A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NA PERSPECTIVADA ANÁLISE DO DISCURSO Silvia Maria Pinheiro Bonini Pereira (UNIRIO e UNESA) INTRODUÇÃO Conforme se verifica na doutrina contemporânea, em termos lingüísticos, há um consenso quanto aos estudos de Ferdinand Saussure como ponto de partida para p ara um estudo científico, principalmente no aspecto da existência da concepção dicotômica entre língua e fala. Ancorado nos estudos da linguagem – iniciados por Saussure e até os dias de hoje adotados, reformulados ou preteridos por vários lingüistas –, os estudos da linguagem apontam para um novo elemento: o social. A análise do discurso, além de outros campos de abordagem, propicia o avanço desse novo elemento sob a perspectiva da análise crítica do discurso. Um dos principais estudiosos da Análise do Discurso, Norman Fairclough, buscou elaborar uma doutrina que conjugasse as teorias sociais e da linguagem, com um olhar multidisciplinar. O lingüista, então, propôs uma análise do discurso, sob o ponto de vista crítico, combinando o texto, a prática discursiva e a prática social. A proposta deste trabalho se fixa na perspectiva da Análise do Discurso de Norman Fairclough, no corpus “Mateus 4:1-11 (Nova Versão Internacional – Sociedade Bíblica Internacional)”, em anexo, objetivando apresentar as práticas lingüísticas contidas no texto – permeadas por valores sociais e que favorecem a uma determinada percepção da realidade em detrimento de outras –, que promovem choques ideológicos de poder. Dessa forma, torna-se relevante compreender quais são os instrumentos lingüísticos utilizados no texto em análise, capaz de reconstruir realidades e produzir identidades sociais, os quais estão intimamente ligados a relações de grupos sociais e ideologias de poder.
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A IDENTIDADE NA ANÁLISE DO DISCURSO Como afirma Brandão (2004, p. 53-86): “a língua tinha como função representar o real. [...] Esse poder de língua continua na episteme moderna, [...] enquanto função demonstrativa”. Assim, para a autora, a linguagem desloca-se do campo da representação para o da mostragem. Neste sentido, o sujeito do discurso passa a ocupar uma posição distinta, ou seja, de elemento essencial no processo de significação do discurso, uma vez que este perpassa pela ideologia e desloca o conceito de sujeito. A constituição dos sujeitos no discurso frente às práticas discursivas, em um processo de transformação e de mudanças na “identidade social”, está presente no texto em análise. Cumpre, neste sentido, mencionar Stuart Hall (2006, p. 41), que entende: Que os modernos filósofos da linguagem como Jacques Derrida, influenciados por Saussure e pela ‘virada lingüística’ – argumentam é que, apesar dos seus melhores esforços, o/a falante individual não pode, nunca, fixar o significado de uma forma final, incluindo o significado de sua identidade.
A noção de Análise Crítica do Discurso em Fairclough amplia o conceito de texto e considera a língua como um elemento constitutivo de identidades sociais. Trata-se de uma prática social que se arraiga nas relações de poder e que subordina os sujeitos. Deste modo, uma prática discursiva de domínio consiste em permitir a perpetuação da ideologia dominante, uma vez que, através da linguagem, o dominador restringe e controla – através das abreviações, cisões e autoridade de conteúdos – os sujeitos sociais. A Análise do Discurso, na abordagem crítica, visa demonstrar que qualquer manifestação lingüística pode ter diferentes sentidos e, em assim sendo, interfere no “olhar” do receptor. Este, por sua vez, pode ser manejado por um determinado discurso inserido dentro de uma visão singular de mundo, como ocorre no discurso religioso, em especial, o bíblico.
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O DISCURSO RELIGIOSO No texto, em análise, há a perspectiva de manipulação, realizada através de metáforas e analogias que criam, não só relações sociais, também identidades sociais. A metáfora, segundo Hermann apud Othon Moacyr Garcia (2004, p. 107) consiste em “um dos meios mais importantes para a criação de denominações de complexos de representações para os quais não existem ainda designações adequadas”. Contudo, há uma outra concepção, ainda em Othon Moacyr Garcia ( idem), de “um meio de caracterização pitoresca”, efeito de um procedimento cognitivo através do qual, para se referir a um determinado elemento, utiliza-se a denominação de outro. Já a analogia consiste em “uma semelhança parcial que sugere uma semelhança oculta, mais completa [...], as semelhanças são apenas imaginárias. Por meio dela, se tenta explicar o desconhecido pelo conhecido, o que nos é estranho pelo que nos é familiar” (Garcia, 2004, p. 232). Assim, verifica-se que as analogias se convergem para as metáforas e ambas para o discurso religioso apresentado no texto, com suas ideologias e visões particulares. No início do texto há a delimitação do espaço e do tempo: “Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo Diabo”, além de ter sido criado uma atmosfera na qual a narrativa se
distancia da compreensão empírica do sujeito. Ainda na introdução, verifica-se que surge o problema: a tentação, que persiste em toda narrativa. O segundo parágrafo foi construído de forma a mostrar que Jesus estava em situação de possível sujeição, já que se encontrava em jejum e “ teve fome”. Quando, então, aproveitando-se da situação, aproximou-se o “ tentador ”, sugerindo que Jesus saciasse sua fome realizando a transformação das pedras em pães. Através do movimento persuasivo, o Diabo quer convencer Jesus a seguí-lo, apelando para a sua necessidade: a fome. O terceiro parágrafo apresenta a primeira resposta de Jesus ao “tentador”, que oferece um contra-argumento à proposta e, ao mes-
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mo tempo, uma afirmação, ao mencionar que o homem também se alimenta da palavra de Deus. Neste parágrafo há a configuração da identidade social, a do homem, aquele que necessita de bens materiais, mas também de alimento espiritual. Jesus, então, estabelece uma comunicação, invertendo os papéis do discurso, ao interpretar a persuasão do outro e, com seus conhecimentos, desconstituir o discurso e convencer o Diabo de que ele está errado. O próximo parágrafo retoma o problema e, a partir de metáforas, formula as identidades. Deste modo, Jesus deixa o deserto, sendo conduzido ao templo localizado na “ cidade santa ”, onde simbolicamente se encerraria seu sofrimento, visto que, em termos de identidade religiosa, significa o local onde todos os Cristãos desejam estar, encerrando a diáspora bíblica. Continuando o parágrafo, o “tentador” provoca Jesus utilizando como argumentação as próprias palavras bíblicas enunciadas por Deus. As quais, no parágrafo seguinte Jesus responde, com um argumento de autoridade, uma vez que, as palavras de Deus, nunca devem ser postas à prova. Cumpre mencionar que um argumento de autoridade pode ser desconstituído por outro argumento mais verossímil, porém, como o texto sugere uma ideologia, tal aspecto não é contestado no diálogo entre as personagens do texto, muito menos abordado no parágrafo seguinte. Há aqui a provocação, apresentando imagens positivas e negativas da incompetência de Jesus como filho de Deus. No sétimo parágrafo, Jesus foi levado a um monte no qual visualizou o esplendor dos reinos existentes no mundo terreno, sendo mais uma vez tentado, agora com bens materiais. Trata-se da sedução, pois o Diabo apresenta elementos de manipulação apelando para valores materiais e imateriais, como: “você merecer um esplendoroso reino” ou “siga-me e não ficarás mais sozinho”, em outras palavras, terá companhia e afeto. No parágrafo seguinte vem a ordem de Jesus ao Diabo “Retire-se”, sob o fundamento de que só haveria um Deus a ser cultuado e adorado. Assim, o “tentador”, refutado por Jesus e sem argumentos, desiste de empreitada. Momento em que os anjos de Deus surgem e aliviam o sofrimento de Jesus.
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Como se observa, através da metáfora e da analogia surge uma variedade de informações ao interlocutor, que inserido figurativamente, como homem, naquela situação, cria sua identidade. O su jeito, assim como Jesus, diante de uma situação de fome, desalento espiritual ou facilidades mundanas, não deve sucumbir ao pecado, pois, em obediência e observância à palavra de Deus, será livre de todo sofrimento. Os elementos apresentados: a tentação, a sedução, a provocação, a manipulação, a fome, a ida à cidade santa e os esplendorosos reinos mundanos materializam os problemas dos interlocutores, que identificam seus sofrimentos com a tentação sofrida por Jesus. De acordo com o texto, a única salvação seria a palavra de Deus, sob o ângulo das concepções inerentes à Liturgia Cristã, como o caminho a ser seguido. Pode-se perceber que as escolhas lexicais do texto também não foram neutras. Jesus foi conduzido ao deserto, local onde se enxerga o horizonte; depois foi transportado à parte mais alta do templo e, em seguida a um monte muito alto. As passagens sugerem que a Jesus foi possibilitado ver tudo de frente e do alto, ou seja, foi capaz de ver mais além do que qualquer outro homem. O último parágrafo sugere a aceitação do Cristianismo como a única religião, uma vez que se ressalta o poder da palavra de Deus, em conduzir os homens à paz espiritual e ao conforto material. Como inicialmente mencionado, a ideologia passa despercebida e foi construída através da aquiescência que, por sua vez, leva à manutenção e à reprodução do status quo de dominação. As próprias escolhas lexicais, destacadas na análise, apoiadas nas analogias e metáforas produzem a ideologia Cristã, a qual apenas existem duas verdades distintas: a do caos e a da salvação. No jogo das semelhanças, Jesus representa os problemas pelos quais as pessoas, por ele também representadas, sofrem. Evidencia-se no discurso, portanto, uma relação de poder e dominação.
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CONCLUSÃO Cumpre ressaltar que o escopo da presente análise não foi o de questionar os dogmas cristãos. Buscou-se apenas, apontar como os aspectos discursivos de uma ideologia, reiterada e de aparente neutralidade, apresenta-se no discurso. De acordo com a breve análise do fragmento, percebeu-se que os discursos dialogam entre si e materializam-se no texto onde tomam corpo, veiculando, a partir de mecanismos lingüísticos, as vozes da instituição da qual fazem parte. No caso em análise, abordou-se a analogia, a metáfora, as escolhas textuais, a partir das quais foram criadas as relações e identidades sociais reproduzidas no texto. Comparando-se a tentativa de manipulação suportada por Jesus e a sofrida pelo interlocutor ao ler o texto. Verifica-se que só há duas opções ao sujeito: “fazer” o que o texto propõe, ou seja, seguir a palavra de Deus; ou “não fazer” e correr o risco das sanções dogmáticas – desconhecidas e temidas – e sociais, como a perda de identidade. REFERÊNCIAS BRANDÃO, Helena N. Introdução à Análise do Discurso. Campinas: UNICAMP, 2004. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Unb, 2001. FIORIN, José Luiz (org.). Introdução à Lingüística II. Princípios de Análise. São Paulo: Contexto, 2002. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
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ANEXO Então Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo Diabo. Depois de jejuar quarenta dias e quarenta noites, teve fome. O tentador aproximou-se dele e disse: “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães”. Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus’”. Então o Diabo o levou à cidade santa, colocou-o na parte mais alta do templo e lhe disse: “Se és filho de Deus, joga-te daqui para baixo. Pois está escrito: ‘Ele dará ordens a seus anjos a seu respeito, e com as mãos eles segurarão, para que você não tropece em alguma pedra’”. Jesus lhe respondeu: “Também está escrito: ‘Não ponha à prova o Senhor seu Deus’”. Depois, o Diabo o levou a um monte muito alto e mostrou-lhe todos os reinos do mundo e o seu esplendor. E lhe disse: “Tudo isto te darei, se te prostares e me adorares”. Jesus lhe disse: “Retire-te, Satanás! Pois está escrito: ‘Adore o Senhor seu Deus, e só a ele preste culto’”. Então o Diabo deixou, e anjos vieram e o serviram. Mateus 4:1-11
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