André Gardel
Literatura Brasileira II 2009
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G218 Gardel, André. / Literatura Brasileira II. / André Gardel. — Curitiba : IESDE Brasil S.A., 2009. 212 p.
ISBN: 978-85-387-0161-3
1. Literatura brasileira. 2. Literatura brasileira – História. 3. Cultura brasileira. I. Título. Título. CDD 869.07
Capa: IESDE Brasil S.A. Imagem da capa: IESDE Brasil S.A.
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André Gardel Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em Literatura Comparada pela UFRJ. Bacharel em Língua e Literatura Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Sumário O momento momento pré-moderno no Brasil ............. .......................... ..................... ........ 15 Os estilos pós-românticos ....................... ................................................ ................................................... ................................................... ............................ ... 15 A ambiência cultural pré-modernista ...................... ............................................... ................................................... ................................. ....... 16 Lima Barreto e Euclides da Cunha......................... .................................................. ................................................... ..................................... ........... 17 Augusto dos dos Anjos e Raul de Leoni .......................... ................................................... ................................................... ................................. ....... 20
As vanguardas europeias ............. .......................... .......................... ........................... ................ 27 Vanguardas: origens Vanguardas: origens e sentidos ........................ .................................................. .................................................... ......................................... ............... 27 O Futurismo........................ ................................................. ................................................... ................................................... ................................................... ............................. ... 29 O Expressionismo.......................... ................................................... ................................................... .................................................... ......................................... ............... 31 O Cubismo .......................... .................................................... ................................................... ................................................... ................................................... ............................ ... 32 O Dadaísmo ........................ .................................................. ................................................... ................................................... ................................................... ............................ ... 34 O Surrealismo ........................ .................................................. ................................................... ................................................... .................................................. ........................ 34
A fase heroica: a Semana e os principais principa is manif manifestos estos ........... ...................... ...................... ...................... ...................... .................. ....... 43 Antecedentes da Semana ....................... Antecedentes ................................................ ................................................... ................................................... ............................ ... 43 A Semana de 1922 ........................ ................................................. ................................................... .................................................... ......................................... ............... 45 Manifestos de Mário Mário de Andrade .......................... .................................................... ................................................... .................................... ........... 46 Manifestos de Oswald de Andrade....................... ................................................. ................................................... .................................... ........... 49 Os grupos de direita direita e seus manifestos manifestos....................... ................................................. .................................................... .............................. 52
A obra de Manue Manuell Bandei Bandeira ra ................ ........................... ..................... ..................... ............... 59 Manuel Bandeira e o Modernismo: Modernismo: aproximações e fugas fugas ........................................ 60 A poesia do humilde cotidiano e do alumbramento alumbramento ....................... ................................................ ............................ ... 62 O poeta cronista ....................... ................................................. ................................................... ................................................... .............................................. .................... 64 O letrista da canção .......................... .................................................... ................................................... ................................................... ..................................... ........... 66 O crítico de de arte e literatura........................ .................................................. ................................................... ................................................. ........................ 67 Itinerário de Pasárgada ........................ ................................................. ................................................... ................................................... ................................ ....... 69
A obra de Mário de Andra Andrade de .......... ..................... ...................... ...................... ................ ..... 77 A poesia de de Mário de Andrade Andrade ...................... ................................................ ................................................... ............................................. .................... 77 O ficcionista ........................ ................................................. ................................................... ................................................... ................................................... ............................. ... 80 Macunaíma ......................... .................................................. ................................................... ................................................... ................................................... ............................. ... 80 A música modernista de câmara e a canção popular popular ...................... ................................................ .............................. 82 O antropólogo aprendiz .......................... ................................................... ................................................... .................................................... .............................. 83 As cartas: documentos documentos íntimos e culturais ......................... ................................................... ............................................. ................... 85 A atuação como homem homem público público .......................... .................................................... ................................................... .................................... ........... 86
A obra de Oswald de Andrade................. Andrade.............................. ........................... ................ 93 O primeiro Oswald: Oswald: viagens e atuação jornalística ...................... ................................................ ................................. ....... 93 A poesia ...................... ................................................ ................................................... ................................................... .................................................... ..................................... ........... 95 O romancista .......................... ................................................... ................................................... .................................................... .................................................. ........................ 97 O dramaturgo ........................ ................................................. ................................................... .................................................... .................................................. ........................ 98 Crônicas e polêmicas ....................... ................................................. ................................................... ................................................... ..................................... ........... 99 Outros manifestos ...................................................................................................................101
Segundo momento modernista: estabilização da consciência consc iência criadora criadora nacio nacional nal (a poesia)............ ......................... .............107 107 A estabilização da consciência criadora nacional .......................................................107 Carlos Drummond de Andrade ..........................................................................................108 Jorge de Lima ...........................................................................................................................110 Murilo Mendes .........................................................................................................................112 Cecília Meireles .........................................................................................................................114
A prosa dos anos 30 ..............................................................123 As duas faces da prosa dos anos 30 ..................................................................................123 Rachel de Queiroz e José Lins do Rego ...........................................................................124 Graciliano Ramos .....................................................................................................................126 Jorge Amado .............................................................................................................................128 Erico Verissimo .........................................................................................................................129 Lúcio Cardoso ...........................................................................................................................130 Marques Rebelo .......................................................................................................................131
O ensaísmo social ...................................................................137 O pensamento social e antropológico no Modernismo ...........................................137 Paulo Prado e o retrato do Brasil ........................................................................................138 Sérgio Buarque de Holanda e as Raízes do Brasil ........................................................140 Gilberto Freyre e Casa Grande & Senzala........................ .................................................. ................................................ ...................... 141
João Cabral e a Geração de 45 ...........................................151
A poesia da Geração de 45...................................................................................................151 Alguns nomes de destaque dessa geração ...................................................................153 A poesia de João Cabral de Melo Neto ............................................................................153
A ficção depois de 45 (o romance experimental): Clarice Lispector .....................................................................165 Conceituação do romance experimental pós-45 ........................................................165 A voz feminina e singular da prosa de Clarice ..............................................................166 Principais obras ........................................................................................................................167 Clarice cronista .........................................................................................................................169
A obra experimental de Guimarães Rosa ......................179 A linguagem ficcional de Guimarães ...............................................................................179 Grande Sertão: veredas .........................................................................................................181 Outros escritos .........................................................................................................................183
Gabarito .....................................................................................191
Referências ................................................................................199
Anotações .................................................................................209
Apresentação O momento da Literatura brasileira sobre o qual nos debruçamos neste livro é, talvez, o mais importante de nossas letras. Não só pelo fato de se tratar de um período que gerou nossos maiores autores de todos os tempos; mas, também, por esta produção quase toda buscar responder à demanda geral de um país que tinha como projeto se configurar dentro da modernidade, se empenhando em harmonizar sua voz nacional, nem que fosse em contracanto, com a orquestra das nações modernas e civilizadas. Só para termos uma ideia da grandeza do momento a que nos referimos, é o período em que poetas como Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Jorge de Lima, João Cabral de Melo Neto concebem suas obras. E, na prosa, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Mário e Oswald de Andrade delineiam seus geniais textos inventivos inventivos.. Nosso percurso começa definindo o “Momento pré-moderno”, pré-moderno”, em que estilos pós-românticos se desdobram numa ambiência sociocultural fortemente Belle Époque, num sincretismo que pavimenta as bases para a revolução modernista. Pois, pouco a pouco, “As vanguardas europeias” adentram nosso universo artístico, trazendo a maior parte do instrumental técnico, ampliando as visões de mundo que se consolidarão a partir dos anos 20. Será “A fase heroica: a Semana e os principais manifestos”,, em que manifestos” qu e os artistas ar tistas definitivamente colocarão em xeque o passadismo literário, devorando as múltiplas novidades das rupturas vanguardistas. É o momento em que “A obra de Manuel Bandeira”, “A obra de Mário de Andrade” e “A obra de Oswald de Andrade” se consolidam, com suas linguagens específicas, cada qual absorvendo e recriando as informações estrangeiras, com o fim de produzir uma literatura brasileira sem ufanismos, firmemente fincada na realidade cultural do Brasil profundo, por meio de conceitos ainda hoje produtivos, como o de antropofagia. Depois, tem início o “Segundo momento modernista”: estabilização da consciência criadora nacional: a poesia” e “A prosa dos anos 30”, em que vemos as conquistas técnicas das vanguardas, já devidamente incorporadas, adquirirem adquiri rem uma força ideológica e um engajamento de mudança político-social intensas. Para tal, muito contribuiu “O ensaísmo social” de Gilberto Freyre e de Sérgio Buarque de Holanda, em suas tentativas de definir o perfil psicológico e cultural do povo brasileiro. Por fim, na terceira fase modernista, que se entremostra com “João Cabral e a Geração de 45”, 45”, com “A “A ficção depois de 45 (o romance experimental): exper imental): Clarice Clar ice LispecLispec tor” e com“A obra experimental de Guimarães Guima rães Rosa”, Rosa”, temos um balanço ba lanço das primeiras prim eiras conquistas do Modernismo, a partir de um espírito mais universalizante e existencial, abrindo já perspectivas para as possibilidades de uma arte pós-modernista.
Como vemos, trata-se de um convite aos nossos leitores para uma viagem muito especial: a de (re)conhecimento da alma do Brasil e do corpo cultural do nosso povo, por meio do ágil veículo verbal, multitemporal e mágico da literatura. André Gardel
A obra de Manuel Bandeira Nesta aula vamos conhecer a obra de um dos autores mais representativos do nosso Modernismo e de toda a Literatura Brasileira: Manuel Bandeira (1886-1968). Nascido em Recife (PE), e vivendo a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro, o autor de Estrela da Vida Inteira1 atuou em várias frentes. Bandeira exerceu as mais diferentes formas e gêneros literários e estéticos. Publicou poemas, crônicas, ensaios, letras de música, críticas, traduções, biografias e até escreveu um Guia de Ouro Preto . Publicou, além dos seus dez livros de poesia, várias antologias poéticas. Lecionou na antiga Faculdade de Filosofia do Rio de Janeiro, a então capital federal; participou do debate intelectual do seu tempo pela constante presença na mídia, seja através da Rádio Ministério da Educação, seja nos jornais brasileiros (principalmente do Rio, de Minas, de Pernambuco e de São Paulo), como atesta a “Cronologia “Cronologia de Manuel M anuel Bandeira”, Bandeira”, por ele mesmo escrita escri ta para a 1.ª edição de Estrela da Vida Inteira (BANDEIRA, 1986, p. 21-34). O poet poeta a men menor or 2 entrou, em 1940, para a Academia Brasileira de Letras. Chegou a candidatar-se para o cargo de deputado federal pelo Partido Socialista, na década de 50, e exerceu, ainda, o cargo de conselheiro do Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. No século XXI, Manuel Bandeira vira nome de praça e de galeria no mezanino do Palácio Austregésilo de Athayde, da Academia Brasileira de Letras, no centro do Rio de Janeiro. Deste homem múltiplo e moderno, interessa-nos, sobretudo, o artista que exerceu com maestria a sua produção literária e cultural. Manuel Bandeira foi, principalmente no seu primeiro livro, Cinza das Horas (1917), influenciado pelas estéticas do Parnasianismo e do Simbolismo. Mas uma ruptura lenta, definitiva, começa a se concretizar em Carnaval (1919), e inscreve-se irreversível a partir de Ritmo Dissoluto (1924), o seu terceiro livro. “O esforço de romper com a dicção entre parnasiana e simbolista de Cinza das Horas foi 1
Este volume foi lançado pela editora José Olympio, em 1966, quando o poeta completou 80 anos. Contém, o referido livro, toda a produção poética do autor pernambucano e os textos que ele traduziu de poetas fundamentais para o cânone literário ocidental, como Goethe, Rilke e Lorca, dentre outros. 2
“Manuel Bandeira chamou-se um dia ‘poeta menor’. menor’. Fez por certo uma injustiç a a si próprio, mas deu, com essa notaçã o crítica, mostras de reconhecer as origens psicológicas da sua arte: aquela atitude intimista dos crepusculares do começo do século que ajudaram a dissolver toda a eloquência pós-romântica, pela prática de um lirismo confidencial, autoirônico [...]”. [...]”. (BOSI, 1994, p. 360 -361).
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plenamente logrado enquanto fez de Bandeira um dos melhores poetas do verso livre em português, e, a partir de Ritmo Dissoluto, talvez o mais feliz incorporador de motivos e termos prosaicos à literatura brasileira”. (BOSI, 1994, p. 361). “Dono talvez da dicção di cção mais sutil do nosso Modernismo” (CAMPOS, 2004a, p. 116), este poeta do verso livre foi se aproximando e, ao mesmo tempo, tecendo fugas em relação aos poetas modernos. Esse comportamento ambíguo concretiza-se, por exemplo, na postura de Bandeira em relação a eventos definitivos para o nosso Modernismo, como A Semana de Arte Moderna.
Manuel Bandeira e o Modernismo: aproximações e fugas Quando aconteceu a Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922, Manuel Bandeira já era um autor conhecido, com dois livros publicados: Cinza das Horas (1917) e Carnaval (1919). Embora não tenha participado fisicamente do referido evento que revolucionou a arte brasileira, Bandeira se fez presente. O poema “Os “Os sapos”, sapos”, que ironiza a estética parnasiana, publicado em Carnaval , foi lido na segunda noite da Semana S emana pelo poeta Ronald de Carvalho, acompanhado de “assobios” “assobios” e gritos da plateia (BOSI, 1994, p. 338). As ideias de aproximações e fugas de Manuel Bandeira, em relação ao Modernismo, podem ser metaforizadas nesta presença/ausência física que se consolida, na Semana de Arte, pela leitura do seu texto. Em relação ao Modernismo, o poeta deu o tratamento e a dimensão que um homem de letras com a cultura e o repertório intelectual dele daria. Ao contrário da postura e do discurso demolidores e irreverentes de alguns participantes do Modernismo, Bandeira lia o movimento com respeito e interesse, mas sem deslumbramento. Aliás, podemos dizer que o poeta atuava com alumbramento , para usarmos o título de um famoso poema seu, termo que é também um dos conceitos principais de sua poética, significando “a inspiração terrena que, pela poesia do corpo, nos familiariza com a naturalidade da morte” mor te” (ARRIGUCCI JR., 1990, p. 135). Para Bandeira, o Modernismo em sua poesia adveio mais da convivência com os amigos modernistas (principalmente com Mário Már io de Andrade e Ribeiro Couto) do que como um programa sistemático de novidades, criação e ruptura. Apesar disso, ele confessa a importância deste movimento estético para a sua obra, como veremos a seguir no Itinerário de Pasárgada (1954). 60
A obra de Manuel Bandeira
O autor de “A versificação em língua portuguesa” nunca deixou de ser um profundo conhecedor da tradição lírica europeia; e sua poesia manteve sempre resíduos de sua atitude estética originária penumbrista, requintada e humilde. Para ele, a conquista do verso livre foi uma luta com vários capítulos, não um modismo absorvido de modo inconsequente. “Somente no terceiro livro, O Ritmo Dissoluto (1924), Bandeira começa a sair do circuito doloroso da subjetividade e a abandonar com segurança o cárcere arredondado da poesia rimada e metrificada. O poeta está agora com 38 anos. [...] A aceitação do mundo manifesta-se em boa parte par te dos versos” (ESPÍNOLA, 2004, p. 188). No plano contextual, essa aceitação e lenta incorporação de diferentes modos de construção do verso, que não os seus habituais, pode ser mensurada, por exemplo,, no diálogo que o poeta estabelecerá, nos Anos 60, com os poetas conexemplo cretos de São Paulo. Um deles, o crítico e poeta Haroldo de Campos, vai destacar em Bandeira, “o gosto pelo despojamento vocabular” (CAMPOS, 2004a, p. 115). Estudaremos, a seguir, um pouco dessa poesia despojada, que acata de forma livre e alumbrada a materialidade do mundo como matéria de sua escrita. . o ã ç a g l u v i D
Manuel Bandeira foi poeta, cronista, ensaísta, letrista, crítico de arte, tradutor, professor de literatura hispano-americana e membro da Academia Brasileira de Letras.
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A poesia do humilde cotidiano e do alumbramento O verso livre é, como sabemos, uma das maiores conquistas da poesia moderna. No verso livre, “a unidade de medida deixa de ser a sílaba, e passa a basearse na combinação das entoações e das pausas” (PROENÇA FILHO, 1978, p. 263). Para o poeta e ensaísta Mário de Andrade, a conquista do verso livre significa “aquisição de ritmos pessoais” (ANDRADE, (ANDRADE, 1972a, p. 28). Em Bandeira, esse ritmo é perceptível nos versos do poema a seguir (BANDEIRA, ( BANDEIRA, 1986, p. 111): Andorinha
Andorinha lá fora está dizendo: - “passei “passei o dia à toa, à toa!” Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste! Passeia a vida à toa, à toa...
Segundo Mário, no contexto estético dos anos 1930, Bandeira é o poeta “que “que mais prescinde do som”. De ouvido atento a esse som, o poeta paulista lê nos versos modernos de Bandeira uma áspera rítmica: Manuel Bandeira lembra esses amantes bem casados que, depois de tanta convivência, acabam se parecendo fisicamente um com o outro. Assim a rítmica dele acabou se parecendo com o físico de Manuel Bandeira. Rara uma doçura franca de movimento. Ritmo todo de ângulos, incisivo, em versos espetados, entradas bruscas, sentimento em lascas, gestos quebrados, nenhuma ondulação. (ANDRADE, 1972a, p. 28-29)
Na “Introdução” que escreve para a edição de Estrela da Vida Inteira (poesias reunidas e poemas traduzidos), em parceira com Gilda de Mello e Souza, Antonio Candido refere-se “aos “aos dois polos da Arte, isto é, o que adere estritamente ao real e o que procura subvertê-lo por meio de uma deformação voluntária” (CANDIDO; SOUZA, 1986, p. 10). Segundo o crítico, a leitura da poesia de Bandeira engloba esses “dois polos”, como “expressões válidas da sua personalidade literária”. No polo em que a perspectiva de aderir “ao real” se torna mais aparente, podemos destacar o seguinte poema do livro Belo Belo (BANDEIRA, 1986, p. 179):
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A obra de Manuel Bandeira O bicho
Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem.
Na busca da fusão complementar dos opostos, partimos agora para um exemplo em que o “polo” contrário – ou seja, aquele no qual, segundo Antonio Candido, o poeta “procura” subverter o real “por meio de uma deformação voluntária” – se entremostra melhor. Neste “polo” estariam os textos que mais se voltam para os aspectos subjetivos e imaginários da condição humana, em sintonia com as esferas do lirismo, do erotismo, dos afetos. Ao referir-se a essas esferas na poesia de Bandeira, diz Candido: “O seu lirismo amoroso engloba o jogo erótico mais direto e, simultaneamente, as fugas mais intelectualizadas da louvação” (CANDIDO; SOUZA, 1986, p. 11). Leiamos o poema a seguir, do livro Belo Belo (BANDEIRA, 1986, p. 185): Arte de amar
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra alma. Só em Deus — ou fora do mundo. As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
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A união desses dois polos na poesia de Manuel Bandeira é assim lida: “Vida e morte se opõem para se unirem numa unidade dinâmica, por entre o céu e o inferno da existência de todo dia” (CANDIDO; SOUZA, 1986, p. 11). Oscilando entre esses dois “polos” “polos”,, Bandeira cria uma poética na qual o cotidiano e seus elementos mais simples – seja uma maçã no quarto quar to de dormir ou o personagem da feira livre na notícia do jornal – se fazem fa zem presentes, sem recorrer à grandiloquência de linguagem nem à rigidez das formas. Da sua morada simples no morro do Curvelo, no Rio de Janeiro, o poeta lê o elemento humilde do cotidiano que começa a adentrar a sua poesia moderna. Para Bandeira, “o mais profundo é o mais cotidiano, com a intimidade capaz de captar e viver as sutilezas do meio em seus costumes e sentimentos artísticos, em suas influências estrangeiras incorporadas [...]” (GARDEL, 1996, p. 41). “Tomando um traço distintivo da forma de expressão madura do poeta – a simplicidade natural –, ele investiga as relações desse traço estilístico com a atitude de humildade diante da vida e da poesia, tentando descobrir, pela contextualização, suas determinações históricas, seus vínculos com a tradição literária” [...] (ARRIGUCCI JR., 1990, p. 15).
O poeta cronista Segundo escreveu em sua cronologia (BANDEIRA, 1986, p. 21-34), a partir de 1925 Manuel Bandeira começa a publicar seus artigos no jornal A Noite. De 1928 a 1930, escreve crônicas semanais para o Diário Nacional , de São Paulo Paulo.. Escreve, depois, crônicas para A Província, de Recife, e para O Jornal , do Rio de Janeiro. Das crônicas produzidas para esses três últimos jornais, o autor recolhe os textos que a editora Civilização Brasileira lançaria, em 1937, com o título de Crônicas da Província do Brasil – livro que informa, de modo esparso, a respeito do encontro entre Manuel Bandeira e o compositor Sinhô, e que foi escrito durante o tempo em que o poeta pernambucano morou na ladeira do Curvelo (de 1920 a 1933), em Santa Tereza, Tereza, no Rio de Janeiro (GARDEL, 1996, p. 56). Reeditado em 2006, o volume traz, nesta segunda edição, um posfácio de Júlio Castañon Guimarães, que assim se refere a estas crônicas: “[...] a crônica de Bandeira avança pelo campo do estudo, da crítica literária, da história [...]” (GUIMARÃES, 2006, p. 255). Em sintonia com a nossa tradição histórica e literária, literári a, ele escreve: “[...] o título permite ver pelo menos uma reminiscência das antigas crônicas quinhentistas portuguesas” por tuguesas” (GUIMARÃES, 2006, p. 258).
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A obra de Manuel Bandeira
E, de fato, um dos núcleos temáticos das crônicas de Manuel Bandeira dialoga, direta ou indiretamente, com o passado do Brasil Colônia, como as festas religiosas, o patrimônio artístico nacional, as cidades históricas mineiras, visto sob perspectiva moderna. Referindo-se à primeira edição do livro Crônicas da Província do Brasil , de 1937, diz Otávio Tarquínio de Sousa (apud GUIMARÃES, 2006, p. 253): “A primeira qualidade deste livro, que constitui até certo ponto uma surpresa e lhe dá o maior encanto – é a sua unidade. Coleção de crônicas, estudos e pequenos ensaios, não tem nunca o leitor a impressão de colcha de retalhos. [...] Tudo se concilia, tudo se ajusta [...]” [...]”.. No mesmo andamento da leitura de Tarquínio de Souza, “Stefan Baciu procurou agrupá-las em ‘cinco conjuntos’: sobre costumes e paisagens locais; crítica de literatura, artes plásticas e música; memórias; de viagem; e fatos diversos” (GUIMARÃES, 2006, p. 253). Além desses agrupamentos temáticos, é interessante ressaltarmos a unidade de procedimentos estéticos acionada pelo poeta na construção de suas crônicas. Bandeira incorpora elementos da poesia na escrita do texto para jornal.. Opera, com jornal com isso, uma uma ruptura ruptura de gênero, gênero, como pode pode ser lida no texto texto “Romance do beco”. Essa crônica aponta, no título, para outro gênero e traz em seu corpo o “Poema do beco” do livro Estrela da Manhã (BANDEIRA, 1986, p. 121). Poema do beco
Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? - O que eu vejo é o beco.
A paisagem da Glória, assim como outros bairros do Rio de Janeiro, é um dos espaços cariocas mais presentes na escrita de Bandeira. Na crônica “A festa de N. S. da Glória do Oiteiro”, ele confirma a sua relação memorial com o referido bairro e assinala temas relacionados às questões da nacionalidade. Diz o autor (BANDEIRA apud GUIMARÃES, 2006, p. 80): “Lembro-me “Lembro-me bem do largo da Glória e da praia da Lapa da minha meninice: um desenho de Debret. Desapareceu o casarão do mercado que servia de caserna e despertou desper tou o interesse público quando abrigou por algum tempo as jagunças e os jaguncinhos trazidos de Canudos3”. Na leitura destas crônicas, podemos entrever o diálogo que o autor promove entre o Rio de Janeiro e os demais centros culturais do país.
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Canudos é um município do sertão da Bahia onde aconteceu, em 1897, o massacre de uma população estimada entre 10 e 25 mil habitantes. Esta
guerra se deu entre as tropas republicanas, enviadas do Rio de Janeiro, e os rebeldes nordestinos, liderados pelo beato Antonio Conselheiro. Como jornalista de O Estado de São Paulo , o escritor Euclides da Cunha foi testemunha deste triste episódio da nossa história, e com base nas reportagens que publicou na época, escreveu depois um dos mais belos e pungentes livros de nossa lite ratura: Os Sertões (1902).
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É como se Bandeira, ao enviar suas crônicas sobre o Rio para os jornais dos estados que deram origem aos principais regionalismos, estivesse querendo querendo mostrar e revelar ao Brasil a verdadeira face de Dionísio surgida da alma do Rio de Janeiro de todos nós: com um pé na África, com outro nas formas estéticas e modos de relacionamento provincianos, com os braços abertos para o mundo, com a cabeça voltada para o Brasil e com um rebolado de samba amaxixado no andar. (GARDEL, 1996, p. 46)
O letrista da canção No seu livro Itinerário de Pasárgada, Manuel Bandeira narra as suas relações com a música da seguinte forma (BANDEIRA, ( BANDEIRA, 1977, p. 72-73): [...] não tenho neste instante elementos para fazer uma lista completa de todos os meus poemas que foram musicados [...]. De três gêneros foi a minha colaboração com os músicos: ou estes escolheram livremente na minha obra os poemas que desejam musicar; ou me forneciam melodias para que eu escrevesse o texto; ou me pediram letra especial para música que desejavam compor. Deste último gênero são os poemas “Cântico de Natal” e “Jurupari”, que escrevi a pedido de Villa-Lobos; “Canção e letra para uma valsa romântica”, a pedido de Radamés Gnatali; “Desafio” e “Alegrias de Nossa Senhora”, a pedido de Mignone.
Pelo músico Francisco Mignone, o poeta Manuel Bandeira teve outros títulos musicados, como: “Dentro da noite”, “D. Janaína”, “O menino doente” e “Pousa a mão na minha testa”. Além desses autores citados no Itinerário..., destacam-se como parceiros do poeta os seguintes músicos: Camargo Guarnieri, Ari Barroso, José Siqueira, Lorenzo Fernandez, Vieira Brandão e Helza Cameu, dentre outros. Merece ser ressaltado o interesse que Bandeira sempre demonstrou pela música popular comercial de massas, cujo representante máximo nos anos 1 920, na capital do país, foi o compositor Sinhô, conhecido à época como o nosso rei do samba. Ao utilizar-se de trechos de letras de canções oriundas desse universo popular em seus poemas, sob o procedimento técnico modernista da colagem, sem qualquer preconceito, Bandeira vai de encontro à proposta do nacionalismo musical de câmara modernista, que preconizava apenas o uso do popular de origem folclórica, anônima e não comercial, para ser incorporado pela linguagem erudita dos intelectuais modernistas em seus projetos de criação de uma arte moderna brasileira. É bom frisar que Bandeira foi o poeta mais musicado por esse mesmo nacionalismo musical modernista, afirmação que soa, aparentemente, como um paradoxo. É que o poeta pernambucano “mal-carioquizado”, em suas próprias palavras, dizia que não havia nada no mundo de que gostasse mais do que de música. Fato que só acentua a sua dialética e autonomia diante do Modernismo mais ortodoxo or todoxo,, as aproximações e fugas às quais nos referimos anteriormente, pois demonstra o 66
A obra de Manuel Bandeira
quanto as ricas possibilidades latentes no princípio poético da linguagem de Bandeira não poderiam caber em dogmas nacionalistas modernistas. Como letrista, Bandeira mantém os elementos básicos de sua estética, acentuando a leveza de sua dicção, que incorpora o coloquial ao literário sem perder em densidade significativa. O letrista da canção aprofunda alguns procedimentos estéticos comuns ao poeta, como o uso artístico e criativo de chavões surrados; a reciclagem das frases feitas e lugares-comuns que voltam, depois de filtrados por sua poesia, a circular na linguagem cotidiana, refrescados com novos sentidos.
O crítico de arte ar te e literatura Além de produzir o exercício crítico em suas crônicas e nos ensaios publicados na mídia, Manuel Bandeira organizou diversas antologias, como a famosa Antologia dos Poetas Brasileiros Bissextos Contempor Contemporâneos âneos (1946). O poeta que biografou vários dos nossos poetas românticos escreveu também textos fundamentais para a compreensão da arte brasileira, e principalmente pri ncipalmente da nossa poesia (BANDEIRA, 1986, p. 21-34). AutoDentre as obras que se voltam para esse universo poético, destacam-se A Autoria das Cartas Chilenas , Apre Apresent sentação ação da Poes Poesia ia Brasi Brasileir leira a e “A “A versificação em língua portuguesa”. Neste último texto, escrito para a Enciclopédia Delta Larousse e publicado em 1956, Manuel Bandeira cita o poeta francês Louis Aragon, mas tem por base as obras de autores brasileiros e portugueses, de diferentes contextos e estilos literários. Além de sua própria poética, Bandeira cita Camões, Sá de Miranda, Bocage, Gonçalves Dias, Castro Alves, Alberto de Oliveira, Olavo Bilac, Cassiano Ricardo, Murilo Mendes e Jorge de Lima, dentre outros (BANDEIRA, s./d., p. 3.239).
Além dos dicionários de rimas, este estudo é elaborado com base em três textos pioneiros: o Tratado de Versificação Portuguesa , de Antonio Feliciano de Castilho, estudo publicado “para “para uso das escolas” em Lisboa, em 1858; 1 858; o Tratado de Versificação, de Olavo Bilac e Guimaraens Passos, publicado em 1905; e A Arte de Fazer Versos, de Osório Duque-Estrada – o poeta e crítico crí tico autor do Hino Nacional Brasileiro (BANDEIRA, s./d., p. 3.249). No desenvolvimento dos núcleos temáticos concernentes à versificação, o poeta do Carnaval destaca os seguintes temas: “O verso e seus apoios rítmicos. – A rima. – A aliteração. – O encadeamento. – O paralelismo. – O acróstico. – O número fixo de sílabas. – A estrofação. – Os poemas de forma fixa. – O verso livre” (BANDEIRA, s./d., p. 3.239). 67
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Ao referir-se a alguns tipos de versos bastante utilizados por ele próprio na sua poética moderna, diz Bandeira: Ban deira: “Os versos que não rimam são chamados brancos ou soltos; os que estão fora da medida, quadrados”. Mas ele só cita um poema inteiro seu – “Chama e fumo”4 – quando se refere à “vilanela” (BANDEIRA, s./d., p. 3.248): A vilanela, forma francesa, é uma variedade da composição em tercetos. Constrói-se sobre duas rimas. O primeiro e o terceiro versos são, alternadamente, alternadamente, o último verso dos demais tercetos, e ambos juntos os dois últimos versos do quarteto final. Como se pode ver em “Chama “Chama e fumo” fumo”,, de Manuel Bandeira: Amor – chama, e, depois, fumaça... Medita no que vais fazer: O fumo vem, a chama passa... Gozo cruel, ventura escassa, Dono do meu e do teu ser, Amor – chama, e, depois, fumaça... Tanto ele queima! E, por desgraça, Queimado o que melhor houver, O fumo vem, a chama passa... Paixão puríssima ou devassa, Triste ou feliz, pena ou prazer, Amor – chama, e, depois, fumaça... A cada par que a aurora enlaça, Como é pungente o entardecer! O fumo vem, a chama passa... Antes, todo ele é gosto e graça. Amor, fogueira linda a arder! Amor – chama, e, depois, fumaça... Porquanto, mal se satisfaça Porquanto, (Como te poderei dizer?...), O fumo vem, a chama passa... A chama queima. O fumo embaça. Tão triste que é! Mas... tem de ser... Amor?... – chama, e, depois, fumaça: O fumo vem, a chama passa...
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O referido poema foi escrito em Teresópolis, em 1911, e publicado no primeiro livro do poeta, A Cinza das Horas, de 1917, cuja edição de 200 exemplares foi “custeada “custeada pelo autor ” (BANDEIRA, 1986, p. 9-10).
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Manuel Bandeira e o seu retrato feito por Candido Portinari.
Itinerário de Pasárgada Escrito a partir de uma proposta dos escritores Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, Itinerário de Pasárgada foi publicado em 1954. O livro é uma biografia intelectual de Manuel Bandeira, na qual ele narra a sua formação de homem de letras e a produção da sua literatura no Brasil do século XX. Na construção desta poética moderna, Bandeira nos apresenta as inúmeras influências e trocas criativas que vivenciou para configurar o estilo de sua poesia. Vamos nos deter nos diálogos inventivos e existenciais que estabeleceu com um de seus maiores interlocutores, Mário de Andrade. A seguir, o autor nos narra suas impressões acerca do autor de Pauliceia Desvairada, e a marca dele em sua obra (BANDEIRA, 1977, p. 62): Não sei que impressão teria recebido da Pauliceia, se a houvesse lido em vez de a ouvir da boca do poeta. Mário dizia admiravelmente admiravelmente os seus poemas, como que indiretamente os explicava, em suma convencia. Apesar de certas rebarbas que sempre me feriram na sua poesia, senti de pronto a força do poeta e em muita coisa que escrevi depois reconhecia a marca deixada por ele no meu modo de sentir e exprimir a poesia. Foi, me parece, a última grande influência que recebi [...]. Grande influência, repito, e de que eu tinha tão clara consciência, que depois de escrever certos poemas – “Não sei dançar”, por exemplo, “Mulheres”, “Pensão familiar” – estive quase a inutilizá-los [...]
Bandeira escreve ainda que não destruíra os seus poemas porque o próprio Mário o “convenceu” “convenceu” daquela “ilusão” “ilusão”.. E continua nessa escrita em torno do primeiro
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encontro dos dois poetas, e da narrativa desta amizade que muito contribuiu para a construção da nossa modernidade literária. Diz o poeta (BANDEIRA, 1977, p. 63): “[...] O encontro em casa de Ronald de Carvalho prolongou-se numa amizade que se fortaleceu através de assídua correspondência. Durante anos nenhum dos dois não escrevia poema que não submetesse à crítica do outro, e creio que esta dupla corrente de juízos muito serviu à depuração de nossos versos. [...]” Acerca da sua ausência na Semana de Arte Moderna de São Paulo, evento que funda o Modernismo brasileiro em 1922, e do qual Mário é um dos seus expoentes, Bandeira é direto, confirmando o que faláramos anteriormente anterior mente a respeito de sua não ortodoxia modernista, embora confesse dívida ao movimento (BANDEIRA, 1977, p. 65): “Também não quisemos, Ribeiro Couto e eu, ir a São Paulo por ocasião da Semana de Arte Moderna. Nunca atacamos publicamente os mestres parnasianos e simbolistas, nunca repudiamos o soneto nem, de um modo geral, os versos metrificados e rimados. Pouco me deve o movimento; o que eu devo a ele é enorme. [...]”
Texto complementa comp lementa r Discurso do Sr S r. Manuel Bandeira1 (BANDEIRA, 2007)
Senhores, A comoção com que neste momento vos agradeço a honra de me ver admitido à Casa de Machado de Assis não se inspira somente na simpatia daqueles amigos que a meu favor souberam inclinar os vossos espíritos. Inspira-se também na esfera das sombras benignas, a cujo calor de imortalidade amadurece a vocação literária. A mim estimulava-me particularmente a lembrança de uma sombra familiar, a de meu tio Sousa Bandeira, inteligência tão fina e discreta, falecido prematuramen prematuramente te quando realizava a melhor parte de sua obra, evocadora da vida do meu querido Recife nos fins do século passado; meu tio que, sentindo talvez o perigo dos preconceitos parnasianos que 1
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Trecho inicial do discurso de posse do poeta na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, em 1940.
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anto seduziam a nossa adolescência, me aconselhava na dedicatória de um tratado de versificação: “A “A meu sobrinho, para que recorde apenas a técnica o verso, porque quanto à essência o melhor é pedir inspiração à sua própria lma.” Conselho que segui sempre e a que devo o que porventura haja de menos mau em meus poemas. Estimulava-me a recordação do gênio tutelar desta Academia, o qual, entre outras advertências de sutil entendiment entendimento o em matéria de poesia, chamara a minha atenção para a boa qualidade das rimas “ligadas ao assunto”. Estimulava-me a lição, no Externato Pedro II, de alguns mestres que foram vossos confrades e dos mais eminentes: Silva Ramos, que me iniciou em versar como matéria viva e não antigualha didática a linguagem dos velhos clássicos portugueses; José Veríssimo, Veríssimo, que me abriu os olhos para ver em nossos poetas românticos os de mais rico e sincero sentimento que já tivemos; Ramiz Galvão, meu primeiro professor de grego; João Ribeiro, R ibeiro, com quem posso dizer que aprendi a discernir o verdadeiro conceito da tradição, que jamais foi incompatível i ncompatível com as aventuras fascinantes do espírito. O afeto presente dos amigos vivos, a saudade dos mestres desaparecidos são motivos que nos levam lisonjeiramente à indulgência para conosco. Só depois de eleitos começamos a sofrer o peso da responsabilidad responsabilidadee que nos incumbe. Só então sentimos em cheio que esta é verdadeiramente a Casa de Machado de Assis, simbolizado no nome do autor de Brás Cubas o que ela representa de tradição gloriosa para o nosso povo. Não se trata de uma conclusão a que cheguemos por avaliação pessoal: ela se impõe i mpõe aos eleitos diante das manifestações de regozijo e carinho com que os envolvem desde logo os seus parentes, os seus amigos, alguns perdidos de vista desde a infância, simples relações e numerosas simpatias que eles desconheciam. A opinião pública como que sente obscuramente o papel que a esta Casa cumpre em nossa vida intelectual. i ntelectual. A quem entra nesta Companhia não pode tal movimento de confiança deixar de influir as mais severas razões de modéstia. A essa responsabilidade de ordem geral se e acrescenta outra: a de pronunciar o elogio de um homem – o meu patrono –, a cuja
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nobreza de inteligência e de coração não se fez ainda toda a justiça. O cinquentenário de sua morte passou quase despercebid despercebido. o. No entanto, na hora atual, em que um sociólogo da clarividência de Gilberto Freyre denuncia denuncia com palavras cheias de apreensões o perigo que ameaça a velha cultura luso-brasileira, é de homens ardentes e combativos como Júlio Ribeiro que necessitamos, almas - procelárias com valor e coragem bastantes para enfrentar o tumulto das tempestades tempestades.. Da releitura atenta que fiz de suas obras saio envergonhado da minha fraqueza de poeta menor, capaz tão-somente de reduzir a ritmos a pobre melancolia de suas emoções pessoais; saio também com o coração pesado das injustiças que envenenaram os dois últimos anos do romancista de A Carne. Ao escritor vibrátil e inovador, que tinha até o ridículo a paixão das ideias, não lhe reconheceram reconhecer am os contemporâne contemporâneos os senão a glória de gramático. Grande gramático na verdade. Mas o gramático nunca repontou indiscretamente no escritor ou no homem. E o romancista foi justo consigo mesmo quando de sua pessoa falou indiretamente na famosa carta car ta de sua personagem Lenita: “Júlio “Júlio Ribeiro, um gramático que se pode parecer com tudo menos com um gramático: não usa simonte, nem lenço de Alcobaça, nem pince-nez, nem sequer cartola. Gosta de porcelanas, de marfins, de bronzes artísticos, de moedas antigas. Tem, ao que me dizem, uma qualidade adorável, um verdadeiro título de benemerência – nunca fala, nunca disserta sobre cousas de gramática”. Glória de gramático não poderiam negar-lhe. Não foi gramático, como tantos outros gramáticos, para escrever mais uma gramática. Professor de sua língua, sentiu a necessidade de introduzir em nossos estudos linguísticos os métodos adotados pelos mestres alemães, ingleses e franceses. Não era desses caturras que se encastelam na Gramática e depois se arriscam em incursões temerárias pela literatura. Não. Já tinha reputação firmada de jornalista intrépido e romancista de Padre Belchior de Pontes quando em 1881 deu a lume a sua Gramática Portuguesa. Era o rompimento com a rotina gramatical dos Soteros dos Reis e dos Soares Barbosas. Desde 79, em artigos publicados no
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Diário de Campinas, se insurgia Júlio Ribeiro contra a gramática “concebida como uma disciplina árida, autoritária, dogmática, como uma instituição metafísica existente a parte rei, como uma essência universal do realismo escolástico”. Gramática que tinha o desplante de acusar Camões de incorreto no verso “E folgarás de veres a polícia”. A gramática, ensinava ele, “não faz leis e regras para a linguagem; expõe os fatos dela”. Era o bom e novo conceito. Assim o sentiram os espíritos mais esclarecidos aqui e em Portugal. Teófilo Teófilo Braga saudou o livro como o melhor do gênero em nosso idioma. i dioma. Capistrano de Abreu exprimiu-se assim: “Não é só notável, é superior”. Claro que o prosseguimento dos estudos da língua dentro dessa mesma orientação aberta por Júlio Ribeiro deveria tornar o seu livro de interesse sobretudo sobretudo histórico nos dias de hoje. O próprio autor avançaria mais e nas Cartas Sertanejas haveria de escrever que “o “o uso popular em matéria de linguagem é autoridade decisiva, jus et norma loquendi loquendi , quando a massa indouta e sensata do povo, em obediência inconsciente às leis da glótica, que afinal são leis fisiológicas, altera a forma das palavras matrizes”. Quero crer fosse, pelo menos em parte, essa inconsciente obediência às leis da glótica que tenha suscitado as formas brasileiras de colocação dos pronomes oblíquos. [...]
Dicas de estudo Para outras abordagens acerca da obra de Manuel Bandeira, recomendo:
assistir ao documentário Manuel Bandeira: o habitante de Pasárgada . Trata-se de uma adaptação do filme “O Poeta do Castelo”, com argumento e direção de Joaquim Pedro de Andrade. Em preto e branco, a belíssima obra retrata o cotidiano poético e solitário do autor, com imagens do seu apartamento e do centro do Rio de Janeiro em 1959. A adaptação é feita por Fernando Sabino e David Neves, lançada pelo selo Biscoito Fino, do Rio de Janeiro; 73
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ouvir o cd Manuel Bandeira por Juca de Oliveira . Lançado pelo selo Luzes da Cidade, a obra contém 36 poemas do autor pernambucano, destacando-se textos clássicos como “Tereza”, “Irene no céu”, “Pneumotórax” e “Evocação do Recife”. O ator Paulo Autran e a atriz Cacilda Becker também gravaram poemas de Manuel Bandeira. Uma nova edição de 50 poemas escolhidos pelo autor saiu em 2008 pela editora Cosac Naify, incluindo cd com textos na voz do próprio poeta;
ler Crônicas Inéditas I , de Manuel Bandeira. O livro possui organização, posfácio e notas de Júlio Castañon Guimarães, e foi lançado em 2008, pela editora Cosac Naify. Como o próprio título anuncia, tratam-se de textos inéditos, que foram publicados na imprensa brasileira entre 1920 e 1931, e lançados 40 anos após a morte do autor. Dentre os temas mais abordados nestas crônicas repletas de poesia, destacam-se o estilo moderno da vida carioca nos anos 1920, o cinema falado, o primeiro arranha-céu do Rio, os personagens pitorescos da cidade e as artes, principalmente a música e a poesia.
Estudos literários 1.
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Apesar de ser um poeta de destaque no contexto na Semana de Arte Ar te Moderna de São Paulo, Manuel Bandeira não participou do referido evento. Por quê?
A obra de Manuel Bandeira 2.
Comente acerca da poética musical de Manuel Bandeira.
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Gabarito
A obra de Manuel Bandeira 1.
Embora tivesse dois livros publicados em 1922, Manuel Bandeira não participou do evento que comemorava o centenário da nossa independência; porém o seu poema “Os Sapos” foi lido por Ronald de Carvalho, na segunda noite da Semana. No Itinerário de Pasárgada, o poeta deixa claro que o seu apreço pelos mestres da tradição (leia-se os poetas parnasianos e simbolistas) é maior que a irreverência e a demolição que nortearam a maioria das propostas estéticas daquele nosso primeiro Modernismo, embora o poeta confesse sua dívida enorme para com o movimento.
2.
Não é por acaso que o crítico e poeta Haroldo de Campos disse que Manuel Bandeira possui talvez a a dicção mais sutil do nosso Modernismo . Uma das principais características da poética do autor pernambucano é a recorrência aos ritmos construídos por meio dos versos livres, atentando para as suas entoações e pausas. Isso possibilita a construção de um texto cuja musicalidade é conferida pelo leitor, leitor, seja na leitura do poema ou na audição da letra da canção.