A visão tradicional da relação entre a História e a Memória é relativamente simples. A função do historiador é ser um “lembrador”, um guardião da Memória dos acontecimentos públicos, postos por escrito em benefício dos seus atores, para lhes dar fama, e também para benefício da posteridade que poderá, assim, aprender com o seu exemplo. A História, como escreveu Cícero numa passagem que tem sido repetidas vezes citadas a partir desse momento, é “a vida da memória” (vitae memoriae). Historiadores tão diversos quanto Heródoto, Froissart e Lord Clarendon afirmaram escrever para manter viva a Memória de grandes feitos e de grandes acontecimentos. Dois historiadores bizantinos defenderam longamente este ponto de vista nos seus prólogos, utilizando as metáforas tradicionais do tempo visto como um rio e das ações apresentadas como textos que podem ser apagados. Anna Commena descreveu a História como um “bastião” contra a “corrente do tempo” que arrasta tudo para “as profundezas do esquecimento”, e Procópio declarou ter escrito a História das guerras Goda, Pérsica e outras para “impedir que o longo curso do tempo não pudesse sepultar feitos de importância singular por falta de um registro, e assim abandoná-los ao esquecimento e apagá-los completamente” . A idéia de que as ações são textos encontra-se também na imagem do “livro da memória” utilizada por Dante e por Shakespeare, que escreveu sobre “apagar seu nome dos livros da Memória” . Esta visão tradicional da relação entre a Memória e a História escrita, na qual a Memória reflete aquilo que realmente aconteceu e a História (235) reflete a Memória, parece-nos agora um pouco simples de mais. Tanto a História quanto a memória passaram a ser encaradas de forma cada vez mais problemática. Lembrar o passado e escrever sobre ele já não podem ser consideradas atividades inocentes. Nem as recordações nem as histórias nos parecem objetivas. Em ambos os casos estamos a aprender a estar atentos à seleção consciente inconsciente à interpretação e à distorção. Nos dois casos esta seleção, interpretação e distorção são fenômenos socialmente condicionados. condicionados. Não se s e trata do trabalho de indivíduos isolados.
O primeiro explorador sério do, “ quadro social da Memória”, como lhe chamou, foi o sociólogo francês Maurice Halbwachs nos anos 20 . Halbwachs argumentou que as recordações são construídas por grupos sociais. Os indivíduos recordam, no sentido literal, físico. Contudo, são os grupos sociais que determinam aquilo que é “memorável” e também a maneira como será recordado. Os indivíduos identificam-se com acontecimentos públicos importantes para o seu grupo. “Recordam” muita informação da qual não tiveram experiência direta. Uma notícia, por exemplo, pode constituir em si um acontecimento, um acontecimento que se trona parte da vida de cada um. Fiel discípulo de Emile Durkheim, Halbwachs redigiu os seus argumentos sobre a sociologia da Memória de forma arrojada, para não dizer extremista. Halbwachs não afirmou (como o psicólogo de Cambridge Frederik Bartlett o acusou de fazer) que os grupos sociais recordam no mesmo sentido literal em que os indivíduos fazem . Contudo, Halbwachs foi vulnerável à crítica mais precisa do grande historiador francês Marc Bloch, que apontou o perigo de importar termos do foro da psicologia individual, adicionando-lhes simplesmente o adjetivo “coletivo” (como nos casos de représentations collectives, mentalités collectives , conscience collective bem como de mémoire col ( 236 ) lective) . De qualquer forma, Bloch estava preparado para adotar a frase mémoire collective e analisar os costumes campesinos nestes termos interdisciplinares, notando, por exemplo, a importância dos avós na transmissão das tradições . Halbwachs estabeleceu uma nítida distinção entre memória coletiva, que é uma construção social, e a história escrita, que considerou - de um forma positivista e algo antiquada - objetiva. No entanto, a forma como os estudos sobre a história da escrita histórica a tratam é muito semelhante à maneira como Halbwachs tratou a Memória, como um produto de grupos sociais como os senadores romanos, os mandarins chineses, os monges beneditinos, os professores universitários, etc. Tem vindo a tornar-se um lugar comum assinalar que em diferentes lugares e épocas os historiadores consideraram “memoráveis” diferentes aspectos do passado (batalhas, política, religião, economia, etc.) e que apresentaram o passado de maneiras muito
diversas (concentrando-se em acontecimentos e estruturas, em grandes homens ou na população em geral, segundo o ponto de vista em que se enquadram). É porque partilho desta última visão da história da História que escolhi o título “A História como Memória Social” para este trabalho, usando o termo como uma designação abreviada, que resume o complexo processo de seleção e de interpretação numa fórmula simples, e sublinha a homologia existente entre as maneiras como o passado é registrado e recordado . A frase “memória social” e o termo “relativismo” levantam problemas incômodos, pelo que tratarei de justificar a minha posição como segue. As analogias entre o pensamento individual e o pen ( 237 ) samento de grupo são tão inconsistentes quanto fascinantes. Se utilizarmos termos como “memória social”, arriscamo-nos a estar a materializar conceitos. Por outro lado, se nos recusamos a usar tais termos, corremos o perigo de não nos apercebermos das diferentes maneiras como as idéias individuais são influenciadas pelos grupos a que os indivíduos pertencem. Quanto ao relativismo histórico, não defendo que qualquer relato do passado seja tão bom (digno de confiança, plausível, penetrante …) como qualquer outro; alguns investigadores estão melhor informados ou são mais rigorosos do que outros. O que acontece é que temos acesso ao passado (tal como ao presente) apenas através de categorias e esquemas (ou, como diria Durkheim, de “representações coletivas”) da cultura que nos é própria. Neste ponto talvez seja possível redefinir o lugar da História nesta série de ensaios interdisciplinares. Os historiadores interessam-se ou, pelo menos, necessitariam interessar-se pela Memória, sob dois pontos de vista. Em primeiro lugar, precisam de estudar a Memória como uma fonte histórica, para produzir uma crítica da fiabilidade da reminiscência, na linha da crítica tradicional de documentos históricos. Esta tarefa vem sendo levada a cabo, de fato, desde os anos 60, quando os historiadores do século XX se aperceberam da importância da “história oral” . Até mesmo aqueles de entre nós que trabalham sobre períodos mais recuados temos algo a aprender com o movimento da história oral, uma vez que necessitamos estar atentos aos testemunhos orais e às tradições subjacentes a muitos documentos escritos.E em segundo lugar, os historiadores interessam-se, ou ddeveriam interessar-se, pela Memória enquanto
fenômeno histórico; com aquilo a que se poderia chamar a história social da recordação. Dado que a Memória social, tal como a Memória individual, é seletiva, precisamos de identificar os princípios de seleção e de observar a maneira como variam de lugar para lugar, ou de um grupo para outro, bem como a forma como se modificam ao longo do tempo. As recordações são maleáveis e necessitamos compreender a forma como são moldadas e por quem. Estes são tópicos que suscitam a atenção dos histo ( 238 ) riadores apenas no final dos anos 70, mas que são hoje objeto, em toda a parte, de livros, de artigos e conferências . É sobre o segundo tópico, o da história social da recordação, que gostaria de me deter, dividindo-o em três seções
ou
questões
principais.
1.Quais são os modos de transmissão das recordações públicas e como mudaram esses
modos
ao
longo
do
tempo?
2. Quais são as utilizações dessas recordações, as utilizações do passado, e que modificações
têm
sofrido?
3. Simetricamente, quais são as utilizações do esquecimento? Enormes questões: mas encará-las-ei a partir do ponto de vista relativamente restrito do historiador da Europa do início do período moderno, centrando-me mais nas tradições escritas do que nas orais e em “documentos” mais do que na “literatura”. Todavia, como iremos ver, estas dicotomias estão muito longe de ser claras ou definidas.
A TRA NSMISSÃO DA MEMÓRIA SOCIAL
As recordações são afetadas pela organização social da transmissão e pelos diferentes meios utilizados. Debrucemo-nos brevemente sobre a variedade desses meios, sobre cinco deles em particular.
1. As tradições orais discutidas, do ponto de vista do historiador, num estudo famoso de Jan Vansina. As transformações deste estudo constituem úteis indicadores das
mudanças que tiveram lugar na disciplina da História durante a última geração, nomeadamente do declínio do positivismo e do aumento do interesse pelos aspectos simbólicos
da
narrativa
.
2. O território tradicional do historiador, memórias e outros documentos escritos (em inglês records, termo relacionado com a recordação, ricordare, em italiano). Não devemos evidentemente esquecer, como acontece freqüentemente com os historiadores, que estes registros ( 239 ) não são atos de Memória inocentes, mas sim tentativas de persuadir, de moldar, a memória dos outros. Também devemos ter presente, o que nem sempre tem acontecido com os historiadores, o aviso de um perspicaz crítico literário, o sinologista Stephen Owen: “Quando lemos a escrita da memória, é fácil esquecer que não estamos a ler a própria memória mas sim a sua transformação através da escrita” .
3. As imagens, pictóricas ou fotográficas, paradas ou em movimento. Os praticantes da chamada “arte da memória”, da Antigüidade Clássica ao Renascimento, sublinharam o valo da associação, daquilo que se deseja recordar, com imagens sugestivas . Estas seriam imateriais, “imagens imaginárias”, sem dúvida: mas têm sido desde sempre construídas imagens imateriais para auxiliar a retenção e a transmissão de recordações - “Monumentos comemorativos” (memorials) como pedras tumulares, estátuas e medalhas, e “lembranças” de vários tipos. Os historiadores dos séculos XIX e XX, em particular, têm-se interessado por monumentos públicos nos últimos anos, precisamente porque estes últimos exprimiram ao mesmo tempo que moldaram a memória nacional. 4. As ações transmitem recordações tal como transmitem práticas, de mestre a aprendiz, por exemplo. Muitas delas não deixam vestígios que possam vir a ser estudados por historiadores posteriores, mas as ações rituais, em particular, são freqüentemente registradas, bem como os rituais de “comemoração”: o Remembrance Sunday em Inglaterra, ou o Memorial Day nos Estados Unidos, o 14 de julho em
França, ou o 12 de julho na Irlanda do Norte . Estes rituais são recriações do passado, atos de memória, mas são também tentativas ( 240 ) para impor determinadas
interpretações do passado, para moldar a recordação. São, em todos os sentidos, representações coletivas.
5. Uma das observações mais interessantes no estudo do enquadramento social da memória efetuado por Maurice Halbwachs disse respeito à importância de um quinto meio de transmissão da recordação: o espaço. Explicitou um aspecto implícito na arte da Memória clássica e renascentista: a importância de “colocar” as imagens que se desejam recordar em locais particulares como em palácios de memória, ou teatros de memória. Alguns dos missionários católicos no Brasil, os padres salesianos, parecem ter tido consciência da ligação existente entre espaços e recordações. Uma das suas estratégias para a conversão dos índios Bororo, como nos lembra Lévi-Strauss, era retirá-los das suas aldeias tradicionais, onde as casas estavam em filas, fazendo assim tábua rasa e preparando-se para inscrever nela a mensagem cristã . Pergunto-me muitas vezes se o movimento de fechamento europeu não terá tido efeitos semelhantes (ainda que não intencionais), apagando o passado para o desenvolvimento da industrialização. Especialmente na Suécia, onde a destruição de aldeias tradicionais e sua recolocação foi ainda mais completa do que em Inglaterra . Contudo, em determinadas circunstâncias, um grupo social e algumas de suas recordações podem resistir à destruição do seu lar . Um exemplo extremo de desenraizamento e transplante é o dos escravos negros transportados para o Novo Mundo. Apesar do seu desenraizamento, os escravos conseguiram manter viva parte da sua cultura, algumas de suas recordações, e reconstruí-la em solo americano. Segundo um dos seus mais eminentes intérpretes, o ritual do candomblé, ainda completamente praticado no Brasil, inclui uma reconstrução simbólica do espaço africano, uma espécie de compensação psicológica da perda da terra natal . ( 241 ) Do ponto de vista da transmissão de recordações, cada meio apresenta os seus pontos fortes e as suas fraquezas. Mas gostaria de colocar mais ênfase em algo que é comum a vários meios e que tem sido analisado por investigadores tão diversos como o
psicólogo Frederik Bartlett, o historiador cultural Aby Warburg, o eslavista Albert Lord: o “esquema”, associado com a tendência para representar (ou para recordar) um acontecimento em vez de outro ou uma pessoa em vez de outra . Os esquemas deste tipo não se limitam, no entanto, às tradições orais, como os exemplos que se seguem podem, à primeira vista, sugerir. No seu excelente estudo T he Great War and Modern Me
mory, o crítico americano Paul Fussell observou o que designa por “domínio da
Segunda Guerra Mundial pela Primeira”, não apenas a nível dos generais, que se espera que estejam a fazer a guerra anterior, mas também a nível dos participantes comuns . A Primeira Grande Guerra foi também encarada em termos de esquemas, e Fussell verifica a recorrência de imagens do Pilgrim’s Progress de Bunyan, especialmente do Atoleiro do Desânimo e do Vale da Sombra da Morte, em descrições da vida nas trincheiras, em livros de memórias e em jornais. Remontando um pouco mais longe, a própria escrita de Bunyan - incluindo a sua autobiografia - faz também uso de esquemas; o relato de Bunyan sobre a sua conversão é claramente modelado, consciente ou inconscientemente - é difícil distinguir - na conversão de S. Paulo tal como é descrita nos Atos dos Apóstolos . Na Europa do início do período moderno, muita gente lia a Bíblia com tanta freqüência que esta se tornara parte do próprio indivíduo, organizando as suas percepções e as suas recordações. Não seria difícil citar listas de exemplos deste processo, tais como o que se segue. Johann Kessler foi um pastor protestante suíço da primeira geração. Nas suas memórias, conta a história da forma como, segundo as suas ( 242 ) palavras, “Martinho Lutero se encontrou na estrada com Wittenberg” . Tinha ficado com um companheiro em Jena no Black Bear, onde partilharam uma mesa com um homem vestido como um cavaleiro mas lendo um livro - que depois se soube ser um saltério judaico - e disposto a falar de Teologia. “P erguntamos: ‘Senhor, pode dizer-nos se Martinho Lutero está agora em Wittenberg ou em algum outro sítio? ’ Ele respondeu, ‘Tenho a certeza de que não está em Wittenberg neste momento’[…] ‘Meus filhos’,
perguntou, ‘o que pensam de Lutero na Suíça’. Os estudantes não percebem o que se passa, até que o proprietário faz uma insinuação . A minha opinião, contudo, é que,
consciente ou inconscientemente, Kessler estruturou a sua história a partir de um protótipo bíblico, o dos discípulos que encontram Cristo na estrada para Emaús. A cadeia de exemplos poderia ser ampliada mais ainda, uma vez que a Bíblia também está cheia de esquemas, e alguns dos acontecimentos nela narrados também são apresentados como recriações de outros anteriores . No entanto, os exemplos dados são talvez suficientes para sugerir algumas das características do processo através do qual o passado recordado se transforma em mito. Utilizo, incidentalmente, o termo escorregadio “mito”, não no sentido positivista de “história imprecisa”, mas no sentido mais rico e mais positivo de história com significado simbólico, composta a partir de incidentes estereotipados e envolvendo personagens caracterizadas de forma exagerada em relação à realidade, quer se trate de heróis quer dos seus opositores. Há uma pergunta óbvia que se coloca, neste momento, ao historiador. Porque se ligam os mitos a certos indivíduos (mortos ou vivos) e não a outros? São muito poucos os governantes que se tornaram heróis na memória popular; Henrique IV de França, por exemplo, Guilherme III de Inglaterra, Frederico, o Grande. Não é qualquer santo homem, ou mulher, que se torna santo, oficial ou não oficialmente. Porquê? A existência de esquemas orais ou literários ou, de forma mais geral, de esquemas de percepção não explica porque é que estes esquemas são associados a certos indivíduos, porque e que determinadas pessoas(243) são, digamos, mais mitogências que outras. Nem é uma resposta adequada fazer o que os historiadores positivistas, com o seu espírito literal, geralmente fazem, ou seja, descrever os feitos dos governantes e santos, por mais consideráveis que possam ter sido, uma vez que o mito lhes atribui freqüentemente qualidades que nada prova terem alguma vez possuído . A transformação do frio e cinzento Guilherme III no ídolo popular protestante Rei Billy dificilmente se pode explicar em termos da sua personalidade. Na minha opinião, o elemento central para a explicação desta mitogênese é a percepção (consciente ou inconsciente) da existência de uma “parecença”, em algum aspecto ou aspectos, entre um indivíduo particular e um estereótipo corrente de herói ou de malandro -
governante, santo, bandido, bruxa, etc. Esta “parecença” estimula a imaginação das pessoas e começa a circular histórias acerca do indivíduo em questão, oralmente a princípio. No decorrer desta circulação oral, o mecanismo normal da distorção estudado pelos psicólogos sociais como levelling e sharpening entra em ação. Estes mecanismos ajudam à assimilação da vida de um indivíduo determinado a um certo estereótipo retirado do repertório de estereótipos presentes na memória social de uma dada cultura . Os bandidos transformam-se em Robin dos Bosques, roubando dos ricos para dar aos pobres. Os governantes viajam disfarçados através do seu reino para conhecer as condições de vida dos seus súditos. A vida de um santo moderno pode ser recordada como uma recriação da vida de um santo anterior: S. Carlo Borromeo foi visto como um segundo Santo Ambrósio, e Santa Rosa de Lima como uma segunda Catarina de Siena. Guilherme III de Inglaterra foi encarado como um segundo Guilherme, o Conquistador. Mas é claro que esta explicação do processo de fabricação de heróis nos meios de transmissão é insuficiente. Fornecê-la como uma explicação ( 244) completa seria politicamente ingênuo. Tenho ainda que considerar a função da Memória social. USOS DA MEMÓRIA SOCIAL
Qual a função da Memória social? É difícil encontrar um ponto de apoio numa questão tão vasta. Se um advogado contribuísse para esta série de conferências, poderia discutir a importância do costume ou do precedente, a justificação ou legitimação de ações do presente tomando o passado como referência, as funções das recordações das testemunhas perante os tribunais, o conceito de “tempo imemorial”, por outras palavras, do tempo “ durante o qual a memória humana […] não se lembra do contrário” , e as mudanças de atitudes quanto à prova de recordação conseqüente à
difusão da leitura e dos registros escritos . Como historiador cultural, considero útil abordar a questão dos usos da Memória social perguntando porque será que algumas culturas parecem mais preocupadas em recordar o seu passado do que outras. É lugar comum contrastar a preocupação
chinesa tradicional com o seu passado com a tradicional indiferença dos índios em relação ao seu. No seio da Europa encontramos também contrastes deste tipo. Apesar da sua atitude reverente para com a tradição e da preocupação com a “herança nacional”, discutida por Patrick Wright, a memória social dos ingleses é relativamente curta. Os irlandeses e os polacos, por outro lado, têm memórias sociais relativamente longas. Numa visita a Belfast, em 1969, recordo-me de ver um retrato de Guilherme III a cavalo, desenhado a giz num muro, com a inscrição “recordem 1690”. No Sul da Irlanda, a população ainda se lembra do que os ingleses lhe fizeram na época de Cromwell como se tudo tivesse acontecido no dia anterior. Na Polônia, o filme de Andrej Wajda Ashes, passado na época de Napoleão, provocou uma controvérsia nacional acerca do ( 245 ) que Wajda parecia encarar como o heroísmo fútil da Legião Polaca. Aqui, por outro lado, e quase ao mesmo tempo, o filme A carga da Brigada Ligeira foi tratado como pouco mais do que um pretexto para a demonstração dos trajes do século XIX. Os ingleses parecem preferir esquecer . Sofrem ou regozijam-se com o que o antropólogo social John Barnes designou por “amnésia estrutural” . Uma vez que a amnésia estrutural é o oposto complementar do conceito de “memória social”, rebatizá-lo-ei para “amnésia social”. Porque existe um contraste tão acentuado entre as atitudes para com o passado em diferentes culturas? Diz-se muitas vezes que a história é escrita pelos vencedores. Poderia também dizer-se que a história é esquecida pelos vencedores. Podem permitirse esquecer, enquanto os derrotados são incapazes de aceitar os acontecimentos e estão condenados a meditar sobre eles, a revivê-los e a imaginar quão diferentes poderiam ter sido. Seria possível encontrar uma outra explicação em termos de raízes culturais. Quando as temos, podemos permitir-nos esquecê-las, mas quando as perdemos, vamos em busca delas. Os irlandeses e os polacos foram desenraizados e os seus países divididos; não é surpreendente, por isso, que pareçam estar obcecados com o passado. Voltamos assim ao tema favorito de Halbwachs, a relação entre o lugar e a Memória. Os irlandeses e os polacos fornecem exemplos particularmente claros da utilização do passado, da utilização da Memória social e da utilização do mito na definição da
identidade. A razão para recordar 1690 (de forma especial), ou para recria o 12 de julho, ou para rebentar a coluna de Nelson - como o IRA fez em 1966 - ou para reconstruir o antigo centro de Varsóvia, depois de os alemães o terem destruído - tal como fizeram os polacos depois de 1945 - o objetivo de tudo isto é dizer claramente quem “nós” somos e distinguir-“nos” dos “outros”. Tais exemplos poderiam multiplicarse. No caso da Europa, são relativamente fáceis de encontrar ao longo do século XIX. ( 246 ) O final do século XIX foi descrito de forma provocatória como a era da “invenção da tradição” . Foi sem dúvida uma época de recolha das tradições nacionais, nas quais foram construídos monumentos nacionais, e estabelecidos rituais nacionais (como o dia da Bastilha), ao mesmo tempo que a história nacional passou a ocupar um lugar nas escolas européias que nunca tinham ocupado antes e não voltaria a ocupar depois. O objetivo de tudo isso era essencialmente o de justificar ou de “legitimar” a existência da Nação-Estado; quer no caso de novas nações como a Itália ou a Alemanha quer de nações mais velhas como a França, onde a lealdade nacional tinha ainda que ser criada, e os camponeses transformados em franceses . A sociologia de Émile Durkheim, com a sua ênfase na comunidade, no consenso e na coesão, carrega também ela as marcas deste período. Seria insensato colarmo-nos demasiado às idéias de Durkheim e do seu discípulo Halbwachs a este respeito, e tratar a função social da Memória social como se o conflito e a divergência não existissem. Referi-me várias vezes à Irlanda do Norte, e trata-se de um exemplo clássico, apesar de estar longe de ser o único, quer de recordações de conflitos quer de conflitos de Memória . Dada a multiplicidade de identidades sociais e a coexistência de memórias sociais, de memórias alternativas (memórias de família, memórias locais, memórias de classe, memórias nacionais, etc.), é certamente mais produtivo pensar em termos pluralísticos sobre os usos que a recordação pode ter para diferentes grupos sociais que podem ter diferentes pontos de vista quanto ao que é significativo ou “digno de memória” .
O crítico literário americano Stanley Fish cunhou a frase “comunidades interpretativas” para analisar conflitos quanto à interpretação de textos. De forma semelhante, poderia ser útil pensar em termos de diferentes “comunidades de memória” no interior de uma dada sociedade( 247 ) . É importante perguntar: quem quer que se lembre o quê e porquê? Que versão do passado se registra e se preserva? As disputas entre historiadores que apresentam relatos rivais do passado refletem por vezes conflitos sociais mais vastos e mais profundos. Um exemplo evidente é o corrente debate acerca da importância da história “feita a partir de baixo”, um debate que remonta pelo menos a Alexander Pushkin, historiador e poeta, que disse ao Czar que desejava escrever acerca do líder camponês Pugachev. A resposta do Czar foi brutalmente simples: “Um homem desses não tem história”. As recordações oficiais e não oficiais do passado podem diferir grandemente e as recordações não oficiais, que tem sido relativamente pouco estudadas, constituem por vezes forças históricas de pleno direito; a Boa Velha Lei na Guerra Camponesa Alemã de 1525, o Norman Yoke na Revolução Inglesa, etc. Sem invocar as recordações sociais deste tipo seria difícil explicar a geografia da divergência e do protesto, o fato de que algumas idéias, por exemplo, participem em diferentes movimentos de protesto século após século e outras não. A destruição sistemática de documentos que é uma característica tão comum das revoltas - pensemos nos camponeses ingleses em 1381, nos camponeses alemães em 1525, nos camponeses franceses em 1789, etc. - pode ser interpretada como a expressão da convicção de que os registros falsificaram a situação, se encontravam distorcidos a favor da classe dirigente, enquanto as pessoas vulgares se lembravam dos fatos como eles tinham realmente acontecido. Estes atos de destruição são tratados no meu último tópico, os usos do esquecimento ou da amnésia social.
OS USOS DA A MNÉSIA SOCIAL
É freqüentemente esclarecedor abordar os problemas por detrás, virá-los do avesso. Para investigar a organização social do esquecimento, as regras de exclusão, supressão ou repressão, e a interrogação: quem quer que esqueça o quê, e porquê. Amnésia remete para “amnistia”, para aquilo a que se costumava chamar de “atos de esquecimento”, o apagamento oficial de recordações de conflito no interesse da coesão social. ( 248 ) A censura oficial do passado é sobejamente conhecida, e pouco há a dizer acerca das várias revisões da Enciclopédia Soviética. Muitos regimes revolucionários e contrarevolucionários gostam de simbolizar o seu corte com o passado alterando os nomes das ruas, especialmente quando estes nomes se referem a datas de acontecimentos significativos. Quando visitei a Bulgária em meados dos anos 60, o único guia que possuía era um Guide Bleu de 1938. Apesar de incluir as plantas das ruas, perdi-me mais de uma vez e tive de perguntar aos passantes onde ficava a rua 12 de Novembro, por exemplo. Ninguém pareceu surpreendido, ninguém sorriu, as pessoas limitaram-se a conduzir-me, mas quando chegava verificava que a rua 12 de Novembro tinha passado a ser a rua 1º de Maio, etc. Este incidente pode ser encarado como um estimulante indicador da força da memória não oficial e da dificuldade de a apagar, mesmo nos chamados regimes totalitários dos nossos dias. Na realidade, o que poderíamos designar por “síndrome da Enciclopédia Soviética” não é uma invenção de tais regimes. Na Europa do início do período moderno os acontecimentos podiam também tornar-se não acontecimentos, pelo menos oficialmente. O rei Luís XIV e os seus conselheiros preocuparam-se muito com aquilo a que chamaríamos hoje de “imagem pública”. Foram emitidas medalhas para comemorar os acontecimentos principais do reinado, incluindo a destruição da cidade de Heidelberg, em 1693. No entanto, quando as medalhas foram colecionadas e reunidas para formar uma história metálica do reinado, essa medalha particular desapareceu do catálogo. Parece que Luís tinha passado a achar que a destruição de Heidelberg nada tinha acrescentado à sua reputação, à sua glória, e assim o acontecimento foi oficialmente suprimido, apagado do livro da Memória .
A censura oficial de recordações incômodas é bem conhecida. O que necessita ser investigado é a sua supressão ou repressão não oficiais, e este tópico vem levantar, uma vez mais, a incômoda questão da analogia entre a Memória individual e a Memória coletiva. A famosa metáfora freudiana do “censor” existente dentro de cada indivíduo derivava evidentemente da censura oficial do Império Habsburgo. De forma semelhante, um psicólogo social, Peter Berger, sugeriu que todos nós ( 249 ) rescrevemos a todo o momento as nossas biografias à maneira da Enciclopédia Soviética . Mas entre estes dois censores, o público e o privado, há ainda espaço para um terceiro, coletivo, mas não oficial. Podem os grupos, tal como os indivíduos, suprimir aquilo que é inconveniente recordar? E, em caso afirmativo, como o fazem ? Consideremos a seguinte história, recolhida pelo antropólogo Jack Goody. Diz-se que a origem das divisões territoriais do Gonja, no Norte de Gana, resultou de um ato do fundador, Jakpa, que dividiu o reino entre os seus filhos. “ Quando os pormenores desta história foram pela primeira vez registrados, no início do presente século, na época em que os ingleses estendiam o seu domínio àquela área, dizia-se que Jakpa tinha tido sete filhos, correspondendo ao número de divisões […] Mas na altura em que os ingleses chegaram, duas das sete divisões desapareceram […] sessenta anos mais tarde, quando os mitos do Estado foram de novo recolhidos, apenas cinco filhos eram atribuídos a Jakpa . Este é um caso clássico de utilização do passado para legitimar o
presente, que Malinowski descreveu como o funcionamento do mito de uma “carta de foral” das instituições (adotando o termo “carta de foral” utilizado pelos historiadores da Idade Média). Não gostaria de afirmar que este ajustamento do passado ao presente se verifica apenas em sociedades sem escrita. Evidentemente, é muitas vezes fácil demonstrar discrepâncias fundamentais entre a imagem do passado partilhada por membros de um determinado grupo social e os registros sobreviventes do passado. Um mito recorrente (que pode encontrar-se sob múltiplas formas na nossa sociedade de hoje) é o dos “pais fundadores”; a história de Martinho Lutero fundando a Igreja Protestante, de Émile Durkheim (ou Max Weber) fundando a sociologia, e assim por diante. De uma maneira geral, o que acontece no caso destes mitos é que as diferenças entre o passado e o
presente são elididas, e há conseqüências imprevistas que se transformam em objetivos conscientes, como se a finalidade principal destes heróis do passado fosse veicular o presente - o nosso presente. ( 250 ) A escrita e a imprensa não são suficientemente poderosas para impedir o alastrar de mitos deste tipo. O que podem, no entanto, fazer é preservar os relatos do passado que são inconsistentes com os mitos, que os minam - relatos de um passado que se tornou inconveniente e embaraçoso, um passado que as pessoas, por uma razão ou outra, não desejam conhecer, embora possa ser melhor para elas se conhecessem. Poderia, por exemplo, libertá-las da perigosa ilusão de que o passado, o presente e o futuro podem ser encarados como uma simples luta entre heróis e malandros, o bem e o mal, o certo e o errado. Os mitos não devem ser desprezados, mas sua leitura literal também não é recomendável. Heródoto imaginou os historiadores como guardiães da memória, a memória de feitos gloriosos. Eu prefiro ver os historiadores como os guardiães de fatos incômodos, os esqueletos no armário da memória social . Existiu em tempos um oficial chamado Recordador (Remembrancer). O título era na realidade um eufemismo para coletor de impostos; o trabalho do oficial consistia em recordar às pessoas aquilo que elas gostariam de esquecer. Essa é uma das funções mais importantes do historiador.