Capítulo 4 Charles Perrault, o encantador
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ara muitos estudiosos, a literatura infantil no Ocidente nasceu com uma pequena recolha de contos escrita pelo francês Charles Perrault.
Neste capítulo, traçaremos um panorama do contexto histórico em que esse escritor viveu e recolheu os contos que o imortalizaram, as controvérsias em torno da autoria de suas obras e a possível origem das narrativas por ele fixadas. Ao final do capítulo apresentamos a tradução dos contos: O Gato de Botas, As Fadas e Cinderela ou os sapatinhos de cristal, bem como alguns elementos históricos e simbólicos presentes nestas narrativas. Durante essas análises faz-se um estudo comparado com outras versões.
Um pouco sobre a vida e a obra do encantador da corte Charles Perrault foi o quarto filho de uma prole de sete. Seu pai exercia a função de advogado em Paris, quando ele nasceu, em 12 de janeiro de 1628. Depois de terminar seus estudos no colégio deBeauvais, cursou Direito em Orléans.
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Mas, desde muito jovem, mostrou talento para a criação poética. Ainda adolescente escreveu em parceria com os irmãos um poema sobre Troia. De 1659 a 1661, produziu três odes poéticas que lhe permitiram cair nas graças de Colbert, o homem forte do governo de Luís XIV: “A paz nos Pirineus”, “O casamento de Luís XIV” e “O nascimento do Delfim”. A partir de 1663, passa a trabalhar com Colbert, exercendo várias funções, entre elas a de controlador geral das construções dos jardins, das artes e das manufaturas da França. Foi eleito membro da academia francesa de Letras, em 1671, e para a Pequena Academia de Pintura e Escultura dois anos depois. Nessa época, lhe foi concedida uma pensão mensal, em consideração pelas suas produções literárias. Chega até a participar das discussões sobre a construção da fachada do museu do Louvre, em 1676, ao lado do irmão arquiteto, Claude Perrault. Para se ter ideia do poder Colbert, primeiro–ministro de Luís XIV, cerca de 1670.
de circulação de Perrault entre
a nobreza, sua casa lhe permitia tanto ter acesso aos jardins do palácio real, como ao gabinete de Colbert. Mas mesmo exercendo várias atividades administrativas, indicadas pelo primeiro ministro, jamais deixou de escrever seus poemas.
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A luxuosa corte de Luís XIV Com a ajuda do Cardeal de Richelieu, Luís XIV conseguiu centralizar todo o poder em suas mãos. Membros da corte de diferentes lugares eram convidados para as luxuosas cerimonias, organizadas pelo rei em Paris. Uma maneira de esvaziar as cortes regionais. A diversão era uma manobra bem estudada para arregimentar aliados. Além disso, títulos de nobreza eram vendidos nessas ocasiões aos burgueses, como uma maneira eficaz de angariar fundos. Homens da burguesia, como Charles Perrault, controlavam as finanças, ocupavam cargos de poder e determinavam os valores estéticos. Com a morte de seu protetor, Colbert, em 1683, a sorte do escritor mudou. Ele perdeu sua pensão e foi excluído da Academia de Pintura e Escultura. Com os ganhos recebidos pelos serviços prestados ao rei, Perrault, então com 55 anos, decide dedicar-se à educação de seus filhos e à produção literária. Em 1672, ele havia se casado com Marie Guichon, com quem tivera quatro filhos, a esposa morrera quatro meses depois de dar à luz ao último rebento. Para melhor acompanhar a educação das crianças, ele se muda para a região onde estavam os colégios, pois acreditava que melhor seria ter os filhos ao pé de si todas as noites, do que deixá-los morar nos colégios internos, como era comum à época. A famosa querela dos antigos e dos modernos, que, como visto no capítulo anterior, teve início em 1687 e foi uma disputa iniciada pelos membros da Academia Francesa de Letras, em que alguns escritores defendiam o modelo clássico de escrita e outros a modernização da métrica e da linguagem. Em seu livro de memórias, Charles Perrault conta como se deu o início da disputa. Para ter com o que se ocupar durante sua apo-
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sentadoria, ele compôs um pequeno poema intitulado “O século de Luís, o Grande”, durante a leitura do poema para os membros da Academia Francesa, M. Boileau indignou-se com a maneira como ele construíra seus versos, sem seguir as regras instituídas pelos grandes poetas da Antiguidade Clássica. Foi então que o escritor decidiu dizer seriamente em prosa o que não conseguira exprimir até então em versos. Para alguns estudiosos, essa disputa foi o deflagrador do período mais criativo de Charles Perrault. Nessa fase, além dos contos que o tornariam conhecido no mundo inteiro, escreveu várias comédias e poemas. Em 1694, ele escreve A Pele de Asno. Composto inicialmente em versos esta é Charles Perrault, obra de pintor anônimo, 1670.
sem dúvida a narrativa menos conhecida e
traduzida de Charles Perrault. Ainda que alguns estudiosos tenham tratado do tema em uma abordagem simbólica ou até historiográfica, como poderá ser lida na análise que é apresentada posteriormente à tradução integral do conto, sua leitura parece perturbar os adultos, possivelmente pelo tabu por ele retratado: o desejo do pai pela própria filha. Talvez esse seja o motivo para que o conto não tenha tido o mesmo número de edições que as outras narrativas. Publica, em 1965, Histórias ou contos do tempo passado: com moralidade, também conhecido como Contos da Mamãe Gansa. Nesse pequeno livro, estão narrativas que se tornariam conhecidas no mundo inteiro: A Bela Adormecida do Bosque, Chapeuzinho Vermelho, O Barba Azul, Mestre Gato ou o Gato de Botas, As Fadas, Cin-
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derela, ou A Gata Borralheira, Riquet, O Topetudo e O Pequeno Polegar. O livro é dedicado à Mademoiselle, filha caçula de Felipe de Orléans, irmão de Luís XIV e Carlota Elizabeth de Bavière. As inovações propostas por Perrault nessa recolha de contos não eram apenas de cunho formal. A grande mudança feita por ele foi usar em seus contos a linguagem comum aos camponeses da região. Para isso, coligiu contos da literatura folclórica francesa. Inicialmente, seu interesse não era escrever para crianças, somente depois da terceira edição do conto A Pele de Asno, é que fica explícito o seu desejo de dedicar-se à infância. A partir de então, o escritor volta-se inteiramente para a escrita de contos. No entanto, Perrault dá a essas histórias populares forma e tratamento literário muito particular. Existe um ritmo interno na narrativa, ainda que a versificação tenha sido, aparentemente, abolida. A repetição, própria da oralidade, permite esse trabalho com a sonoridade. Seguindo premissas já presentes nos contos italianos, Perrault mantém a ausência do tempo cronológico e as peripécias têm grande importância na narrativa, assim como a intervenção do maravilhoso. Não há descrição espacial, salvo se isso é fundamental para o encadeamento de alguma ação. Mas não foi somente a disputa entre os membros da Academia que fizeram com que Perrault mudasse os rumos da literatura francesa. Ele lutou em outra frente: a defesa dos direitos das mulheres. Tudo começou quando um grupo de moças, entre elas uma sobrinha de Perrault, Marie-Jeanne L’Héritier, passou a se reunir para ler e discutir literatura. Elas ficaram conhecidas na história da literatura francesa como “As preciosas”.
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Ilustração da fábula Contos da mamãe gansa na primeira edição impressa dos contos de fadas de Charles Perrault, em 1695.
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As preciosas Marie–Jeanne L’Héritier, nasceu em 1664, em uma família de aristocratas franceses. Desde muito menina, teve uma formação bem diferente do que era comum naquela época. Estimulada pelo pai e pelo tio, Charles Perrault, desde muito cedo dedicou-se aos estudos de Literatura. Ainda muito jovem caiu nas graças de Madeleine de Scudéry, escritora famosa por receber em seus salões os grandes artistas e intelectuias da época. Com a morte da mentora, em 1701, a jovem herda seu salão e passa a viver de sua pena e da proteção das duquesas de Longueville e d’ Épernon. Durante mais de quarenta anos, Marie– -Jeanne dedica-se a escrever seus contos, novelas e poemas. Além de se destacar na vida cultural parisiense pelas famosas recepções, promovidas em seu salão. Dentre sua vasta produção, há muitos contos de fadas. Charles Perrault era um de seus interlocutores quanto a essa produção e alguns críticos chegam a mencionar que alguns temas, já presentes na obra de sua sobrinha são retomados por ele posteriormente. Outra grande contribuição de Marie–Jeanne para as letras francesas foi a tradução da obra de Ovídio para o francês, que lhe rendeu muitos elogios e uma pensão significativa. Ao longo de sua vida, alcançou renome tanto na França como internacionalmente como poeta e mulher de letras. Suas obras escritas em prosa também provocaram discussão entre os membros da Academia Francesa, que lutavam por manter os valores clássicos na produção literária. Alguns críticos, ao analisarem a maneira como representa as heroínas em seus contos, interpretando papéis nada tradicionais, aliás como foi a sua própria vida, a consideram a precursora do movimento feminista do século XX. Nos salões como o de Marie–Jeanne L’ Héritier era comum a leitura dos chamados “romances preciosos”, derivados de novelas medievais, escritas em estilo popular, o que ia contra os princípios do classicismo oficial, defendido por alguns representantes da Academia Francesa. Daí a receberem o termo pejorativo de “as preciosas”. Molière chegou a escrever peças como Escola de mulheres e As preciosas rídiculas para satirizá-las. Frequentador assíduo desses salões, inclusive do de sua sobrinha, Charles Perault teria escrito A paciência de Grisélidis, em que mostra o depotismo dos homens sobre as mulheres, para defendê-las. Três anos depois, ele publica outra obra em que a causa feminina é o tema central: Os desejos ridículos. Talvez essa tomada de posição e a interlocução com sua sobrinha explique a forte presença das mulheres em seus contos.
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A origem dos contos da recolha Histórias do tempo passado
Como já dito, as histórias da recolha Histórias do tempo passado: com moralidades foram inspiradas em alguns contos de origem italiana. A seguir você conhecerá o enredo do cada conto e sua suposta fonte inspiradora.
A B ela
do
B osque A dormecido (L a B elle
au bois dormant )
O tema dessa narrativa está na história Tália, de Basile. Nessa versão, uma jovem enfia uma farpa de linho no dedo por acidente e adormece. Um rei enamora-se dela e a possui sexualmente durante o sono. Nelly Novaes Coelho nos informa que o tema aparece em novelas de cavalaria que circularam pela Europa no século XIII (Cf. COELHO, 2003, p. 39). Na versão de Charles Perrault, a jovem não é despertada por um beijo apaixonado, mas por um dos filhos que dá à luz nove meses depois da visita do príncipe. Um dos bebês suga a lasquinha do dedo da mãe ao chupá–lo, quando está em busca do leite materno. O príncipe espera que o pai morra para levar a esposa para seu castelo, mas logo tem que partir para a guerra e sua mãe, que descende de uma família de ogros, tenta devorar os netos. O príncipe chega a tempo de salvar os filhos e lança sua mãe em um tanque de víboras. Essa versão é bem menos conhecida que a transcrita pelos irmãos Grimm, em que a jovem é despertada por um beijo dado pelo príncipe encantado.
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C hapeuzinho V ermelho (L e P etit C haperon R ouge ) O chaperon era uma espécie de capuz bastante usado na Idade Média, tanto por homens como por mulheres. No norte da França, era usado por camponesas e pelas mulheres de classes menos favorecidas economicamente. Durante o século XVI, as mocinhas da região de Paris e da Picardia eram chamadas de chaperons, devido a um tipo de carapuças que usavam. A origem de Chapeuzinho Vermelho é desconhecida, mas ele figura no folclore de vários povos. Alguns estudiosos acreditam que o tema já está no mito de Cronos, que engole os filhos, que são resgatados com vida de seu ventre. Há também um conto latino do século XI, no qual uma garota que usa capuz vermelho é atacada por lobos, mas consegue escapar do ventre de um deles com vida. Este é certamente o conto mais conhecido e adaptado do escritor francês. Muito embora a versão mais conhecida seja a dos irmãos Grimm. Se, na versão alemã, temos a presença do caçador que abre o ventre do lobo, de onde saem intactos avô e filha, na versão francesa não temos esse desfecho feliz. As duas são devoradas pelo lobo e a moral da história, transcrita a seguir, pode ser lida como uma advertência para as jovens da nobreza, que poderiam ser facilmente seduzidas pelos “lobos” que destilavam charme pelos luxuosos salões de Versalhes.
M oral Vemos aqui as meninas, E sobretudo as mocinhas
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Lindas, elegantes e finas, Não devem a qualquer um ouvir. E, se o fazem, não é surpresa Que o lobo as devorem no jantar. Falo assim do lobo, Pois nem todos eles São de fato equiparáveis. Alguns são até muito amáveis, Serenos, sem fel nem irritação. Esses doces lobos, com toda educação, Acompanham, as jovens senhoritas Pelos becos afora e além do portão. Mas aí! Esses lobos gentis e prestimosos, São, entre todos, os mais perigosos.
B arba A zul (L a B arbe B leue ) O personagem do marido sanguinário e misterioso, representado pelo Barba Azul, está presente em várias culturas. Alguns pesquisadores afirmam que o conto pode ter sido inspirado em nobres cruéis, que realmente decapitaram suas esposas, como certo Gilles de Laval, que teria vivido na região da Bretanha francesa. Alguns estudiosos também associam o terrível Barba Azul ao rei da Inglaterra Henrique VIII, famoso por mandar matar suas esposas ou encarcerá-las. Ainda que não receba este nome, maridos cruéis são recorrentes em vários outros contos, como em O pássaro extraordinário, dos irmãos Grimm.
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A s F adas (L es F ées ) O tema das irmãs, uma boa e a outra má, que se dirigem a um ser dotado de poderes sobrenaturais é recorrente em várias culturas. É o caso do conto de origem alemã, intitulado a Senhora Holle, dos irmãos Grimm. Na narrativa As três fadas, de Basile o tema também aparece. E ste
conto poderá ser lido na íntegra ao final deste capítulo .
A C inderela (C endrillon
ou a pequena pantufa de vidro
ou la petite pantoufle de verre )
Esse conto pode ter sido inspirado na versão La Gata Ceneréntola, registrada por Basile na obra Pentemerone. Nas histórias de origem eslava e finlandesa, o protagonista é um rapaz de nome Cendrillon. O tema da metamorfose de uma jovem maltrapilha em princesa é recorrente em vários contos, figura também na coletânea dos irmãos Grimm sob o título Cinderela. No sétimo capítulo deste livro, transcrevemos a belíssima versão A Gata Borralheira, recolhida por Sílvio Romero no final do século XIX em Sergipe. E ste
conto poderá ser lido na íntegra ao final deste capítulo .
O G ato
de
B otas
(L e M aître C hat
ou o
ou
M estre G ato
L e C hat B oitté )
O tema do conto Gato de Botas também aparece no fabulário italiano, tanto na novela Gagliuso, de Francesco Strapparole, como em Giambatista Basile.
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Na versão de Strapparole, o moleiro é substituído por uma viúva de nome Soriane, que antes de morrer distribui entre os filhos os três únicos bens que possuía: uma gamela de assar pão, uma roda de madeira e uma gata. Contos com estrutura parecida, em que o gato é substituído por uma raposa, também são recorrentes na Europa Oriental. Na obra dos irmãos Grimm um conto com tema semelhante recebe o título de Os três irmãos felizes. E ste
conto poderá ser lido na íntegra ao final deste capítulo .
R iquet ,
o
T opetudo (R iquet
à la houppe )
Alguns estudiosos defendem a ideia de que esse conto foi produto da imaginação de Charles Perrault, não sendo, portanto, encontrado em outras culturas. Mas o tema do encontro amoroso entre um ser de a aparência horrenda, ou metamorfoseado em animal, e uma bela jovem é recorrente e muitas histórias. Basta lembrar o tema da Bela e a Fera.
O P equeno P olegar (L e P etit P oucet ) A origem do conto é incerta, mas o tema do ser minúsculo, nascido de forma milagrosa, é recorrente no folclore de vários lugares do mundo. Está presente na obra dos irmãos Grimm e no conto Nennillo & Nennilla, do napolitano Jorn Basile. Os ingleses têm seu Tom Thumb e na França há também o personagem Tom Pouce, encontrado na obra de P. J. Stahl. Nesse conto, ao presenciar a discussão dos pais a respeito da dificuldade de criar os filhos, o Pequeno Polegar decide correr mundo para conseguir os recursos necessários para ajudar a família.
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Frontispício ilustrado por Gustave Doré para edição dos contos de Perrault na edição francesa de 1883.
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Características encontradas em todos os contos de Charles Perrault: • Ausência de localização temporal. • Excesso de ação, peripécias. • A articulação lógica dos fatos não é fundamental. • A presença do elemento sobrenatural. • A presença da repetição como marca de oralidade. • Ausência de descrição espacial. • Grande importância é dada ao ritmo. O diálogo faz parte da cena e o tempo da ação corresponde ao momento em que o fato é narrado. • Moral no final dos contos, como na fórmula da fábula. • Há um trabalho literário, na composição rítmica do texto e rigor métrico na escrita da moral versificada, apresentada no final da narrativa em prosa. Portanto, o escritor empenha-se em dar tratamento literário a um tema aparentemente banal para a época.
A questão da autoria Vários estudiosos já escreveram sobre as dúvidas a respeito da autoria do livro Histórias do tempo passado. Muitos afirmam que seja produto de uma criação coletiva, baseada na tradição oral. Alguns dizem que tudo começou quando Charles Perrault resolveu contar histórias para seus filhos. Elas teriam servido de mote para Pierre, o filho caçula, as recolhesse entre as servas da casa e camponesas da região e as registrasse, mas sob a revisão do pai. Por isso, a primeira edição da obra saiu em seu nome.
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A
publicação
da
obra teve sucesso imediato. Em 1697, Pierre fere mortalmente com a espada um jovem da vizinhança e é processado por isso. Instaura-se um processo em que os bens de Charles Perrault são requeridos como indenização. Três anos depois, Pierre morre prematuramente, seu falecimento é notificado no jornal Le Mercure, mas sem qualquer menção à obra supostamente coligida por ele. Tal incidente talvez tenha
Ilustração de Gustave Doré.
favorecido o desaparecimento de seu nome no que diz respeito à origem das narrativas que imortalizaram seu pai. Mas a crítica se divide nessa questão, atualmente, estudiosos alegam que não há dúvida de que Charles Perrault foi responsável pela recolha dos contos muitos anos antes da primeira edição, quando o filho tinha entre dois e quatro anos, e que os publicara usando o nome do filho para não acirrar ainda mais os humores nos debates na Academia Francesa, mas que mediante o sucesso da obra, não houve mais dúvida de que a autoria era mesmo do escritor de A paciência de Grisélidis.
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O Classicismo ou Época Clássica La Fontaine e Charles Perrault produziram sua obra no período chamado de Classicismo ou Época Clássica. Esse movimento artístico durou dos séculos XVI ao XVIII. Considerando-se todas as evoluções intermediárias, o movimento literário desse período é chamado, genericamente, de Época Clássica porque tem como característica principal a imitação dos antigos quanto ao tratamento de valores humanos universais e a busca do equilíbrio e da distinção de formas e gêneros. Mas nesses quase três séculos, a Época Clássica abarcou diferentes movimentos estéticos: o Classicismo, o Maneirismo, o Barroco e o Arcadismo (neoclassicismo). O Classicismo ocorreu na maior parte do século XVI; o Barroco, praticamente ocupou todo o século XVII e o Arcadismo caracteriza o século XVIII. Por isso, essas três escolas receberam também respectivamente os nomes de Quinhentismo, Seiscentismo e Setecentismo. No Classicismo o homem é o centro do universo, a religião é passível de questionamento e a experiência pessoal passa a ter grande valor, pois é por meio dela que se atinge o absoluto. O amor pela mulher idealizada é também uma maneira de lidar com os próprios conflitos diante da perene noção de indivíduo e da fascinante aventura de ser pensante. No Barroco o conflito entre o celestial e o terreno, Deus e o homem, o pecado e o perdão ganham proporções de dilema. A utilização de figuras de linguagem como metáforas, hipérbatos, hipérboles e metonímias é recorrente. A manifestação do amor muitas vezes mistura-se àquele dedicado a Deus. Já no Arcadismo é nítida a influência do poeta Horácio na produção de poetas de diferentes países do Ocidente. A máxima “carpe diem”,
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que significa gozar o dia ou viver o tempo presente, prevaleceu. É bem diferente do estilo rebuscado do Barroco. No Arcadismo, a expressão clara e as frases melodiosas são recorrentes. Além disso, o uso de termos e de expressões que retomam a Antiguidade Clássica é bastante comum. Por exemplo, a alusão a figuras mitológicas greco-latinas. Assim como aconteceu com as distintas formas literárias do século XVI, o teatro reproduziu o estilo da Grécia Clássica, o que pode ser visto em tragédias como Fedra, de Racine.
O vestido em A Pele de Asno – uma análise O grande tema do conto a Peau d’ Âne (A Pele de Asno) é o desejo do pai de desposar a própria filha. Por meio de versos construídos nos moldes do Classicismo, Perrault nos descreve a solução dada pela fada madrinha à jovem princesa: que ela peça ao rei um vestido com as cores do tempo, no que é prontamente atendida. Como recorrente nas estruturas do conto maravilhoso, a situação se repete por mais duas vezes. Assim, a princesa promete casar-se com o genitor somente se ele lhe der um vestido com as cores da Lua e outro tão brilhante quanto o Sol. Como o rei atende a todos os pedidos da filha, só resta à princesa fugir de casa. Podemos dizer que, ao recusar-se a contrair matrimônio com o próprio pai, a princesa passa pela primeira prova, à qual Greimas nomeia de “qualificante” (GREIMAS, 1970, p. 257). O rei nessa narrativa tem tanto a função de vilão como de doador, já que é ele quem manda fazer os vestidos solicitados pela filha, os quais ela leva consigo quando parte de casa para fugir do malfadado casamento.
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A madrinha, que também tem o papel de doadora, orienta a heroína para que faça uma caixa e nela coloque os vestidos, um espelho e as joias. A caixa mágica segue a princesa, mas escondida sob a terra, quando quiser ter consigo seus objetos de toalete, basta a jovem tocar o solo com a vara mágica. Para ocultar sua identidade, a princesa é orientada a matar um asno e com a pele dele cobrir o corpo. Assim disfarçada, a heroína passará então pela segunda prova, a “principal” (GREIMAS, 1970, p. 257), quando se submete a trabalhar como guardadora de porcos num reino distante. Aos domingos, a princesa retirava da caixa mágica seus vestidos preciosos e contemplava a própria beleza diante do espelho. É numa dessas ocasiões que acaba sendo observada por um príncipe que caçava na região. O rapaz fica adoentado de amor e, não sabendo o que fazer para aproximar-se da amada, pede à mãe que permita à guardadora de porcos que lhe faça uma torta. Durante o preparo do doce, o anel da jovem cai do dedo e se mistura à massa. É nessa parte final do conto que teremos a terceira prova, nomeada de “glorificante”, pois por meio dela a identidade da heroína é revelada (GREIMAS, 1970, p. 257). Num expediente parecido com o que ocorre no conto A Gata Borralheira (aliás, nessa narrativa também temos o desfile de três vestidos), onde o objeto mágico que permite o reconhecimento da heroína é um sapato, os auxiliares do príncipe percorrem castelos e casebres à procura da dona do anel. A joia, é claro, só servirá no dedo da pobre guardadora de porcos que, para surpresa de todos e felicidade do príncipe, aparece diante da corte com um de seus deslumbrantes vestidos. Baseando-nos em Propp, podemos montar o seguinte esquema, a partir do conto de Charles Perrault.
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1. Heroína – A princesa que se recusa a casar-se com o pai. 2. Vilão – O rei que quer desposar a filha. 3. Vítima – A princesa. 4. O mandante – A mãe que faz com que o pai jure apenas casar-se com mulher tão sábia e bela quanto ela própria. 5. Doador – O pai que atende aos pedidos da filha oferecendo-lhe os vestidos e a fada madrinha. 6. Objetos mágicos – Os vestidos, o baú e o anel. Portanto, podemos afirmar que: “Os seres narrativos, em Propp, definem-se não apenas por sua funcionalidade e temporalidade, mas também por sua referencialidade, isto é, por sua capacidade de nos remeter, em virtude da específica organização de suas ações–funções, a um referente humano, e nunca por seu caráter de mera representação do homem.” (SEGOLIN, 1999, p. 81)
O grande tema desse conto é o impedimento de uma relação incestuosa entre pai e filha. É sabido que antigamente esse tipo de relacionamento era muito comum, sobretudo nas castas reais, como uma forma de manter o poder na mão da mesma dinastia. A moral apresentada por Perrault no final do conto, nos permite afirmar que essa história é simbolicamente uma forma de condenar ou impedir que tais ligações ocorressem: Contra um amor louco, pelo fogo transportado A razão é a mais forte barreira. E que ela seja um rico tesouro, Quando um amor for pródigo. (PERRAULT, 1981, p.115)
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Valendo–nos das palavras de Propp podemos dizer que: “O conto pode às vezes ter como origem uma atitude negativa com relação a uma realidade histórica ultrapassada” (PROPP, 1997, p.18). “Ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinado modo. E o estilo decerto, é o que determina o valor da prosa.” (SARTRE, 2004, p. 22). Assim podemos dizer que Perrault, num estilo peculiar, mas de acordo com os padrões vigentes no seu tempo, construiu sua narrativa, obedecendo a um rigoroso sistema métrico e rítmico e nos contou uma história em que conseguimos localizar o personagem–função numa estrutura temporal linear, onde “[...] o sentido total e conclusivo da vida e da morte de cada personagem revela-se somente no campo de visão do autor e apenas à custa do seu excedente sobre cada uma das personagens, vale dizer, à custa daquilo que o próprio personagem não pode ver nem entender.” (BAKTHIN, 1981, p. 58). Os vestidos no conto maravilhoso aqui analisado representam um papel simbólico importante. Vale lembra que tinham as cores do tempo, da Lua e do Sol. Como se a heroína precisasse se vestir de elementos da natureza representantes do masculino e do feminino, do claro e do sombrio para fugir do amor interdito e encontrar-se com o príncipe, com o qual a aliança é permitida. E o mirar-se no espelho, e perceber-se trajada com ricas vestimentas, a guardadora de porcos tem consciência de sua verdadeira origem: a realeza.
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Contos de Charles Perrault O
gato de botas
Ao sentir a proximidade da morte, um moleiro distribuiu o que tinha entre os três filhos. Ao mais velho coube o moinho; ao filho do meio, o asno; e ao mais jovem, um gato. Este último não podia se consolar por ter recebido herança tão insignificante: – Meus irmãos, dizia ele, poderão ganhar suas vidas honestamente se trabalharem juntos. A mim só resta comer o gato e fazer um par de luvas com sua pele. Depois disso, é só esperar morrer de fome. O gato, que entendia a linguagem dos humanos, disse-lhe com ar sério: – Não se aflija, meu amo, me dê um saco e mande fazer para mim um par de botas para que eu possa andar pela floresta e verás que não foste tão desfavorecido na partilha como acreditas. O jovem, embora não pusesse muita fé no que o gato falava, lembrou-se das artimanhas que o animal fazia para capturar ratos, fingindo-se de morto dentro da farinha, até que dava o bote e abocanhava suas presas. Assim, deixou-se ser socorrido pelo gato em sua miséria. Tão logo recebeu o que pedira, o gato calçou as botas e colocou dentro do saco as ervas preferidas pelos coelhos. Assim equipado, entrou no mato e deitou-se ao lado do saco, fingindo-se de morto. Não precisou esperar muito e, para seu contentamento, um coelho, pouco esperto, aproximou-se para farejar o que havia no saco. Assim que o animal caiu na armadilha, mestre gato de um salto pulou sobre ele, feliz com sua proeza.
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Ilustração de George Cruikshank para página de abertura do conto O Gato de Botas, edição de 1864.
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Dirigiu-se, então, ao palácio real e pediu para falar com o rei, a quem entregou o coelho dizendo: – Senhor, eis uma bela caça que meu amo, o marquês de Carabá, (este foi o nome que o gato resolveu de bom grado dar ao seu dono), envia-lhe como presente. – Diga ao seu amo, – respondeu o rei, – que agradeço a oferta. Algum tempo depois, o gato saiu novamente para caçar. Tão logo colocou o saco no chão, duas perdizes caíram na armadilha. Como da outra vez, o gato ofereceu a regalia como presente ao rei, que recebeu as aves com prazer. E assim fez o gato por mais duas ou três vezes. Nunca se esquecendo de dizer que a caça era um presente do seu amo, o marquês de Carabá. Tanto visitou o palácio, que certa vez soube que o rei sairia no dia seguinte para passear às margens do rio com sua filha, a princesa mais bela do mundo. Correu para casa e disse ao seu dono: – Se seguires meus conselhos, sua fortuna está próxima. Amanhã, tão logo o dia amanheça, deverás banhar-se no rio no lugar onde vos indicarei. O resto, deixas por minha conta! O marquês de Carabá fez o que seu gato lhe disse, sem saber ao certo no que aquilo ia dar. Enquanto ele se banhava, o rei veio a passeio e o gato mal avistou a carruagem real pôs-se a gritar: – Socorrei, meu amo, o marquês de Carabá, está se afogando! Ao ouvir isso, o rei meteu a cabeça pela janela e reconheceu o gato que lhe havia dado tantos presentes. Ordenou, então, que seus guardas descessem da carruagem e salvassem das águas o gentil cavalheiro. Sem demora, o gato aproximou-se do rei e lhe disse que, enquanto o marquês de Carabá banhava-se no rio, um grupo
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de ladrões malvados havia levado não apenas sua carruagem, como também suas roupas. Então, o rei ordenou aos oficiais de seu guarda–roupa que trouxessem as suas mais belas vestimentas para o rapaz. Já com os belos trajes, que ressaltavam seus traços, pois ele era um belo rapaz, o marquês de Carabá apresentou-se diante do rei, de quem recebeu mil agrados. A princesa não deixou de lhe lançar dois ou três olhares respeitosos e um pouco ternos, que ele adivinhou, amorosos. O rei convidou-lhe para que subisse na carruagem e passeasse com eles. O que o rapaz aceitou sem demora. O gato, encantado ao ver que seus desejos começavam a se realizar, seguiu na frente e encontrou alguns camponeses que estavam colhendo trigo e lhes disse: – Boa gente, se não disserdes ao rei que toda essa colheita pertence ao marquês de Carabá, vós virareis picadinho de carne. Mal se aproximou do campo de trigo, o rei perguntou: – De quem é essa colheita? Ao que os camponeses responderam: – É do marquês de Carabá, majestade –, pois a ameaça do gato os havia deixado com medo. – Tens uma bela plantação, – disse o rei, dirigindo-se ao marquês de Carabá. – Sim, é um belo prado de onde não me falta abundância. O mestre gato, que sempre ia à frente, aproximou-se de um grupo de camponeses que amontoava o trigo e disse com firmeza: – Boa gente que mói o trigo, se não disserdes ao rei que todos esses bens pertencem ao marquês de Carabá, vós virareis picadinho de carne.
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O rei, que passou momentos depois, quis saber a quem pertencia o trigo. – É do marquês de Carabá, majestade, responderam todos os moleiros. E o rei alegrou-se ainda mais ao constatar o quanto o generoso e bonito rapaz era próspero. O gato continuou seguindo na frente e a todos que encontrava no caminho fazia o mesmo pedido.
Ilustração de George Cruikshank para o conto O Gato de Botas. O gato apresenta seu amo ao rei como sendo o Marquês de Carabá, 1864.
Finalmente, chegou ao castelo do ogro, um gigante horrendo a quem realmente pertenciam todas as terras e riquezas que o rei havia contemplado. O gato teve o cuidado de conversar com os serviçais do ogro para saber que poderes ele tinha. Só depois de muito bem informado, pediu para ser levado à presença do dito cujo. Mal se aproximou do ogro, fez uma referência e disse-lhe: – Não poderia deixar de cumprimentá–lo ao passar por suas terras, pois sei que és um mago muito poderoso. Tão poderoso que podes transformar-se em todo tipo de animal. – É verdade –, respondeu o ogro, que além de malvado, era muito orgulhoso dos próprios poderes. – E para provar, vou transformar-me em um leão. O gato assustou-se ao ver o enorme leão diante de si e ganhou imediatamente o telhado, não sem muita aflição, pois sabia que suas botas não valiam nada para se equilibrar sobre as telhas, onde suas garras lhe seriam muito mais úteis. Assim que o ogro voltou à forma normal, o gato desceu do telhado e confessou, ainda trêmulo, que tinha tido bastante medo.
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– Asseguraram-me também, mas nisso não posso crer, que podes transformar-se em pequenos animais, como um rato, por exemplo. Confesso que acho essa proeza impossível. – Impossível, – gritou o ogro –, pois verás do que sou capaz. E mal acabou de falar tomou a forma de um rato que se pôs a correr pelo assoalho. O gato se jogou sobre ele e devorou-o sem piedade. Enquanto isso, o rei, que ao longe avistou o belo palácio, quis aproximar-se para conhecer o dono daquele lugar tão bonito. O gato, que reconheceu o barulho da carruagem, abriu a porta do castelo fazendo uma reverência e dizendo: – Bem–vindo ao castelo do marquês de Carabá. – Como? –, admirou-se o rei. Este castelo também pertence ao marquês de Carabá? Quero conhecê–lo por dentro. O marquês tomou a princesa pela mão e seguiu o rei, que entrou na frente, admirado com tanta beleza. Finalmente, chegaram a um belo salão, onde estava servido um magnífico almoço, pois o ogro receberia seus amigos naquele dia. Mas sabendo que o rei ali se encontrava, eles não ousaram entrar. O rei, admirado com tanta beleza e fartura, e vendo que a princesa gostara do rapaz, mal terminou de comer foi logo dizendo: Ilustração de Gustave Doré para o conto O Gato de Botas, edição francesa de 1883.
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– Gostaria que vos, caro marquês de Carabá, sejais meu genro. O marquês fez uma longa reverência e aceitou casar-se com princesa. O gato foi nomeado assessor do marquês de Carabá, que logo foi coroado como príncipe, e só corria atrás dos ratos para se divertir. M oral Alguns conhecem a vantagem de receber uma boa herança, Passada de geração em geração de pai para filho. Mas outros aprendem que usar a inteligência, Vale mais que todos bens recebidos e traz abundância. PERRAULT, Charles. Contes. Édition présentée, établie et annotée par Jean–Pierre Colinet. Paris: Gallimard, 1981, p. 157–161. Tradução de Maria Viana.
A s F adas Era uma vez uma viúva que tinha duas filhas: a mais velha parecia-se tanto como ela em gênio e feições, que quem olhava para ela era como se visse a mãe. Eram as duas tão desagradáveis e orgulhosas que ninguém podia conviver com elas. A caçula, que era o verdadeiro retrato do pai, pela doçura e honestidade, era uma das moças mais belas da região. Como, naturalmente, amamos o que nos é semelhante, aquela mãe era louca pela filha mais velha e tinha terrível aversão pela caçula. Fazia-a comer na cozinha e trabalhar sem parar. A pobre criança era obrigada, entre outras coisas, a ir duas vezes por dia à fonte, que ficava bem longe da casa onde moravam, para lá buscar um pote grande, transbordando de água. Um dia, quando estava na fonte, chegou perto dela uma pobre mulher que lhe pediu água para beber.
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– Pois sim, minha boa mulher! – Disse a bela moça. Depois de enxaguar depressa o pote, a jovem buscou água no melhor lugar da fonte e ofereceu à mulher, segurando a vasilha para que a velha senhora pudesse beber mais facilmente. Depois de ter saciado sua sede, a boa mulher disse-lhe: – Você é tão bela, tão boa e gentil que não posso deixar de lhe conceder um dom. (Pois a velha senhora era uma fada, que havia tomado a forma de uma pobre mulher de aldeia, para ver até onde ia a gentileza da jovem). – Dou a você o dom – continuou a fada – de que a cada palavra que disser, saia da sua boca uma flor e uma pedra preciosa. Logo que a jovem chegou em casa, sua mãe repreendeu-a por voltar tão tarde da fonte. – Perdoe-me, mamãe, por ter demorado tanto. Disse a pobre menina. E ao dizer tais palavras, lhe saiam pela boca duas rosas, duas pérolas e dois grandes diamantes. – Que vejo? Disse a mãe espantada – parece que estão saindo pérolas e diamantes da sua boca! – De onde vem isso, minha filha? (E essa foi a primeira vez que a chamou de filha.) A jovem contou o que acontecera, e, enquanto falava, pedras preciosas jorravam de sua boca. – Realmente – disse espantada a mãe. – Veja, Fachon, que preciosidades saem da boca de sua irmã quando ela fala. Não gostaria você de receber o mesmo dom? Vá até a fonte e quando a velha senhora lhe pedir água, seja gentil ao servi-la. – Eu me recuso a ir à fonte! – Eu ordeno que você vá, agora! – Repreende-lhe a mãe. Ela foi, mas com muita má–vontade. Antes de sair, a jovem pegou a mais bela taça de prata que tinha em casa. Mal chegou à fonte, viu uma
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Ilustração de Gustave Doré para o conto As Fadas, edição francesa de 1883.
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bela senhora, magnificamente vestida, sair do bosque. Ela lhe pediu água. Era a mesma fada que havia aparecido à sua irmã, mas estava vestida como uma princesa, justamente para ver testar a honestidade da jovem. – A senhora acha que vim até aqui para servi-la? Justamente, eu trouxe este cálice de prata para lhe oferecer água, mas já aviso: sirva-se com ele se quiser. – Você é bastante honesta – replica a fada sem se irritar. – Mas é também arrogante. E lhe ofereço por dom, que a cada palavra que sair da sua boca, será acompanhada de duas serpentes e de dois sapos horrendos. – Oh, céus! Grita a mãe ao vê-la – O que aconteceu? A culpa é da sua irmã. Ela me pagará. E corre em direção à filha caçula, para espancá-la. A pobre garota se esconde na floresta mais próxima. O filho do rei, que estava por ali caçando, a encontra, e admirado com sua beleza, lhe pergunta por que ela está chorando sozinha naquela floresta. – Ah! senhor, escondo-me de minha mãe que quer me castigar. E o filho do rei, que viu sair de sua boca cinco ou seis pérolas e outros tantos diamantes, a consola e pergunta como aquilo era possível. A jovem, conta-lhe toda a sua aventura. O filho do rei se apaixona por ela; e, considerando-se que tal dom valia mais do que poderia lhe dar qualquer outra jovem, mesmo se fosse uma princesa, a conduz ao palácio e casa-se com ela. Quanto à irmã, ela ficou tão insuportável desde então, que a própria mãe a expulsou de casa e, infelizmente, depois de muito andar sem encontrar quem a quisesse receber, morreu sozinha em um canto do bosque.
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M oral As armas e as pedras preciosas Podem ter poder sobre o espírito, Mas as palavras gentis e doces Têm mais força e são ainda mais valiosas.
O utra
moral
Exige cuidados, a gentileza dispensada E também um pouco de complacência. Mas cedo ou tarde se terá a recompensa. E, muitas vezes, quando menos se espera. PERRAULT, Charles. Contes. Édition présentée, établie et annotéepar Jean–Pierre Colinet. Paris: Gallimard, 1981, p. 165–167. Tradução de Maria Viana.
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Algumas palavras sobre o conto As fadas A palavra fada deriva do termo latino fatum, que significa destino, fatalidade. Nas novelas de cavalaria e romances corteses da Idade Média essa palavra era usada para designar as damas que tinham poderes mágicos. Na atualidade, as fadas são consideradas seres fantásticos, de grande beleza e bondade, dotadas de virtudes e poderes sobrenaturais. Estranhas fadas! E mais estranhas ainda quando as olhamos de perto. Os filólogos são cate góricos: seu nome vem do latim, fatum: o destino. Por essa vertente, elas descendem em linha direta das Parcas, que tecem nossa vida e a interrompem sem aviso. Seriam elas as únicas divindades que sobreviveram ao paganismo e se misturaram sem dificuldade às crenças cristãs. Nesse caso, podemos nos perguntar, com os folcloristas e historiadores, se não se trataria de um culto anterior, que nos devolveria às crenças da humanidade primitiva e se manteria como um substrato através das religiões e superstições (Marc Soriano. In: COELHO, 2003, p.73) Se consideramos essa hipótese da origem mítica do termo, teríamos uma explicação para o fato de que simbolicamente esses seres ainda tenham grande poder sobre o inconsciente coletivo, ainda que tenham sido esvaziadas de sua essencialidade primitiva. Interessante observar que no conto de Perrault temos uma dualidade no personagem da fada. Se para a primeira irmã que vai à fonte, ela aparece maltrapilha e lhe dota de riqueza; para a segunda, ela se apresenta como uma linda dama, que reconhece a franqueza da irmã, que não quer servi-la, mas imputa sobre ela um grande castigo, que a leva a uma morte solitária no abandono da floresta. Portanto, temos dois aspectos da fada no mesmo personagem, apontando para o fato de que as fadas podem ser boas ou más, a depender da maneira como o ser humano traça seu próprio destino. Nesse conto, a heroína não tem que enfrentar perigos, tem apenas que ser gentil e generosa, atitude aparentemente fácil de ser executada, mas não é o que percebemos ao assistir à punição imputada à outra irmã, que não é castigada por não servir à fada, mas por ter sentimentos arrogantes e ser malvada.
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C inderela
ou os sapatinhos de vidro
Era uma vez um fidalgo que se casou em segundas núpcias com uma das mulheres mais soberbas e orgulhosas que já se viu. Ela já tinha duas filhas que em tudo pareciam com ela. O marido, por sua vez, tinha uma filha que era de uma doçura e bondade sem igual: puxara à mãe, que fora boníssima. Nem bem se casaram, a madrasta foi logo manifestando seu mau gênio: não podia suportar as boas qualidades da bela enteada, que tornavam suas filhas ainda mais detestáveis. Por isso, obrigava a jovem a fazer as mais terríveis tarefas domésticas. Era ela quem lavava e lustrava as baixelas de prata, esfregava as escadas, limpava os quartos da madrasta e das suas filhas. Ela dormia na parte de cima da casa, no sótão, em um colchão de palha, enquanto as irmãs dormiam em quartos assoalhados, mobiliados com camas modernas e espelhos, onde podiam se ver da cabeça aos pés. A pobre garota sofria tudo com paciência e não ousava queixar-se ao pai, que a repreenderia por isso, pois era a esposa quem governava a casa. Depois que terminava suas tarefas, a moça recolhia-se em um canto da chaminé e sentava-se nas cinzas, por isso, era conhecida como Borralheira. A irmã caçula, que não era tão perversa como a mais velha, lhe chamava de Cinderela. Apesar de andar sempre maltrapilha, Cinderela era cem vezes mais bonita que suas irmãs, que se vestiam magnificamente. Ocorreu que o filho do rei daria um baile, para o qual todas as pessoas da Corte foram convidadas, inclusive as irmãs de Cinderela, pois desfrutavam de certo prestígio na região. Ficaram, portanto, muito satisfeitas e ocupadas em escolher os vestidos e os penteados que lhes
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cairiam melhor. Enquanto isso, mais trabalho sobrava para Cinderela, que tinha que passar as roupas e engomá-las. Não se falava de outra coisa na casa, a não ser do que vestiriam na ocasião. – Eu – dizia a mais velha – usarei meu vestido de veludo vermelho com enfeites da Inglaterra. – Eu – dizia a caçula – vestirei uma saia modesta, mas em compensação usarei meu manto bordado com flores de ouro e meu broche de diamantes, que não é em nada modesto. Contrataram ainda uma boa cabelereira para lhes pentear os cabelos à moda da época e mandaram comprar as pintas de tafetá que colariam no rosto. Chamaram Cinderela para pedir-lhe uma opinião, pois ela tinha muito bom gosto. A jovem aconselhou-as da melhor maneira possível e até se ofereceu para ajudar a penteá-las. Elas aceitaram. Enquanto eram penteadas, comentaram: – Cinderela, você não gostaria de ir ao baile? – Ah!, não zombem de mim! Era só o que me faltava. – Você tem razão. Seria mesmo uma piada uma Borralheira no baile real. Qualquer outra pessoa, no lugar de Cinderela, teria feito um penteado mal feito, mas Cinderela penteou as irmãs com perfeição. As duas estavam tão tomadas pela alegria por ir ao baile, que ficaram quase dois dias sem comer e arrebentaram mais de dozes cordões tentando fechar o corpete para afinar a cintura e não saíam da frente do espelho. Enfim, chegou o grande dia. Quando as irmãs saíram de casa, Cinderela as acompanhou com os olhos até perdê-las de vista e começou a chorar. Ao vê-la desfeita em lágrimas, sua Madrinha lhe perguntou porque chorava tanto. – Eu queria tanto... Eu queria tanto... – Mergulhada em lágrimas e soluços, ela não conseguia terminar a frase.
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Mas a Madrinha, que na verdade era uma fada, disse-lhe o seguinte: – Você gostaria de ir ao baile, não é? – Oh! Sim! – Suspirou Cinderela. – Ah! Bom! Se você se comportar bem, farei com que você vá ao baile. Conduziu-a ao seu quarto e disse-lhe: – Vá até o jardim e me traga uma abóbora. Cinderela desceu imediatamente ao jardim, onde colheu a mais bela que encontrou, ainda que não entendesse como uma abóbora poderia ajudá-la a ir ao baile. A Madrinha escavou a abóbora, deixando somente a casca; bateu sua varinha sobre ela e a abóbora se transformou em uma bela carruagem dourada. Em seguida, ela olhou dentro da ratoeira, onde havia seis camundongos ainda com vida. A Madrinha mandou que Cinderela abrisse o alçapão da ratoeira. Cada camundongo que saía recebia um golpe de sua varinha e era imediatamente transformado em um belo cavalo. E que bela atrelagem faziam os seis cavalos malhados de cinza. Como a Madrinha estivesse com dificuldade em achar um cocheiro, Cinderela falou: – Vou ver se encontro um rato na ratoeira, poderemos transformá–lo em um cocheiro. – Você tem razão – Respondeu-lhe a Madrinha. – Vá buscar. Cinderela entregou-lhe a ratoeira, onde havia três ratos graúdos. A Madrinha escolheu o mais bigodudo deles e tocando-lhe com sua varinha transformou-o em um cocheiro gordo, com o mais belo bigode que já se viu. Em seguida disse:
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Ilustração de Gustave Doré para o conto Cinderela, edição francesa de 1883.
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– Vá até o jardim. Procure atrás do regador, ali você encontrará seis lagartos. Tão logo ela os entregou à Madrinha, eles foram transformados em seis lacaios, que subiram na carruagem, trajando roupa de gala, e sentaram-se em seus lugares como se nunca tivessem feito outra coisa na vida. Então a fada disse à Cinderela: – Muito bem, você já tem como ir ao baile. Está satisfeita? – Sim, mas como poderei ir usando essas roupas? A Madrinha apenas tocou com a varinha e no mesmo instante sua roupa se transformou em um belíssimo vestido de ouro e prata, todo enfeitado com pedras preciosas. Em seguida, deu-lhe um par de sapatinhos de vidro, os mais lindos do mundo. Depois de vestida e enfeitada, Cinderela entrou na carruagem, foi quando a Madrinha lhe recomendou que não ficasse no baile nem um minuto depois da meia–noite, pois a carruagem voltaria a ser uma abóbora; os cavalos, camundongos; os lacaios, lagartos e que seu o vestido ficaria maltrapilho. Cinderela prometeu à Madrinha que sairia do baile antes das doze badaladas. Partiu. Mal cabia em si de tanto contentamento. O filho do rei, ao saber que acabara de chegar ao palácio uma linda princesa desconhecida, foi logo ao seu encontro e estendeu-lhe a mão para ajudá-la a descer da carruagem, conduzindo-a para o salão, onde estavam os convidados. Diante da beleza da moça, fez-se um profundo silêncio, pararam a dança e os violinos emudeceram. Todos pararam para contemplar a beleza daquela desconhecida. Só se ouvia as pessoas murmurando – Ah! Como é bela! O próprio rei, que já estava bem velhinho, não conseguia tirar os olhos da jovem, enquanto dizia à rainha que há muitos anos não via pessoa tão bela e encantadora. As damas não cansavam de admirar
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seu belo vestido e seu penteado, para imitá-la no dia seguinte, caso descobrissem tecidos tão belos e bordadeiras tão hábeis. O filho do rei conduziu-a ao lugar de destaque do salão e convidou-a para dançar. A jovem dançou com tanta Ilustração de Walter Crane para o conto Cinderela. O príncipe convida Cinderela para dançar, edição de 1873.
graça que causou ainda mais admiração nos presentes.
Uma maravilhosa ceia foi servida, mas o príncipe não provou nada, tão fascinado estava pela beleza da moça. Cinderela sentou-se ao lado das irmãs e foi muito gentil, partilhando as laranjas e os limões que recebera do filho do rei com elas. Isso as deixou admiradas, pois nem mesmo conheciam aquela bela jovem. Enquanto conversavam, Cinderela ouviu soar um quarto para a meia–noite. No mesmo instante, fez uma reverência para os convidados e partiu em disparada. Tão logo chegou em casa, foi procurar a Madrinha e depois de agradecê-la, disse que gostaria muito de ir ao baile do dia seguinte, pois fora convidada pelo príncipe. Enquanto contava tudo que acontecera à Madrinha, as irmãs bateram à porta, Cinderela foi abrir. – Como voltaram tarde! – Disse-lhes bocejando, espreguiçando e esfregando os olhos, como se tivesse acabado de acordar; apesar de não ter tido a menor vontade de dormir desde que as deixara no baile. – Se você tivesse ido – disse-lhe uma das irmãs –, não teria tido motivo para se aborrecer: apareceu lá uma princesa, a mais bela que já se viu. Ela foi muito gentil conosco, deu–nos laranjas e limões.
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Ilustração de Walter Crane para o conto Cinderela. Ao fugir do príncipe, Cinderela deixa cair seu sapatinho de vidro, edição de 1873.
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Cinderela não cabia em si de contente e perguntou-lhes o nome da princesa. As irmãs responderam que nunca a tinham visto antes e que o príncipe ficara muito triste quando ela partiu apressada. E que ele faria qualquer coisa para saber quem ela era. Cinderela sorriu e disse: – Era mesmo tão bela essa princesa? Meu Deus, como vocês são felizes. Queria tanto conhecê-la. Ah, Javotte, me empresta seu velho vestido amarelo de uso diário para que eu possa ir ao baile. – Era só o que me faltava! – Disse Javotte. – Emprestar meu vestido a uma Borralheira horrorosa como você! Só se eu fosse uma idiota. Cinderela já esperava por essa recusa, o que a deixou muito satisfeita. Teria ficado em uma situação difícil se Javotte lhe tivesse emprestado o vestido. No dia seguinte, as irmãs foram ao baile e Cinderela também. Mas estava ainda mais bonita e bem vestida do que na noite anterior. O filho do rei não saiu de perto dela e fazia de tudo para agradá-la usando palavras doces. Cinderela gostou tanto disso que chegou até a esquecer da recomendação da Madrinha e não viu o tempo passar. De repente, ouviu soar a primeira badalada da meia– noite. Levantou-se num salto e fugiu tão ligeira como uma corça. O príncipe seguiu-a, mas Ilustração de Gustave Doré para o conto Cinderela, edição francesa de 1883.
não conseguiu alcançá-la. Na
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fuga, Cinderela deixou cair do pé um dos sapatinhos de vidro. O príncipe apanhou-o e guardou com cuidado. Cinderela chegou em casa ofegante, sem carruagem, sem lacaios e maltrapilha. Nada lhe restou do magnífico traje, só um dos sapatinhos, já que o outro ficará para trás. Interrogaram os porteiros do palácio, pois o príncipe queria saber se eles não tinham visto uma princesa sair do castelo. Eles responderam que só tinham visto sair uma jovem muito mal vestida, que mais parecia uma camponesa e não uma princesa. Quando as duas irmãs voltaram do baile, Cinderela quis saber se haviam se divertido novamente e se a bela dama voltara ao baile. Elas responderam que sim, mas que a moça fugira à meia–noite. Porém, fora tão rápida na fuga que deixara cair um dos seus sapatinhos de vidro, a coisa mais linda deste mundo. Contaram também que o filho do rei o apanhara e ficou o resto do baile a contemplá–lo. Por certo estava apaixonado pela formosa moça, a dona do sapatinho. Disseram a verdade, pois poucos dias depois, o filho do rei mandou proclamar ao toque de trompas que se casaria com aquela em cujo pé o sapato servisse perfeitamente. Os guardas começaram por experimentá–lo nas princesas, depois foi a vez das duquesas, enfim, em todas as jovens da corte, mas em vão. Levaram o sapatinho na casa das duas irmãs, que não mediram esforços para calçá–lo, mas sem sucesso. Cinderela as observava e, reconhecendo seu sapato, e disse-lhes: – Deixem-me ver se ele me serve. As irmãs não contiveram o riso e zombaram dela. Mas um fidalgo que fazia a prova do sapato, tendo visto o quanto Cinderela era bela, disse que o pedido era justo e que o príncipe havia lhe ordenado a experimentá–lo em todas as moças do reino.
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Pediu à Cinderela que se sentasse, calçou o sapato em seu pezinho e viu que ele servia perfeitamente. Era como se tivesse sido moldado para o pé da moça. As irmãs ficaram ainda mais espantadas quando Cinderela tirou do bolso o outro sapatinho do par e com ele calçou o outro pé. Nesse instante, a Madrinha chegou e tocou no vestido de Cinderela com sua varinha. Isso fez com que ele ficasse ainda mais maravilhoso do que os outros dois. Então, as irmãs compreenderam que ela era a bela jovem que tinham conhecido no baile. Ajoelharam-se aos pés da jovem e pediram perdão pelos maus–tratos que lhe haviam feito. Cinderela as ajudou a se levantar e abraçando-as disse-lhes que as perdoava de coração e pediu que elas lhe quisessem bem pelo resto da vida. Elegantemente trajada como estava, Cinderela foi levada à presença do príncipe, ela lhe pareceu mais bela do que nunca. Pouco tempo depois eles se casaram. Cinderela, que era tão boa, quanto era bela, instalou as duas irmãs no palácio e as duas se casaram com dois nobres da corte. M oral A beleza é um tesouro de verdade, Que não nos fartamos de admirar. Mas aquele dom que chamamos bondade, Não tem preço e ainda mais deve-se estimar. Foi isso que Cinderela aprendeu com sua Madrinha, Que não só a vestiu, mas educou com zelo tal, Que um dia finalmente fez dela uma rainha. (Pois deste conto também tiramos uma moral.)
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Belas, mais do que estar bem enfeitadas, Para vencer a batalha e ganhar um coração, A doçura é a dádiva mais preciosa das fadas, Enfeite-se com ela, e você terá a compensação.
O utra
moral
Ter espírito, valor e coragem, É por certo uma vantagem. Um bom berço e bom senso, São valores que muito podem ajudar. Esses dons do céu trazem esperança, Mas para o seu avanço isso de nada valerá, Se para o seu caminho facilitar, Não houver uma madrinha a lhe orientar. PERRAULT, Charles. Contes. Édition présentée, établie et annotée par Jean–Pierre Colinet. Paris: Gallimard, 1981, p. 171–178. Tradução de Maria Viana.
Algumas palavras sobre o conto Cinderela ou Sapatinho de vidro A história que você acabou de ler é bem diferente da recolhida da tradição oral pelos irmãos Grimm. O tema da rivalidade fraterna está presente nas duas versões, mas, se no final da versão francesa as irmãs são perdoadas e gratificadas com bons casamentos; na versão alemã, além de terem mutilados os próprios pés para enganar o príncipe na prova dos sapatos, elas são cegadas pelos pombos, quando estão a caminho da igreja para assistir ao casamento de Cinderela. Todavia, na versão dos Grimm as irmãs são bem cruéis. Além de não deixar a jovem ir ao baile, a mais velha exige que ela realize várias tarefas para as quais
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conta com a ajuda de pombos para cumprir: selecionar uma bacia de lentilhas, um saco de favas e de grãos de ervilhas. Portanto, simbolicamente, a heroína é desafiada a realizar tarefas aparentemente impossíveis, o que nos faz lembrar do mito de Eros e Psiquê. Portanto, faz mais sentido que, na versão dos Grimm, a crueldade das irmãs seja punida severamente. Mas o flagelo não é provocado pela heroína, diferente da versão Maria Borralheira, recolhida por Sílvio Romero em Sergipe, conforme poderá ser verificado no sétimo capítulo. A posição da madrasta também é diferente nas duas versões. Se no conto francês ela é apenas mencionada, na versão dos irmãos Grimm, essa personagem tem participação ativa no decorrer da trama, é ela, por exemplo, que estimula as filhas a mutilarem os pés para que sirvam nos sapatos de vidro. A mãe de Cinderela também é personagem importante na versão dos Grimm, pois é a árvore plantada sobre o seu túmulo que tem a função de benfeitora da jovem, tanto ao vesti-la para o baile, como na delação da presença de sangue nos sapatos das irmãs invejosas. A atuação do príncipe também é diferente nos dois casos, na terceira noite, ele manda untar as escadas com piche: quando Cinderela foge de novo, um de seus sapatos fica preso no piso e ele poderá, assim, encontrá-la. Além disso, no conto de Perrault é um fidalgo quem vai procurar a dona do sapatinho, já na versão alemã, é o próprio príncipe que se incube dessa tarefa. Os sapatinhos de vidro e a abóbora que vira carruagem também não aparecem em outras versões. Alguns estudiosos vêm nesses elementos uma certa zombaria por parte de Perrault, pois se uma Borralheira pode se transformar em uma princesa, ratos e camundongos poderiam ser metamorfoseados em cavalos e cocheiros. Quanto aos lagartos, o escritor pode ter escolhido esses animais baseado na expressão francesa “preguiçoso como um lagarto”, já que à época em que os contos foram escritos, a preguiça dos lacaios era motivo recorrente de troça. Sobre o sapato de cristal, durante muito tempo os estudiosos discutiram essa questão. Como em francês os termos vair (diferentes tipos de pele) e verre (vidro, cristal) são escritas de formas diferentes, mas têm pronúncia semelhante, considerou-se a hipótese de que Perrault, ao ouvir a história, havia se confundido. Mas na atualidade não há dúvida de que o escritor escolheu o termo verre deliberadamente.
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