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NA ARTE CINEMATOGRÁFICA: ANÁLISE DE UMA LIÇÃO NÃO SOMENTE DE AMOR Renato Bernardo1 - Universidade Estadual de Maringá Jacqueline Johansen Calvo 1 - Universidade Estadual de Maringá Erica Patrícia Cripa 1- Universidade Estadual de Maringá Simoni Hidalgo Dantas 1- Universidade Estadual de Maringá Káriliny Teixeira Faria 1- Universidade Estadual de Maringá Walterlice Ferreira2 - Universidade Estadual de Maringá Aila Ludmila B. Hirose 1 - Universidade Estadual de Maringá Andressa Pires Martins 1 - Universidade Estadual de Maringá Pollyana Cristiane De Melo1 - Universidade Estadual de Maringá Silvana M. Souza Pinto 1 - Universidade Estadual de Maringá Viviane Venâncio S. Dos Santos 1 - Universidade Estadual de Maringá André Henrique Scarafiz 1 - Universidade Estadual de Maringá Maria A. Santiago Da Silva 1 - Universidade Estadual de Maringá Marlene Wischral Simionato2 - Universidade Estadual de Maringá Leandro Carmo De Souza 1 - Universidade Estadual de Maringá Este trabalho consiste da análise do filme “Uma Lição de Amor” e, apresenta aspectos que proporcionam reflexões r eflexões sobre a deficiência mental. Dentro desta temática, podemos discutir sobre o preconceito, a inclusão social, o deficiente no mercado de trabalho, aspectos históricos bem como assuntos referentes à deficiência mental. Além disso, é possível discutir sobre questões legais e o direito à paternidade de uma pessoa deficiente mental. O recurso cinematográfico torna-se um instrumento eficaz para facilitar o acesso de toda a sociedade à discussões sobre a deficiência, possibilitando a sensibilização do telespectador e permitindo o despertar para a conscientização da responsabilidade social.
Palavras-Chave: Deficiência Mental; Mercado De Trabalho; Relações Sociais; Paternidade E Direitos Legais. A análise do filme “Uma Lição de Amor”, resulta de uma das atividades realizadas pelos integrantes do projeto de Ensino “Arte e Deficiência: o cinema mostrando a vida”, vinculado ao Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, e tem como proposta instigar a reflexão, por meio da arte cinematográfica, acerca da questão da deficiência, sob o foco das relações entre portador e não portador, inclusão e exclusão social, o preconceito em relação ao deficiente, a relação familiar e outros temas. O filme, de origem norte-americana e gênero dramático, dirigido por Jessie Nelson e lançado em 2001, retrata uma história de ficção em que as personagens vivem um drama, no qual Sam (Sean Pean), pai de Lucy (Dakota Fanming), é um deficiente mental diagnosticado 1
Discentes do curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá. Rua Osvaldo Cruz, 603, ap. 103; CEP: 87.020-200, Zona 07. Maringá-Pr. e-mail:
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Docentes do Departamento Departamento de Psicologia da Universidade Estadual Estadual de Maringá - UEM UEM
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com idade mental equivalente ao de uma criança de sete anos de idade. Sam tem uma vida independente e mora sozinho. Seu pai abandonara sua mãe quando Sam ainda era muito criança e, ao adoecer, ela teve que enviá-lo para uma instituição. Depois de adulto, Sam teve que aprender a enfrentar o mundo por si só. Nesse momento, consegue ganhar o seu sustento com o próprio trabalho, em uma das cafeterias Starbucks. A história começa com Sam abrigando em sua casa uma moça, aparentemente desamparada, com a qual tem relação sexual que resulta em uma gravidez. Durante toda a gestação, a moça permanece na casa de Sam. Após o nascimento de Lucy, pai e filha são abandonados na porta do hospital pela mãe, a qual diz que não desejava ter um filho com ele, apenas procurava um lugar para dormir. Sam vai para a casa com Lucy e, com a ajuda da vizinha Annie (Dianne Wiest) e de seus amigos, também portadores de deficiência mental, cuidam da bebê, conseguindo, juntos, superar os desafios dos cuidados que uma criança necessita, até que Lucy completa sete anos. Com essa idade, Lucy começa a apresentar dificuldades na escola, e a equipe pedagógica começa a perceber que a menina apresenta uma resistência ao aprendizado e, ao investigarem, entendem que ela não quer ultrapassar a capacidade intelectual do pai. No entanto, ela já possui uma capacidade cognitiva superior à dele, o que pode ser visto pelo desenho que a menina fez, no qual aparecem os dois juntos de mãos dadas, e sua figura é visivelmente maior que a figura do pai. A partir desse fato e de um posterior mal entendido na festa surpresa de aniversário de Lucy, é que a assistente social passa dar mais atenção ao caso. Na festa, Sam pede para que um amiguinho de sua filha fique em silêncio e tenta conduzi-lo para trás da mesa a fim de ficar escondido para surpreender a menina, visto que ela estava na iminência de chegar. Mas o pai do garoto entende que Sam está agredindo o menino e começa uma discussão. Neste momento Lucy chega e vê o pai sendo empurrado pelo pai do garoto. Este, então, revela que ela havia dito que era filha adotiva. Assim, a assistente social entende que Sam é um pai agressivo e que Lucy não está feliz nem segura ao seu lado. Com isso, surge o embate judicial a respeito da guarda da menina. No início do processo judicial, a garota fica sob os cuidados de uma instituição. Sam é incentivado pelos amigos a procurar um advogado e ele acaba encontrando, em uma lista telefônica, uma famosa e bem sucedida advogada, chamada Rita Harrison (Michelle Pfiffer). Ela, a princípio, não queria atendê-lo, mostrando-se muito ocupada e indiferente ao caso, já que ele não poderia pagar pelos seus serviços. Pressionada pelos colegas de trabalho, resolveu que faria a defesa de Sam. Mais do que isso, faria uma defesa pro bono, ou seja, gratuita, apenas para provar a seus colegas que poderia fazê-lo.
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A advogada passa então a preparar a defesa de Sam, juntando testemunhas e fatos que pudessem provar que é capaz de continuar com a guarda de sua filha, cuidando dela como até então havia feito. Ao longo do processo, Rita e Sam vão construindo uma relação de amizade, ao ponto de ela modificar a própria vida, tanto profissional quanto pessoal. No ambiente de trabalho, Rita começa a dar privilégio a este caso, isto faz com que ela deixe de atender alguns de seus clientes. E no âmbito da vida pessoal ela passa a dar mais atenção ao filho, coisa que não o fazia antes, por dedicar-se demais ao trabalho. Nas primeiras audiências pouco se conseguiu para provar que Sam poderia continuar cuidando da filha, pois a justiça se mostrava muito limitada em preocupar-se somente com as questões de segurança e com as condições necessárias para que Lucy pudesse continuar tendo um bom desenvolvimento intelectual, não levando em consideração a forte ligação afetiva entre pai e filha. Durante o processo judicial, Lucy foi colocada sob os cuidados de uma mãe substituta, Randy (Laura Dern). Esta fez todo o possível para proporcionar à garota um ambiente familiar adequado com incentivos à sua criatividade artística, pensando em seu desenvolvimento e tentando fazê-la sentir-se à vontade. Sam, vendo que Lucy parecia estar feliz com a nova família acaba por se afastar, sentindo-se substituído e até pensando em desistir da guarda da filha. Diante dessa situação, a advogada incentiva Sam a não desistir e a continuar lutando pela filha. Ele resolve, assim, mudar-se para perto da casa da mãe substituta. A menina passa a fugir todas as noites pela janela de seu quarto para encontrar-se com o pai. Ele, então, diligentemente leva a menina de volta à casa de Randy e ainda dá recomendações de como fazê-la dormir. À princípio Randy não via com bons olhos a atitude de Sam de sumir e aparecer de repente, porque isso poderia desestruturar Lucy emocionalmente. Porém, com o passar do tempo, ela percebe que não pode dar à menina um amor como o de Sam, e passa a aceitar isso. De outra parte, parece ficar claro que a menina progrediria muito bem com a mãe substituta, desde que houvesse a presença do pai. O final do filme não mostra a sentença final do julgamento, não deixando claro com quem ficou oficialmente a guarda da menina. A história termina com todos unidos num campo onde Lucy está jogando futebol, incentivada por Randy junto a seu marido, e Sam como árbitro, além de Rita estar também assistindo ao jogo ao lado de seu filho e os demais amigos de Sam. Todos juntos pelo bem estar de Lucy.
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Este filme traz uma história muito rica que proporciona reflexões interessantes sobre a temática da deficiência. No decorrer desta análise, apresentaremos a definição de deficiência mental, suas causas, e uma retrospectiva histórica com relação à maneira como o deficiente vem sendo concebido na sociedade. Serão elencados também outros temas, tais como: a questão do deficiente no mercado de trabalho e a sua capacidade para executá-lo, o preconceito em relação às capacidades do portador de deficiência em cuidar de uma outra pessoa (no caso de Sam, de cuidar de sua própria filha), e as questões jurídicas relacionadas ao direito à paternidade. A deficiência mental, segundo a Associação Americana para a Deficiência Mental (A.A.M.R.) apud Vieira e Pereira (2003), é definida como um funcionamento intelectual significativamente abaixo da média, ocorrendo simultaneamente limitações em duas ou mais das seguintes áreas do comportamento adaptativo: comunicação, auto-cuidado, autosuficiência, vida doméstica, comportamento social, trabalho, lazer, saúde, segurança, aprendizagem escolar, tomada de decisões, uso de recursos da comunidade. As causas são diversas, podendo ser por fatores de risco e causas pré-natais (desde a concepção até o trabalho de parto), que podem envolver má alimentação da gestante, causas genéticas, doenças infecciosas, e fatores tóxicos. Fatores de risco e causas perinatais (do parto ao trigésimo dia de vida do bebê), podendo ocorrer devido à má assistência do parto, falta de oxigenação cerebral, prematuridade ou ictirícia grave. E fatores de risco e causas pós-natais (do trigésimo dia de vida do bebê até a adolescência), podendo acontecer desnutrição, desidratação grave, infecções, acidentes, intoxicações ou infestações. A deficiência mental é comumente diagnosticada na infância, porém pode ser detectada também até os dezoito anos. (SACI, 2007). No caso de Sam, um homem adulto, diagnosticado como deficiente mental, no entanto, o filme não evidenciou qual foi a causa da deficiência nem a idade em que foi feito o diagnóstico. De acordo com Pacheco e Valencia (1997), a classificação feita pela Organização Mundial de Saúde e a A.A.M.R. consiste basicamente na seguinte divisão: deficiência mental limite ou bordeline (QI 68-85); ligeira (QI 52-68); média (QI 36-51), severa (QI 20-35) e profunda (QI inferior a 20). Dentro desta visão, Sam com idade mental equivalente a uma criança de sete anos, corresponderia a um QI entre 36 e 51, portanto entrando na classificação de deficiência mental nível médio. No nível médio é dito que são indivíduos que podem ter autonomia pessoal e social, dificuldades no entendimento dos convencionalismos sociais, expressão oral defasada, desenvolvimento motor aceitável (o que permite um trabalho básico), raramente dominam a leitura, escrita e o cálculo.
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Atualmente, segundo Ballone (2003), a classificação da deficiência mental não se limita mais ao nível do QI, e sim, ao nível de adaptação que a pessoa possui, a sua independência pessoal e a sua bagagem sócio-cultural. Surge, portanto uma classificação que considera a quantidade de apoio que o deficiente mental necessita: limitado (apoios transitórios durante treinamento para trabalho ou transições entre a escola, instituição e vida adulta); extenso (apoio regular em uma área específica seja profissional, familiar ou social); e generalizado (apoio constante e intenso em várias áreas). Sam, nesta classificação, provavelmente se encaixa no limitado, pois não possuía a necessidade de um apoio regular nem intenso, foi capaz de criar Lucy sozinho até os sete anos de idade, apenas obtendo um apoio transitório da vizinha Annie em situações inusitadas. Em se tratando do contexto histórico, de acordo com autores como Silva e Dessen, (2001) e Vieira e Pereira (2003), na antigüidade clássica, valorizava-se o físico do indivíduo (devido a importância que havia em se formar ótimos guerreiros, rápidos e perspicazes), a “perfeição” e a eugenia. Os deficientes eram postos à margem da sociedade e simplesmente abandonados ou mortos pelo fato de, na visão da sociedade da época, não atenderem aos requisitos exigidos para os seus principais objetivos. Eram considerados ainda como advindos de espíritos maus. Para estes mesmos autores, durante a Idade Média, em que a Igreja assumiu o posto central das idéias, influenciando significativamente o preconceito social, criaram-se duas formas opostas de concepção do portador de deficiência. De um lado, surgia um misto de “divinização” e pena. De outro, atribuía-se aos deficientes um caráter “demoníaco”, que eram, assim, perseguidos, apedrejados e queimados nas fogueiras das Inquisições. Com a revolução burguesa, no final do século XV, e a posterior revolução industrial, um novo sistema é criado, no qual o valor do indivíduo começa a se estabelecer de acordo com a quantidade que ele consegue produzir economicamente. Dessa forma, o deficiente é novamente considerado inadequado para os padrões que a sociedade econômica exigia, visto que, sua deficiência era enxergada como um obstáculo na produção almejada pelo mercado econômico. (SILVA e DESSEN, 2001; VIEIRA e PEREIRA, 2003) Percebe-se que ao longo da história, a sociedade foi alimentando uma série de preconceitos que hoje se tenta superar, como se pode constatar: “o desenvolvimento de uma cultura mais humanista, com a crescente valorização dos direitos humanos e os conceitos de igualdade de oportunidades, do direito à diferença, da solidariedade e justiça social que lhe são inerentes, determinaram o desabrochar de uma nova mentalidade” (VIEIRA e PEREIRA, 2003, p.17).
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No entanto, sabe-se que essa nova mentalidade exige grande esforço para que se instale na sociedade, pois é necessário superar todo este histórico repleto de exclusão. Diante da riqueza dos fatos que são apresentados pela história do filme, podemos também refletir sobre a questão da inclusão do deficiente na sociedade. Sabe-se que há bem pouco tempo o deficiente era concebido como algo sem valor, o qual era deixado de lado e por vezes até escondido pelos familiares ou mesmo abandonados. Foi somente a partir da Revolução Francesa e a conseqüente evolução dos direitos humanos que se começou a pensar em alguns direitos que conferissem ao indivíduo deficiente a condição de humano (ARAÚJO e DEL PRETTE, 2001). No entanto, esses direitos eram os mesmos conferidos para todos os cidadãos, ou seja, de liberdade, dignidade, igualdade, integridade, educação, tratamento dentre outros, não havendo ainda uma preocupação voltada para essa minoria da população que continuava excluída. Ou seja, não havia interesse na questão da inclusão. De acordo com Araújo e Del Prette (2001), após a Segunda Guerra Mundial, um grande número de pessoas vítimas das atrocidades daquele momento ficou mutilado e com transtornos mentais, e necessitava de atendimento especial para se reabilitar na sociedade. Esta situação, aliada ao progresso no movimento médico e biológico, junto a uma filosofia humanista de orientação democrática, contribuíram para que os deficientes fossem vistos como cidadãos, com direitos e deveres de participação na sociedade, e então, inicia-se o movimento de inclusão. Atualmente, é possível perceber a enfática atenção da mídia à questão da inclusão do deficiente. Isto pode ser observado nas novelas, onde cada vez mais aparecem incluídas em seu elenco pessoas com deficiência e, também, no enredo, que trata de questões que envolvem os direitos de acesso da pessoa com deficiência. Outra fonte que a mídia vem utilizando são os filmes nos quais, como em “Uma Lição de Amor”, abordam questões como o preconceito, as formas de relações sociais, as capacidades e os direitos das pessoas deficientes. Apesar dessas informações que buscam a reflexão acerca da deficiência, o preconceito se faz muito forte na sociedade, incluindo o meio acadêmico. O preconceito vigente na sociedade faz com que os deficientes sejam vistos de uma forma pejorativamente diferente, por não retratarem a perfeição. Existe ainda, uma concepção errônea de que ser normal é ser perfeito (RITA KHATER, 2005 ). Durante o julgamento de Sam, é visível o preconceito em relação à sua capacidade de cuidar de sua filha, visto que ele não é considerado “perfeito”. No entanto, nenhum pai e nenhuma mãe constituem uma figura
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completamente sem falhas, a qual consiga satisfazer plenamente toda e qualquer necessidade advinda de seus filhos. Entendeu-se que não somente Sam cometia erros como ele mesmo admitiu, mas todos os pais os cometem, incluindo a advogada e a psicóloga que avaliou a condição de Sam. Ambas acabaram reconhecendo que também eram passíveis de falhas em suas funções maternas. Ainda em relação ao preconceito, pesquisas como as de Brito e Dessen (1999) mostram que por muito tempo o deficiente ficou escondido pelos familiares. Este padrão de comportamento privava o deficiente do convívio social e contribuiu para o aumento de mitos e preconceitos sobre o deficiente e suas características, que pairam até hoje na sociedade. Para Carneiro (1997), o preconceito tem suas bases no desconhecido e, “ se o desconhecido nos amedronta, para perdermos o medo basta simplesmente torná-lo conhecido, ao invés de escondê-lo, como se o motivo que o mantém oculto não existisse.” (p.33). A tentativa de promover o contato da sociedade com o deficiente através da mídia, pode auxiliar o processo de sensibilização para a aceitação e modificação de atitudes e práticas sociais. De acordo com Sassaki apud Araújo e Del Prette (2001) a inclusão consiste no “(...) processo pelo qual a sociedade se adapta para poder incluir, em seus sistemas sociais gerais, pessoas com necessidades especiais e, simultaneamente, estas se preparam para assumir seus papéis na sociedade. A inclusão social constitui, então, um processo bilateral no qual as pessoas, ainda excluídas, e a sociedade buscam, em parceria, equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidades para todos” (p. 13 e 14).
Segundo estes autores, a inclusão deve acontecer nas diversas áreas da vida, tais como, no mercado de trabalho, nos esportes, turismo, lazer e recreação, artes, cultura, religião e educação; que só ocorrerá quando todas as pessoas tiverem as mesmas oportunidades de participação na sociedade. Para se chegar a esta condição, se faz necessária a elaboração de leis e uma mudança de atitude, com a dissolução de preconceitos e discriminação e a valorização da diversidade entre os indivíduos. O filme, de forma indireta, aborda também a questão da inclusão no mercado de trabalho, quando deixa claro que Sam tem conseguido se sustentar com o próprio trabalho desde que ficou sozinho. No que se refere à este setor da inclusão do deficiente no Brasil, observa-se que uma das primeiras medidas tomadas são as legais. Do ponto de vista legal, mudanças significativas ocorreram a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. Foram criados mecanismos que tentam assegurar o acesso da
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pessoa com deficiência ao mercado formal de trabalho por meio da reserva de um percentual de vagas de trabalho para o seu ingresso no setor público. Este percentual foi definido na lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que determina em até 20% o percentual de vagas em concursos públicos, e na lei nº 8.213 que estabelece uma cota de vagas para a pessoa com deficiência, que varia de 2 a 5 %, junto às empresas privadas que possuem a partir de 100 funcionários. (TANAKA e MANZINI, 2005) Além do motivo legal, um dos fatores essenciais para a real inclusão do deficiente no trabalho diz respeito à conscientização das empresas de que esses funcionários podem ser tão eficientes quanto qualquer outro, desde que sejam respeitadas as suas limitações e lhes sejam dadas condições para trabalhar. Atualmente existem instituições que preparam o deficiente para as exigências do mercado. Essas instituições também realizam um trabalho de preparação das empresas para receberem funcionários com deficiência, bem como, tenta conscientizá-las da importância da responsabilidade social não apenas em seu aspecto legal, mas na construção de uma nova concepção do indivíduo com deficiência. (TANAKA e MANZINI, 2005) No filme, Sam desempenhava uma mesma tarefa há, aproximadamente, nove anos em um café, atendendo mesas e anotando os pedidos das pessoas. Após esse tempo, foi dada a ele a chance de fazer café, o que ele já esperava ansiosamente, pois sabia que seu salário aumentaria. Porém, percebe-se que as condições em que Sam teria que trabalhar não eram favoráveis pois recebia várias informações ao mesmo tempo e, era-lhe cobrado a execução das tarefas em um tempo muito curto. Na cena em que ele aparece dizendo ao chefe quais as medidas necessárias para o café, fica claro que Sam sabe como fazê-lo, no entanto, não é mostrado se houve um período de treinamento que suprisse adequadamente as suas necessidades e ritmo de adaptação. Segundo Omote apud Tanaka e Manzini (2005) “(...) se a sociedade concebe que a dificuldade da pessoa com deficiência ocorre mais em função das suas limitações orgânicas, como usualmente tem acontecido, ela adotará medidas que visam prepará-la para o trabalho baseadas mais na natureza da deficiência, do que propriamente nas suas reais potencialidades e necessidades. Com isso, a culpa pela dificuldade de inserção e adaptação dessa população no trabalho acaba sempre recaindo sobre ela e não nas relações estabelecidas pela sociedade.” (p. 1 e 2)
Assim, não se pode dizer que Sam não era capaz de executar a tarefa, mas que podem não ter sido supridas as suas condições para aprendizagem. Desta forma, entendemos que contratar a pessoa com deficiência tão somente para cumprir a lei, sem proporcionar-lhe condições para que possa competir igualmente na busca de um trabalho, contribui para
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reafirmar a idéia de que ele não é capaz de se inserir no campo dos recursos humanos, na disputa competitiva pelo mercado. Por isso, além da conquista legal, é preciso lutar por uma mudança de atitudes para que realmente ocorra a inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho. (TANAKA e MANZINI, 2005) Cabe, nesta análise, abordar também a questão familiar, já que Sam tornou-se pai e, desta forma, um chefe de família. Vivenciamos no Brasil uma remodelação das estruturas familiares, em que passamos dar mais importância aos indivíduos constituintes da família, o que de certa forma enfraquece a visão anterior patriarcal, que encarava a família como uma instituição, na qual o pai deveria subsidiar as necessidades dos constituintes da família enquanto esses responderiam com lealdade e principalmente obediência ao pai. Apesar dessa mudança em relação à formação da família a legislação no Brasil ainda possui uma visão paterfamilis, a qual não se enquadra corretamente na nova formação familiar. (NEDER e CERQUEIRA FILHO, 2007) Na virada do século XIX para o XX encontramos uma ideologia que lentamente concretiza a necessidade do estado em legitimar políticas públicas que apóiem o atendimento de indivíduos considerados desvalidos (velhos, crianças abandonadas ou desassistidas e loucos), porém a ideologia que onde o chefe da familia é o responsável pela integridade dos indivíduos constituintes de sua família permanece forte, tirando assim a responsabilidade do estado, que por sua vez, não cria medidas suficientes para lidar com essa parcela minoritária da população. (NEDER e CERQUEIRA FILHO, 2007) De acordo com o exposto por estes autores, podemos perceber que o poder do chefe de família é legitimado pela jurisdição brasileira, o que automaticamente o incumbe de responsabilidades perante seus familiares. Este chefe é um tipo social idealizado, sendo assim qualquer outro individuo que não corresponda a maioria das suas características, será considerado incapaz de exercer o papel de responsável pela manutenção de uma ordem familiar estável. Ao analisarmos o filme “Uma lição de Amor”, levando em consideração o ideal de família que vimos até então, percebemos que o personagem Sam por ser deficiente mental teve questionada a sua capacidade de continuar a cuidar da filha, já que durante o processo judicial levantaram-se as hipóteses que ela necessitaria de apoio em seu desenvolvimento subseqüente, apoio este que só encontraria quando engajada em uma família tradicional (nuclear, heterossexual e considerada mentalmente saudável). Então, cai sobre Sam o peso da responsabilidade que vem junto com o conceito idealizado de pai como chefe de família.
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No que se refere ao processo judicial sofrido por Sam para permanecer com a guarda de Lucy, o filme não deixa claro com quem exatamente ficou a guarda da menina. Uma primeira consideração que deve ser apresentada consiste no fato de que o sistema jurídico vigente nos Estados Unidos é completamente distinto do utilizado no Brasil. Naquele país vige o chamado “Commom Law”, também conhecido como “direito costumeiro” ou “direito do caso concreto”, sendo um sistema onde não há normas positivas (escritas). Diferentemente, no Brasil, vige o chamado “Civil Law”, onde todas as normas necessariamente devem ser escritas, embora o costume tenha uma pequena importância, no que diz respeito a criação das leis. (LOPES, 1999) Traçando um paralelo entre o que ocorre no filme e o ordenamento jurídico pátrio seria quase impossível a outorga da guarda e vigilância da pequena Lucy aos cuidados de Sam, embora este fosse o pai biológico da mesma e houvesse um irrefutável elo afetivo entre ambos. No filme Sam é retratado como uma pessoa que não tinha desenvolvimento mental completo, pois, segundo a história, teria uma idade mental de 7 (sete) anos. Para o Direito Brasileiro, segundo Pinto (2007), seria considerado uma pessoa relativamente incapaz, como estabelecido no Código Civil Brasileiro de 1988, em seu art. 4, inciso III, “verbis”: Art. 4 – São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I e II – “omissis”; III – os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; (p.167)
Por força do citado dispositivo legal Sam é considerado uma pessoa que não pode praticar qualquer ato da vida civil, a não ser que esteja juridicamente assistido por um representante legal. No caso de Sam, este não possui qualquer pessoa por ele, pois não possuía pai, mãe, ou qualquer outra pessoa que pudesse se enquadrar nesta categoria. Ele era auxiliado por uma advogada, que atuava como sua representante naquele processo, não sendo responsável civilmente pelo mesmo. Há que se destacar que nos dias atuais se busca cada vez mais a inclusão das pessoas portadoras de necessidades especiais. Ocorre que no caso em tela não estão em jogo apenas os interesses de Sam, mas também o de uma criança, a Lucy. O sistema pátrio se veria diante de um dilema, pois se tem duas pessoas que possuem uma franca proteção pelo direito: um portador de necessidades especiais e uma criança. Esta
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última possui um diploma legal próprio, qual seja, o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90. Quanto a Lucy, o sistema jurídico brasileiro prevê diversas formas de proteção, objetivando sempre a “proteção integral às crianças e aos adolescentes em razão de sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento” (SILVA, 1994, p.17). Dentre as várias formas, se pode destacar o disposto no art. 22, do ECA, “verbis”: Art. 22 – Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes, ainda, nos interesses deste a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.
Uma pergunta a ser respondida é como Sam poderia se desincumbir de tais obrigações? Principalmente no que diz respeito ao quesito educação? Ainda o art. 18 , do ECA, “verbis”: Art. 18 – É dever de todos velar pela dignidade da criança ou adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
No decorrer do filme, especialmente na festa de aniversário, é possível perceber que Lucy não ficava à vontade quando as pessoas estranhavam os comportamentos de seu pai, sentindo-se constrangida. É visível que Sam não compreendia esta realidade, mas o fato é que a criança é quem deve ser protegida neste contexto. A questão posta no filme trata de aspectos que envolvem a afetividade. É claro que esta deveria e deve ser considerada para a decisão, mas a afetividade não deve ser o único parâmetro a ser observado, nem apenas a vontade da criança em estar com seu pai, mas sim, o seu desenvolvimento e bem-estar, não tendo como se prever quais seriam as conseqüências futuras da simples convivência com uma pessoa que não possui discernimento suficiente para contribuir com o desenvolvimento intelectual da pequena Lucy. É fato que o desenvolvimento intelectual do Sam está estacionado, enquanto o de Lucy está em franco desenvolvimento. A melhor solução para o caso, no nosso entendimento, segundo o sistema jurídico brasileiro, seria que ao Sam fosse outorgado um curador – pessoa responsável por este. Lucy poderia ter sua guarda entregue a uma família substituta, permitindo ao Sam que realizasse visitas à filha, até que esta atingisse a maioridade e, assumindo esta a curatela do pai. Não se vislumbrando outra solução de acordo com a lei vigente. Mas o filme deixa em aberto a solução dada ao caso, pois não explicita o resultado apresentado na sentença final.
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A partir desta análise podemos concluir que o deficiente mental deve ser considerado em todos os aspectos de um ser humano, pois ele também tem sentimentos, vontades, capacidades e direitos. Em relação a estas capacidades, é possível ver no filme, que ele também pode exercer uma profissão, basta que ele seja estimulado adequadamente conforme as suas necessidades. O título do filme “Uma Lição de Amor” vem ao encontro do que foi apresentado em relação aos cuidados de um pai para com seu filho. O filme, de forma tocante, nos transmite que essa relação não se constitui de extremos, afetividade x intelectualidade, pelo contrário, abrange um equilíbrio de ambos. Deve-se levar em conta a importância da afetividade no desenvolvimento de uma criança, visto que a relação de confiança se estabelece por meio deste sentimento. Ainda, para que ocorra o pleno desenvolvimento intelectual, deve-se considerar além do afeto, o estímulo às potencialidades do indivíduo.
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