para as notícias que ouvimos. Se você for submetido, semana após semana, a uma die ta do “faça mais”, “seja mais autêntico”, “viva de forma mais transparente” e “sinta mais ", acabará por tomar-se um prisioneiro forçado a trabalhar arduamente, mas sem alimentação adequada. Se você desfrutar regularmente o banquete das obras de Deus e do zelo que consumiu nosso Salvador no serviço de nossa redenção, as exortações não serão mais uma carga excessiva, mas um guia para as expressões de agradecimento nas quais nosso Deus tem prazer. E um alívio quando somos libertos do pensamento de que fomos cha mados para ser 0 evangelho. Agora podemos simplesmente recebê-lo e nos apoiarmos nele, diariamente, para ter confiança de buscar a Deus em fé e olhar para nosso próximo em amor. Então, a lei pode nos guiar e orientar,
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não mais por causa do medo do julgamento, e sim como uma verdadeira ação de graças pela graça de Deus. O evangelho muda vidas; ele não é a nossa vida mudada. “Não nos pre gamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus como Senhor” (2C0 4.5). Como tem sido frequentemente mostrado, Paulo muitas vezes vai da doutrina para a aplicação em suas epístolas. Na verdade, ele é bastante ciaro sobre isso. Em ICoríntios, ele se move de uma direção a outra entre o diagnóstico e a cura - da divisão, das contendas, da imoralidade sexual, das ações judiciais e dos maus-tratos aos pobres para a fidelidade de Deus, a justificação, a santificação e a unidade dos santos em união com Cristo, especialmente como gerada pela Ceia do Senhor. Gálatas, Efésios, Colossenses e Romanos exibem um padrão ainda mais claro. Em cada caso, a primeira metade ou mais da carta expõe as riquezas de nossa herança em Cristo somente pela graça, por meio da fé somente; em seguida, exortações específicas são dadas para que se perceba 0 impacto dessas verdades nas re lações concretas dos fiéis entre si, em suas casas e em suas relações com os não cristãos, como vizinhos, colegas de trabalho, cidadãos, etc. As epístolas de Pedro também seguem um padrão semelhante. Os apóstolos teriam considerado inconcebível que uma igreja pudesse ter sua doutrina correta, mas não apresentasse interesse por missões, evangelismo, oração, obras de caridade e serviço para os necessitados, ou, in versamente, que uma igreja pudesse ser fiel na vida à parte da sã doutrina. Ortodoxia (doutrina correta) e ortopraxia (prática correta) eram insepará veis e elementos interdependentes na mensagem deles. Portanto, ações sem credos significam lei sem evangelho; mas temos visto que o padrão bíblico é passar da doutrina para a doxologia, para 0 serviço, “frutificando em toda boa obra e crescendo no pleno conhecimento de Deus” (Cl 1.10). As pessoas estão à procura de autenticidade, no entanto isso inclui 0 re conhecimento de nosso pecado e da autorretidão, e a nossa necessidade de Cristo. O que poderia ser menos autêntico e honesto que supor que nossas vidas podem pregar melhor do que o evangelho? Segundo George Bama, nosso testemunho aponta aos incrédulos nosso próprio estilo de vida. “O que eles estão procurando é uma vida melhor.” Bama admite, porém, que os sem-igreja já sabem do que realmente precisam: de um bom exemplo, de bons recursos e de bom conselho. Ele continua: “Você pode levá-los a um local ou a um grupo de pessoas que vão lhes fornecer os tijolos para a cons trução de uma vida melhor? Não proponha o cristianismo como um siste ma de regras, mas como um relacionamento com aquele que conduz por meio de exemplo. Em seguida, procure formas comprovadas para alcançar significado e sucesso”.28Bama não só confunde o evangelho (a obra de 28Ba rna , George. Grow Your Church from the Outside In. Ventura: Regal, 2002, pág. 161.
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Cristo) com a lei (nossa obra), ele também assume que o aperfeiçoamento moral pode ser definido sem a lei que Deus mesmo estabeleceu. Claramente deixando de afirmar tanto a lei de Deus quanto o evangelho, tal conselho substitui nossos próprios princípios para uma vida melhor. Na parábola do semeador, Jesus menciona quatro tipos de ouvintes do evangelho: 0 primeiro 0 rejeita; 0 segundo “recebe-0 com alegria” no iní cio, mas a semente “não tem raiz” e, quando o sofrimento vem, não pode suportar; o terceiro é sufocado por prazer e prosperidade. Somente 0 quar to prospera e produz uma colheita abundante. Jesus conclui: “Vede, pois, como ouvis” (Lc 8. 11-15, 18). Devemos ser ouvintes do evangelho antes de sermos cumpridores da lei. Caso contrário, quando a emoção inicial e o zelo se desgastarem, seremos como palha soprada para todos os lados - e para longe do jardim da graça de Deus.
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Seu próprio Jesus pessoal Citando exemplos da televisão, da música pop e de best-sellers, um artigo da revista Entertainme nt Weekly observou: A cultura popular está ficando louca por espiritualidade. (...) [Entretanto], os buscadores do dia são hábeis em des cartar 0 material teológico pesado e em rejeitar os elemen tos mais doces da fé, produzindo um mosaico calmante de figuras judaico-cristãs (...), meditação oriental, jargão de autoajuda, um desejo vagamente conservador por “virtu de” e uma busca maluca de “paz” da Nova Era. Esta espi ritualidade grátis para todos, atraente para batistas e luná ticos igualmente, está mais para sempre presente caixa de chocolates de Forrest Gump do que para qualquer sistema de crença de fato. Você nunca sabe o que vai ganhar.1 A busca pelo sagrado se tomou uma reportagem recorrente de capa de revistas nacionais de notícias há algum tempo. Embora essa busca seja fre quentemente identificada como um sinal encorajador de interesse em Deus, ela pode ser mais perigosa do que 0 ateísmo. Pelo menos o ateísmo apre senta argumentos e mostra interesse em um mundo externo aos sentimentos do eu interior. Além disso, após cada rodada dessa busca pelo Santo Graal, o próprio evangelicalismo fica cada vez mais indistinguível da lama da es piritualidade popular em geral. Não só historiadores e sociólogos, mas também romancistas estão escre vendo sobre o caráter gnóstico da sopa que chamamos de espiritualidade 1Gordinier, Jeff. “On a Ka-Ching and a Prayer”, Ente rtainm ent Weekly, 7 de outubro de 1994.
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nos Estados Unidos atual. Em um artigo da H ar pe r’s , Curtis White descre ve nossa situação muito bem. Quando afirmamos: “Esta é a minha crença”, diz White, estamos invocando nosso direito de ter nossa própria convic ção privada (não importa o quanto ela seja ridícula) não apenas tolerada politicamente, mas respeitada pelos outros. “Essa afirmação diz: ‘Tenho investido muita energia emocional nesta crença e, de certa forma, apostei a credibilidade da minha vida nela. Então, se você a ridicularizar, pode es perar uma briga’.” Neste tipo de cultura, “Jeová e Baal - meu Deus e o seu - passeiam de braços dados, como se fazer isso fosse o modelo da virtude em si mesmo”. O que exigimos da crença não é que ela faça sentido, mas que seja sincera. Isso se aplica mesmo às nossas convicções mais seculares. (...) Claramente, esta não é a espiritualidade de uma ortodoxia centralizada. É uma espécie de oficina de espiritualidade que você pode con seguir com uma tampa de uma caixa de cereais e cinco dólares. E, no entanto, em nossa cultura, sugerir que tal crença não é merecedora de respeito faz as pessoas fica rem ansiosas, uma ansiedade que se manifesta na since ridade desesperada com a qual damos as pequenas lições de vida. (...) Existe um problema óbvio com esta forma de espiritualidade: ela se passa em isolamento. Cada um de nós se senta em seu terminal de computador digitando suas convicções. (...) Por conseguinte, é difícil evitar a conclusão de que nossa crença mais verdadeira é o credo de heresia em si. É heresia sem uma ortodoxia. É heresia como uma ortodoxia.2 Quando a liberdade política da religião foi ampliada para o dogma de que “todos são livres para acreditar no que quiser”, White disse, “não há uma verdadeira convicção compartilhada de modo algum, e, portanto, nenhuma igreja e certamente nenhuma comunidade. Estranhamente, nos sa liberdade de acreditar alcançou a condição que Nietzsche chamou de niilismo, mas por uma rota que ele nunca imaginou” . Enquanto o niilismo europeu apenas negou a Deus, “o niilismo americano é algo diferente. Nosso niilismo é a capacidade de acreditar em toda e qualquer coisa de uma vez só. É tudo de bom!”.3
2White, Curtis. “Hot Air Gods”, Ha rp er s , 13 de dezembro de 2007. 3 Ibid.
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Combinando esta visão da verdade pessoal com o capitalismo de livre mercado, até nossas crenças se tomam mercadorias - “conteúdo”, exata mente como os livros são agora “unidades de venda”. Nosso conteúdo religioso se tom a indistinguível de nosso conteúdo financeiro, de nosso conteúdo de entretenimento e de nosso conteúdo desportivo, exatamente como as se ções de seu jornal local atestam. Em suma, a crença tom ase uma mercadoria da cultura. Fazemos compras entre as opções que competem por nossa crença. Uma vez reduzida ao status de uma mercadoria, nossa espiritualidade “valetudo” e “faça-você-mesmo” não pode ter muito a dizer sobre a convicção mais diretamente niilista de que todos deveriam ser livres para fazer o que bem quiser, cada um buscando o direito à sua felicidade isolada.4 Como 0 próprio Nietzsche, que disse que a verdade é feita e não desco berta e foi descrito por Karl Barth como “ 0 homem de isolamento azul”, os americanos só querem ter sossego para criar seu próprio Idaho privado. Enquanto os evangélicos falam muito sobre a verdade, seu testemunho, sua adoração e sua espiritualidade se parecem, em muitos aspectos, mais se melhantes às nêmesis dos mórmons, da Nova Era e dos liberais que a algo como o cristianismo histórico. White conclui o seu artigo incisivamente: Preferiríamos que nos deixassem sossegados, aquecidos por nossas crenças sem sentido, quer se trate das banalida des do cotidiano dos americanos comuns, do pensamento mágico dos evangélicos, do pensamento místico da Nova Era gnóstica, dos olhos marejados de patriotismo dos con servadores sociais quer da lealdade apaixonada dos ricos ao seu livre mercado Mamom. Somos, portanto, a congre gação da Igreja do Infinitamente Fraturado, esplendida mente a sós, juntos. E, aparentemente, é assim que gosta mos. Nosso pluralismo de opinião diz, tanto a nós mesmos quanto aos outros, “mantenha distância”. Porventura não é tudo isso estranhamente familiar? Não são estes todos os falsos deuses confrontados por Isaías e Jeremias, os cultos dos “deuses ocos”? Os ídolos que não poderiam assustar nem aves de um pepineiro? Crença de cada tipo e ritual, *Ibid., págs. 13-14.
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Cristianismo sem Cristo autoindulgência e autoengrandecimento de todos os graus, todas florescem. E, ainda assim, Deus é abandonado.5
Assim, a busca pelo sagrado é realmente outra rodada de heresia como ortodoxia americana —o voo da alma solitária do nada para lugar nenhum. Somos prisioneiros de nossa própria subjetividade, confinados à minúscula célula de nossas próprias experiências, expectativas e necessidades sentidas limitadas. Já no início do século 18, o comentarista francês Alexis de Tocqueville observou o desejo distintamente americano de “escapar dos sistemas im postos e de procurar por si mesmos e em si mesmos a única razão para as coisas, olhando para os resultados sem ficarem presos nos meios voltados para eles. (...) De tal modo, cada homem é estritamente fechado em si mes mo, e, dessa base, tem a pretensão de julgar 0 mundo”. Os americanos não precisam de livros ou de qualquer outra autoridade externa a fim de encon trarem a verdade, “eles a encontraram em si mesmos”.6 Em seu famoso endereço da Harvard Divinity School, o transcendentalista Ralph Waldo Emerson (1803—1882) anunciou que “seja o que for que mantenha a adora ção pública firme em nós já foi ou está indo”, profetizando o dia em que os norte-americanos iriam reconhecer que são “parte integrante de Deus”, não precisando de nenhum Mediador ou meio eclesiástico de graça. “Song of M yself de Walt Whitman capturou o narcisismo ousado do Romantismo americano, que arruina nossa cultura desde os programas de entrevista até a igreja. Durante este mesmo período, a mensagem e os métodos das igrejas ame ricanas também sentiram o impacto deste narcisismo romântico. Ele pode ser reconhecido em uma série de sermões e hinos do período, como no hino de C. Austin Miles, “In the Garden”: Eu vim para 0 jardim a sós, quando ainda havia orvalho nas rosas; E a voz que ouço, em meu ouvido, o Filho de Deus revela. E ele anda comigo, e ele fala comigo, e ele me diz que eu sou dele, E a alegria que compartilhamos enquanto ficamos ali, nin guém jamais conheceu.7 5Ibid., pág. 14.
6Tocqueville, Alexis de. Dem ocrac y in Am erica (tradução de Henry Reeve; org. Francis Bowen) vol. 1. Nova York: Century, 1898, pág. 66. Miles, C. Austin. “In the Garden”. Hymns fo r the L iving Church. Carol Stream, IL: Hope Publishing, 1974, pág. 398.
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O foco de tal piedade encontra-se em um relacionamento pessoal com Jesus que é individualista, interior e imediato. A pessoa caminha sozinha e experimenta uma alegria que “ninguém jamais conheceu”. Como pode qualquer ortodoxia externa me dizer que estou errado? Meu relacionamento pessoal com Jesus é meu. Não 0 compartilho com a igreja. Credos, confis sões, pastores e professores (talvez nem mesmo a B íblia) não podem abalar minha confiança nas experiências singulares que tenho a sós com Jesus.
U m a t e m p e s t a d e p e r f e it a
Se 0 moralismo representa um desvio em direção à heresia pelagiana (ou, pelo menos, semipelagiana), 0 entusiasmo é uma expressão da heresia co nhecida como gnosticismo. Um movimento do século 2o que ameaçou se riamente as igrejas antigas, o gnosticismo tentou misturar a filosofia grega e o cristianismo. O resultado foi uma espiritualidade eclética que considerava o mundo material como a prisão dos espíritos divinos e da criação de um deus do mal ( Yahweh). O objetivo dos gnósticos era voltar para a unidade espiritual, celestial e divina da qual o eu interior era uma faísca, longe do domínio do tempo, do espaço e dos corpos terrestres (eles teriam aprovado muitas colocações de Joel Osteen, particularmente a tese dos mestres da fé de que temos DNA divino). Identificando a pecaminosidade com a criação como tal, algumas seitas gnósticas eram extremamente ascéticas e orientadas por regras, enquanto outras eram orgias livres para todos e êxtase mística. Com pouco interesse em questões históricas ou doutrinárias, os gnósticos partiram em um a jor nada de subir a escada do misticismo. Todos eles concordavam que a igreja institucional, com seu ministério ordenado, credos, pregação, sacramentos e disciplina, era alienadora - como o corpo, ela era a prisão da alma indi vidual. O pelagianismo e o gnosticismo são versões diferentes do que Gerhard Forde chamou de “história da glória”. Na seqüência do Debate de Hei delberg, que se baseou em Romanos 10 e lCoríntios 1, Lutero contrasta a teologia da glória com a teologia da cruz. Como explica Forde: A história mais comum e abrangente que contamos sobre nós mesmos é o que chamamos de história da glória. Vie mos da glória e somos destinados à glória. Claro que, entre estes dois destinos, parecemos, de alguma forma, ter saí do do caminho de propósito ou por acidente, não sabemos bem - mas esta é apenas uma inconveniência temporária a ser corrigida pelo esforço religioso certo. O que precisamos fazer é voltar à “estrada de glória”. A história é contada em
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Cristianismo sem Cristo inúmeras variações. Normalmente, 0 assunto da história é “a alma”. (...) O esquema básico é o que Paul Ricoeur cha mou de “o mito da alma exilada”.8
Em nenhuma das duas versões alguém precisa ser resgatado. Assistido, instruído, esclarecido, talvez, mas não resgatado —pelo menos não po r meio de uma cruz sangrenta. Ambas as versões da história da glória nos levam mais fundo em nós mesmos, identificando Deus com 0 eu interior em vez de nos chamar de fora de nós mesmos. Na década de 30 (século 20), H. Richard Niebuhr, de Yale, ofereceu uma descrição repreensiva da mensagem do liberalismo protestante. Um Deus sem ira levou homens sem pecado para um mundo sem julgamento por meio de um Cristo sem uma cruz”.9A história da cruz e a história da glória não representam apenas abordagens diferentes, mas religiões totalmente distintas, como J. Gresham Machen observa em seu livro polêmico, Christianity an d Liberalism. A história da glória é nossa religião natural, tecida em todas as religiões, filosofias, espiritualidades e moralidades do mundo. Ela faz sentido para nós. Como somos destinados para a lei, somos também destinados para glória. Deus colocou Adão diante de um pacto de vida por intermédio do qual ele atingiria a vida eterna para si e para sua posteridade. Todos nós ainda somos criados à imagem de Deus, reconhecendo naturalmente esse senso de uma missão divina. Chegamos ao mundo prontos para ação. A única diferença, desde a Queda, é que desertamos e agora utilizamos to dos estes dons de nossa criação contra o Criador, fazendo uma confusão das coisas. Precisamos da cruz, mas achamos que só precisamos encontrar nosso caminho de volta para a estrada da glória, para retomar nossa marcha para cima. Desde a Queda, nossa ligação natural para 0 cumprimento de uma tare fa a fim de atingir a bem-aventurança eterna com Deus corrompeu-se em uma marcha tirânica ao longo da paisagem da criação, uma construção de impérios de opressão, de injustiça e de orgulho. A religião é apenas outra maneira de transformar nossa consciência nativa de Deus em nossa própria tentativa de tomar 0 céu por assalto e colocá-lo sob nosso controle. O pelagianismo faz isso por meio de trabalhos práticos e o gnosticismo sobe a escada da espiritualidade mística. Não mais um Deus soberano que reina sobre nós e e completamente diferente de nós, o Deus do gnosticismo é 8Forde, Gerhard. On Being a Theologian o f the Cross: Reflections on Luther's Heidelberg Disputatio n, 1518. Grand Rapids: Eerdmans, 1997, pág. 5. 9Niebuhr, H. Richard. The Kingdom o f God in America. Chicago: Willett, Clark, 1937; reimpressão, Middletown, CT: Wesleyan University Press, 1988, pág. 193.
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sempre amigável e familiar, precisamente porque nosso próprio eu interior é, em si mesmo, divino. _ O pelagianismo leva ao cristianismo sem Cristo porque, nele, não preci samos de um Salvador, mas sim de um bom exemplo. A rota do gnosticism o para 0 cristianismo sem Cristo encontra-se na transformação da história de um Criador bom, uma queda no pecado e redenção por meio da encarnação, da morte sangrenta e da ressurreição corporal do Filho em um mito de um criador do mal, uma queda na matéria e redenção pela iluminação interior. Enquanto o evangelho nos convida a olhar para fora de nos mesmos para obter salvação, o pelagianismo e o gnosticismo se combinam p ara nos man ter olhando para nós mesmos e para dentro de nós. Juntos, eles criaram a tempestade perfeita: a religião americana. Ninguém tem de nos ensinar o evangelho da salvação pela iluminação interior e pelo autoaperfeiçoamento moral; antes, a Palavra de Deus tem de quebrar nosso apego a esta história da glória nos contando a verdade sobre 0 que a lei de Deus realmente de manda e sobre o que seu evangelho realmente dá. Em sua descrição da teologia da glória, Lutero fala das diferentes es cadas que vamos tentar escalar em vão para ascender a Deus. especulação racional, experiência mística e luta moral. Todas as três são tão evidentes hoje, como parte do cativeiro da igreja americana, como eram nos dias de Lutero. Estas acusações são bastante abrangentes, por isso vou tentar de fender o fato de que estamos presos nas agonias desta tempestade perfeita até hoje.
G n o s t i c is m o c o m o a r e li g iã o a m e r i c a n a ?
Descrições contemporâneas em jornais de notícias e dados de pesquisa consistentemente revelam que a sempre popular busca pelo sagrado na cultura americana partilha de muitas semelhanças com o gnosticismo. Claro que, nas versões mais populares, pode não haver consciência explícita dessa co nexão ou de qualquer dependência direta de tais fontes. Há um ressurgimento explícito do gnosticismo em nossos dias, tanto na academia quanto na cultura popular, desde seminários na Harvard Divini ty School a O Código da Vinci de Dan Brown. O corredor do gnosticismo na cadeia de livrarias típicas (ao lado da religião e da espiritualidade) é evidência do renovado interesse nas espiritualidades pagãs. A partir de uma perspectiva cristã, talvez a maior motivação para esse interesse ge neralizado seja que 0 gnosticismo desvia a responsabilidade pelo pecado e pelo mal da criatura para o Criador, permitindo-nos suprimir a verdade, olhando para dentro de nós mesmos para criar, de nossa própria imagina ção, um ídolo que podemos manipular e controlar - um ídolo que, como o bezerro de ouro de Israel, não irá mais nos amedrontar com palavras
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perturbadoras. Matthew Fox, repetindo a advertência do autoidentificado psicólogo gnóstico Carl Jung, expressa bem esse sentimento: “Uma for ma de matar a alma é adorar um Deus fora de você”. 10Esta era també m a mensagem dos americanos transcendentalistas como Henry David Thoreau, Ralph Waldo Emerson e Walt Whitman. Alguns estudiosos e lideres religiosos se sentem atraídos para 0 gnosticismo hoje porque ele oferece espiritualidade sem qualquer credo par ticular - certamente, sem estar preso à particularidade de Jesus Cristo e às suas alegações exclusivas. Embora os chamados evangelhos gnósticos tenham sido escritos muito mais tarde do que os evangelhos canônicos do Novo Testamento, eles são frequentemente celebrados como a expressão de um cristianismo alternativo que era mais tolerante e aberto ao paga nismo que a igreja oficial, a qual tentou silenciá-los. Em alguns textos gnósticos, há uma celebração da deusa, que é hermafrodita e se engaja em práticas lésbicas.11Outros textos veem 0 gnosticismo como uma forma de mesclar diferentes tradições místicas do Oriente e do Ocidente: judaica, cristã, islâmica, budista, hindu e novas religiões. Além desses motivos, o gnosticismo é visto como uma forma de misturar ciência e magia. “Ao integrar a magia e a ciência, a arte e a tecnologia”, escreve Marilyn F ergu son, ele vai ter sucesso onde todos os cavalos do rei 6 todos os cavaleir os do rei12* falharam”. 13 A medida que participamos de uma cultura cada vez mais diversifica da, os cristãos mais jovens ficam especialmente vulneráveis ao sincretismo (isto é, mistura de crenças e práticas cristãs e não cristãs) se tiverem sido menos imersos nas Escrituras que no pluralismo religioso da cultura. Da mesma forma que seus pais, capazes de defender a fé pessoal no espírito deísta moralista terapêutico, como Christian Smith documenta, esta geração se sente ainda menos confortável com reivindicações de verdade exclusivas e é ainda mais improvável o seu conhecimento dos princípios básicos da doutrina cristã.
10Citado em Roof, Wade Clark. A Generation o f Seekers: The Spir itua l Jo urne ys o f the Bab y Boom Generation. São Francisco: HarperCollins, 1993, pág. 75. 11Com o em O Apocalipse de Adão ou o conceito Trimorphic Protennoia, encontrado entre
as descobertas de Nag Hammadi. 12*Re ferência a dois versos de um curto poem a presente no livro de Lewis Carrol Alic e através do espelho e o que Alice encontrou lá. A tradução feita por Sebastião Uchoa Leite (1980, Editora Summus) do poema é a seguinte: “Humpty Dumpty em um muro se sentou / Humpty Dumpty lá de cima despencou / Erguê-lo não podem os cavalos do rei, nem / Mes mo todos os cavaleiros do rei, também" [N. da R.], Ferguson, Marilyn. The Aquarian Conspiracy: Personal and Social Transformation in the 1980s. Nova York: J. P. Tarcher/Putnam, 1980, pág. 18.
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Outros escritores cristãos têm se concentrado no ressurgimento do gnosticismo em suas formas explícitas.14 Estou mais preocupado aqui, no en tanto, com o gnosticismo leve, mais geral e frouxo, que tem permeado a espiritualidade há algum tempo, incluindo 0 evangelicalismo. Esta versão não requer qualquer conhecimento explícito do mito esotérico gnóstico da criação e da redenção pela iluminação, muito menos o apego a ele. Mas a oposição entre a divindade interior, a iluminação e a redenção e um Deus externo, a Palavra externa, uma redenção externa em Cristo e uma igreja institucional oferece um paralelo impressionante à busca dos Estados Uni dos pelo sagrado. _ , Na religião contemporânea, assim como no gnosticismo antigo, não há quase nenhum senso de diferença entre Deus e nós - em outras palavras, sua majestade, soberania, autoexistência e santidade. Deus é meu amigo, minha experiência mais profunda ou a fonte de energia para eu viver o meu melhor da vida agora. Deus não é estranho (isto é, santo) e certamente não é um juiz. Ele não desperta medo, temor ou um senso de beleza aterradora e desorientadora. Além disso, todo 0 foco em fazer expiação por meio de um sangrento sacrifício parece brutal e não espiritual para os gnósticos, quando, afinal, a questão da salvação é escapar do reino físico. Tudo isso é demasiado “judeu” - segundo os gnósticos de Marcião a Scheiermacher - para a Re-Imagining Conference dos principais líderes protestantes (espe cialmente as feministas radicais), que expressamente apelam para o gnosticismo em seus discursos contra o sacrifício expiatório de Cristo. O Deus do gnosticismo não é aquele perante o qual Isaías disse: Ai de mim! Estou perdido!” (Is 6.5), ou ao qual Pedro disse: “ Senhor, retira-te de mim, porque sou pecador” (Lc 5.8). Em suas expressões explícitas ou implícitas, 0 gnosticismo troca o estranho e, muitas vezes, perturbador Deus de Israel po r um ídolo que nunca julga realmente e, portanto, nunca perdoa de fato. Em vez da livre decisão de Deus de fazer seu lar conosco no mundo que ele criou, os gnósticos acreditam que estamos em casa com Deus, no silêncio de nosso eu interior e longe de qualquer envolvimento no espaço e no tempo. Como salientou 0 Pai da Igreja do século 2 , Irineu, os gnósticos não se importam com o desenrolar do plano de resgate na História porque, simplesmente, não se importam com a História. Tempo e espaço são estranhos ao eu divino mais profundo. Que Deus nos ama não é nenhuma novidade. Afinal, Deus é sempre nosso amigo, nunca nosso 14Sobre o interesse crescente no gnosticismo e nas espiritualidades pagãs, veja espec ial mente Jones, Peter. The Gnostic Empire Strikes Back. Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed, 1994 - publicado no Brasil pela Editora Cultura Cristã com o título O império gnóstico contra-ataca. Além de seus livros sobre assunto, Jones lançou o Christian Witness to a Pagan Planet, www.cwipp.org.
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inimigo. Deus não pode ajudar, mas nos ama —tanto por causa de quem ele é (Amor) quanto por causa de quem somos (amáveis). Lutero e Cal vi no disseram que esta era a essência do “entusiasmo ” (literalmente, Deusdentro-ismo). Como Lutero coloca, esta é a tentativa de sub ir a escada da matéria e da História para 0 espírito e para a visão eterna do Deus nu. No entanto, à parte do Verbo encarnado, este deslumbrante deus que encon tramos no topo da escada é, na verdade, 0 diabo, que “se transforma em anjo de luz” (2C0 11.14). Esta abordagem à religião caracteristicamente americana, em que a re lação direta da alma com Deus gera um encontro quase romântico com o sagrado, toma a experiência interior a medida da realidade espiritual. Em vez de estarmos preocupado que nossos líderes espirituais fielmente inter pretem as Escrituras e sejam enviados por Cristo, por meio da ordenação oficial de sua igreja, estamos mais preocupados que exalem vulnerabilida de, autenticidade e espontaneidade familiar que nos diz que têm um rela cionamento pessoal com Jesus. Tudo o que é visto como externo ao ego —a igreja, o evangelho, a Palavra, os sacramentos, o mundo e, até mesmo, Deus - deve ser marginalizado ou, em versões mais radicais, rejeitado como o que alienaria a alma de sua proximidade com 0 divino. Quando os cristãos são confrontados, muitos deles justificam suas cren ças e práticas com base em suas experiências próprias. Não obstante 0 que a igreja ensine - ou, talvez, até mesmo 0 que seja ensinado nas Escrituras —uma autoridade incontestável da religião atual é a experiência do eu inte rior. Isso significa, no entanto, que 0 relacionamento da pessoa com Jesus e também o próprio Jesus se tomam uma figura de cera a serem moldados de acordo com seja lá quais forem as experiências, os sentimentos e as ne cessidades sentidas que a pessoa decidiu serem mais decisivas. Já não mais limitado por credos e confissões, sermões e catecismo, 0 Batismo e a Euca ristia na assembleia da aliança, 0 ego romântico aspira a uma experiência única e espontânea. Como o hino citado anteriormente diz: “Eu vim para o jardim sozinho... E a alegria que nós compartilhamos enquanto ficamos ali, ninguém jam ais conheceu” (grifo do autor). Não é de se estranhar, então, que hoje a busca pelo sagrado continue a gerar uma proliferação de seitas. Na verdade, 0 sociólogo Robert Bellah cunhou 0 termo sheilaísmo para descrever a espiritualidade americana, com base em uma entrevista na qual uma mulher chamada Sheila disse que apenas seguia sua própria voz interior.15Seu próprio “Jesus pessoal”,
Bellah, Robert N. (et al.). Habits o f the Heart: Indivi dualism an d Com mitme nt in A me ri can Life (ed. rev). Berkeley: University of California Press, 1996, págs. 221, 235.
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como o título da de uma canção-paródia da banda Depeche Mode, pa rece ser a espiritualidade informal, mas muito intensa, de vários cristãos americanos também. Philip Lee, em seu livro Against the Protesta nt Gnostics (Oxford, 1987), e Harold Bloom, em The American Religion (Simon e Schuster, 1992), apontam as conexões entre esta espiritualidade popular e o gnosticismo com grande discernimento. Vale a pena, em especial, ponderar sobre as meditações de Harold Bloom aqui porque, como ele proprio observa, Phi lip Lee lamenta o gnosticismo da religião americana, enquanto Bloom 0 comemora .17 Aclamado como o crítico literário mais destacado dos EUA, Bloom (a cujo seminário fascinante sobre Shakespeare tive 0 prazer de assistir) exibe uma compreensão sofisticada das variedades de gnosticismo antigo, bem como de suas erupções sucessivas, no Ocidente, por meio de: formas radi cais de misticismo judaico e cristão (especialmente a Cabala), Joachim de Fiore e Mestre Eckhart, anabatistas, entusiastas milenares, seitas da luz in terior - de todo o espectro até 0 transcendentalismo am ericano (Whitman, Thoreau e Emerson), mormonismo e movimento Nova Era. Primeiro de tudo, diz Bloom, “liberdade, no contexto da religião ame ricana, significa estar a sós com Deus ou com Jesus, o Deus americano ou 0 Cristo americano”. Este credo não escrito é tão evidente na história do evangelicalismo americano quanto 0 é em Emerson. “Como um crítico re ligioso”, Bloom diz, “continuo surpreso pelo elemento reavivalista em nos sa experiência religiosa, bem como obcecado com ele. Reavivalismo, nos Estados Unidos, tende a ser o choque perpétuo da descoberta individual, novamente, do que eles sempre souberam: que Deus os ama em uma base absolutamente pessoal e íntima de fato” .18 Em segundo lugar, tão extremo quanto possa parecer inicialmente, Bloom sugere que, qualquer que seja as posições doutrinárias declaradas que 0 evangelicalismo partilhe com o cristianismo histórico: Os mórmons e os batistas do Sul se dizem cristãos, mas, como a maioria dos americanos, estão mais próximos dos gnósticos antigos que dos cristãos primitivos. (...) A re ligião norte-americana é difundida e opressiva, porém é mascarada; até nossos secularistas, ou mesmo nossos ateus 16Depeche Mode, “Personal Jesus”, de Martin L. Gore, Violator album, Grabbing Hands Music/EMI Music, 1989. 17Bloom, Harold. The American Religion: The Emergence o f the Post-Christian Nation. Nova York: Sim on and Schuster, 1992, págs. 26-27 18/ò/c/., págs. 15, 17.
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Cristianismo sem Cristo professos, são mais gnósticos que humanistas em suas pre missas definitivas. Somos uma cultura feita religiosamen te, furiosamente buscando pelo espírito, mas cada um de nós é sujeito e objeto de sua busca pessoal, que deve ser pelo ego original, uma faísca ou sopro em nós, que esta mos convencidos que remonta a antes da criação.19
O Cristo do século 21 já não é realmente nem mesmo uma pessoa his tórica distinta, mas “tornou-se uma experiência pessoal para 0 cristão ame ricano, muito claramente para os evangélicos”.20Neste esquema, a História não é mais o domínio do cristianismo. O foco da fé e da prática não é tanto a pessoa objetiva e a obra de Cristo por nós e fora de nós, pois é uma relação pe ssoa l que é definida, principalmente, em termos de experiência interior. Embora, às vezes, possa exagerar sua tese, Bloom recorre a numero sas fontes primarias e secundárias da história de determinados movimen tos para montar seu caso. Em um capítulo, por exemplo, intitulado “De Cane Ridge até Billy Graham”, Bloom explora o reavivalismo entusiástico de Barton Stone, que rompeu com o presbiterianismo para fundar o que ele considerava ser a igreja apostólica definitiva e totalmente restaurada: a Igreja de Cristo (Discípulos). Em suas Memór ias , Stone escreveu: “O calvinismo está entre os mais pesados obstáculos colocados sobre o cristianismo no mundo”, mesmo a partir do início de suas premissas, “seu primeiro elo é a depravação total” .21 Posteriormente, Bloom afirma: Uma geração antes de Emerson chegar à sua maturidade espiritual, o povo da fronteira experimentou sua epifania gigante de gnose em Cane Ridge. O êxtase deles não era mais comum do que 0 arrebatamento em Woodstock; cada kentuckiano22* que latia ou hippie que curveteava, latia ou curveteava para si mesmo somente. (...) O êxtase ameri cano é solitário, mesmo quando se requer a presença de outros para a glória do ego.23 E acrescenta:
'9Ibid., pág. 22. 20Ibid., pág. 25. 21Citado em ibid., pág. 260.
22*Quem nasce no Estado americano de Kentucky [N. da R.]. 23 Ibid., pág. 264.
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O que estava faltando em toda esta luminosidade bastan te privada era simplesmente a maior parte do cristianismo histórico. (...) Apresso-me a acrescentar que estou come morando, não lamentando, quando faço essa observação. (...) Jesus não é tanto um evento na História para o ame ricano religioso quanto é um conhecedor dos segredos de Deus, que, em troca, pode ser conhecido pelo indivíduo. Oculta nesse processo está a sensação de que a depravação é apenas uma falta de conhecimento salvador.24 Esse conhecimento intuitivo, direto e imediato é colocado contra as for mas historicamente mediadas do conhecimento. O que um americano sabe em seu coração é mais certo do que a lei da gravidade. Assim, a direção ações, não credos do reavivalismo americano é mo vida não apenas por uma preferência por obras sobre a fé (pelagianismo), mas pela preferência dos gnósticos por aperfeiçoamento do relacionamento pessoal interior com Jesus , privado e místico, em oposição a tudo o que é público, doutrinai e externo à alma individual. A religião é formal, ordena da, empresarial e visível; a espiritualidade é informal, espontânea, indivi dual e invisível. Tão amplas quanto possam parecer a princípio, existem semelhanças evidentes entre 0 fundamentalismo e o pentecostalismo, de um lado, e o liberalismo protestante, do outro. Na verdade, uma razão destas formas de religião terem sobrevivido à modernidade, contra todas as expectativas contrárias, é que elas não apenas podem acomodar a privatização da fé da modernidade como uma experiência interior, como também podem prospe rar neste ambiente. Como já observado, especialmente em relação às colo cações pelagianas de Finney e ao seu legado, as sementes do liberalismo já foram semeadas por uma herança reavivalista que é partilhada por muitos evangélicos conservadores. Repetidamente, nos últimos séculos, temos vis to a facilidade com que um sentimento de pietismo, com orientação interna, se transforma no vinagre do liberalismo. Um exemplo é uma declaração fei ta por Wilhelm Herrmann, um pietista liberal cuja afirmação, no início do século 20, podia ser ouvida em muitos círculos evangélicos daquele tempo como também pode ser nos de hoje: “Converter doutrinas... em um sistema é a última coisa que a igreja cristã deve empreender. (...) Mas se, por outro lado, mantemos nossa atenção fixa no que Deus está produzindo na vida interior do cristão, então a multiplicidade dos pensamentos que brotam da fé não vai nos confundir, mas nos dar motivo de alegria”.25 2AIhid., pág. 65. 25 Herrmann, Wilhelm. Communion with God. Nova York: Putnam’s Sons, 1913, pág. 16.
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Para os liberais, a moralidade, a piedade e a experiência cristãs poderiam sobreviver ao abandono da doutrina cristã e, até mesmo, ao culto formal, público e corporativo da Palavra e do sacramento. A luz interior não foi ex tinta pelo abandono do cristianismo do credo porque a pessoa ainda podia ter um relacionamento pessoal comovente com Jesus dentro do coração, mesmo que ele não tivesse ressuscitado na História. Os evangélicos não são, obviamente, liberais, contudo a orientação dominante parece colocálos nessa trajetória perpetuamente. Não é de estranhar, então, que os fúndamentalistas de hoje possam se tomar os liberais de amanhã, em ciclos recorrentes que passam por fases de intensa controvérsia. Bloom segue uma narrativa semelhante em rela ção ao gnosticismo. Por exemplo, embora superestime a influência de E. Y. Mullins como se ele, sozinho, tivesse moldado a denominação Batista do Sul, Bloom mostra que os pressupostos centrais de Mullins eram basicam en te os mesmos que os de Ralph Waldo Emerson e William James. O impulso gnóstico é evidente, por exemplo, na doutrina da competência da alma, que se tomou proeminente especialmente por intermédio de Mullins. * Enquanto Lutero, Calvino e seus herdeiros buscaram reformar a igreja, os movimentos protestantes mais radicais têm procurado uma gnose interior[ imediata. Quando os reformadores apontaram para o ministério externo da igreja, centrado na Palavra e no sacramento, como o lugar onde Deus prome teu encontrar seu povo, 0 entusiasmo (termo dos reformadores para os gru pos radicais protestantes) desconfiava de tudo o que era externo. Da mesma forma, Emerson renunciou ao seu púlpito unitarista, pelo menos em parte, porque não estava disposto a celebrar a Ceia do Senhor (embora não esteja claro para mim por que unitaristas conservam o ritual de qualquer maneira). A razão era que ele não podia suportar nada externo, pertencente à criatura ou violação física do imediatismo de sua alma divina com 0 Espírito Divino. Os argumentos dele não foram muito longe daquele dos quaeres em sua rejeição ao Batismo e à Ceia do Senhor, apelando para a doutrina da luz interior. Embora os evangélicos geralmente retenham os sacramentos, eles são transformados em um veículo da experiência individual - um relaciona mento pessoal - que não depende de tais práticas. Tudo gira em tomo da autossuficiência da alma do indivíduo de experimentar uma relação direta e imediata com Jesus. Se o Batismo ou a Ceia do Senhor podem facilitar uma experiência direta com o Deus nu, vamos adicioná-los à lista de degraus úteis em nossa escada. Eles podem ser aceitáveis, desde que sejam nossos meios de ascensão, mas chamá-los de “meios da graça” (isto é, uma escada de Deus para nos, e não de nós para Deus) provoca polêmica. Na história do evangelicalismo americano (e, até certo ponto, do britânico), o medo dos sacramentos (ao contrário do das ordenanças) foi expresso como uma resposta legítima à ameaça permanente do romanismo.
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Com toda probabilidade, entretanto, a verdadeira fonte de inquietação era o que o evangelicalismo tinha registrado com relação ao gnosticismo: nada pode entrar no caminho da minha relação pessoal e totalmente original com Jesus. Mullins não estava dizendo nada que já não tivesse sido ela borado por transcendentalistas americanos quando escreveu: “Aquilo que conhecemos mais indubitavelmente são os fatos da experiência interior . “Pragmatista meticuloso, profundamente influenciado por William James, Mullins fundamentou sua fé sobre ‘experiência’ no sentido de James.”27 O crente individual, sozinho com sua Bíblia, era todo o necessário para uma experiência vital cristã. Bloom cita o axioma de Mullins: “A religião é uma questão pessoal en tre a alma e Deus” .28 Este talvez seja o dogma mais aceito hoje nos Estados Unidos. . Com grande perspicácia (e asserção), Bloom assinala como escritores como Mullins simplesmente traduziram a Bíblia em uma linguagem ex clusivamente americana. Segundo Mullins, William James explica o fato da regeneração em termos que estão completamente em harmonia com as epístolas paulinas”. Então, Bloom conclui: “Pragmático, empírico e ameri cano como era, Mullins quase involuntariamente traduziu Paulo em termos jam esia nos. A primazia do sentimento humano não é a dinâmica do traba lho de Paulo, mas de James e de Mullins”.29Além disso, observa Bloom, 0 triunfalismo - a incapacidade de enfrentar a depravação do eu interior, mesmo em seu melhor - marca o espírito gnóstico.30 Exceto pelo Oriente e pelas seitas esotéricas do Ocidente, só mesmo nos Estados Unidos poderia surgir uma religião inteira, no século 19, que nega a realidade do corpo, da doença e da morte. Segundo Mary Baker Eddy, fundadora da Ciência Cristã: “Pecado, doença e morte... tinham vindo ao mundo por causa da ‘crença de que o Espírito se materializou em um corpo, o infinito tornou-se finito, ou homem, e 0 eterno entrou no te mporal’”.31Ob serve que sua descrição da fonte de nossa queda é a descrição cristã da fonte de nossa redenção: a saber, a encarnação, a vida, a morte e a ressurreição 26M ullin s, Edgar Young. The Christian Religion in its Doctrinal Expression. Filadélfia: Roger Williams Press, 1917, pág. 73; citado por Bloom, The American Religion , pág. 204. 21Ibid., pág. 199. 28Mullins, Edgar Young. The Axioms o f Religion: A New Interpretation o f the Baptist Faith. Filadélfia: American Baptist Publication Society, 1908, págs. 53-54; citado por Bloom , The Ame rican Religi on, pág. 213. 29Ibid., pág. 214. 0 “ °, triunfalismo é o único modo no qual Mullins e os batistas leem Romanos , passandose rapidamente pela encarnação e pela cruz até Romanos 8: Em todas estas coisas, somos mais que vencedores por aquele que nos amou’ (v. 37) (Bloom, The Amei ican Religion, pág. 213). i]Ibid., pág. 133.
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do Filho de Deus. Os gnósticos são alérgicos a qualquer conversa sobre a realidade do pecado e da morte. Substituindo a ideia de morte por pa ss ar pa ra for fo r a da existência, Eddy fez uma considerável - e, do ponto de vista vista cristão, muito infeliz —contribuição —contribuição para 0 idioma inglês. Para Bloom, duas notáveis exceções a esta trajetória gnóstica são Karl Barth e J. Gresham Machen. “Barth sabe a diferença entre a fé reformada e a gnose , diz Bloom, apontando a divergência fundamental: a experiência subjetiva do eu sobre a palavra e obra objetiva de Deus. Onde Barth estava confiante em um Deus transcendente, bem como profundamente desconfia do da experiência, da moralidade ou da religião humana como uma forma de escalar o muro que separava 0 Criador da criatura, o pietismo e o libera lismo foram entrelaçados em modo de vitória.32 Outra figura antignóstica, um americano, é J. Gresham Machen. O que chamamos de fundamentalistas, diz Bloom, são, na verdade, gnósticos de uma variedade anti-intelectual. Se houvesse uma possibilidade de uma versão antignóstica do fiindamentalismo, diz Bloom, tais proponentes “en contrariam o seu arquétipo no formidável J. Gresham Machen, um notável estudioso do Novo Testamento, presbiteriano de Princeton, que publicou uma defesa veemente vee mente do cristianismo tradicional em 192 1923, 3, com 0 agressivo título Christianity and Liberalism". Bloom acrescenta: “Acabo de ler este livro do começo ao fim, com desgosto e desconforto, mas com admiração relutante e crescente pela mente de Machen. Nunca vi uma defesa mais consistente do argumento de que 0 cristianismo institucional deve conside rar 0 liberalismo cultural como um inimigo da fé”. Em contraste com esta defesa do cristianismo tradicional, aqueles que vieram a ser chamados de fundamentalistas são mais como “o fascismo espanhol de Franco... herdei ros da cruzada de Franco contra a mente, não os sucessores de Machen” Mac hen”.3 .33 Em resumo: “O Deus calvinista, primeiramente trazido para a América pelos puritanos, puritan os, tem bem pouco em comum com as versõ v ersões es do Deus agora entendido pelo que se autointitula protestantismo nos Estados Unidos” . Noins t the Protestant Protest ant Gnostics Gn ostics vãmente, como o próprio Bloom enfatiza, 0 Aga inst de Philip Lee, usa praticamente os mesmos argumentos, com muitos dos mesmos exemplos históricos. O que faz o relato de Bloom um pouco mais interessante é que ele defende a religião americana e espera por ganhos ainda maiores para 0 gnosticismo no futuro. Um “renascimento do pro testantismo continental reformado é precisamente o que não precisamos”, segundo Bloom.34
i2Ibid., pág. 213. i3Ibid., págs. 228-229. 34 I b i d pág. pág. 259.
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Análises sociológicas da espiritualidade espiritualidade contemporânea, especialmente as de Wade Clark Roof, Robert Wuthnow, Robert Bellah, Marsha Witten, Anne Douglas e D. James Hunter, documentam as características dominan tes que parecem justificar as comparações que Bloom destacou. Embora Ro of não mencione a heresia antiga, antiga, sua descrição d escrição da espiritua lidade contemporânea utiliza as principais características do gnosticismo: uma religião que “celebra a experiência, em vez da doutrina; o pessoal, em vez do institucional; o mítico e o onírico, em vez do cognitivo; a religião das pessoas, em vez da religião oficial; imagens suaves e afetivas da divin dade”, que podem até mesmo ser descrita como “feminina e andrógina”, em vez de imagens de Deus como Criador, Redentor, Senhor e Juiz .35 .35 Segundo Hunter: “Os aspectos espirituais da vida evangélica são cada vez mais abordados e interpretados em termos de ‘princípios’, ‘normas’, ‘passos’, ‘leis’, ‘códigos’, ‘orientações’, e assim por diante”.36Roof acres centa que “a salvação como uma doutrina teológica... é reduzida a simples passos, procedim proc edimento entoss fáceis fáce is e fórmulas fórm ulas para par a recomp reco mpens ensas as psicológic psico lógicas. as. A abordagem abordagem à verdade religiosa muda - longe longe de qualquer razão objetiva sobre a qual deve ser julgada, para uma compreensão mais subjetiva, mais instrumental do que ela faz para o crente e de como pode fazer 0 que faz de forma mais ma is eficiente” eficien te”.3 .37 Assim como o gnosticismo antigo, antigo, as abordagens contemporâneas à es piritualidad piritua lidadee - por mais diferentes difere ntes que as versões vers ões con conser servad vadoras oras e liberais possam possa m parecer pare cer na superfície supe rfície - normalme norm almente, nte, sublinham sublin ham o espírito esp írito interno como o local de uma relação pessoal. Como o fundador conservador do Calvary Chapel Chuck Smith manifesta: “Encontramos Deus no reino de nosso espírito” .38 Este ponto de vista é tão lugar-comum que q ue parece e stra nho ouvi-lo sendo desafiado. O contraste que Philip Lee traça entre o gnosticismo e 0 calvinismo pode ser docu documen mentado tado,, com precisão, precis ão, por meio de uma grande gra nde varieda var iedade de de cristãos através dos séculos: “Enquanto 0 calvinismo clássico sustenta va que a segurança cristã da salvação era garantida somente por meio de Cristo e de sua igreja, com seus meios da graça, agora a garantia só poderia ser encontrada na experiência pessoal de ter nascido de novo. Esta foi uma mudança radical, pois Calvino considerou que qualquer tentativa de colocar
,5Roof, A Gener ation o f Seeke rs, pág. 195. 36Hunter, James Davison. Ame rica n Evan gelicalis m: Conse rvativ e Reli gion an d the Q uan dary o f Moderni Modernity. ty. N ew Brunswick: Rutgers University Press, 1983, 1983, pág. 75. 75. 37Roof, A Gene ration o f Seek ers, pág. 195. 38Smith, Chuck. Ne w Testamen t Stu dy Guide. Costa Mesa, CA: Word for Today, 1982, pág. 11 113. 3.
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‘a conversão em poder pode r do próprio homem’ era papismo grosseiro”.3 grosse iro”.399 De fato, para os reformadores, acrescenta Lee, 0 novo nascimento era o oposto de “renascimento em um eu novo e mais aceitável”, era a morte do velho homem e seu renascimento renas cimento em Cristo.40 Como no antigo gnosticismo, a espiritualidade americana usa Deus ou o divino como algo semelhante a uma fonte de energia. Por meio de várias fórmulas, medidas, procedimentos ou técnicas, é possível acessar essa fon te por conta própria. Tal tecnologia espiritual poderia ser empregada sem nenhuma necessidade do ofício de pregação, da ministração do Batismo ou da Ceia do Senhor, ou da filiação filiação a uma igreja visível e da submissão submissã o a seus apelos públicos, incentivos, ensinamentos e práticas. De acordo com estudos de Roof, “a distinção entre ‘espírito’ e ‘insti tuição’ é da maior importância” para aqueles que procuram espiritualidade hoje. “O Espírito é o aspecto interior e empírico da religião; a instituição é a forma exterior da religião estabelecida.” E acrescenta: “A experiência direta é sempre mais confiável, por causa de sua ‘interioridade’ e ‘solidão’ - duas qualidades qualidades que têm chegado a ser muito muito apreciadas em uma cultura altamente expressiva e narcisista” .41 Novamen Nova mente, te, estes estudos apontam para o fato de que o pietism p ietism o evan eva n gélico e o reavivalismo estão singularmente equipados para prosperar na cultura americana. Até mesmo o popular movimento “Higher Life” de Keswick, (na Inglaterra) de evangélicos americanos e britânicos, que mol dou profundamente profundam ente a piedade evangélica no século 19 19,, foi criticado no iní cio por B. B. Warfield e, mais recentemente, por J. I. Packer como ofere cendo uma visão quase mágica da fé, usando Deus como eletricidade para os próprios fins e vontade da pessoa.42 pessoa.42 Como um rio poderoso, o Espírito pode ser aprove a proveitado itado por nossa no ssa tecnologia te cnologia espiritual. A maneira mane ira como c omo mui mu i tos evangélicos, atualmente, falam de acessar Deus Deus e se conectar com com ele ressalta este ponto. Assim como existiam as versões legalista e antinomiana do antigo gnosticismo, a espiritualidade contemporânea pode assumir formas fundamentalistas e liberais. No entanto, todas elas dão prioridade à experiência inter na sobre normas externas; ao indivíduo sobre a comunhão dos santos; ao imaterial sobre 0 material; às experiências pessoais imediatas, espontâneas, sempre novas e únicas sobre os meios ordinários de graça que Deus tem provido para nossa maturidade maturid ade no corpo de Cristo, juntos. junt os. Profunda Prof undamen men 39Lee, Philip. Aga inst the P rotestant Gnostics. Nova York: Oxford University Press, 1987, pág. 14 144. 4. 40Ibid., pág. 255. 41Roof, A Generatio n o f Seekers , págs. 23, 30, 67. 41J. I. Packer cita as críticas de Warfield e concorda com elas em “The Reformed Doctrine of Sanctification”, Evan gelica l Quarte rly 27, no. 3 (julho de 1955), págs. 153-167.
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te consciente de nossa diferença de Deus não apenas como criaturas, mas também como pecadores, a fé bíblica enfatiza a necessidade de mediação. Deus nos encontra usando sua própria criação como sua máscara por trás da qual ele se esconde para que possa nos servir. servir. O gnóstico, pelo contrário, não necessita de mediação. Deus não é externo ao eu; na verdade, o espírito humano e o Espírito divino já são uma unidade. O efeito líquido dessa espiritualidade universal foi assimilar Deus à nos sa própria experiência, às necessidades sentidas e às aspirações. Como os arquitetos do ateísmo moderno, como Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud, viram com uma compreensão extraordinária, a religião é facilmente reduzi da à antropologia antropologia - ou mesmo à psicologi psicologia. a. Não é uma questão realmente de ser surpreendido pela voz de um estranho, chamando-nos para fora de nós à medida que somos despojados de nossas pretensões, ficando nus dian te de um Deus santo. Pelo contrário, é uma projeção dos anseios do próprio eu por conforto perante um universo vasto e agourento, repleto de perigos e catástrofes. A linha entre religião e magia, fé em Deus e uso de Deus, D eus, tomatom ase praticamente indistinguível. Até 0 ponto em que as igrejas hoje se sentem obrigadas a acomodar sua mensagem e métodos a essas formas dominantes de espiritualidade, elas deram crédito à tese de que o cristianismo não é uma notícia base ada em eventos históricos, e sim apenas outra forma de terapia. Se este fosse o único caminho da verdadeira religião, o argumento do ateísmo moderno ofereceria a melhor explicação do fenômeno completo. Nunca encontramos Deus realmente - alguém que é diferente de nós, que se le vanta contra nós em juízo e graça - mas apenas nós mesmos no espelho de nossa própria experiência, totalmente exclusiva, privada e extraordinária. Medido por este sentimento gnóstico, 0 liberalismo protestante na linha de Schleiermacher e 0 evangelicalismo protestante na linha do pietismo e do reavivalismo talvez difiram em grau, porém não em sua perspectiva religiosa básica.
O N o v o Te T e s t a m e n t o e o g n o s t ic ic i s m o
Os estudiosos ainda estão debatendo a relação exata entre 0 Novo Testa mento e o gnosticismo. Enquanto o gnosticismo tornou-se um movimento vagamente organizado com várias seitas apenas no segundo século, for mas incipientes dele já estavam surgindo em círculos judeus e cristãos na era apostólica. O apóstolo Paulo falou dos superapóstolos como alguém que é “enfatuado” e “cuja mente é pervertida e privados da verdade, su pondo pond o que a piedad pie dadee é fonte de lucro” lucr o” (lT (l T m 6.4-5). 6.4-5 ). Essa pesso pes soaa “ensi “e nsina na outra doutrina e não concorda com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo e com 0 ensino segundo a piedade” (v. 3). Paulo adverte Timóteo
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para “fugir dessas coisas”, ensinando os crentes a se contentarem com as disposições de Deus. Combate 0 bom combate da fé. Toma posse da vida eterna, para a qual também foste chamado e de que fizeste a boa confissão perante muitas testemunhas. (...) Tu, ó Timóteo, guarda 0 que te foi confiado, evitando os falatórios inúteis e profanos e as contradições do saber [gnosis], como falsa mente lhe chamam, pois alguns, professando-o, se desvia ram da fé. A graça seja convosco (lTm 6.12, 20-21). O conselho de Paulo em Romanos 16 é igualmente pertinente: .
Rogo-vos, irmãos, que noteis bem aqueles que provocam divisões e escândalos, em desacordo com a doutrina que aprendestes; afastai-vos deles, porque esses tais não ser vem a Cristo, nosso Senhor, e sim a seu próprio ventre; e, com suaves palavras e lisonjas, enganam o coração dos incautos. Pois a vossa obediência é conhecida por todos;
por isso, me alegro a vosso respeito; e quero que sejais sábios para o bem e símplices para o mal. E 0 Deus da paz, em breve, esmagará debaixo dos vossos pés a Satanás. A graça de nosso Senhor Jesus seja convosco (Rm 16.17-20; grifos do autor). Atormentada por disputas sectárias, a igreja de Corinto aparentemente tinha sido contaminada com o ensinamento de que o corpo ou é mau ou insignificante, levando aos extremos tanto das proibições legalistas contra as relações sexuais quanto da licenciosidade antinomiana - já que os atos praticados no corpo não poderiam manchar a pureza do espírito interior (1C0 5; 6.12-7.40). Paulo responde ambos ao declarar: “O corpo não é para a impureza, mas, para 0 Senhor, e 0 Senhor, para o corpo. Deus ressuscitou o Senhor e também nos ressuscitará a nós pelo seu poder. Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo?” (1C0 6.13-15). A ênfase de Paulo na Ceia do Senhor e na defesa da ressurreição do corpo contra os falsos mestres (cap. 15) atesta, ainda, a existência deste círculo proto-gnóstico e sua influência. Ele também combate uma forma ascética desta heresia em Colossenses 2. João desafia diretamente “o espírito do anticristo”, a nega ção de que Jesus veio na carne (1J0 4.1-3, 6). Não é de admirar que o Evangelho de João enfatize não só a divindade de Cristo, mas a maravilhosa - e escandalosa - verdade de que “o Verbo se fez carne” (Jo 1.14). Não foi uma ideia espiritual universal ou moral, e sim
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uma determinada pessoa humana que viveu, sofreu, morreu, ressuscitou e virá novamente na carne. Os evangélicos, naturalmente, têm corajosamente defendido a historicidade da ressurreição corporal de Cristo e do regresso em glória contra o dogmático antisobrenaturalismo do liberalismo. Ao mesmo tempo, quando se trata de religiosidade popular, tanto evangélicos quanto liberais (à me dida que compartilham uma herança comum de pietismo) frequentemente enfatizam a proximidade de Jesus com nossa experiência m ais do que com a realidade de sua ressurreição corpórea, ascensão e retomo. Sempre que isso acontece, independente de quão importantes esses dogm as possam ser para defender a divindade de Cristo, sua humanidade parece desempenhar um papel menor. Por exemplo, por que deveríamos ansiar por Jesus Cristo aparecer em carne e osso quando ele já vive em nosso coração? Como uma canção gospel coloca: “Você me pergunta como eu sei que ele vive? Ele mora dentro de meu coração”. Mas este é um sentimento que poderia, muito facilmente, aquecer o coração de qualquer protestante liberal. Não faz diferença se Jesus ressuscitou dos mortos em seu corpo há dois mil anos, contanto que ele, de alguma forma, continue conosco em nossa ex periência pessoal hoje. Em nítido contraste, Paulo defende a ressurreição de Cristo em seu cor po como um evento datável, com testemunhas oculares. João começa sua carta de advertência sobre os “anticristos” que negam que Cristo veio em corpo, imediatamente dizendo: “O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos, o que contempla mos, e as nossas mãos apalparam, com respeito ao Verbo da vida (e a vida se manifestou, e nós a temos visto, e dela damos testemunho...” (1Jo 1.1-2). Da mesma forma, Pedro testifica: “Não vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo seguindo fábulas engenhosamente in ventadas, mas nós mesmos fomos testemunhas oculares da sua m ajestade” (2Pe 1.16). É expressivo que, para os apóstolos, oferecer seu testemunho significava testemunhar da pessoa concreta e da obra de Cristo na História, onde, para nós, hoje, geralmente significa testemunhar de nossa experiência pessoal e aperfeiçoamento moral. Porque o Espírito foi enviado para testemunhar de Cristo, nos dar fé nele, nos unir a ele e nos manter nele, a habitação do Espírito em cada cren te como uma primeira parcela de nossa salvação final estabelece a ligação mais vital e íntima entre a Cabeça e os membros. No entanto, é o Espírito, e não Jesus, que vive dentro de nós. Jesus está nos céus, exaltado em seu corpo, à mão direita do Pai, para voltar corporalmente, no final dos tempos, levantando-nos, em came e osso, para a vida etema, como seus co-herdeiros. Quando 0 Espírito é transformado em um princípio abstrato em vez de uma pessoa concreta da Santíssima Trindade, ou sua pessoa e obra são
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consideradas como uma distração em vez de mediação da pessoa e obra de Cristo, nossa fé - independentemente de quaisquer dogmas oficiais aos quais damos nosso parecer favorável - perde sua ligação com o Jesus da História, que veio e virá novamente em seu corpo. O Espírito nos convence interiormente de nosso pecado e nos leva para fora de nós mesmos a Cristo, não apenas na mensagem do evangelho sobre a qual ele testemunha, mas no testemunho público e nos meios externos que emprega para fazer isso. Desta forma, Cristo e sua obra salvadora não só permanecem fora de nós, mas penetram em nossos corações tão profunda mente que somos, verdadeira e continuamente, transformados por sua gra ça. Portanto, a intimidade e a comunhão pessoal com Cristo pelo seu Espíri to, por meio dos meios de graça, não são eliminadas, no entanto garantidas - mas sem simplesmente fechar Jesus dentro de nossa experiência interior. Não andamos e falamos com Jesus em um jardim interior particular, no qual ele nos diz que somos dele, porém em um jardim público, com meios visíveis de graça. Lá ele dá forma a um povo, e não apenas a uma pessoa, ao consagrar 0 discurso humano comum como sua Palavra, a água ordinária como seu Batismo e pão e vinho comuns como sua comunhão. O único que assumiu nossa carne pelo poder do Espírito continua a trabalhar em nós a fé e 0 arrependimento por meios físicos, no poder do mesmo Espírito. Mesmo agora, o novo nascimento não é a libertação de um eu interior, supostamente mais verdadeiro, da realidade externa da História e do corpo, mas a promessa (arrobõn ) da consumação pela qual toda a criação espera ansiosamente (Rm 8.18-25). Incapaz de trazer libertação definitiva para a humanidade, sem deixar para trás tudo o que é das criaturas, 0 gnosticismo perde a alegria do evangelho cristão, que não deixa nada para trás, a não ser o pecado e a morte. O sucesso do gnosticismo na igreja antiga ocorreu, em grande parte, devido à sua tentativa de misturar a sabedoria grega com os conceitos va gamente cristãos; entretanto, 0 resultado foi um sistema que era, de fato, o oposto do cristianismo. Em vez de acomodar a história bíblica à filosofia pagã, como os superapóstolos estavam fazendo, Paulo disse aos coríntios: Certamente, a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos salvos, poder de Deus. Pois está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios e ani quilarei a inteligência dos instruídos. Onde está o sábio? Onde, o escriba? Onde, 0 inquiridor deste século? Porven tura, não tomou Deus louca a sabedoria do mundo? Visto como, na sabedoria de Deus, 0 mundo não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que creem pela loucura da pregação. Porque tanto os judeus pedem
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sinais, como os gregos buscam sabedoria; mas nós prega mos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucu ra para os gentios; mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. (...) Eu, irmãos, quando fui ter convosco, anunciando-vos o testemunho de Deus, não o fiz com ostentação de linguagem ou de sabedoria. Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucifica do (1C0 1.18-24; 2.1-2).
O v o o d a a l m a s o l it á ri a
Ansiando pela volta de Cristo, 0 cristão está cansado da vida porque esta era está sob o poder do pecado e da morte. Mas, mesmo agora, há um novo poder presente no mundo - a entrada, no presente século mau, dos poderes do mundo vindouro. Assim, o cristão está ansioso para a liberação final de criação, não da criação. Precisamente porque o crente está enraizado na era por vir, da qual a presença interior do Espírito é o sinal, há um gemido simultâneo diante do status quo e da confiança na promessa de Deus para fazer novas todas as coisas. Em comparação, o ego gnóstico é desenraizado, inquieto e cansado do mundo não por causa de sua escravidão ao pecado, mas porque é mundano, ansiando não por sua participação na libertação dos filhos de Deus, porém por sua liberdade da companhia da criação afinal. Não a transformação de nosso tempo e lugar, mas a transcendência de todos os tempos e lugares é o objetivo do voo gnóstico. “Não tendo nenhuma raiz”, escreveu 0 ro mancista norte-americano Nathaniel Hawthorne, do século 19, “logo fico cansado de todo 0 solo em que eu possa ser depositado temporariamente. A mesma impaciência que eu sinto, ou concebo, quanto a esta vida terrena” .43 Acrescente a esta orientação filosófica a transitoriedade da vida prática con temporânea que fica nos soprando como palha pelo deserto, e o gnosticismo pode ser facilmente visto como que zombando de nossa experiência coti diana. Desenraizados, raramente vivemos em qualquer lugar por tempo su ficiente até mesmo para sermos transplantados. Mudando constantemente de identidade religiosa, espiritual, moral, psíquica e, até mesmo, familiar e sexual, nossa geração efetivamente acha plausível que possa haver comuni dades autênticas na internet.
45H awth orne, Nathaniel; citado em Par ringto n, Vemon L. The Romantic Revolution in Ame rica , vol. 2 de Main Currents in America n Thought. Nova York: Harcourt Brace, 1959, págs. 441-442.
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O gnosticismo identificou Deus com 0 eu interior, mas o cristianismo tem concentrado todos seus recursos em Deus fora de nós, o qual cria, re gula, julga e nos salva em nossa existência individual e corporativa. Acaba sendo lógico, no sistema gnóstico, 0 eu interior poder estar acima (mesmo defronte) não só da igreja externa, mas de seu ministério externo da pre gação e dos sacramentos, da ordem e da disciplina, da doutrinação e da comunhão. Afinal, não é o mundo público, histórico, visível e desordenado que interessa aos gnósticos, e sim 0 mundo privado, espiritual, invisível e gerenciável do espírito interior. Com o Bispo C. FitzSimons Allison, confesso a minha própria atração natural para a história da glória sobre a história da cruz: Como um exemplo de uma visão pecaminosa da doutrina, eu mesmo sinto um grande puxão gravitacional em direção às distorções gnósticas. Não gosto de sofrimento. Gostaria de uma religião que me salvasse do sofrimento, meu pró prio e de outras pessoas. Todo o tema da encarnação no cristianismo me abre para a vulnerabilidade do sofrimento. No entanto, apesar das minhas inclinações naturais, muito da graça que conheci foi exatamente no sofrimento que o evangelho me conduziu, a comunhão da paixão de Cristo. (...) Também tenho simpatia por este aspecto do arianismo que não precisa de nenhum salvador e pelo nestorianismo que condescende com a minha autorretidão pelagiana natural, esse aspecto venenoso do meu autocentramento inato que se opõe a qualquer compaixão para com os pe cadores e faz de mim qualquer coisa, exceto um exemplo cativante de um discípulo de Cristo.44 Mas a história da glória não é assim tão “excelente”. Jean-Paul Sartre reconheceu que “estamos condenados a ser livres”, vivendo como Atlas, com o mundo sobre nossos ombros. Esta é a história da glória, qualquer que seja sua versão. No entanto, Jesus promete: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8.32). Isso porque a verdade que Jesus procla ma - e a Verdade que Jesus é - permanece por todas as eras, mesmo para os americanos, como “o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê” (Rm 1.16).
44Allison, C. FitzSimons. “Reflections on Modem Reformation”, Mo dem Refo rmatio n 16, no. 1 (janeiro-fev ereito, 2007), pág. 13.
Pregando Cristo A mensagem e o meio
Imagine dois cenários da vida da igreja. No primeiro, Deus reúne seu povo em um evento pactuai para julga r e para justificar, para matar e para vivificar. A ênfase recai na obra de Deus por nós - 0 plano misericordioso do Pai; a vida, a morte e a ressurreição salvadora do Filho, e a obra do Espírito de levar vida ao vale de ossos secos por intermédio da proclama ção de Cristo. A pregação centra-se na obra de Deus na história da reden ção de Gênesis a Apocalipse, e os pecadores são transportados para este drama que está sendo desenrolado. Instruídos e ordenados para extrair as riquezas das Escrituras em benefício do povo de Deus, os ministros tentam deixar de lado suas próprias agendas, opiniões e personalidades para que a Palavra de Deus seja claramente proclamada. Nesta pregação, o povo é, mais uma vez, simples destinatário - receptores da graça. Da mesma forma, no Batismo, as pessoas não se batizam a si mesmas; elas são batizadas. Na Ceia do Senhor, não preparam e cozinham a refeição; não contribuem para a mesa, mas são os convidados que simplesmente desfrutam o pão do céu. A medida que este evangelho cria, aprofunda e inflama fé, um profundo sentimento de louvor e de agradecimento enche os corações, conduz às boas obras entre os santos e no mundo, ao longo da semana. Depois de terem sido servidas por Deus na assem bleia pública, as pessoas são, então, servas umas das outras e de seus próximos na so ciedade. Exercendo sua vocação em todo o mundo com vigor e dedicação, ganham o respeito dos de fora. E como elas mesmas foram bem servidas - principalmente por pastores, professores, presbíteros e diáconos - são capazes de partilhar as boas-novas de Cristo de maneira bem informada e natural. Por terem sido aliviadas dos encargos numerosos nos ministérios relacionados à igreja ao longo da semana, o que consum iria toda a energia
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delas, têm mais tempo para servir as suas famílias, os próximos e os cole gas de trabalho no mundo. No segundo cenário, a igreja é sua própria subcultura, uma comunida de alternativa não só para a morte e ressurreição semanal em Cristo, mas também para todo o círculo de amigos, colegas de trabalho e vizinhos. Neste cenário, as pessoas assumem que vão à igreja primariamente para fazer algo. A ênfase encontra-se em seu trabalho para Deus. A pregação concentra-se em princípios e passos para viver uma vida melhor, com um fluxo constante de exortações: seja mais comprometido; leia mais a Bí blia; ore mais; testemunhe mais; dê mais; envolva-se com esta causa ou com aquele movimento para salvar 0 mundo. O chamado de Deus para as vocações seculares toma-se secundário a encontrar o ministério delas na igreja. Muitas vezes subnutridas por causa de um ministério definido mais por carisma pessoal e habilidades motivacionais que por conhecimento e piedade, espera-se dessas ovelhas que sejam pastores. Sempre servindo, raramente são servidas. Mal informadas sobre a grande narrativa da obra de Deus na história da redenção, não sabem o que dizer realmente p ara um não cristão, exceto contar suas próprias experiências e talvez repetir algumas frases ou fórmulas, as quais podem ser duramente pressionadas a explicar. Além disso, como se espera que sejam fortemente envolvidas em ativida des relacionadas à igreja (com frequência, consideradas mais importantes até que as reuniões públicas de domingo), não têm o tempo, a energia ou a oportunidade de desenvolver relacionamentos significativos fora da igreja. E se for para elas trazerem um amigo para a igreja, não podem ter certeza de que ele vai ouvir 0 evangelho. O segundo cenário tem cativado muitas igrejas. O rótulo denominacional ou conservador-liberal pouco importa neste caso. Todo mundo parece pensar que vamos à igreja muito mais para dar que para receber. Para os católicos-romanos, o Concilio Vaticano II definiu a missa como “o tra balho do povo”, e esta suposição parece prevalecer em todo 0 ambiente eclesiástico hoje. Para muitos de nós, criados em contexto evangélicoconservador onde a pregação era principalmente uma exortação para fa zer mais, o Batismo foi nosso ato de compromisso em vez de ser 0 ato de compromisso de Deus, a Ceia do Senhor era um meio de nossa lem brança em vez de um meio da graça de Deus e muitos hinos eram expressões de nossa piedade mais que um relato das misericórdias maravilhosas de Deus na história da redenção. A expectativa de que Deus estava realmente visitando seu povo para aplicar os benefícios da vitória de Cristo aos pe cadores - tanto aos crentes quanto aos não crentes - era menos óbvia que a sensação de que estávamos, em primeiro lugar, nos reagrupando para obter as nossas ordens de marcha. Claro que recebemos exortações nas Escrituras; portanto, isso deve ser parte do culto público. Lei sem evan
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gelho, no entanto, é morte (2C0 3.5-18). Apelos para ação sem o anúncio da ação de Deus - incluindo sua entrega regular e confirmação por meio da Ceia do Senhor - gradualmente desevangeliza a igreja. O bem conh e cido pastor de megaigreja Rick Warren vem repetindo um apelo ao longo dos últimos anos para uma segunda Reforma: desta vez, uma reforma de “atos, não de credos”.1Contudo, segundo a experiência de muitos de nós, “atos, não credos”, “vida, não doutrina” e mais empenho que ministério centrado em Cristo é a ênfase. E, falando nisso, meus amigos criados em ambientes protestantes e católicos-romanos contam a mesma história. A lista de ações pode ser diferente, mas 0 paradigma é o mesmo. Quando se trata de movimentos mais recentes que têm procurado dis tanciar-se das abordagens evangélicas mais tradicionais, a situação não di fere muito. Apesar das óbvias diferenças “cosméticas”, a ênfase é a mesma. Poucos exemplos bastarão para demonstrar isso. Em 2007, a Igreja Willow Creek Community chamou a atenção da mídia quando publicou os resultados de sua análise de marketing, a qual levou seus líderes à conclusão de que seu modelo de ampla influência de crescimento de igreja era defeituoso. O pastor sênior Bill Hybels respon deu à pesquisa dizendo que “não deu certo em nossa igreja”. “Dentre os resultados”, escreveu ele, “uma em cada quatro pessoas no Willow Creek fica paralisada em seu crescimento espiritual ou insatisfeita com a igreja - e muitas delas estavam pensando em sair”. A porcentagem mais eleva da dos insatisfeitos era a dos cristãos mais altamente comprometidos. O relatório “revolucionou a forma como olho para o papel da igreja local... fazendo-me ver claramente que a igreja e sua grande quantidade de pro gramas têm assumido em demasia a responsabilidade pelo crescimento espiritual das pessoas”.2 Então, por que os participantes mais ativos (“centrados em Cristo”) eram os mais insatisfeitos com a igreja e seu progresso espiritual? Essa era a pergunta que intrigava a liderança da igreja. “A resposta foi rápida: Porque Deus nos ‘ligou’, primeiro e principalmente, para estar em cres cente relação com ele - não com a igreja”. A conclusã o deles foi que 0 plano de Deus para seu povo é se deslocar da dependência do ministério da igreja para “práticas espirituais pessoais”, que incluem “oração, autoanálise (diário pessoal), solidão, estudo das Escrituras - coisas que as pessoas fazem por conta própria para crescer em seu relac ionam ento com 1Veja, por exemplo: Boorstein, Michelle. “Megachurch Pastor Warren Calls for a Second Reformation”, Washington Post, 5 de fevereiro de 2008, pág. 1. 2As citações neste e nos três parágrafos seguintes são de Hawkins, Greg L.; Parkinson, Cally. Rev eal: Where Are You? Northbrook, IL: Willow, 2007, págs. 4, 39,4 2- 44 ,47 ,49 , 53, 65.
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Cristo”. Como crentes maduros, devem mudar seu interesse da igreja para suas próprias atividades privadas. “A pesquisa sugere fortem ente que a igreja declina em influência à medida que as pessoas crescem es piritualm ente.” Aqueles que estão totalmente rendidos são comparáveis aos adultos jovens, que não precisam mais dos pais da igreja e agora po dem se defender sozinhos. “Nosso povo precisa aprender a se alimentar sozinho por meio de práticas espirituais pessoais que lhe permita apro fundar o seu relacionamento com Cristo. (...) Queremos fazer a transição do papel da igreja ‘pai espiritual’ para ‘instrutor espirituaP.” Os autores sugerem a analogia de um instrutor na academia que oferece um “plano de treino personalizado”. O que acho extraordinário é que aqueles que se identificaram como “pa ralisados” dizem: “Creio em Cristo, mas não tenho crescido muito ulti mamente”, e os insatisfeitos afirmaram: “Minha fé é central para minha vida e estou tentando crescer, mas a minha igreja está me desamparando”. Esses entrevistados altamente comprometidos disseram ainda que desejam “muito mais desafio e profundidade dos serviços”, e “60% gostaria de ter ‘ensino da Bíblia em mais profundidade”’. A resposta-pronta dos autores, no entanto, não foi que a Willow Creek devia fornecer um ministério mais rico, mas que as ovelhas deviam aprender a se virar sozinhas - isto é, tor nar-se autoalimentadoras que precisam estar mais envolvidas em práticas espirituais particulares. É significativo que, neste relatório, a espiritualidade seja medida pelo quanto as pessoas fazem. A missão da igreja é oferecer “oportunidades para conectar-se com os outros”, “oportunidades de pequenos grupos” e “práti cas espirituais pessoais básicas” . Aqueles que estão “perto de Cristo” (nível 3) necessitam de “práticas espirituais pessoais avançadas” e membros “cen trados em Cristo” (nível 4) precisam de “uma ampla gama de oportunidades de atendimento e orientação”. Embora Cristo seja o referente, todas as for mas de medida são compromissos que poderiam ser facilmente aplicados a qualquer organização ou causa que esteja interessada em atividades espiri tuais. Não há menção de qualquer pessoa necessitando ouvir a Palavra de Cristo, ser batizada ou receber Cristo na Ceia do Senhor. Conquanto cada nível seja identificado em relação a Cristo, toda a ênfase é sobre as práti cas e serviço dos membros em vez da atividade de Deus no serviço de seu povo. Obviamente, se a igreja se restringe a fornecer oportunidades para as ovelhas fazerem algo, elas podem fazer isso sozinhas. Apesar de ter definido a si mesma, primariamente, como antítese do mo vimento da megaigreja, o movimento da Igreja Emergente está se tomando mais amigo de seus rivais, como a recente participação de Brian McLaren em uma conferência em Willow Creek atesta. Como McLaren e outros lí deres emergentes, Doug Pagitt nos encoraja a pensar em nós mesmos e na
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vida que levamos como o evangelho.3A Bíblia, diz McLaren, é “parte de uma conversa, não um livro morto do qual extraio a verdade”.4A Palavra de Deus não vem a nós do lado de fora; os crentes “têm a verdade de Deus dentro de si”, escreve Pagitt. Na verdade, “cada pessoa tem experiência, compreensão e perspectiva; não existe ninguém que seja totalmente des provido de verd v erdade ade”.5 ”.5 Ameaçados nesta perda de sola Scriptura estão os corolários: solo Chris to (somente Cristo), sola gratia (somente a graça), sola fide (somente a fé) e soli Deo gloria (glória somente a Deus). Estes riscos não são demasiado elevados para Brian McLaren, por exemplo, que repreende os cristãos re formados por “seu caso de amor com a palavra latina latina sola”.6 De acordo com Dan Kimball, a igreja não é um lugar . “A igreja é o povo de Deus, que se reúne com um sentido de missão (At 14.27). Não podemos ir à igreja porque somos a igreja.”7A partir disso, Kimball traça o contras te familiar entre evangelismo (missão) e marcas da igreja (meio de graça). D arrelll Guder, Kimball considera Apelando para The Missional Church de Darrel que as coisas deram errado na Reforma. Os reformadores, em seus esforços para aumentar a au toridade da Bíblia e assegurar a sã doutrina, definiram as marcas de uma igreja verdadeira como: um lugar onde o evangelho é pregado corretamente, os sacramentos são ad ministrados corretamente e a disciplina da igreja é exerci da. No entanto, ao longo do tempo, essas marcas estreita ram a definição da própria igreja como um “lugar onde”, em vez de um “povo que é” a realidade. A palavra igre ja j a tomou-se definida como “um lugar onde certas coisas acontecem”, como pregação e comunhão.8 Desta maneira, no entanto, o trabalho das pessoas toma 0 lugar da obra de Deus. O evangelho é boa-nova. A mensagem determina o meio. Há uma lógi ca clara para o argumento de Paulo em Romanos 10, onde ele contrasta “a justiça jus tiça decorrent deco rrentee da lei” e “a justiça justiç a decorre d ecorrente nte da fé” f é” (Rm (R m 10.5-6). Fomos Fomo s resgatados pelas ações de Cristo, não pelas nossas; o Espírito aplica esta redenção a nós aqui e agora, de modo que somos justificados pela fé sem as 3Pagitt, Doug. Preaching Re-Imagined. Grand Rapids: Zondervan, 2005, pág. 31. 4McLaren, Λ Generous Orthodoxy, pág. 185. 5Pagitt, PreachingRe-lmagined, pág. 139. 6McLaren, A Generou s Ortho doxγ , pág. 23. 7Kimball, The Emerging Church, pág. 91. 9Ibid., pág. 93.
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obras; mesmo essa fé nos é dada por intermédio da proclamação de Cristo. Uma vez que este evangelho é um relato a ser crido em vez de uma tarefa para cumprirmos, cumpri rmos, ele precisa pre cisa de mensageiros, embaixadore emba ixadoress e testemunhas. testem unhas. O método de entrega é adequado ao seu conteúdo. Se a mensagem cen trai do cristianismo for como ter uma vida melhor agora ou tornar-se me lhor, então, em vez de arautos precisaríamos de treinadores de vida, direto res espirituais e palestrantes motivacionais. Um bom conselho requer uma pessoa pes soa com um u m plano; p lano; as boas-nov boa s-novas as exigem e xigem uma pesso p essoaa com c om uma u ma mensa me nsa gem. Isso não quer dizer dize r que que também não precisamos de bons conselhos ou de planos, mas que a fonte da existência e da missão da igreja neste mundo é o anúncio da vitória de Deus em Jesus Cristo. Treinadores podem enviar a si mesmos com suas próprias sugestões, contudo um embaixador tem de ser enviado com uma mensagem autoriza da. Se o objetivo for o de fazer as pessoas irem a Cristo e encontrarem-no, então os métodos serão quaisquer que acharmos pragmaticamente bem-su cedidos, e se for tudo sobre Cristo encontrar pecadores, então os métodos já estão determinado determ inados. s. A citação de Romanos Roman os 10.13-15 revela reve la a cadeia cade ia ló gica do argumento de Paulo: “Todo aquele que invocar 0 nome do Senhor será salvo. Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? pregu e? E como c omo pregarão, prega rão, se não n ão forem enviados?” envia dos?”.. O evangelho evan gelho define o evangelismo; 0 conteúdo determina os métodos de entrega; as marcas da igreja (pregação e sacramento) definem sua missão (evangelizar, batizar, ensinar e a comunhão). Para ajudar a identificar essa conexão entre a mensagem (abordada nos capítulos anteriores) e a missão e os métodos de entrega de Cristo, forneço o seguinte quadro: Lei leve
0 e v a n g e lh o
Deus como treinador de vida
Deus como Juiz e Justificador Boas-novas (feito) Cristo como Salvador A Bíblia como mistério de Cristo sendo revelado Sacramentos como meios de graça A igreja como embaixada da graça (foco no serviço/ ministério de Deus) Deus desce até nós Deus nos envia
Bom conselho (fazendo) Cristo como exemplo A Bíblia como manual de instrução Sacramentos como meios de compromisso A igreja como recurso de autoajuda (foco no nosso serviço/ministério) Nós subimos até Deus Nós enviamos a nós mesmos
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R e v e r t e n d o o f l u x o : t ra ra n s f o r m a n d o a o b r a d e D e u s e m o b r a n o s s a
Essas marcas da igreja focalizam 0 que Deus faz por nós, e não aquilo que fazemos para Deus. Ele não foi apenas o Salvador uma vez, no passado (do tipo era uma vez...); é o Salvador aqui e agora enquanto entrega Cristo e todos seus benefícios para nós, semana após semana. A missão da igreja é exibir essas marcas. Esta orientação desafia não só a tendência dos movimentos de reavivalismo por zelo sem conhecimento, mas a tentação das igrejas confessio nais em direção à confiança no conhecimento sem zelo. No seu sermão do Pentecostes, Pedro anunciou: “Para vós outros é a promessa, para vossos filhos e para todos os que ainda estão longe, isto é, para quantos o Senhor, nosso Deus, chamar” (At 2.39). Negligenciando uma Eclesiologia pactual, 0 evangelicalismo exibe um zelo por missão fora dos eixos das marcas da igreja. Afinal, se 0 evangelho é sobre nossa experiência e atividade na transformação pessoal e social, em vez de sobre como podemos ser bene ficiários regulares dos dons de Deus, os meios da graça são irrelevantes. O que realmente precisamos é de meios de compromisso e ação. No entanto, este ativismo missionário fora dos eixos dos métodos que Deus prescreveu não apenas falhou em levar a uma retomada na profissão de fé entre “todos os que ainda estão longe”, mas levou ao esgotamento, à instabilidade e ao desvio dos crentes e de seus filhos. Nossa Noss a tentação, tentaç ão, como com o cristãos cristã os reformados reform ados,, no entanto, enta nto, é nos orgulhar orgu lhar mos de ostentar as marcas de uma igreja verdadeira, independente de pes soas estarem, de fato, sendo acrescentadas à igreja. Afinal, pensamos, te mos a confissão correta, administramos os sacramentos de acordo com a instituição de Cristo e temos ordem na igreja. Mas podemos facilmente nos esquecer de que tudo isso existe para 0 propósito da missão, não para que possamos possa mos comemo com emorar rar nossa nos sa pureza. purez a. “A promessa prome ssa é para você e seus filhos” filhos ” , corretamente enfatizamos, mas e o que dizer de “todos os que ainda estão longe”? A dicotomia entre as marcas e a missão da igreja ou entre 0 ensino dos alcançados e alcançar os perdidos teria sido completamente estranha para os apóstolos. a póstolos. A melhor maneira de reintegrar as marcas e a missão é começar com o próprio evangelho. Devo dizer que, pelo menos em minha experiência, tanto os tradicionalistas quanto os radicais enfatizam nossa atividade em detrimento da atividade de Deus. Vamos à igreja principalmente para fazer alguma coisa; vamos para servir em vez de para sermos servidos. Muitos tradicionalistas se opõem às abordagens de busca orientadas para missões, insistindo que o que importa no serviço não é o que sai dele, mas o que co locamos nele. Deus é o público (que recebe nossa adoração) e nós somos os atores, de acordo com muitos defensores do culto tradicional. Igrejas buscadoras normalmente se veem como recursos para a melhoria pessoal, e os
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movimentos da Igreja Emergente consideram a igreja como uma comunida de de transformação transformaçã o do mundo em discípulos. Po r todas as suas diferenças, cada um destes modelos praticamente ignora o ponto central que a missão de Deus é nos servir por meio das marcas de pregação e sacramento, sacramento, bem como que o corpo será construído em Cristo conjuntamente e leva seu tes temunho e boas obras pa ra seus próximos no mundo.
Mesmo antes de virmos para adorar a Deus, somos, primeiramente, ser vidos por Deus, à medida que ele distribui seus dons, que causam nosso louvor e alegria. Aqui, Cristo lava nossos pés. Como Pedro, podemos nos indignar com esta estranha inversão de papéis, mas Jesus disse que “não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate por muitos” (Mt 20.28). Claro que o serviço de Cristo para nós desperta nosso louvor e nos toma frutíferos em boas obras, mas os meios da graça vêm antes dos meios de serviço. serviço. Oficiais Oficiais - pastores, pastores, presbíteros presbíteros e diáconos - servem ao restante do corpo em nome de Cristo. O teatro principal para 0 serviço do povo é o mundo , e não os ministérios de serviço dentro da igreja. Lutero transmite muito bem 0 que estou afirmando aqui, dizendo que “Deus não precisa de suas boas obras, seu próximo, sim”. Deus nos serve por intermédio interm édio de seus meios m eios de graça, criando a fé e o arrepend arre pendime imento nto que qu e produzem prod uzem o fruto do Espírito, Espírito , para p ara que Deus possa, então, servir serv ir a nossos nosso s próximos próxim os por intermédio interm édio de nossas diversas diversa s vocações voca ções em todo o mundo. Em contrapartida, “ 0 homem que praticar a justiça decorrente da lei” (Rm 10.5) se esforça para subir a Deus, oferecendo suas obras de serviço a ele para nós sermos abençoados. Mas, como os reformadores salientaram, isso, na verdade, não ajuda ninguém, já que não comove a Deus, não nos salva e não serve ao nosso próximo. Dons não sobem para Deus, mas provêm de Deus, que de nada pre cisa e nada pode receber que 0 obrigue à reciprocidade (At 17.24-25; Rm 11.35-36). Deus nos dá a salvação por meio do evangelho e dá bens temporais para nossos próximos por meio de nossas vocações, enquanto nos faz testemunhas de Cristo em nossos relacionamentos comuns - que podem pod emos os ter agora, agor a, visto que não estam os gastand gas tandoo todo nosso nos so tempo tem po em atividades relacionadas à igreja. Todo Todo mundo tem 0 que é necessário: Deus é servido pela satisfação perfeita de Cristo, nós somos servidos por seu evangelho e nosso próximo é servido por nosso testemunho, amor e diligência em nossas vocações. A tendência do evangelicalismo contemporâneo, todavia, é inverter este fluxo fluxo de dons. Examinei uma série de recentes teologias sistem áticas escritas por evangélicos conservadores e progressistas, e todos eles se referem ao Batismo e à Ceia do Senhor como “meios de compromisso” em vez de “meios de graça”, acrescentando que não há razão para limitar os meios de compromisso a essas duas ordenanças. Será isto de alguma
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maneira diferente da definição do Concilio Vaticano II da missa como “ 0 trabalho do povo”? Como Paulo deixa claro, é nossa tendência natural, mesmo como cris tãos, preferir ser atores a ser receptores da salvação. Até sem levarmos a mensagem para uma direção pelagiana, podemos transformar os métodos em uma forma de autossalvação. Pelo menos Charles Finney foi coerente a este respeito. Uma vez que o evangelho seja uma chamada para o aperfeiçoamento moral, o único critério para os métodos utilizados é o sucesso pragmático. No ponto em que o Catecismo de Heidelberg nos lembra de que “o Espírito Santo cria a fé em nossos corações pela pregação do santo evangelho e a confirmação pela utilização dos santos sacramentos”, Finney estava con vencido de que a fé e o arrependimento podem ser “induzidos” por “meios mais eficientes” que nossas mentes pragmáticas podem conceber. As “no vas medidas” de Finney substituíram os meios da graça. Os cristãos, disse ele, devem ser “frequentemente convertidos”, o que significa que deve ha ver sempre “novos estímulos” para mover as pessoas para níveis cada vez mais elevados de compromisso e ativismo.9 “Agora, o grande empreendimento da igreja é reformar o mundo - para aniquilar toda espécie de pecado”, Finney insistiu. “A igreja de Cristo foi originalmente organizada para ser um corpo de reformadores... para re formar indivíduos, comunidades e governos.” 10Tanto a conversão pessoal quanto a social dependem de “persuasão moral”. “Recompensas, leis e pu nições - estas coisas e outras como elas são exatamente o centro da persu asão moral.” Se igrejas, colégios e seminários não assumirem esta tarefa, serão deixados para trás, ele argumenta." No entanto, os “estímulos” e as “novas medidas” de Finney levaram a ciclos de entusiasmo e exaustão, como o historiador Whitney R. Cross observa: Os engenheiros do reavivamento tiveram de exercer cria tividade cada vez maior para encontrar meios ainda mais sensacionais para substituir aqueles desgastados pelo uso excessivo. Em todas estas modalidades, a reunião prolon gada, embora apenas uma forma na qual as medidas ope raram, ajudou as próprias medidas a crescerem ainda mais
9Finney, Charles. Systematic Theology’. Minneapolis: Bethany, 1976, pág. 31; cf. Hardman, Keith J. Charles Grandison Finney: Revivalist an d Reformer. Grand Rapids: Baker, 1987. 10Finney, Charles. Lette rs on Revivals . 2" ed. Nova York: Wright, 1845, pág. 142. " Ibid., pág. 204.
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Esgotados na ânsia perpétua por experiências sempre novas, por inter médio de métodos sempre novos, muitos dos que foram convertidos nos reavivamentos de Finney simplesmente abandonaram de vez a igreja. Du rante esse tempo, um ministro, Albert Dodd, reclamou: “Agora se entende, de modo geral, que os numerosos convertidos das novas medidas foram, na maioria dos casos, como a nuvem da manhã e o orvalho da madrugada. Em alguns lugares, não a metade, nem um quinto, ou mesmo parte de um décimo deles permanece”.13 Esta é precisamente a lógica da “justiça decorrente da lei [obras]”, a que Paulo se refere em Romanos 10.5 - se esforçando para trazer Cristo do céu ou dos mortos, como se ele não estivesse tão perto como 0 evangelho nos proclama. Se a salvação está em nossas mãos, então os meios também estão. Finney diz que a Grande Comissão apenas disse: “Vá”. “Ela não pres creve quaisqu er forma s. Ela não admite qualquer forma. (...) E 0 ob jetivo [dos discípulos] era fazer 0 evangelho conhecido da maneira mais eficaz... de modo a obter atenção e garantir obediência do maior número possível. Ninguém pode encontrar nenhuma form a de fazer isso prevista na Bíblia” (grifo do autor).14 Definindo a igreja como “uma sociedade de transformadores morais”, Finney consistentemente relacionou o que consi derou como a marca da verdadeira igreja à sua missão. No ponto em que o cristianismo reformado identifica a verdadeira igreja com a atividade de Deus por intermédio de seus meios de graça, Finney identifica a igreja ver dadeira com nossa agência, cujos métodos foram determinados por aquilo que consideramos mais eficaz. Muitos evangélicos - e certamente pessoas reformadas - não vão querer ser tão consistentes quanto Finney. Em sua época, os presbiterianos ficaram divididos sobre se podiam ser calvinistas na teoria e semipelagianos na prá tica. Eventualmente, os presbiterianos da Nova Escola aliviaram essa ansie dade simplesmente se tomando arminianos em ambos os casos. O apóstolo Paulo e Charles Finney oferecem um contraste gritante, mas ambos foram consistentes. Simplesmente, não podemos adotar uma visão bíblica das marcas da igreja e uma visão semipelagiana (ou pelagiana) dos métodos e da missão da igreja. 12C ross, Whitney R. The Burned-Over District: The Social and Intellectual History o f Enthu siastic Relig ion in Western Nova York, 1800-1850. Ithaca: Cornell University Press, 1982, págs. 182184 ; cf. pág. 179. 13Citado em Hardman, Charles Grandison Finney, pág. 380. 14Finney, citado em ibid.
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A u t o a l i m e n t a ç ã o : q u e m p r e c i s a d a i g r e j a q u a n d o t e m u m i P o d ?
Tal como o recente estudo de Willow Creek, George Bama conclui que 0 que crentes individuais fazem por conta própria é mais importante do que aquilo que a igreja faz por eles. Mas Bama assume o legado de Finney para o próximo passo lógico. Um dos mais bem-sucedidos consultores de marketing de megaigrejas, bem como da Disney Corporation, recentemente chegou a ponto de sugerir que os dias da igreja institucional estão contados. Bama comemora um aumento demográfico do que ele chama de “revolu cionários”: “Milhões de crentes” que “foram além da igreja estabelecida e escolheram ser a igreja em seu lugar”.15Já que ser a igreja é uma questão de escolha e de esforço individual, tudo de que as pessoas precisam são recur sos para seu próprio trabalho de transformação pessoal e social. “Com base em nossa pesquisa”, diz Bama, “tenho projetado que, por volta do ano de 2010, de 10% a 20% dos norte-americanos vão receber toda sua informação espiritual (bem como mandá-la para fora) pela internet” .16Quem precisa de igreja quando dispõe de um iPod? Como qualquer outro prestador de serviços, a igreja precisa descobrir qual é seu negócio, diz Bama. “O nosso não é o negócio da religião orga nizada, do culto congregacional ou do ensino da Bíblia. Se nos dedicarmos a tal negócio, vamos ser deixados de lado à medida que a cultura se move para frente. Esses são fragmentos de um propósito maior para 0 qual fomos chamados pela Palavra de Deus. Estamos no negócio de transformação de vidas.” 17 Claro que Bama não acha que os cristãos deveriam abandonar todas as práticas religiosas, mas as únicas que ele pensa serem ainda essenciais são aquelas que podem ser feitas por indivíduos em particular ou, no máximo, em famílias ou reuniões públicas informais. Ao eliminar os meios da graça públicos, no entanto, Bama (como Willow Creek) nos direciona para um buffet self-service , longe da festa pródiga de Deus. Dirigindo-se aos seus leitores em termos semelhantes àqueles das con clusões do estudo de Willow Creek citado anteriormente, Bama escreve: “Se você optar por continuar a participar do molde congregacional ou por se aventurar no desconhecido espiritual, para provar das dinâmicas concorrentes de independência e responsabilidade, vá para frente corajo samente. A perspectiva de Deus é que as estruturas e as rotinas nas quais você se envolve importam menos que o caráter e os compromissos que definem você”. Os crentes não precisam encontrar uma boa igreja, mas 15B arn a, George. Revolu tion: Find ing Vibrant Faith bey ond the Walls o f the Sanc tuary . Carol Stream, IL: Tyndale, 2005, texto da contracapa. 16 Ibid., pág. 180. 17Barna, Second Coming o f the Church, pág. 96.
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devem encontrar um bom treinador”. Se o evangelho é bom conselho em vez de boas-novas, obviamente a igreja é simplesmente “um recurso” para nosso desenvolvimento pessoal, como Bam a sugere.18 Se a igreja local quiser sobreviver, diz Bama, a autoridade deve deixar de ser centralizada para ser descentralizada; a liderança deve deixar de ser centrada no pastor para ser centrada em todos os cristãos, o que significa que as ovelhas são principalmente servidoras em vez de servidas pelo mi nistério. Mais ainda, 0 ministério deve passar de “resistência” à mudança para “aceitação” dela, de “tradição e ordem” para “missão e visão”, de uma abordagem de ministério “multiuso” para um “especializado”, de “ligado à tradição” para “ligado à relevância”, de uma visão do papel do povo como receptor para ator, de “conhecimento” para “transformação”.19 Em apenas alguns anos”, prevê Bama, “veremos que milhões de pes soas não vão se dirigir fisicamente para uma igreja, mas, em vez disso, vão navegar pela internet em busca de experiências espirituais significativas”.20 Afinal, ele acrescenta, 0 coração do ministério de Jesus era “o desenvol vimento do caráter das pessoas”. “Se estivermos à altura do desafio”, diz Bama, os americanos vão testemunhar 0 “ressurgimento moral” e uma nova liderança, e a mensagem cristã “vai recuperar o respeito” em nossa cultura. O culto íntimo, Bama declara, não “exige um culto congregacionaP ’, ape nas um compromisso pessoal com a Bíblia, com a oração e com o discipulado. Seu livro termina com a advertência do juízo final. “Qual relatório de seu compromisso com o serviço prático e santo de transformação da vida você será capaz de dar a ele?” Os revolucionários descobriram que, a fim de exercer uma fé autêntica, têm de abandonar a igreja.21 Esta é a situação na qual a espiritualidade contemporânea nos deixa fi nalmente: sozinhos, navegando na internet, tentando achar treinadores e companheiros de equipe, tentando nos salvar do cativeiro desta época pre sente pela descoberta de estímulos que induzirão uma vida transformada. Cada vez mais, os exemplos aos quais me referi são o que as pessoas que rem dizer com 0 adjetivo missionário. Como Finney, George Bama afirma que a Bíblia não oferece “quase ne nhuma restrição sobre estruturas e métodos” para a igreja.22De fato, como vimos, ele nem sequer acha que a igreja visível seja em si divinamente estabelecida. Assim como espaços vazios na natureza são preenchidos rapi damente pelo ar, onde Bama imagina que a Bíblia não prescreve nenhuma '*Ibid., págs. 68, 138-140. '9Ibid., pág. 177. 10Ibid., pág. 65. 21Ba rna , Revo lution, págs. 17, 22, 203, 208, 210. 21Ibid., pág. 175.
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estrutura particular ou métodos, a mão invisível do mercado preenche 0 vazio. Ele próprio reconhece que a mudança da igreja institucional para “comunidades alternativas de fé” é, em grande parte, devida às forças de mercado: “Quando você analisa as mudanças na radiodifusão, no vestuário, na música, nos investimentos ou nos automóveis, vê que os produtores de bens de consumo percebem que os americanos querem o controle sobre suas vidas. O resultado tem sido os nichos dos EUA - a criação de categorias altamente refinadas que atendem um número menor de pessoas, mas podem alcançar maior fidelidade (e lucros)”. A mesma coisa está acontecendo com a igreja, observa Bama, como se fosse um destino a ser abraçado em vez de uma apostasia a ser combatida.23 A lógica do individualismo e do moralismo chegou finalmente à sua consumação na teoria de que pessoas que se autoalimentam e se transformam não precisam da igreja e dos meios da graça. A descida de Deus em graça para nós revertida por nossa subida em entusiasmo pragmático faz que nos tomemos, cada vez mais, ovelhas sem um Pastor - e tudo em nome da missão. Em vez de dar igreja aos sem-igre ja, estamos a caminho de tirar a igreja dos que têm igreja. Vale a pena notar que Bama tem estatísticas a seu favor. De acordo com um recente relatório que lista ações que os americanos ainda consideram pecados, não “ir à igre ja ou a serviços religiosos regularmente” veio próxim o do últim o (18%).24 Embora sem profundidade, existe uma teologia por trás da interpretação que Bama faz de Jesus como 0 revolucionário paradigmático, e esta teolo gia é basicamente a do reavivalista Charles Finney, do século 19. “Então, se você é um revolucionário”, diz Bama, “é porque sentiu e respondeu ao chamado de Deus para ser um imitador de Cristo. Não é responsabilida de de uma igreja colocá-lo neste molde. (...) A escolha de se tomar uma revolucionário —e é uma escolha - é um pacto que você faz com Deus somente”.25
M is s ã o o ri e n t a d a p e l o e v a n g e l h o
A aliança bíblica tem origem na decisão graciosa de Deus, na obra redento ra e na vocação eficaz por meio do evangelho, colocando-nos em um a famí lia de irmãos que não escolhemos com base em nossas próprias afinidades, hobbies, preferências musicais ou opiniões políticas. A aliança americana dá origem à escolha do indivíduo, à transformação moral e ao contrato com Deus para ser um imitador de Cristo.
23 Ibid., págs. 62-63. 24Reportagem do USA Today, Ellison Research, a gosto de 2007. 25Ibid., pág. 70.
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Onde Cristo não é rei, ele tampouco é profeta ou sacerdote. Cristo govem a sua igreja - instituiu sua estrutura e métodos - justam ente pa ra que pos sa, efetiva mente, entregar s uas boas dádivas pa ra o mundo.
Ao mesmo tempo, como já indiquei, em meu próprio círculo confes sional a pessoa pode distinguir uma preocupação constante com as marcas sem uma orientação missionária correspondente. O ministério fiel de Pa lavra, sacramento e disciplina é a missão (Mt 28.18-20). Uma igreja que não olha para o exterior, ansiosa para levar as boas-novas até os confins da terra, não está realmente trazendo-as para aqueles que já se reuniram no rebanho de Cristo. Uma igreja verdadeiramente evangélica será uma igreja evangelista : um lugar onde o evangelho é pregado por me io da Pa lavra e do sacramento e um povo que dá testemunho disso no mundo. Será um lugar onde crentes e não crentes são igualmente os destinatários das boas-novas de Deus. Vamos lá para recebermos a Palavra de Deus, tanto a lei quanto o evangelho, e para sermos sepultados e ressuscitados com Cristo. Renunciamos a nossos enredos triviais a fim de sermos inscritos no drama de Deus que está sendo desenrolado. E, depois, saímos para o mundo para viver nosso papel neste drama. Aqueles que são muito perdoados muito amam (Lc 7.47). Apenas como recebedores de Cristo e de todas as suas dádivas podemos nos tornar parte da nova criação de Deus: testemunhas de Cristo e servos de nossos próximos. Sem as marcas, a missão é cega; sem a missão, as marcas estão mortas. Como Lesslie Newbigin tem enfatizado, a igreja não se engaja na missão; ela é uma missão - mas a missão de Deus, não nossa. Este tema está presente na maioria dos escritos de Newbigin, especialmente em The Gospel in a Pluralistic Society (Grand Rapids: Eerdmans, 1989). " G l ó r i a , g l ó r ia , a l e l u i a " : C ri s to c o m o m a s c o t e n a s g u e r ra s d a c u l t u ra
No culto na Catedral Nacional de Washington, após os atentados terroris tas de 11 de setembro de 2001, seguido pelo desfile da guarda de honra das forças armadas ao som de “O Hino de Batalha da República”, o pre sidente George W. Bush declarou que “livrar o mundo do m al” era a cau sa dos Estados Unidos. Um senador anunciou que os acontecimentos de 11/09/01 reforçaram a visão de que os EUA são uma “nação sagrada”. Em contrapartida, precisamente por causa de sua aliança sagrada, de acordo com Jerry Falwell e Pat Robertson, a tragédia horrível foi juízo de Deus sobre seu povo por tolerar o aborto e a homossexualidade. Mais recentemente, em um livro intitulado Go ds Judgments: Interpre ting History an d the Christian Faith , outro evangélico, Steven J. Keillor, explica por que acha que 11/09 foi julgamento de Deus sobre a ganância
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dos Estados Unidos, as políticas de livre comércio e o militarismo.26Não é a abordagem ações, não credos que é novidade no evangelicalismo, mas os feitos particulares que a pessoa tem em mente. Da mesm a forma, Gods Politics, de Jim Wallis, simplesmente reflete como em um espelho na es querda religiosa a confusão do evangelho com um programa partidário que dominou a direita religiosa. Durante o último ano ou por volta disso, a mídia tem se concentra do na ampliação do movimento evangélico em suas lealdades políticas. Não mais estereotipado como 0 Partido Republicano em oração, o evangelicalismo reflete um interesse maior em questões como pobreza, meio ambiente e AIDS. A questão mais profunda, porém, é saber se a missão da igreja é servir aos interesses de qualquer partido ou ideologia política. Será que realmente faz diferença se a discussão é por causa do aborto, do casamento gay ou do aquecimento global e da fome se nossos programas e atividades sutilmente (e não tão sutilmente) substituem Cristo? Será que importa se um democrata ou um republicano faz um discurso político em um púlpito cristão? Ou será que os exemplos revelam onde pensamos que 0 verdadeiro poder reside? Há, até mesmo agora, uma conversa sobre um “centro evangélico”, reminiscência do centro-esquerda/centro-direita dos partidos da Europa (especialmente os Democratas Cristãos, um partido forte na Alemanha). Correndo 0 risco de ofender, tenho de dizer que, para o bem da igreja e o bem comum, estou mais que um pouco preocupado com um centro evangélico, uma esquerda evangélica e uma direita evangélica. Carreiras políticas (desde a eleição até o mandato) são honestas, servem ao próxi mo e são vocações piedosas. Mas evangélico significa “aquele que é do evangelho”, e este é uma mensagem que temos para oferecer, não uma agenda que temos de negociar com nossos concidadãos. Nem tudo o que é importante neste tempo entre as duas vindas de Cristo está relacionado com a entrega deste evangelho. Os cristãos têm outras vocações além de serem membros do corpo visível de Cristo. Entretanto, precisamos parar de usar evangelho e evangélico para tudo 0 que pensamos ser o melhor para alcançar o bem comum. Mesmo quando a Escritura aborda estas importantes questões e res ponsabilidades, o faz de uma perspectiva com pletamente diferente (a da era por vir) e com meios inteiramente diferentes (o poder libertador do Espírito por meio do evangelho, e não 0 braço coercivo do Estado). Pre cisamos de boas igrejas e de um governo bom, mas eles fazem coisas diferentes, com mandatos e meios diversos, e com distintos cânones ou 26Keillor, Steven J. Gods Judgments: Interpreting History>and the Christian Faith. Downers Grove, IL: InterVarsity, 2007.
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constituições. A Bíblia é a constituição para o povo da aliança de Deus, e não um livro de princípios gerais. Não obstante pensarmos, como ci dadãos americanos, que políticas democratas são melhores ou não para nossos vizinhos, não é contracultural defender tais políticas no lugar da grande narrativa de redenção de Cristo. É apenas um lado diferente da cultura das guerras. Tenho argumentado há algum tempo, em livros e artigos, que deveriamos ser mais pró-vida - não apenas sobre o aborto e a eutanásia, mas em nossa preocupação com a mordomia da criação e com os cuidados para aqueles que ficam para trás em nosso culto individual da saúde, riqueza e felicidade. A Escritura nos dá permissão para inculcar tal perspectiva. Mas a igreja, como instituição, não pode prescrever qualquer agenda política es pecífica para a concretização dessas metas. Crentes que se preocupam com estas questões irão diferir tanto entre si como dos não cristãos quanto à me lhor forma de abordar o bem social. Ao contrário das diversas vocações dos cristãos no mundo, a igreja institucional não existe para resolver problemas temporais do mundo (o que, inevitavelmente, divide o corpo de Cristo sobre agendas políticas), mas para administrar 0 serviço de Cristo de reconciliar os pecadores consigo mesmo e cuidar de seu rebanho no corpo (por meio dos diáconos), bem como na alma (por meio dos ministros e presbíteros). Depois de terem sido primeiro servidos dessa forma, os membros amam e servem uns aos outros de acordo com suas necessidades específicas e, em seguida, levam esse serviço para fora, para seus próximos não cristãos. A Escritura somente é a constituição da igreja, e a igreja não tem autoridade legítima ou poder para falar ou agir além dessa Palavra divina. Independen te de quão convencidos estejamos em nossas próprias mentes de em quem votar, ministros são embaixadores de Cristo, totalmente limitados por suas palavras. Eles abusam da sua autoridade quando usam este gabinete para apoiar candidatos, partidos e políticas. Não é discipulado radical mudar de um partido para outro ou ampliar a lista política de afazeres da igreja. Discipulado radical significa levar para o mundo - inclusive para os cristãos - a maravilhosa, surpreendente e ofen siva notícia do evangelho. Nada do que fizemos, estamos fazendo ou pode mos fazer é radical. É a mesma velha história do esforço humano. Contudo, na reunião pública de seu povo, Deus está trabalhando, ressuscitando os mortos. Por meio da Palavra e dos sacramentos, 0 reino de Cristo está ir rompendo nesta era presente pelo poder do Espírito. Esse irromper não é apoiar a atual era do mal, mas semear as sementes da era por vir. Ele não vem para melhorar as pessoas ou as sociedades, mas para matar e dar vida em Cristo. Seja o que for que precisemos na sociedade, a igreja não neces sita de uma mudança cultural; ela precisa de uma mudança de paradigma - de nossa agenda para a agenda de Deus.
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A providência ordinária de Deus impede que a presente era seja tão ruim quanto poderia ser, dando-nos confiança em nossa vocação secular para amar e servir nosso próximo, mesmo em formas que não são, em última instância, redentoras. Posso trabalhar, votar e dialogar, lado a lado, com próximos não cristãos sobre uma série de questões relacionadas à melhoria de nosso bairro, da sociedade e do mundo. Não precisamos de mais orga nizações cristãs de serviço, mas de mais igrejas que servem às ovelhas e as enviam para amar e servir seu próximo não cristão como empregado, em pregador, voluntário, amigo e familiar. Uma vez que nós todos partilhamos da consciência da lei de Deus (embora possamos suprimi-la) e o Espírito trabalha por meio da graça comum, assim como da graça salvadora, a igreja como instituição não tem de fazer, prescrever ou ditar tudo o que fazemos como cidadãos na cultura. Não precisamos de mais arte, filosofia, política e negócios cristãos; precisamos de mais proclamação cristã de pensamento e de vida genuinamente transformados, que surgem a partir dela. A igreja como povo - espalhada como sal e luz durante toda a semana - tem muitas vocações diferentes, mas a igreja como local (reunida publi camente, pelo apelo de Deus, a cada Dia do Senhor) tem uma vocação: en tregar (e receber) Cristo por meio da pregação e do sacramento. Neste dia, não somos republicanos ou democratas com uma agenda, mas pecadores em comunhão ao redor de um Salvador comum. Não somos Builder s27*, Boomers, Busters1*' ou emergentes, mas uma comunhão dos santos. “Há somente um corpo e um Espírito, como também fostes chamados numa só esperança da vossa vocação; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos” (Ef 4.4-6). Neste dia, as ovelhas não são chamadas para tomar o mundo uma pastagem mais verde, mas são levadas para as pasta gens exuberantes - planejadas, compradas e preparadas por Deus. Este é o dia da semana que participa do domingo eterno que vai caracterizar todos os dias na era por vir. E para este dia que ansiamos levar nossa família, amigos e colegas de trabalho. Neste dia, não vamos para criar uma história para nós mesmos ou para construir um reino; vamos como aqueles que são muito gratos, “recebendo nós um reino inabalável” e, portanto, servindo “a Deus de modo agradável, com reverência e santo temor’’ (Hb 12.28; grifo do autor). Como já mencionamos, este movimento da doutrina (ações de 27* Builders: pessoas que nasceram antes de 1945, isto é, antes da Segunda Guerra Mundial terminar. Nesta época, o objetivo dos americanos era construir um estilo de vida confortável e desenvolver uma nação americana poderosa, econômica e militarmente [N. da R.]. 2*’ Bust ers , pessoas que nasceram entre 1965 e 1984 e são os filhos dos Boom ers. Foram chamados de busters (que vem da palavra inglesa bust, que pode significas crise, desastre, fracasso) porque havia poucos deles, que cresceram em um mundo bem diferente do das gerações anteriores e durante o período da Guerra do Vietnã (1959-1975) [N. da R.].
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Deus) para a doxologia (nossa grata adoração) e depois para funções (nosso serviço agradável) é a direção que a Palavra de Deus normalmente toma. “Como recebestes Cristo Jesus, o Senhor, assim andai nele, nele radicados, e edificados, e confirmados na fé, tal como fostes instruídos, crescendo em ações de graças” (Cl 2.6-7). Recentemente, ouvi um sermão que terminou com o apelo: “Você vai realizar grandes coisas para Deus?”. É fácil, para os crentes com uma cons ciência sensível, sair da dieta espiritual média na igreja pensando que de vem ser um Paulo no evangelismo, um Wilberforce na cultura e um Thomas à Kempis em disciplinas espirituais. O discipulado radical, nesse sentido triunfalista, parece um tanto quanto distante do convite de Jesus: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. To mai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma. Porque o meu jugo é suave, e 0 meu fardo é leve” (Mt 11.28-30). Fazer apelos para que realizemos grandes coisas para Deus é parte da campanha publicitária que constantemente exaure milhões de cristãos pro fessos. Contar-nos sobre as grandes coisas que Deus tem feito - e, mais do que isso, pregar sua realização para os pecadores - é a verdadeira missão da igreja. E pode até mesmo animar e impulsionar aqueles entre nós a quem Deus chamou para conquistas extraordinárias. Mas será suficiente animar as pessoas a quem Deus chamou para vidas comuns e frutíferas? Na segunda feira, uma congregação, outra vez mais segura da maravilhosa graça de Deus para os pecadores, será espalhada em todo o mundo como sal e luz. Se pensamos que a missão principal da igreja é melhorar a vida em Adão e adicionar um pouco de força moral a esta era do mal e passageira, ainda não entendemos a condição radical para a qual Cristo é uma solução radical. Se o Deus Triúno é 0 único agente da salvação, a igreja será, em primei ro lugar, uma sociedade de receptores - aqueles que recebem a salvação. Porém, se a salvação está em nossas mãos, precisamos encontrar o melhor meio para alcançá-la. Finney, pelo menos, foi coerente em sua teologia, quando disse que a igreja foi originalmente criada para ser um corpo de reformadores morais. Embora a agenda social de Finney reflita posições que poderiam ser identificadas com os políticos conservadores e liberais de hoje, mais recen temente ela se dividiu em facções republicanas e democratas. Por todas as suas diferenças ideológicas, no entanto, a visão fundamental da igreja como um movimento sócio-político - ativista mais do que recebedora - permane ce uma constante. Jerry Falwell e Jim Wallis identificaram Charles Finney como um de seus heróis. Embora seja possível encontrar exemplos semelhantes em outras de nominações, seguindo o exemplo da amostragem de Marsha Witten citado
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em um capítulo anterior, examinei as resoluções recentes sobre questões de política pública por uma denominação tradicional e predominante, a Igreja Presbiteriana (EUA), e pela mais conservadora Convenção Batista do Sul. O Livro de Ordem da presbiteriana (EUA) esclarece que o mandato da igreja para “fazer justiça” exige “trabalho por leis justas e a adm inistração justa da lei”.29 Como conseqüência, nos últimos dois anos há inúmeras resoluções da Assembleia Geral sobre tudo, desde 0 conflito entre Israel e Palestina até a política agrícola. Em 2004, a Assembleia Geral criou uma “Resolução Pedindo um Amplo Programa de Legalização para Imigrantes que Vivem e Trabalham nos EUA” e, dois anos depois, adotou uma política de imigração com letras miúdas que obrigou a consciência de milhões de presbiterianos a registrar detalhes relacionados a esta questão complicada. De fato, o relatorio apela à denominação para “encorajar os legisladores presbiterianos que servem na Câmara e no Senado a trabalharem ativamente pelas linhas do partido para derrotar a legislação proposta, enquanto trabalham ativam ente, em todas as linhas partidárias, para conseguir legislação mais amigável que resolva os conflitos sobre questões de política de imigração” .30 Conquanto exista uma nobre história de leigos presbiterianos exercendo cargos públicos, a denominação esteve historicamente comprometida a li mitar sua autoridade à Comissão de Cristo. Na verdade, o presbiterianismo surgiu na Igreja da Inglaterra, primariamente em protesto contra a opinião de que a igreja ou o Estado deveriam comandar a consciência, à parte da Escritura. Se seu Rei não falou, a igreja não fala - seus membros são livres para exercer sua própria sabedoria para chegar a conclusões sobre conduta e tendências políticas. Tudo isso mudou - em ambos os lados das guerras culturais. Os ór gãos presbiterianos conservadores também têm se pronunciado sobre ques tões como mulheres em combate. A linha principal da Igreja Presbiteriana (EUA) também opinou sobre o NAFTA e o CAFTA, opondo-se ao livre comércio, em princípio, e apelou por políticas específicas sobre legislação relativa a fazendas. A teologicamente ampla Aliança Mundial das Igrejas Reformadas, da qual a Igreja Presbiteriana (EUA) é um membro, decidiu recentemente “que trabalhar para criar uma economia mais justa é essencial para a integridade da fé cristã. Acreditamos que a integridade de nossa fé está em jogo, se permanecermos em silêncio ou nos recusarmos a ag ir dian te do sistema atual de globalização econômica neoliberal” .31 29The C onstitution of the Presbyterian Church (USA), Boo k o f Order, W-7.4002d. 30http://les pcusa.org/ Business/B usiness.aspx?iid=297 . 51“Covenanting for Justice in the E conomy and the Earth Project”, PC(U S A) resoluções, Twen ty-Fourth General Council, http://warc.jalb.de/warcajsp/sidejsp?news_id=l 154&navi=45; (grifo do autor).
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Nesta perspectiva, não só é tolerável os órgãos das igrejas emitirem ve redictos em nome de seus membros sobre política interna e externa, mas deixar de fazê-lo põe a integridade da fé cristã em perigo. É notável que a Igreja Presbiteriana (EUA), como muitas outras denominações protestan tes que rapidamente estão perdendo seus membros, se recusa a cumprir os credos ecumênicos ou sua confissão de fé quando os ministros transgridem seus votos de ordenação, mas obriga todo o corpo a endossar políticas es pecíficas, nacionais e estrangeiras, para os Estados Unidos com o risco de sacrificar a integridade de sua fé. Para não ser superada pelas denominações esquerdistas, a Convenção Batista do Sul tem oferecido resoluções deste tipo, bem comodo outro lado do corredor político. Em “Na Libertação do Iraque” (junho de2003), lemos: Considerando que acreditamos que a Operação Liberda de para 0 Iraque foi uma ação justificada, com base nos princípios históricos de guerra justa, agora, portanto, fica resolvido que os porta-vozes para a reunião da Conven ção Batista do Sul em Phoenix, Arizona, em 17-18 de junho de 2003, apoiem o presidente George W. Bush, o Congresso dos Estados Unidos e nossas forças armadas para sua liderança na execução bem-sucedida da Opera ção Liberdade para 0 Iraque. (...) Exortamos o governo dos Estados Unidos e a comunidade internacional a asse gurarem que o povo iraquiano desfrute todas as bênçãos da liberdade, incluindo a liberdade econômica, política e religiosa.32 Em 1988, a Convenção incluiu uma resolução condenando o apoio do governo dos EUA aos mercados internacionais do álcool e do tabaco: “Fica resolvido que encorajamos o governo dos Estados Unidos a deixarem de apoiar estas indústrias por meio de negociações comerciais; e... Batistas do Sul... declaram sua oposição a estas práticas hipócritas pelo governo dos Estados Unidos em favor das indústrias de álcool e de tabaco”.33 Em 2007, o mesmo órgão emitiu uma resolução sobre o aquecimento global: “Sobre o aquecimento global”. Depois de enumerar 19 razões para contestar a advertência de que 0 aquecimento global constitui um 32‘O n the Liberation o f Iraq”, http://www.sbc.net/resolutions/amResolutionasp?ID=l 126, junho de 2003. 33“Resolution on E xportation of Alcohol and Tobacco”, http://www.sbc.net/resolutions/am Resolution. asp?ID =95, junho de 1988.
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desafio “catastrófico induzido pelo ser humano”, os porta-vozes passaram a seguinte resolução: Resolveu-se que consideramos as propostas para regula mentar as emissões de CO, e outros gases de efeito estufa com base em uma meta máxima aceitável para a tem peratura global como muito perigosas. (...) Instamos o Congresso e 0 presidente a que apenas apóiem medidas com custo-efetividade para reduzir emissões de CO, e outros gases de efeito estufa e rejeitem reduções obriga tórias governamentais de emissões de gases que causam o efeito estufa.34 Já que, atualmente, existem numerosas Organizações Não Govem amentais (ONGs) seculares que fazem lobby precisamente pelas mesmas políti cas, por que as igrejas acreditam que está dentro de sua área de competên cia, ou de seu mandato oficial, oferecer pronunciamentos em nome de Deus sobre estas questões? Por que não permitir aos seus membros o exercício da vocação humana geral para a justiça pública por meio destas instituições de graça comum junto com os não cristãos? Por que as denominações preci sam comprometer seus membros com políticas muito específicas, enquanto, geralmente, deixam questões de doutrina e de culto ambíguas e abertas? Sem dúvida, a abolição do comércio de escravos foi um trabalho nobre, contudo é interessante notar que, na Grã-Bretanha, não foi a igreja como uma instituição que o aboliu, mas os cristãos que haviam sido moldados pelo ministério da igreja e exerciam cargos públicos no Estado. Quando William Wilberforce veio a John Newton para aconselhamento sobre se ele deveria entrar no ministério, Newton incentivou seu amigo a entrar, de preferência, para a política. Era como um membro do Parlamento que Wil berforce amava e servia seu próximo, beneficiando-se dos meios ordinários de graça que Newton lhe ministrava. A igreja pregava a lei transcendente e o evangelho de Deus, e seus filhos desempenhavam seu mandato cultural em sua vocação secular. Graças a Deus que Newton era um pastor e Wil berforce não. Muitas vezes, me pergunto como a história americana poderia ter sido diferente se as igrejas do Sul tivessem disciplinado os membros que possuí am escravos. Em outras palavras, se as igrejas tivessem simplesmente exer cido seu próprio mandato de pregar a Palavra, administrar os sacramentos e exercer a disciplina e os cuidados para o bem-estar de seu rebanho. Não 34 “On Global W arming”, http://www.sbc.net/resolutions/amResolution.asp?ID=l 171, jun ho de 2007.
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seria 0 caso de a instituição ter perdido sua credibilidade moral, mesmo fora da igreja? As igrejas do Norte e do Sul haviam reduzido a escravidão apenas a uma questão política, quando deveriam ter feito o que somente as igrejas podem fazer: proclamar 0 juízo de Deus sobre 0 seqüestro e 0 traba lho forçado de seres humanos, excomungando os membros que se recusas sem a se arrepender desta prática. Ao mesmo tempo, os membros da igreja poderiam ter exercido sua consciência moral e decidido por si mesmos a melhor forma de abolir a instituição em tribunais e órgãos legislativos. Estas questões são particularmente pertinentes levando-se em conside ração o comparativamente rápido desmantelamento do aparteide na África do Sul. De acordo com Allen Boesak, John de Gruchy, F. W. de Klerk e Nel son Mandela, o momento de decisão não foram as sanções impostas ao govemo do aparteide, mas 0 anúncio, no final de 1980, pela Igreja Reformada Holandesa, que “aparteide é uma heresia”. Invocando a máxima, agora po pular, de que as igrejas crescem mais rapidamente quando são constituídas dos mesmos grupos raciais e sócio-econômicos, de acordo com John de Gruchy, os pietistas e reavivalistas derrubaram a política das igrejas mistas que tinham estado em vigor desde 0 Sínodo de Dort (1618-1619).35 So mente quando a igreja de brancos mais influente, expulsa pela comunidade mundial das Igrejas Reformadas, veio a perceber que havia interpretado erroneamente a Escritura para justificar 0 aparteide, foi que a instituição perdeu sua legitimidade moral. A igreja, como uma instituição designada por Cristo, tem um mandato restrito com implicação mundial. Cristãos individuais, porém, têm tantos mandatos quanto suas vocações: como pais, filhos, parentes afastados, vi zinhos, colegas de trabalho, e assim por diante. Além de amar e servir uns aos outros na comunhão dos santos, os crentes são intimados “para ter uma vida tranqüila, cuidar de seus próprios negócios com as próprias mãos (...); a afim de que andem decentemente aos olhos dos que são de fora e não dependam de ninguém” (lTs 4.11-12; NVI). Pode não parecer tão grande como criar uma política global de comércio ou irromper com o reino pela expulsão dos “romanos” (independente de serem democratas ou republi canos) na próxima eleição, mas é o tipo adequado de discipulado para esta fase do governo de Cristo: 0 reino de graça que, somente na volta de Cristo, será um reino de glória. Então, fazer a igreja se limitar aos seus próprios assuntos e pôr sua pró pria casa em ordem não é um convite à passividade em face da injustiça, da maldade e da opressão. Especialmente quando as igrejas dominantes sucumbem à religião civil, seu arrependimento tem enorme significância na 35G ruc hy, John de. Libe rating Refo rme d Theology: A South Afric an Contribu tion to an Ecum enic al Debate. Grand Rapids: Eerdmans, 1991, págs. 21-46, 216-217.
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sociedade mais ampla. Mesmo quando não causa esse tipo de efeito, porém, o arrependimento da igreja é sempre um chamado de Deus. Os cristãos podem ter um impacto mais amplo por meio de suas vocações que a igreja como uma instituição, com seu mandato restrito. Ainda assim, uma igreja em pleno exercício de sua comissão é uma poderosa fonte de verdadei ra transformação, formando uma nova sociedade dentro da cidade secular que, no entanto, é completamente distinta dela. A igreja precisa desesperadamente de uma segunda Reforma, com cer teza, mas de uma Reforma que - como a primeira - retome o foco da igreja em Cristo e sua obra. Nem o partido republicano nem o democrata recebe ram esta comissão. Se a moralidade cristã está se tomando uma lembrança distante na cultura, é porque, cada vez mais, a própria igreja está em caos moral. E, debaixo destes sintomas, encontra-se a verdadeira doença: “Outra geração após eles se levantou, que não conhecia 0 S e n h o r , nem tampouco as obras que fizera a Israel” (Jz 2.10). Os EUA nunca foram uma nação cristã, mas a verdadeira crise que está sempre diante da igreja é se irá descristianizar sua própria mensagem, ministério e missão. Em uma entrevista à revista Decision, de Billy Graham, C. S. Lewis foi questionado: “Você sente, então, que a cultura moderna está sendo descristianizada?”. Lewis respondeu: Não posso falar dos aspectos políticos da questão, mas te nho algumas ideias definidas sobre a descristianização da igreja. Acredito que há muitos pregadores aceitando tudo e demasiados praticantes na igreja que não são crentes. Jesus Cristo não disse: “Ide por todo o mundo e diga ao mundo que está tudo certo”. O evangelho é algo completamente di ferente. Na verdade, ele se opõe diretamente ao mundo.36 Como Atanásio percebeu, a igreja deve estar contra o mundo pe lo mun do, e isso inclui as nações supostamente cristãs.
E v a n g e l h o l ó g i c o e a m i s s ã o d a i g re j a
Em contraste com as tentativas pelagiana e gnóstica de escalar as alturas ce lestes, o evangelho de Cristo cria seu próprio sistema de entrega. Como já vimos, Paulo confirma isso em Romanos 10, lamentando que seus contem porâneos tentassem se salvar por seus esforços. “Porque lhes dou testemunho de que eles têm zelo por Deus”, afirmou, “porém não com entendimento” (v. 2). E não era de conhecimento geral que eram fatalmente ignorantes, mas 36A entre vista com S herwood Wirt na revista Decis ion está inclusa em Lewis, God in the Dock, pág. 265.
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do conhecimento de uma verdade específica: “Desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à que vem de Deus. Porque 0 fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê” (vs. 3-4). Paulo continua: obras de justiça requerem perfeita obediência. “A justiça decorrente da fé assim diz: Não perguntes em teu coração: Quem subirá ao céu?, isto é, para trazer do alto a Cristo; ou: Quem descerá ao abismo?, isto é, para levantar Cristo dentre os mortos” (vs. 6-7). Em outras palavras, as obras de justiça clamam por ascensão moral, subida zelosa da escada para o céu, degrau por degrau. E como se Cristo estivesse longe e coubesse a nós encontrá-lo, ou talvez ainda esteja dei tado na sepultura esperando por nós para ressuscitá-lo por meio de nosso zelo. Mas “a justiça decorrente da fé” reconhece que Deus desceu até nós, em misericórdia, não apenas muito tempo atrás, quando o Verbo se fez carne, mas ainda hoje, quando “a palavra da fé que pregamos” é tra zida até nós (Rm 10.6, 8). Não podemos subir até Deus, mas ele desceu até nós; está tão próximo quanto 0 evangelho de Cristo, que é pregado a nós. “Assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo” (v. 17). A pregação é central não porque valorizamos 0 intelecto e excluímos as emoções e a vontade, mas porque é ação de Deus e não nossa. O Deus que realizou nossa salvação agora a entrega para nós. Portanto, o argumento de que a ênfase na pregação se inclina em direção ao intelectualismo está longe de ser correta. A verdadeira questão não é se devemos dar prioridade a uma faculdade humana em particular (intelecto, vontade ou emoção), mas se damos prioridade à ação de Deus sobre nós. Na pregação, recebemos a mensagem - não somos os encarregados, mas estamos sentados para sermos julgados e justificados. No Batismo, também somos receptores passivos - não batizamos a nós mesmos, mas somos batizados. Na Ceia do Senhor, Cristo se dá a nós como a nossa comida e bebida para a vida eterna; é um banquete servido a nós - a refeição já foi preparada, e Cristo a serve para nós por intermédio de seus ministros. Somos alimentados ; nossos trapos imundos removidos; somos banhados e vestidos com Cristo e alimentados para nossa peregrinação para a Cidade de Deus. Em The Lion, the Witch, and the Wardrobe, C. S. Lewis cria uma cena maravilhosa em que três das quatro crianças são apresentadas a Aslan, que declara: “Que a festa seja preparada!”. Ordenando a seus servos para “leva rem estas filhas de Eva para 0 pavilhão e ministrar a elas” , Asian diz a Pedro (0 primogênito): “Vem, filho de Adão, e vou mostrar-lhe a vista do castelo onde você vai ser rei”.37Nesta cena, Lewis vividamente capta o caráter da 37Lewis, C. S. The Lion, the Witch, and the Wardmbe. Nova York: Harper-Collins, 2005, págs. 132-133.
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relação que Cristo estabelece com seu povo, por meio do banquete que ele dá. Os ministros são simplesmente garçons na festa de Deus. Em Romanos 10, Paulo está nos dizendo não apenas que a obra de Cris to no passado é suficiente para nossa redenção, mas o próprio Cristo diz, de fato: “Apenas fique quieto. Eu vou lhe dar a mim mesmo e todas as minhas riquezas. Eu fiz a viagem antes e vou continuar trazendo-lhe o dom por meio dos meus embaixadores, a quem eu envio”. Cristo se dá a nós por meio da pregação do evangelho (Rm 10.6-8), do Batismo (At 2.38; 22.16; Rm 6.3-4; 1Co 12.13; Cl 2.12; lPe 3.21) e da Ceia do Senhor. “O cálice da bênção que abençoamos”, Paulo pergunta, “não é a com unhão no sangue de Cristo? O pão que partimos não é a comunhão no corpo de Cristo?” (1C0 10.16). Nós não nos lembramos de Cristo simplesmente ou nos reconsagramos a ele nesta refeição, mas Cristo se nos dá como o Pão da Vida. Muito além de nossa capacidade de compreender, 0 Espírito nos comunica Cristo por meio desses meios humanos de pregação e sacramento, de modo que o Cabeça que subiu não esteja sem o seu corpo. “Nós, embora muitos, somos unicamente um pão, um só corpo; porque todos participamos do único pão” (1C0 10.17). Esses são os meios que transmitem a graça salvadora de Deus em vez de métodos de nosso próprio esforço. Antes de servir, somos servi dos. Antes de fazermos qualquer coisa, algo é feito para nós e por nós. Contudo, até mesmo esses meios da graça de Deus são transformados em nossos meios de ascensão até Deus; então, é fácil concluir que exis tem muitos outros meios além desses para nossa realização desta façanha. Quando isso acontece, vemos a igreja visível e seu ministério público como algo que podemos pegar ou deixar. Se conseguirmos encontrar um bom conselho na internet, com um grupo de amigos cristãos tomando café, na televisão, em conferências, ouvindo música cristã ou por meio de leitura particular e de disciplinas espirituais, quem precisa da igreja? Isso define a igreja exclusivamente como a soma total de ativistas convertidos em vez de como o lugar onde Deu s está trabalhando, entregando seu Filho, pelo seu Espírito, para os ímpios. Existe uma correlação direta, em tal caso, entre uma teologia de autossalvação e a igreja vista principalmente como um centro de recursos huma nos, e não como um centro de atividade divina. Já não precisamos mais de ministros da Palavra formalmente instruídos, mas de líderes carismáticos e empresariais que podem inspirar movimentos ativistas. Segundo as Escrituras, no entanto, a igreja é criação da Palavra. Como a primeira criação, a nova criação surge da atividade de Deus, não de suas próprias possibilidades inerentes. Além disso, o evangelho é um tipo parti cular de Palavra: as boas-novas. E ele cria sua própria comunidade, trans formando estranhos em uma família. Muito maior do que qualquer afini dade natural, 0 evento de Cristo - e a comunicação desse evento - molda
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uma nova comunidade no Espírito, que é diferente de qualquer círculo de amigos, que nós naturalmente escolheríamos para nós mesmos. Os reformadores enfatizaram que, quando alguém se atreve a sentar em um canto por si mesmo, não se pode dizer que espíritos ele irá re ceber, mas Deus prometeu a presença de seu Espírito onde quer que a Palavra seja proclamada. Quando Lutero disse que “a igreja não é uma casa-ca neta, mas uma c asa-boca”38e os teólogos de Westminster confes saram que o Espírito abençoa “a leitura, mas especialmente a pregação da Palavra” como um meio de graça,39 estavam afirmando que a leitura fiel, meditativa e em oração da Escritura nas devoções individuais ou familiares era subordinada ao ministério público da Palavra na vida co mum da igreja. Assim como a Palavra cria a comunidade, ela só pode ser realmente ouvida, recebida e seguida na troca pactuai concreta dentro dessa comunidade. Escrevendo como um autoconfesso judeu-gnóstico, Harold Bloom tem caracterizado, com aprovação, a religião americana em geral como gnóstica: uma palavra interior , espírito e igreja colocados contra uma Palavra externa, Espírito e igreja.40O pietismo evangélico começou como um mo vimento de renovação nas igrejas da Reforma, contudo, cada vez mais, ten deu a reduzir a fé a uma experiência subjetiva interna. A verdadeira ação acontecia em devoções particulares, em reuniões religiosas secretas ou chibes santos (o que hoje chamaríamos de pequenos grupos). O reavivalismo americano foi mais radical ainda, esperando a verdadeira ação de formação cristã ocorrer completamente fora do ministério comum da igreja. Os cris tãos ainda devem se reunir semanalmente, mas o Espírito realmente desceu quando o evangelista veio para a cidade e os métodos extraordinários que empregou produziram a agitação. Em contraste com a lógica que temos seguido em Romanos 10, o teó logo evangélico Stanley Grenz argumenta que 0 evangelicalismo é mais uma espiritualidade que uma teologia, está mais interessado na piedade individual que em credos, confissões e liturgias. A experiência dá origem - na verdade, ele diz “determina” - à doutrina, em vez do contrário. Os evangélicos seguem seu coração - seus instintos convertidos - “para acei tarem as histórias bíblicas, como lhes são contadas, como de algum modo
38L uter o, Martinho. Church Postil o f 1522 , citado em Webb, Stephen H. The Divine Voice: Christian Proclama tion an d the Theology o f Sound. Grand Rapids: Brazos Press, 2004, pág. 143. 39 Westminster Shorter Catechism em The Book o f Confessions , General Assembly o f the PC (USA), 1991, Pergunta 89. 40Bloom, The American Religion.
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verdadeiras” .41 O ponto principal, entretanto, é como essas história s podem ser utilizadas na vida diária - portanto, a ênfase está nas devoções diárias. Essa ênfase na vida interior do indivíduo tem implicações eclesiológicas, Grenz reconhece. “Apesar de alguns evangélicos pertencerem a tra dições eclesiológicas que entendem a igreja, em certo sentido, como uma dispenseira da graça, geralmente vemos nossas congregações mais como uma comunhão de crentes.” Partilhamos nossas viagens (nosso testem u nho”) de transformação pessoal. Logo, Grenz celebra a “mudança funda mental (...) de uma espiritualidade baseada no credo para uma espirituali dade baseada em identidade”, mais parecida com o misticismo medieval que com a ortodoxia protestante. “Consequentemente, a espiritualidade é interior e quietista”, empenhada em combater “a natureza inferior e o mundo” em “um compromisso pessoal que se toma o foco principal das afeições do crente”. Em nenhum lugar desse relato, Grenz coloca a origem da fé em um evan gelho externo, mas diz que a fé surge de uma experiên cia interior. “Porque a espiritualidade é gerad a dentro do indivíduo, a motivação interna é crucial - mais importante, de fato, que “grandes declarações teológicas”. A vida espiritual é, acima de tudo, a imitação de Cristo. (...) Em geral, evitamos rituais religiosos. Não uma adesão servil aos rituais, mas fazer o que Jesus faria é o nosso conceito de verdadeiro discipulado. Consequentemente, a maioria dos evangélicos não aceita o sacramentalismo de muitas igrejas históricas, nem se junta aos quaeres na eli minação completa dos sacramentos. Praticamos 0 Batismo e a Ceia do Senhor, mas entendemos o significado desses ritos de uma forma reservada. Em todo caso, diz ele, esses rituais são praticados como aguilhões para a experiência pessoal e em obediência ao mandamento divino. Essa visão marca uma mudança radical na relação entre Soteriologia e Eclesiologia, pois muda a prioridade da igreja para a prioridade do crente. (...) “Faça a tarefa; ponha sua vida em ordem praticando as ajudas para o crescimento, e veja se você não amadurece espiritualmente”, exortamos. 41As citaçõe s neste e nos seguintes seis parágrafos são de Gr en z, Stanley. Re vis ioni ng Eva nge lica l Theolo gy: A Fresh Age nda fo r the 21st Centu ry. Downers Grove, IL; Inter Varsity, 1993, págs. 17, 30-34, 38,41-42,44-46,48, 51-52, 55, 62, 77, 80, 88, 122 (grifos do autor).
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Cristianismo sem Cristo Na verdade, se um crente chega ao ponto em que se sen te estagnado, os conselhos evangélicos são para a pessoa redobrar seus esforços na tarefa de exercer as disciplinas. Faça uma avaliação de si mesmo”, adverte o conselheiro espiritual evangélico.
A ênfase no crente individual é evidente, diz ele, na expectativa de “en contrar um ministério” dentro da comunhão local. Tudo isso está em desacordo com a ênfase em doutrina e especialmente, Grenz acrescenta, em um princípio material e formal” —referindo-se ao slogan da Reforma, sola fide (justificação por Cristo somente, por meio da fé) e sola Scriptura (as Escrituras somente). Apesar do fato de que as Es crituras declaram que “a fé vem pelo ouvir e ouvir pela palavra de Cristo”, Grenz afirma: “A fé é, por natureza, imediata”. Na verdade, Grenz vai tão longe com a ênfase em uma experiência in terior sobre a Palavra externa, que coloca a origem da inspiração da Bíblia na experiência de indivíduos e da comunidade (passado, presente e futuro), e não em Deus. Obviamente, isso requer “uma revisão da compreensão da natureza da autoridade da Bíblia”. Nossa própria experiência religiosa de hoje precisa ser incluída no processo de inspiração. Segundo Grenz, isso irá traçar o caminho para além da tendência evangélica de equiparar, de forma simples, a revelação de Deus com a Bíblia —isto é, fazer correspondência, uma a uma, entre as palavras da Bíblia e a própria Palavra de Deus”. Em tudo isso, reconhecemos claramente que a mensagem não pode ser separada dos métodos e que a Soteriologia (doutrina da salvação) não pode ser separada da Eclesiologia (a doutrina da igreja). Devemos distinguir, mas nunca separar a pessoa e a obra de Cristo (a mensagem) da maneira que o recebemos (o meio). Uma vez que sua fé está focada no que acontece dentro de você e não no que aconteceu fora, na História, é fácil dizer que o que você realmente precisa é de bons recursos para a experiência individual e aperfeiçoamento moral, em vez de qualquer Palavra externa. Independente de quão fracos e insensatos aos olhos do mundo, os métodos e as estruturas de Deus, clara mente estabelecidos nas Escrituras, são coerentes com a mensagem. A pre gação não é um púlpito tirânico para nossas ameaças pessoais ou sugestões úteis, é um advento salvífico de Cristo pelo seu Espírito, por meio da sua Palavra. O Batismo não é nosso ato de compromisso, com base em nossa decisão, é o ato de compromisso de Deus para nós, baseado e m sua decisão. A reivindicação de Deus sempre provoca nosso compromisso, em vez de pressupô-lo. A Ceia do Senhor não é nossa lembrança e reconsagração, mas se centra na promessa de Deus de nos dar seu Filho como nosso alimento e bebida - certificando e ratificando nossa inclusão no pacto da graça.
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No culto do Dia do Senhor, Deus dá uma festa na qual ele é chef, anfitrião e provedor. Ele supre o banho e providencia roupas, comida e bebida, até mesmo para nossos com panheiros-hóspedes - tudo sem custo para nós. E Cristo chama seus ministros como servos para representá-lo, servindo aos convidados, fornecendo-lhes todas as delícias da mesa. No final de seu ministério terreno, Jesus perguntou a Pedro: “Tu me amas?”. Ao que Pedro respondeu: “Tu sabes que eu te amo”. Jesus replicou: “Apascenta as minhas ovelhas” (Jo 21.17). Essa é a tarefa que Deus deu a seus ministros: não tomar as ovelhas pessoas que se autoalimentam, mas dar-lhes todo o necessário para sua peregrinação à Cidade Santa. Deus preparou uma mesa no deserto. Um dia, ele não será apenas a refeição, e sim um convidado junto conosco que aprecia nossa comunhão com ele, em alegria etema (Mt 26.29). Escrevendo contra as “medidas novas” empregadas por seu contem porâneo Charles Finney, John W illiamson Nevin aponta o contraste entre “o sistema do banco” (precursor do que chamamos de altar) e “o sistema do catecismo. (...) A antiga fé presbiteriana, na qual nasci, foi baseada, por inteiro, na ideia da religião de família do pacto, membros da igreja por um ato santo de Deus no Batismo, após o qual há uma instrução catequética regular, com referência direta a ida deles à mesa do Senhor. Em uma palavra, tudo partia da teoria da religião sacramental e educacional”. Esses dois sistemas, Nevin conclui, “envolvem, no fundo, duas teorias diferentes da religião” .42A conclusão de Nevin foi justificada pela histó ria subsequente. Levadas para todos os lados, por todo tipo de doutrina, e, muitas vezes, sem doutrina, as pessoas criadas no evangelicalismo se acostumaram aos eventos publicitários e cataclísmicos de experiência es piritual intensa que, não obstante, se desgasta. Quando os crentes se des gastam, muitas vezes há pouco 0 que fazer para impedi-los de tentar uma forma diferente de terapia espiritual ou o abandono completo da religião de corrida de ratos .43* No fim de seu ministério, enquanto considerava a condição de muitos dos que tinham experimentado o avivamento, Finney questionou se esta ânsia infinita por experiências cada vez maiores poderia levar ao esgotamento es piritual.44De fato, suas preocupações eram justificadas. A área onde os avivamentos de Finney foram especialmente dominantes agora é mencionada, 42Nevin, John Williamson. The Anxious Bench. Londres: Taylor & Francis, 1987, pág s. 2-5. 43’ Em inglês, rat race: expressão utilizada para descrever uma busca contínua, autodestrutiva ou inútil. É também usada para descrever trabalho excessivo (one is in the rat race) [N. da R.]. 44Veja H ard m an , Charles Grandison Finney , págs. 380-394.
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pelos historiadores como uma “região totalmente queimada”,45*na qual há desilusão e proliferação de seitas esotéricas.46 Este foi o ciclo vicioso do reavivalismo evangélico desde então: um pêndulo que oscila entre o entu siasmo e a desilusão, em vez de maturidade firme em Cristo, por meio da participação na vida comum da comunidade da aliança. Citando vários herdeiros contemporâneos, Michael Pasquarello sugere que a abordagem de Finney, em si, representa um “ateísmo prático”, se gundo a qual 0 sucesso da missão cristã depende de técnica, estilo, planeja mento e carisma humanos, “sem ter de renunciar a nós mesmos e às nossas palavras em favor da obra da Palavra e do Espírito”.47Não é de se admirar que a expectativa da atividade do Espírito tenha desviado da igreja para a para-igreja, dos meios ordinários da graça para os métodos extraordinários de induzir conversões, conforme 0 entendimento de Finney. Com a salvação colocada nas ásperas mãos do indivíduo americano, o único desafio era obter adequada tecnologia espiritual, moral e emocional para resultados imediatos, radicais e visíveis. Assim como os reavivamen tos de Finney e de seus sucessores, as novas medidas de movimento de crescimento da igreja têm sido tratadas, por muitos, como ciência - da mesma maneira como a lei da gravidade é tratada. Aqueles que não ado tarem esses novos modelos de ministério vão ser deixados para trás no mercado espiritual. Após sua revisão radical do pecado e da salvação, o reavivalismo oferec e um entendimento substancialmente diferente da identidade e da missão da igreja. Para o protestantismo confessional (reformado e luterano), a igreja é uma comunidade pactuai que abrange os pecadores (de todas as gerações) reunidos pelo Espírito, por meio do evangelho pregado e dos sacramentos administrados, os quais devem alcançar os perdidos com as boas-novas e com o amor ao próximo. Isso significa que a igreja não é um clube para pessoas com gostos cul turais, opiniões políticas, origem étnica e orientação moral semelhantes. Elas não se reúnem porque compartilham um hobby chamado de espiri tualidade ou porque têm a mesma visão para transformar a cultura. Os crentes se reúnem, regularmente, para serem reconstituídos como o corpo de Cristo, recebendo Cristo como seu Cabeça vivo. Eles não se reúnem
45 Aqui há a referência a expressão “bumed-over district” usada por Finney para se referir a áreas totalmente evangelizadas por ele e seu grupo. Mais tarde, ela foi usada por Whitey Cross, mas podendo ter o significado de “queimada total” também, talvez uma referência a destruição no campo reliogioso deixada pelo trabalho de F inney [N. da R.]. 46Veja, por exemplo, Cross, The Burned-Over District. 47Pa squ are llo III , Michael. Christian Preaching: A Trinitarian Theology o f Proclamation. Grand Rapids: Baker Academic, 2007, pág. 24.
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por iniciativa própria, mas são reunidos pelo Espírito, por meio de seus meios de graça ordenados. Diferentemente das associações voluntárias (clubes do livro, partidos políticos ou fas de ópera ou de bandas de garagem), a igreja não é c om pos ta de pessoas que eu escolhi para serem meus amigos. Deus os escolheu para mim e me escolheu para eles. É minha família por causa da eleição de Deus, não da minha. Reunidos para sermos redefinidos pelo reino de Cristo, em vez de para os reinos deste mundo, somos depois espalhados no mundo como sal —não amontoados juntos, nas sociedades cristãs, para a transformação moral e para as causas políticas eclesiasticamente saneionadas, mas dispersos, em todo 0 mundo, como médicos, donas de casa, encanadores, advogados, motoristas de caminhão, cidadãos e vizinhos. Se 0 objetivo da instrução para crianças e adultos for principalmente a divulgação para os sem-igreja, o serviço para o bairro ou mesmo a cons trução de um senso de comunidade e companheirismo, vamos ter igrejas cheias de pessoas que não sabem no que acreditam ou por que acreditam, mas que, no entanto, sentem uma incumbência pesada de fazer mais coisas do que se sentem preparadas para fazer. Contudo, se nos reunimos regular mente para a “doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações” (At 2.42), 0 evangelho cria uma comunidade em tomo de Cristo, em vez de em tomo de si mesmo, e fornece exatamente 0 que é necessário para o testemunho bem informado e motivado, e para o serviço ao nosso próximo fora da igreja, durante a semana. Claro que todos nós temos diferentes localizações: étnicas, sociais, eco nômicas, educacionais, culturais e de geração. Mas, quando Deus é o ator, dirigindo a execução da peça de seu púlpito, mesa e pia batismal, a locali zação mais decisiva está em Adão ou em Cristo. Embora o movimento de crescimento da igreja (ou de buscadores) defenda suas perpétuas inovações como mais missionárias, não houve crescimento na taxa de conversões pro fessas durante este período. Na verdade, houve um declínio.48Não é de se admirar, já que mesmo aqueles criados na igreja são vítimas de uma “fome sobre a terra, não de pão, nem sede de água, mas de ouvir as palavras do S e n h o r ” (Am 8.11). Até que reavaliemos nosso compromisso com o paradigma reavivalista em si, vamos ver a igreja como consumidores que assinaram um contrato de serviços espirituais, e não como pecadores que foram incorporados, pela graça de Deus, em uma comunidade pactuai.
48“A proporção dos sem-igreja tem crescido vagarosam ente desde o final da dé cada de 80”, de acordo com Barna, George. The Index o f Leading Spiritual Indicators. Dallas: Word, 1996, pág. 34.
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P o r q u e t a n t o s c r is t ã o s e s t ã o e s g o t a d o s c o m a i g re j a
Uma das principais razões pelas quais muitos crentes, atualmente, acabam por viver 0 cristianismo sem Cristo, mesmo nas igrejas que se identificam como centradas em Cristo, é que a ênfase dominante está nos meios de ser viço em vez de nos meios da graça. Muitos cristãos, hoje, estão esgotados e não sabem ao certo a razão. Em muitos casos que encontrei, o motivo é que eles têm sido vítimas de constantes exigências, enquanto o evangelho permanece em segundo plano. Sem dúvida, a igreja local envolve a comunhão entre os santos, que in clui obras de serviço à família da fé. Mas temos confundido 0 sacerdócio de todos os crentes com o ministério de todos os crentes, como se Cristo nunca tivesse instituído os ofícios que encontramos nas epístolas. Nesta abordagem, cada ovelha deve ser um pastor. O apelo para as ovelhas se autoalimentarem é a conseqüência natural desta linha de pensamento em pobrecida. A igreja tem uma comissão muito restrita. Não é chamada para ser um bairro alternativo, um círculo de amigos, um comitê de ação política, um clube social ou uma agência de serviço público; ela é chamada para pregar Cristo de forma tão clara e plena, que os crentes sejam preparados para ser sal e luz nas posições seculares para as quais Deus os chamou. Por que uma pessoa deve se dar ao trabalho de pertencer a uma igreja e comparecer todo domingo, se Deus for 0 receptor passivo e nós os doadores ativos? É como esperar que uma pessoa anseie pelo Natal quando está sempre dando presentes, mas nunca recebe nada. Ao responder a queixa de Simão contra a mulher que ungiu seus pés com um peráime caro, Jesus disse: “Aquele a quem pouco se perdoa, pouco se ama”. Então, ele se virou para a mulher e disse. Perdoados são os teus pecados” (Lc 7.47-48). Quando regularmente ouvimos e recebemos o perdão de Cristo, ficamos cheios de amor por ele e pelos outros. Quando Jesus começou a lavar os pes dos discípulos, Pedro se sentiu confuso e perguntou: “Senhor, tu me lavas os pés a mim ? Respondeu-lhe Jesus: O que eu faço não o sabes agora; compreendê-lo ás depois” (Jo 13.6 7, grifos do autor). Depois? Depois do quêl Jesus estava se referindo ao seu ato final de serviço no Gólgota, pelo qual Pedro 0 repreendeu diversas vezes ao falar nisso, quando estavam se aproximando de Jerusalém. Pedro estava pronto para a ação: uma coroação ou uma revolução, mas não para a crucificação de Jesus. Como era de se esperar, Pedro protestou: “Nunca me lavarás os pés. Respondeu-lhe Jesus: Se eu não te lavar, não tens parte comigo” (v. 8). Não é no “era uma vez, numa colina distante”, mas toda semana o Fi lho de Deus vem nos servir. Podemos protestar. Podemos pensar que nós é que precisamos servir a Deus, e não vice-versa. No entanto, Jesus nos
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diz, como disse a Pedro, que isso é, na verdade, um insulto, uma forma de orgulho. Nós somos aqueles que precisam ser banhados, vestidos e alimentados, não Deus. Jesus nos serve usando a nós mesmos, e especialm ente os oficiais que ele chama por intermédio da igreja. Tanto os líderes quanto os membros pre cisam ser lembrados de que o ministério público de pastores e professores não é um obstáculo autoritário para 0 trabalho vocacionado de todo o corpo, mas dom do Cristo que ascendeu, que prepara os s antos para viverem juntos em amor e para viverem suas vocações no mundo (E f 4.8-15). Os ministros pregam Cristo por meio de seu ministério da Palavra, não só nos sermões bem preparados, mas em todo o serviço. Na verdade, o principal objetivo de cantar na igreja não é expressar nossa experiência interior, devoção e zelo, mas servir uns aos outros: “Habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com gratidão, em vosso coração” (Cl 3.16). Ouvimos a Palavra, cantamos a Palavra e meditamos sobre ela na comunhão dos santos. Ensinamos esta Palavra diariamente para nossos filhos na instrução familiar e quando expressamos nossa con fiança em Cristo diante deles. Tudo isso é tão vital porque confiar em Cristo somente é nadar contra a correnteza da natureza humana. Pastores e professores não são guias de viagem que oferecem espaços para que todos possam canalizar seus dons e energias para a igreja, mas são pregadores da mensagem de Cristo. “O qual nós anunciamos” , escreve Paulo, “advertindo a todo homem e ensinando a todo homem em toda a sabedoria, a fim de que apresentemos todo homem perfeito em Cristo, para isso é que eu também me afadigo, esforçando-me o mais possível, segundo a sua eficácia que opera eficientemente em mim” (Cl 1.28-29). Se as pessoas estão murchando na videira com exortações perpétuas sem boas-novas, louvam sem serem lembradas de que estão louvando a Deus, exortam à imitação ativa de Cristo antes de serem primeiramente c hamadas a receber a Cristo e suas boas dádivas —então, não é nenhuma surpresa que lhes falte motivação piedosa para amar e servir o próximo no mundo. E se elas não estiverem sendo regularmente imersas no ensino das Escrituras, será que devemos nos surpreender que nosso testemunho de Cristo entre nossos vizinhos seja superficial, confuso e confundido? Aqueles que são ricamente alimentados no banquete do Senhor vão querer alime ntar outros com o pão de cada dia de suas vocações seculares normais e com o Pão da Vida do seu testemunho de Cristo (e estarão preparados para isso). No entanto, crentes que se autoalimentam vão sempre acabar se esgotando - se não vagarem por caminhos estranhos primeiro. Antes de alimentar outros, devem ser alimentados; antes de servir, devem ser servidos - e não apenas uma vez, mas toda semana.
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A igreja não é o evangelho. Quer embalada em altas forma s de igre ja (com a igreja como um lugar institucional) quer em versões baixas de igreja (a igreja como indivíduos transformados), a ideia corrente entre nós hoje é que a igreja está engajada em uma missão redentora , estendendo a vida salvadora e a missão de Cristo no mundo. Mas, se quisermos tirar 0 foco de nós e colocá-lo de volta em Cristo (para a correta interpretação das Escrituras), vamos ter de parar de nos dar tanto crédito. Não redimimos; fomos redimidos. A encarnação (0 Filho de Deus se tomando carne) não é um protótipo para nós e para nossa vida e ministério encarnados no mundo; é um evento único de uma pessoa única, da qual temos sido testemunhas\ em vez de coagentes. Nem como a soma total dos cristãos nascidos de novo nem como uma instituição histórica com um endereço postal a igreja é salvadora; ela é sempre 0 corpo pecador que é salvo. A igreja não dá tes temunho de sua própria santidade ou zelo, mas de Cristo, que “justifica o ímpio” (Rm 4.5). No entanto, como uma instituição fundada por Cristo, que lhe deu os dons dos pregadores, mestres, presbíteros e diáconos, a igreja é, de fato, nossa mãe ao longo de nossa peregrinação. Longe de colocar a igreja contra a experiência individual de Cristo, o protestantismo confessional reconhe ceu que toda nossa experiência com Cristo é comum, histórica e mediada por meio de agência normalmente criada. Ecoando o pai da igreja Cipriano, Calvino diz. Seja quem for que tem Deus como o Pai, tem a igreja como sua mãe”. O entusiasmo (Deus-dentro-ismo) contrapõe o testemunho in terior do Espírito Santo ao ministério exterior. Todavia, é um “privilégio singular”, Calvino escreve, que Deus tenha condescendido “consagrar para si mesmo as bocas e as línguas” dos pecadores para que “sua própria voz possa ressoar neles”. Embora o poder de Deus não seja limitado por meios ex teriores, ele, entretanto, nos ligou a esta forma comum de ensino. Fanáticos, recusando-se apegar a ela, enredam-se em muitas armadilhas mortais. Muitos são levados, por or gulho, desgosto ou rivalidade, à convicção de que podem lucrar o suficiente com a leitura e a meditação privada; daí, desprezam as reuniões públicas e consideram a pre gação supérflua. Mas (...) ninguém escapa da penalidade justa desta separação profana sem encantar-se com erros pestilentos e desilusões torpes.49
49Calvino, João. Institu tos 4.1.5.
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Miroslav Volf salienta que 0 líder separatista John Smyth aconselhou que aqueles que são “nascidos de novo (...) não devem necessitar mais de meios de graça”, já que as pessoas da Trindade “são melhores do que todas as escrituras ou criaturas de qualquer tipo”. Pelo contrário, como observa Volf, os reformadores taxativamente afirmaram a atividade salvadora de Deus por intermédio de meios humanos - até mesmo a ponto de cham ar a igreja de mãe dos fiéis.50 O entusiasmo assumiu todos os tipos de formas na Idade Moderna: desde o racionalismo sofisticado do Iluminismo até o sentimentalismo anti-intelectual da fronteira americana. O efeito do pietismo (especialmen te culminando no Segundo Grande Avivamento), como observa William McLoughlin, foi mudar a ênfase da “crença coletiva, adesão a um credo e observância das formas tradicionais, para a ênfase na experiência religiosa individual”.51 Se o Iluminismo passou “a autoridade final na religião ” da igreja para “a mente do indivíduo”, o pietismo e o romantismo colocaram a autoridade final na experiência do indivíduo.52 Tudo isso sugere que, há algum tempo, o evangelicalismo tem sido tanto o facilitador como a vítima do secularismo moderno. É interessante que, no estudo de Willow Creek, citado anteriormente, a analogia da igreja-como-pais foi, na verdade, utilizada para sugerir que, quando os crentes atingem a maturidade, acham a igreja menos impor tante. Isto é uma grande distância entre a imagem do Novo Testamento de encontros regulares para a pregação, ensino, sacramento, comunhão e orações. . Crescer, nesta concepção, é um processo sem fim nesta vida. Cres cemos em Cristo e em seu corpo. Crescer fo ra da igreja é perder nossa ligação com a seu Cabeça (E f 4.12-15). N ossa fé nunca é su ficientemen te forte, nossa esperança nunca é brilhante o suficiente e nosso amor nunca é quente o suficiente para alimentarmos a nós mesmos. A pessoa madura não acha a igreja menos importante porque sabe que a fonte de sua fé e maturidade é sempre 0 ministério de Cristo por meio de seus embaixadores. Como um pai cauteloso, a igreja nunca vai fazer seus filhos cuidarem de si mesmos, jogados para frente e para trás com todo o vento de doutrina, mas vai conduzir o rebanho de Cristo durante toda sua peregrinação terrena.
50Volf, Miroslav. Aft er Our Like ness. Grand Rapids: Eerdmans, 1993, págs. 161 162 . 51Mc Lou ghlin , W illiam. Revivals, Awakening s, an d Reform. Chicago: University of Chica go Press, 1980, pág. 25 (agradeço a Toby Kurth por fornecer esta e a referê ncia seguinte). 52L ands ma n, Ned C. From Colonials to Provincials: American Thought and Culture, 1680-1760. Ithaca, NY: Cornell University Press, 2000, pág. 66.
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O c h a m a d o a o d i s c i p u l a d o : h á a l g u m a c o is a p a r a fa z e r m o s ?
O ministério da igreja é o serviço de Deus para nós por intermédio de pas tores, mestres, presbíteros e diáconos, o qual gera uma comunidade agra decida com 0 dom genuíno de dar, que transborda para o mundo. O reino de Deus é algo que estamos recebendo , não que estamos construindo (Hb 12.28). O Senhor da igreja não disse “edifiquem minha igreja”, e sim que, sobre a “rocha” da confissão de que Jesus é o Cristo, “edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16.18). Em sua Grande Comissão, o Cristo ressuscitado não disse “estou sain do agora, mas vocês vão tomar meu lugar e dar seguimento à minha obra redentora, seguindo meu exemplo”. Pelo contrário, ele disse: “Toda a auto ridade me foi dada no céu e na terra. Ide , portanto, fa zei discípulos de todas as nações, batizando- os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até a consumação do século ” (Mt 28.18-20; grifos do autor). O indicativo vem em primeiro lugar e dá origem ao im perativo - e, mesmo assim, Deus sempre termina com outro indicativo. O evangelho vai atrás de nós, antes de nós e à nossa frente. A igreja é, antes de tudo, criada pelo evangelho e depois le vada de volta ao mundo como povo justificado e renovado para amar e servir seu próxi mo, oferecendo testemunho de Jesus Cristo. Portanto, a igreja é um lugar onde Deus age em juízo e graça e um povo que é julgado e justificado, vivendo sua vocação no mundo.53 É uma organização histórica, fundada por Cristo, na qual ele se dá aos pecadores no Batismo, na pregação e na Ceia do Senhor, e um organismo espiritual que está unido, por meio da fé, à sua Cabeça viva. Isso significa que 0 evangelho tem prioridade sobre todas as ações humanas, e qualquer igreja particular só é verdadeiramente uma igreja se Cristo a estiver dirigindo por sua Palavra e Espírito. Não obstante, 0 movimento da Igreja Emergente nos fez lembrar de que há um sério chamado para o discipulado no Novo Testamento. Seus diri gentes estão certos ao desafiarem 0 individualismo consumista de grande parte do evangelicalismo contemporâneo. Contudo, será que este nobre objetivo pode ser alcançado oferecendo-se várias situações no espaço de culto para os indivíduos experimentarem sua própria experiência religiosa privada? Uma pessoa encontra um ícone atraente, outra escolhe um labi rinto, uma terceira prefere sentar e ouvir algum ensinamento, enquanto um amigo sai para tomar a comunhão. Como isso reflete a comunidade mais completamente que toda a congregação de jovens e idosos, ricos e pobres, profissionais cultos e pessoas que abandonaram a escola - todos sendo cha 53Veja Veith, Gene Edward. The Spirituality o f the Cross: The Way o f the First Evange li cals. St. Louis: Concordia, 1999.
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mados para deixar suas ocupações e se sentarem à mesa comum, receber dons comuns, por intermédio de meios comuns? Jesus tinha discípulos, o que significa alunos. Um estudante no século Io, em Israel, era diferente de um aluno em uma universidade atualmente. Um mestre (rabino) chamava os seguidores, que se encontravam regular mente para instrução e comunhão pessoal. Ao contrário do professor dis tante de hoje, que dá a aula e sai da classe (como os pastores fazem muitas vezes), tais professores passavam tempo com os alunos para que eles não só fossem informados, mas também formados pela sabedoria e pelo exemplo do rabino. Sempre fiquei impressionado com o fato de que, quando Lutero se sentiu chocado com a ignorância do povo comum, ate mesmo do Credo dos Apóstolos, dos Dez Mandamentos e da Oração do Senhor, não passou a tarefa aos subordinados, mas escreveu e pessoalmente ensinou às crianças o catecismo durante a semana. Esta perspectiva do pastor como o principal catequista foi preenchida por Calvino e por outros reformadores - o que ligou os jovens à comunidade da qual eram parte e na qual cresciam. Em contrapartida, as pessoas de hoje estão clamando por guias espirituais, trei nadores e mentores, como se fossem órfas em vez de herdeiras do pacto. Se como pastores, professores e presbíteros cumpríssemos nosso ministério mais fielmente, este desejo compreensível por orientação na vida cristã se ria satisfeito pelo ministério ordinário da igreja. O filósofo de ciência Michael Polanyi explicou como as ciências físi cas evoluíram de forma semelhante. Embora seja menos uma questão de acumular dados que aprender um ofício, os cientistas bem-sucedidos se submetem à autoridade de seus superiores mais velhos. Tornar-se um bom cientista sempre foi um pouco parecido com se tom ar um bom violinista ou um bom produtor de vinho. Você tem de passar tempo aprendendo o oficio. Em nossos tempos, em que se valoriza eficiência e volume sobre maturi dade e qualidade, preferimos ter um especialista que escreve as regras de como tocar violino ou de como faz er vinho em quatro passos fáce is. O que precisamos, no entanto, são práticas que valorizam com prom issos de longo prazo para com um ofício. O discipulado cristão é um processo permanente de ser edificado no “corpo de Cristo, até que todos cheguem à unidade da fé e do pleno conheci mento do Filho de Deus”, e isso por meio do dom de pastores e professores (Ef 4.11-13; veja também vs. 14-16). Este ministério molda pais, am igos da família, avós e treinadores de liga mirim para serem servos da Palavra para as crianças enquanto estão crescendo na igreja. Também somos chamados para crescer “na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo”, para, assim, não perdermos nossa firmeza (2Pe 3.17-18). O dom necessário para o ministério, diz Paulo, foi dado por Deus, mas reconheci do e confirmado pela igreja, por meio do exame e da ordenação (2C0 5.18;
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2Tm 2.14-25; 4.1-5; Tt 1.5—2.2; cf. At 6.4-6). Um evangelho autorizado vem com um ministério autorizado. São os ministros da Palavra de Deus - não as pessoas que gostam de construir seus próprios nichos, partilhar suas próprias experiências e determinar suas ênfases - que Deus qualifica pelo treinamento, pela provação e pela aprovação, e que nos trazem os dons de Deus em seu nome. Nosso objetivo não é deixar nosso próprio legado, mas distribuir a herança de Cristo. Se a igreja é criação de Deus, o resultado de sua eleição, redenção e graça renovadora, então por que devemos permitir que dados demográficos de nossa cultura de marketing enfraqueçam sua catolicidade ou unidade em Cristo?
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Um chamado à resistência Ao encerrar suas palestras nos Estados Unidos, antes de re tomar à Alema nha nazista, onde acabaria por ser enviado para um campo de concentração e executado, Dietrich Bonhoeffer resumiu a religião norte-americana como “protestantismo sem Reforma”. Embora a influência da Reforma na história religiosa dos EUA tenha sido profunda (especialmente antes de meados do século 19) e continue a ser um contrapeso para 0 domínio do patrimônio reavivalista, o diagnóstico de Bonhoeffer parece ser justificado: Deus não concedeu ao cristianismo americano Reforma alguma. Ele lhe deu vigorosos reavivalistas, clérigos e te ólogos, mas nenhuma Reforma da igreja de Jesus Cristo por meio da Palavra de Deus. (...) A teologia americana e a igreja norte-americana como um todo nunca foram capazes de compreender o significado da “censura” pela Palavra de Deus e tudo o que isso significa. Do primeiro ao último, eles não entendem que a “censura” de Deus toca até mesmo a religião, o cristianismo da igreja e a santificação dos cris tãos, bem como que Deus fundou sua igreja para muito além da religião e da ética. (...) Na teologia norte-americana, o cristianismo ainda é essencialmente religião e ética. (...) Por causa disso, a pessoa e a obra de Cristo, na teologia, vão permanecer em segundo plano e, por longo prazo, ficar in compreendidas, porque não são reconhecidas como o único fundamento de julgamento e de perdão radical.1 1Bonhoeffer, Dietrich. “Protestantism without the Reformation”, em No Rust y Swords: Letters. Lectu res an d Notes, 192 8-1 936 (Edwin H. Robertson org.; Edwin H. Robertson e John Bowden trad.). Londres: Collins, 1965, págs. 92-118.
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Repetidamente, a igreja tem se revelado como cúmplice voluntária do seu próprio cativeiro, na nova aliança, bem como na antiga. Observando essa tendência em sua época, Martinho Lutero escreveu On the Babylonian Captivity o f the Church , onde argumenta que a igreja precisa desesperada mente ser liberta, pelo seu Senhor, da escravidão às coisas que considera como benignas ou mesmo auspiciosas. Será que a palavra cativeiro é forte demais? Afinal, não existe nada como um Gabinete de Assuntos Religiosos controlando a expressão verbal da igreja nos EUA. Em seu livro Amusin g Ourselves to Death , o escri tor judeu Neil Postman (um professor de comunicação na Universidade de Nova York) aponta a diferença entre dois cenários apocalípticos. Em seu livro 1984, George Orwell prevê uma sociedade dominada pelo “Grande Irmão”, um regime totalitário. Congratulando-nos por ter evitado a profecia de Orwell, pelo menos nos EUA, nos esquecemos do Brave New World, de Aldous Huxley, um pouco mais antigo, com um cenário completamen te diferente. Enquanto Orwell prevê uma opressão imposta externamente, Huxley imagina um cativeiro autoimposto: * Na imaginação dele, as pessoas viriam a amar sua opres são, a adorar as tecnologias que destruiriam sua capacidade de pensar. O que Orwell temia era aqueles que proibiriam os livros. O que Huxley temia era que não haveria razão para proibir os livros, pois não haveria ninguém querendo lê-los. Orwell temia aqueles que nos privariam de infor mações. Huxley temia aqueles que nos dariam tantas que seriamos reduzidos à passividade e ao egoísmo. Orwell temia que a verdade fosse ocultada de nós. Huxley temia que a verdade fosse afogada em um mar de irrelevância. Orwell temia que nos tomássemos uma cultura cativa. Hu xley temia que nos tomássemos uma cultura insignifican te, preocupados com coisas como feelies2*, orgy porgy e centrifugai bumblepuppy?
Feelies. filmes populares, com tramas simples; nas sessões, as pessoas sentariam em poltrona s especiais, que pe rmitiram sentir o filme e inte ragir com ele. Orgy porgy : seria um
tipo de encontro em grupo, onde homens e mulheres se reuniriam para beber, usar um a droga permitida pelo Estado (S oma) e ter relações sexuais. Centrifugai bumblepuppy: jogo infantil fictício, que envolveria um anel de aço e u ma bola. Todas estas definições se referem a diver sões fictícias, criadas por Huxley para completar a descrição de uma sociedade íliturística, egocêntrica e voltada para prazeres rápidos [N. da R.]. 3Postman, Neil. Am usin g Ourselves to Death: Pub lic Dis cour se in the Ag e o f Sho w Bu si ness. Nova York: Penguin, 1985, pág. vii.
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Se formos escravos, não será de um opressor externo, mas de nossos desejos triviais. Somos cativos voluntários - até que Deus entre e m cena e pronuncie o seu comando solene para os principados e potestades que temos entronizado: “Deixa meu povo ir!”.
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Um discurso de resistência é apropriado nestas situações, mas temos de ser cuidadosos quanto a sua razão. Existe, naturalmente, um espírito antimodernista cuja estratégia de resistência é tão perigosa quanto simplista. O inimigo é facilmente identificado: o humanismo secular, as escolas pú blicas, os democratas, os liberais e os gays; ou, de outro ponto de vista, o fúndamentalismo, as escolas cristãs, os republicanos, os conservadores e os patriarcalistas. E já que a cultura - nossa vida pública compartilhada - é reduzida a um espetáculo de política, a única maneira de resistir é vencer as guerras culturais. O discurso de resistência que estou sugerindo, porém, diz respeito à re cuperação da fé e das práticas cristãs dentro da própria igreja. Ele começa por desafiar não só as exibições fracas de Deus, do pecado e da graça, mas as estruturas de aparência, os paradigmas ou as cosmovisões que tom am o panorama bíblico cada vez menos compreensível, mesmo para a maioria dos cristãos. No discurso de resistência cristã, Deus é 0 orador. É hora de começar a ouvir a voz de Deus na Bíblia novamente, de levar nosso Senhor do pacto mais a sério que a nós mesmos, bem como ao amplo público secu lar que precisa ser salvo de sua auto/ala. Pode ser simplesmente que a estratégia mais relevante, especialmente em nosso contexto, seja destacar esses pontos nos quais a verdade de Deus desafia nossas próprias meias-verdades e mentiras, em vez de minimizá-los. “Em uma cultura onde a religião é, social e psicologicamente, funcional”, argumenta 0 sociólogo Peter Berger, “a pregação cristã em si devia chamar o povo para um confronto com 0 Deus que se posiciona contra as necessi dades da sociedade e contra as aspirações do coração humano”.4 Como 0 próprio evangelho, esta estratégia parece ir contra 0 senso co mum - principalmente depois de ser completamente doutrinada nas estraté gias de compromisso mascarado como missão. Não mais tradução do evan gelho. Este é uma ofensa, precisamente nos mesmos pontos e pelas me smas razões, como sempre. Os esforços para traduzir o evangelho em linguagem contemporânea, na verdade, visam a tomá-lo não apenas mais compreen sível, mas mais crível. O problema é que o evangelho é tão sem sentido ao 4Berger, Peter. The Noise o f Solemn Assemblies: Christian Commitment an d the Religious Estab lishm ent in Ame rica. Garden City, NY: Doubleday, 1961, págs. 125-126.
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nosso orgulho decaído que não pode ser crido à parte de um milagre da gra ça divina. E como é por meio do próprio evangelho que o Espírito realiza esta proeza, eliminamos a única possibilidade de uma conversão genuína que temos em nosso arsenal. Perdido na tradução está 0 próprio evangelho - e, portanto, a única esperança de transformação real e de perdão. Precisamos recuperar este sentimento tão difundido em outros períodos, a saber, que mesmo os cristãos não sabem do que realmente precisam ou o que querem, e que atender às suas necessidades sentidas imediatas pode abafar a única proclamação capaz de satisfazer, de fato, as necessidades reais. Berger julga que “a conseqüência pessoal mais geral do abandono dos critérios teológicos para a vida cristã é o culto da experiência. (...) O pragmatismo emocional, agora, toma o lugar do confronto honesto com a mensagem cristã”.5 Isso significa que as pessoas permanecem presas dentro de sua própria psique e de seus recursos internos irremediav elmente, suprimindo a verdade sobre si mesmas, a qual pode levá-las a Cristo. Não mais objetivamente culpadas diante de um Deus santo, somente sentem uma sensação de culpa ou vergonha que negam, alterando o assunto para algo mais leve e mais otimista. Não mais salvas da condenação - que é a fonte de seu mais profundo sentimento de ansiedade - elas estão agora a salvo do desgosto. Somos os mortos-vivos, esquecidos de que nossa roupa de designer de moda da religião e da moralidade é, realmente, uma mortalha. Parafrase ando Jesus, passamos pela vida como cadáveres maquiados, nem mesmo conscientes de que todas nossas transformações e autoaperfeiçoamento são apenas cosméticas (Mt 23.25-28). Nossas folhas de figueira podem ter se tomado mais sofisticadas (e ca ras), mas não são melhores para cobrir nossa nudez na presença de Deus do que o guarda-roupa feito em casa por nossos primeiros pais. Não só os nos sos pecados, mas “todas as nossas justiças, [são] como trapo da imundícia” (Is 64.6). Isaías 59 registra o julgamento no tribunal: o Senhor contra Israel. Embora as pessoas se queixassem de que muitas calamidades vinham in justamente caindo sobre elas, o profeta, como o advogado de Deus, expõe os que fazem a denúncia como autores, em vez de vítimas: “As suas teias não se prestam para vestes, os homens não poderão cobrir-se com o que eles fazem, as obras deles são obras de iniqüidade, obra de violência há nas suas mãos” (v. 6). Somente após a apresentação da evidência é que as pessoas confessam seus peca dos e reconhecem que trouxeram o juízo de Deus sobre si (vs. 9-15). Nesta situação, 0 Juiz, vendo “que não havia ajudador”, assu me para si a tarefa de colocar a vestimenta de batalha e ganhar a salvação de seu povo pagando ele próprio o preço. “Virá 0 Redentor a Sião e aos de Jacó 5 Ibid.
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que se converterem” de seus pecados, “diz 0 S e n h o r ” ( v s . 16, 20). A igreja não só nos permitiu mudar de assunto, como mudou o assunto para nós. São os falsos profetas que “curam superficialmente a ferida do meu povo, dizendo: Paz, paz; quando não há paz” (Jr 8.11). Eles “vos enchem de vãs esperanças”, acrescenta. “Falam as visões do seu coração, não o que vem da boca do S e n h o r . Dizem continuamente aos que me desprezam: O S e n h o r disse: Paz tereis” (Jr 23.16-17). Não é compaixão para com o povo ou zelo pela casa de Deus, mas sua própria sede de popularidade que toma os falsos profetas constitucionalmente incapazes de dizer a verdade sobre a crise. Encerrados em nosso estreito mundo de manipulação pessoal, nunca fomos apresentados ao mundo real criado pela Palavra de Deus. Em vez de algo novo e surpreendente que possa realmente trazer verdade ira transfermação em nossas raízes, somente ouvimos mais e mais o fundo musical de Muzak , suavemente afirmando o status quo. Em vez de sermos levados até o fim de nossos recursos, de modo que abandonemos todos os outros títulos e caiamos nos braços misericordiosos de Deus, somos encorajados a nova mente tentar salvar a nós mesmos (embora limitado) com a ajuda de Deus. O pecado e a redenção são banalizados quando escrevemos o roteiro. Em suas mensagens às igrejas em Apocalipse 3, Cristo se dirige à igreja de Laodiceia. Ao contrário das igrejas de Pérgamo e de Tiatira, essa igreja não é um porto de heresia e imoralidade; nem é morta, como a igreja de Sardes. Semelhante à igreja de Éfeso, os crentes de Laodiceia tinham perdi do seu primeiro amor, Cristo; assim, tomaram-se mornos - nem frios nem quentes e, portanto, inúteis tanto para aquecer quanto para refrescar. Dizes: Estou rico e abastado e não preciso de coisa alguma, e nem sabes que tu és infeliz, sim, miserável, pobre, cego e nu. Aconselho-te que de mim compres ouro refinado pelo fogo para te enriqueceres, vestiduras brancas para te vestires, a fim de que não seja manifesta a vergonha da tua nudez, e colírio para ungires os olhos, a fim de que vejas. Eu repreendo e disciplino a quantos amo (Ap 3.17-19). Uma igreja que seja profundamente consciente de sua miséria e de sua nudez diante de um Deus santo se apegará tenazmente a um Salvador todosuficiente, enquanto aquela que é autoconfiante e relativamente inconscien te de sua pecaminosidade inerente se inclinará para a religião e para a mo ralidade sempre que lhe parecer conveniente. Os fariseus pensavam que se apenas pudessem fazer que todos seguis sem as regras corretas, poderiam introduzir o reino messiânico. No entanto, quando 0 próprio Messias realmente apareceu, foram confrontados com sua
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própria injustiça e impotência. Cristo não veio para ajudar as pessoas boas a se tomarem melhores, mas “veio buscar e salvar o perdido” (Lc 19.10). Se este for um golpe terrível para nosso orgulho, também será a notícia mais esperançosa e mais maravilhosa que nós jamais poderíamos ouvir. A salvação não é algo para se conseguir (“procurando estabelecer a sua pró pria [justiça]”), porém algo a receber: “A justiça de Deus” pela fé em Cristo (Rm 10.3; veja vs. 1-4). Embora Paulo levasse a disciplina apostólica para tratar da imoralidade, da divisão e da imaturidade dos crentes de Corinto, não pôs em dúvida 0 status deles como uma igreja, como fez com a igreja da Galácia, por estar à margem da negação do evangelho. Confiando em nós mesmos, naturalmente nos inclinaremos para o moralismo, perguntando a Jesus, junto com o jovem rico: “Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna?”. Até que sejamos como aquele adminis trador, colocados diante da verdadeira intenção da lei, vamos naturalmente supor, como ele, que “tudo isso tenho observado desde a minha juventude” (cf. Lc 18.18-21). Não assumimos facilmente que somos miseráveis, po bres, cegos e nus, pois não gostamos de assumir que estamos em situação de desespero, não mais que o administrador jovem e rico. Até mesmo os discípulos perguntaram: “Sendo assim, quem pode ser salvo?”. Mas Jesus olhou para eles e disse: “Os impossíveis dos homens são possíveis para Deus” (vs. 25-26). O secularismo não pode ser atribuído aos secularistas - muitos dos quais foram criados na igreja. Somos 0 problema. Se a maioria dos fiéis não pode dizer nada específico sobre 0 Deus que consideram significativo ou explicar as doutrinas básicas da criação à imagem de Deus, do pecado original, da expiação, da justificação, da santificação, dos meios da graça ou da espe rança da glória, então a culpa dificilmente pode ser colocada nos humanis tas seculares. Se, por exemplo, a privatização envolve “a transferência de afirmações verdadeiras do mundo objetivo para a subjetividade do indivíduo”,6então os protestantes americanos não só se adaptaram a uma cultura secular, mas fazem parte de uma herança reavivalista que ajudou a criá-la. Tudo o que é necessário para nos tomarmos pelagianos inconscientes é menos pregação e ensino da lei e do evangelho - minimizando os meios de graça (Palavra e sacramento) em favor de nossos meios de transformar a nós mesmos e nosso mundo. Como a autoconfiança é nossa configuração padrão, nunca podemos supor que realmente temos o evangelho e agora podemos passar às nossas próprias obras. Mesmo quando falamos de nos sas obrigações para com Deus e para com o próximo, elas devem ser fimdamentadas, em primeiro lugar, no evangelho da salvação pela graça, sem obras. Assim, quando a igreja perde seu interesse na doutrina (uma palavra 6Ibid., pág. 131.
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que simplesmente significa ensino ), não é nenhuma surpresa que vaguemos de volta aos nossos pressupostos morais e religiosos mais familiares. Se o pietismo enfatizou a importância de ações sobre os credos, o li beralismo finalmente dispensou o último com pletamente. Como Barth, J. Gresham Machen foi despertado do encanto de seu professor, Wilhelm Herrmann. Ele fala de um “ceticismo pragmático, es ta religião otimista de uma humanidade autossuficiente”, que tomou o lugar, no protestantismo, da “religião redentora até então conhecida como o cristianismo”. 7 Ele acrescenta: Essas perguntas nos levam ao cerne da situação; o au mento da ignorância na igreja, o aumento da indiferença com relação aos fatos simples, registrados na Bíblia, tudo isso pode ser atribuído a um grande movimento espiritual, muito céptico em sua tendência, que vem ocorrendo nos últimos cem anos - um movimento que aparece não só nos filósofos e teólogos como Kant, Schleiermacher e Ritschl, mas também em uma atitude generalizada de homens e mulheres simples, em todo 0 mundo. A depreciação do intelecto, com a exaltação dos sentimentos ou da vonta de, é, pensamos, um fato básico da vida moderna que está levando rapidamente a uma condição na qual os homens não sabem nada de nada nem se importam com 0 conteúdo doutrinário da religião cristã, no qual há um declínio inte lectual geral lamentável.8 Os americanos, como já vimos, têm um traço anti-intelectual bastante pronunciado. São fazedores, não crentes; pragmáticos, não pensadores. Im pacientes com o estudo e a reflexão entediantes, preferem a superação de obstáculos, a conquista da natureza e a colocação de tudo em uso mais que compreender e gostar do que faz. Contudo, se o moralismo - salvação de autoajuda - é nossa configuração padrão, precisamos regularmente ouvir pregação e ensino para desistir dele. Batismo, comunhão e pregação nos chamam para fora de nós m esmos e de nossa autoconfiança, e nos guiam para nos apegarmos a Cristo em fé e para servirmos o nosso próximo em amor. Machen observa que “o movimento cristão, em seu início, não era apenas uma forma de vida no sentido m oder no, mas um modo de vida fundado sobre uma mensagem. Era base ado não
7Machen, J. Gresham. What Is Faith? Nova York: Macmillan, 1925, pág. 282. *Ibid., pág. 23.
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em um mero programa de trabalho, mas em um relato de fatos. Em outras palavras, ele era baseado em doutrina” .9 Quando examinamos os credos ecumênicos, as confissões e os cate cismos das tradições reformadas, uma coisa fica evidente: Cristo é o cen tro, o Alfa e o Ômega de fé e prática. O ensino da fé a cada geração por meio de tais padrões, no entanto, tornou-se cada vez mais suspeito de form alismo e intelectualismo em uma cultura que valoriza a autonomia e a expressão autorreferencial. Ann Douglas observa: “Nada pode mos trar melhor a identidade alterada da Igreja Protestante do final do século 19 como participante ávida na sociedade de consumo emergente do que sua obsessão pela popularidade e seu desprezo crescente pelas questões intelectuais”. 10 De um extremo a outro de toda nossa paisagem cultural, a única lei deixada parece ser “pega leve”. Se esperamos evangelizar os descrentes (em outras palavras, vender nosso produto para um mercado mais amplo), vamos ter de nos livrar de tudo 0 que tenha arestas, tudo o que ofenda e desanime as pessoas. Por mais que goste de imaginar 0 contrário, sou o meu tema que mais conheço e mais gosto, e o meu bem-estar pessoal é a minha necessidade sentida mais urgente. Gostaria de ir à igreja principalmente para fa lar sobre minhas necessidades sentidas e manifestar minha experiência piedosa. E, como um pregador com uma veia empresarial, seria muito mais fácil criar meu próprio paradigma de ministério que me sentar em um escritório e pre parar uma refeição para as ovelhas a partir da Sagrada Escritura. Seria mui to mais fácil se pudesse partilhar minha experiência e alguns dos princípios de vida que têm funcionado na minha vida e família jogando uns poucos versículos no meio. Mudar o foco para Deus e a história de sua fidelidade inabalável para me salvar, apesar de mim mesmo, inserindo-me no contexto mais vasto da história de seu povo do pacto, sempre me deixará irritado. Por causa da minha tendência natural de me voltar para dentro, preciso de muita paciência e trabalho para entender e aceitar esse enredo. Se for para eu sempre dizer amém para a história de Deus e ser conduzido a ela, nada menos que um milagre será necessário. Só o Espírito, me rescrevendo de acordo com o evangelho, para realizar esta façanha. Ir a Deus como consumidores salvos por seguir as instruções no rótulo do produto em vez de como pecadores salvos pela graça não é apenas a essência do pecado humano, como nem ao menos enuncia sua promessa de libertação. Em lugar disso, nos leva mais fundo para dentro de nós mesmos, para o confinamento solitário das convicções, dos anseios, das necessidades sentidas, das experiências e dos pressupostos que já temos. Mantém-nos 9Machen, Christianity and Liberalism, pág. 21. 10Douglas, Ann. The Feminization of America n Culture. Nova York: Knopf, 1977, pág. 7.
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sempre livres de sermos interrompidos por alguém superior a nós mesmos ou por alguma coisa mais maravilhosa que nossas realizações insípidas. Lembro, então, a maravilhosa cena do filme A Fes ta d e Babette, quando à sombria turma de aldeões pietistas é oferecida uma refeição muito além dos seus sonhos mais impossíveis. Inicialmente temendo ser indulgentes, se tomam companheiros deslumbrados e gratos, em uma troca de alegria. Se o mundo não sabe chorar ou festejar direito, nosso único curso de ação re almente amoroso é fazer essas coisas na frente dele, pregando e praticando 0 que significa ser pecadores que foram justificados. Nossas igrejas e nós precisamos recuperar 0 pressuposto fundamental de que Deus se importa demais conosco para nos deixar por conta própria ou nos aprovar em nossa ignorância, mentiras, manipulação e aceitação casual de interpretação da realidade pelo mundo. Em seu quarto volume da Church Dogmatics , Karl Barth brilhantemente observa que a preguiça é tanto o centro do pecado quanto o orgulho. Não precisamos ser hereges para sermos infiéis; podemos ser preguiçosos demais para ir contra 0 estabelecido pela sociedade. Como C. S. Lewis memoravelmente afirmou: “Somos como uma criança ignoran te que quer continuar a fazer tortas de lama em uma favela porque não pode imaginar o que significa a oferta de férias na praia” .11 Quando nossas igrejas usurpam o evangelho, o reduzem a slogans ou o confundem com moralismo e propaganda, não é de se estranhar que o tipo de espiritualidade à qual voltamos seja 0 deísmo moralista terapêutico. Em uma cosmovisão terapêutica, o eu é sempre soberano. Acomodar esta reli gião falsa não é amor - a Deus ou ao próximo - mas preguiça, privando os seres humanos da verdadeira libertação, assim como Deus da glória que lhe é devida. O ego deve ser destronado. Essa é a única saída.
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Esta era passageira tem seus regimes de poder, gerados por suas próprias palavras e sacramentos. Por meio de seu constante bombardeio de publici dade, marketing, política e entretenimento - tudo girando junto no turbilhão da Feira da Vaidade - seu discurso de acomodação se destina a nos tomar consumidores passivos de suas paródias de vida abundante. Com seus sa cramentos de realidade virtual e rituais de gratificação instantânea, esta era de pecado e morte nos seduz a pensar que este é 0 mundo real. Então, de onde tiramos a ideia de que a melhor maneira de garantir a re levância da fé e da prática cristã é acomodar, nesta era corrente, o discurso e as práticas da era por vir? Como poderíamos ter alguma vez imaginado que a melhor maneira de ganhar o mundo para Cristo seria depor os únicos 11Lewis, Weight o f Glory, pág. 26.
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instrumentos legítimos que Deus nos deu para o avanço do reino de Cristo justamente no coração da história de vaidade deste mundo? Essa era do mal não tem apenas seu discurso de acomodação, mas tam bém sua política de acomodação. Combinados, eles são poderosos - con tudo não suficientemente fortes. Não só a mensagem do evangelho, mas o método de entrega em si é a boa-nova. Deus não se limitou a falar da encarnação. Muito menos falou da encarnação como um princípio geral para tudo que Deus faz no mundo. Não, Deus realmente se fez carne, cum priu toda a justiça, conquistou o pecado e a morte e, em sua ressurreição, inaugurou a nova criação, como as primícias de toda a colheita. Um novo regime de poder está em marcha nesta era que está passando: o poder da vida sobre a morte, a justificação sobre a condenação, a justiça sobre todo 0 domínio do pecado. A política de Deus é a sua obra: a cruz e a ressurreição - e a expectativa confiante do retomo de Cristo em glória, para fazer novas todas as coisas. E agora, conforme somos lembrados por Efésios 4.8-16, 0 Rei que subiu faz descer seus dons dessa revolução subversiva até nós. Nã o temos de subir até ele. Neste texto, 0 apóstolo Paulo ensina que o mesmo que desceu até as profundezas mais remotas por nós e subiu “acima de todos os céus, para encher todas as coisas” (v. 10), não guarda os tesouros de sua conquista para si mesmo, mas liberalmente os distribui aos seus cati vos libertos que continuam na terra. O original grego enfatiza: “Os dons que ele mesmo deu ...”. Eles se originaram com Cristo, não com mem bros individuais ou com 0 corpo como um todo. “Ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres” (v. 11). Os dons não são dados como uma hie rarquia de controle, como “os governadores dos povos”, que “dominam” sobre seus súditos em vez de servi-los (Mt 20.25; veja vs. 25-28). Pelo contrário, Paulo diz que eles são dados: Com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desem penho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhe cimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à me dida da estatura da plenitude de Cristo, para que não mais sejamos como meninos, agitados de um lado para outro e levados ao redor por todo vento de doutrina, pela artima nha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro. Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo na quele que é a cabeça, Cristo (Ef 4.12-15).
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As traduções mais recentes tipicamente traduzem a sentença no versícu10 12 como “para equipar os santos para a obra do ministério” (por exemplo, ESV, NRSV e RSV12*), que tem sido utilizada como a principal prova de texto por cada membro d o ministério. Por várias razões, estou convencido de que as traduções mais antigas (especialmente do versículo 12) são mais precisas e também captam melhor a lógica do argumento.13 Isso não significa, evidentemente, que o ministério oficial da Palavra (agora exercido por pastores e professores) seja 0 único dom ou que os mi nistros tenham a classificação mais elevada no reino de Cristo que qualquer outra pessoa. Pelo contrário, esse dom do ministério da Palavra é dado p ara que todo o corpo possa ser dotado : reunidos na unidade da fé e do conheci mento do Filho de Deus. Só então cada membro pode receber os dons adi cionais que os fazem trabalhar juntos como um corpo maduro, com Cristo como sua Cabeça vivente (E f 4.15-16). Os dons fluem para baixo vindos de Cristo; o Grande Pastor serve ao seu rebanho por intermédio de subpastores, que ministram seu evangelho pela pregação e pelo sacramento. Em outros lugares, Paulo expande a lista dos dons que são exercidos pelo corpo maior (cf. Rm 12.3-8; 1C0 12). Uma igreja pobre em genero sidade, em hospitalidade e em outros dons de edificação mútua é doente; uma igreja que não tem a Palavra não é uma igreja. Portanto, vamos à igreja, em primeiro lugar, para receber esses dons, realizando nossa co munhão com Cristo cada vez mais e, por conseguinte, uns com os outros como seu corpo. Pense nisso em termos de um jantar luxuoso, onde presentes (dons) são trocados. Primeiro, somos convidados, degustando a refeição que nos foi generosamente fornecida pelo hospedeiro (Cristo), por meio de seus servos (ministros). Depois, os convidados gratos se tomam participantes ativos na troca de presentes. Tendo recebido muito, eles dão muito; o dar e o receber presentes mútuos continuam durante toda a semana, como o cuidado dos fiéis uns pelos outros em todos os tipos de situações informais; em segui da, compartilham esses presentes com seus próximos incrédulos, em suas vocações seculares. Podemos inverter esse fluxo de presentes, não apenas transformando a mensagem do evangelho em apelos para subir as escadas das experiências e do ativismo moral, como também os meios da graça em meios de obras, apropriando-nos do serviço gracioso de Deus por nós, con centrando-nos, quase exclusivamente, em nosso serviço.
12* ESV: E nglish Standard Version Bible; NRSV: New Revised Standard Version Bible; RSV: Revised Standard Version Bible [N. da R.], 13Para uma discussão do versículo de Efésios 4.12, veja Lincoln, Andrew. Word Biblical Commentary, vol. 42, Ephesia ns. Waco: Word, 1990.
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Já destaquei como nossa mensagem tem sido transformada de uma boanova em um bom conselho. Os efeitos de uma lei confusa e um evange lho confuso em conteúdo têm vastas conseqüências na prática da igreja também. Se a mensagem é ação, não credos, focalizando em “ 0 que faria Jesus?”, enquanto se assume que todo mundo já sabe 0 que Jesus fez (e está fazendo e vai fazer), não é de se admirar que 0 fluxo de dons de Cristo para nós seja invertido no modo que vivemos nossa vida pessoal e corporativa como povo de Deus. Cristo não apenas designou a mensagem, mas também os métodos que considera coerentes com 0 evangelho. Paulo diz que nossa salvação “não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericór dia” (Rm 9.16). Se nossa salvação é inteiramente devida à eleição, à reden ção, à regeneração, à santificação e à preservação da graça de Deus, então os métodos que ele escolheu para entregar Cristo e todos os seus benefícios serão meios da graça (Deus nos servindo), em vez de meio de obras (nosso serviço para Deus). Mais uma vez, isso não é excluir as obras ou nosso serviço - e sim é dizer que só quando somos salvos e servidos por Deus podemos ser instrumentos por meio dos quais ele leva sua notícia salvadora e serviço amoroso aos outros. Combinando a ênfase pelagiana na autossalvação com a ênfase gnóstica na experiência interior e na iluminação externa sobre 0 ministério de pregação, sacramento e disciplina, grande parte da prática contemporânea em todo o espectro eclesiástico parece supor que a missão é uma coisa e as marcas da igreja (pregação e sacramento) são outras. Se a mensagem de muitas pregações já mudou de Deus e seu trabalho para nós e nossa atividade, não é de se admirar que muitos, hoje, finalmente se perguntem por que a pregação é ainda necessária no culto público. Ser missionário frequentemente significa não apenas a busca de métodos adequados de tes temunho e de serviço informal, além da reunião oficial do povo da aliança, mas também prescindir de todos os elementos formais do culto público em si. Novamente, isso não é nada novo ou especialmente pós-modern o. Aqueles de nós que foram criados no evangelicalismo conservador estão familiarizados com o contraste muitas vezes feito entre ser salvo e reunido a uma igreja, como se o evangelismo pudesse ser separado do Batismo e do discipulado, e como se a união com Cristo pudesse ser separada da união com o corpo visível. Tal dicotomia não é encontrada no livro de Atos, onde lemos: “Acres centava-lhes 0 Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos” (At 2.47). Os convertidos eram imediatamente batizados e incorporados à vida cotidiana da reunião pública da igreja, na qual “perseveravam na doutrina dos apósto los e na comunhão, no partir do pão e nas orações” (At 2.42). Na verdade, a expressão “a Palavra de Deus era anunciada” é repetida ao longo do livro de
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Atos. A missão e as marcas da igreja nunca eram separadas. Com b ase nessa história do testemunho apostólico, a igreja é bem-sucedida em sua missão à medida que proclama Cristo, batiza, ensina e se reúne em tomo da mesa do Senhor e, depois, é espalhada pelo mundo como sua testemunha. Porque os crentes permanecem simultaneamente santos e pecadores, nunca ficam livres de sua necessidade de serem alimentados pelo evan gelho divinamente instituído por esses meios de graça. Não só em sua conversão, mas ao longo da sua peregrinação, somente o evangelho “é 0 poder de Deus para a salvação” (Rm 1.16). Se Cristo for claram ente pro clamado todo Dia do Senhor, desde 0 Gênesis ao Apocalipse, os crentes serão fortalecidos na fé e nas boas obras e os incrédulos serão apresenta dos à sua Palavra regeneradora. Se o Batismo e a Ceia do Senhor forem acontecimentos comuns no culto público, em vez de serem empurrados para os cultos dos dias da semana, para evitar a alienação dos sem-igreja com ritos estranhos, não apenas os crentes serão renovados regularmente, mas os visitantes incrédulos teste munharão 0 banho e o banquete para o qual eles também foram convidados. Ao se depararem com esta visitação divina entre seu povo, eles podem ser levados à convicção do pecado e da fé em Cristo, sendo conduzidos, pelos membros, aos presbíteros; depois, fazem sua profissão de fé, são batizados e instruídos e, então, se juntam à companhia dos santos em comunhão. Os de fora se tomam de dentro por meio da Palavra e do Espírito; não elimi nando a estranheza que os toma pessoas de fora, mas, em oração, aguardan do pela obra poderosa de Deus por intermédio da mensagem estranha e dos métodos que ele designou, vemos a missão ser bem-sucedida pelas marcas da pregação e do sacramento. Além do mais, em nome da missão, parecemos estar tirando a igreja dos que têm igreja (comprovado por estudos que revelam que mais da metade daqueles criados em igrejas evangélicas se tomam descrentes em seu se gundo ano na faculdade). Portanto, a disciplina da igreja por meio de seus oficiais é essencial para a verdadeira missão. Pastores pregam, ensinam e ministram os sacramentos; os presbíteros cuidam das necessidades espiritu ais do rebanho, incluindo a correção de fé e prática; os diáconos distribuem as dádivas materiais coletivas do corpo para as pessoas com necessidades temporais. As igrejas que portam essas marcas e se esforçam para crescer em sua fidelidade a elas são missionárias. Em nenhum momento de nossa peregrinação, qualquer cristão ama dure ce para além deste ministério, de maneira que fique capacitado a se autoalimentar. Cristo não nos livra de um tirano apenas para nos deixar fracos e isolados, tomando-nos presas para o tempo, para os lobos e para as nossas próprias andanças. “Obedecei aos vossos guias e sede submissos para com eles; pois velam por vossa alma, como quem deve prestar contas, para que
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façam isto com alegria e não gemendo; porque isto não aproveita a vós ou tros” (Hb 13.17). Mesmo nossa submissão aos presbíteros, então, é baseada no serviço amoroso de Deus e no cuidado dele para conosco. “Guardemos firme a confissão da esperança, sem vacilar, pois quem fez a promessa é fiel. Consideremo-nos também uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras. Não deixemos de congregar-nos, como é costume de alguns; antes, façamos admoestações e tanto mais quanto vedes que o Dia se aproxima” (Hb 10.23-25).
A Palavra se espalhou: u m a
i g re j a m i s s i o n á r ia
Não apenas o ministério de Cristo pelo seu Espírito, por meio da Palavra e do sacramento, é suficiente para a edificação do corpo de Cristo, como também é suficiente para nossa missão no mundo. Os mesmos meios insti tuídos pelo nosso Rei, que subiu aos céus, para tomar crentes recebedores do reino trabalham em círculos cada vez maiores para atrair aqueles que estão longe. Após advertir Timóteo sobre a orientação autocentralizada dos últimos dias , a incumbência de Paulo não foi conformar o evangelho às necessida des sentidas de seus ouvintes, nem substituir ações por credos. Pelo contrá rio, ela foi: “Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não” - isto é, quando for aceita ou não. Corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina. Pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se ão de mestres segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos; e se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando se às fábulas. Tu, porém, sê sóbrio em todas as coi sas, suporta as aflições, faze o trabalho de um evangelista, cumpre cabalmente 0 teu ministério (2Tm 4.2-5). A resposta ao narcisismo é não falar mais sobre nós, mas levar a Palavra de Deus para o mundo. Se o foco de nosso testemunho for nossa vida mudada, nós, assim como nossos ouvintes, estamos condenados ao desapontamento. Os apóstolos poderiam ter nos contado mais sobre si mesmos e suas vidas mudadas: Pe dro, o pescador, para Pedro, a rocha, para Pedro, o negador de Cristo, para Pedro, o apóstolo; Saulo, o perseguidor da igreja, para Paulo, o apóstolo, e assim por diante. No entanto, além destes detalhes pessoais, sabemos re lativamente pouco. Não temos nem mesmo certeza do que Paulo tinha em mente quando falou sobre seu “espinho na came” (2C0 12.7). A certeza
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que temos é 0 fato de que os apóstolos sabiam que também precisavam do evangelho - a absolvição pessoal de Cristo - ao longo de toda a estrada poeirenta, cheia de dúvidas, medos, sofrimento e fracasso moral. Os apóstolos estavam maravilhados demais com Jesus Cristo e os acon tecimentos que tinham se passado na História para se preocuparem em se concentrar em suas autobiografias espirituais. Eles sabiam que era 0 tes temunho deles da vida, da morte e da ressurreição de Cristo que tinha o poder de converter as pessoas da morte para a vida. Sem negar, de nenhum modo, a transformação interior ou a experiência deles, até mesmo isso era o resultado do evangelho. Não foi por seguir uma seqüência de passos que foram regenerados, mas “mediante a palavra de Deus. (...) Ora, esta é a palavra que vos foi evangelizada” (lPe 1.23, 25). O testemunho deles era para Cristo, não para eles mesmos. Ao longo do livro de Atos, mesmo em um momento em que todos os cristãos podem concordar que havia apóstolos vivos e um ministério extraordinário de sinais e maravilhas, o sucesso da missão da igreja foi sempre atribuído ao fato de que “muitos... dos que ouviram a palavra a aceitaram” (At 4.4) e “crescia a palavra de Deus” (At 6.7). A igreja ia “edificando se” na palavra e “crescia em número”, e “a palavra do Sen hor crescia e se multiplicava... e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna. E divulgava-se a palavra do Senhor por tod a aquela região” (At 9.31; 12.24; 13.48-49). A missão e as marcas - a conversão e o ministério oficial - andavam juntas: Tendo anunciado 0 evangelho naquela cidade e feito mui tos discípulos, voltaram para Listra, e Icônio, e Antioquia, fortalecendo a alma dos discípulos, exortando-os a per manecer firmes na fé; e mostrando que, através de mui tas tribulações, nos importa entrar no reino de Deus. E, promovendo-lhes, em cada igreja, a eleição de presbíteros, depois de orar com jejuns, os encomendaram ao Senhor em quem haviam crido. (...) Assim, as igrejas eram for talecidas na fé e, dia a dia, aumentavam em número. (...) [Paulo] dissertava na sinagoga entre os judeus e os gentios piedosos; também na praça, todos os dias, entre os que se encontravam ali (At 14.21-23; 16.5; 17.17). Também muitos dos coríntios, ouvindo [Paulo], criam e eram batizados. (...) Durou isto por espaço de dois anos, dando ensejo a que todos os habitantes da Ásia ouvissem a palavra do Senhor. (...) Assim, a palavra do Senhor crescia e prevalecia poderosamente (At 18.8; 19.10, 20).
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Deus cria mundos ao falar. A Palavra de Deus nunca é morta, à espera de ser completada por nossa própria atividade moral ou feita subordinada a ela. Pelo contrário, ela é “viva e eficaz (Hb 4.12), sempre prosperando na quilo para que é designada (Is 55.11). Na verdade, o cristianismo é uma fé missionária precisamente porque é uma doutrina, um anúncio proclamado por embaixadores. Deus sabe o que está fazendo. Nem a mensagem nem os métodos de entrega são criação nossa. Se Cristo não é o Rei da igreja, então, em pou co tempo, também não será seu Profeta ou Sacerdote. Precisamos olhar para ele para definir não só a mensagem da igreja, mas também a natureza, a missão e os métodos com os quais é entregue. Enquanto o reavivalismo de Finney para 0 movimento de crescimento da igreja contemporânea tem encontrado novas medidas em técnicas pragmáticas, uma nova gera ção - compreensivelmente, sedenta de uma orientação mais transcendente - procura por novos meios de graça em práticas mais místicas.14Uma vez que você fique preso em seus próprios meios de ascensão, estará sempre à procura de uma nova droga. As igrejas que se concentram apenas em cuidar de seus membros, sem uma paixão para evangelizar os que estão fora, infielmente estreitam a missão que lhes foi confiada. Em contrapartida, as igrejas que se con centram principalmente nos sem-igreja muitas vezes esquecem 0 man damento de Cristo a Pedro: “Apascenta as minhas ovelhas” (Jo 21.17). O equilíbrio é encontrado no sermão de Pedro no Pentecostes: “Para vós outros é a promessa, para vossos filhos e para todos os que ainda estão longe, isto é, para quantos o Senhor, nosso Deus, chamar” (At 2.39). Se com todo nosso zelo missionário estivermos perdendo filhos e falhando em verdadeiramente alcançar aqueles que estão longe, talvez seja hora de repensar nosso ministério. O que é preciso nestes dias, como em qualquer outro mom ento, é uma igreja que seja uma verdadeira comunidade da aliança definida pelo evan gelho em vez de um prestador de serviço definido por leis do mercado, ideologias políticas, distinções étnicas, ou alternativas para a comunidade católica que 0 Pai está criando pelo seu Espírito, em seu Filho. Para isso, precisam os de nada menos que uma nova criação, onde o único dado de mográfico que importa está em Cristo. Quando nossas igrejas estiverem outra vez localizadas aí, tanto os convertidos quanto os que ainda temos de alcançar vão se tomar beneficiários da graça, que podem, por sua vez, amar e servir os seus próximos no mundo. Quando isso acontecer, tam bém devemos esperar ouvir relatos novos, mesmo nos Estados Unidos,
14McL are n, A Generous Orthodoxy, págs. 225-226.
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que “crescia a palavra de Deus, e, em Jerusalém, se multiplicava o núme ro dos discípulos” (At 6.7).
P o r q u e a R e f o r m a m u d o u a s co is a s
Martinho Lutero assinalou que havia muitos reformadores em seu tempo, porém todos eles estavam tentando limpar o exterior do copo. Alguns, como os Irmãos da Vida Comum (onde Erasmo e Lutero foram educados), que riam voltar à simplicidade inicial da igreja primitiva, enfatizando o amor mútuo e o serviço uns para os outros, 0 companheirismo e o exemplo de Jesus - com um papel mais ativo para os leigos. Eles desafiaram a hipocri sia de Roma (como nas obras sarcásticas de Erasmo, In Praise o f Folly e The Colloquies).
No entanto, a Reforma foi única - e exclusivamente eficaz - porque, como disse Lutero, foi ao cerne do problema: a doutrina. Ela chamou as pessoas para fora de si, longe de suas boas obras e dos seus pecados, para dependerem de Cristo somente, pela fé somente. O culto todo foi transfor mado para dar clara prioridade ao evangelho de Cristo. Já não era para ser visto como um sacrifício da igreja para Deus, mas como o serviço redentor de Deus para o povo, que, em seguida, saía do culto para amar e servir o seu próximo por meio de suas vocações normais. Havia, ainda, os sacrifícios de louvor e de agradecimento, mas não havia mais sacrifícios pelo pecado, e até mesmo os primeiros eram simplesmente 0 amém de fé nas boas-novas de Deus. A Reforma iniciada por Lutero foi ao centro do que ele chamou de “o cativeiro babilônico da igreja”. Assim como Paulo observou que Israel não encontrou a justiça que estava procurando porque foi procurá-la pelas obras e não pela fé em Cristo, os reformadores sabiam que uma verdadeira trans formação - isto é, a santificação em Cristo - só podia resultar do abandono da justiça própria para ser encontrada em Cristo. Após dar detalhes sobre o tratamento de Calvino da Palavra pregada como a voz viva de Deus por meio de um mensageiro fraco, Elizabeth Achtemeier acrescenta: Ninguém acredita que Deus fale por meio de sua Palavra, até ouvi-lo. E nenhum argumento pode convencer o incré dulo sem a obra do Espírito. “Assim, a fé vem pela prega ção”, escreve Paulo, “e a pregação, pela palavra de Cristo” (Rm 10.17). E é a pregação de Cristo - o testemunho de fé que existe além de nossas palavras humanas, uma Palavra transcendente - é somente isto que pode despertar e reno var a igreja.
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Ela também disse, no entanto, que, “devido ao fato de que grande parte da igreja neste país não mais acredita ou espera ouvir Deus falando por meio de suas Escrituras, ela não é mais cristã”.15 Vivemos em uma época que é, simultaneamente, cínica e crédula - in capaz de acreditar em alguma coisa em particular, enquanto se abre para tudo em geral. Conflitos têm de aumentar inevitavelmente dentro da própria igreja, quando os cristãos e as igrejas negam a religião civil e abraçam o escândalo de um evangelho particular, o qual surge da narração da intrusão perturbadora e desorientadora de Deus em nosso mundo e em nossas vidas. Mas isso precisa acontecer. E interessante que Jesus, em seu ministério, sempre atraiu multidões por seus sinais miraculosos, mas espantou a maioria quando começou a pregar. Vemos isso especialmente em João 6, onde Jesus anuncia que o que as pessoas não estão procurando é do que precisam: o eterno “pão do céu” (v. 31), que é o próprio Jesus. Quando as pessoas começaram a ir embora, desapontadas porque Jesus não ia satisfazer sua necessidade sentida de ou tra refeição, Jesus acrescentou: “Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer” (v. 44). Até mesmo os discípulos disseram: “Duro é este discurso; quem o pode ouvir?” (v. 60). Naquele dia, Jesus forçou os 12 a escolherem entre serem consumidores ou discípulos, e Pedro respondeu: “Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna; e nós temos crido e conhecido que tu és o Santo de Deus” (vs. 68-69). A igreja atual terá de aprender 0 que significa chorar antes de poder feste jar. Ser fiel à História, fixar os olhos em Cristo - mesmo se isso significar nos desviar do que temos diagnosticado como nossos problemas reais - é a coisa mais amorosa que um pastor pode fazer por uma congregação, o dom mais precioso que podemos receber e repassar aos nossos próximos, bem como a missão mais relevante sobre a terra. Nas palavras de Dorothy Sayers: O dogma é 0 drama - não frases bonitas, não sentimentos confortadores, nem vagas aspirações de bondade e eleva ção moral, nem a promessa de algo agradável após a morte - mas a afirmação aterradora de que o mesmo Deus que fez o mundo viveu no mundo e passou pelo túmulo e pelo portão da morte. Mostre isso aos gentios e eles poderão não acreditar; mas, pelo menos, poderão perceber que há aqui algo que a pessoa pode ficar feliz em acreditar.16 15Ach tem eier , Elizabeth. “The Canon as the Voice of the Living God”, em B raa ten , Carl E.; Jenso n, Robert W. (orgs). Recl aiming the Bible fo r the Church. Edimburgo: T & T Clark, 1995, págs. 120, 122-123. 16Sayers, Dorothy. Creed or Chaos? Nova York: Harcourt, Brace, 1949, pág. 25.