Julio Bentivoglio Bentivoglio Marcos Antônio Lopes organizadores
A constituição da História como ciência De Ranke De Ranke a Braude Brau dell
Julio Bentivoglio Bentivoglio Marcos Antônio Lopes organizadores
A constituição da História como ciência De Ranke De Ranke a Braude Brau dell
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
A constituição da História como ciência : de Ranke a Braudel / Julio Bentivoglio, Marcos Antônio Lopes, (organizadores). – Petrópolis, RJ : Vozes, 2013. Vários autores. Bibliografia ISBN 978-85-326-4606-4 – Edição digital 1. Ensaios 2. Historiadores 3. Historiografia I. Bentivoglio, Julio. II. Lopes, Marcos Antônio. 13-02802 _________________________ CDD-907.2 CDD-907.2 Índices para catálogo sistemático: 1. Historiografia Histo riografia contemporânea contemporânea _____ 907.2 907.2
© 2013, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora. Diretor editorial
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João Batista Kreuch ditoração: Fernando Sergio Olivetti da Rocha rojeto gráfico: Sheilandre Desenv. Gráfico Capa: Felipe Souza | Aspectos Imagem da capa: The Bookworm (detalhe), Carl Spitzweg. Cerca de 1850. ISBN 978-85-326-4606-4 – Edição digital Editado conforme o novo acordo ortográfico.
Sumário Prefácio 1 Leopold von Ranke (1795-1886) Origem, formação, teses A desnatur alização do processo histórico A hermenêutica rankeana Conclusão Referências 2 Jules Michelet (1798-1874) A escrita como forma de ação A polêmica com os “românticos”: o caso de Balzac A magistratura da história Breve biografia do autor Obras de Michelet Referências citadas 3 Jacob Burckhardt (1818-1897) Obras de Jacob Burckhardt Bibliografia citada 4 Henri Pirenne (1862-1935) Um historiador belga As influências recebidas por Pirenne A influência de Pirenne sobre as demais gerações de historiadores Uma grande polêmica: a Idade Média de Pirenne Conclusão: um historiador para o mundo Obras de Henri Pirenne Referências citadas 5 Benedetto Croce (1866-1952) Elementos de biografia e bibliografia A época de Croce e a tragédia da consciência burguesa As fontes formativas O sistema filosófico de Croce Obras de Benedetto Croce Referências citadas 6 Johan Huizinga (1872-1945) O elemento estético das representações históricas O outono da Idade Média e os ideais históricos de vida A história da cultura como Morfologia Nas sombras do amanhã: a crítica à cultura moderna Homo ludens: o elemento lúdico da cultura Conclusão Obras de Huizinga Referências citadas 7 Lucien Febvre (1878-1956) Dignidade de clássico Ver com as lentes dos antepassados Para uma história das mentalidades Um novo conceito de biografia O fogo e o ferro da crítica Entre a teoria e o realismo A tragédia do progresso Ambiguidades do personagem Considerações finais Obras (corpo principal da obra de Febvre)
Referências citadas 8 Marc Bloch (1886-1944) Fisionomia de Bloch, ou a canonização biográfica Cicatrizes formadoras: a originalidade e seus dilemas Ambições acadêmicas e máquinas de guerra: Será que a história nos enganou? Legado: renovação em que termos? Considerações finais: Paris, capital da história no século XX? Obras de Marc Bloch Referências citadas 9 Arnold Toynbee (1889-1975) Introdução Uma filosofia da história entre a lei e a teologia Challenge and Response Uma identidade epistemológica bipartite O duplo viés comparativo: lei e escatologia Toynbee por seus críticos Nota biográfica Obras de Toynbee Referências citadas 10 Fernand Braudel (1902-1985) O estudo dos tempos em gestação Os tempos da história em mutação De um tempo despedaçado a outro quase imóvel? A(s) herança(s) repartida(s) de Braudel? Obras de Fernand Braudel Referências citadas Os autores/organizadores Textos de capa
Prefácio Incluir suas ideias no estudo dos textos é um método subj etivo [...]. Muitos pensam que é útil e bom ter preferências, ideias mestras que dão às obras mais vida e mais encanto; é o sal que corrige a insipidez dos fatos. Pensar assim é enganar-se muito sobre a natureza da história. Ela não é uma arte, é uma ciência pura, como a f ísica ou a g eologia [...]; o melhor historiador é o q ue mais se atém aos textos. Fustel de Coulanges [...] não falei de “ciência” da história, falei de “estudo cientificamente conduzido”. [...] A fórmula cientificamente conduzida implica duas operações, as mesmas que se encontram na base de qualquer trabalho científico moderno: propor problemas e formular hipóteses. Duas operações que já aos homens de meu tempo se revelavam especialmente perigosas. Porque propor problemas ou formular hipóteses era simplesmente trair. Fa zer penetrar na cidade da objetividade o cavalo de Troia da subjetividade [...]. Lucien Febvre
Na cultura do Antigo Regime as narrativas históricas eram bastante diversificadas, sobressaindo noções da história como fonte geradora de exemplos para orientar as ações dos varões de Plutarco. Nos gêneros de história surgidos na Europa do século XVI ao XVIII, a história transformou-se em instrumento ora de desconstrução, ora de legitimação de princípios do interesse dos Estados monárquicos emergentes, em meio aos jogos de poder daqueles tempos. Mas, ao longo do século XIX, o regime de historicidade iria se transformar, evoluindo para formas mais complexas e mais rigorosas de retratar o passado. Os estilos narrativos já haviam se alterado significativamente, e os protocolos da pesquisa incorporaram exigências e desafios novos e decisivos como, por exemplo, um senso de desprezo pela retórica e pela eloquência dos historiadores que emulava Tito Lívio e outras figuras modelares da Antiguidade. Chegara o momento de a História reivindicar para si o estatuto de ciência, o que ocorreria primeiramente e a passos mais largos na Alemanha oitocentista. Neste volume pretendemos abordar a constituição da historiografia contemporânea, nas formas como veio se esboçando desde os inícios do século XIX até os meados do XX, mormente pelo aparecimento de figuras que elevaram o ofício de historiador a alturas até então desconhecidas. De fato, na história da historiografia contemporânea, é consenso considerar o século XIX como a época clássica dos estudos históricos, o “século da história”, tal o volume de transformações e o aprimoramento dos níveis de reflexão acumulados nos domínios de Clio. Ora, a percepção do século XIX como uma espécie de “idade de ouro” dos estudos históricos parece mesmo acertada, haja vista ter se verificado nesta quadra uma nova concepção da própria história vivida, agora voltada para o planejamento de alianças estratégicas com as forças promotoras do progresso da humanidade. Contudo, seria equivocado falar em termos excessivamente genéricos, pois as formas oitocentistas da história fora bastante diversificadas, como fica bem-demonstrado na reflexão de um contemporâneo, Guizot: “Existem cem maneiras de escrever a história”. Sendo assim, são as variações nos modos de pensar e de escrever história que explicam e justificam a seleção de alguns nomes que elevaram o ofício de historiador a alturas decisivamente superiores, mesmo quando se toma e consideração predecessores da estirpe de um Jean Bodin, de um Voltaire, de um David Hume, de um Edward Gibbon, dentre outros vultos da ars historica antes da constituição do que se concebeu como a história científica, ao menos a partir de Ranke. Com o propósito de oferecer uma visão panorâmica das concepções modelares de história, numa linha de tempo de mais de um século, reunimos dez nomes da grande tradição ocidental dos estudos históricos. Em comum, todos os autores-tema aqui retratados são expoentes de alta visibilidade formando, por assim dizer, o círculo de ferro da historiografia ocidental. Com efeito, suas perspectivas teóricas e suas técnicas de investigação oxigenaram o pensamento histórico, vitalizando-o. Portanto, este volume constitui-se em plano temático cujo propósito é o de entregar ao público interessado por história da historiografia alguns dos aspectos centrais das visadas teóricas e dos eixos temáticos presentes nas concepções de cada um desses vultos ilustres segundo a ordem de nosso sumário. E, para que o livro não se ressentisse tanto da escassez de unidade e de identidade, como costuma ocorrer em coletâneas, solicitamos aos ensaístas que incluíssem em suas análises um núcleo mínimo comum de temas. Dessa forma, em cada capítulo os leitores hão de se deparar com aspectos como: as matrizes intelectuais formadoras dos diferentes perfis dos autores, os assuntos mais recorrentes ou predominantes em seus textos, as inovações e reinvenções promovidas no terreno da pesquisa, além dos conceitos criados ou apropriados por eles em seus respectivos domínios. Será possível distinguir também alguns aspectos centrais relacionados aos contextos de produção das diferentes obras em análise, além de outros traços idiossincráticos definidores das concepções de cada historiador. Da leitura desse conjunto de textos patenteia-se um processo de transformações profundas na escrita da história, algo completamente diverso das narrativas da Época Moderna, nas quais predominavam o tom moralista e exemplar adornado por
adereços retóricos de efeito. Assim sendo, as narrativas laudatórias dos grandes personagens e de seu teatro de operações (não se pode deixar de pensar aqui em Voltaire e seu herói civilizador, Luís XIV), cederam lugar a outras formas de história, agora marcadas pela diversificação dos horizontes temáticos e das metodologias de pesquisa do passado. Foi assim que, da ênfase sobre a dimensão retórica, exemplar e narrativa típicas do Antigo Regime, passou-se a novas formas de discurso histórico, com o advento de análises de natureza supostamente científica e, portanto, pretensamente neutras. De sua antiga condição de oficina de lições morais, a história veio a ser concebida por algum tempo como campo de investigação isento das nódoas da subjetividade, o que lhe permitiu reivindicar o status de protagonista das ciências sociais. Com o advento das sociedades industriais e de massas – movidas a capitalismo e a ondas crescentes de participação política –, o pensamento histórico contemporâneo logrou promover diferentes e inovadoras interpretações da realidade, suficientemente desvinculadas de interesses estatais sufocadores. Com efeito, os avanços da pesquisa histórica e a consequente elevação dos índices de complexidade do campo teóricometodológico – a partir de trabalhos seminais como os desenvolvidos pioneiramente por Leopold von Ranke, por Jules Michelet, por Jacob Burckhardt e por outros historiadores oitocentistas –, desencadearam desdobramentos decisivos no médio e no longo prazos. Tanto assim que, no decorrer da primeira metade do século XX, novas formas de se conceber a história emergiram com impacto transformador. Da estrita esfera da política tradicional, dos discursos oficiais e das ações dos varões insignes passou-se às articulações complexas das diferentes dimensões da vida social, pelo alargamento dos horizontes temáticos dos historiadores. Ainda que não se possa falar em termos de um “fim” definitivo da história política tradicional, com as suas narrativas encomiásticas tecidas em torno de grandes homens e de seus portentos, foi a partir dos inícios do século XX que os historiadores incluíram em suas agendas programáticas temas até então inusitados que, em certos casos, geraram um senso de estupefação no interior da própria comunidade de especialistas. Um exemplo notório de certa perturbação da cultura histórica é o célebre livro publicado por Marc Bloch em 1924. Resumindo as atitudes dos historiadores à época, não se compreendeu em Bloch a iniciativa de transformar uma peça do folclore monárquico francês – como era tradicional e conservadoramente concebida a longeva tradição da realeza sagrada cristã da Idade Média e da Época Moderna – em assunto digno de história. A par de ações inovadoras no campo da pesquisa histórica, como a inclusão por Marc Bloch das crenças populares em torno ao “milagre régio”, verificou-se também o surgimento de novas maneiras de abordar os temas julgados de relevo. Metodologias transformadoras permitiram explorar antigos objetos de pontos de vista inusitados e criativos. Daí a renovação da velha e acanhada história política, agora analisada por ângulos nada usuais, ou seja, avaliada em suas dimensões simbólicas. Com o advento do movimento francês conhecido por Annales, para alguns uma verdadeira revolução na historiografia, o recurso à imaginação criadora – novo instrumento de combate dos historiadores – fez emergir uma série considerável de conquistas para a pesquisa. Foi assim que se abriram novas searas, que emergiram territórios até então completamente submersos ou ainda pouco frequentados pelos profissionais da área. A própria percepção do tempo históricosocial foi significativamente alterada, mormente pelas reflexões de Fernand Braudel em seu célebre estudo sobre o mundo mediterrâneo na época de Felipe II. A aproximação da História com as demais Ciências Sociais, pelo estabelecimento de diálogos disciplinares – travados em especial com a Psicologia, com a Economia, com a Geografia, com a Antropologia e com a Sociologia –, marcou a ascensão de uma nova história. Se até o século XVIII a História fora concebida de modo predominante como mestra da vida, ao longo do século XIX ela passou à condição de uma forma de saber referencial entre as demais Ciências Sociais. Ao menos foi essa a pretensão nutrida por alguns mestres do calibre de um Lucien Febvre ou de um Fernand Braudel. No decorrer do século XX, sobretudo em suas últimas décadas, o conhecimento histórico experimentou mutações de vulto, assumindo formas complexas e, frequentemente, antagonistas entre si. Uma boa prova desse espírito competitivo pode ser facilmente identificável no terreno da história intelectual, com as conhecidas disputas atualmente travadas entre “textualistas” e “contextualistas”. Algumas dessas complexidades emergentes e acumuladas nas últimas décadas foram expressas principalmente pela crise relativa ao estatuto científico da História, estatuto este que por longo tempo a distinguira como um padrão superior de conhecimento. A crise foi particularmente diagnosticada no debate travado em torno de sua condição narrativa, e na sua faculdade incontornável de representar subjetivamente a realidade, aspectos suficientes para inibir e atrofiar quaisquer aspirações à cientificidade e a outras dignidades superiores pretendidas pela historiografia oitocentista. Em vista disso, este livro dedica-se a dar um pouco mais de nitidez ao complexo mapa das ideias históricas, num percurso que parte dos anos 30 e 40 do século XIX, fechando-se nos anos 60 e 70 do século seguinte, período que cobre os primeiros trabalhos de Ranke e os últimos de Braudel. Lendo os textos aqui encadeados será possível visualizar contribuições definidoras, bem como alterações significativas em um lapso de tempo no qual se promoveram conquistas de vulto, sobretudo quando se olha pelos próprios retrovisores da história do pensamento histórico ocidental e se enquadra gêneros como o da Historia magistra vitae. Alinhando figuras paradigmáticas, no momento em que a História passou a ocupar um lugar
destacado no panteão das Ciências Sociais, nosso propósito é apresentar algumas novas possibilidades de leitura e de compreensão do passado que se abriram a partir da atividade intelectual de praticantes diferenciados. Como também ocorre em projetos dessa natureza, não foi tarefa simples selecionar e perfilar os dez vultos que compõem a nossa galeria de heróis historiográficos. E menos ainda quando pensamos que, no período em tela, a cultura histórica ocidental foi um mundo superpovoado por figuras de grosso calibre. Contudo, sempre é preciso fazer escolhas e nosso time titular é o que por ora entra em campo. Então, de Ranke a Braudel, a intenção é dar a conhecer algumas das movimentações mais significativas nos estudos históricos que, numa definição a ser percebida de maneira flexível, intitulamos como a constituição da História como ciência. Nesse sentido, creio que as duas referências em epígrafe – passagens de Fustel e de Febvre – pontuam de um modo bem apropriado o que há de mais significativo nas oscilações e remodelações do conceito de ciência histórica. E nestas alturas talvez seja apropriado recordar que, em nosso país, e de maneira mais nítida ao longo dos últimos dez anos, um crescente interesse pela história das formas de concepção e de escrita da história vem se expandindo e se consolidando a passos largos. E isso por uma série de motivos, entre os quais o rápido avanço da pesquisa histórica brasileira, diagnosticado de modo instantâneo pela expansão de programas de pós-graduação e pelo surgimento de um número respeitável de periódicos da área. Gerado em um contexto no qual se combinam uma série de circunstâncias favoráveis, um livro com a natureza deste que ora colocamos ao alcance do leitor chega para ocupar uma posição legítima, adequada e bastante oportuna. Expressão da atual cultura histórica brasileira, é bem possível que este esforço coletivo gere desdobramentos promissores no âmbito de nosso ensino universitário como obra promotora de reflexões teóricas, já que estratégica e preferencialmente direcionada a alunos e professores, em diferentes níveis de formação. Por último, mas não o que há de menor relevo, é preciso dizer que parcela significativa das atividades que levaram à concretização deste livro foi realizada em meio às atividades de pós-doutoramento junto ao Programa de Pós-Graduação e História da Universidade Federal do Espírito Santo. Agradeço vivamente as boas condições de trabalho proporcionadas pelo programa e, em especial, sou grato à atual coordenadora, Professora Adriana Pereira Campos (também supervisora de meu estágio), sempre muito aplicada em criar as situações mais favoráveis para o pleno êxito da empresa. Sou grato também ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina, que permitiu um ano de dedicação exclusiva às atividades do pós-doutorado. Não poderia deixar de dirigir uma palavra de sincera gratidão aos pesquisadores que, crendo na factibilidade deste projeto editorial, não somente aceitaram o desafio de compor os ensaios aqui reunidos, mas ainda cumpriram rigorosamente o prazo estipulado. Naturalmente que o livro não teria se concretizado sem a dinâmica presença do Professor Julio Cesar Bentivoglio, agente decisivo nas tarefas de maior relevo. Para mim foi uma grata satisfação dividir co ele a organização deste volume. Marcos Antônio Lopes Londrina, agosto de 2012
1 Leopold von Ranke (1795-1886) Estevão Martins e Pedro Caldas
É realmente impressionante o poder das caricaturas. Na história da historiografia, e, mais especificamente, no caso de Leopold von Ranke, elas exercem uma influência tão contundente que nem mesmo dois dos nossos grandes historiadores fora capazes de reconstruir traços mais fidedignos na face deste quase mitológico historiador prussiano. De que adianta um Sérgio Buarque de Holanda ter enfatizado que Ranke buscava “grandes unidades de sentido”[1] se ainda prevalece o ataque francês dos Annales à historiografia do século XIX? Até mesmo um autor marxista – portanto, insuspeito – como Ciro Cardoso[2] tentou desfazer o equívoco. Nosso esforço aqui consistirá em colaborar com a crítica ao que Sérgio da Mata, muito apropriadamente, chamou de “mito historiográfico”[3], de modo que apenas reapresentamos, com apenas algumas modulações de enfoque e interpretação, o que um leitor atento encontra já nas páginas dos autores acima: a posição do intérprete, que se deduz a partir da obra de Ranke, não é evidente. O termo “posição” não é gratuito, pois induz ao questionamento da tarefa interpretativa que, em Ranke, não ultrapassa o senso comum. Diz-se sempre: comprovada a autenticidade das fontes, pouco restaria ao historiador senão a confirmação desta veracidade e o seu subsequente registro. Todavia, no prólogo de seu livro sobre a Reforma, Ranke escreveu que a verdade acerca do tema haveria de permanecer sendo única, mesmo que fossem escritas infinitas obras sobre tal assunto[4]. Teriam os críticos ferozes de Ranke r azão em alertar contra esta atitude passiva do historiador frente a uma verdade única? Tal atitude deixa de levar em conta a apropriação de Kant por Ranke. O acontecimento histórico tem densidade substantiva própria. O ocorrido é o que é (melhor: o que foi), mas dele só se tem o que fica (ou ficou): as fontes e suas interpretações na historiografia sucessiva. Dá-se, por conseguinte, que qualquer acontecimento está definitivamente enredado em um tempo passado. O jovem Ranke estudara a filosofia transcendental de Kant, o construtivismo de Fichte e o intuicionismo de Schelling. Foi em Kant que Ranke viu a articulação entre a iniciativa do sujeito por conhecer e a opacidade do objeto imerso no passado. O historiador é sempre de hoje, a história é sempre de ontem. A pesquisa e as fontes as medeiam. Essa mediação guarda paralelo com a construção intelectual proposta por Kant, de que o sujeito cognoscente dispõe da estrutura racional, perceptiva e intuitiva adequada a u conhecimento confiável porque demonstrável. Ou seja: nada de realismo ingênuo nem de idealismo nas nuvens. Ranke opta pela sobriedade metódica: em História, nada sem o sujeito, nada sem o objeto. O leitor terá em mãos um breve ensaio, forma talvez mais apropriada para tratar de um autor cuja obra precisa ser seriamente revista e pensada de maneira a suscitar certa polêmica. De um lado, pretendemos demonstrar que o processo histórico, em Ranke, não é um mosaico de fragmentos e tampouco um curso evolutivo. Conforme o leitor poderá perceber mais adiante – assim esperamos –, ele é uma totalidade dotada de um sentido costurado pelo fio da contingência; de outro lado, apresentaremos ao leitor a ideia de que, em Ranke, há uma prática hermenêutica capaz de nos levar a retocar sua imagem de um mero reprodutor de fatos. Para começar é útil percorrer, com Ranke, sua origem, formação e principais teses. Em seguida, volta-se à discussão relativa à sua prática hermenêutica.
Origem, formação, teses Leopoldo von Ranke viveu mais de noventa anos. Nada das transformações que ocorreram no longo século XIX europeu, em particular na Prússia, da qual se tornou súdito compulsório em 1815, escapou-lhe. Entre 1795 e 1886 testemunhou as mudanças trazidas pelo ciclone napoleônico, viveu a ordem do Congresso de Viena e viu instalar-se o Império Alemão. Sua relevância social, política, histórica, filosófica e cultural faz dele um protagonista incontornável no século XIX. Ranke nasceu em um recanto idílico da Turíngia em 21 de dezembro de 1795. A cidadezinha de Weihe, no vale do Rio Unstrut, data do século IX. Está impregnada de história, à beira de um dos muitos caminhos que cruzavam a Europa de leste a oeste. Seus habitantes sempre foram poucos, em um mundo em que a rede de pequenas cidades e vilas era quase mais importante do que polos metropolitanos. A leste de Leipzig, a sudoeste de Halle e a nordeste de Erfurt, Weihe está no coração da região luterana, ao sul de Eisleben, cidade natal de Lutero. O ambiente cultural é o do luteranismo detalhista, rigoroso,
modesto, ascético mesmo. Weihe se distingue por ser o berço de uma geração de intelectuais, todos da família Ranke. A fé cristã a marca, a teologia a motiva, a pastoral religiosa a mobiliza, o direito a faz viver. Com efeito, o pai de Ranke, descendente de uma tradição luterana de pastores, passa a exercer a profissão de advogado e oficial de justiça em Weihe. A posição social da família Ranke corresponde bem ao que se chama de “burguesia intelectual” – uma classe médiaavant l’heure cuja plataforma de ascensão e consolidação socioeconômica e cultural se tornou possível, ainda no século XVIII, pela educação e pela formação, e não pelo berço. A ética do esforço, do trabalho e da competência, sobretudo sob as circunstâncias adversas de não dispor de herança pecuniária, foi uma vivência própria da família de Gottlob Ranke, incutida em seus filhos. Mesmo se os meios de subsistência bastassem, eram limitados e, sabia-se, somente frutificariam mediante dedicação. Leopoldo von Ranke, o filho mais velho, foi feito o portador do projeto familiar de sucesso social e profissional. A expectativa nele depositada impregnou sua formação e suas perspectivas. Desde jovem ambicionava produzir “algo de válido” e alcançar projeção[5]. Estudou em escolas de primeira linha e formou-se professor secundário, pela Universidade de Leipzig, em 1818. Iniciou sua carreira em um ginásio em Frankfurt/Oder, tornando-se logo conhecido como um historiador promissor. Tal renome valeu-lhe a nomeação para professor na Universidade de Berlim, em 1825, onde exerceu a profissão ininterruptamente até retirar-se, em 1871. A atuação de Ranke foi decisiva não apenas na conformação do modelo historiográfico da investigação metódica da História, nos termos praticados contemporaneamente, mas igualmente na institucionalização da História como uma especialidade universitária (é o criador do modelo do Seminário de História como utilizado até os dias de hoje nas universidades alemãs, e não só) e como uma tarefa do Estado (com a criação da Comissão Histórica, em 1858, na Real Academia das Ciências da Baviera, em Munique). As duas dimensões da atuação de Ranke são importantes para entender o alcance de sua obra e o impacto de seu legado. No discurso laudatório do 90º aniversário de Ranke, em 1885, o historiador Heinrich von Sybel (1817-1895), seu discípulo, afirmou que Ranke foi uma espécie de pai da pátria ( praeceptor Germaniae), pois falava desde sua convicção profunda de que a história concorria inevitavelmente para a constituição dos Estados-nações e, por conseguinte, também para a instituição do Império Alemão. Ranke formou, indistintamente, representantes das mais diversas correntes sociais: intelectuais e estadistas, conservadores e liberais, estetas e românticos, católicos e protestantes. Para Sybel, a Escola de Ranke (com sua clara opção pelo tema político) fez, da escola histórica, a escola da Alemanha. Como Ranke chegou lá? As portas se abriram em 1824 com a publicação do primeiro volume de sua História dos povos romanos e germânicos. A carreira em Berlim começa no ano seguinte, na mais recente e moderna universidade alemã. Portas sociais e acadêmicas são-lhe abertas e, em 1827, recebe autorização para viajar, a fim de visitar e consultar bibliotecas e arquivos. Essa viagem acadêmica dura até 1831. A intimidade com a pesquisa de arquivos torna-se uma marca registrada de Ranke: Viena, Veneza, Roma, Bruxelas, Paris, Londres. A prática da viagem erudita de pesquisa incorpora-se à constituição mesma do pensamento histórico. Ranke nutriu interesse pela atualidade política do Estado prussiano. Malgrado seu engajamento, não teve sucesso. Entre 1832 e 1836 dirige a Revista histórico-política, por incumbência do político e editor Friedrich Perthes, e por encomenda do ministro prussiano do Exterior, Conde von Bernstorff. Essa revista tinha por objetivo ser o “órgão de defesa da política da burocracia prussiana esclarecida contra a crítica liberal da esquerda e contra a oposição reacionária”[6]. A concorrência entre a atualidade política e o cuidado de Ranke em preservar a qualidade histórico-metódica da revista levou a interesses conflitantes. Somente dois volumes saíram. Ela firmou, contudo, o parâmetro metódico que definiu o campo histórico praticado pela Revista de História ( Zeitschrift für Geschichtswissenschaft , 1844-1848) e a Revista histórica ( Historische Zeitschrift ), fundada em 1859 por Sybel e publicada até hoje. Pode-se dizer que o parâmetro rankeano inclui pelo menos três grandes princípios: o rigor metódico para estabelecer a qualidade da informação extraída das fontes; a amplitude, a articulação e a complementaridade entre os campos de conhecimento (teologia, filologia, antiguidade greco-romana, direito etc.); a recusa de qualquer forma de pensamento dogmático, transcendente ou dualista. A síntese dessa atitude se dá na História: como conhecimento, como procedimento, como experiência de vida. Para Ranke, é na História, com a História e pela História que o ser humano alcança o maior saber de si, o único acesso à compreensão plena da vida humana. Uma das formas de vida humana que mais o intrigou foi a institucionalização da vida social no Estado. Seu olhar se volta para a história política com um interesse político mitigado – preocupado em identificar as constantes da vida política e sociedade, para além das nações concretas. Um Estado é, para ele, uma entidade em que se sustentam os princípios ou ideias universais. Sua compreensão da França pré-revolucionária atribuía-lhe um triplo princípio: catolicismo, monarquia, romanidade. Tais princípios não existem fora da História, pois, segundo seu entendimento, desenvolvem-se em um processo dinâmico, ao longo do qual o Estado, a partir dos impulsos imanentes de sua evolução particular, chega à realidade desses
princípios evolutiva ou combativamente. No plano histórico-político, Ranke entende o sistema europeu de Estados como u construto histórico singular, compreensível exclusivamente mediante o conhecimento de sua própria constituição e evolução. Esse sistema carecia, por conseguinte, de ser reconstruído em todos os seus aspectos. Ranke dedicou-se ao tema por três caminhos: (a) o estudo da formação e do desenvolvimento dos povos românicos e germânicos; (b) a concentração no período moderno, do século XV ao XVIII; (c) o recurso ao fio condutor da história política. A escolha desse roteiro não negligenciou a consciência clara de Ranke quanto à necessidade de levar em conta as demais facetas da vida social: a economia, o direito, a literatura. No contexto internacional do sistema europeu, a identidade histórica de cada sociedade se entende (e se preserva) mediante a reflexão histórica. Para apreender a complexa correlação entre identidade própria e interação externa das sociedades europeias, Ranke lançou mão de uma abordagem semelhante à que preconizara para a pesquisa histórica: trabalhar com analogias, correspondências, analogias. Essa moldura teórico-metódica orientou toda a obra de Ranke, das monografias sobre a Guerra dos Sete Anos, sobre as revoluções de 1791 e 1795, sobre os papas, sobre a história alemã no tempo da Reforma, sobre a história da Prússia, da França ou da Inglaterra. A convergência e a interconexão de tantas facetas ele buscou sintetizar na História universal (1881-1888). Para a realização de tal tarefa, cuja abrangência requeria o reconhecido cuidado metódico, Ranke organizou sua reflexão sobre um conceito fundamental: a objetividade. Esse conceito não era (e não é) novo. Seu mote, tantas vezes repetido, de que incumbe ao historiador mostrar ou narrar como as coisas ocorreram (wie es eigentlich gewesen), é uma versão modificada de Tucídides (Guerra do Peloponeso II, 48), preocupado sempre em narrar o que foi. Em Ranke, contudo, há uma diferença qualitativa na busca da objetividade. Tucídides buscava ir além do fenômeno isolado e vê-lo na perspectiva das leis causais prevalecentes sobre a História. Até o século XVIII essa perspectiva predominava como norma para os trabalhos de cunho historiográfico. Para Ranke, contudo, saber e narrar como as coisas efetivamente ocorreram mantinha-se no âmbito dos fenômenos históricos, a que o historiador deve manter-se tão fiel quanto as fontes o permitam. Ranke introduz, assim, uma historicização radical da exigência de objetividade, vinculando-a ao tempo experimentado e refletido – pelos protagonistas em seu tempo, pelos historiadores em seu tempo. A busca da objetividade, para Ranke, situa-se assim no contexto específico da historiografia pesquisada (e de suas fontes). Distingue-se, dessa maneira, da concepção de Droysen, que vê na justiça, na consciência moral[7], o que interessa: “Nossa ciência não pretende que seu método de pesquisa seja o único científico. [...] O melhor renome do historiador não é a “objetividade”. Sua justiça o é, na medida em que busca compreender (a história)”[8]. Ranke não descarta a consciência moral. De modo algum. Sua exigência de rigor e de equilíbrio responde à demanda do tempo e à formação de que é tributário. A justiça deve ser praticada pelo historiador com respeito a todos os protagonistas e a todas as ações quando se dedique a pesquisar o passado. As formas que a investigação pode extrair do tempo passado pelo olhar perscrutador do historiador são inúmeras. Diante de uma grande variedade de aspectos possíveis, Ranke privilegia o “necessário” – ou seja, aquilo que se deve saber de cada objeto, evento, questão, tema, problema investigado[9]. Para alcançar relevância presente, esse conhecimento depende da forma da sua apresentação historiográfica. A qualidade literária e estilística da narrativa traz a dimensão artística ao argumento científico construído pela pesquisa. Uma não pode dispensar a outra. Opor beleza a verdade, para Ranke, não faz sentido. A polêmica em torno dessa questão parece-lhe vã. Em sua crítica ao romancista escocês Walter Scott, afirma que “o trazido pela História é mesmo mais bonito e certamente mais interessante do que a ficção romântica”[10]. A qualidade substantiva da pesquisa prevalece sobre os recursos estilísticos, mas não os pode dispensar. Para Ranke, mesmo que nenhum historiador possa pretender ser superior a Tucídides, todo historiador tem sua grandeza medida por sua capacidade de escrever, narrar, no horizonte de seu tempo, uma “grande história”. O quanto isso tenha de polêmico e de difícil sabe todo aquele que se debruça sobre a história e seus (des)caminhos.
A desnaturalização do processo histórico Um dos grandes clichês atados à visão da obra de Ranke é o do conceito de objetividade, que supostamente atravessaria sua obra. Sempre que citado, falado, escrito, o nome de Ranke vem acompanhado com rótulos como “ingenuidade”, “pobreza teórica” etc. Em primeiro lugar, é fundamental descolar do nome de Ranke o rótulo de “positivista”. Em comum com Auguste Comte, apenas a busca pela verdade – nesse ponto até mesmo o materialismo dialético concordaria –, e o anseio de fazer da História uma ciência. Mas o positivismo, bem sabemos, procura transpor para as humanidades os métodos científicos desenvolvidos pelas ciências naturais. Tomando por base tais métodos, dedicados a constatar regularidades nas ações humanas, há a apologia do progresso e a certeza de que a humanidade se desenvolve e se aperfeiçoa. Em um texto clássico, intitulado “O conceito de história universal”, Ranke aponta seis exigências incontornáveis para o trabalho do historiador. Acreditamos que seria interessante fazer o exercício de apresentar e analisar, mesmo que
superficialmente, cada uma destas “exigências”. A primeira delas parece confirmar a identificação da verdade histórica com a acepção sempre vaga de positivismo. Ranke afirma que a primeira exigência é o [...] amor à verdade. Na medida em que reconhecemos nosso objetivo mais elevado no evento, no estado momentâneo de alguma coisa ou no indivíduo que queremos conhecer, adquirimos uma consideração elevada por aquilo que aconteceu, se passou, se manifestou [11].
Conforme dissemos acima, é difícil imaginar que a verdade não seria exigida por um Henry Thomas Buckle, por um Johann Gustav Droysen ou por um Karl Marx. Ou mesmo por um Marc Bloch. O que há, naturalmente, é uma distinção entre os conceitos de verdade, e, ao menos de acordo com a passagem acima citada, ela, para Ranke, encontra-se no evento, que claramente tem aqui uma fundamentação ontológica, e não epistemológica. O evento é essencialmente o transitório, o fugaz. O que ocorreu, ocorreu. Saber como propriamente ocorreu, no aforismo de Ranke que ecoa Tucídides, é um esforço de compreensão do historiador, bem posterior ao que investiga. Assim, a verdade buscada é a verdade humana, e, sendo a essência humana incompleta e imperfeita, o historiador deve justamente amar esta natureza humana. Essa exigência já nos coloca em uma trilha que nos conduz a uma reflexão mais complexa. O fato não é, portanto, algo a ser reproduzido, mas é antes um evento; e, epistemologicamente, se Ranke não tinha a sofisticação de um Droysen, por exemplo, também não era de todo ingênuo. Ao seu nome associa-se imediatamente a defesa de uma objetividade casta, mas se dermos voz ao próprio autor, nos obrigaremos a pensar um pouco além. A propósito da segunda exigência – de uma “investigação documental, pormenorizada e aprofundada”[12] (algo que dificilmente qualquer historiador até hoje deixa de cobrar de si mesmo) – ele diz como se dará a investigação: Primeiramente dedicada ao próprio fenômeno, suas condições, seu contexto, sobretudo pela razão de que, procedendo de outra forma, não estaríamos capacitados para obter o conhecimento: e, consequentemente, para o conhecimento de sua essência, de seu conteúdo. Pois qualquer formação é uma formação espiritual, somente por meio de uma percepção espiritual ela pode ser apreendida. Tal percepção baseia-se na harmonia das leis que atuam no espírito do observador com aquelas por meio das quais o objeto observado se manifesta [13].
Como, portanto, sustentar incondicional e dogmaticamente a ideia de que o pressuposto de toda a historiografia de Ranke é a objetividade ingênua e casta quando ele, com todas as letras, afirma que a investigação se dá em uma harmonia entre objeto e... sujeito!? Como veremos na sequência de nosso estudo, é necessário pensar com mais calma sobre o significado da subjetividade em Ranke. Ranke, é claro, não é um subjetivista radical, um cético, um relativista. Ele fala sim em imparcialidade como uma exigência da pesquisa do historiador. Mas o que é esta imparcialidade? Ora, ela é, mais do que uma suspensão de juízo, “um interesse universal”[14]. E segue: Há aqueles que se interessam apenas pelo estudo das instituições burguesas ou das constituições, pelos avanços da ciência ou pelas realizações artísticas ou pelos enredos políticos. A maior parte da história tratou até agora da guerra e da paz. Como, porém, tais campos nunca se dão apartados um do outro, mas estão sempre articulados e até mesmo condicionando-se mutuamente – como, por exemplo, os diferentes campos científicos influenciam tanto a política externa quanto, e, sobretudo, a interna –, é necessário dedicar um interesse uniforme por todos eles [15].
Ora, todas as afirmações sobre a obra de Ranke, como um grande monumento dedicado exclusivamente à história política, à chamada “história batalha” e aos grandes estadistas precisam ser revistas e repensadas a partir da leitura do trecho acima citado. A imparcialidade é, portanto, sinônimo de universalidade; dito de outra maneira, ela é um interesse pela totalidade do ser humano, e não por uma de suas partes. O problema está – bem o sabia Ranke[16] – em conciliar esta universalidade com o caráter fragmentado do conhecimento histórico, o que demonstra, por sua vez, a consciência de Ranke da tensão entre as possibilidades gerais do ser humano e suas realizações específicas, entre o que ele pode e pôde fazer e aquilo que efetivamente fez. Mas uma refutação ainda mais precisa da suposta apologia rankeana da “história dos indivíduos” pode ser encontrada na sua descrição da “quarta exigência” do trabalho do historiador, denominada “a fundamentação do nexo causal”. Ao ponderar sobre o que seria o conceito de causa na história, Ranke contesta justamente a visão que vê nas ambições e vontades individuais a força motriz das transformações históricas: “Eu não nego que tais motivações possam ser extremamente poderosas e atuantes: nego apenas que sejam as únicas”[17]; e conclui, mais adiante: “Causas verdadeiras são variadas, profundas, passíveis de uma observação viva”[18]. É verdade que Ranke fala em uma “composição pura” de fatos relacionados entre si, mas que não podem ser percebidos imediatamente – neste sentido, lembra bastante a clássica imagem de Wilhelm von Humboldt, para quem “[...] a verdade histórica só pode ser equiparada às nuvens, que somente ganham forma à distância dos olhos”[19]. Assim, a verdade histórica, mesmo que expressa em uma composição, é revelada temporalmente, e somente com certo distanciamento o historiador pode se permitir uma perspectiva sobre ela.
Como foi bem recentemente ressaltado[20], a perspectiva (fundamento da hermenêutica) é impensável sem o devido distanciamento – espacialmente, não se pode ver decentemente aquilo de que não nos distanciamos. E é disso que, supomos, Ranke fala. E, tendo como base essa concepção de uma verdade desvendada por uma perspectiva (leia-se, por uma distância), é que podemos compreender adequadamente a quinta – e possivelmente mais controversa – exigência de Ranke: o apartidarismo. Segundo Ranke, “na história universal manifestam-se, em regra, dois partidos que se defrontam um com o outro”[21], sendo estes dois partidos adeptos de formas de apreensão do tempo como “movimento” e “resistência” (para usar termos de Ranke que, arriscamos, podem ser equivalentes a uma concepção revolucionária e a uma concepção conservadora de história)[22]. O problema não está tanto em ser revolucionário ou conservador, em ser adepto incondicional de mudanças ou de permanências, mas de cairmos no equívoco de “[...] julgarmos o passado a partir da situação atual”[23]. Pode-se dizer, então, que não se pode compreender a história a partir de seus resultados, de sua forma final obtida, mas o que aconteceu é inteligível como uma possibilidade que poderia não ter acontecido. Falível, o homem é submetido a contingências situadas para além de seu próprio entendimento. Suspender a situação atual significadesnaturalizar o processo histórico (característica essencial do historicismo), pressupondo que o presente – em que o historiador vive – poderia perfeitamente não existir. Cumpridas as cinco exigências acima, segundo Ranke, torna-se mais fácil atender à sexta e mais complexa: a compreensão da totalidade. Esta se revela como uma ideia viva no “conjunto do processo”[24] de um povo, e não em suas manifestações isoladas. Ranke pretende, portanto, escrever uma história universal. Esta, porém, não pode nem deve ser conhecida por leis naturais e incontornáveis, mas como um processo que, mesmo contingente (o curso dos eventos sempre poderia ter sido outro), ainda sim é dotado de sentido. A possibilidade de uma história universal, porém, ainda merece ser analisado com mais vagar. É a isto que nos dedicaremos na parte seguinte de nosso estudo.
A hermenêutica rankeana É importante enfatizar que a existência de um sentido irredutível a regularidades das leis científicas não implica diretamente uma atitude que, ao fim e ao cabo, leva ao quietismo. O processo histórico em Ranke, como afirma J.D. Braw em excelente artigo[25], não está baseado em uma teologia negativa. Mas Braw deita fora a criança junto com a água do banho, deixando de analisar que o luteranismo de Ranke atravessa todo o conceito de subjetividade capaz de produzir o conhecimento histórico. Ranke afirma[26] que o ponto de vista do historiador deve ser divino (e, portanto, é sempre mais do que um mero “ponto”). Este “ponto”, na falta de termo melhor, não está submetido ao tempo, e, assim, abarcaria toda a humanidade, único argumento que daria uma igualdade das épocas perante Deus. O contato com Deus daria às épocas sua substancialidade própria, uma vez que cada qual não poderia ser comparada com uma outra. Uma solução se apresenta: o contato com Deus garante aos entes históricos sua autonomia. Mas o que é esse contato? Aqui nos separamos de Sérgio Buarque[27], pois este via no protestantismo de Ranke uma fórmula que poderia muito bem ser substituída por outra, se assim lhe conviesse. Vemos de outra maneira: essa fórmula possui uma substância própria. Seguindo a trilha indicada, acreditamos que a noção de unicidade da verdade pode ser pensada desde uma concepção luterana de interpretação. A respeito de tal concepção, Gerald L. Bruns afirma que, dada a finitude do homem perante a palavra divina, torna-se claro o seguinte: “O que é realmente importante é que Lutero insista que essa situação [da interpretação – N.A.] não é de tipo alegórico; não é do tipo em que o leitor se apropria do texto, mas, pelo contrário, é do tipo em que o leitor é exposto ao texto”[28]. Não é difícil concluir que resulta desse aspecto a apologia da literalidade do texto, entendida aqui como o caráter imediato da interpretação. Novamente citamos Bruns: “[...] não há entendimento à distância. Entendimento significa ter uma conexão interna com o que está sendo entendido”[29]. Só é possível um contato com o texto, portanto, quando o intérprete vê no mesmo uma materialidade que seja infensa a projeções ou transposições de sentido. A erudição no trato das fontes, aprendida por Ranke com os filólogos clássicos, é considerada por ele um instrumento essencial ao trabalho do historiador. De algum modo, com essa ênfase, nega-se um grau de subjetividade, mas a subjetividade vetada, no caso, é aquela caracterizada pelo simples arbítrio, pela atribuição prévia de u sentido ao texto. A interpretação luterana não dispensa o sujeito, apenas o coloca em uma posição na qual ele é perpassado pelo mesmo. Tal situação se revela, portanto, menos como uma plena negação do indivíduo e mais como uma determinação da situação interpretativa, ou por outra: não se deve ler um texto com preconceitos e significados previamente determinados, do contrário toda e qualquer investigação torna-se ociosa, mera confirmação do “já sabido”. Indiscutivelmente, sente-se aqui o
veto às autoridades interpretativas das Sagradas Escrituras. Esse veto, na verdade, é uma libertação da história acumulada e sedimentada. Esta concepção luterana de interpretação, aqui apenas esboçada, pode ser adequada à obra de Ranke? Para Peter Gay, que via em Ranke tanto um historiador como um teólogo, a resposta é afirmativa. Sem essa articulação não se compreende o peso da importância das fontes para o trabalho historiográfico: Foi de tal perspectiva – a autoridade exclusiva do imediato – que Ranke se arrojou, desde os primórdios de sua carreira, a uma crítica agressiva àqueles, dentre seus predecessores, que haviam escrito histórias a partir de outras histórias, creditando a cronistas parciais e apaixonados como Giuccardini o distanciamento próprio de um historiador, e falsamente atribuído a seus textos o estatuto de um documento – na certa Ranke não teria tomado Tácito como autoridade a ser seguida, mas como testemunha a ser interrogada [30].
Podemos, então, observar que essa “autoridade exclusiva do imediato” não corresponde a uma eliminação e neutralização do investigador e escritor de história; antes, procura delimitar a forma de posicionamento deste investigador-escritor no próprio ato interpretativo, cuja principal característica é a recusa dos comentários autorizados. Ao intérprete cabe somente pegar o touro à unha, e é desta tauromaquia que fala Ranke, e não de um sujeito distante o suficiente da realidade para poder descrevê-la fidedignamente. Certa vez, ele foi irônico ao dizer que não havia motivo para lastimar aqueles que passam a vida em meio a papéis mortos, pois, entre suas linhas, há uma vida que se revela ao espírito[31]. Apesar da evidente crítica de Ranke às historiografias que tirariam de seus temas qualquer valor imanente, não poderia passar ao extremo oposto, a saber: a passividade perante os documentos. Esses não são a residência fixa da verdade, mas antes “papéis mortos” cuja vida revela-se pouco a pouco. Seria precipitado concluir pelo inverso, a saber, o predomínio da subjetividade em Ranke. Será mais fecundo encarar o problema: como se dá esta relação entre sujeito e texto em Ranke, uma vez que o sujeito não é aquele autorizado pela tradição e o texto é, por sua vez, algo que haverá de se esvair das mãos do intérprete, como quer a interpretação de matriz luterana? O que é, finalmente, esta postura luterana? Pode-se perceber essa postura em Ranke com relação às fontes em três momentos distintos. Primeiramente, essa postura se manifesta quando se verifica que Ranke não titubeia em articular esferas da vida histórica cujos nexos não são dados, naturais e evidentes. A própria estrutura de A História da Alemanha na Era da Reforma é um bo exemplo. Tal obra é apresentada em forma de mosaico: ora Ranke dedica várias páginas à política de Carlos V, já em outras vezes se atém aos movimentos camponeses, aqui fala dos cavaleiros, acolá do próprio Lutero, mais além da corrupção da Igreja Romana e da defesa de Viena contra os otomanos. Todos esses elementos apresentam-se coordenadamente e convergem posteriormente na figura de Lutero, figura histórica cujos passos são teimosamente seguidos por Ranke. O significado histórico do fundador do protestantismo destaca-se na narrativa rankeana na medida em que é inserido nas situações históricas que o precederam e que o acompanharam, como, por exemplo, o caso das revoltas camponesas lideradas por Thomas Münzer. Como falar que uma fonte é evidente por si mesma? Como, por detrás de aparentes crônicas, Ranke descortina uma complexa paisagem histórica, só resta concordar: em meio aos papéis mortos, nasce o espírito. Há ainda o que desenvolver a partir do que acima apenas se insinua. Faz-se necessário chegar ao segundo modo como Ranke lida com o material empírico. A leitura da obra de Ranke indica a presença de uma estrutura teleológica de explicação histórica, ainda que não seja uma teleologia com telos previsível e determinado, com uma forma acabada. Uma pergunta tornase inevitável: É possível conciliar a autonomia das épocas e dos povos com uma estrutura teleológica de sentido? Vejamos um exemplo concreto: a ideia rankeana de “nação alemã” como objeto histórico. Para Ranke, a “nação alemã” possui uma característica própria, uma “grande missão histórica”, a saber, a de salvaguardar o cristianismo, tarefa que não vinha sendo cumprida pela Igreja Católica. Ora, assim sendo, como Ranke entenderia a escolástica, por exemplo? Como um fenômeno histórico autêntico, ou como algo a ser avaliado a partir de um critério atemporal – a divulgação do Evangelho?[32] Abordamos agora o terceiro ponto: Qual o significado do testemunho de uma época para sua subsequente elucidação? Como lidar com a fonte? Seria, neste caso, interessante compreender o sentido da individualidade dos agentes históricos. É comumente aceito que Ranke fala de indivíduos fora de seu contexto. Embora não seja, de fato, um autor de história social, u exame mais acurado pode ser recompensador. Não entendemos por individualidade somente o autor de uma fonte, mas, sobretudo, um tema histórico (Lutero, os papas, os reis etc.), os ditos “grandes nomes”. É notável como Ranke percebe o quão parciais podem ser as visões dos homens a respeito de sua própria época e povo, sendo então homens praticamente incapazes de perceber a essência do fenômeno histórico que presenciam. As posições individuais expressas nas fontes eram meras opiniões, visíveis em todo o espectro de posições antagônicas e mesmo neutras[33]. Leonard Krieger destacou esse aspecto fundamental ao dizer que, para Ranke, tais pontos de vista “não pode prever os resultados gerais de suas próprias ações”[34], sendo que mesmo a compreensão orgânica e articulada dos eventos não é possível no espaço da mesma geração que os vivencia. A totalidade de sentido revela-se posteriormente.
Tudo estaria bem-resolvido se Ranke, de fato, não tivesse olhos para as “grandes personalidades”. Todavia, essa predileção de Ranke não prova suficientemente que a individualidade seja a força motriz da história. Em seu livro sobre a história dos papas, verifica-se que o indivíduo também pode estar sujeito às instituições vigentes, sendo, portanto, reflexo e representação de algo que lhe é anterior. Concernente a essa ambiguidade do indivíduo como agente histórico, é gritante, por exemplo, o contraste traçado por Ranke entre Inácio de Loyola e Paulo III em A história dos papas, uma obra escrita em três volumes entre 1834 e 1836. Enquanto Loyola é retratado como um homem cuja forte disciplina pessoal o transforma em u criador de uma nova força histórica (o jesuitismo), Paulo III, apesar de suas qualidades pessoais, é alguém cuja carismática inteligência não ultrapassa a convenção determinada pelos valores e preceitos de seu tempo, com o qual manifestava total concordância. Portanto, para Ranke, o relato biográfico não possui um sentido unívoco, mas múltiplo. E essa multiplicidade se mede a partir da capacidade criadora de um e de outro indivíduo. Pode-se dizer que, para Ranke, Inácio de Loyola é u sujeito histórico, pois suas ações intencionais ultrapassam sua vida biológica: “A partir dos esforços fantásticos de Inácio desenvolveu-se uma notável orientação prática, e a partir de sua conversão uma instituição que contava com claros propósitos globais”[35]. E, depois, complementa, demonstrando cabalmente que a prática historiográfica deve buscar algo além de uma reconstrução fiel das intenções dos agentes históricos: “Ele (Inácio de Loyola) viu todas as suas expectativas sere largamente ultrapassadas”[36]. O mesmo não se aplicaria a Paulo III. Este é descrito por Ranke como um homem que procura adaptar-se ao seu tempo, reger e domar seus conflitos, não se comprometer, não gerar motivos de maiores fricções e transformações: “Tudo indica que este papa (Paulo III) se sentia no meio de milhares de tendências divergentes [...] e sua intenção era a de considerar o poder de todas elas, minorar seus revezes e aproveitar suas virtudes”[37]. Assim, pode-se dizer que, para o autor da História dos papas, o sentido da individualidade não pode ser previamente estabelecido. Como dizer que a verdade do documento estaria, portanto, somente na reconstituição de sua autenticidade? O sentido do documento depende, portanto, da percepção do historiador quanto ao valor do sujeito histórico retratado no documento. Com isso, procuramos apontar para um ponto fundamental: a verdade histórica não se apresenta explicitamente nas fontes. Enfim: nem a teleologia subordina o homem como uma peça dentro de um mecanismo, tampouco o investigador registra a ação dos indivíduos na história, considerando-os absolutamente livres e autônomos, seres independentes de seu contexto. As fontes não são ilustrações de verdades atemporais e de uma filosofia mecânica da história, e muito menos podem ser lidas se um posicionamento claro do historiador quanto à temporalidade das mesmas. Vislumbra-se que, em Ranke, o historiador há de se equilibrar entre uma dimensão e outra, demarcando a cada narrativa um território que equilibre a autonomia de cada agente, época e povo com a sua fluência e repercussão históricas. É hora de voltar à questão da matriz interpretativa luterana da obra de Ranke. Conforme visto acima, para o luteranismo o texto é também uma realidade, na medida em que existe para além do desejo prévio e das projeções do pesquisador. Esse é antes tomado pelo texto. E mais: no caso do texto historiográfico, haverá de ocorrer uma transposição. O seu leitor també haverá de ser tomado pela narrativa. O mesmo ocorria concretamente com o estilo de Ranke, cujo objetivo é suscitar a participação do leitor, sem mediações, biombos e autoridades que guiem sua experiência. Pode haver algo mais luterano? Sobre esse ponto, Felix Gilbert é esclarecedor: Na medida do possível, Ranke evita sentenças sumárias e faz com que o narrador desapareça da história, de modo que o leitor fique já em confronto com fatos e eventos. Ranke deseja que o leitor tenha uma experiência participativa com a história. O uso de técnicas literárias possibilita a Ranke a diminuição da distância que separa o presente do passado, dando à história um padrão que se alterna entre descrição de situações e de ações, e, acima de tudo, fazendo com que a obra cumpra com o primeiro requisito da obra literária: contar uma história repleta de tensão [38].
Segundo Gilbert, a discreta participação do intérprete em relação à redação do texto histórico permite que o evento não se restrinja a um passado encerrado, a papéis mortos. O evento, pelo contrário, ganha vida com a participação do leitor encantado e tomado pelo gosto da narrativa. Assim, o papel morto ganha a vida do espírito, ultrapassando a época em que foi produzido. Nesse sentido, o historiador realiza um genuíno papel hermenêutico, na medida em que está aberto para a alteridade do passado. Essa é sua universalidade, termo aqui empregado não no sentido de uma totalidade cumulativa de fatos, mas como expansão dos próprios horizontes, como capacidade de se rever a partir do reconhecimento da existência do outro[39]. Está feito o convite: pode ser enriquecedor repensar a famosa e propalada neutralidade eunuca de Ranke, sobretudo e cursos de graduação, e, pasme o leitor, muitas vezes nos cursos de pós-graduação. Não se trata, todavia, de adotá-lo como modelo após tanto tempo de condenação sumária e irrefletida; o que se pretende é não perder uma oportunidade de reconsiderar o lugar da escrita e da pesquisa em história. No caso de Ranke, fica clara a posição necessariamente instável do intérprete. O elemento necessário é, pois, o de estar aberto para uma obra, o que implica a recusa de modelos que explica previamente a realidade histórica. E Ranke demonstrava perfeita lucidez no que dizia respeito a essa necessidade de estar aberto. O prefácio à História da Inglaterra a confirma. Nele Ranke afirma pretender “como que se apagar nos seus escritos,
para só poderem falar aquelas poderosas forças que, ao longo dos séculos, ora se unem, ora se misturam [...]”[40]. Não é o caso de ver em Ranke um defensor da “história-problema”, mas este desejo de “apagar-se”, por sua vez, não é sinônimo de neutralidade. Tem toda razão Rudolf Vierhaus, um dos maiores estudiosos da obra de Ranke. Para Vierhaus “não é a imparcialidade que caracteriza a sua obra, mas sim o receio em tomar partido”[41]. Isso seria uma demonstração de fraqueza moral e política por parte de Ranke, ou, como diz ainda Vierhaus[42], uma demonstração da necessária cautela científica, fundamental para a construção de qualquer objeto do conhecimento? Uma leitura atenta da obra de Ranke deverá ser capaz de mostrar o quão plausível e fecunda é a segunda hipótese.
Conclusão Se Ranke, de um lado, não é de fato o “positivista” tão execrado por quase todos os historiadores do século XX, por outro lado é inegável que sua visão de história universal e de hermenêutica é historicamente circunscrita: se suas considerações apresentadas como “exigências ao trabalho do historiador”, em alguma medida, desnaturalizam a concepção do processo histórico, por outro lado, ele não questiona o pressuposto (teológico) que viabiliza toda a sua concepção de conhecimento. Mas não resta dúvida de que sua obra é muito mais complexa do que supõe a nossa vã historiografia.
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[1]. HOLANDA, S.B. “O atual e o inatual em Leopold von Ranke”. In: HOLANDA, S.B. (org.). Rank e, p. 14. [2]. CARDOSO, C. “Panorama da historiografia ocidental (até aproximadamente 1930)”. Um historiador f ala de teoria e metodologia, p. 139-140. [3]. Cf. MATA, S. “Leopold von Ranke (1795-1886)”. In: MARTINS, E.R. (org.). A história pensada. [4]. Cf. RANKE, L. Pueblos y Estad os en la Historia Mo derna, p. 136. [5]. “Mein Glück wäre, etwas Tüchtiges vollenden” (“Minha felicidade seria realizar algo de válido”), escreve a seu irmão Heinrich, em novembro de 1820. Cf. MUHLACK, U. “Die Genese eines Historikers”. In: HEIN, D.; HILDEBRAND, K. & SCHULZ, A. (orgs.). Historie und Leben: Der Historiker als Wissenschaftler und Zeitgenosse. Festschrift für Lothar Geil, p. 21-40, esp. p. 32. [6]. BERDING, H. “Leopold von Ranke”. In: WEHLER, H.-U. (org.). Deutsch e Historik er , p. 18. [7]. DROYSEN, J.G. Historik – Vol. I: Grundriss einer Historik (Esboço de uma Teoria da História, versão manuscrita final, 1857-1858), p. 413-488, esp. p. 435. [8]. Ibid., p. 446. [9]. Cf. introdução de Ranke ao primeiro número dos Jahrbücher des Deutschen Reichs unter dem sächsischen Hause, vol. I, 1. Parte, p. IX e XI. [10]. RANKE, L. Obras Completas (Sämtliche Werke), vol. 53/54, p. 61-62. [11]. RANKE, L. “O conceito de história universal (1831)”. In: MARTINS, E.R. (org.). A história pensada, p. 207. [12]. Ibid., p. 208. [13]. Ibid. [14]. Cf. ibid. [15]. Ibid. [16]. Ibid., p. 209. [17]. Ibid., p. 210. [18]. Ibid. [19]. HUMBOLDT, W. “Sobre a tarefa do historiador”. In: MARTINS, E.R. (org.). A história pensada, p. 83. [20]. Cf. HOLLANDER, J.; PAUL, H. & PETERS, R. “Introduction: The Metaphor of historical distance”. In: History a nd Theory: Studies in the Philosophy of History – Theme Issue Historical Distance: Reflections on a Metaphor, vol. 50, n. 4, dez./2011. [21]. RANKE, L. “O conceito de história universal (1831)”. In: MARTINS, E.R. (org.). A história pensada, p. 211. [22]. Ibid., p. 210. [23]. Ibid. [24]. Ibid., p. 212. [25]. Cf. BRAW, J.D. “Vision as revision: Ranke and the Beginning of Modern History”. In: History a nd Theory, p. 53-55. [26]. RANKE, L. Pueblos y Estados en la Historia Moderna, p. 59. [27]. HOLANDA, S.B. “O atual e o inatual em Leopold von Ranke”. In: HOLANDA, S.B. (org.). Rank e, p. 7. [28]. BRUNS, G.L. “Scriptura sui interpres: Luther, modernity, and the Foundations of Philosophical Hermeneutics”. Hermeneutics ancient an d modern , p. 146. [29]. Ibid., p. 148. [30]. GAY, P. O estilo na história, p. 76. [31]. Cf. RANKE, L. Pueblos y Estad os en la Historia Mo derna, p. 134. [32]. Ibid., p. 155-156. [33]. Ibid., p. 176-177. [34]. KRIEGER, L. Rank e: The Meaning of History, p. 177. [35]. RANKE, L. Geschichte der Päpste, p. 90. [36]. Cf. ibid. [37]. Ibid., p. 110. [38]. GILBERT, F. History: Politics or culture? – Reflections on Ranke and Burckhardt, p. 38. [39]. Cf. BRAW, J.D. “Vision as revision: Ranke and the Beginning of Modern History”. History a nd Theory, p. 55. [40]. Apud HOLANDA, S.B. “O atual e o inatual em Leopold von Ranke”. In: HOLANDA, S.B. (org.). Rank e, p. 14. [41]. VIERHAUS, R. “Rankes Begriff der historischen Objektivität”. In: KOSELLECK, R. (org.). Objektivität und Parteilichkeit in der Geschichtwissenschaft . Beiträge zur Historik (Band 1), p. 67. [42]. Ibid., p. 69.
2 Jules Michelet (1798-1874) ichelle Schreiner Lima
Sim, porque Michelet, francês no mais alto grau, francês portando nele não somente a França do presente, mas a França de vinte e cinco séculos – analista destes vinte e cinco séculos e não, pois, oportunista de uma conjuntura – sim, porque Michelet nunca f ez ou tra coisa senão tradu zir, na sua língua magnífica e de todo seu co ração, o sentimento da França eternal [43].
A escrita como forma de ação Com estas palavras Lucien Febvre nos mostra o lugar que Jules Michelet ocupa na história da França oitocentista. A dedicação de anos à monumental Histoire de France (História da França), iniciada em 1833 e concluída em 1867, com vinte e três volumes[44], bem como o restante de sua obra, proveniente dos cursos que ministrava e dos demais escritos de sua produção, composta sobretudo de textos historiográficos, ensaios críticos, trabalhos de cunho naturalista e de ordem intimista (diários e correspondências)[45], o transformariam no “grande historiador da nação francesa”. Tomando para si a tarefa de refletir sobre a escrita da história e seu comprometimento político e moral, Michelet fundaria uma tradição na historiografia do período ao imputar à ciência histórica – em processo de consolidação no século XIX – a responsabilidade de fixar os valores e sentimentos nacionais que deveriam nortear os cidadãos da República: O que peço aos homens deste tempo [...] são obras eficazes; menos palavreado, menos disputas. Não se desgastarem em vãs discussões, concentrar sua energia. [...] A geração que vai passar foi uma geração de oradores. Que aquela (dos homens deste tempo) seja uma de produtores verdadeiros, de homens de ação, de trabalho social[46].
O viés militante do autor, bem como o forte caráter pedagógico que assume seus escritos, foram salientados por Thérèse Moreau no prefácio do livro A mulher : “Michelet crê na virtude da palavra escrita. O livro continua a ser para ele o instrumento revolucionário por excelência”[47]. Quando compõe suas obras ou se dirige aos alunos é com a clara intenção de produzir uma consciência particular nos indivíduos – um “republicanismo social”, diria ele – que deveria ser alcançada não por meio da violência ou da força revolucionária, mas através da “ação da palavra”: “[...] (um) esforço para tirar da história não apenas uma doutrina, mas um princípio de ação, para criar não só espíritos, mas almas e vontades”[48]. Michelet pretende trazer o rigor da ciência, “aliviada da carga das palavras vazias e das ficções”, ao estudo dos “movimentos profundos da sociedade”, fornecendo ao povo um novo conjunto de crenças coletivas, sobretudo ao atribuir à história a missão de educar os homens e formar a sensibilidade e a mentalidade da nação: Eu o declaro, essa história não é imparcial. Não guarda um sábio e prudente equilíbrio entre o bem e o mal. Pelo contrário, é parcial, franca e vigorosamente a favor do direito e da verdade. Se nela se encontrar uma linha em que o autor tenha atenuado, debilitado os relatos ou os julgamentos por respeito a tal opinião ou tal poder, ele quer riscar o que escreveu [49].
Representativa da importância dos relatos “verdadeiros”, “úteis” – imbuídos de valores e “ensinamentos” morais – e das “injustiças” cometidas pelos romancistas ao se utilizarem de artifícios literários para descrever a realidade, é a polêmica travada entre Michelet e os literatos de seu tempo a propósito de seus romances. Para ele, os escritores “românticos”[50], principalmente Honoré de Balzac, Eugène Sue e George Sand, caracterizam o “povo” de forma degradante e impiedosa ao ressaltarem seus vícios e mazelas, diferindo de uma literatura anterior, de finais do século XVIII e princípios do XIX, que devia se afirmar, segundo alguns críticos, como instrumento de educação ou de “pedagogia” do cidadão[51]: Os românticos acreditavam que a arte estava sobretudo no feio. Acharam que os efeitos artísticos mais infalíveis residiam no feio moral. [...] Desviaram os olhos para o fantástico, o violento, o bizarro, o excepcional. Não se dignaram informar que pintavam a exceção. Os leitores, sobretudo os estrangeiros, acreditaram que eles pintavam a regra. E disseram: “Esse povo é assim” [52].
O historiador apoia-se no princípio de “verdade histórica” elaborado por Vico[53] e largamente difundido nos anos de 1700 para criticar a organização dessas obras, atacando a inverossimilhança na construção das personagens, as falhas de estilo – dentre as quais podemos citar as descrições pormenorizadas, os discursos rudes e as conversações grosseiras – e, principalmente, o mau uso da história feito nos romances da época: Romances clássicos, imortais ( Indiana e Lélia), revelando as tragédias domésticas das classes abastadas, estabeleceram solidamente no pensamento
europeu que não há mais família na França. Outros, de grande talento, de uma fantasmagoria terrível, pintaram a vida comum de nossas cidades como um local onde a polícia concentra os reincidentes da justiça e os condenados libertados ( Les Mystères de Paris ). Um pintor de gênero, admirável pela genialidade do detalhe, diverte-se em pintar um horrendo cabaré do campo, uma taberna de criadagem e gatunos, e, abaixo desse esboço hediondo, ele escreve atrevidamente uma palavra que vem a ser o nome da maioria dos habitantes da França ( Les Paysan s). A Europa lê avidamente, admira, reconhece este ou aquele pequeno detalhe. De um acidente mínimo, cuja verdade percebe, ela conclui facilmente a verdade do todo [54].
Para Michelet, mais importante do que as razões expostas acima e o problema da “perda de tempo com coisas inúteis” – outro argumento comumente utilizado por aqueles que se opunham aos romances –, é que a história seria prejudicada por essas narrativas, uma vez que a falta de preocupação com a “verdade” criava, no seu entender, “falsos relatos” sobre o passado, sobre a origem dos povos, sobre o comportamento, os costumes e as relações sociais: A necessidade urgente da França é a de se encontrar de novo, de dizer a si mesma quem ela é, o que ela foi e o que ela fez. A legenda, não danificada pelo romanesco e pelo fantástico, mas reencontrada conforme o coração e a verdade, responderá sozinha a esta necessidade [55].
Ao mesmo tempo em que sublinhava o compromisso histórico, Michelet apontava a superioridade moral da história e contraposição ao valor edificante quase nulo do romance em voga no período. Essa noção de utilidade na obra do autor estaria relacionada à potencialidade da história em reter a atenção do leitor universal, despertando-o e incitando-o a adotar os valores morais necessários à formação de indivíduos livres e esclarecidos, tais como a revolta contra a injustiça e a corrupção, o amor pela pátria, o sacrifício pelo interesse comum e o apreço aos deveres, à dignidade e às virtudes republicanas. Trata-se, portanto, como procuramos demonstrar em nossa pesquisa de doutorado e posteriormente no artigo “Jules Michelet e a história em sua expressão pedagógica de formação do ‘povo’”, ambos já mencionados, de ver a história, e não mais a literatura, como uma fonte de exemplaridade, o que faz o autor postergar a redação de sua história coletiva (Histoire de France) para compor trabalhos como Le Peuple (O povo, 1846) e Histoire de la Révolucion Française ( História da Revolução Francesa, 1847-1853) em oposição a certa imagem de “povo” construída por essa literatura contemporânea: Basta que as nações saibam que esse povo não é de forma alguma o que aparece em seus pretensos retratos. Não que nossos grandes pintores tenham sido sempre infiéis; mas em geral pintaram detalhes excepcionais, acidentes, quando muito, em cada gênero, a menor parte, o lado secundário das coisas. As grandes fisionomias lhes pareciam muito conhecidas, triviais, vulgares. Precisavam de efeitos e foram procurá-los frequentemente naquilo que se afastava da vida normal. [...] E eu, que saí dele, eu que vivi com ele, que trabalhei e sofri com ele, que mais do que ninguém adquiri o direito de dizer que o conheço, venho opor a todos a personalidade do povo[56].
Nas páginas de Michelet, como também em seus discursos, fixou-se certo modelo de produção historiográfica, eminentemente política, porquanto silenciava opositores, construía uma visão que se pretendia “legítima” e “verdadeira” sobre o passado da França, selecionava temas que conferiam autoridade ao relato histórico e, o mais importante, funcionava como “forma de ação” para instruir e guiar os cidadãos da República.
A polêmica com os “românticos”: o caso de Balzac Um museu cirúrgico de todas as deformidades morais começava a ser exibido com Balzac. Seu livro de 1832 (La Grenadière – O Romeiral, em português) inicia a guerra ao casamento, onde a veia inesgotável de Lélia (obra de George Sand) se lançava. Literatura de gran de ef eito que f undou solidamente um dos maiores traço s desse tempo, o horror que o homem tem de se casar. [...] Desde então, a ssentei minha tenda à p arte, ou antes, fui contra tod a esta literatura . Chamei-a mórbida e não me retrato[57].
A censura de Michelet aos literatos “românticos” por seu “não comprometimento com a verdade e/ou com o social” e por sua “pintura do feio e da prostração moral” indica a medida da utilização do discurso histórico na França como legitimador de posições e, principalmente, de ser a fundamentação de uma tradição que se iniciava: a instituição da história como um campo específico de investigação[58]. Em As três culturas Wolf Lepenies procura desvendar o processo desse confronto, que ocorre a partir de meados do século XIX, entre literatos, isto é, escritores e críticos, de um lado, e cientistas sociais, incluindo historiadores e sociólogos, de outro[59]. Como nota, no final do século XVIII é impossível uma separação nítida entre o modo de produção literário e o da obra científica. Contudo, o exemplo de Buffon serviria para mostrar de que forma esse processo de diferenciação se impõe e intensifica ao longo dos anos de 1800: No século XVIII sua Histoire n aturelle é um sucesso de vendas. Quando são publicados, em 1749, os primeiros volumes se esgotam em poucas semanas; outras edições se seguem ainda no mesmo ano. Finalmente aparecem, na França, nada menos que 250 edições populares desta obra. Buffon era um grand seigneur da ciência e, como tal, típico do século XVIII; um empreendedor que sabia habilmente tirar proveito de sua atividade científica; tinha o dom da palavra, mesmo dominando apenas sua própria língua, o francês. [...] Foi como estilista que Buffon obteve reconhecimento: nem todos elogiavam o que dizia, mas quase todos ficavam impressionados pelo modo como o fazia [60].
Ao ser eleito para a Academia Francesa em 1753, prossegue o autor, Buffon faria um discurso sobre o estilo que ninguém teria estranhado: era tido como algo comum um homem da ciência natural se conceber como escritor, “como alguém para que
não importa somente o que diz, mas também como diz”[61]. Mais para o fim do século, porém, o que antes constituía seu poder de atração tornava-se nocivo para Buffon: “Ele é o último intelectual que pode basear sua reputação científica no seu talento para a exposição, mas também o primeiro a perder seu prestígio por ser excessivamente escritor e muito pouco pesquisador”: Durante a vida de Buffon desenvolve-se uma reinterpretação decisiva do conceito de romance: se antes se liam e elogiavam seus textos justamente por seu valor como entretenimento, agora eles são rejeitados como romans scientifiques. São agora considerados leitura para mulheres e leigos: o especialista pode, entretanto, poupar-se o esforço de tomar conhecimento deles [62].
De acordo com Lepenies, a interrupção da carreira de Buffon e a aceitação instável à sua Histoire naturelle (História natural) demonstram como as ciências vão pouco a pouco se distanciando da literatura e de que forma os valores tidos como “literários” passam a ser excluídos do cânone do saber aceito. Todavia, lembra o autor, “esse processo não é linear nem irreversível. Ao contrário, é a disparidade de tempos que o caracteriza: não abrange todas as disciplinas, nem atinge com igual intensidade as disciplinas abrangidas”[63]. No caso da história, podemos pensar que a criação das obras de Michelet em contraposição aos literatos de seu tempo insere-se num contexto maior de extensão da função “pedagógica” de formação do povo, atribuída até então à literatura (de finais do século XVIII e inícios do XIX), para o âmbito da história. Isso pode ser visualizado quando escreve Le Peuple, Histoire de la Révolucion Française e uma série de palestras para o ano acadêmico de 1847-1848 no Collège de France co inequívoco caráter panfletário em relação à defesa do “povo”, respondendo aos romancistas que queriam diminuir, no espírito desse povo, a ideia da França unida e fraterna como na época da Revolução Francesa. Aos olhos de Michelet, o perigo que a literatura “romântica” representava fica expresso na seguinte passagem: “[...] faz-se de tudo para que ele (o povo) perca o senso da bela unidade que foi sua vida; sua alma lhe é retirada. E essa alma era o sentido da França, como fraternidade de homens vivos e como sociedade com os franceses das antigas eras”[64]. A título de ilustração, optamos aqui por um exame mais minucioso da obra de Honoré de Balzac, em detrimento aos trabalhos de George Sand e Eugène Sue, sendo que de suas obras privilegiamos La comédie humaine (A comédia humana), que retrata a história da moderna sociedade francesa. Dentro dessa série de romances, a escolha por Les Paysans se ustificaria em função da referência do historiador a este texto e por tratar basicamente da questão dos camponeses, tema central das obras de Michelet[65]. Não se deixando levar por quaisquer ilusões quanto à “pureza moral” ou à “natureza genuína” dos homens do campo, tal como veremos em grande medida nos escritos do historiador, Balzac pretende desmontar um dos “lugares comuns” do romantismo herdado de Rousseau, a bondade natural do homem[66]: se os indivíduos são bons por natureza, os melhores seriam aqueles que levam a vida mais natural, ou seja, os camponeses. No intuito de contradizer esta ideia, Balzac inicia um estudo dos costumes da vida rural, na tentativa de comprovar que o quadro idealista dos hábitos campestres, tão frequente nas produções da época, não correspondia à realidade, já que esta mostrava sobretudo a astúcia dos camponeses em enganar seus compatriotas, os interesses que predominavam sobre u sentimento do bem e do belo, assim como a constante embriaguez desses indivíduos nas tavernas, consideradas como o parlamento do povo. Ao retomar alguns títulos dos capítulos desta obra, dentre eles “Quem tem terra, tem guerra”, “Uma bucólica esquecida por Virgílio”[67], “A taverna”, “Os inimigos face a face”, “Uma história de ladrões”, “Da mediocracia”, “O Oaristis: XXVII écloga de Teócrito pouco apreciada no tribunal do júri”[68], “Como a taverna é o parlamento do povo” e “O usurário do campo”, podemos observar como Balzac vai retratar o povo: na sua opinião, além de interesseiros e malvados, os camponeses eram ladrões e ingratos, pois, acreditando na ineficiência da lei, mantinham negócios escusos desrespeitando por completo os bens e propriedades alheios. Assim, Balzac inicia seu romance relatando o que se passou com Emílio Blondet que, ao explorar o Vale do Avonne, encontra o prazer da vadiação ao se defrontar com o tédio da vida campestre e se vir privado de todos os seus hábitos. Além disso, demonstra que ao se deparar com um homem do campo, conhecido por todos como Fourchon, Blondet começa a admitir a realidade do tipo camponês que se vê nas antigas tapeçarias, nos velhos quadros e nas velhas esculturas, e que até então lhe parecera fantástico: “Que ideias, que costumes poderá ter um ente desta espécie, e em que pensará ele?”, conjeturava Blondet, cheio de curiosidade. “Será meu semelhante? Só temos em comum a forma, e mesmo assim [...]”[69]. A partir daí o romancista passa a descrever a vida no campo sob o olhar do parisiense Blondet, o que incluía o relato de construção das casas dos camponeses, bem como as espécies de flores e animais lá existentes. Mas apesar do florido e do ar campestre, o autor não deixa de mencionar o cheiro forte e nauseante do vinho e da comida que exalava das tavernas, além dos
maus costumes e das vicissitudes da vida social ou privada do campo. Antes de mais nada, Balzac procura mostrar que várias atividades eram desenvolvidas nas tavernas, sendo que além de “distraírem-se” com as criadas, os trabalhadores iam para lá fechar seus negócios, saber as novidades colhidas pelas filhas de Tonsard, dono do Grand-I-Vert, uma das mais importantes tavernas da região, por Fourchon e seu “sobrinho” Mosquito, ou trazidas por Brunet, o mais célebre oficial de justiça de Soulanges; ali se fixava o preço do feno, do vinho, dos dias de serviço e das empreitadas. O Grand-I-Vert servia de ponto de reunião para os assaltantes, do mesmo modo que Tonsard, como dono da taverna, acabou tornando-se chefe deles pelo terror que inspirava no vale. Ao retratar o sogro de Tonsard, Fourchon, o autor comenta que de sitiante passou a jornaleiro beberrão, preguiçoso, mau e rabugento, capaz de tudo, tal como as pessoas do povo que de certa prosperidade voltam a cair na miséria: o genro preguiçoso agora encontrara um sogro vadio[70]. Para Carlos, criado de Blondet, no campo todos aparentam uma vida honesta, mas na realidade deve-se desconfiar de tudo, principalmente das pessoas que lá vivem, tal como a mulher de Tonsard que incentivava seu marido nos vícios, tanto que instalou o botequim do Grand-I-Vert, cujos primeiros fregueses foram criados das Aigues, guardas e caçadores: “Com o tempo, trabalhadores e vadios da região afeiçoaram-se à taverna do Grand-I-Vert, tanto pelos dotes da mulher de Tonsard como pela camaradagem existente entre aquela família e a gente miúda do vale”[71]. Embora todo mundo soubesse como aquela família era pobre de princípios e de escrúpulos, ninguém dizia nada a respeito dos costumes do Grand-I-Vert: No começo desta cena torna-se necessário, de uma vez por todas, explicar às pessoas habituadas à moralidade das famílias burguesas que em matéria de costumes domésticos os camponeses não têm nenhuma delicadeza; só invocam a moral a propósito de uma filha seduzida, se o sedutor é rico e medroso. Até que o Estado os arrebate, os filhos constituem um capital, um instrumento de conforto. O interesse, sobretudo depois de 1789, tornou-se o único móvel de suas ideias; para eles nunca se trata de saber se uma ação é legal ou imoral, mas se é proveitosa [72].
Descrevendo a vida social como uma realidade perversa e monstruosa, Balzac diverge de Michelet que faz um retrato das pessoas do povo, em especial do camponês, como aqueles que seguem um instinto de bondade, autenticidade e perseverança, e que são trabalhadores e se sacrificam por seus familiares e pela pátria, apesar de todos os obstáculos[73]. Nosso historiador esperava que a ficção literária, em particular o romance, oferecesse exemplos de virtude e comportamento socialmente adequados, servindo como guia de conduta. Mas como pudemos perceber, em Les Paysans, por exemplo, Balzac valoriza temas como a feiura e a vida desregrada, pintando um quadro vil da sociedade francesa de meados do século XIX, que Michelet se empenhará em restituir: Não captei essa personalidade superficialmente, em seus aspectos pitorescos ou dramáticos; não a vi de fora, experimentei-a por dentro. E, graças a essa experiência, muita coisa íntima do povo, que ele tem em si sem compreender, eu compreendi. E por quê? Porque eu podia segui-la em suas origens históricas, vê-la sair do fundo do tempo. Quem se atém ao presente, ao atual, não compreende o atual. Quem se contenta em ver o exterior, em pintar a forma, não poderá sequer vê-la: para vê-la com exatidão, para traduzi-la fielmente, é preciso saber o que ela encobre; não há pintura sem anatomia [74].
Para Michelet nunca é suficiente o conhecimento estatístico formal, econômico; o dado social só pode ser apreendido e toda a sua complexidade se nos indagarmos também sobre “os sentimentos mais profundos do povo”. Assim, ao dedicar-se à caracterização das formas de vida dos “simples”, seus costumes, sofrimentos e triunfos, Michelet, além de se dispor a “colher” informações junto ao povo para averiguar se esses livros franceses representavam realmente a França ou se dela só mostravam certas faces excepcionais, escreve Le Peuple para erigir o próprio “povo” à qualidade de agente transformador da história. Nessa obra o autor examina as classes sociais uma a uma ao longo de oito capítulos, dando mostras de que todas elas faziam parte da rede socioeconômica que as tornavam “servas”, não deixando de enfatizar, no entanto, suas conquistas e superações. Como atenta Stephen Kippur [75], ao contrário de muitos escritores que se preocuparam quase exclusivamente com a pobreza urbana e com a classe trabalhadora que surge com o advento da industrialização, Michelet começou sua análise pelo camponês. Para ele, o campesinato era a camada social mais importante da França – “A terra da França pertence a quinze ou vinte milhões de camponeses que a cultivam [...]”[76] –, pois que teria tratado e desenvolvido a terra, fornecendo o alimento aos demais grupos. O historiador reconheceria e valorizaria esse “dom” atribuindo ao homem do campo certas virtudes, como o “trabalho duro e persistente”, a “sobriedade”, o “jejum” e a “austeridade moral”: “Parece que Deus deu como patrimônio a essa raça indestrutível o dom de trabalhar, de combater se for preciso, sem comer, o dom de viver de esperanças, o dom da alegria corajosa”[77]. Mas o camponês contemporâneo não estava feliz com suas condições de vida miseráveis: “Vede sua comida e comparai-a à do operário; este come melhor todos os dias que o camponês no domingo”[78]. Entretanto ele resistia, conforme Michelet, para quem era necessário dar a conhecer o amor deste homem pelo campo, seu apreço pela terra, sua “amante”:
Se quisermos conhecer o pensamento íntimo, a paixão do camponês da França, nada mais fácil. Basta passearmos no domingo pelo campo, sigamo-lo. Ei-lo que vai à nossa frente. São duas horas; sua mulher está na reza; ele está endomingado; garanto que vai ver a amante. Que amante? Sua terra. Não digo que vai diretamente para lá. Não, está livre nesse dia, pode ir ou deixar de ir. Já não basta ir todos os dias da semana? [...] Por isso se desvia, caminha por outros lados, tem o que fazer em outra parte [...]. No entanto, acaba indo. [...] Depois de alguns passos para, volta-se, faz meia-volta e lança sobre a terra um derradeiro olhar, olhar profundo e sombrio; mas, para quem sabe observar, é um olhar todo paixão, todo de dentro do coração, repleto de devoção. Se aquilo não é amor, por que sinal reconhecê-lo neste mundo? É ele, não riais [...]. A terra assim o quer, para produzir; caso contrário, não dará nada, essa pobre terra da França, quase sem gado e sem adubo. Ela produz porque é amada [79].
Ao abordar o “casamento” do homem com a terra – a terra da França produzia “porque era amada pelo camponês”, por meio do seu trabalho devoto e de sacrifícios “feitos com suor e amor” – Michelet se posicionava contra a Inglaterra que, na sua opinião, só se interessava pelo lucro do país: Como os ingleses não têm as mesmas raízes no solo, emigram para onde existe lucro. Dizem o país; nós dizemos a pátria. Entre nós, homem e terra estão juntos e não se deixarão; existe entre eles um casamento legítimo, para a vida e para a morte. O francês desposou a França. A França é uma terra de equidade. Em casos duvidosos, geralmente adjudica a propriedade a quem nela trabalha. A Inglaterra, ao contrário, pronunciou-se pelo dono, expulsou o camponês; só é cultivada por operários. Grave diferença moral! [80]
Michelet defendia a posse da terra pelo camponês e comparava-o ao soldado que protegia sua propriedade como se fosse um front , pois mais que uma terra era a sua honra que estava em jogo: A propriedade, grande ou pequena, exalta o coração. Quem não se faz respeitar por si mesmo respeita-se e estima-se por sua propriedade. Tal sentimento acrescenta-se ao justo orgulho que esse povo tem de sua incomparável tradição militar. Tomai ao acaso, nessa multidão, um pequeno diarista que possui um vigésimo de arpent ; não encontrareis nele os sentimentos do diarista, do mercenário; trata-se de um proprietário, de um soldado (já o foi e sê-lo-ia amanhã); seu pai integrou o grande exército [81].
Havia no historiador a ideia da propriedade associada à afetividade e ao trabalho. Nesse sentido, considerava que o direito do camponês sobre a terra era o primeiro de todos, isto é, o de tê-la feito, o que pode ser visualizado nas imagens que criou para demonstrar a completa transformação que o trabalho humano havia operado em determinadas regiões: Sim, o homem faz a terra; podemos dizer isso até das regiões menos pobres. E não o esqueçamos nunca, se quisermos compreender como ele a ama, e com que paixão. Lembremos que, por séculos, gerações lançaram nela o suor dos vivos, os ossos dos mortos, suas economias, seu alimento [...]. Essa terra, onde o homem por tanto tempo depositou o melhor do homem, sua seiva e sua substância, seu esforço, sua virtude, ele bem sente que é uma terra humana, e amaa como a uma pessoa [82].
Em sua descrição do homem simples, Michelet afirma que este depositava sobre a terra seu suor, seu vigor e todos os seus desejos e expectativas para torná-la viva e produtiva, não se importando com o que tinha de aceitar para adquiri-la; emigrava e afastava-se quando necessário, sempre amparado por esse pensamento, por essa esperança. Malgrado todas as dificuldades, o camponês micheletiano estava continuamente disposto a enfrentar as mais duras privações para expandir suas terras; sua aquisição era, para ele, “um combate do qual nunca recua”[83]. Neste ponto, o historiador lembra que se em outros tempos esse mesmo camponês combateu quando só o que havia a ganhar eram balas, o que não faria agora em nome de sua terra? Tudo, responde, menos comportar-se como um fraco: Vede essas rochas crestadas, esses áridos picos do Midi; lá, pergunto-vos, onde estaria a terra sem o homem? Lá, a propriedade está toda no proprietário. Está nos braços infatigáveis que quebram a pedra diariamente e que misturam esse pó a um pouco de húmus. Está na forte coluna do vinhateiro que, da costa, sobe refazendo sempre seu campo, que desmorona sempre. Está na docilidade, no ardor paciente da mulher e da criança que empurram o arado com o burro [...]. Cena penosa de se ver [...]. A própria natureza se compadece. Entre rocha e rocha se agarra a pequena vinha. O castanheiro, sem terra, mantém-se envolvendo a pura pedra com suas raízes, sóbrio e corajoso vegetal; parece viver do ar, e, como seu senhor, produzir em jejum [84].
Se a imagem do homem do campo como um ser tacanho, avaro, que não confia em ninguém é recorrente em nossas lembranças, Michelet a confronta ao desconhecimento de suas privações, seus infortúnios, que de algum modo justificariam tal postura. Sua imaginação estava voltada às liberdades que a terra lhe proporcionaria, mesmo que a isso se somasse as obrigações da escravidão diária, a faina cotidiana que fazia do camponês azafamado alguém pouco sociável: É de espantar que esse francês de nossos dias, outrora tão risonho, tão dado às canções, já não ria mais? É de espantar que, encontrando-o sobre essa terra que o devora, ele vos pareça tão sombrio...? Vós passais, vós o saudais cordialmente; ele não vos quer ver, enterra o chapéu na cabeça. Não lhe pergunteis o caminho; se ele responde, é bem capaz que vos indique a direção contrária. Assim o camponês se isola, se amargura mais e mais. Tem o coração excessivamente fechado para abri-lo a um sentimento qualquer de boa vontade. Ele odeia o rico, odeia o vizinho, odeia o mundo. Sozinho, nesta propriedade miserável, como em uma ilha deserta, ele se torna um selvagem. Sua insociabilidade, nascida do sentimento da própria miséria, torna-a irremediável; ela o impede de aproximar-se daqueles que deveriam ser seus auxiliares e amigos naturais, os outros camponeses [...] [85].
Essa animosidade do homem da terra se justificaria pelas condições precárias a que estava submetido na moderna sociedade industrial, o que levaria Michelet a escrever Le Peuple, segundo ele, com o intuito de advertir o governo das influências que lutavam para paralisar a obra capital da França: “a aquisição da terra pelo trabalhador”[86]. A Revolução de 1789 “teria suprimido uma nobreza, mas criado outra de camponeses” que, no entanto, ao se transformarem em devedores dos usurários da roça, não só se tornariam pobres, mas perderiam sua liberdade e coragem: Uma família que de mercenária se torna proprietária passa a respeitar-se, eleva-se em sua estima própria, muda: colhe de sua terra uma safra de virtudes. A sobriedade do pai, a economia da mãe, o trabalho corajoso do filho, a castidade da filha, todos esses frutos da liberdade serão, pergunto eu, bens materiais,
tesouros que se podem adquirir por algum preço? [...] Diz-se que a Revolução suprimiu a nobreza; mas é precisamente o contrário, ela criou trinta e quatro milhões de nobres. [...] Esse povo é nobre depois de todas essas grandes coisas; a Europa continuou plebeia. Mas é preciso que defendamos seriamente essa nobreza, pois ela corre perigo[87].
O historiador alerta que este homem esforçado, ativo e valente indubitavelmente se converteria num devedor temeroso, nu soldado fraco diante de uma batalha prestes a ser perdida, e tantos seriam os seus sofrimentos e angústias que ele próprio passava a duvidar do futuro dessa classe se sujeitada ao constrangimento, à penhora, à expropriação, enfim, ao terror dos udeus[88]. Aqui eclode, aos olhos de Michelet, a necessidade de eximir os camponeses da responsabilidade de seus defeitos. O homem do campo, visto por Balzac, é áspero, desconfiado? É que o regime da propriedade lhe é desfavorável. O infeliz, carregado de dívidas, vive com medo do agiota: O camponês, tornando-se escravo do usurário, não será apenas miserável, ele perderá a coragem. Um devedor triste, inquieto, trêmulo, receoso de enfrentar seu credor, um devedor que se esconde poderá conservar alguma coragem? Que sucederá a uma raça assim criada, sob o terror dos judeus, e cujas emoções seriam as do constrangimento, da penhora, da expropriação? As leis têm de mudar; o direito deve curvar-se a esse alto imperativo político e ético [89].
Ao final de sua apreciação da vida no campo, Michelet nota que a indústria, “irmã mais nova da agricultura”, fez obliterar a primogênita que, embora fornecesse mais da metade da receita do país e se constituísse de homens que não só representavam a parcela mais numerosa da nação, mas também “a mais forte e sadia” do ponto de vista físico e moral, não teria recebido u tratamento adequado do governo, dominado por capitalistas e industriais. E convocaria os homens de estudo e reflexão a fazer o justo retrato do homem da terra como aquele “ocupado em fundar, por meio do trabalho, da economia, dos meios mais respeitáveis, a obra imensa que faz a força deste país, a participação de todos na propriedade”[90]: Homem da terra e vivendo na terra, parece feito à sua imagem. Como a terra, ele é ávido; a terra nunca diz: basta. É obstinado, tal como a terra é firme e persistente; é paciente como a terra, e, a seu exemplo, não menos indestrutível que ela; tudo passa e ele permanece [...]. E chamais a isso defeitos? Ora, se ele não os tivesse, há muito tempo já não teríeis a França! [...] A França inteira, se tivesse o verdadeiro sentimento de sua missão, auxiliaria os que dão prosseguimento a essa obra. Que fatalidade faz com que, hoje, ela se paralise entre suas mãos! [...] Se a situação presente continuar, o camponês, em lugar de adquirir, venderá, como fez em meados do século XII, e voltará a ser mercenário. Duzentos anos jogados fora! [...] E então não seria a queda de uma classe de homens, mas a queda da pátria [91]:
A magistratura da história (A França) tinha anais, e não uma história. Homens eminentes tinham-na estudado sobretudo sob o ponto de vista político. Ninguém penetrara no infinito detalhe dos desenvolvimentos diversos da sua atividade (religiosa, econômica, artística etc.). Ninguém a tinha ainda abrangido com o olhar na unidade viva dos elementos naturais e geográficos que a constituíram. Fui o primeiro a vê-la como uma alma e uma pessoa [92].
Os temas mais recorrentes na vasta e diversificada obra de Jules Michelet são o “povo”, a “pátria”, a “nação”, a “Revolução Francesa”, “a semelhança entre a história e a vida pessoal”, “a mulher”, “a criança”, o “amor”, o “corpo”, a “morte”, a “natureza”, para citar os mais proeminentes. Dentre os inúmeros estudos existentes acerca de cada um – cujos exemplos podem ser vistos nas referências bibliográficas que acompanham este trabalho –, vale destacar a obra de Roland Barthes, Michelet [93], que de forma notável invocou as temáticas predominantes ou, como chamaria, as “obsessões” do pensamento do autor. Depois de tratar do “camponês”, um de seus temas-chave, selecionamos outro assunto de fundamental importância para o escritor, mas que, em virtude das limitações deste estudo, será retomado de maneira rápida e resumida: a “história”. Idealista, Michelet acreditava numa “libertação progressiva da humanidade”: Com o mundo começou uma guerra que deve terminar com ele, e não antes; aquela do homem contra a natureza, do espírito contra a matéria, da liberdade contra a fatalidade. A história não é outra coisa senão o relato deste interminável conflito [94].
Seus trabalhos históricos são marcados por algumas concepções facilmente identificáveis, como a busca por uma “história total” que levasse em conta também o cotidiano e aspectos culturais da vida dos povos; a ênfase na “história-ressurreição” que estaria apta a perscrutar os traços constitutivos da nação francesa, desde a conquista romana até o início do século XIX; a história enquanto “autorrepresentação”, no sentido de que o conhecimento de uma dada realidade remete a uma experiência pessoal; sua função “modelar”, que deveria educar o povo e oferecer exemplos para a posteridade, cujo pressuposto seria utilizado para se passar de uma “literatura” à “história”; e, acima de tudo, a caracterização de uma história feita a partir do “povo”, sujeito, agente transformador e alicerce da nação na obra micheletiana. O contexto histórico no qual o autor estava inserido – Império, Restauração da Monarquia, Revoluções de 1830 e 1848, os períodos conhecidos como “Segunda República” (1848-1852), “Segundo Império” (1852-1870) e a criação da “Terceira República” em 1870 – permitiu que o debate sobre o passado e os métodos da produção deste saber ocupassem um lugar relevante na França daquele período[95]. Michelet, ao longo de três décadas, comporia uma história dos acontecimentos e dos
personagens históricos a partir de pesquisas em bibliotecas e documentos encontrados em arquivos, sem deixar de considerar o que hoje denominamos “fontes não convencionais”, como a pintura, a arquitetura, as anotações de viagens e observações sobre os costumes e modos de vida do povo, os discursos orais etc. Faz-se necessário lembrar também que ao longo de sua trajetória Michelet teve contato com inúmeros pensadores – seja por meio da leitura ou de cartas e conversas pessoais – que, de uma forma ou de outra, o despertaram para determinadas categorias teóricas e metodológicas que acentuavam, contradiziam ou apenas se harmonizavam com suas preocupações. Dessa gama de autores, impossível de ser rastreada aqui, podemos citar o poeta romano Virgílio (70 a.C.-19 a.C.), Johann Gottfried von Herder (1744-1803), Geoffroy Saint-Hilaire (1772-1844) e Giambattista Vico (1668-1744). Como já abordamos este tema em nossa tese de doutorado e em um capítulo de livro a ser publicado brevemente[96], co especial atenção para a influência de Vico no pensamento do historiador, preferimos mencionar como Michelet inspirou vários intelectuais que vieram depois dele, tornando-se modelo, por exemplo, para os estudiosos da nouvelle histoire (nova história)[97]. Como bem observou Afonso Carlos Marques dos Santos: A imagem de Michelet no Panteon dessa história é uma imagem por vezes positiva e negativa, porém favorecida: pela abertura temática (o corpo, a natureza, a multidão, a psicologia coletiva); pela ambição de uma história “total”; pela inversão democrática dos interesses tradicionais em benefício de uma história das coletividades anônimas; pelo sentido das evoluções de longa duração; pelo sentido etnológico do passado; pelo gosto das transgressões históricas para uma integração da natureza; pela certeza de que a história vincula-se ao indizível; pelo seu sentido dos famosos “silêncios da história” e pela sua arte de fazer falar ao que vem da escuridão [98].
Para finalizar, gostaríamos de resgatar uma das principais ideias apresentadas em Tudo que é sólido desmancha no ar , de Marshall Berman, na tentativa de revelar os motivos pelos quais Michelet tornou-se um dos maiores historiadores do século XIX. Seguindo os argumentos do autor, já há algum tempo tem-se abandonado a principal característica do que ele denomina “movimento moderno” e que consiste na “energia” que nos revigora a cada dia e que nos permite continuar a acreditar “no dia de amanhã e no dia depois de amanhã”[99], segundo ele, tão bem-compreendida por grande parte dos primeiros intelectuais oitocentistas, da qual Jules Michelet certamente faz parte. A maneira com que se dedicou à escrita da história encanta pela devoção de quase sessenta anos (se considerarmos que ele escreve sem parar durante 56 anos de sua vida adulta) e uma imensa obra; pelas longas horas despendidas em seu gabinete ou nos cursos que eram acompanhados por multidões que, nos momentos politicamente mais exaltados, chegavam a sair em passeatas após ouvirem o mestre; pelos esforços e insistência e prosseguir, mesmo com os incômodos causados pelo corpo já enfraquecido; mas, principalmente, pela paixão com que se entregou ao trabalho e ao combate incessante de tudo o que lhe indignava, seja no campo político, econômico, cultural ou social, que é sem dúvida sua grande lição.
Breve biografia do autor Jules Michelet nasceu no dia 21 de agosto de 1798, em Paris. Era filho de um tipógrafo modesto, Jean Furcy Michelet, e de Angélique-Constance Millet, que morreu quando ele tinha 16 anos. De 1817 a 1819 conclui sua formação universitária e Letras e logo após começa a lecionar. Inicia dando aulas particulares, depois torna-se professor estagiário no Liceu Charlemagne (1821) para, em seguida, ficar incumbido de ensinar História no Colégio Sainte-Barbe, mais tarde Colégio Rollin (1822). Posteriormente, leciona Filosofia e História na École Normale Supérieure, chamada então École Préparatoire (1827-1838), torna-se suplente de Guizot na Sorbonne (1833-1835), é nomeado chefe da seção histórica dos Arquivos Nacionais (1830) e ocupa a cátedra de História e de Moral no Collège de France (1838), tendo sido afastado destes últimos dois cargos em 1852 por negar juramento ao Império de Napoleão III. Além de exercer o magistério, Michelet foi preceptor de Louise-Marie-Thérèse, de nove anos, neta de Carlos X (1828), e da Princesa Clémentine, de treze, filha de Luís Filipe (1830), até o ano de 1843. Casa-se em 1824 com Pauline Rousseau, com quem terá dois filhos: Adèle e Charles. Pauline morre em 1839, causando o remorso de Michelet, que a havia abandonado por seu trabalho. Em menos de um ano conhece Madame Dumesnil, mãe de u aluno do Collège de France, com quem se envolverá. Em fevereiro de 1841, doente, ela se instala na casa de Michelet, vindo a falecer em maio de 1842, para o desespero do autor. Alfred Dumesnil, filho da amiga falecida, casa-se com sua filha Adèle em 1843 e dois anos depois nasce o primeiro neto, Jules Étienne. Ainda em 1845 seu pai morre, aos 76 anos. Em 1848, com 50 anos de idade, Michelet se apaixona por Athénaïs Mialaret, uma jovem professora primária de vinte, com quem se casa quatro meses após tê-la conhecido. Athénaïs dá à luz Yves-Jean-Lazare no dia 2 de julho de 1850, mas ele morre em 24 de agosto. O casal não terá mais filhos. A segunda neta de Michelet, Jeanne, nasce em 1851, e a terceira, Marie-Camille, também filha de Adèle e Alfred Dumesnil, em 19 de outubro de 1852, vindo a falecer no dia 17 de abril do ano seguinte. Sua outra neta, Julie Camille, nasce no dia 17 de novembro de 1854; ela permanecerá solteira e viverá com a irmã Jeanne quando esta enviuvar em 1931. Em 1855 sua filha Adèle morre, aos 30 anos, de tuberculose, e em 1862 seu filho Charles, aos 32 anos.