A Teologia como saber da vida e da Fé
A Teologia como saber da vida e da Fé
2010
CVTM Regina Fernandes Sanches
A Teologia como saber da vida e da Fé Regina Fernandes Sanches
Muitos concebem a Teologia exclusivamente como um esforço acadêmico de ordenação do pensamento de uma determinada crença religiosa. Que ela é de caráter especulativo e sem relevância para a fé e mesmo para a vida de um modo geral. De fato, uma teologia que se ocupa exclusivamente de especulações infindáveis, sobre assuntos que nada tem a ver com a agenda da Igreja e da sociedade, precisa realizar grandes esforços para demonstrar sua relevância, principalmente no contexto latino-americano. E o mesmo, por conseqüência, deve-se dizer sobre a educação teológica. Mas, como já vimos não é isso de fato que é teologia. Para Justo Gonzalez entre as atribuições da teologia está a de explicar a realidade. No entanto, ele faz lembrar: “...o que nos oferece não é tanto uma explicação de como as coisas funcionam, ou de como se formaram, senão antes o seu lugar nos propósitos de Deus”1. No caso da América Latina essa realidade percebida de modo bastante concreto e referente a problemas que afetam a vida. Na realidade, uma das fortes razões pelas quais buscamos o conhecimento de Deus é para entendermos a vida, o seu sentido e como ela se processa no mundo. Aprendemos com os reformadores que a auto-compreensão humana está no conhecimento de Deus. Ao conhecermos a Deus, também nos conhecemos como seremos humanos. Emil Brunner refletiu sobre isso em sua “Teologia da Crise” e fez o seguinte comentário:
Somos forçados a procurar pela verdade que é também vida; e não podemos buscar a vida exceto a que é também verdade. ... Nós vivemos; certamente, nós vivemos. Somos seres vivos. Temos parte na vida do mundo que a biologia descreve para nós; a maravilhosa, todavia misteriosa, força que chamamos vida sustenta-nos em seu poder... 2.
Pensamos inclusive que se entendermos melhor a vida, viveremos melhor, ajudaremos outros a viverem melhor e cumpriremos, com isso, os desígnios do Criador. Se teologia é um saber sobre Deus, ou ao menos sua busca, e se em Deus nos auto-conhecemos, então teologia é também um saber sobre a vida.
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GONZALEZ, Justo, PÉREZ, Zaida M. Introdução à Teologia. São Paulo: Academina Cristã, 2006. p. 16
BRUNNER, Emil. Teologia da Crise. São Paulo: Novo Século, 2000. p. 57
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Mas, compreender a vida não é uma tarefa tão fácil. Atualmente, muitos falam da complexidade da vida no mundo e essa é a idéia que a Bíblia também nos comunica: que ela não é tão simples, mas ao mesmo tempo é bela, intrigante, relacional, dinâmica e, acima de tudo, dom de Deus. Em relação à complexidade podemos afirmar, com base não somente nas ciências, mas nos próprios relatos bíblicos, que a vida é diversa. Em Gên. 2 temos o relato da criação de Adam, a humanidade, formada por homem e mulher (macho e fêmea); a ordem de Deus para denominarem os animais, o que revela o reconhecimento da distinção entre eles; o relato da inquietação do homem ao olhar para os diversos animais e, entre tantos, ainda assim não ver algum que fosse seu igual: da raça humana. Isso revela a diversidade da vida no mundo criado por Deus, desde suas origens e o reconhecimento dela pelos redatores bíblicos. O Brasil abriga hoje em torno de 15 a 20% das espécies animais, vegetais e de microorganismos do mundo. Nós, brasileiros, estamos acostumados a ver diariamente a variedade de vida diante de nós, e mesmo a diversidade de tipos, estilos, cores e raças que formam nossa comunidade biológica. Somos o país da bio-diversidade . Outro fator que aponta a complexidade é a interdependência da vida no mundo. Por mais que queira, ninguém vive sozinho e se autosustenta completamente. O Salmo 104 faz uma das mais belas descrições disso. Conforme ele, todos na criação dependem uns dos outros. Faz crescer a erva para o gado, e a verdura para o serviço do homem, para fazer sair da terra o pão, e o vinho que alegra o coração do homem, e o azeite que faz reluzir o seu rosto, e o pão que fortalece o coração do homem. As árvores do Senhor fartam-se de seiva, os cedros do Líbano que ele plantou, onde as aves se aninham; quanto à cegonha, a sua casa é nas faias. Os altos montes são para as cabras monteses, e os rochedos são refúgio para os coelhos. (Salmo 104.14-18).
A idéia da complexidade também faz lembrar a capacidade da natureza em se refazer e se reconstituir. Conforme o Pr. Orlando Costas, em seu texto “A Vida no Espírito”, isto não está nela mesma, mas no sustento do Espírito Santo de Deus em relação à criação. Ele afirma que o Espírito Criador é o mesmo que mantém a vida no mundo e inclusive a dinamiza. Moltmann percebe a ação do Espírito no mundo de modo parecido, conforme ele: “Pois o Espírito Santo é a „Fonte da vida‟, trazendo vida para dentro do mundo: vida total,
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vida plena, irrestrita, indestrutível, vida eterna.”3
Se de fato é assim, é Ele próprio que nos
chama ao cuidado e preservação da criação em co-participação com a Sua obra. É preciso considerar que foi o próprio Deus quem fez a vida no mundo diversa e interdependente. Essa responsabilidade inclui prioritariamente a preservação da vida humana, daqueles que são cuidadores da criação, e, como defende a teologia de Eclesiastes: a vida vivida de forma boa e sábia.
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A teologia oferece também um importante saber sobre a vida, na perspectiva da sua relação com Deus. A Teologia e a fé como experiência humana
Se nossa pretensão é “teologizar” a partir da América Latina, que é o contexto em que estamos situados e melhor conhecemos, é a fé nele vivida que deve ser nossa preocupação. A fé não se apresenta no vácuo. Ela se dá a partir de algum lugar, no tempo e no espaço, pois é experiência humana. O reconhecimento disso é vital para a teologia. Porém, devemos ter consciência de que a América Latina não possui somente a beleza e a riqueza da biodiversidade, mas sérios problemas sociais, religiosos e culturais. Devido a isso é que uma teologia que pretenda ser contextual deve priorizar em sua agenda as perguntas mais urgentes do seu ambiente próprio. Outra questão a ser considerada é que vivemos em um continente extremamente religioso, portanto, qualquer discussão sobre fé deve passar pela diferenciação entre religiosidade e fé. Barth esclarece que a fé não é um estado humano e nem mesmo uma qualidade, isso ele chama de “religiosidade”. Fé é história que se constrói com Deus através da sua Palavra “uma história nova a cada dia”. Fé, também, não é o misterioso que vai além
do racional e do inteligível. Sobre isso ele esclarece fazendo alusão a uma determinada situação: ...uma pessoa, chegada ao limite daquilo que julga ser conhecimento humano comprovado, resolve dar espaço a uma situação, a uma opinião, estabelecer um postulado, um cálculo de probabilidades, para então identificar o objeto da teologia com aquilo que supôs, postulou e considerou verossímil, e, neste sentido, o assumir4. Ele ainda acrescenta: “Claro que tal caminho
poderá ser trilhado, mas ninguém
deve pensar que isto seria a fé na qual poderá tornar-se e ser teólogo”. Para Barth a fé é condição inegociável para a Teologia, afinal, conforme ele, a fé é objeto da Teologia. A fé é o evento da admiração, do abalo e do comprometimento com a palavra de Deus. 3
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MOLTMANN, Jurgen. A Fonte da Vida, São Leopoldo: UNISINOS. 2003, p. 27. BARTH, Karl. Introdução à Teologia. São Leopoldo: Sinodal. 1996. p. 64
A religiosidade está relacionada ao seguimento de uma determinada crença, obediência às suas regras, cumprimento dos seus ritos, etc. Já a fé, como ensina Barth, está relacionada ao credere in (crer em), prossegue ele: “a saber, em Deus mesmo, no Deus do evangelho, que é Pai, Filho e Espírito Santo”. Este crer além de ser cognoscitivo é evento
dinamicamente histórico, pois orienta nossa vida a cada dia, nos surpreende e nos transforma.
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...a palavra de Deus, provida do poder vivo do Espírito que lhe é próprio e, assim, provida da soberania que só ela possui, liberta uma pessoa dentre muitas – de modo que ela se torna liberta e pode existir constantemente para isto – para aceitar esta mesma palavra... 5.
E esta fé da qual a teologia deve se ocupar. Neste caso, é uma fé consciente da sua realidade e não alienada. Ela possui cores culturais, sons e modos de ver e viver a vida. Trata-se de uma fé encarnada, como aquela ensinada por Jesus Cristo e, de fato, a única maneira possível de se vivê-la, conforme ensinou Steuernagel: A fé cristã nasce e culmina no encontro vivo com o Cristo ressurreto, que carrega nas suas mãos as marcas da crucificação. Nada mais e nada menos do que isso. E, se não chegarmos a este encontro com o Cristo da cruz, tudo o que temos é movimento religioso6.
No caso da América Latina, como já afirmamos, temos uma região marcada pela religiosidade, que é tão diversa quanto sua cultura e riquezas naturais. É um lugar também de problemas econômicos e político-históricos, que geram outros problemas sociais gravíssimos, como: a má distribuição da renda e consequente empobrecimento das massas, precariedade dos sistemas de educação e saúde, etc. É certo que nos últimos anos a América Latina tem experimentado mudanças radicais em sua política. Representantes de segmentos até então considerados minoritários estão hoje à frente dos governos de alguns países latino-americanos. Mas, essas situações históricas não se resolvem tão facilmente ou do dia para a noite. Envolvem, além de mudanças estruturais, a mudança de mentalidade, o que é um processo longo e trabalhoso. A fé é chamada a ser vivenciada nesta realidade e ser geradora de mudança de mentalidade. Neste caso, mudança do egoísmo da concentração de renda para o amor do compartilhamento; do abuso de poder e busca de benefícios próprios para a liderança compartilhada e participativa; da superação da “lei do mais forte” para a lei da solidariedade,
enfim, para um tratamento mais digno tanto do outro ser humano quanto da criação como um todo. 5
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IBIDEM, p. 64. STEUERNAGEL, Valdir. Para falar das flores.... Viçosa: Ultimato, 2002. p. 74.
Também é esta fé que se depreende dos relatos bíblicos. No caso do Antigo Testamento temos exemplos de fé em Noé, Abraão, Sara, Isaque, Jacó, José, Moisés e outros. Em todos esses casos houve encontros marcantes com Deus e fundantes de uma nova maneira de conduzir a vida, não somente em relação íntima com Deus, mas em serviço a Ele. Também é interessante constatar que essas pessoas eram comprometidas com o mundo da sua época e com a vontade de Deus em relação a ele. Demonstraram uma fé que acolheu a palavra de Deus e, com isso, tornaram-se canais da própria revelação. O autor de Hebreus deixou claro que eles fizeram o que fizeram “Pela fé” (cf. Hebreus 11). Ele ainda explica a
fé da seguinte maneira: é “fundamento”, ou seja, base, alicerce daquilo que se espera. Não é exatamente o que se espera, mas a base através da qual se permite esperar. A fé também é a “prova real” de coisas que não são visíveis. Inferimos que ela é algo concreto, perceptível,
pois é prova. Ela é tão concreta que resultou em testemunho dos antigos (cf. Hebreus 11. 2) para a posteridade. No Novo Testamento vemos a atitude dos discípulos e de como eles recepcionaram Jesus. Também acolheram a sua palavra (fala) e o seguiram. O fizeram por fé, pois conforme Isaías “olhando nós para ele, nenhuma beleza víamos, para que o desejássemos” (Isaías
53.2b). Da mesma forma ocorreu com Paulo, ao conhecer Jesus na estrada de Damasco passou por uma experiência que também foi fundante do seu seguimento a Jesus e do apostolado entre os gentios. A fé gerada nele foi acolhedora da palavra do Senhor Jesus e reorientou toda a sua vida. Mas, muito mais que isso, a fé foi geradora da sua teologia. Paulo pensou a própria fé em conjunto com as comunidades por ele fundadas e resultou na teologia por ele produzida.
Considerações Finais:
Enfatizamos que a Teologia é o saber da vida e da fé, pois não há fé longe da vida, e não faz sentido também uma fé que não transforma a vida. É em vista dessa compreensão que nos apropriamos das belas palavras de Steuernagel: Eu preciso parar diante da flor porque ela expressa, de forma ativa-passiva, quem é Deus. Percebo, por exemplo, que nós temos uma bonita teologia da criação, mas uma pobre relação com a própria criação. Temos sido filhos dessa mentalidade que olha para a natureza de forma utilitária e sempre pergunta: “Para que me serve isso?” A natureza seria muda, e nós a tratamos como mero objeto de exploração. E, então, é claro que não temos
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tempo para as flores... Eu me sinto, pois, convidado por Deus a romper com essa “viseira de progresso”, para logo redescobrir uma natureza que me fala de um Deus que cria do 7
nada e cria de forma perfeita a rosa de Pentecostes .
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STEUERNAGEL, Valdir. Para falar das flores.... Viçosa: Ultimato, 2002. p. 19.