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Quais os fundamentos do culto que rendemos à ciência?
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Abandonados os deuses e os mitos até aqui adorados, às vésperas do terceiro milénio, "senhor de seu pensamento e de sua ação, o homem parece em condições de garantir sua ascendência sobre a matéria e de enfrentar os desafios ancestrais do espaço e do tempo, da vida e da morte."
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Mas se a ciência moderna atuou como "grande destruidora do obscurantismo e dos mitos perante a história", ela instila sua própria mitologia, sua mística. O funcionamento de nossa aldeia global não deixa de exigir o preenchimento dos espaços do poder simbólico. A crítica sociológica do autor busca exatamente distinguir o domínio da ciência do mascaramento cientificista que tende a desviá-la de seu curso, de sua função essencial.
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A CIÊNCIA EM AÇÁO CLAUDE CHRÉTIEN
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Título original em francês: La science à /'eeuwe (Collection "Philosopher au présent", dirigida por Laurence Hansen-Lõve) © Éditions Hatier, Paris, 1991 Tradução: Maria Lúcia Pereira Capa: Fernando Cornacchia Foío: Renato Testa Copidesque: Margareth Silva de Oliveira Revisão: Mõnica Saddy Martins
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Chrétien, Claude A ciência em ação : mitos e limites / Claude Chrétien ; tradução de Maria Lúcia Pereira. -- Campinas, SP : Papirus, 1994. - (Coleção Filosofar no presente)
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SUMÁRIO
Bibliografia. ISBN 85 308 0279-9 1. Ciência - Aspectos sociais 2. Ciência - Filosofia Ciência - História l. Título. II. Série.
3.
CDD-501 índices para catálogo sistemático: 1.Ciência : Filosofia 501 2.Ciência: Teoria 501
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DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUG M. R. Cornacchia & Cia. Ltda — Papirus Editora — ! Fone: (0192) 31-3534 e 31-3500 - C. P. 736 - CEP 13( Campinas — Filial - Fone: (011) 570-2877 - São Paulo;
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Proibida a reprodução total ou parcial. Editora afiliada à ABDR.
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1. CONTRA A IDOLATRIA CIENTIFICISTA O impacto social da ciência Atentado aos valores
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PREFACIO
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Jacques Monod: uma ética da ciência O panegírico cientificista Por uma crítica do cientificismo A crítica filosófica das ciências F. Nietzsche, o destruidor de ídolos Por uma sociologia do conhecimento científico A racionalidade científica Os limites da ciência 2. ORIGENS DA CIÊNCIA MODERNA: O MITO DA IMACULADA CONCEPÇÃO
Por que não na China? Data e local de nascimento? As falsas pistas... Galileu e a emergência de uma ciência moderna..
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45 46 50 58
As circunstâncias de um nascimento Uma ciência mecânica Uma ciência masculina Remodelagem do espaço e do tempo O mecânico supremo 3. CIÊNCIA E SOCIEDADE: A CONTAMINAÇÃO IDEOLÓGICA
A sociocultura como obstáculo epistemológico As formas sociais da ciência Husserl: uma ciência da totalidade Marcuse: uma ciência dominadora A verdade: uma concepção conquistadora Os conteúdos sociais da ciência O peso dos fatos: Pasteur /Pouchet A impureza dos conceitos e modelos O exemplo das teorias sobre o influxo nervoso
62 67 69 70 71 77
79 81 82 83 85 88 90 93 /K, 97
6. UNIVERSALIDADE OU RELATIVIDADE: A CIÊNCIA
DIANTE DA DIVERSIDADE DAS CULTURAS Claude Lévi-Strauss e a reabilitação dos saberes exóticos
147 149
O saber científico está "deslocalizado" Ciência do bricoleur, ciência do engenheiro Paul Feyerabend: equivalência do mito e da ciência O processo do relativismo Para superar o relativismo Oriente e Ocidente: o confronto dos saberes Física e taoísmo Por uma abertura da razão Um universalismo relativista
151 156 158 162 165 167 169 171 173
CONCLUSÃO
"A natureza desvendando-se à ciência" ou o mito da verdade totalmente nua
177
TEXTOS 4.- CIÊNCIA E SOCIEDADE: O FUNCIONAMENTO INSTITUCIONAL
A ciência como produção social O mito da "cidade científica" A ciência também é escrita A ciência é um combate A ciência também é um debate A ilusão realista "O fetichismo da mercadoria" (Karl Marx) A ciência é uma empresa O mascaramento ideológico 5 . CIÊNCIA E IDEOLOGIA: AS AMBIGUIDADES DO MARXISMO
A noção marxista de ideologia A ciência acusada de ideologia A ciência inocentada A ciência na prática histórica t/m escorregão: o caso Lyssenko Entre Cila e Caribde ou os excessos de um arrependimento Os limites de uma sociologia da ciência
103
104 105 108 109 114 115 116 119 123 125
126 129 132 133 136 142 145
1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 10a. 11. 12. 13. 14. 15.
J. Habermas, A técnica e a ciência como "ideologia" J. Monod, O acaso e a necessidade J. Monod, O acaso e a necessidade A. Comte, Curso de filosofia positiva M. Berthelot, Ciência e moral F. Nietzsche, A gaia ciência F. Nietzsche, Além do bem e do mal F. Nietzsche, A gaia ciência P. Thuillier, De Arquimedes a Einstein F. Nietzsche, Aurora P. Feyerabend, Contra o método C. Delacampagne, Sobre a natureza do real R. Descartes, Discurso do método B. Gille, Os engenheiros do Renascimento J. Ladrière, As questões da racionalidade M. Heidegger, Ensaios e conferências, "Ciência e meditação" 16. J. Schlanger, Os conceitos científicos 17. E. Husserl, A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental 18. J.-M. Lévy-Leblond, O espírito de sal
183 184 186 188 191 193 194 195 197 199 200 201 202 203 205 206 209 209
211
19 H. Marcuse, O homem unidimensional 20 M. Weber, Ensaios sobre a teoria da ciência 21. H. Bergson, Oòras "Sobre o pragmatismo de William James" 22. J.-M. Lévy-Leblond, "A ideologia da/na física contemporânea" 23. R. Descartes, Tratado do homem 24. E. Durkheim, Ano sociológico 25. G. Bachelard, A atividade racionalista da física contemporânea 26. B. Latour, S. Wooglar, A vida de laboratório 27. I. Stengers, Os conceitos científicos 28. B. Latour, S. Wooglar, A uida de laboratório 29. B. Latour, S. Wooglar, A uida de laboratório 30. K. Marx, F. Engels, A ideologia alemã 31. R. Garaudy, Contribuição à teoria materialista do conhecimento 32. J.-T. Desanti, A ciência, ideologia historicamente relativa 33. R. Garaudy, Contribuição à teoria materialista do conhecimento 34. T.-D. Lyssenko, "Por que a ciência burguesa se ergue contra os trabalhos da ciência soviética" 35. E. Schatzman, Ciência e sociedade 36. J. Langevin, As condições da pesquisa científica e o marxismo 37. B. Latour, "A Grande Divisão" 38. C. Lévi-Strauss, O pensamento selvagem 39. P. Feyerabend, Contra o método 40. P. Feyerabend, Contra o método 41. A. Caillé, Por um universalismo relativista 42. W. Heisenberg, Física e filosofia 43. F. Capra, O Tão da física 44. J. Habermas, A técnica e a ciência como "ideologia" 45. J. Habermas, Teoria da ação comunicativa 46. J. Habermas, Teoria da ação comunicativa
212 213 214 215 217 219 220 221 223 225 226 228 230 232 233 235 236 237 239 244 246 248 249 251 252 254 255 257
BIBLIOGRAFIA
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ÍNDICE ONOMÁSTICO
265
ENSAIO
PREFACIO
Pensar não significa acreditar. Pouca gente entende isso. Quase todos, até mesmo aqueles que parecem livres de qualquer religião, procuram nas ciências algo em que possam acreditar. Alain
Em história, há datas simbólicas que, embora míticas, permitem estabelecer pontos de referência e melhor apreciar distâncias: é este o caso da mudança de milénio. Se "o grande temor do ano mil" não teve sem dúvida aqueles ares de apocalipse que Michelet se deleitou a descrever, ao menos ele atesta aquele sentimento profundo que tinham as populações medievais de pertencerem a uma humanidade envelhecida, desgastada por um tempo que chegava ao fim, num mundo cuja derrocada parecia iminente. Na aurora do terceiro milénio, em contrapartida, e apesar dos evidentes motivos de inquietação (a menos que isto ocorra por causa deles, por negação ou exorcismo), o otimismo, apregoado ou insinuado em toda parte, 11
e de sua ação, o é indispensável. Senhor de seu P ' if gua ascendência sobre homem parece em condições de g0* g ancestrais do tempo e do a matéria e de enfrentar os desalentado do seu rochedo, espaço, da vida e da morte. VeSã jiumilia os caminhos do Prometeu ergue alto o facho <&£ an0 2000 vão se abrir para futuro. Acredita-se que as portas 0-°^ mundp das ciências e das um novo mundo, mágico e radioS°: «ó triste e louca fera 2 técnicas, triunfo do homem e da/. * a da mesma ingenuidade humana" (Nietzsche), sempre viv* somente mudou de sigincurável! Negativa ou positiva, e ^ destruidora do obscuno... e de partido, pois a ciência, ^órja, substituiu a religião e rantismo e dos mitos perante a hlS própria mitologia, e até põe-se, por sua vez, a secretar mesmo sua mística. . , n0lógico) surge seguraA ciência (com seu corolár^^^ção ocidental. Para ela mente como o mais belo florão da cl g caminhos nos quais se convergem e nela vão dar os difel
nsainento
'nstauração, fundamentar sua identidade e justificar suas rescrições, valores e relações entre seus membros. Assim, o mito geralmente põe em cena deuses ou heróis, demiurgos das origens, que lançam as bases da nova ordem. Ele retraça sua epopeia lendária que fixa, no imaginário coletivo, os signos e modelos que postulam os procedimentos comuns de significado e comunicação. Ele determina enfim os ritos, as regras do jogo social e os paradigmas sobre os quais se modulam os comportamentos. Ora, se a ciência, herdeira da racionalidade dos filósofos gregos, pretende, como estes, romper com a religiosidade do sistema mítico, sua hegemonia nas sociedades modernas a deixa em condição de assumir as funções cujos titulares tradicionais ela expulsou. Os deuses e taumaturgos não mais fazem sucesso na era das ciências e técnicas. Mas a sociedade não pode funcionar se nela ficam vagos os lugares do poder simbólico. Para encobrir o modelo ancestral que ela tornou caduco, a ciência é intimada, portanto, a recobrar seus atributos. Aqui, como em qualquer outra parte, a revolução é acompanhada nos alicerces por uma restauração, pois o curso do tempo, que corre continuamente, jamais se rompe. Assim, quando Auguste Comte saúda, como todo o século XIX, a "revolução" científica e o advento do "estado positivo" (cf. texto 4), está confiando à ciência o encargo de garantir, na ordem religiosa e política, a substituição dos mitos ou ideologias obsoletos. O que quer dizer que, se ele consagra a ruptura e instaura uma nova ordem do espírito, não ignora as necessidades irracionais do homem e da sociedade. A política positiva visará nele uma gestão racional e competente das relações sociais, a religião positiva, reunir os indivíduos no "Grande Ser" que é a humanidade histórica. Ora, "a própria ciência, desde que concebida como um todo coerente e do qual se extraem modos de representação e de comportamento, representa o papel de^ um mito" (P. Smith)1. Logicamente, certos P. Smith, artigo "Mito: abordagem etno-sociológica", Encyclopaedia Universalis.
13
12
discípulos de Auguste Comte (cf. nota 9 p. 27) levarão a doutrina positivista até o cientificismo, isto é, até um absoluto na ordem do saber e do poder que lhe confere estatuto de mito. A ciência substitui então toda forma de conhecimento e seu império estende-se a todos os campos da vida e da ação. Ela ocupa o lugar original, de onde pretende tudo fundar e reger. Os homens de ciência (Galileu, Newton, Bernard Palissy, Pasteur, Einstein...) tornam-se as figuras lendárias de uma nova gesta que celebra esses pioneiros da humanidade moderna. As ideias, imagens e valores técnico-científicos constituem o pano de fundo de referência de que a sociedade necessita para codificar tudo o que, nela, faz sentido e comunica. O processo experimental e operatório das ciências passa a ser o cânone de um novo ritual que normaliza todas as práticas: educativa, política, jurídica, terapêutica, cultural etc. A ciência que se transforma em mito tende portanto a constituir a trama de todo o tecido social. Como todo mito, o cientificismo tem seus sacerdotes e profetas (cf. pp. 26-27, Marcelin Berthelot, Ernest Renan ou Jacques Monod). Mas ele é essencialmente um fenómeno anónimo e difuso, porque responde à necessidade que tem a sociedade moderna (como toda sociedade) de garantir sua identidade e sua unidade. O que quer dizer que se ela surge muito justamente como perversão da ciência e desconhecimento de seus limites, isto é imputável não à sociedade em si, mas à sociedade que não pode deixar de explorar para seus próprios fins uma obra na qual ela se admira e gostaria de se refletir. O que quer dizer também que o cientificismo é vivaz, que, profundamente arraigado na sociedade, resiste às provações (cf. p. 31) e condenações (Bergson, Heidegger, Merleau-Ponty, dentre outros) e que repercutirá nas cabeças e nos costumes enquanto a sociedade não diversificar seus valores. Porém, se ele serve aos interesses da sociedade, desserve àqueles da ciência, que se vê assim fraudada e falsificada. As ideias que ela produz, relativas e provisórias, transformam-se em ídolos; a obra de cultura passa a ser-objeto de culto; as teorias, teologia; a 14
submissão à razão, demissão da razão. O sucesso social da ciência representa portanto, paradoxalmente, o maior risco para ela, visto que a reconduz ao plano do mito que ela pretende superar. ÍA crítica sociológica apresentada neste ensaio tentará lançar por terra a problemática cientificista demonstrando que, longe dê poder fundar a sociedade, a ciência é um produto desta. Ela não pertence, como os heróis civilizadores dos mitos, a uma ordem transcendente, àquele "algures" original que está aquém do tempo e do espaço. Obra dos homens, elaborada por uma cultura e sociedades particulares, está histórica e geograficamente situada. Traz, portanto, a marca desse contexto no qual vem à luz e desenvolve-se e, maculada com tal relatividade, não pode fornecer os "conhecimentos absolutos" (Auguste Comte, texto 4) que exige o mito. Ao circunscrever os limites da ciência, dever-se-ia assim subtraí-la aos mitos que o cientificismo borda à volta dela e restabelecê-la em seu verdadeiro estatuto. Como todos os valores seguros, na verdade, ela nada tem a ganhar com uma cotação artificialmente inflada>j
15
1. CONTRA A mOLATEIA CIENTIFICISTA
A ciência não se contenta em invadir e transtornar nosso meio ambiente com os objetos técnicos cuja criação ela possibilita e que vemos se reproduzirem e renovarem à nossa volta num ritmo exponencial: após haver cercado o trabalho, os transportes, o lazer, a vida doméstica, a saúde dos corpos ou a comunicação dos espíritos, a tecno-ciência insinua-se até em nossas maneiras de calcular e de pensar (microcomputadores), de fazer amor (pílula anticoncepcional), de dar a vida ou de ir para a morte (bio-ou tanato-tecnologias)...
O impacto social da ciência
Não há duvida de que a fecundidade tecnológica das esta atitude que lhes é própria de converter suas teóricas em aparelhagens úteis, favorece o pragmalsrn ° e o materialismo de nossas sociedades e determina, em 17
essência, seu prestígio: os poderes adquiridos são creditados ao saber. Porém, de maneira mais sutil e profunda, a ciência penetra nos espíritos e impõe-se como o único modo válido de representação e saber. Mesmo que o "princípio de experimentação"2, caro aos positivistas, encontre-se muitas vezes reduzido a uma simples preocupação com eficiência ou êxito (a performance dos engenheiros anglo-saxões), chega-se a considerar que não existe outro saber, senão outro pensamento legítimo, que não aqueles que merecem a etiqueta científica. Assim, as pesquisas de opinião recordam-nos regularmente que, na confiança de nossos contemporâneos e em sua noção de verdade, os "cientistas" superaram amplamente os sacerdotes, os filósofos, os artistas ou os antigos. Basta ver como, em nosso sistema de ensino, as ciências, que, entretanto, só proporcionam abertura para o mundo das coisas, substituíram as "humanidades" cuja vocação sempre foi legar às novas gerações o tesouro da experiência passada como um conjunto de chaves para o tempo presente. Então, não se espantem se o modo instrumental, manipulatório, calculista ou operacional de nossa relação com as coisas tende a impor-se como o único modo de relação: com as ideias, com os homens, com o tempo, com as obras! Mencionemos apenas o exemplo da política. Por essência, ela é uma deliberação sobre os fins desejáveis para uma sociedade e uma determinação desses /ms; porém5 fascinada pelo modelo de objetividade e racionalidade científicas, ela se pretende "ciência política", submete-se ao mito do especialista e não visa nada além de uma gestão eficiente dos meios. O Estado moderno reivindica sua neutralidade com relação às religiões e ideologias, mas, paradoxalmente, esta reivindicação assinala sua submissão à ciência, pois trata-se de uma neutra2. É verdadeiro aquilo que é verificado pela experiência, isto é, naquele diálogo entre o espírito humano e a natureza que Claude Bernard codificou como o método propriamente científico, é verdadeira toda representação intelectual que recebe a sanção do próprio real.
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Hdade bastante ambígua, baseada num desvio do discurso ientífico. Todo poder, na verdade, é confrontado com a obrigaão de se justificar3 e, depois do abandono do penhor divino, ele tern Que buscar seus títulos na soberania popular. Ora, ã ciência permite que a demonstração pelas coisas, as restrições oretensamente objetivas substituam os acasos da persuasão e da autoridade sobre os homens. Todo ato propriamente político tende então a anular-se como tal, a ocultar aquilo que, nele, tem origem na escolha e na decisão, para aparecer como que ditado unicamente pelas leis imanentes e científicas da gestão saudável (cf. texto 1). Vê-se assim como o modelo da atividade científica pode inspirar a nova ideologia do neutralismo político, que apaga a tradicional cisão direita/esquerda. Atentado aos valores
De fato, é todo o nosso sistema de valores —; mais ainda, é a própria noção de valor — que se acham penetrados e transformados pela imagem da ciência. No plano do conhecimento como naquele da ação, o ideal ambiente, de inspiração cientificista, é aquele de um domínio total. Trata-se de implementar atividades autónomas, isentas de qualquer condicionamento anterior e que instalem por um ato decisório suas próprias bases e princípios de funcionamento, ordenando procedimentos e processos, determinando, uns pelos outros, meios e objetivos e cuidando de dimensionar e controlar precisamente sua adequação. Este ideal tem origem numa atitude voluntarista e nega toda espécie de dependência em relação a um fundamento qualquer ou uma instância exterior de justificação.
"Pois o mais forte nunca é forte o bastante para ser sempre o senhor, se não transformar sua força em direito e a obediência em dever", J. J. Rousseau, Du contrai social [O contrato social], I, III, Hatier.
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sistemas de representação míticos, religiosos ou filosóficos ffi° se P°de escapar à questão do sentido ou do valor: "Por que pensar ou agir assim? Quais são a fonte e a assinatura da palavJ*a revelada? Quais as condições e prazos de validade das arquiteturas da razão?" A questão do porquê sempre traz à luz uma base primordial ou desvenda uma referência transcendente sobre a qual se constrói ou na qual se fixam as operações humanas. Na verdade, toda interrogação em termos de valor traduz uma preocupação reguladora e normativa, e, na exata medida em que a_jiorma excede o fato, ela nostorna ^devedores. A busca de um sentido é sempre uma dívidã~3è~ sentido, perante aquelas instâncias credoras que são a Divindade, o Ser, a Natureza, a Razão etc. Ora, a ciência anula a conta corrente, rejeita a própria ideia de dívida e só quer investir e trabalhar com seus próprios fundos. Seu terreno é circunscrito aos fatos, e pretende manter-se em relação a eles numa atitude estritamente "positiva", isto é, em processos que ela pode, integralmente, determinar, controlar e justificar por si só. Por outro lado, esta vontade de domínio também se opõe ao problema ético na medida em que este último surge do encontro de uma vontade livre e legisladora, por um lado, e de situações contingentes, complexas e confusas, por outro, situações que ela nunca consegue dominar perfeitamente. A ética nasce do confronto dos puros valores e de um real emaranhado. Ora, se a ciência tende a negar os primeiros, não pode mais assumir o segundo, que ela reduz inevitavelmente a fatos simplificados e dóceis. Daí seu afastamento radical de toda iniciativa de caráter moral. Por isso, com frequência ela é tentada a levar o divórcio dos fatos e valores até uma negação pura e simples dos últimos. O imperialismo do fato e do fazer não conhece então nenhum outro limite que não o do possível e tudo o que pode ser feito deve (implicitamente) ser feito e será (efetivamente) feito mais dia menos dia. (Este é, por exemplo, o atestado cheio de desencar ito de Jacques Testard (um dos melhores especialistas do mu *ido em fecundação in vitro e congelamento de embriões 20
, professor no hospital Antoine-Bèclère de Clamart) decidindo interromper suas pesquisas sobre genética huue or razões mana, P éticas ou até mesmo simples prudência, e esrno imaginando que uma conscientização coletiva conduza uma moratória internacional, não duvida por um instante sequer que aqui ou acolá, mais cedo ou mais tarde, equipes orosseguirão com a pesquisa e realizarão o inelutável?]. Não quero fazer certas coisas. Minha última façanha terá sido o congelamento de embriões humanos. Não irei mais longe, não tentarei outras "novidades". Outros o farão, não porque sejam melhores, mas porque têm vontade de fazê-lo, de fazer com que falem deles, de aparecer na televisão. Tenho plena consciência de que uma tal decisão equivale, para mim, a uma forma de suicídio profissional. Sei também que minha posição é ultraminoritária no mundo científico, (...) A lógica da pesquisa aplicase mesmo ao que ainda está privado do odor do progresso, mas não se pode aplicá-la ao que já tem o gosto de um enorme perigo para o homem.
(Jacques Monod: uma ética da ciência) fPorém, mesmo quando reconhece a necessidade dos valores, aciência é tentada a se conformar com sua lógica própria, a erigir como valor supremo, senão exclusivo, o próprio postulado que a fundamenta. Este é o procedimento do biólogo Jacques Monod ao expor sua concepção de uma "ética do conhecimento" (cf. textos 2 e 3)^ Ele parte de uma dupla exigência: escapar à heteronímia que fixa os sistemas de valores tradicionais em instâncias exteriores; e, no entanto, ultrapassar a ordem do que é rumo a um dever ser. Para responder a isso, ele Propõe instituir como norma de pensamento e de ação, isto é, como norma de-,vida (individual e social), o "postulado de °bjetividade" que está na base da ciência.XPortanto, seria neJacques Testard, em Lê Monde, 10 de setembro de 1986. (O grifo é meu.) Cf. também J. Testard, L'oeuftransparent, "Champs", Ed. Flammarion, 1986.
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cessário estender a todas as esferas da existência a ascese que o cientista se impõe em seu laboratório separando suas crenças, interesses, sentimentos ou características pessoais da obra de conhecimento à qual se dedicai Como postulado, o princípio de objetividade escapa aos critérros que ele permite fundamentar e não é, portanto, nem demonstrado nem demonstrável. Ainda assim, ele não é, sem dúvida, redutível a uma simples convenção visto que o peso e o sucesso da ciência lhe asseguram em troca uma espécie de validação. Porém, ao lhe conferir, fora da própria ciência, alcance e jurisdição universais, Monod assume uma opção que a autonomia da ciência quase não pode mais avalizar. Ele só pode subtraí-la ao arbitrário tentando integrá-la como condição de funcionamento de um vasto sistema, coerente e fechado em si mesmo. Um sistema que reúne todas as atividades de uma "sociedade moderna" e garante, entre outros, o acordo da fé e do saber, da ciência e da moral, das crenças individuais e do estado geral do conhecimento. Um sistema que sirva de garantia contra estas contradições que se nota, com demasiada frequência, entre os diferentes aspectos da existência individual e da realidade social. Para dar a um tal sistema de fatos e de comportamentos um valor normativo que, todavia, não obrigue a sair do próprio sistema, Monod recorre ao modelo "axiomático": A ética do conhecimento não se impõe ao homem; ele, ao contrário, é que se lhe impõe fazendo dela, axiomaticamentej a condição de autenticidade de todo discurso ou de toda ação.
Trata-se de dar urn, valor absoluto a um elemento, por definição, relativo: nesse caso, o princípio metodológico e deontológico (de objetividade) em ação nas ciências. Como juntar este elemento a todos os outros que compõem a personalidade humana e o mundo social sem ceder ao arbitrário? Como juntar sem relativizar? Encontramos aqui o velho sonho6 de um siste5. J, Monod, O acaso e a necessidade (texto 3). (O grifo é meu.) 6. *ste sonho aparece desde a Antiguidade, por exemplo, no sofisma de Épimênides,
22
a autp-referencial,
capaz de fundar-se a si próprio com todos elementos que inclui, sonho ao qual a axiomatização matemática pode, na realidade, trazer uma resposta. s
Em matemática, uma axiomática representa a forma acabada que o raciocínio dedutivo assume. Ela consiste em enunciar de início todas as regras do jogo (axiomas, regras lógicas, termos e definições...) necessárias à organização perfeitamente rigorosa e límpida da demonstração, com o cuidado de não deixar subsistir nada de intuitivo. O ideal seria fechar em si mesmo o sistema dedutivo, de maneira a que o mesmo não dependa de nada anterior ou exterior a ele e que a luz da demonstração ilumine, em contrapartida, os princípios nos quais ela se apoia. É por isso que estes devem ser colocados com total transparência. Não há dúvida que, como princípios, eles continuam indemonstrados e, portanto, hipotéticos ou arbitrários; pode-se, porém, compensar parcialmente esta falha visando "saturar" esta axiomática, isto é, dar-lhe uma tal coesão que a introdução de qualquer novo princípio a torne contraditória. O sistema justifica-se então, princípios aí incluídos, unicamente pela força de sua autonomia, por seu próprio "peso". Pode-se assim esperar fundamentar os elementos por sua subordinação ao todo e o todo pela integração dos elementos... evitando a acusação de círculo vicioso, já que esta circularidade é funcional e se "justifica" pelo princípio superior da harmonia e da perenidade do sistema. Por seu fechamento e sua lei interna, este se colocaria em uma espécie de transcendência em relação
o Cretense. "Épimênides, o Cretense, afirma que os cretenses mentem sempre. Ora, ele é cretense; logo, ele mente. Logo, os cretenses não mentem. Porém, neste caso, ele está dizendo a verdade, e os cretenses mentem etc." Inúmeros jogos lógicos, como, por exemplo, o paradoxo dos barbeiros, colocaram p problema do fechamento de um sistema. Em 1918, Bertrand Russel propôs este célebre paradoxo: "Numa aldeia há um barbeiro que faz a barba de todos os que não se barbeiam a si próprios. A questão é saber se o barbeiro faz a própria barba. Q paradoxo resulta do fato de que ele só faz a própria barba se não se barbear." É então possível, sem ficar girando num círculo vicioso, construir um sistema lógico coerente e auto-suficiente? De maneira significativa, a solução do paradoxo do barbeiro implica que este seja um forasteiro na aldeia...
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a si mesmo, fonte de normatividade já que a necessidade do todo se transmitiria aos elementos.
humanidade sobre a natureza e esta ainda pela expansão dos indivíduos e o advento do homem a si mesmo etc. Subsiste, inteira, a questão do sentido de tudo isso: a questão do Todo!)
Monod apóia-se neste modelo formal da matemática ou da lógica para decidir-se entre o fato e a norma, e fundar uma moral sobre a existência de fato da ciência ou do espírito científico. Surpreendemo-nos com esta inesperada abertura para um "socialismo" com as cores da ciência que ele evoca (ou convoca) no final do seu livro. Estranho socialismo, na verdade, que não tem muito a ver com o "sonho" e o fervor revolucionário do século XIX, mas muito mais com a frieza e o rigor (jansenistas) da lógica...
De nada serviria, realmente, superar a contingência desta ou daquela realidade particular, quando é a própria base da realidade que pareceria problemática. A adesão a um ser qualquer pressupõe a afirmação originária do Ser. Ora, na medida eni que exclui todo Absoluto exterior, Monod vê-se obrigado, para fundamentar sua opção moral e política, a buscar a legitimidade que lhe falta num fechamento do sistema.
Não é um sonho incoerente, mas uma ideia que se impõe apenas pela força de sua coerência lógica, (p. 194)
Este socialismo que visa reconciliar o saber e a liberdade, o material e o espiritual, o indivíduo e o coletivo, os sentimentos e a ordem política... é, na verdade, a afirmação do "socius", do elo, da unidade, do conjunto. É o primado do Todo sobre os elementos. É o sistema. Só ele pode sublimar a particularidade do espírito científico e erigi-lo em valor universal. Na verdade, a intuição profunda do texto de Monod é que o problema do valor é sempre o problema do Todo. Fundamentalmente, não existem valores particulares pois, em sua relatividade, eles só poderiam remeter-se uns aos outros, seja minando-se reciprocamente no conflito de valores, seja buscando uns nos outros o fundamento que lhes falta, e o todo é que iria por terra então por falta de fundamento.(Para tomarmos um exemplo, podemos, pouco a pouco, dar um sentido a nossa vida individual pela participação na obra coletiva do conhecimento, justificar esta última por suas repercussões técnicas ou, inversamente, o progresso técnico pelas novas chances que oferece ao saber e à cultura; pode-se, globalmente, legitimar o desenvolvimento das ciências e das técnicas pelo domínio da 24
Pode-se, porém, objetar a Monod que esta pretensão logicista ficou tão caduca quanto, segundo ele, o sonho romântico que sustentava até aí o projeto socialista. Na verdade, Kurt Gõdel estabeleceu em 1931, em seus chamados teoremas de "incompletude", que um sistema formal não pode fechar-se em si mesmo. Deste modo, uma aritmética não contraditória não pode constituir um sistema completo; ela comporta necessariamente enunciados indecidíveis, dentre eles aquele que afirma sua própria não-contradição. Em outras palavras, para demonstrar que um sistema formal não é contraditório, é preciso apelar a meios de demonstração que pertençam a um sistema de grau superior... e assim por diante, indefinidamente. A esperança de fazer emergir do próprio sistema a normatividade ou a legitimidade é, portanto, vã. Sendo impossível a totalização do sistema, os fatos ou elementos continuam a ser o que são e não podem assumir valor normativo ou universal. \Por conseguinte, nenhum socialismo podendo fundamentar a totalidade do homem e da sociedade (a menos que ceda à fantasia totalitária), a ciência, com todos os seus sucessos e Princípios, continua a ser um fato de civilização e não pode ser transmudada em norma de uma ética, ou de uma política, do c °nhecimento!\ ,
25,
O panegírico cientificista
Monod tenta, na verdade, fundamentar novamente e dentro de uma argumentação esotérica o cientificismo que, sob tima forma mais ingénua, triunfara na segunda metade do século XIX (e cuja onda rebenta hoje em cima do grande público). O prodigioso progresso das ciências da natureza e seu papel motor na Revolução Industrial criaram efetivamente, nas últimas décadas do século passado, uma verdadeira mania da ciência. Incensada ao mesmo tempo como encarnação da deusa Razão, herdeira das Luzes, obra da República e flama do Ocidente, ela deveria desvendar paulatinamente a natureza e construir o reino do homem. Sua vocação era tomar o lugar das religiões, das tradições e das filosofias, para guiar os homens e os povos da Terra rumo ao Verdadeiro, ao Belo e ao Bem. Os voos sucessivamente épicos e líricos do grande químico Marcelin Berthelot (1827-1907: especialista em síntese orgânica, propulsor da termoquímica, foi também senador e ministro, membro da Academia das Ciências e da Academia Francesa) ilustram perfeitamente o espírito do século: A ciência possui doravante a única força moral que pode fundamentar a dignidade da personalidade humana e constituir & s sociedades futuras. A ciência domina tudo: só ela presta serviços definitivos. Nenhum homem, nenhuma instituição terá, doravante, uma autoridade duradoura, se não se conformar com os ensinamentos dela. ^ triunfo universal da ciência chegará a garantir para o hoíftern o máximo de felicidade e moralidade. Na verdade, tudo tem origem no conhecimento da verdade e dos métodos científicos pelos quais ele é adquirido e propagado: a política, a arte, a vida moral dos homens, assim como sua indústria e sua vida prática.7
7.
VT'B ert n elot > Science et morale [Ciência e moral], Calmann-Lévy, 1897, pp. XI -^I, 35 e 41. '
ErnesLEfinanj(-1823-1892) compartilha do otimismo constador de seu amigo Berthelot e, estendendo este ideal atífico à história e às ciências humanas, eis em que termos profetiza "o futuro da ciência": Sim, dia virá em que a humanidade não mais crerá, e sim saberá, dia em que ela saberá o mundo metafísico e moral, assim como já sabe o mundo físico; dia em que o governo da humanidade não mais estará entregue ao acaso e à intriga, e sim à discussão racional do melhor e dos meios mais eficazes para atingi-lo. Se tal é a meta da ciência, se ela tem por objeto ensinar ao homem seu fim e sua lei, fazê-lo apreender o verda,deiro sentido da vida [...] pode ela ter sérios detratares?" (^Organizar cientificamente a humanidade (o grifo é de Renan) é portanto a última palavra da ciência moderna, é sua audaciosa porém legítima pretensão, (ibid., p. 37). J
iEste cientificismo baseia-se, em primeiro lugar, num quadro histórico dos progressos do espírito humano que Auguste Comte (1788-1857) resumiu em sua célebre lei dos três estados que abre o Cours de philosophie positive [Curso de filosofia positiva] (1830-1842)9 (cf. texto 4\ Em sua infância, o espírito humano não imagina outra causalidade que não a da ação humana e povoa ingenuamente o mundo de seres com forma humana, dotados de vontade e de poder sobre os fenómenos naturais, esperando conciliar-se com eles através de preces ou ritos mágicos. Depois, por uma evolução e um amadurecimento naturais, o espírito renuncia a esta fantasmagoria de deuses e obriga-se a raciocinar. Procura então explicar o universo através de princípios apriorísticos aos quais empresta, espontaneamente, um valor absoluto, como se ele detivesse em si, em suas intuições e em sua lógica própria, as chaves da 8. E. Renan, L'avenirtde Ia science [O futuro da ciência], Calmann-Lévy, p. 91. Obra escrita em 1849 e,publicada em 1890. 9. Isto não significa que o próprio Comte seja cientista. Ele se pretende ^lós^ promotor da religião positiva e recusa, aliás, fundamentar o conhecimen ° método único. Mas seus epígonos, dentre eles E. Littré, ao fixar seu pensamen o, o aproximarão do cientificismo. 27
natureza. P0rém o insucesso abate esta soberba, pois o mundo não se debca 'decifrar facilmente. O espírito que se tornou adulto e "positivo" aprende então o diálogo experimental e a explicação paciente e limitada que fundamentam o procedimento autenticamente científico... O que é preciso reter, sobretudo, deste progresso mental e cultural, é a concepção de um desenvolvimento endógeno do espírito; de um desenvolvimento que, como para todo processo vital, resulta antes de mais nada de fatores internos de maturidade e crescimento. Na humanidade como no indivíduo, através das sociedades como das civilizações, épocas ou obras, é o mesmo espírito que se afirma paulatinamente e que apreendemos em diferentes estádios de sua curva evolutiva. A ciência seria então obra e expressão de um espírito que atingiu a maturidade, que tomou posse, definitivamente, de seus recursos, e produz uma forma acabada de conhecimento. Se o futuro da ciência continua aberto, é, por um lado, no sentido de uma investigação mais ampla e aprofundada da natureza, segundo princípios e um método que provaram seu mento e por acréscimo de novos conhecimentos ao fundo já constituído, e, por outro lado, no sentido de uma influência da metodologia científica sobre setores (moral, arte, política, religião...) que continuavam a ser-lhe até então alheios. (A segunda base do cientificismo, pois, é a crença na universalidade e na onipotência do método. Este "consiste em extrair todo conhecimento exato da observação e da experiência dissipando o mistério-das revelações", e ele "tornou-se a fonte principal, senão única, do progresso moral e material das sociedades atuais" (Marcelin Berthelot, ibid., p. 39)j O método e, em si, unia ascese e uma cultura geral do espírito, tanto no plano moral quanto intelectual; ele confere à ciência uma virtude (senão uma missão) educadora própria a comunicar "ao espirito aquela modéstia, aquela seriedade, aquela firmeza, aquela clareza de convicções que o tornam superior às sugestões da vaidade ou do interesse pessoal" (ibid., pp. 120-121) e que acham oportunidade de exercer-se em qualquer terreno. 28
Mas, sobretudo, o método permite lançar uma ponte a separação tradicional entre fatos e valores, conhêcie ação. Marcelin Berthelot explica isto claramente (cf. 5). Ao codificar o diálogo do espírito humano e do real, o organiza nosso conhecimento na confluência de duas f ntes: uma fonte externa, ã sensação e as informações que ela •cUla, de fora, em nós; uma fonte interna, a própria atividade j espírito, que passa por seu próprio crivo tudo o que se • troduz nele. Em termos kantianos, de um lado temos a ateria ou o dado sensível, e do outro os esquemas da sensibilidade e as categorias do entendimento. Ou, na epistemologia nos termos de Jean Piaget, temos a ideia de que o conhecimento é um misto de "acomodação" (ou submissão à lei do obieto) e de "assimilação" (ou redução às exigências do sujeito). "Ora, pretende Berthelot, as duas fontes, interna e externa, de nossa ciência positiva são igualmente [...] as duas fontes de nossa moral." Realmente, segundo ele, a moral (como toda atividade que põe em jogo valores, estético, político, religioso...) determina-se no encontro de um sentido apriorístico do bem e do mal, imperativos interiores puramente formais, e de um conteúdo moral exterior feito de instintos sociais, costumes, sentimentos, inseridos na "constituição cerebral e fisiológica", até mesmo na natureza animal do homem. Por meio, portanto, de uma "interferência" da distinção kantiana do entendimento e da razão, os deveres podem ser assim identificados com "fatos de consciência" e tratados como todo fato em geral: isto é, submetidos à causalidade, à experimentação, à indução das leis, conceitualizados, integrados em teorias que são "sistemas coordenados de hipóteses" que fornecem uma visão de mundo incerta, provisória, mas legítima... O que se tornou necessário evidenciar na ordem moral, como se fez na ordem intelectual, são as certezas positivas, adquiridas pela constatação dos fatos do mundo interior e exterior e de suas leis científicas; sobre estas leis exatas é que devemos assentar nossos preceitos e nossa doutrina. (Ibid., p. 32)
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O método, por fim, fundamenta um saber que é também um poder: poder de controle e de transformação da natureza, sem dúvida, mas também poder de transformação do homem, domínio tanto do mal físico como do mal moral em virtude das leis imanentes das coisas, í"A ciência tem dois poderes: um moral, outro material; ambos se estendem a todo o terreno humano, na ordem industrial e na ordem social" (ibid., p. 39). \ É por isso que a ciência desemboca sempre numa "política experimental" (ibid., p. 122) que faz da arte de governar uma ciência Como qualquer outra\.. O ideal de um governo seria um governo científico, em que homens competentes e especiais tratassem as questões governamentais como questões científicas e procurassem racionalmente a solução para elas. v
Vê-se que, de Renan ou Berthelot a Monod, o programa cientificista termina sempre na política, pois, no fundo, ele é povoado pelo sonho de domínio e de realização do universal, cujo meio e cujo quadro são oferecidos pela organização da cidade humana. Realmente, a ciência produz verdades universais, mas de uma universalidade potencial e formal, na medida em que elas continuam a ser o apanágio de uma elite. Diante deste universal inacabado, só o Estado (mundial) pode, como mostrou Hegel,11 realizar em ato o universal "em si e para si". De tanto fazer o mundo entrar em seu laboratório, o cientista acaba portanto fantasiando um laboratório nos limites do mundo. Porém os autores de ficção científica há muito tempo denunciaram o sonho do cientista louco, ébrio de vontade de poder, que se considera o "Dono do mundo" (conforme um dos últimos títulos de Júlio Verne, em 1904). Eles nem imaginam como estão certos: no furor e nos fragores deste século, a realidade superou a ficção. Oppenheimer e o apocalipse nuclear em Hiroshima, Mengele e o holocausto médico nos cam10. Ernest Renan, L'avenir de Ia science [O futuro da ciência], op. cit., p. 350. 11. G. W. F. Hegel, La raison dans 1'histoire [ A razão na história].
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e concentração nazistas, os psiquiatras soviéticos nos 0 mundo ainda treme diante do que a ciência pode JQ inspira ou serve a políticas megalómanas.
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Por uma crítica do cientiftcismo Assim comprometida nos grandes dramas de nosso tempo a ciência só podia ser abalada em suas ilusões progressistas e humanistas. Ela o foi também em seus fundamentos teóricos. As crises que ela atravessou a partir do início do século (relatividade, mecânica quântica, problemas de indecidibilidade em lógica matemática...) abalaram o triunfalismo do século passado e obrigaram os pesquisadores a se questionarem sobre os fundamentos e limites de suas disciplinas. As principais descobertas deste século revelaram os limites (definitivos?) por trás dos quais a natureza se furta à nossa curiosidade, a inadaptação de nosso instrumental intelectual (antigo?) aos mundos do pequenino e do muito grande, a impossibilidade de articular num discurso completo e coerente nossos enunciados sobre o mundo, a aproximação das representações nas quais procuramos traduzir o real. O discurso científico assume de repente um tom socrático: só sei que nada sei... A partir de então, Ilya Prigogin (prémio Nobel de química em 1977) pode replicar a Jacques Monod que, para uma ciência que perdeu assim suas ilusões de onisciência, ao mesmo tempo que sua posição de ascendência sobre a natureza e de imperialismo sobre a cultura, "é chegado o tempo de novas alianças, desde sempre estabelecidas, por tanto tempo ignoradas na história dos homens, de suas sociedades, de seu saber, e a aventura exploradora da natureza"12 Ele redescobre a ciência como "escuta poética" da natureza, como diálogo imprevisível com uma natureza que Ilya Prigogin, Isabelle Stengers, La nouvelle alliance [A nova aliança], ed. Gallimard, 1981, p. 296.
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não é um autómato desenvolvido sob nossos olhos ou a nossos pés, mas um mundo em evolução ao qual pertencemos e do qual participamos e que com certeza nos fala através das fórmulas teóricas da ciência, mas também nos saberes populares, nas artes, tradições, literaturas ou místicas... em suma, por todas as vozes da cultura às quais a ciência não pode doravante ficar surda. Porém esta nova lucidez de cientistas cautelosos13 ainda não se tornou regra comum no microcosmo dos pesquisadores, sobretudo entre aqueles que trabalham a jusante, longe das fontes onde se busca e se cria p saber. A fortiori ela quase não tem impacto sobre o público profano, inevitavelmente fechado no papel passivo e exterior de consumidor de ciência, e (circunstância agravante) de consumidor de ciência "morta": isto é, materializada em suas aplicações tecnológicas, apresentada através da mídia sob uma forma espetacular ou sensacional, ou imobilizada nos resultados adquiridos e nas receitas operatórias que se aprende na escola, muitas vezes sem verdadeira perspectiva histórica ou reflexão epistemológica e submissa à autoridade magistral. Ó cientificismo só refluiu assim entre muitos atores e porta-vozes da ciência para melhor invadir os espíritos menos informados. Acentua-se portanto o descompasso entre a realidade da ciência contemporânea e sua imagem pública, entre seu estado atuál e sua representação. Já evocamos (p. 18) algumas das razões que explicam um fenómeno assim: o poder político deve se responsabilizar pelo controle de qualidade de uma ciência que lhe fornece justificativas e garantias de neutralidade; e seu interesse encontra assim as necessidades de uma sociedade que se pretende cada vez mais racional, pois ela traduziu os antigos ideais de democracia, 13. Cf. também, obra coletiva sob a direção de Albert Jacquard, Lês scientifiques parlent [Os cientistas falam], Hachette, 1986; Henri Atlan: À tort e à raison, intercritique de Ia science et du mythe [Certo e errado, intercrítica da ciência e do mito], Seuil, 1986. Science et philosophie: pour quoi faire? [Ciência e filosofia: para que fazer?] Primeiro fórum Lê Monde, Lê Mans, 1989. Conferência e debate por R.-P. Droit. Lê Monde, Edições 1990.
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der e ordem em termos de racionalidade técnico-científica. p rém, além dessas questões ideológicas, há, sem dúvida, uma 7s0 mais objetiva que diz respeito ao desenvolvimento pró* da tecnociência: esta, como mostraram outrora Ivan Illich convivialité [O convívio], 1975) ou Jacques Ellul (Lê systètecnicien [O sistema técnico], Calmann-Lévy, 1977), atravessou o limiar de crescimento a partir do qual ela prossegue seu movimento de maneira quase autónoma e exponencial. Ela ultrapassa então as capacidades de compreensão e controle dos indivíduos, até mesmo das instâncias coletivas que os representam, e assistimos ao paradoxo de um poder individual sobre a tecnociência que diminui em razão inversa ao poder coletivo que ela nos dá sobre o mundo. De onde poderia surgir então um questionamento crítico para conter o cientificismo? Que poderia provocar um desapego e uma conscientização? O excesso, talvez: uma espécie de náusea diante da celebração e da ostentação gerais dos valores técnico-científicos e dos objetos que os simbolizam? Mas não: vê-se hoje que, privada dos meios da crítica, esta repulsa se converte antes na mania também cega do irracional, do ocultismo, do iluminismo ou do obscurantismo... em suma, daquilo a que chamamos "anticiência". Mas quem, então, diante da «plosão moderna das ciências, preserva os meios da crítica? Os próprios cientistas, condicionados por sua formação e pelos ritos de integração ao grupo, fechados em sua especialidade e setor de pesquisa, incapazes mesmo de extrair uma língua comum da multiplicidade de seus dialetos e de se comunicarem entre si, pressionados enfim pela concorrência e pela corrida à ^ Prioridade e à produtividade? Pode-se duvidar disto, com algu- l roas raras exceções... que parecerão então estarem traindo o roeio, bandeando-se para a filosofia e arriscando-se, por conseguinte, a não serem nem compreendidos nem ouvidos*. Os klósofos, cuja responsabilidade histórica é precisamente busCa r os desmancha-prazeres, portar a contestação e manter alto 6 bom som as exigências do espírito crítico, e ser, de acordo com ae Xpressão de Nietzsche, "a má consciência do seu tempo"? 33
Cada vez mais me parece que o filósofo, sendo necessariamente o homem de amanhã ou de depois de amanhã, esteve o tempo todo em contradição com o presente; ele sempre teve por inimigo o ideal do dia. Todos esses extraordinários pioneiros da humanidade a que chamamosfilósofosraramente acreditaram ser amigos da sabedoria mas antes loucos desagradáveis e perigosos enigmas, sempre se atribuíram uma tarefa árdua, involuntária, inelutável, mas cuja grandeza eles acabaram por descobrir, a grandeza de serem a má consciência do seu tempo.
A critica filosófica das ciências
Mas se Platão, Aristóteles, Descartes ou ainda Kant ou Comte podiam, no seu tempo, dominar satisfatoriamente o saber disponível para aprenderem a arquitetura e os limites dele, hoje parece haver-se cavado um fosso, de maneira irredutível, entre as ciências e a filosofia A "balcanização da ciência", a extrema especialização das pesquisas, o hermetismo dos modelos matemáticos aos quais recorrem e talvez, mais que tudo, a divisão institucional das funções sociais e dos espaços de exercício do cientista e do filósofo, sem dúvida, condenam definitivamente este último a ficar alheio a este universo do saber positivo^ Exílio que vale um interdito de palavra, na medida em que a crítica epistemológica é necessariamente formal ou ultrapassada, logo, vã, se não assume a ciência viva e a atividade dos laboratórios. O filósofo não pode falar daquilo que não conhece e, para poder denunciar as pretensões dos outros, precisa, sem dúvida, justificar o que lhe dá uma tal pretensão. É inútil querer estar fora das especialidades e apelar para a totalidade — o especialista sempre lhe exigirá títulos. Questão ardilosa, dir-se-á, à qual o filósofo não deve se submeter, sob pena de cair no jogo do interlocutor e buscar uma 14. F. Nietzsche, Par-delà lê bien et lê mal [Além do bem e do mal], § 212, col. 10/18. Tradução de G. Bianquis. 34
especialidade. Sócrates sabia discutir com políticos, poetas, médicos, generais ou adivinhos sem ser político, poeta, médico, general nem adivinho. Ele se metia em tudo sem ser ele próprio parte- Por que seus discípulos modernos deveriam deixar-se levar pelo prestígio ou pela perícia do cientista? Mas, recusando-se a isso, os filósofos parecem estar-se esquivando. Sem dúvida, para preservar a pureza do espírito e da mensagem filosóficos, é preciso resistir às solicitações equívocas e pressões do tempo, da moda e da opinião. Ò purismo, porém, leva logicamente a isolar-se numa torre de marfim ou (como talvez tenha sido o caso do próprio Sócrates) a expor-se deliberadamente ao martírio. Nos dois casos, as chances de ser ouvido são bastante incertas e o testemunho pode ser vão. Ora, se se levar a sério a ameaça cientificista, não se pode desdenhar a preocupação com a eficácia. E preciso portanto resignar-se mesmo a falar a linguagem da parte adversa para se fazer ouvir por ela. É preciso mesmo expor-se a todos os riscos e ambiguidades do engajamento: estar no mundo sem ser do mundo (S. João)15, estar no tempo sem deixar de ser "intempestivo" (Nietzsche). Numa civilização dominada por ciências e técnicas, o total divórcio entre saber positivo (que a ciência acumula sob a forma de enunciados sobre o mundo) e saber crítico (que a filosofia retoma incessantemente em termos de questionamento sobre o sentido e a legitimidade) seria fatal. A filosofia não pode portanto renunciar à tarefa de reapropriar-se de maneira crítica da racionalidade científica, mesmo que a passagem seja estreita e arriscada em meio a confusões, compromissos e obstáculos que estão à espreita de quem quer que se aventure em terreno adverso. Duas derivas em particular ameaçam-na. A primeira é só interessar por teorias (relatividade, evolução, modelos Quânticos, código genético...), por visões de mundo que pode-se e ntão tomar por uma espécie de "metafísica da ciência", aceise
• Cf. o Evangelho segundo S. João, XVII, 16-18. 35
tando-se incontinenti as imagens e conceitos com que os vulgarizadores vestem sua ossatura matemática e afastando-os do trabalho operatório do qual elas não passam de uma finalização hipotética e provisória. Privilegia-se então o resultado de ordem representativa em relação ao procedimento operatório que é, no entanto, o fundo da atividade científica. A segunda deriva consiste em reencontrar a possibilidade de um olhar crítico dentro de uma perspectiva histórica. Apreendendo efetivamente a ciência em sua evolução, assistindo a suas tentativas ou conflitos, dimensiona-se melhor a relatividade do conhecimento; os erros de ontem mostram-nos, por exemplo, que as verdades de hoje não passam de erros em suspenso. A história ensina portanto a relatividade e a dúvida, antídotos do dogmatismo cientificista. Porém, como bem observou Hegel, o historiador também tende a centrar sua atenção nos dramas, naqueles tempos quentes em que se decidem e se desfazem os lances e as estabilidades e, no livro da história, "os períodos de felicidade são como páginas em branco"16; o que quer dizer que ao privilegiar o. estudo das crises, das "revoluções científicas" (Thomas Kuhn), da descontinuidade em relação à continuidade, pode-se perder de vista o curso normal da ciência. Gosto excessivo pelo teórico ou pelo sensacional: em ambos os casos, o filósofo estaria exposto a perder o objeto de sua crítica. Mas então, se a ciência devia assim ficar inacessível e impenetrável ao exterior, se se velava em sua estranheza e desestimulava qualquer abordagem racional de parte dos profanos, como poderia provocar algo além da fé: esta fé cientificista que é um sucedâneo das religiões tradicionais e que consiste sempre em aplicar os esquemas da revelação e da adoração ao que escapa à demonstração?
16. G. W. F. Hegel, La raison dans 1'histoire [A razão na história], U.G.E., p. 116. A felicidade é silenciosa, não deixa rastros e escapa portanto à perspectiva do historiador.
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F. Nietzsche, o destruidor de ídolos poder-se-ia então ceder à tentação de recusar qualquer ~ sição no terreno adverso e miná-lo inteiramente. Se, entrincheirada em seu mistério, a ciência é inapreensível, por que ^ ao rejeitá-la em bloco e despachá-la para a lata de lixo da : ffístória, entre todos os fetiches e disfarces inventados pelo •ftomem para mascarar o seu destino? Esta é a fulminação de 'ísfietzsche que força os tímidos e metódicos exegetas do discurê'b científico a acenderem freneticamente o auto-da-fé que consumirá inteiramente o ídolo, seus seguidores e suas obras, fiíesmo que a ciência do seu tempo não seja mais inteiramente $' nossa, ao menos um desvio através de sua obra permitirá, &ites de mais nada, revelar o fundo de religiosidade que subisiste no cientificismo. / Nietzsche é certamente o ateu e blasfemo mais radical: de que adianta, diz ele, haver proclamado "a morte de Deus" e ;âemolir as velhas estátuas se for para conservar e erguer em ?s'eu lugar os novos ídolos que são o Estado, o Partido, o Dinheiro, o Progresso... ou a Ciência! Porque, mesmo que a batizem "racionalista" e que ela se pretenda ímpia, sacrílega, leiga, a fé na ciência ainda é uma fé, acesa no fogo milenar da verdade, que não é senão o fogo da luz divina (cf. texto 6). A "ciência moderna" não passa de um ersatz de religião e Nietzsche propõe-se a "auscultar esses ídolos a marteladas"17 para garantir que eles soem ocos, antes, é claro, de empregar o tal martelo n ão mais no diagnóstico mas em sua demolição, como fez Moisés com o Bezerro de Ouro. Porque o ídolo é um falso deus, uma criatura do homem, feita da substância e dos desejos do homem, que este erige como figura autónoma e. diante da qual e *e se prosterna porque esquece sua origem artificial. Assim é 0 ídolo cientificista: produto das sociedades e da inteligência • P- Nietzsche, Crépuscule dês idoles [Crepúsculo dos ídolos], prefácio Profil Hatièr.
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humanas, perde seus vínculos terrenos e transforma-se em absoluto. A idolatria é, no sentido próprio da palavra, uma alienação: o homem investe-se numa realidade que se torna estranha a ele, e, no desconhecimento, submete-se a ela. Demolidor intrépido, Nietzsche anuncia o "crepúsculo dos ídolos". Porém, para lançar por terra estes últimos, primeiro é preciso desmistificá-los. O filósofo pode aprender com Nietzsche uma estratégia apropriada e eficiente? Como ele próprio age para revelar uma ciência que vai em frente mascarada? Ele lhe aplica, como aos outros ídolos, seu método crítico, a "genealogia", que consiste em remontar à origem deles para testar a qualidade de humanidade, de vontade e de vida que os gerou. Por exemplo, aqui: Quem a ciência quer? Que homem é preciso ser para devotar-se à paixão do saber e ao amor da verdade? É preciso amar a vida e a natureza, ou então, sem nem mesmo ousar confessar-se isto, maquiando seus sentimentos profundos, é preciso alimentar um sentimento vingativo em relação a elas? A ciência é um canto ou um veneno? O diagnóstico é brutal (cf. textos 7 e 8): o homem de ciência é um "plebeu do espírito", e entendamos por isso um medíocre, um homem de rebanho, conformista e prudente, pragmático e mesquinho, que procura capturar o real em suas modestas redes, reduzi-lo a fórmulas abstratas e exaurir seus recursos, que se garante com todos os anteparos do método e da lógica para obter um consenso tranquilizante e resistir aos apelos do desconhecido e às audácias do conhecimento. Em suma, o homem de ciência, como aquele da moral, da religião ou da democracia, é um fraco, incapaz de desfrutar, em caminhos forçosamente solitários, da prodigiosa diversidade do real, da fecundidade e das harmonias da vida. Por uma sociologia do conhecimento científico A violência iconoclasta de Nietzsche opõe-se à mania cientificista, mas basta apenas a imprecação? E, ao visar em sua globalidade a maneira de ser e de pensar do Ocidente 38
moderno, a crítica nietzschiana é verdadeiramente pertinente ara conter as ambições ou ilusões do cientificismo? Observase em particular que ela é de ordem psicológica, centrada no •ndivíduo humano, em suas forças e fraquezas. Ora, se um diagnóstico desses podia justificar-se em relação a urna ciência de tipo artesanal, baseada na vocação e na criação pessoais dos "cientistas", ele convém ainda à ciência moderna, industrializada e que mobiliza nos locais de sua produção centenas de pesquisadores associados? A ciência, na verdade, não é mais, hoje (se é que algum dia o foi totalmente) uma obra individual; ela se constitui através de toda uma rede social de homens e instituições, aparelhos, publicações, fluxo de informações e capitais etc. (cf. cap. 4). Nessas condições, a crítica genealógica parece bastante insatisfatória para desestabilizar o ídolo. A menos que se expanda numa crítica sociológica que se interesse mais, desta vez, pela produção sociocultural da ciência, do que pelas motivações pessoais e inconscientes dos pesquisadores. Tal recentralização do interesse no contexto social e ideológico no qual a ciência nasce e se desenvolve parece decisivo para sair do imaginário corrente. Este, com efeito, leva-nos a ver a ciência como se ela nascesse espontaneamente de uma Razão que chegou ao termo de sua maturação ou gestação, ou melhor, como se ela surgisse de repente, já armada com seus princípios e instrumentos, como Atena saindo armada do crânio de Zeus. É preciso pôr fim, como diz, gracejando, Pierre Thuillier, a esse "dogma da Imaculada Concepção da Ciência"* (cf. texto 9) que é um dos mais tenazes dogmas do cientificismo. A ciência é uma produção humana e social; está mesmo histórica e geograficamente situada no Ocidente moderno (cf. cap. 2), e esta inserção no tempo e nó espaço nada tem de contingente, como o é, por exemplo, a encarnação do filho de Deus na Palestina; ela confere à ciência uma identidade que combina u *na herança, uma cultura, projetos e preocupações, interesses Do francês, Immaculée Conception de Ia Science. Trocadilho do autor entre Concepção/Conceição que no francês são termos homógrafos. (N.T.)
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corno encarnação da razão e que extrairia dela seu poder de transcender as fronteiras culturais ou ideológicas e as eventualidades da temporalidade e da mudança..))"
dos meios, limites e trunfos particulares. Assim determinada desde a origem, em essência e projeto, pela sociedade que a traz à luz a ciência é também uma instituição socioeconômica e um ramo de nossa cultura, marcada como tal em sua organização, suas linguagens, seus processos, até mesmo seus conteúdos cognitivos (cf. cap. 3). Seria preciso ser bem ingénuo para acreditar em sua pureza e transcendência, pois ela é tão condicionada, psicológica e socialmente, quanto qualquer outra empreitada humana. Ao esquecermos estas verdades é que a transformamos em ídolo.
A ciência é um elemento fundamental de unidade entre os pensamentos dos homens espalhados pelo globo. A meu ver, não existe outra atividade humana na qual o acordo entre os homens seja sempre tão certamente adquirido.20 U
(Gaston Bachelard abriu uma brecha nesta concepção ao mostrar que, se a razão faz a ciência, ela se faz também ao fazê-la, isto é, ela sofre o contragolpe de suas descobertas e deve, por conseguinte, abrandar ou modificar seus princípios lógicos e suas estruturas apriorísticas. \
U-y*^
A racionalidade científica
Todo real progresso no pensamento científico necessita de uma conversão. Os progressos do pensamento científico contemporâneo determinaram transformações nos próprios princípios do conhecimento. [...] Os quadros mais simples do entendimento não podem subsistir em sua inflexibilidade, se se deseja avaliar os novos destinos da ciência.21
Porém, ao colocarmos assim a ciência como relativa, não podemos deixar de levantar o problema de sua racionalidade. Toda a nossa filosofia viu na razão "a luz natural dos homens" (R. Descartes), idêntica no tempo e no espaço. "Os chineses enxergam as mesmas verdades que eu", diz Nicolas Malebranche18, porque "a razão que consultamos quando entramos em nós mesmos é uma razão universal". E Kant determina que a lógica "que expõe em detalhe e demonstra rigorosamente as únicas regras formais de todo pensamento" não conseguiu mudar nem progredir depois de Aristóteles pois» "conforme toda aparência, ela parece parada e acabada"19. \Reflexo do divino no homem, a razão é colocada como universal e eterna, comum a todos os homens e imutável em suas regras e em seus próprios quadros. E a ciência gerada por uma tal razão aparece como uma linguagem universal e definitiva, quando muito obscurecida (provisoriamente) pela opacidade do mundo material que ela visa relatar! Esta é a imagem comum da ciência
[Assim, Bachelard põe em questão de novo, explicitamente22, a visão aristotélica e kantiana de uma razão perfeitamente autónoma e imutáve!T)Mas talvez seja necessário ir mais longe e questionar a unicidade e a universalidade de uma razão, mesmo posta novamente em movimentoíNa verdade, se o arraigarnento sociocultural relativiza nossa ciência, ele relativiza ao mesmo tempo a racionalidade que o acompanha. A complexidade do real e a diversidade humana não autorizam outras formas de racionalidade? Os caminhos que dão na verdade não são múltiplos?/(cf. textos 10)
^"- Frédéric Joliot-Curie, 1900-1958, especialista em física atómica, prémio Nobel de química em 1935; extraído de uma conferência na Unesco em 1947. ^l- G. Bachelard, La philosophie du non [A filosofia do não], PUF, 1940, pp. 7-8, 16. '• La philosophie du non, cap. V, La logique non-aristotélicienne [A lógica não aristotélica].
18. N. Malebranche, De Ia recherche de Ia vérité [Sobre a busca da verdade], IO2 esclarecimento. 19. E. Kant, Segundo prefácio de Critique de Ia raisonpure [Crítica da razão pura]. 40 /
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A partir daí, o problema da racionalidade científica apresenta-se como um duplo problema. Quais são, por um lado, as fronteiras do conhecimento verdadeiramente científico e qual é a legitimidade dos critérios que o afastam dos saberes empíricos, qualitativos, tradicionais, ocultos... que relegamos ao plano dos pseudo-saberes? Entre a química e a alquimia, a astronomia e a astrologia, a física e o Tão23, a psiquiatria e a bruxaria, a botânica e a herborística etc., onde passa a linha divisória entre racional e irracional? A incompatibilidade desses "saberes" não remete, antes de tudo, à diversidade dos grupos sociais que os secretam e às relações de força entre esses grupos? Que é que, por outro lado, fundamenta a pretensão da ciência ocidental à universalidade? Não é dar prova de ingenuidade (ou pior: disfarçar sob um álibi um imperialismo que não ousa mais dizer seu nome) proclamar válidos para todos os povos os produtos "racionais" da nossa civilização que são a democracia e sua declaração dos direitos do homem, a economia de mercado, o Estado representativo ou os processos e resultados das ciências? As resistências com as quais, nos três primeiros planos, choca-se, aqui e ali no mundo, nosso apostolado das luzes, têm ainda assim por que tornar-nos críticos ante a adesão unânime da qual parece se beneficiar a nossa ciência (cf. cap. 6). Um relatório do Collège de France, redigido em 1985 por solicitação do Ministro da Educação Nacional, opõe a unidade da ciência e a pluralidade das culturas como se se tratasse de uma evidência:
Os limites da ciência
Sabe-se, a partir de Kant, que o conhecimento não é uma cópia ou um simples desdobramento do real ou, conforme a expressão de Bachelard, que a ciência não é "o pleonasmo da experiência". Devemos seguramente desfazer-nos de um positivismo simplista que nos faz ver no pesquisador científico um escriba da natureza a registrar, dentro da mais pura objetividade, fatos e leis naturais. No mínimo, a ciência é um diálogo (cf. pp- 23-25) com o real, no qual as perguntas feitas determinam as respostas. Mais profundamente, o espírito humano é irredutivelmente separado do mundo natural (mesmo que emerja dele) e só pode reencontrar seu caminho através de mediações simbólicas, duplicando o mundo das coisas num mundo de signos no qual ele é condenado a se mover. Todo discurso sobre o real continua a ser um discurso humano, mesmo e sobretudo quando, por causa de sua abstração, fica-se tentado a considerá-lo inumano. Longe de ter relação com as próprias coisas, o homem, de certo modo, entretém-se constantemente consigo mesmo.24 Ouçamos o apólogo que nos propõe Albert Einstein: Os conceitos físicos são livres criações do espírito humano e não são, como se poderia acreditar, determinados exclusivamente pelo mundo exterior. No esforço que fazemos para compreender o mundo, assemelhamo-nos um pouco ao homem que tenta entender o mecanismo de um relógio fechado. Ele vê o mostrador e os ponteiros em movimento, ouve o tique-taque, mas não tem como abrir o estojo. Se for engenhoso, poderá formar alguma imagem do mecanismo que ele tornará responsável por tudo o que observa, mas nunca estará seguro de que sua imagem seja a única capaz de explicar suas/observações. Nunca estará em condições de
Um ensino harmonioso deve poder conciliar o universalismo inerente ao pensamento científico e o relativismo que as ciências humanas, atentas à pluralidade dos modos de vida, das sabedorias e das sensibilidades culturais, ensinamA
c<"'O universalismo
inerente ao pensamento científico": no que pode-se fundamentar uma tal excepcionalidade da ciência?j { f\,
23. Fritjof Capra, Lê Tão de Ia physique [O Tão da física], Tchou, 1979; cf. cap. 6, p. 169.
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nist Cassirer, Essai sur Vhomme [Ensaio sobre o homem], Minuit, 1982, p. 43. i radução de Norbert Massa.
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comparar sua imagem com o mecanismo real, e nem mesmo pode se representar a possibilidade ou o significado de uma tal comparação.25 (Cf. também texto 11.)
(A. esta limitação da ciência em nossos quadros mentais, através dos quais o real se dá e se furta, acrescentemos sua limitação em nossos quadros socioculturais e históricos, através dos quais se dá e se oculta o universal, e teremos delimitado o que faz disso uma atividade humana, modestamente humana, que não pode mais pretender encontrar no grande livro da Natureza os próprios cálculos do Deus criador: O cientista nunca dialoga com a natureza pura, mas com um certo estado de relação entre a natureza e a cultura, definível pelo período da história no qual ele vive, sua civilização, os recursos materiais dos quais dispõe.
A ciência é uma obra humana, demasiado humana: ao compreendermos esta verdade elementar e indispensável, travamos o mecanismo da idolatria e podemos avaliar melhor a dimensão da empreitada científica. Renunciando aos mitos, reconhecemos ao mesmo tempo seus limites e sua inimitável grandeza. ]
25. Albert Einstein, Léopold Infeld, Uévolution dês idées en physique [A evolução das ideias em física], Flammarion, 1948. 26. C. Lévi-Strauss, Lapensée sauvage [O pensamento selvagem], Plon, 1962, p. 29.
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2. ORIGENS DA CIÊNCIA MODERNA: O MITO DA IMACULADA CONCEPÇÃO
"O Ocidente é um acidente"... Com esta frase, Roger Garaudy pretende marcar de pronto os limites e a relatividade de nossa cultura1. Ele faz notar que os encontros históricos e fecundantes com outras civilizações foram grandes oportunidades para o desenvolvimento e o enriquecimento de nossa cultura. Podemos retomar este slogan, de forma meio provocativa, para denunciar o mito de uma ciência emergente no Ocidente, mas por essência transcendente e desencantada, na verdade espontaneamente colonialista sob uma capa de universalidade. Na realidade, não se pode perder de vista que a ciência, como modo de conhecimento bem particular, nasceu na Europa, num contexto cultural, histórico e social determinado, e que há aí como que uma mancha original na pureza propriamente espiritual cia qual ela se prevalece. A história imprimiu Roger Garaudy, Pour un dialogue dês civilisations [Por um diálogo das civilizafões], Denoêl, 1977, introdução.
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sua marca de contingência a esta invenção original: a busca e a reivindicação de um saber puro e universal. Debrucemo-nos portanto sobre as circunstâncias deste advento. Com muita frequência, atemo-nos a discursos mitológicos sobre a origem, isto é, sobre um ponto zero que, como tal, escapa à realidade temporal como a toda ação racional/Ora, toda especulação sobre a origem sucumbe a um fascínio ttfrvo que a faz perder-se nas brumas da aurora, apaga as pistas e a condena, por exemplo, a girar no círculo^yibioso da primazia do ovo e da galinha. É preciso substituí-la°pOT ifrrfe' atenta reconstituição dos fato-fes (continuidades e rupturas) que determinaram o princípio histórico da empreitada científica.^ Por que não na China? Mas por que, então, o espírito e a instituição científicos apareceram exclusivamente na Europa? Que conjunção de forças e chances tornou possível esta emergência? Este é o problema central colocado pelo cientista e sinólogo inglês Joseph Needham2. Ele lembra que, do século II antes de nossa era até o final da nossa Idade Média, a China procedeu a invenções tecnológicas e descobertas teóricas capitais que lhe garantem, nestes terrenos, um avanço indiscutível em relação ao resto do mundo. Temos, ao mesmo tempo, a pólvora e a química dos explosivos, a bússola e as pesquisas sobre magnetismo, os mecanismos de relojoaria (dentre os quais um protótipo de escape para relógio hidromecânico) e o sistema equatorial em astronomia3, o sismógrafo, ou ainda, no terreno exclusivamente tecnológico, o estribo, o arreio, o carrinho de 2. Joseph Needham, La science chinoise et 1'Occident [A ciência chinesa e o Ocidente], 1969, Points, Seuil, 1977. 3. Sistema de coordenadas que permite calcular a posição de uma estrela no céu e que está na origem de nossos métodos atuais.
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mão, o moinho rotativo, a manivela, o domínio do ferro e do aço na fundição etc. Introduzidas de modo geral muito mais tarde na Europa, estas descobertas tiveram aí um impacto revolucionário e foram como que "bombas de efeito retardado" (op. cit., p. 101). Por que então a China, por assim dizer, não teve "sua" revolução científica, deixando para o Ocidente o benefício deste feliz "acidente" ao qual ele deve hoje sua supremacia mundial? Em todas as pesquisas que fiz sobre a China, sempre tentei enxergar mais claramente aquilo que considero um dos maiores problemas da história da cultura e da civilização, a saber, por que a tecnologia e a ciência modernas se desenvolveram na Europa e não na Ásia. Quanto mais se avança no conhecimento da filosofia chinesa, mais se constata seu caráter profundamente racionalista. Quanto mais se conhece a tecnologia chinesa da época medieval, mais se constata que, na China, fizeram-se descobertas tecnológicas e invenções que mudaram o curso da civilização ocidental e, por isso mesmo, aquele do mundo inteiro. Quanto mais se avança no conhecimento da civilização chinesa, mais parece estranho que a tecnologia e a ciência modernas não hajam se desenvolvido nela. (Op. cit., p. 106)
O Ocidente é um acidente, dissemos em exergo... Acidente, certamente, no sentido em que o local de nascimento da ciência não estava inscrito em nenhuma necessidade apriorística; mas nem por isso o fenómeno deixa de ser rigorosamente determinado. O exame das causas que J. Needham adianta para explicar que a China tenha como que parado no meio do caminho pode nos dar, em negativo, uma primeira visão do problema. O filósofo chinês Feng Yu-Lan escreveu, em 1922, um ensaio intitulado Pourquoi Ia Chine n'a pás de science [Por que a China não possui ciência]. Ele afirma que é porque, seguindo seus próprios critérios de valor, ela não teve necessidade disso".[Realmente, o sábio chinês, preocupado exclusivamente conT, o autoconhecimento e o autocontrole, desinteressava-se de toda investigação e de todo poder sobre a natureza exteriortjj. Needham mostra, todavia, como é insatisfatória esta tese que pouco leva em conta as descobertas ante47
riormente evocadas|j.'A resposta para todas estas questões, prossegue ele, encontra-se primeiro nas estruturas sociais, intelectuais e económicas das diferentes civilizações" (p. 124)^ Ao lembrar as concepções marxistas sobre o "modo de produção asiático" como estrutura histórica original, ele pinta o quadro da sociedade imperial e burocrática e do mandarinato chinês tradicionais. Aí a base da organização social é constituída de comunidades agrícolas cujo estado de desenvolvimento possibilita produzir além de suas necessidades estritas. O que determina o surgimento de um poder parasitário. Para usar o excedente económico e garantir em troca a realização de grandes trabalhos hidráulicos dos quais só ele é capaz de se encarregar (para fins de desenvolvimento económico e de autojustificação social e ideológica), o Estado imperial constituiu todo um sistema de burocratas e mandarins. Assumida por esses letrados, a função intelectual na China tradicional está portanto estreitamente ligada ao poder. Ora, durante mais de dois mil anos, ela permanecerá sob o domínio do confucionismo. Trata-se de uma das duas grandes correntes chinesas de pensamento, centrada na sociedade humana, nas relações entre seus membros e nas regras de direito positivo cuja fonte é a autoridade do imperador. Os burocratas de obediência confuciana controlam a ciência oficial (principalmente astronómica, com a confecção do calendário, e física) e atribuem-lhe objetivos práticos de "poupança do trabalho humano" (p. 26) e de melhoria dos recursos implementados nos grandes canteiros de obras imperiais. J A o contrário, os adversários taoístas dos confucianos retiraram-se da sociedade humana para contemplar a natureza, atentos à ordem cósmica que não passa, em si, de uma composição harmoniosa das leis internas e espontâneas próprias de cada fenómeno natural. Eles não só recusam a rigidez da heteronomia das regras e códigos humanos, como não acreditam que o homem tenha o poder de compreender as leis da natureza. Deste modo, as ciências que eles praticam (alquimia, botânica, anatomia...) conservam um caráter desinteressado e 48
místico; seu interesse pela natureza não os leva, portanto, a uma atitude científica no sentido moderno. Poder-se-ia (submetendo-se aos estereótiposO/classificar como feminina sua abordagem sentimental, marca de solicitude e de religiosidade, de uma Natureza ela própria identificada num texto alquímico de 140 d.C. com o "Misterioso Feminino" (Wei Bo-yang, citado em Needham, p. 109). Ao contrário, o projeto científico ocidental de "tornar-nos senhores e possuidores da natureza" (cf. texto 12) aparece quanto a ele como tipicamente masculino: dominador, utilitarista e forçosamente redutor. ^Resumindo, o que explica a estagnação científica da China (para retomar o diagnóstico de J. Needham) é essencialmente o divórcio entre dois modos de pensamento (confucionismo e taoísmo), ele próprio reflexo e efeito de toda uma organização socioeconômica. Em particular, num contexto tal, a noção de leis da natureza, que está no fundamento da empreitada científica moderna, não pôde se desenvolver. Na verdade, ela conjuga a ideia de uma prescrição rigorosa e precisa, à qual o homem, preocupado com ordem e estabilidade, tem necessidade de referir-se, e aquela de uma descrição fiel e objetiva de uma ordem natural exterior ao homemVpra, na China, estas duas ideias ficam separadas: a concepção confuciana privilegia a primeira na exclusão de todo interesse verdadeiro pela natureza, enquanto os taoístas se absorvem na contemplação da natureza desdenhando por antecipação a pretensão humana de codificá-la. Distantes de qualquer conotação jurídica, eles concebem, no máximo, uma lei da natureza como harmonia espontânea e modelo regulador. J. Needham mostra que será preciso, no pensamento ocidental, operar o desvio por um Deus transcendente, legislador do mundo e penhor das ambições humanas, para sair do impasse, superar o hiato entre a subjetividade do espírito humano e a realidade objetiva que ele visa a ssirnilar, e fundar a ciência moderna. Mesmo numa ciência que quer ser hoje leiga e agnóstica, a noção de leis da natureza r einete portanto a um velho fundo religioso de onde ela tira esse elemento de comando que lhe é essencial. O homem só 49
acreditou poder comandar a natureza porque se convenceu, num dado momento, que receberá seus títulos de um comando supremo. Antes, porém, de retomarmos este ponto e prevenidos pela experiência abortada da China, saibamos surpreendernos com o milagre (ou o "acidente") que representa a emergência de um pensamento verdadeiramente científico. Eis, por exemplo, o testemunho de Albert Einstein: \O~desenvolvimento da ciência ocidental teve por base duas grandes realizações: a invenção de um sistema lógico-formal (na geometria euclidiana) pelos filósofos gregos, e a descoberta de que é possível encontrar relações causais através de uma experiência sistemática (no Eenascimento). A meu ver, não há por que se espantar pelo fato de os sábios chineses não terem dado os mesmos passos. O que é espantoso é, simplesmente, que estas descobertas tenham sido feitas.f
Na falta das fadas de nossas histórias infantis que teriam se debruçado sobre o berço da ciência nascente, quais são, então, os fatores cuja conjunção tornou possível, na Europa, o que não o fora em outra parte do mundo? Data e local de nascimento? As falsas pistas... Porém, antes de mais nada, em que lugar e data situa-se o acontecimento? O fato é que os historiadores das ciências hesitam em assinar a certidão de nascimento. Numa obra coletiva recente5, autores propõem rever a opinião correntemente admitida sobre uma fonte grega e situam o advento na Babilónia, no ano 1800 a.C. Estamos então no reinado de 4. Albert Einstein, carta a J. E. Switer, 1953. Citado em Needham, p. 44. 5. Michel Serres (org.), Éléments d'histoire dês sciences [Elementos de história das ciências], Bordas, 1989.
jjamurabi, que ficou célebre pelo código escrito que impôs ao seu reino e que constitui nossa principal fonte documental sobre a civilização babilónia. James Ritter, o autor do artigo, sustenta a tese de uma ciência já bem caracterizada naquela época, concluindo isto, antes de mais nada, a partir da profissionalização do conhecimento: realmente, encontramos, sob Hamurabi, peritos, especialistas em adivinhação, medicina ou astrologia, formados nos moldes de uma educação protocolar e investidos da função do saber. Dando prosseguimento à sua demonstração, ele analisa, em seguida, listas sistemáticas de signos adivinhatórios ou de sintomas mórbidos, assim como tábuas matemáticas de números ou problemas. Ele vê aí uma "jaula gigantesca e universal" (p. 29), uma rede amplamente desfraldada e de malhas as mais cerradas possíveis, através da qual o "cientista" poderia, idealmente, integrar e capturar todos os elementos reais de seu campo de investigação. Michel Serres não hesita em falar em "algoritmo" (p. 77), isto é, num modelo formal como o encontrado nas ciências atuais, constituído de uma sequência ordenada de regras operatórias e que conduzem à solução geral de um problema. Parece mesmo, porém, que só se possa falar em ciência babilónia num sentido vago ou extensivo que nada tem em comum com a acepção moderna. Por exemplo, as famosas tabuinhas, tábuas do saber médico ou astronómico, não passam de coletâneas de receitas, inaptas para fundamentar uma visão de mundo. Aliás, Michel Serres e seus colaboradores pretendem deixar "aberta" (p. 5) a questão da origem e, através da pena do primeiro, eles se saem com uma metáfora: Vocês já viram a fonte de qualquer riacho, que não forme, já, um confluente? (p. 8)
Sem dúvida, conforme notávamos no início, só podemos nos perder na bruma das origens; ao procurarmos uma saída, 0 ponto de fuga é sempre uma ilusão da visão e da audição, pois gostaríamos na verdade de encontrar nos fios do tempo um começo do próprio tempo. Vã esperança: o nó górdio não se 51
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desfaz, e é sempre arbitrariamente que ele é cortado. Gréci Mesopotâmia? Egito? A atribuição de uma origem provém uso da força. A reivindicação de uma origem egípcia, na verdade, parece mais bem fundamentada. No Egito dos faraós só broÍ um mesmo afluente e o que acaba de ser dito sobre a Babilôrj) vale do mesmo modo para ele. De 3100 a 332 a.C., o Egito um reino unido e solidamente administrado, rico oásis protes do pelos desertos circundantes. Produziu uma civilização mal nífica, comprovada pelas pirâmides, pela escrita hieroglífiêt pelos calendários e pela arte de embalsamar. Tudo isso, porei atesta apenas um interesse puramente prático, muitas vezf comandado pela preocupação espiritual de garantir uma sobJ! vida depois da morte. Construtores, sacerdotes-administrad rés do tempo, calculistas, agrimensores e embalsamador exploraram de forma eficiente observações e receitas empíl cãs. Mas eles parecem não ter sentido nenhuma curiosidal propriamente intelectual e não constituíram nenhum corpo ! saber teórico em mecânica, astronomia, aritmética, geometr ou fisiologia. Recolheram e colecionaram fatos e, separando-e das lendas e mitos, no máximo (contribuição notável e condiç| necessária porém insuficiente) prepararam o terreno para um ciência ainda vindoura. Restaria a examinar a certidão de paternidade (ou n|| ternidade) da Grécia, tida por muitos historiadores comoj berço da ciência. Para eyitar que entremos no detalhe d| contribuições, um belo apólogo de Michel Serres6 coloca-n| diante do essencial... Os cronistas antigos relatam a viagem < Tales7 ao Egito. Ei-lo, uma pequena silhueta dirrisória, acai pado em frente à massa esmagadora da pirâmide de Quéof O sol está forte e talvez esquente as cabeças como prostra Q|
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em P01^11^3' a "trocar o certo pelo duvidoso". Ela > mie m literalmente, em francês, para que não se perca o jogo de que motiva a reflexão que se segue. (N.T.)
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desfaz, e é sempre arbitrariamente que ele é cortado. Grécia? Mesopotâmia? Egito? A atribuição de uma origem provém do uso da força. A reivindicação de uma origem egípcia, na verdade, não parece mais bem fundamentada. No Egito dos faraós só brota um mesmo afluente e o que acaba de ser dito sobre a Babilónia vale do mesmo modo para ele. De 3100 a 332 a.C., o Egito foi um reino unido e solidamente administrado, rico oásis protegido pelos desertos circundantes. Produziu uma civilização magnífica, comprovada pelas pirâmides, pela escrita hieroglífica, pelos calendários e pela arte de embalsamar. Tudo isso, porém, atesta apenas um interesse puramente prático, muitas vezes comandado pela preocupação espiritual de garantir uma sobrevida depois da morte. Construtores, sacerdotes-administradores do tempo, calculistas, agrimensores e embalsamadores exploraram de forma eficiente observações e receitas empíricas. Mas eles parecem não ter sentido nenhuma curiosidade propriamente intelectual e não constituíram nenhum corpo de saber teórico em mecânica, astronomia, aritmética, geometria ou fisiologia. Recolheram e colecionaram fatos e, separando-os das lendas e mitos, no máximo (contribuição notável e condição necessária porém insuficiente) prepararam o terreno para uma ciência ainda vindoura. Restaria a examinar a certidão de paternidade (ou maternidade) da Grécia, tida por muitos historiadores como o berço da ciência. Para evitar que entremos no detalhe das contribuições, um belo apólogo de Michel Serres6 coloca-nos diante do essencial... Os cronistas antigos relatam a viagem de Tales ao Egito. Ei-lo, uma pequena silhueta dirrisória, acampado em frente à massa esmagadora da pirâmide de Quéops. O sol está forte e talvez esquente as cabeças como prostra os 6. Michel Serres, op. cit., pp. 63 a 99. 7. Tales de Mileto (séculos VII-VI a.C.), um dos sete sábios da Grécia, o primeiro dos filósofos e físicos jónicos, que teria trazido do Egito para a Grécia os fundamentos da geometria. Plínio e Plutarco contam a anedota da pirâmide.
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corpos, e até mesmo aquele colosso de pedra abatido em sua sombra que se espalha sobre a areia. De repente surge a ideia louca, a ideia temerária e genial: como medir a altura e o volume do túmulo? Nenhum agrimensor seria inconsciente a ponto de arriscar a vida na escalada\JPortanto, é preciso usar de estratagemas, já que a desproporção dos recursos humanos e da imensidão natural não deixa outra escolhãiEncostado no muro, Tales decide então atacar indiretamente o monstro mineral. Ele planta verticalmente na areia um simples bastão e mede sua sombra projetada no solo. Passa em seguida à pirâmide e mede a altura do triângulo sombrio que ela desenha na areia. O jogo está feito; ele só tem que relacionar as duas medidas e está vencido o desafio. Davi triunfa novamente sobre Golias, preso desta vez na armadilha de sua sombra! Michel Callon vê neste episódio a origem e como que o emblema de toda a ciência ocidental: É louco, dizem, quem larga a presa pela sombra.* E, no entanto, a ciência, nascida há uns vinte e cinco séculos, interessa-se de forma doentia pelas sombras e não pelas presas. [...] Dominando a sombra, Tales domina a presa. Para explicar este espantoso poder da ciência sobre o mundo, é preciso aceitar o desvio livremente consentido, esta recusa deliberada do cara a cara.
Realmente, a história do teorema de Tales prefigura em vários pontos a ciência moderna. Ela previne contra o imediatismo (o sensível, o concreto, o conhecimento primitivo...) e justifica a estratégia do desvio pelo abstrato e pelo inteligível. Como diz Michel Serres, já estamos aqui na caverna de Platão. Ela testemunha, por outro lado, a introdução dos números e, Michel Callon, La science et sés réseaux [A ciência e suas redes], La Découverte, 1989, pp. 7-8. A expressão corresponderia, em português, a "trocar o certo pelo duvidoso". Ela foi deixada como seria, literalmente, em francês, para que não se perca o jogo de palavras que motiva a reflexão que se segue. (N.T.)
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sobretudo aqui, as relações quantitativas, na apreensão do real. De maneira mais significativa, ela manifesta uma visão objetiva da natureza: primeiro, Tales pressupõe que o sol é regular (simultaneamente igual e correto), que ilumina identicamente a pirâmide e a estaca, o que corresponde à nossa ideia do indeterminismo natural; em seguida, ele deixa a natureza expressar-se, e ditar-lhe sua resposta. Nenhuma interpretação, nenhuma representação do sujeito humano: os raios do sol entendem-se com o bloco de pedra para escrever diretamente no solo a verdade das coisas. A estaca não é nem mesmo um instrumento manipulado pela inteligência do homem, mas um simples objeto entre outros que joga o jogo natural do mundo. Com tal anulação do sujeito humano, a objetividade é, portanto, total. Michel Serres insiste nisso: ele compara o bastão de Tales ao gnomon, o ponteiro que marca a hora no mostrador solar. Observando que este quase não podia servir de relógio (já que as horas variavam muito, num mostrador sempre dividido em doze, no verão como no inverno) mas, antes, de observatório a partir do qual se podia calcular o comprimento da sombra ao meio-dia no dia mais longo e no dia mais curto, e assim obter equinócio, solstícios e latitude do local, e, portanto, constituir todo um modelo de mundo graças a tábuas que registravam todas as posições dos astros, ele conclui: O gnomon conhece: discerne, distingue, intercepta a luz do Sol, deixa rastros na areia (ou no mostrador) como se escrevesse numa página em branco. O gnomon não é um instrumento. [...] O artifício não se refere ao sujeito, orientado por ele, mas contínua a ser objeto entre objetos, entre o Sol e o solo, coisa tornada inteligente por seu lugar num local singular do mundo que passa por ela para se refletir sobre si. Pelo gnomon o universo conhece a si mesmo por si mesmo. O mundo dá-se a ver ao mundo que o vê. Ciência sem sujeito. [...] Nada transita [...] através de um sujeito, portador de faculdades, filtrado ou não por uma teoria ou terminando em sua construção. 9. Michel Serres, op. cit., pp. 69, 72, 73. 54
Voltaremos imediatamente a esta singularidade e aos limites da ciência grega, mas, antes, notemos um último caráter típico e moderno desta ciência. Que dizem efetivamente a sombra e a luz, o sol interceptado e os corpos (pirâmide, estaca, gnomon ou o corpo do próprio Tales) que o interceptam? Que diz o teorema de Tales? Que a lei é a mesma para todos esses corpos, que as aparências não importam, que todos se equivalem. Não há ciência sem invariância, sem identidade, sem igualdade. A palavra grega que designa a ciência, épistèmè, tem a mesma raiz que "estabilidade". Conhecer é identificar e relacionar: com os gregos, a ciência encontrou definitivamente seu caminho e, por assim dizer, seu assentamento. [Porém a existência das similitudes não deve nos ocultar que entre a ciência grega e a nossa as rupturas são mais essenciais que as continuidade£] O hiato é comumente designado por duas palavras: experimentação, matematização. Apesar das ideias fecundas e das contribuições perduráveis, a ciência grega, por um lado, permaneceu ilhada na teoria, desdenhosa das validações experimentais e, portanto, das aplicações práticas. E, por outro lado, ela venerou tanto os números e as idealidades matemáticas que não conseguiu pensar em aplicá-las (implicá-las) no mundo material. O testemunho simbólico disto seria o divórcio de Platão e Aristóteles: o segundo construindo uma ciência enciclopédica, sistemática, rica em observações mas puramente qualitativa, enquanto o primeiro se apaixonou pela matemática, mas fazendo dela um meio de purificação para a alma que se desvia do mundo sensível. A Grécia não operou a síntese entre matemática e experiência. Como compreender que, como a China, ela tenha parado assim à beira da descoberta positiva? É que, mesmo quando dá a impressão de dialogar com a natureza, o logos grego sempre re produz os processos de troca entre os homens e da discussão Política através das quais ele se forjou. O logos é filho da cidade, seu meio é a argumentação, seu objetivo, a persuasão e 55
o consenso. Trata-se de vencer a resistência da natureza, assim como a dos outros. Aristóteles reconhece-o implicitamente, ele que define a retórica como a arte de derrubar o argumento mais forte pelo mais fraco, e que, de maneira análoga, identifica o campo da mecânica com aquele onde "o menor domina o maior"10. Jean-Pierre Vernant resume assim este ponto: / O pensamento não é técnico; se ele utiliza, em certas partes da ^demonstração, o raciocínio matemático, e se parte, para colocar certos problemas, de constatações de fato, continua a ser essencialmente de inspiração lógica e dialética. )
Este é o estratagema de Tales diante da pirâmide de Quéops; seu raciocínio é um expediente para ficar com a última palavra! É que a natureza dos gregos, a phusis, não é a extensão geométrica, inerte e disciplinada da qual fala Descartes. É uma potência de vida que gera12 e afronta seres, mexe-se e modifica-se sem cessar, explode em miríades de formas, rebeldes à lógica e à identidade. Como "possuí-la", senão usando de estratagemas? O homem não tem escolha: tem mesmo que trapacear diante de uma natureza tão desconcertante.LPorém, um pensamento que se recusa assim a submeter-se docilmente à lei do mundo, à lei do mais forte13, não pode superar a dualidade que caracteriza a situação inicial de toda ciência: de um 10. Aristóteles, Rhétoríque, II, 1402a; Mechanica, 847 a 22. 11. Jean-Pierre Vernant, Mythe etpensée chez lês grecs [Mito e pensamento entre os gregos], Maspero, 1969, p. 235.1 12. Esta é a etimologia: phuô, fazer nascer. Idem em latim: natura, de nascor, nascer. 13. Docilidade que Claude Bernard exigirá ao escrever o manifesto da ciência moderna: "O homem não pode ditar leis à natureza, porque não possui em si o conhecimento e o critério das coisas exteriores e, para chegar à verdade, ele deve, ao contrário, estudar as leis naturais e submeter suas ideias, senão sua razão, à experiência, isto é, ao critério dos fatos." Introduction à 1'étude de Ia medicine experimental^, [Introdução ao estudo da medicina experimental], Garnier-Flammarion, 1865, p. 59.
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lado, o homem, o espírito com suas regras e exigências; do outro o mundo e seus fenómenos que, mesmo supondo-se que façam sentido, são codificados numa linguagem estrangeira; o suieito e o objeto (ainda que estes dois termos suponham uma 'nter-relação que fica aqui problemática)) Sabe-se que o método experimental, cânone da ciência moderna, conseguiu lançar uma ponte entre as duas ordens instituindo o diálogo com a natureza. O homem grego, porém, ou monologa ou se cala... Monologa quando segue, nem que seja subindo, a inclinação natural do espírito e constrói, de forma dedutiva, rigorosa, matemática, arquiteturas puramente teóricas (Platão). Ele se cala quando coleta fatos brutos ou minuciosamente observados tábuas de dados, receitas empíricas. Um saber sem influência sobre o mundo ou então pedaços de mundo sem saber: o pensamento grego quase não saiu desta última tentativa... O pensamento grego não conseguiu preencher a distância entre uma ciência, que se inspira num ideal lógico, e uma empeiria [experiência], reduzida aos acasos da observação. [...] Encontramos os dois planos de pensamento; entre os dois, falta 14 a dodradiça.
Esta enfermidade maior da ciência grega explica de imediato aquela outra limitação a cujo exame nos reportamos anteriormente (pp. 50-51). A ciência de Tales e da Grécia em geral é, dizíamos, uma ciência sem sujeito, uma espécie de auto-reflexão do mundo que só faz transitar pelo homem como pela estaca ou pelognomoniOra, a parábola de Einstein advertia-os sobre isso no final do capítulo anterior; a ciência moderna desenvolveu-se dentro da ordem da representação. Não existe objetividade no sentido em que o próprio objeto se imporia maciça e irrefutavelmente. A objetividade científica não Passa por uma anulação (impossível) do sujeito humano. Ela , através da intersubjetividade, sublimar o sujeito indivi,,. dual (psicológico, histórico, cultural...) em sujeito universal .', ("franscendental"J, no vocabulário de Kant, ou "epistêmico", no l4
- Jean-Pierre Vernant, op. cit., pp. 235 e 239.
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de Jean Piaget)/Na falta de uma presença direta do objeto no suieito ou de uma total adesão do sujeito ao objeto, não há outro recurso senão a representação do objeto por e no sujeito. Ora, a problemática da ciência grega, na própria medida em que ela fracassa ao integrar sujeito e objeto, teoria e prática, só pode, do mesmo modo, deixar de fora do seu campo o problema bilateral da assimilação e da acomodação e o estatuto da representação.j Galileu e a emergência de uma ciência moderna
Apesar dos precursores e de suas descobertas fragmentárias que recolhemos, é forçoso reconhecer que, em sua acepção moderna, a ciência só vai nascer graças àquela fratura histórica muito mal denominada (dentro de nossa perspectiva) "Renascimento", e, definitivamente, nos séculos XVI e XVII. Galileu é seu símbolo e seu herói. Nesta qualidade, ele foi objeto de múltiplas interpretações que, de acordo com a ideologia ou a perspectiva de seus autores, põem em relevo e até mesmo acentuam e forçam este ou aquele aspecto da obra. Sem entrar nas polémicas dos historiadores das ciências15, pode-se, através da diversidade de suas leituras da obra de Galileu, reunir as características fundamentais daquilo que, meio século antes, Tartaglia já chamara de "Nova scientia"(l537), ciência nova. Dentro de uma concepção idealista e platónica, Alexandre Koyré identifica a revolução galiléia e a matematização da ciência: [Estamos tão acostumados à ciência matemática, à física matemática, que não sentimos mais a estranheza de um ponto de
15. Para um inventário refletido das leituras da obra de Galileu, reportar-se ao artigo de Isabelle Stengers em Michel Serres, Éléments pour une histoire dês sciences [Elementos para uma história das ciências], pp. 223-249. 58/
vista matemático sobre o Ser, a audácia paradoxal de Gal'l ao declarar que o livro da Natureza é escrito em caracteres geométricos. Para nós, isto é evidente. Mas não para os temporâneos de Galileu. Por conseguinte, o que constitui verdadeiro assunto do Dialogue sur lês deuxplus grands sysr° mês du monde [Diálogo sobre os dois grandes sistemas H mundo] , é o direito da ciência matemática, da explicacg matemática da Natureza, por oposição àquela não-matemática do senso comum e da física aristotélica, bem mais que a oposição entre dois sistemas astronómicos. _J
Ao contrário, o físico Ernst Mach (1883) e depoj historiadores Thomas Settle (1961) e sobretudo Stillman D °S ke (1969, 1973) privilegiaram o papel das experiências sob &" queda dos corpos ou a trajetória parabólica, realizadas ^ Galileu. E viram nele o pai da experimentação, o pioneiro ciência experimental. Dentro de uma ótica deliberadamente anarquista o v,toriador das ciências Paul Feyerabend presta uma horn 1S~ gem paradoxal a Galileu.18 Ele exalta as distorções do mét ^~ as manobras de propaganda, o "truques psicológicos", a sol• °-' tacão dos fatos, as hipóteses tapa-buracos... das quais Gal'!01" teria feito uso de maneira sub-reptícia, a fim de desacredit 6U sistema de Ptolomeu e substituí-lo pela nova teoria copérn' ° Assim considerada, a obra de Galileu, arquétipo de toda te °^ científica, revela que "tudo é bom" para produzir novos conh^ cimentes, sacudir a preguiça dos espíritos ou a inércia rf" instituição científica, e assim fazer progredir o saber. Po ela mostra, sobretudo, contra os idólatras e mantenedores um ciência sacrossanta, que é, finalmente, da mesma ord U6 que os mitos, as cosmologias religiosas ou qualquer 011**1 Q
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Título do livro de Galileu publicado em 1632 e que opõe o sistema helioc~ de Copérnico ao sistema geocêntrico de Ptolomeu. Alexandre Koyré, Études d'histoire de Ia pensée scientifique [Estudos de h' lst do pensamento científico], Gol. "Tel", ed. Gallimard, 1966, p. 186. ória 18 - - - P. Feyerabend, Contre Ia méthode [Contra o método], Points, Seuil 1975 Ca Ps. 6 a 11. '
sistema de interpretação dos fatos. No fundoJo que diz Feyerabend, com um certo excesso e irónica provocação, é que o "caso Galileu" demonstra de maneira privilegiada que toda ciência não é senão a ordem da representação. Ela não é, segundo a crença ingenuamente positivista ou empirista, o discurso dos próprios fatos, a expressão do real. É uma informação irredutivelmente humana, social, cultural, histórica... destes, e às vezes uma informação que chama ou admite uma "mãozinha" ou o uso da força, a despeito de todo método apriorístico e coercitivo, j Enfim, como último grupo de testemunhas que citaremos a comparecer neste processo de paternidade de Galileu, aqueles que vêem nele o inventor da mecânica. Bertrand Gille, historiador das técnicas, mostra que Galileu se vincula à tradição dos artesãos, construtores e engenheiros do Renascimento, como ele mesmo reconhece no início da primeira jornada de seus Discours [Discursos]19. Seu principal mérito seria percorrer o caminho que vai do estudo das máquinas a uma visão mecânica do mundo. Com Galileu é que entramos na mecânica moderna e, a propósito da balística, ele faz uma série de propostas que marcam realmente os primórdios desta ciência. A meia-parábola para a curva, a composição dos movimentos indicam o caminho para elas.
E a filósofa das ciências Isabelle Stengers mostra que Galileu destruiu a concepção grega e aristotélica de uma natureza orgânica, viva, dinâmica e, no fundo, irracional (como o mostram sua propensão ao excesso, à abundância, e seu poder criativo ou inovador). Ele a substitui pela concepção de uma natureza mecânica, tão perfeitamente regular quanto uma máquina. Para que a máquina possa assim impor-se como modelo universal das estruturas físicas, seria necessário que fosse operada a unificação dos espaços particulares (o dos astrónomos, o dos geômetras, o dos cartógrafos etc.) num espaço indiferenciado, abstrato e quantitativo, no qual tudo se iguala. Galileu é, para mim, [...] o inventor da mecânica racional, do espaço tecido pela igualdade da causa e do efeito.
Matematização, experimentação, representação e mecanismo: aprendemos com os intérpretes atuais de Galileu quais são os traços que marcam a ruptura com toda "ciência" anterior e que determinam a emergência da ciência nova, da ciência moderna. Porém, o que importa é que eles não aparecem na intuição individual de um homem de génio. Galileu é homem do seu tempo, e por isso é um símbolo, e não uma exceção.22 Com ele e em torno dele, é todo o clima intelectual que está se modificando: natureza das questões, fonte, formulação e validação das respostas, status social dos hábitos e relações com outros grupos sociais, organização comunitária da ciência, com suas regras do jogo, seus modos de cooperação, de controle e de sanção etc. Assiste-se à emergência daquilo que Michel Foucault
19. Galileu, Discours et demonstrations mathématiques concernant deux sciences nouvelles [Discursos e demonstrações matemáticas concernentes a duas novas ciências], 1638. "Que amplo campo de reflexão me parece abrir às mentes especulativas a frequência de seu famoso arsenal, senhores venezianos, e particularmente a parte dos trabalhos mecânicos. Toda espécie de instrumentos e máquinas ali são constantemente implementados por um grande número de artesãos dentre os quais alguns, tanto pelas observações que seus predecessores lhes legaram quanto por aquelas que eles próprios fazem sem cessar, aliam necessariamente a maior habilidade ao julgamento mais penetrante." 20. Bertrand Gille (org.), emHistoire dês techniques [História das técnicas], Plêiade, p. 1466.
21. Isabelle Stengers, em Élements pour une histoire dês sciences, op. cit., p. 246. 22. Limitemo-nos a duas citações que vão no mesmo sentido que Galileu, "Estou muito ocupado com o estudo da causa física. Minha meta é, aqui, mostrar que a máquina celeste deve ser comparada não a um organismo divino, e sim a um movimento de relojoaria." (Kepler, Carta a Herman de Hohenburg, 1605.) "Nenhuma investigação humana pode chamar-se ciência verdadeira se não passar por demonstrações matemáticas." "A mecânica é o paraíso das ciências matemáticas." (Leonardo da Vinci, citado por Bertrand Gille, Lês ingénieurs de Ia Renaissance [Os engenheiros do Renascimento], ed. Hermann, 1964, p. 207.)
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T chamou de umapépistèmè", um "pedestal epistemológico" , uma nova configuração de todos os elementos necessários ao acionamento de um pensamento^ a partir dos quais um novo tipo de saber torna-se possíveLjE que, exceto na mitologia científica, o sujeito da ciência não é o sujeito individual. "Ela pensa coíetivamente"24 e funciona em rede, como se verá no capítulo 4. Este fato da socialização da ciência é mesmo tão importante que se pode considerá-lo como um quinto caráter distintivo desta ciência que acaba de nascer. O caso de Arquimedes (287-211 a.C.) fornece uma impressionante ilustração disso: avançado em relação ao seu tempo (como se diz), precursor e franco-atirador de uma ciência experimental, matemática e mecanicista, ele só será efetivamente aceito, estudado e compreendido na segunda metade do século XVI. Paradoxalmentefa ciência só reconhece o mérito individual suprimindo sua individualidade numa apropriação coletivá.\ .4
As circunstâncias de um nascimento
Após havermos precisado os seus dados, podemos agora retomar a questão inicial: por que a ciência nasceu na Europa dos séculos XVI e XVII? A menos que se acredite numa milagrosa "geração" espontânea, numa eleição providencial (o Espírito Santo fixando domicílio na Europa para aí prosseguir sua realização: Hegel) ou num amadurecimento interno do logos grego (Auguste Comte, cf. pp. 27 e 28), temos mesmo que procurar os fatores culturais^ ideológicos, mas também sociais e económicos que determinaram esta emergência. Alexandre Koyré considera tal curiosidade sacrílega, isto é, redutora. Contra toda abordagem sociológica e relativista, ele reivindica um certo "idealismo": 23. Michel Foucault, Lês mots et lês choses [As palavras e as coisas], N.R.F., Gallimard, 1966, p. 163. 24. Michel Serres, Élements pour une histoire dês sciences, op. cit., p. 95.
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Por isso me parece inútil querer deduzir a ciência ereea da estrutura social da cidade; ou mesmo da agora. Atenas não explica Eudoxo; nem Platão. Assim como Siracusa não explica Arquimedes; ou Florença, Galileu. Creio, por minha vez, que o mesmo ocorre em relação aos Tempos modernos, e mesmo a nosso tempo, apesar da aproximação da ciência pura e da ciência aplicada de que falei há um instante. [...] Aí reside uma empreitada totalmente quimérica.
Eis uma saudável prevenção contra a tentação sociologista (cf. pp. 145-146). Mas ela é comandada por uma certa filosofia da ciência à qual é permitido não subscrever e que relativiza o anátema. A explicação mais comum, que Koyré visa aqui, é a de historiadores (que às vezes apelam ao marxismo) como A.C. Crombie, F. Borkenau, L. Olschki, E. Zilsel, H. Guerlac... Para eles, a ciência experimental nasceu de um relacionamento entre teoria e prática, da substituição do ideal contemplativo dos Antigos pelo ideal ativista e pragmatista, e, "em última instância" (como dizem os marxistas) da reabilitação do trabalho, das novas necessidades da técnica e do surto da sociedade industrial e capitalista. Mesmo que as teses sejam por vezes abruptas e simplificadoras26, a massa dos documentos deixa pouca dúvida. E certo que os fundadores da ciência nova são engenheiros, inventores, empreendedores (Leonardo da Vinci, Cardan, Benedetti, Stevin... e antes deles Arquimedes) ou então ligados ao ambiente dos técnicos e atentos a seus trabalhos (Galileu, Descartes, Huyghens...). E não é menos certo que, desde aquela época, a ciência, que se tornará uma força produtiva essencial ao desenvolvimento do capitalismo, é reconhecida como capaz de resolver certos problemas nos quais os técnicos esbarram . Leonardo da Vinci é bastante explícito:
«5. Alexandre Koyré, Études d'histoire de lapensée scientifique, op. cit., p. 398. "• Os problemas colocados pela sociologia da ciência serão discutidos no cap. 5.
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Quem se dedica à prática sem a ciência é como marinheiro que embarca sem leme e sem bússola, e que nunca sabe aonde vai.27
E Girolamo Cardano (1501-1576) associa a extensão dos conhecimentos científicos à invenção técnica da artilharia e da imprensa numa proclamação exaltada que resume o ideal prometéico de sua época: Que nos falta ainda, a não ser nos apoderarmos do céu?
Em termos prudentes e moderados, Bertrand Gille (cf. texto 13) localiza a situação e dispensa-nos de ir mais adiante na polémica. O que importa é apreender que o cunho da sociedade do tempo não permite mais satifazer-se com uma ciência desinteressada e "ociosa". Esta, disseram, convinha às cidades escravagistas da Antiguidade que, desobrigadas dos cuidados terra-a-terra da produção, podiam dar-se ao luxo da contemplação. Porém, como mostra Max Weber29, imperativos religiosos e económicos juntam-se doravante para colocar o homem no trabalho e submetê-lo ao rendimento. Não só a especulação deve desembocar na prática (trata-se de saber para poder), como o critério do saber tornar-se por si só operatório: é "verdadeira" a representação do fenómeno que dá um domínio sobre ele. Reside aí a opção fundadora de nossa ciência. Mesmo acima de toda explicação tecnológica, o conhecimento científico é experimental e aparece como uma técnica de manipulação dos fenómenos estudados. Trata-se, na realidade, de preparar o fenómeno (eliminando a influência dos fatores ligados e parasitas para purificá-lo, convertendo a ideia explicativa em 27. Leonardo da Vinci citado em Pierre Thuillier, D'Archimède à Einstein [De Arquimedes a Einstein], Fayard, 1988, p. 108. 28. Girolamo Cardano, citado emEncyclopaedia Universalis, artigo "Renascimento", T. 14, p. 64. 29. Max Weber, Uéthique protestant et 1'esprit du capitalisme [A ética protestante e o espírito do capitalismo], 1920, Plon, "Agora", 1985. R. T. Jones, Ancients and moderas, Califórnia, 1965, desenvolve os laços entre puritanismo e ciência moderna.
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aparelhagem destinada a extorquir sua resposta à natureza, canalizando o próprio fenómeno no processo experimental) de jnaneira a prever e predizer o resultado. O critério da verdade está contido nessa capacidade de antecipar, porque a ciência é uma tarefa a ser cumprida, e não uma recepção ou intuição de um mundo dado, ela aparece voltada para o futuro. Não é passadista e não procura encontrar ou demarcar o ato fundador das coisas, como as mitologias cósmicas. Não se limita mais a uma presença no mundo, numa espécie de união contemplativa. É uma projeção da ambição humana reapropriar-se do que existe, e, como tal, ela éprojeto, supondo uma realidade inacabada a "trans-" ou a "per-" formar. Daí a profunda comunhão de natureza entre ciência e técnica, esta osmose espontânea que as torna com tanta frequência indiscerníveis (cf. texto 14). l Esta orientação essencial de nossa ciência é portanto histórica e socialmente determinada. Ela é também perfeitamente justificável e legítima, mas também alheia a uma mentalidade antiga ou oriental, e, por conseguinte, relativa. Contentemo-nos em dizer aqui30 que este modo de conhecimento é de pronto particularizado e que ele não poderia ser considerado como o único modo de conhecimento possível ou verdadeiro^ Martin Heidegger revelou tudo o que ele contém de vontade dominadora (cf. textos 12 e 15) e Ilya Prigogin resume assim sua tese: O homem de ciência, depois do técnico, é o signo de uma vontade de poder disfarçada em apetite de conhecimento; sua abordagem das coisas é uma violência sistemática.
Porém, para melhor determinar em que, desde a origem, nossa ciência recebe, através de suas condições sociais, técnicas e económicas, uma orientação específica, temos que, agora, precisar o estatuto desta nova categoria socioprofissional que é o engenheiro ou o empreiteiro. A partir do final da Idade 30.
Este problema será retomado e analisado no cap. 6. Ilya Prigogin e Isabelle Stengers, La nouvelle alliance, op. cit., p. 39.
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Média, com o desenvolvimento das cidades, a atividade artesanal ganha outra dimensão. Para organizar as cidades, prover sua defesa, seu abastecimento de água, drenagem etc., abremse importantes canteiros de obras. Os diferentes corpos de profissões devem cooperar, novas energias como as da água ou do vento devem ser mobilizadas além das forças humana e animal. O artesão tradicional, manualmente hábil, pleno de capacidades dentro de sua especialização e de experiência acumulada, não basta mais para as novas tarefas. Por isso é que surge este novo tipo de profissional: o arquiteto ou o engenheiro. Mestre de obras, coordenador das atividades artesanais, ele se apresenta, ante o artesão especializado, como uma espécie de generalista, de saber enciclopédico. Ou melhor, ele tem uma especialidade nova e original: o conhecimento da matemática e a ciência das máquinas que vimos associados pelo mais célebre dentre eles, Leonardo da Vinci (p. 61). É que, para construir engenhos, ele tem que, sem sombra de dúvida, saber trabalhar a madeira, o vidro, os metais... porém, antes de tudo, deve conceber planos e calcular. Ora, é à categoria dos engenheiros que pertencem, direta ou indiretamente, os fundadores e os primeiros atores de nossa ciência. E, numa análise minuciosa, Serge Moscovici32 mostra o cunho com o qual eles marcam de forma duradoura a ciência nascente. Temos assim a matematização do real... A projeção teórica de um problema técnico e sua solução pelo cálculo muitas vezes evitam ter que fazer tentativas dispendiosas em situação real. A matemática passa assim a ser o instrumento próprio do engenheiro, o método inventivo que, nele, substitui a habilidade tradicional (que repete o artesão) e que justifica 32. Serge Moscovici, Essai sur 1'histoire humaine de Ia nature [Ensaio sobre a história
humana da natureza], d. Flammarion, 1977. De modo bastante restritivo, este autor reserva o nome de ciência a um conhecimento que realiza o que ela concebe, ao invés de simplesmente aplicá-la, e cria substâncias e uma natureza novas. Esta ciência "verdadeira" nasce na segunda metade do século XIX e o modo de conhecimento que emerge com Galileu não passa, para Moscovici, de uma filosofia natural. 66
sua supremacia profissional. Ela é portanto a fonte de seu prestígio, tanto de seu poder social quanto de seu poder sobre o mundo. Se Galileu lhe atribui uma essência divina —já que Deus teria redigido o grande livro da Natureza com números e figuras — ela também tem, portanto, vínculos bem terrenos. E a posição de Koyré, que acredita refutar toda explicação sociológica da ciência apelando ao matematismo de Galileu e dos físicos da época, perde a razão de ser. Uma ciência mecânica Ligada à metafísica, como vimos, a ciência das máquinas é a outra vertente da arte do engenheiro. O trabalho do artesão é centrado na habilidade, na disciplina do corpo e na segurança do gesto. Aí, a ferramenta não é senão um prolongamento do corpo, inútil sem este corpo exercitado que a move, e é melhor aperfeiçoar a habilidade que o instrumento material. Ao contrário, o engenheiro concebe e fabrica máquinas autónomas (moinhos, bombas, sistemas hidráulicos, máquinas de guerra, relógios...). Estas podem mobilizar, é claro, a força humana. Mas esta última é então indiferenciada, abstrata, isto é, desligada da habilidade individual, da competência adquirida: qualquer trabalhador, ou melhor, qualquer cadeia de braços colocado um após o outro, pode encarregar-se dela. Moscovici mostra com profundidade que toda a relação com a natureza e a própria concepção de natureza encontram-se transtornadas por esta modificação do trabalho. Na realidade, quando o artesão se relaciona com a natureza a partir do seu próprio corpo, ele só a encontra como matéria-prima ou como acessórios corporais. Uma aparece em suas qualidades imediatas e sensíveis (dureza, rugosidade, variedade, resistência ou maleabilidade etc.), os outros como veículos de um pensamento e de uma vontade, objetos animados, elementos orgânicos. O corpo é natur eza e a natureza é corpo nessa osmose do trabalho. Daí a 67/
concepção de uma natureza orgânica, qualitativa e múltipla que requer, para gerar todos os fenómenos que nela se produzem, ser animada por forças comparáveis à inteligência e ao corpo humanos. Imagem de um mundo dinâmico que é tanto aquela da phusis grega quanto do impetus medieval, esta potência motora que os filósofos parisienses do século XIV introduziram nos corpos móveis para dar conta de seu movimento33. Ao contrário, com a promoção dos engenheiros e o desenvolvimento do trabalho abstrato, a própria natureza vira força de trabalho. Ela perde suas qualidades sensíveis e suas propriedades vivas para não ser mais considerada senão como combinação de forças e movimentos; em outras palavras, não se define em relação ao sujeito humano que percebe e age. A partir daí, ela aparece como uma matéria quantitativa na qual "só se consideram grandezas, figuras e movimentos como faz a mecânica" (Descartes)34. A ferramenta do artesão permitia agir sobre a natureza; a máquina autónoma tornou-se o modelo que se projeta sobre a natureza, e as regras estritas de sua fabricação e controle (que são o objeto dos cálculos e da arte do engenheiro) convertem-se em leis da natureza. Estas leis são, por si, quantitativas, e não lhes basta, para serem válidas, satisfazer as exigências da razão. O exemplo das máquinas (cujo êxito se avalia pelo bom funcionamento), aí, ainda impõe que elas sejam verificadas pela experiência, mobilizando esta, por sua vez, instrumentos e dispositivos mecânicos/Da invenção das máquinas a uma visão mecanicista da natureza inteira, com efeito sobre as técnicas de instrumentação e aparelhagem científicas, o círculo fecha-seJ
33. Suponhamos que eu lance uma pedra no ar: que é que mantém seu movimento depois que ela perdeu qualquer contato com a mão? Aristóteles responde que é o ar. Jean Philopon, Buridan e consortes invocam um motor interior, o impetus. Para Galileu, a questão é um falso problema pois, no mundo ideal do espaço geométrico, um corpo em movimento ou em repouso permanece aí eternamente, a menos que sofra a ação de um outro corpo (princípio de inércia). 34. R. Descartes, Carta a Plempius de 3 de outubro de 1637.
es,
Uma ciência masculina Esta mudança de paradigma natural pode ser abordada de uma outra maneira. A natureza orgânica é Mulher, os minerais crescem no ventre da Mãe Terra, substâncias e seres são gerados após gestações mais ou menos longas e bem-sucedidas, suas metamorfoses põem em jogo uma sucessão de gerações, de casamentos, de mortes (como se vê na alquimia), vínculos congénitos impulsionam os corpos a encontrarem seus regaços naturais (teoria aristotélica dos "lugares naturais") etc. Esta natureza tem mistérios, mas também o caráter sagrado da mulher-mãe. Ela é barrada por interditos. Assim, os alquimistas evitam desejar modificá-la e contentam-se em acelerar seus processos internos, enquanto por muito tempo o trabalho da mina foi considerado uma profanação, até mesmo uma violação incestuosa. Desvitalizada e mecanizada, a natureza torna-se matéria inerte e passiva, submetida à empreitada dominadora e masculina dos cientistas e técnicos que vão subjugá-la e explorá-la. Não só ela cessa de ser mulher, como o saber novo escapa às mulheres, a essas bruxas e curandeiras depositárias dos saberes tradicionais, que viviam em conivência com as potências da vida e da morte, com as plantas, com as paixões humanas e seus sortilégios. "Sacerdotisas da natureza", "sibilas da ciência", como as chama Jules Michelet35. Em nossos países, portanto (sem falar ainda nos componentes não ocidentais da humanidade) , a ciência nascente assenta paradoxalmente sua pretensão à universalidade na exclusão da metade do género humano.37 35. Jules Michelet, La sorcière [A feiticeira], 1862, Garnier-Flammarion, 1966. 36. Cf. cap.6. "'• Daí os protestos femininos que estabelecem paralelos entre a exploração tecnoientífica da natureza e a exploração social das mulheres. Carolyn Merchant, The death of nature: women, ecology and the scientiflc revolution [A morte da natureza: mulheres, ecologia e a revolução científica], Harper and Row, 1983; Isabelle Stengers, "Une science au féminin?" em Lês concepts scientifiques [Uma ciência no feminino?, Os conceitos científicos], La Découverte, 1989; Brian Easlea,
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Esta ciência de homens não quer mais ter que conhecer causas finais, que reinavam no cosmos aristotélico. Ela exorciza a natureza de todas as intenções, afinidades e simpatias que a percorriamíCiência dos mecanicistas, ela só considera causas motrizes e divide o mundo em potências ativas e substratos passivos. A natureza não é mais um receptáculo de formas e de qualidades mas uma reserva de energias quantificáveis que cabe ao homem, doravante, domesticar. Ela pode se tornar o canteiro (quando não o monturo) de nossas atividadesTj Remodelagem do espaço e do tempo Estas últimas manifestam-se num espaço e num tempo novos. O mundo não é mais constituído de lugares naturais, diferenciados, a encobrir virtudes secretas e específicas ligadas à natureza do solo, das águas, das plantas ou dos animais, à luz, às posições planetárias... ou à conjunção mágica de todas essas influências. Ele se instala sem mistério num espaço homogéneo, isotrópico, contínuo e mensurável, que é a pura extensão geométrica. Do mesmo modo, o tempo pára de definirse pelos ritmos variáveis das atividades humanas, dos fechos dos ciclos biológicos ou geológicos ou dos orbes dos astros. Ele se abre e se unifica, fica linear, e também homogéneo e mensurável. É o tempo do projeto humano, vetor orientado que aponta para nossos objetivos... A ciência necessitava de tais coordenadas espaço-temporais para neutralizar a irracionalidade do devir que tanto escandalizava os gregos. Com esse tempo padronizado que se tomará como variável independente, todo fenómeno evolutivo pode ser reconduzido a uma forma legalizada; e mesmo este tempo é tão bem controlado intelectualmente que o tornamos reversível, o que permite Science et philosophie, une révolution, 1450-1570 [Ciência e filosofia, uma revolução, 1450-1570], Ramsay, 1986.
postular a identidade da causa e do efeito, e assim pôr para funcionar plenamente o princípio de causalidade38. Quanto à neutralidade do espaço, ela garante a invariância e a universalidade das leis, válidas "em todos os lugares e em todos tempos". Ora, é certo, a partir do que vimos (cf. pp. 66-67), que o ponto de vista generalista e abstrato dos engenheiros contribuiu largamente para a remodelagem das categorias mentais de espaço e de tempo. É sua atividade, com efeito, que destrói o espaço como agregação de meios vitais (artesãos, camponeses, vegetais, animais..., em seus entornes respectivos e solidários) para fazer deles uma rede de lugares geométricos. Ela determina, do mesmo modo, a passagem do que Jacques Attali chama de "O Tempo dos Corpos"39, ritmado pelo dispêndio e pela reconstituição da força de trabalho, no "Tempo das Máquinas" (cf. nota 39), uniforme, divisível e quantificável, que será também o tempo dos comerciantes e industriais, sempre conversível em medidas e dinheiro! O mecânico supremo A ciência moderna é, portanto, a mais de um título e essencialmente, devedora desses engenheiros do Renascimento e de seu ponto de vista particular sobre o mundo; sobre um mundo que eles estão subvertendo. Resta, para terminar, insistir num ponto brevemente evocado (p. 49): a concepção mecanicista da natureza só pode ser verdadeiramente fundamentada se o Deus criador assumir ele próprio a figura de 38. Cf. Émile Meyerson, Identité et réalité [Identidade e realidade], Alcan, 1912. Para formular uma lei, basta admitir que o tempo é homogéneo e que as leis não se modificam com o transcorrer do tempo; porém as próprias coisas se modificam no curso do tempo e a lei enuncia, aliás, o modo dessa mudança. Em compensação, a explicação causal põe em jogo o princípio de identidade; ela postula a igualdade da causa e do efeito e, portanto, implica que as coisas persistem através do tempo (o que volta a negar o tempo). 39 - J. Attali, Histoires du temps [Histórias do tempo], A. Fayard, 1982.
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Mecânico. Ipo ponto de vista teológico, reside aí, sem dúvida, um desvio antropológico, pois a criação divina é produtora de existênciae não simples mudança de essência como a atividade artesanafíPorém, a partir do fim da Idade Média, a ideia de um Deus-Arquiteto ou do Grande Relojoeiro impõe-se aos espíritos. Bem antes de Voltaire, é Nicolas Oresmes, bispo de Lisieux, quem (em 1382) compara o mundo a "um relógio mecânico criado e posto para funcionar por Deus, que dá às engrenagens um movimento tão harmonioso quanto possívél .jfista projeção mecanicista sobre Deus possibilita, sobretudo, conferir um estatuto firme à noção de leis da natureza. Realmente, este conceito fundamental de nossa ciência tem toda uma história que Joseph Needham retraça no final de seu estudo sobre La science chinoise et 1'Occident [A ciência chinesa e o Ocidente]. Ele lembra, em particular, que a expressão e a noção aparecem a partir o século XIII na pena de Roger Bacon. Mas ainda é cedo demais, as condições socioculturais não estão maduras e o enxerto não pega. Copérnico e Galileu conhecem somente "simetrias", "harmonias", "proporções". Kepler descobre as leis dos movimentos planetários, mas fala somente em "teoremas". É preciso esperar Descartes, Boyle e Newton, no século XVTI, para que a noção apareça firmemente ancorada. rContrariamente à concepção chinesa ou estóica de uma lei do mundo como ordem espontânea, ela vem acompanhada de uma forte conotação jurídica: as leis da natureza remetem a um legislador supremo. Mas por que, pergunta E. Zilsel41, pomonos de repente a ler a vontade e a potência de Deus no curso ordinário do mundo e nas regras invariáveis, mais que nas exceções monstruosas ou assombrosas e nos fenómenos milagrosos que retinham toda a atenção dos sábios da Idade Média? Ele responde invocando a ascensão, em nossas sociedades, do poder central e do absolutismo real: J 40. Citado por Lynn White, Technologie médiévale et transformation sociale [Tecnologia medieval e transformação social], Mouton, 1969. 41. E. Zilsel, "The sociological roots of science", The American Journal ofSociology, XLVII, 1942.
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Não é um simples acaso que a ideia cartesiana de Deus como legislador do universo se desenvolva somente quarenta anos depois da teoria da soberania de Jean Bodin.
A força coercitiva da lei poria então em jogo um modelo político transferido para o divino. Descartes escreve: ÍMas eu não deixarei de tocar, em minha física, em várias Questões metafísicas e particularmente nesta: Que as verdades g! matemáticas, as quais chamais de eternas, foram estabelecidas por Deus e dele dependem inteiramente, assim como todo o resto das criaturas. [...] Não receai, peco-vos, garantir e licar em toda parte que Deus é quem estabelece estas leis^ na natureza, assim como um rei estabelece leis em seu reino.- f
metáfora do rei, Descartes expressa a ideia de que as leis da natureza, como as do reino, não tem em si nenhuma necessidade e que elas tiram toda a sua razão de ser da decisão e do poder absolutos de Deus ou do rei. Esta ideia, porém, apresenta duas dificuldades: por um lado, uma lei impõe-se a seres racionais, a esses sujeitos de direito que são os homens; como poderia ela impor-se ao resto da natureza? Por outro lado, expressão de um decreto divino e de uma vontade insondável, a lei ficaria para nós, no fundo, ininteligível. Eis por que, à imagem do legislador (a explicação de Zilsel conservando todo o seu valor), acrescenta-se em superimpressão aquela do mecânico que não cria arbitrariamente as leis mas as produz na existência realizando a racionalidade que ele traz em si. As leis da natureza são regras da arte (do Grande Geômetra), mais que decretos de uma Vontade indecifrável. Sem dúvida, elas perderam, hoje, essas conotações religiosas e metafísicas, mas Podiam elas emergir e impor-se como fundamentos da ciência moderna sem este desvio teológico e o pano de fundo social, ec onômico ou político sobre o qual ele se desenha?^
R. Descartes, Carta a Mersenne, 15 de abril de 1630.
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Fica então bastante claro que o contexto próprio aos éculos XVI e XVII europeus possibilitou a emergência da ciência moderna e fixou para ela suas orientações constitutivas Este modo particular de questionar o mundo e de ordenar seu conhecimento é, como em toda civilização, solidário com modos de ser e viver, crenças e valores, práticas e instituições. (A ciência não é um atributo da natureza universal do homem que teria sido reservado ao homem ocidental manifestar e realizar. Ela é um fenómeno cultural e, como tal, relativo. Reconhecê-lo não significa, seguramente, desqualificá-la nem mesmo negar-lhe toda pretensão à universalidade. Só que esta apenas poderá ser visada superando e sublimando essa contingência original, e certamente não a negando ou a ignorando43. Na verdade, o que não pode ser mantido é a ideia de uma ciência pura, virgem de todo condicionamento sócio-histórico, gozando do privilégio único da Imaculada Concepção, como se ela tivesse miraculosamente surgido da inteligência etérea da humanidade ou tivesse descido de um empíreo ideal. Este dogma implícito do cientificismo não passa de um mito que não resistiu ao exame dos fatosy Observamos que houve um período bastante longo de incubação da ciência moderna, numa região do mundo que recolhera, pelo menos parcialmente, a herança grega, e a combinara com a visão da natureza e a vocação do homem trazida pela tradição judaicocristã.44
\Mas assim como esses fatores propriamente ideológicos ^ ^bu religiosos (o homem investido por Deus da missão de dominar as plantas, os animais e o resto do mundo: Génese l, 26-30; 9,1-3) só adquiriram sentido e eficiência graças às reviravoltas socioeconômicas e ao advento do capitalismo... Nem assim o 43. Cf. cap. 6, em que se tentará pensar a universalidade da ciência a partir da relatividade das culturas. 44. Jacques Ladrière, Lês enjeux de Ia racionalité [As questões da racionalidade]; Aubier-Unesco, 1977. 74
cientificismo fica reduzido ao silêncio.! Dir-se-á, talvez, que as condições turvas do nascimento em nada alteram a pureza de uma ciência que atingiu a maturidade e que desenvolve então suas razões de maneira perfeitamente autónoma. Por isso é que é preciso, agora, procurar no que o conteúdo e as formas do próprio saber científico podem sofrer a marca do contexto social.
3. CIÊNCIA E SOCIEDADE: A CONTAMINAÇÃO IDEOLÓGICA
Quando se examinam as relações entre ciência e sociedade, é quase sempre para descrever ou denunciar a utilização social dos conteúdos ou da imagem de uma ciência que, como tal, ficaria fora de questão. Assim, deplora-se a exploração de descobertas puramente teóricas para fins militares, industriais ou políticos. A ciência, sem sombra de dúvida, produz bombas, robôs e desemprego, instrumentos de propaganda e de controle, meios de modificar a natureza do homem ou de perturbar a natureza do planeta, brinquedos caros e objetos monstruosos. Porém, ela não seria, em absoluto, culpada. Nem mesmo estaria comprometida pelo uso maléfico que se pode fazer, assim, de suas ideias e dos frutos do seu progresso. Todas estas máculas se produziriam a jusante da descoberta ou do conhecimento propriamente científicos e não poderiam, portanto, poluir a fonte puramente espiritual onde estes se alimentam. Quando muito se incriminaria o desvario individual de cientistas como Oppenheimer e seus colaboradores do "pro77
jeto Manhattan", que prepararam a primeira bomba atómica em Los Alamos: eles teriam cedido à miragem da aliança fatal do sabre e da equação! Porém, se "os físicos conheceram então o pecado", como dirá mais tarde Oppenheimer, geralmente se inocenta a física, em si. O mesmo aconteceria com recuperações políticas e ideológicas nas quais se envolve a imagem da ciência. Quer sua racionalidade ou objetividade se tornem o álibi de opções discutíveis, quer a propaganda usurpe seu controle de qualidade e mistifique as multidões com os oráculos de seus peritos... a ciência estaria também aí acima dessas manobras baixas. Desinteressada e animada exclusivamente pela curiosidade intelectual, ela continuaria independente de suas aplicações técnicas como das necessidades e pressões da sociedade, essencialmente ignorante e inocente quanto aos usos que esta última pode fazer de suas descobertas ou de sua reputação. A ciência, é claro, e nem sempre os cientistas(I) pois a carne é fraca e os homens cúpidos e corruptíveis. (JPorém, tal posição é ilusória e insustentável, pois a ciência não goza de nenhuma extraterritorialidade com relação à sociedade que a produz e a usaTJEla é uma entre outras atividades sociais, integrada ao funcionamento e ao equilíbrio da vida coletiva; ela é mesmo, como se viu, a expressão de um determinado tipo de sociedade, e seria no mínimo ingénuo confiná-la num gueto ideal, penhor de sua pureza. Portanto, não é somente a jusante que a sociedade intervém, turvando a água pura do saber. É a montante, represando a fonte, regularizando sua corrente, escavando seu leito e canalizando seu curso etc. Esta metáfora encobre, na verdade, duas ordens de realidade. Por um lado,Ia sociedade fornece os recursos e instala os quadros, os órgãos e as redes com os quais e nos quais se elabora o conhecimento científico. Porque as pesquisas não são atividades puramente espirituais e desencarnadas, elas se inserem nas estruturas de financiamento e difusão, moldam-se nas formas da divisão do trabalho e da competição, curvam-se às normas de controle e produtividade, entram em concorrência e em relação com as outras atividades sociais, técnicas, 78
económicas, políticas, culturais etc. Este é o aspecto institucional, que pode, em última instância, aparecer ainda como um condicionamento relativamente exterior à própria ciênciáfp cujo estudo será objeto do capítulo seguinte. Mas, por oum> lado, a influência social insinua-se, de uma maneira que parece mais perniciosa, até o próprio cerne do saber. Ela vai além das modalidades de sua organização e afeta suas formas epistemológicas, sua expressão e conteúdo. Na realidade, como meio ambiente, a sociedade fornece aos pesquisadores o viveiro no qual eles vão se alimentar. Eles encontram nela e em sua cultura suas regras, seu código, seus valores, as analogias que alimentam a invenção, as metáforas que sustentam a vulgarização, as imagens que dão inteligibilidade aos conceitos e modelos. A ciência acha-se assim investida pela ideologia, se entendermos, por esta palavra, os reflexos, dentro da ordem do conhecimento, de valores ou de princípios sociais. Sua virgindade parece então mais seriamente ameaçada e os mais ferozes defensores da pureza científica terão dificuldades em preservála intacta (cf. texto 16) A A sociocultura como obstáculo epistemológico
Em suma, seria necessário acrescentar um novo elemento ao catálogo dos "obstáculos epistemológicos" levantado por Gaston Bachelard. Por esta noção, ele designa, com efeito, os pesos inerentes ao próprio ato de conhecer, que puxam a alma para o que lhe é familiar, fácil, evidente, e que impedem-na, por conseguinte, de elevar-se espiritualmente, purificar-se, para responder às exigências de um conceito objetivo. í No próprio ato de conhecer, intimamente, é que aparecem, por \urna espécie de necessidade funcional, morosidades e perturbações. Aí é que mostraremos causas de estagnação e até mesmo de regressão, aí é que revelaremos causas de inércia a que chamaremos obstáculos epistemológicos. [...] Realmente, 79
conhecemos contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos malfeitos, superando aquilo que, no próprio espírito, constitui obstáculo à espiritualização. l
Dentre esses obstáculos, Bachelard cita a experiência inicial (ingénua e sobrecarregada), as generalizações apressadas, as armadilhas das palavras, a necessidade de unidade e utilidade, a "sedução substancialista" ou as projeções animistas.jA fruta está sempre bichada. Ao ceder a uma espontaneidade enganosa, o pensamento trava-se e condena-se a deixar escapar seu objeto. Ele se ouve demais: ora, a ciência é uma ascese intelectual e só tem que produzir pensamentos displicentes e condescendentes?] O mesmo ocorre com aquilo que poderíamos chamar de obstáculo socioculturaljTÓ pensamento forma-se e educa-se no tubo de ensaio social, em meio a valores, experiências, representações coletivas que ele coteja e mais ou menos assimila. Ele se acha, assim, todo moldado por referências implícitas ao contexto sócio-histórico, a seus problemas e modelos, às mentalidades, à escala de valores, às obras da cultura, às imagens ostentatórias e aos símbolos recalcados etc. A partir de então, em cada uma de suas atividades, se não tomar cuidado, ele fatalmente porá em cena esses fantasmas que o povoam. Porque, desde o despertar primeiro, ele mergulha num mundo particular, abarrotado de signos, uma consciência espontânea é sempre uma consciência alienada. Eis por que Bachelard exige que ele seja "psicanalisado" se quiser pretender um conhecimento objetivo do mundo. Porém a questão, aqui, é saber se o obstáculo pode ser eliminado. Ele não diz respeito, realmente, à preguiça de uma consciência individual (como no bestiário da ciência que constitui, em suma, o livro de Bache( lard) mas à própria estrutura do espírito_coletivoique_^--o pi ^espírito científico./Na análise de Bachelard, ãs~cfi^nces de G. Bachelard, La formation de 1'esprit scientifique [A formação do espírito científico], Vrin, 1938, pp. 13-14. 80
atingir a objetividade não seriam comprometidas pelas falhas de sujeitos psicologicamente incapazes de se elevar até o nível, puramente racional, do sujeito epistêmico (cf. pp. 57-58). Elas estariam apenas demasiado abarrotadas de elementos nãocognitivos para se comportarem como puras inteligência§Z? Mas, e quanto às chances, aqui, de atingir a universalidade, se o próprio sujeito epistêmico (em outras palavras, o ideal sobre o qual se forja o consenso da comunidade científica) aparece estruturado nos termos de uma mentalidade coletiva bem particular? Como produto de uma sociocultura determinada, pode a ciência preservar sua identidade puramente espiritual? risto é o que se deve examinar, considerando sucessivamente como a sociedade determina as formas e conteúdos do saber científico/^ As formas sociais da ciência
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formas são os princípios metodológicos e epistemológicosfdentre os quais os critérios de verdade) que orientam a pesquisa científica e a distinguem das outras atividades de conhecimento ou de cultura (ciências ocultas, mística, filosofia, arte etc.jjNa verdade, seria um erro acreditar, à maneira de Descartes, que se pode fazer tabula rasa de todo condicionamento anterior e que a busca da verdade (ou a empreitada científica) só é devedora, exclusivamente, da luz natural da razão que, como o sol, brilharia identicamente para todos os homens . Edmund Husserl coloca a questão decisiva procurando em toda operação da consciência a "intencionalidade" que a fundamenta. Quais são, portanto, a mira ou o movimento da consciência que constituem o procedimento, e, correlativamenDo mesmo modo que o sol é o único sol que ilumina todas as coisas e as aquece, também a razão é única" (René Descartes). Citado por E. Husserl, La crise dês sciences européennes... [A crise das ciências europeias...], 1936. Gallimard, 1976, P-376.
te, o mundo, próprios à ciência moderna? Que vocação do espírito tenta se realizar através desta, e por que o tipo de humanidade europeia foi o único a ouvir este apelo? O que, em seu modo de organização social ou nos acontecimentos que atravessou, o predestinava a esta missão? Que projeto sociocultural anterior, implícito ou latente, o projeto científico substitui? Retomando sumariamente as respostas que Husserl dá a todas essas questões3, vamos então tentar encontrar, no fundo, o que, metodológica e epistemologicamente, está no fundamento de nossa ciência (cf. texto 17).
Estes três caracteres da ciência juntam-se para fixar, no homem europeu, a ideia de uma tarefa infinita: o espaço matemático estende-se diante dele como uma totalidade infinita da qual ele só explorou uma parte, na qual pode apoiar-se para prosseguir sua obra. Um olhar para o infinito: esta é, para Husserl, a ambição essencial e secreta da humanidade europeia, o "Télos" (ou o objetivo, a finalidade) que nossa ciência herda...
Husserl: uma ciência da totalidade
Eis, portanto, a intencionalidade própria à consciência que se engaja na aventura científica. Ela fixa explicitamente nesta suas modalidades espirituais ao mesmo tempo que coloca os caracteres do mundo que é seu correlato. Este será matéria unificada e homogénea, igualada pelo recurso à quantificação e à abstração.
Esta repousa, antes de mais nada, sobre o poder da matemática e a concepção de um espaço puramente geométrico. Husserl mostra que nada resiste ao domínio dos números: que a multiplicidade das formas qualitativas cede perante seu poder de unificação e quantificação, que sua precisão dissipa a névoa que envolve os fenómenos, que sua abstração permite tudo englobar. Sob o aspecto enganoso de idealidades puras, desinteressadas, apartadas do real, a matemática é, portanto, um poderoso instrumento de contraste teórico do mundo. Um segundo traço distintivo de nossa ciência é aquilo que Husserl chama de "atitude teorética" (p. 362). Quer dizer, uma espécie de separação do mundo que permite ao homem não mais apenas mover-se nele, pelo olhar e pela ação, sendo comandado por interesses essencialmente práticos. Apartado dele, "tornase um espectador desinteressado, um olhar lançado no mundo" (p. 365). Ele pode tratá-lo objetivamente, examiná-lo, dominálo ainda melhor porque se desvia (imediatamente) de toda solicitação prática. ÍHusserl nota, enfim, que o saber científico é imperecível ou intemporal, logo, transmissível e cumulativa. 3. E. Husserl, La crise dês sciences européennes..., 1976, p. 376. 82
O Télos espiritual da humanidade europeia [...] acha-se no infinito, é uma ideia infinita, na qual, de maneira oculta, o conjunto do devir do espírito quer, por assim dizer, desembocar.
Marcuse: uma ciência dominadora Prolongando a análise de Husserl, Herbert Marcuse4 esforça-se para precisar a natureza da sociedade e do projeto social que se dissimula por trás da empreitada científica. Para ele, a ciência é, por essência (e não só em suas aplicações) "tecno-lógica" (p. 198). Já como ciência pura, ela apreende a priori o mundo em sua instrumentalidade. Ela o coloca como matéria quantificável, dócil à abstração, à matemática e às operações do nosso entendimento. O logos (ou a racionalidade) que o anima é pqr essência técnico, manipulador, dominador. 4- H. Marcuse, Uhomme unidimensionnel [O homem unidimensional], Points, Seuil, 1964,cap. 6.
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r Os conceitos da física matemática são como ferramentas: são feitos mais para operar que para expressar ou refletir o que é. E se os físicos contemporâneos se questionam dubitativamente sobre a existência de uma realidade "numenal", de uma realidade em si que ficaria "velada" aos olhares da ciência5; se eles geralmente concordam que o único real que conta é o real físico, aquele que é estruturado e conceituado pelo conhecimento que admitimos nele, Marcuse vê em tal idealismo a confissão da vontade de poder que rege a ciência. Na verdade, se a realidade ontológica do mundo se desvanecer por trás de esquadrinhamento do real matematizado, o campo fica livre para o prosseguimento das operações. Elas não têm que se deter diante de nenhum mistério que poderia questionar sua legitimidade; só têm que vencer as resistências que subsistem. Marcuse cita Bachelard: A natureza é colocada sob o signo do homem ativo, do homem que insere a técnica na natureza.6
E ele conclui que o que se lê numa tal empreitada é "a lógica da dominação", a visão de mundo própria a uma sociedade que ligou seu ser e sua sorte à exploração da natureza e do homem. O sofista grego Protágoras proclamava que "o homem é a medida de todas as coisas"; a Bíblia atribuía ao homem "submeter a terra e dominar os peixes do mar, os pássaros do céu e todos os animais".fO grego é o judaico-cristão, as duas correntes que alimentam nossa civilização, juntam-se então para fixar-lhe orientação^fralileu, ao fundar a ciência moderna, forneceu-lhe os meios para realizá-la e seu contemporâneo
5. Cf. por exemplo Robert Blanché, La science physlque et Ia réalité [A ciência física e a realidade], PUF, 1940; Bernard d'Espagnat, A Ia recherche du réel [Em busca do real], Gauthier-Villars, 1980. 6. G. Bachelard, Uactivité rationaliste de Ia physique contemporaine [A atividade racionalista da física contemporânea], PUF, 1951, p. 7.
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Francis Bacon publica em 1620 o Novum Organum, segunda parte do seu imenso projeto de restauração das ciências (Instauratio Magna) sob o título completo: "Novo Instrumento, ou Direções exatas sobre a arte de interpretar a natureza e estabelecer o império do homem". Através dos princípios epistemológicos de uma ciência que se pretende, todavia, pura e indiferente às aplicações que se fará dela, não é, portanto, a Razão eterna e universal que se expressa. E uma forma de racionalidade específica, que traz em si o projeto de uma sociedade dominadora. Saber fica igual a poder (cf. texto 18). í A Razão comporta-se em relação às coisas como um ditador em relação aos homens: ele os conhece na medida em que pode j/ ,^4 manipulá-los. O homem de ciência conhece as coisas na medida Vf em que sabe fazê-las. Utiliza assim seu em si para si mesmo. " Nesta metamorfose, a natureza das coisas reveía-se sempre a mesma: o substrato da dominação^
Eis por que, visando, para terminar, o advento de uma sociedade liberta e de um mundo pacificado, Marcuse afirma que a própria ideia de Razão aí seria subvertida e que "a ciência chegaria a conceitos da natureza essencialmente diferentes, estabeleceria fatos essencialmente diferentes" (p. 210) (cf. texto 19). A verdade: uma concepção conquistadora
Não é mesmo de se esperar que se encontre assim como que a assinatura de uma sociedade de técnicos e dominadores ao pé da carta implícita que funda a ciência moderna. Lembremo-nos do contexto no qual esta ciência nasceu! Mas é preciso ir mais longe e questionar a própria noção de verdade que Max Horkheimer, Theodor Adorno, La dialectique de Ia raison [A dialética da razão], Gallimard, 1947, p. 27. Estes dois filósofos, amigos de Marcuse, pertenciam, como ele, à "Escola de Frankfurt".
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r imanta e comanda todas as suas operações. Na medida em que a verdade intervém como sanção final de um conhecimento, ela é frequentemente colocada como um absoluto, independente das formas e caminhos que este conhecimento toma emprestados. Como o juiz em sua tribuna, ela transcenderia os múltiplos saberes chamados a comparecer perante ela e pronunciaria o veredicto do real em si. Ora, não é nada disso. A verdade está habilitada a tomar decisões porque esta habilitação supõe uma correspondência a priori entre o objeto e o critério de julgamento. No contrato implícito que fundamenta um modo de conhecimento e reúne as inteligências que o porão em ação, acham-se inclusos desde o início os critérios e modalidades segundo os quais os resultados deverão ser validados. A verdade é simultaneamente juiz e parte.|Ela não se pavoneia como um absoluto, mas faz-se relativa e adapta-se aos saberes cujo valor ela é e determina. Eis por que ela assume diferentes sentidos em , ciências, em filosofia, em psicologia, ou ainda em arte e religião, por exemplo (cf. texto 20). \ f ' tA J^ (J3ob que signo de verdade a empreitada científica se Ir inscreve então? Sumariamente, pode-se responder como Jean J Ullmo8 que "o pensamento científico moderno", experimental e matemático, presta obediência a um duplo valor: eficácia e coerência. Ele se submete primeiro à exigência de verificação, a única capaz, diz Claude Bernard, de precaver-nos contra os delírios do sentimento e da razão. "Mas qual é ao certo a base desse critério experimental?", pergunta ele9. Sem dúvida, "os fatos é que julgam a ideia" (p. 88), porém "um fato nada é por si só, ele só vale pela. ideia que a ele se vincula" (ibid.).}"No método experimental como em toda parte, o único critério real é [portanto] a razão" (ibid.}. Mas como procede o raciocínio 8. Jean Ullmo, La penses scientifique moderne [O pensamento científico moderno], Flammarion, 1969. 9. Claude Bernard, Introduction à l'étude de Ia médecine expérimentale [Introdução ao estudo da medicina experimental], Garnier-Flammarion. (É o autor quem grifa aqui as diversas citações)
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/|xperimental? Ele visa atingir o "determinismo" (p. 92) da natureza, isto é, das relações necessárias entre os fenómenos^ "Ele chega por esse meio à lei que lhe permite assenhorar-se do fenómeno" (p. 93). Mas o que lhe assinala e prova que ele está próximo desta base do determinismo é que, na montagem experimental, ele se mostrou capaz de "prever^ e dirigir os fenómenos"^. 93). Jean Ullmo comenta: A verdade está voltada para o futuro, a previsão, a ação sobre as coisas; ela não é mais o reflexo de uma verdade intemporal, incluída nas coisas, (p. 203)
E ele remete a William James, fundador do pragmatismo, que identifica o verdadeiro com o que é útil e eficaz. Ele o cita com base em Bergson: O verdadeiro não copia algo que foi ou que é; ele anuncia o que será, ou melhor, prepara nossa ação sobre o que vai ser. (Cf. texto 21.)
A solidariedade de tal concepção de verdade com a tendência ativista e dominadora que nos pareceu ser o nervo da empreitada científica é evidente. Jean Ullmo, porém, observa que este não é senão um aspecto da verdade científica. O espírito não pode, na verdade, satisfazer-se com um critério prático desses, que subordina o conhecimento à ação. O verdadeiro deve também responder a um critério de coerência. Coerência interna, é claro, da ideia ou da teoria que não encerram contradição. Mas coerência ou coesão externas também, que permitem integrar o novo conhecimento ao corpo de saber já constituído ou ordenar o campo do saber em vastas sínteses teóricas. Elas respondem assim à necessidade de unidade de nosso espírito, para o qual explicar é unificar. À primeira vista, só estamos tratando aqui de uma busca propriamente espiritual e de um esforço desinteressado. Mas a análise de Husserl deixou-nos de sobreaviso: ao localizar assim o verdadeiro numa espécie de panóptico, a ciência está, ainda aí, acima de qualquer suspeita e isenta de qualquer segunda intenção dornina87
dora?ÍPara poder assim circunscrever e cercar o real, com o olhar e o pensamento, ela teve que primeiro prendê-lo em suas redes e aprisioná-lo. Constata-se portanto que, em sua própria essência, o conhecimento científico é epistemologicamente determinado pelas intenções sociais, pelos critérios da verdade e pelo erro, sendo eles também sociologicamente relativos10.]
J Os conteúdos sociais da ciência
Mas se os dados socioculturais intervêm como obstáculo epistemológico, no sentido estrito, é nos conteúdos, mais que nas formas do saber, que se poderá verificá-lo. Os conteúdos: são os fatos, devidamente registrados, catalogados e relacionados; 6s conceitos, nos quais se exprimem os próprios fatos e suas lígáçõès~necessárias ou leis; e os mpdelos_teóricos. que permitem compor, representar e explicar fatos e leis. Consideremos, em primeiro lugar (sem entrar em todos os desenvolvimentos que um assunto assim pode admitir) o estatuto dos fatos científicos. O cientificismo comum baseia-se naquilo que, jogando com as palavras, poderíamos chamar de "feit-ichismo"*: uma concepção ingénua e ilusória da natureza e do valor dos fatos sobre os quais é construído o conhecimento científico. Desde Francis Bacon11, realmente considera-se geralmente os fatos de experiência como absolutos. Neles, a própria Natureza é que falaria diretamente e sem ambiguidade, e eles constituiriam, portanto, as bases sólidas e obrigató-
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Cf. Wright Mills, Power, politics and people, Nova Iorque, 1963. P. A. Sororin, Social and cultural dynamics, vol. 2, Nova Iorque, 1937. Em francês, fait-ichisme. O autor joga com o som da palavra fait [fato], que se assemelha ao som de/ê, de fétichisme. Optamos, em português, pela inserção de um i na palavra/èízc/iís/no, tentando o mesmo efeito: relacioná-la com fato. (N.T.) Francis Bacon (1561-1626), em sua metodologia da ciência, Novum Organum (cf. pp. 84-85), na qual ele previne contra os "ídolos" do espírito para se ater aos fatos experimentais.
rias de qualquer conhecimento. O valor da ciência, em relação a outros modos de conhecimento, teria mesmo como preocupação dar a primeira e a última palavra aos fatos. "Um fato é um fato": esta tautologia interrompe qualquer discussão encurralando a ciência no campo da positividade. Ora, as coisas são mais complexas. Em primeiro lugar,/um fato só tem valor científico passando do singular para o regularT] Isolado, fica insignificante, e, para impor-se, deve repetir-se. Isto traz todo o problema da indução, isto é, das condições de validade da generalização, problema que não nos diz respeito aqui. Porém, por outro lado, um fato (de observação ou de experiência) não é um dado bruto e massivo. Contra um empirismo simplista, Claude Bernard já nos advertiu (cf. pp. 86-87) que "um fato nada é por si só, ele só vale pela ideia que se vincula a ele"; e Gaston Bachelard acrescenta que um fato é sempre feito, isto é, fabricado. Na verdade, já no plano estrito da observação, o que cai sob nossos sentidos não é uma simples cópia do real, um registro passivo de um dado objetivo, como atestam suficientemente as diferentes percepções que têm disso as outras espécies animais12. (Mas, sobretudo, um fato "científico" é um fato "sintético", na dupla acepção da palavra: geral e artificialmente produzido. Ele é selecionado, enquadrado, in-formado, depurado, interpretado, referido, enunciado etc.; em suma, já todo impregnado de teoria e de Iinguagem7\ gfcj^ /A observação científica é sempre uma observação polémica; ela \confirma ou invalida uma tese anterior, um esquema prévio, um plano de observação; ela mostra demonstrando; hierarquiza as aparências; transcende o imediato; reconstrói o real após haver reconstruído seus esquemas. Naturalmente, a partir do momento que se passa da observação à experimentação, o caráter polémico do conhecimento fica mais nítido ainda. É preciso então que o fenómeno seja triado, filtrado, depurado, vertido no molde dos instrumentos, produzido no plano dos
Cf. J. von Uexkúll, Mondes animaux et monde humain [Mundos animais e mundo humano], Gonthier, 1956; Vitus D. Droscher, The magic of the senses, Nova Iorque, Harper and Row, 1971.
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instrumentos. Ora, os instrumentos não passam de teorias materializadas. Originam-se deles fenómenos que carregam em seu todo a marca teórica, j
O fato científico não é, portanto, um fac-símile do fenómeno real, más um misto de acomodação e assimilação. Não é de se estranhar então que esteja infectado de elementos estranhos e, entre outros, de elementos sociais como crenças, categorias mentais, modos de pensar ou falar próprios de uma sociedade e de uma época. Paul Feyerabend compara estes elementos a "cavalos de Tróia que é preciso vigiar bem de perto"14. Introduzidos sob uma capa de devoção factual no conhecimento científico, eles ameaçam, efetivamente, de dentro, a integridade deste. O peso dos fatos: Pasteur /Pouchet Tomemos o exemplo dos fatos brandidos por Louis Pasteur na controvérsia sobre a geração espontânea. Para os hagiógrafos que contam a lenda dourada da epopeia científica, Pasteur é o símbolo do cientista rigoroso e generoso, zeloso da verdade e benfeitor da humanidade. Mesmo quando não se atêm ao santinho com a figura do velho cientista condoído com o pastorzinho alsaciano que acaba de salvar da raiva, eles nos apresentam um Pasteur descobrindo os agentes microbianos das fermentações e derrotando o obscurantismo que se exprimia na teoria da geração espontânea. Ora, sobre este último ponto, a história é menos simples que a lenda. Em primeiro lugar, a "vitória" de Pasteur, consagrada pelo veredicto de uma Comissão da Academia de Ciências em 1864, nada tem de decisiva, visto que a polémica prosseguirá ainda por alguns anos com Bastian, Tyndall ou Cohn. Em seguida, o principal adversário de Pasteur, Archimède Pouchet, não é um espírito 13. Gaston Bachelard, Lê nouvel esprit scientifíque [O novo espírito científico], PUF, 1934, p. 12. 14. Paul Feyerabend, Contre Ia méthode [Contra o método], op. cit., p. 79.
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jnedíocre; é um professor eminente e rigoroso, um experimentador metódico. As duas teses em confronto são, conforme confessa o próprio Pasteur, igualmente racionais e plausíveis, pouchet afirma que, num frasco hermeticamente fechado, matéria orgânica em decomposição gera espontaneamente microorganismos. O que significa que existe uma força vital difusa na matéria e capaz de criar a qualquer momento novos seres vivos. Para Pasteur, se animálculos se desenvolvem e aparecem, é porque foram introduzidos em germe no frasco e ele questiona a vedação deste. A vida só se reproduz a partir de seres semelhantes, e os sémens invisíveis dos micróbios que pululam no frasco devem ter sido introduzidos pelo ar, no qual estavam em suspensão. Entre as duas teses, só os fatos podem decidir. Cada um dos adversários admite isso, o que refina suas próprias experiências e desafia o outro a produzir a contraprova: É uma questão de fato, diz Pasteur em sua conferência à Academia das Ciências em 7 de abril de 1864; eu a abordei sem ideia preconcebida, tão disposto a declarar, se a experiência me impusesse a confissão disto, que existem gerações espontâneas, quanto estou convencido, hoje, de que aqueles que as afirmam estão com os olhos vendados.
Mas que dizem os fatos? Eles são antes indecisos e, a priori, menos favoráveis a Pasteur que a Pouchet: na verdade, basta, para este último, produzir em um frasco vedado uma infusão turvada pela presença microbiana, enquanto Pasteur deve manter estéreis todos os balões de ensaio, ou pelo menos constatar sua contaminação por agentes externos. Ora, em Paris como em Rouen, nos laboratórios tanto de um como do outro, a maioria do frascos se turva... A vida pulula no laboratório dos anos 1860. Se Pouchet quer fatos, ele os recolhe a plenos frascos. 15
15. Bruno Latour, Éléments d'histoire dês sciences, op. cit., p. 436.
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Sabe-se que nas alturas o ar é mais puro... Pasteur vai a Montenvers, perto de Chamonix, e, a dois mil metros, consegue uma infusão límpida. Não seja por isso! Pouchet sobe a três mil metros, no pico da Maladetta, nos Pirineus, e, com os mesmos frascos de pescoço de cisne, suas infusões se turvam... Para que lado pende portanto a balança dos fatos? Historiadores e sociólogos das ciências16 demonstraram depois que, no prato de Pasteur, outros elementos, sócio- e ideo-lógicos, pesaram com um peso determinante. O fato não é mais puro e estéril que os frascos! Ele é prenhe (e forte) de ideias ou interesses adventícios que é indispensável desvendar. Antes de mais nada, a controvérsia sobre a geração espontânea está ligada, nos espíritos da época, ao escândalo provocado pela teoria darwiniana da evolução. Pasteur admite isso no início de sua conferência de 1864: se a vida pode surgir espontaneamente da matéria, eis um ângulo suplementar a favor da tese anticriacionista, materialista e ateia dos darwinianos. Ora, Pasteur é um bom católico, bem estabelecido na intelligentsia, goza da consideração do imperador, e a seu conservantismo repugna a ideia de que a vida possa não se reproduzir de maneira idêntica, mas gerar subitamente seres diferentes. Por outro lado, por trás desse caso de micróbios, enfileiram-se interesses industriais e económicos que nada têm de microscrópico. Pasteur foi orientado para essas questões microbianas por uma solicitação de cervejeiros de Lille, inquietos ao verem sua cerveja azedar após a fermentação. Ele demonstrará, através de uma série de experiências, que as fermentações (da cerveja, do vinagre, do leite...) resultam de agentes biológicos, e não de reações químicas, e que a cada uma delas corresponde um fermento específico. As "doenças" ou acidentes constatados pelos industriais provêm de fermentos 16. Bruno Latour, Lês microbes. Guerre etpaix [Os micróbios. Guerra e paz], Métailié, 1984; J. Farley, G. L. Geison, "Science, politics and spontaneous generation in nineteenth-century France: The Pasteur-Pouchet debate", La science telte qu'elle se fait [A ciência como ela se faz], Pandore, 1982.
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estrangeiros cuja ação perturba aquela do fermento normal Procedendo à segregação dos micróbios e isolando um fermento puro, evita-se estes inconvenientes. Ora, a teoria de Pouchet que introduz a "heterogenia" (a palavra é dele), isto é, a geração de um organismo a partir de um tronco dissemelhante, volta a semear a desordem nesta bela ordem biológica e económica restaurada. Que se pode fazer com uma teoria dessas? Nada: ela é ruinosa antes de ser falsa... Pasteur confessa, aliás, após os primeiros resultados experimentais que invalidam suas hipóteses: Não tornei públicas essas experiências pois as consequências' que seria preciso deduzir delas eram graves demais para que eu não receasse alguma causa de erro escondida, apesar do cuidado que eu tivera para torná-las irrepreensíveis.
Daquilo que o futuro dará razão a Pasteur, não vamos deduzir que ele só se curva ante a evidência dos fatos e a sanção do real. Não cedamos à ilusão retrospectiva que Bergson chamou de "movimento retrógrado do verdadeiro": "este erro que vicia nossa concepção do passado"18 reescrevendo o que foi à luz do que é e fixando para os acontecimentos um curso "lógico" que bem poderia ter se desenrolado de outro modo/Se os fatos deram razão a Pasteur, é porque eles não estavam sozinhos na balança; elementos sociológicos já serviam de contrapeso para todas as provas acumuladas por PouchetT) A impureza dos conceitos e modelos ÍMas se os fatos científicos são suspeitos de contaminação sociológica e ideológica, com muito mais razão o mesmo ocorrerá com esses elementos cognitivos mais "teóricos" que são os conceitos e os modelos, ou, mais além, as construções teóricas 17. Citado por Bruno Latour, Éléments d'histoire dês sciences, op. cit., p. 436. 18. Henri Bergson, La pensée et lê mouvant, (Euvres [O pensamento e o móvel, Obras], du Centénaire, PUF, p. 1264.
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que os integram. Na verdade, os modos de pensar e de falar próprios da ciência refletem antes de mais nada estruturas e necessidades do espírito humano e só se relacionam de maneira secundária ou indireta com o real.) Nós é que introduzimos a ordem e a regularidade nos fenómenos a que chamamos Natureza, e poderíamos encontrá-los nela se eles não tivessem sido originariamente colocados aí por nós ou pela natureza de nosso espírito.
Por conseguinte, os elementos nos quais se articulam esta linguagem e este pensamento não podem simplesmente corresponder a elementos reais. É ainda uma daquelas ingenuidades veiculadas pela vulgata cientificista a ideia de uma correspondência exata entre as palavras e as coisas, de uma perfeita adequação entre o pensamento e o real, pretensos penhores da verdade científica. Os seres que a ciência nomeia e pensa (resistência, onda, átomo, elétron, campo elétrico etc.) não têm existência "real" no sentido de uma existência independente das operações mentais e experimentais às quais se entregam os cientistas. Eles não existem como existem a mesa, a árvore ou meus óculos: a saber, fora de nós e do conhecimento que tomamos deles. É preciso, como diz Bachelard, "desrealizar" todos esses seres, devolver-lhes o estatuto de produções mentais e amplamente hipotéticas. Pois, de outro modo, como se compreenderá que eles mudem e desapareçam no curso da história das ciências? Como se explicarão as metamorfoses do átomo há meio século ou o desaparecimento do flogisto, do éter, da atração universal de Newton, da inércia eletromagnética do elétron etc.?(Conceitos e modelos teóricos são criações do espírito a propósito de um real que fica velado, destinadas a dar conta do esquadrinhamento e dos interrogatórios aos quais os submetemos. Eles não têm outro alcance ontológico.^] j
19. Emmanuel Kant, Critique de Ia raison puré [Crítica da razão pura] (cf. também a parábola de Einstein, pp. 43—44, e texto 11).
Mas, pelo menos, alguém dirá, eles são de natureza puarnente inteligível; projeções, como pensava Kant, de nossas tegorias mentais e racionais, ^s modificações que os afetam medida dos progressos da ciêncjatoqduziriam então o refin ainento de nossa representarão ao^íesmo tempo que sua crescente influência sobre a naturezã^p espírito é encarnado, ele respira o ar do tempo e os miasmas sociais, e a razão é novoada por presenças intrusas. É preciso desalojar esses elementos parasitas, descobrir as categorias sociais em ação por trás das categorias mentais e os modelos socioculturais sob os modelos "puramente"(?D científicos. Que se pense, por exem; pio, na persistente influência dos modelos técnico-industriais em'biologia ou física. Descartes pensava o organismo animal como uma máquina ou autómato; seu contemporâneo Harvey estudava a circulação sanguínea como um sistema hidráulico e comparava o coração a uma bomba aspirante e compressora. Hoje, André Lwoff20 aproxima o metabolismo da célula do funcionamento de uma fábrica automatizada e com base em Norbert Wiener os dispositivos criados pela cibernética forneceram l os modelos (dentre os quais o famoso feed-bacK) que permitem entender a auto-regulação dos seres vivos e os circuitos neuro| lógicos. E que dizer do computador, com sua linguagem binária, seus algoritmos, seus quadros de inputs e outputs, que se coloca como provedor universal de modelos científicos? Talvez se pretenda que estas sejam, sobretudo aí, metáforas, figurações pedagógicas necessárias aos textos de vulgarização, mas que elas não têm mais curso na língua esotérica, falada no seio da comunidade científica. Observar-se-á que nos laboratórios e revistas especializadas a ciência é mais austera, que ela se veste de luto na pureza das equações e representações matemáticas, só consentindo em vestimentas mais duvidosas para apresentar-se em público e poder andar pelas r uas. Porém, como toda dupla linguagem, esta deve ser psicaI l
• André Lwoff. L'ordre bioloeigue [A ordem biológica], Marabout, 1969, pp. 76 ss, 110-111.
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que os integram. Na verdade, os modos de pensar e de falar próprios da ciência refletem antes de mais nada estruturas e necessidades do espírito humano e só se relacionam de maneira secundária ou indireta com o real. J Nós é que introduzimos a ordem e a regularidade nos fenómenos a que chamamos Natureza, e poderíamos encontrá-los nela se eles não tivessem sido originariamente colocados aí por nós ou pela natureza de nosso espírito.
Por conseguinte, os elementos nos quais se articulam esta linguagem e este pensamento não podem simplesmente corresponder a elementos reais. É ainda uma daquelas ingenuidades veiculadas pela vulgata cientificista a ideia de uma correspondência exata entre as palavras e as coisas, de uma perfeita adequação entre o pensamento e o real, pretensos penhores da verdade científica. Os seres que a ciência nomeia e pensa (resistência, onda, átomo, elétron, campo elétrico etc.) não têm existência "real" no sentido de uma existência independente das operações mentais e experimentais às quais se entregam os cientistas. Eles não existem como existem a mesa, a árvore ou meus óculos: a saber, fora de nós e do conhecimento que tomamos deles. É preciso, como diz Bachelard, "desrealizar" todos esses seres, devolver-lhes o estatuto de produções mentais e amplamente hipotéticas. Pois, de outro modo, como se compreenderá que eles mudem e desapareçam no curso da história das ciências? Como se explicarão as metamorfoses do átomo há meio século ou o desaparecimento do flogisto, do éter, da atração universal de Newton, da inércia eletromagnética do elétron etc.?(Conceitos e modelos teóricos são criações do espírito a propósito de um real que fica velado, destinadas a dar conta do esquadrinhamento e dos interrogatórios aos quais os submetemos. Eles não têm outro alcance ontológico.^
19. Emmanuel Kant, Critique de Ia raisonpure [Crítica da razão pura] (cf. também a parábola de Einstein, pp. 43-44, e texto 11).
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Mas, pelo menos, alguém dirá, eles são de natureza pumente inteligível; projeções, como pensava Kant, de nossas tegorias mentais e racionais, ^s modificações que os afetam medida dos *•progressos da ciência traduziriam então o refiIiao m-"»» " v? tí/jái&q^^ namento
de nossa representação aoenmesmo tempo que sua crescente influência sobre a naturezaJO espírito é encarnado, ele respira o ar do tempo e os miasmas sociais, e a razão é povoada por presenças intrusas. E preciso desalojar esses elementos parasitas, descobrir as categorias sociais em ação por trás das categorias mentais e os modelos socioculturais sob os modelos "puramente"(?0 científicos. Que se pense, por exemplo, na persistente influência dos modelos técnico-industriais em biologia ou física. Descartes pensava o organismo animal como uma máquina ou autómato; seu contemporâneo Harvey estudava a circulação sanguínea como um sistema hidráulico e comparava o coração a uma bomba aspirante e compressora. Hoje, André Lwoff20 aproxima o metabolismo da célula do funcionamento de uma fábrica automatizada e com base em Norbert Wiener os dispositivos criados pela cibernética forneceram os modelos (dentre os quais o famoso feed-bacK) que permitem entender a auto-regulação dos seres vivos e os circuitos neurológicos. E que dizer do computador, com sua linguagem binária, seus algoritmos, seus quadros de inputs e outputs, que se coloca como provedor universal de modelos científicos? Talvez se pretenda que estas sejam, sobretudo aí, metáforas, figurações pedagógicas necessárias aos textos de vulgarização, mas que elas não têm mais curso na língua esotérica, falada no seio da comunidade científica. Observar-se-á que nos laboratórios e revistas especializadas a ciência é mais austera, que ela se veste de luto na pureza das equações e representações matemáticas, só consentindo em vestimentas mais duvidosas para apresentar-se em público e poder andar pelas ruas. Porém, como;toda dupla linguagem, esta deve ser psica20. André Lwoff, Uordre biologique [A ordem biológica], Marabout, 1969, pp. 76 ss, 110-111.
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nalisada: que recalque, que tara oculta, que influências inconfessáveis dissimulam-se sob a linguagem polida da matemática e só se manifestam nas palavras mais descontraídas do vulga. rizador? O físico Jean-Marc Lévy-Leblond lança o desafio: VÉU aí bem mais que uma simples questão de terminologia, e, portanto, de escolha, aparentemente arbitrária, de usar esta ou aquela palavra da linguagem usual para designar (de-signar?) um conceito físico cuja determinação própria está ligada a um formalismo abstrato. Não se trata, aí, de uma simples relação de significante (a palavra) com um significado (o conceito), já que, por sua própria preexistência no seio da linguagem corrente, o termo escolhido evocará uma série de conotações bem determinadas (em particular ideologicamente!) que reagirão sobre o sentido atribuído a partir de então ao conceito e, por conseguinte, sobre a maneira como ele será utilizado e, às vezes, explorado. Valeria a pena examinar, deste ponto de vista, o vocabulário da mecânica clássica. Trabalho, força, energia, potência etc., tantasjpalavras cujo vínculo com a produção económica parece certo. (Cf. texto 22.)
Lévy-Leblond atém-se à marcação ideológica das palavras usuais. O químico Ilya Prigogin cita, contudo, um exemplo que sugere que mesmo um modelo "puramente" matemático não está isento de condicionamento social: A descoberta da insuficiência dos conceitos da dinâmica clássica é inseparável de uma atmosfera geral de 'crise' que reinou, particularmente na Alemanha, depois da Primeira Guerra Mundial. Parece mesmo que muitos, a exemplo de Heisenberg que os inventou, tenham vivido como que uma libertação, como que a oportunidade de uma renovação, a introdução, em física, de uma noção totalmente nova, a noção de operador. É preciso, todavia, ressaltar que, qualquer que seja o contexto sociocultural de sua invenção, os operadores impuseram-se em física porque constituem o único método formulado até aquele dia para levar em conta a quantificação.
21. Jean-Marc Lévy-Leblond, "L'ideologie de/dans Ia physique contemporaine" [A ideologia da/na física contemporânea], Lês Temps Modernes, rf 337-338, agostosetembro de 1974. 22. I. Prigogins, I. Stengers, La nouvelle alliance, op. cit., p. 227.
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A linguagem matemática pretende ser transparente, mas só se trata, muitas vezes, de falsa transparência, paga com o preço da dissimulação. "Pois a matemática é, em última instância, a sintaxe pura, isto é, o funcionamento puro, na obliteração total, e tão vantajosa, do conteúdo semântico (entenda-se do conteúdo social!)."23 Mesmo tomando cuidado em pôr a necessidade de direito desta descoberta ao abrigo de sua contingência de fato, Prigogin não deixa de reconhecer a influência social sobre os conteúdos teóricos da ciência. Bem mais, a resistência do conceito é que provoca sua purificação e permite-lhe superar os interesses profissionais, económicos, ideológicos ou outros, ligados à sua produçãoí A prova é sempre provação e supõe um negativo a ser superado einvertido. Portanto, ela mais comprova esta impureza original que a desmente.1 4 O exemplo das teorias sobre o influxo nervoso
Vamos, porém, acompanhar agora um exemplo mais detalhado, que demonstra que o modelo social não é só uma vestimenta secundária, adjacente e contingente, da pura teoria. Muitas vezes ele está na origem da invenção; ele desencadeia a ideia (que sofrerá em seguida um aprimoramento), fecunda e guia as pesquisas ulteriores. Para bem apreender, efetivamente, a função dos conceitos metafóricos, é preciso, sem dúvida, admitir-lhes um poder heurístico mais do que um simples poder de expressão, de transcrição ou tradução. Entendida no sentido etimológico ou no sentido lato, a metáfora é o meio próprio da invençãofO problema constitutivo da ciência, como vimos (p. 43), é superar o hiato que separa o espírito do real. Ora, a metáfora "transporta" o espírito: para o concreto e as coisas, e de uma a outra destasT\Da pura facticidade à \_^—i
23. Georges Thill, "L'insularité scientifique" [A insularidade científica], Esprit, n2 6, 1977.
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representação inteligível, e vice-versa, não existe um caminho lógico — somente desvios metafóricos. Para preservar sua virtude heurística, seu poder de arrebatamento e de fecundação do espírito, ,o modelo conceituai não pode portanto ser puramente formal ou matemático, isto é, transcrever com a maior exatidão os ensinamentos da experiência. Ele necessita do fluxo e da aproximação analógicos, para aí desenvolver o espaço aberto à invenção e à imaginação. Mas daí por diante "o metafórico ancora a invenção conceituai na cultura"24 e no contexto social, histórico, técnico, económico etc. A ciência viva está enraizada neste terreno, rico porque impuro; ela só será separada dele quando, integrada definitivamente ao saber adquirido e tornando-se por isso mesmo atemporal e anónima, perder paulatinamente suas marcas de nascença. O exemplo que servirá para ilustrar esta função das imagens e dos modelos analógicos é-nos sugerido por François Dagognet: / Assiste-se a estranhas idas e vindas entre o biológico e os l sistemas económicos ou sociais. Eles se interpenetram. Assim, O célebre reflexo resulta, essencialmente, da projeção sobre o neuromuscular dá taylorização industrial. Sem o saber, o biólogo encerra o homem ou o animal, seu duplo experimental, na jaula de uma interpretação muito automatizante, a fim de melhor introduzi-lo nas fileiras da fábrica produtiva.2*)
ma psíquico", isto é, um sopro de uma matéria sutilíssima, vindo das cavidades do cérebro através dos nervos ocos. O conceito vem diretamente das práticas domésticas e o "pneuma" ê análogo ao sopro que reaviva as brasas. Descartes (15961650) muda o nome, mas retoma a imagem: os "espíritos animais" são um "vento sutilíssimo, ou melhor, uma chama vivíssima e puríssima"26. Descartes refere-se explicitamente às maquinarias hidráulicas "que estão nos jardins de nossos Reis" e aos órgãos "de nossa igrejas", isto é, aos modelos técnicos familiares à sua época (cf. texto 23). A imagem do balão sugere que um músculo contraído, em outras palavras, cheio de espíritos animais, aumenta de volume e peso. Em 1664, Swammerdam demonstra experimentalmente que não é nada disso. Willis (1621-1675) imagina então que os espíritos animais não afluem subitamente e com força para esticar os músculos, mas que estão disseminados pelo corpo todo, constituindo uma rede contínua, residindo alguns deles, de maneira estável, nos diferentes tecidos. Mas como, então, explicar a transmissão do influxo nervoso (ou da ordem motora) e a desproporção entre a sutileza dos espíritos animais emanados do cérebro e a potência da reação muscular? Ainda aí, as técnicas do tempo fornecem o modelo:
Ampliando a perspectiva, percorrer-se-á a largos passos a história das sucessivas teorias sobre a natureza e a transmissão do influxo nervoso.
Conhece-se bastante a amplitude e, muitas vezes, os terríveis efeitos da potência que a pólvora desenvolve por sua explosão num recinto fechado, ao passo que nos primeiros instantes do acendimento, a força transmitida pela mecha, força totalmente inofensiva, poderia ter sido anulada por uma leve pressão da mão.
Evoquemos primeiro, a título de lembrança, a concepção de Galeano, médico grego do século II, que havia constatado que fazendo-se uma ligadura num nervo, interrompia-se a passagem do influxo nervoso. Este é concebido como um "pneu-
Os nervos não são tubos vazios; eles são cheios e o influxo propaga-se neles por capilaridade, como numa mecha explosiva que não transmite a energia mas a desperta pouco a pouco,
24. Cf. Isabelle Stengers, Judith Schlanger, Lês concepts scientifiques. Invention et pouvoir [Os conceitos científicos. Invenção e poder], La Découverte, 1989, p. 85. 25. François Dagognet, "Lês enjeux de Ia biologie", entrevista ao Magazine Littéraire, n2218s,p. 26.
26. René Descartes, Traité de 1'homme [Tratado do homem], Garnier. 27. Thomas Wills, De motu musculari, 1670. Citado em G. Canguilhem, Laformation du concept de réflèxe auxXVIf et XVIIf siècles [A formação do conceito de reflexo nos séculos XVII e XVIII], PUF, 1955, p. 177 ss.
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até o músculo em que se produz a detonação. Do fogo da pólvora preta ao fogo do âmbar amarelo, só há um passo: numa sociedade que descobre, fascinada, os prodígios da eletricidade, Galvani (1737-1798) abandona os "espíritos animais" e identifica o fluido nervoso com a eletricidade animal. O músculo comporta-se como a famosa garrafa de Leyde28, este protótipo do condensador elétrico em torno do qual se desenvolviam os jogos mundanos da época. A descarga elétrica provoca sua contração. Mas como se faz a transmissão? Se a rede nervosa é contínua, rastilho de pólvora ou onda elétrica, "é claro que o acendimento, símbolo da excitação, havendo se produzido num ponto qualquer, provocará a detonação de todo o conjunto" (Louis Lapicque, 1866-1952). As fibras nervosas não devem ser contínuas, mas contíguas: Lapicque descobre as "sinapses", estes contatos entre neurônios que deixam ou não passar a mensagem. Estamos na época em que se desenvolvem os grandes meios de comunicação, ferrovia e radiofonia. Por isso, ele encontra naturalmente seus modelos na agulha dos trens ou na determinação dos comprimentos de onda num rádio: Todo o funcionamento nervoso parece-me baseado numa espécie de ressonância análoga àquela que usa a radiofonia, a cronaxia substituindo o comprimento de onda... Ora, a cronaxia de certos elementos nervosos pode ser trocada pela ação de certos centros cefálicos, ação comparável àquela que produzimos quando viramos os botões de um aparelho receptor para sintonizá-lo nesta ou naquela emissora.
28. Condensador elétrico descoberto em Leyde (Países-Baixos) em 1745. Trata-se de uma garrafa de vidro com água pela metade, tampada com uma rolha furada por haste metálica mergulhada na água. Ela era carregada eletricamente pendurando-a pelo gancho metálico num gerador a fricção, e constatava-se a carga recebendo um abalo ao contato da mão com a haste. 29. Termo técnico introduzido por Louis Lapicque para calcular a duração de uma excitação eficaz. 30. Louis Lapicque, La machine nerveuse [A máquina nervosa], Flammarion, 1943, p. 14.
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A história, é claro, não pára por aí: resta mostrar que o que circula é informação, que circula, e não energia, como ela transpõe a passagem da sinapse, como o cérebro intervém como centro de tratamento desta informação etc. Mas este curto trajeto através das teorias basta para mostrar que, se de Descartes a Lapicque os modelos se fazem menos explicativos e mais alegóricos, eles sempre provêm desse cabedal de imagens e objetos que constitui a experiência da sociedade da época. Como as fantasias do imaginário individual, eles flutuam, derivam, atraem-se e chocam-se, para provocar as associações de ideias fecundas. O irracional social alimenta, portanto, tanto quanto parasita, a racionalidade científica. í Tanto em seus princípios como em seus resultados, a ciência pareceu-nos assim, até o fim, moldada por influências sociais. A sociedade não se comporta apenas como cliente ou consumidora de uma ciência autónoma: orientando ou quando muito desviando as pesquisas por suas demandas; explorando ou desviando os resultados para seu uso. Na verdade, ela determina a própria natureza da ciência e dos conhecimentos que esta produz/Mas então, ela não a condena por isso mesmo a não ser senão uma ideologia, uma cultura clandestina de valores e interesses sociais, ou pelo menos a ver suas colheitas comprometidas por_uma mistura indistinta de joio e de trigo? Marx chama de\ldeologia^ tudo o que, na ordem das representações intelectuais (de pretensão eterna), reflete, de maneira enviesada e mascarada, as contradições e alienações que nascem na ordem (histórica) das práticas sociais e económicas. Centrando-se nesta noção de ideologia, tentaremos (no cap. 5) precisar o alcance e os limites de uma sociologia da ciência. Ideologia ou idolatria: se o atestado de ideologia é estabelecido contra a ciência, então o ídolo cientificista desaba sobre seus Pés de barro... A^êoIõgTa^porém, não passa de um conjunto de ideias; reflexo das práticas sociais; ela transita por um modo de organização e um funcionamento institucional. É o que se deve considerar agora.
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4. CIÊNCIA E SOCIEDADE: O FUNCIONAMENTO INSTITUCIONAL
Até o século XVIII, a ciência foi uma atividade de lazer e cultura e, neste sentido, individual ou pelo menos pessoal. Ela se tornou, hoje, atividade social e profissão.^A. profissionalização da ciência supõe que sejam preenchidas três condições: uma formação especializada dos futuros pesquisadores; a definição de normas de competência e de regras ao mesmo tempo deontológicas e operacionais (correspondendo mais ou menos ao que Kuhn chamou de "paradigma"1); a remuneração do trabalho e o financiamento das pesquisas^Se, sob o Antigo Regime, a Academia Real das Ciências já responde a urna segunda exigência, a Revolução Francesa é que, de modo determinante, lançará os fundamentos sociais da ciência moderna. Ela cria, realmente, aqueles celeiros de pesquisadores que são, Thomas S. Kuhn, La structure dês révolutions scientifiqu.es [A estrutura das revoluções científicas], Flammarion, 1970. Um paradigma é "um conjunto padrão de métodos e fenómenos" que fixa o quadro das pesquisas na "ciência normal .
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desde então, a Escola Normal Superior e a Escola Politécnica e, sobretudo através do ensino, garante-lhes uma condição. [Esta promoção da ciência pelo novo regime (da qual se encontrariam outros exemplos na reforma dos programas escolares ou na substituição do antigo poder espiritual por um novo clero de sábios e racionalistas) não é fortuita. Ela corresponde ao advento da ciência como força produtiva, a seu papel doravante insubstituível no mundo da indústria e da economia. Ao mesmo tempo, portanto, que consagra o poder da burguesia dentro da sociedade, a Revolução dá impulso às ciências da natureza, das quais "a burguesia necessita para o desenvolvimento de sua produção industrial" (K. Marx)2?"^
distingue de qualquer outra forma de conhecimento. Émile purkheim esboçou assim as grandes linhas de uma sociologia da ciência, mostrando que esta última é obra do pensamento coletivo. A verdade não se oferece ao génio individual, mas cede à "colaboração de uma pluralidade de espíritos, a uma colaboração que prossegue mesmo durante a sequência das gerações", e as categorias lógicas são elas próprias moldadas por toda uma tradição social (cf. texto 24). a
O mito da "cidade científica"
Nossas sociedades instalaram unidades e redes de produção de conhecimentos científicos, do mesmo modo (e correlativamente) que criaram, na esfera económica, sistemas de produção de bens e serviços. A imagem do cientista isolado em seu génio e em seu laboratório artesanal não passa de um mito, mesmo que a ideologia individualista do prémio Nobel continue a mantê:lo.JA_ pesquisa é um fenómeno de equipe, e a ciência uma instituição que apresenta todas as características da divisão e da complementaridade das tarefas, da hierarquia, da organização burocrática, da inércia e da preocupação com lucro, do corporativismo e das revoltas, dos conflitos de interesse e das alianças estratégicas etc., que se observam em toda instituição^E este não é um fenómeno contingente, uma simples formáTiistórica ou relativa que revestiria a elaboração do saber.\Por essência, a ciência é uma atividade social, um programa coletivo de conquista da verdade, e é isto mesmo que
A "inspeção" (Heidegger) da Natureza mobiliza portanto, hoje, exércitos de cérebros, pois os atos brilhantes dos francoatiradores da ciência que foram homens como Darwin, Mendel ou Einstein não estão mais em operação. Campos de batalha ou de saber, o tempo não está mais para guerrilhas... O bom senso diz-nos que, é claro, não pode ser de outro modo, em virutde da multiplicação e do refinamento dos conhecimentos e da necessária especialização que daí resulta. Como um cérebro isolado poderia estar ainda na escala de um mundo já tão explorado e sobrecarregado de signos? Mas se é preciso renunciar a essa mitologia dos heróis, pelo menos se deseja que não se perca a poesia, e imagina-se a comunidade científica como uma fraternidade universal, que aboliria as fronteiras entre países, culturas, crenças, ideologias, e reuniria todos os seus membros numa mesma busca da verdade. Einstein fala em "Templo da Ciência"3, e imagina até que um anjo expulsa dele aqueles cujas motivações são impuras, utilitárias ou hedonistas. Ao templo, Bachelard prefere "a Escola": sua "cidade científica" é mais estudiosa que mística (cf. texto 25). Ele celebra, porém, na "sociedade dos cientistas", o mesmo fervor espiri-
2. Karl Marx, Friedrich Engels, Études philosophiques [Estudos filosóficos] Sociales, p. 124.
Albert Einstein, Comment je vois lê monde [Como vejo o mundo], Champs, Flammarion, 1979, p. 121 ss.
A ciência como produção social
tual: "comunhão dos teóricos", "compreensão mútua, íntima, atuante", cooperação entre teóricos e técnicos que assegura a "convergência da exatidão e da força". "Que entendimento tácito reina assim na cidade física!", maravilha-se ele4. Assim, Bachelard só faz exaltar a representação mais comum(££ universo científico, regido pelo duplo princípio da autonomia e da colegialidade, seria um mundo à parte. Um mundo de cérebros íntegros e rigorosos a evoluir no puro céu do inteligível, movidos apenas ceio desejo de servir à verdade e à felicidade da humanidade.^ Se se admite que a ciência se inscreve na ordem social, é-lhe reservado então um lugar à parte, "à margem da cidade social", como diz ainda Bachelard. Quer-se fazer dela uma microssociedade, com regras próprias, código de honra, que conseguiria preservar sua identidade em meio às intrigas e conflitos que agitam a sociedade global. Ora, uma imagem assim talvez reflita o que se passa nos cultos ecuménicos que são os congressos internacionais; ela não resiste a um confronto com a vida diária dos laboratórios. Como todo grupo social constituído, o dos cientistas tende a exagerar seu exclusivismo, e mais ainda porque sua atividade supõe uma longa iniciação (a formação dos pesquisadores, estereotipada, é garantida no próprio seio da instituição, por assimilação do passado dela) e uma submissão ao paradigma (cf. pp. 103-104) em vigor. Ele mergulha assim numa falsa transparência, desconhece sua inserção nas redes financeiras, industriais ou políticas que a sociedade tece e goza de uma enganosa sensação de "insularidade"5. Ele é vítima da ilusão sobre si que Claude Lévi-Strauss denuncia a propósito dos índios cujos comportamentos tenta explicar: j Sabe-se que, na maioria dos povos primitivos, é dificílimo obter lima justificativa moral, ou uma explicação racional, de um 4. Gaston Bachelard, Lê rationalisme appliqué [O racionalismo aplicado], PUF, pp3 e 23. 5. Georges Thill, "L'insularité scientifíque" [A insularidade científica], Esprit, n° 6, 1977, dedicado a "A ciência dentro do debate social".
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costume ou instituição; o indígena interrogado contenta-se em responder que as coisas sempre foram assim, que esta foi a ordem dos deuses, ou o ensinamento dos antepassados. Mesmo quando encontramos interpretações, estas sempre possuem o caráter de racionalização ou elaborações secundárias: quase não há dúvida de que as razões inconscientes pelas quais se pratica um costume ou se partilha urna crença estão muito distantes daquelas que se invoca para justificá-los. T~~7
É por isso que, para estudar "a vida de laboratório", Bruno Latour (cf. texto 26) escolhe adotar o ponto de vista do etnólogo — simultaneamente ingénuo e crítico, porque prevenido contra as ilusões com as quais se deleita a consciência reflexiva. Seu objetivo: estudar a produção social da ciência, " isto é, "as ciências atuais que estão se fazendo e em plena ^controvérsia"7, e não produtos acabados e classificados, como fazem os epistemólogos. Seu método, para escapar à ilusão do "movimento retrógrado do verdadeiro" (cf. p. 93): submeter ao mesmo tratamento sociológico o que será reputado verdadeiro e o que será considerado falso. Não há razão para considerar a priori que a marca social é a tara redibitória do erro e por isso eximir os fatos e descobertas oficialmente reconhecidos. Seu terreno de investigação: o laboratório de neuroendocrinologia dirigido pelo prof. Roger Guillemin no Instituto Salk, na Califórnia, de outubro de 1975 a julho de 1977. Aí se trabalha, a partir de milhões de cérebros de carneiros, para isolar e analisar uma substância hormonal, o T.R.F. , um fator de liberação produzido pelo hipotálamo. Esta descoberta valerá, em 1978, o prémio Nobel de medicina a Roger Guillemin. Q
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Claude Lévi-Strauss, Anthropologie structurale [Antropologia estrutural], Plon, 1958, p. 25. Bruno Latour, Steye Woolgar, La vie de laboratoire [A vida de laboratório], La Découverte, 1988, p. 19. Thyrotropin Releasing Factor. Chama-se "fator de liberação" a uma substância que representa um papel importante nas regulações estudadas pela neuroendocrinologia visto que este papel é liberar a produção de um hormônio, a tirotropina, para o T.R.F.
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A ciência também é escrita
O que impressiona antes de mais nada nosso etnólogo é que todos esses pesquisadores, que pretendem trabalhar em cima de fatos brutos e do real, dedicam toda a sua energia ao que ele chama de "inscrições literárias". Eis "uma estranha tribo que passa a maior parte do tempo a codificar, marcar, ler e escrever" (p. 40). Nas salas experimentais onde se dissecam animais, trituram-se seus órgãos e conservam-se amostras em milhares de tubos etiquetados, toda a atividade dos homens e de aparelhos gigantescos e dispendiosos tem por finalidade produzir metros de papel cobertos de números que saem das impressoras. Nos escritórios, comentam-se as curvas e gráficos que resumem essas massas de números, lêem-se e discutem-se artigos publicados em revistas especializadas, preparam-se e redigem-se novos artigos. O etnólogo, que aprendeu no colégio a distinguir as ciências das letras como o mundo do laboratório do mundo dos livros, está assombrado: "Por que todo ano se gastam cerca de 1,5 milhão de dólares que permitem que 25 pessoas escrevam uns 40 artigos?" (p. 66). A primeira constatação é desconcertante: o laboratório é um local destinado ao escrito; o trabalho científico é um trabalho de exegese e retórica. Mesmo a clássica distinção entre trabalho teórico e trabalho experimental parece aqui confundir-se, já que tudo, indistintamente, discussões ou dissecçõesj vai dar em inscrições../E preciso, antes de mais nada, ver nisso uma nova prova de que a ciência não passa de uma representação: ela não se apodera do real, e sim contenta-se em transcrevê-lo. Mas, sobretudo, a escrita é um ato social; meio de se fazer conhecer e reconhecer, maneira de se expor ou se impor, esforço de persuasão,. B. Latour e S. Woolgar mostram que todo o laboratório é mobilizado em torno de um trabalho de enunciação. A grande questão, na equipe de Guillemin, é detectar uma substância cuja presença é bastante discreta, visto que serão necessárias várias toneladas de hipotálamo para obter um miligrama de
T.R.F. Ela é assinalada pela superposição de dois picos sobre duas curvas de resultados. Mas todas as curvas estão cheias dessas asperezas, algumas delas fortuitas ou caprichosas! Como decidir com segurança se se tem um fato ou se não se está sendo iludido por um "artefato"? Como distinguir o sinal procurado do ruído de fundo? Esta dificuldade explica a fragilidade dos primeiros enunciados. É preciso obstinar-se em reforçá-los e torná-los mais críveis. Para fazer isso, reunir-seão novos índices, pedir-se-á socorro e citar-se-ão habilmente artigos publicados, reformular-se-á o enunciado para torná-lo inatacável. Em suma, a questão será persuadir, convencer seus pares. A ciência é um combate Para que o enunciado se torne um fato científico (quer dizer, que seja reconhecido como tal), há uma passagem obrigatória e decisiva para o que nossos autores chamam de "agonística" (do grego agôn, luta). Ele tem que passar pela prova de fogo — o fogo das controvérsias, alimentadas, sem dúvida, pelo rigor intelectual e a preocupação com não se enganar, mas também pelas rivalidades e pela competição entre pesquisadores. Se o cientista é um "escriba", é ao mesmo tempo um estrategista que deve saber escolher momento, terreno e posição favoráveis para avançar seus peões (enunciados e argumentos), fazer alianças (colaboradores ou autores de artigos citados), dar ordem de ataque à artilharia pesada das aparelhagens sofisticadas que ele soube pôr a seu serviço. O dinheiro, como se sabe, é o nervo da guerra, e o peso de um enunciado também diz respeito aos financiamentos obtidos que permitiram mobilizar uma tecnologia ou um material caros e raros dos quais adversários em potencial não dispõem necessariamente (cf. pp. 120-122). Ainda mais que os aparelhos que se visa assim monopolizar (espectrômetro de ressonância magnética ou ciclotron, por exemplo) não são senão a materialização de teorias consagradas, o que oferece 109
a vantagem suplementar de recrutar indiretamente estas últimas para a defesa do enunciado exposto.JNao se deve negligenciar nenhum trunfo para tornar digno de crédito um enunciado novo, desarmar as virtuais oposições e conseguir que ele seja reconhecido pela comunidade científica (cf. texto 27) J •
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A prova disso são as recentes polémicas do dr. Jacques Benveniste com os meios científicos a propósito daquilo que se chamou "a memória da água". No início, um enunciado classificado como "revolucionário", segundo o qual certas substâncias fortemente diluídas em água (a ponto de não restar senão uma única molécula no líquido) imprimiriam por assim dizer sua marca nesta de modo a produzir ainda, por seu intermédio, sua ação específica. J. Benveniste é diretor de uma unidade de pesquisa do I.N.S.E.R.M. e goza de indubitável notoriedade. Além disso, ele tomou o cuidado de fazer suas experiências serem corroboradas, de maneira independente, por laboratórios israelita, canadense e italiano, cercando-se assim dos aliados necessários. Seu artigo, após as seleções e controles de praxe, é publicado numa das melhores revistas especializadas do mundo, o magazine americano Nature... Contudo, logo se desencadeia a polémica. Os maiores cientistas colocam-se em posição de ataque, negam a verossimilhança, a realidade e mesmo a inteligibilidade dos fatos invocados. Eles não acusam Benveniste de fraude, não têm a intenção de refazer experiências que mobilizaram várias equipes durante meses, logo, não fornecem provas de erros. Negam, muito simplesmente, os pretensos "fatos", em nome de todo conhecimento adquirido das ciências da matéria. Nature designa então uma comissão de controle a posteriori, no laboratório parisiense, retrata-se e retira seu aval, o qual, aliás, fora concedido com certa reserva. E, para terminar (11 de julho de 1989), o conselho científico do I.N.S.E.R.M. retira o apoio dado ao dr. Benveniste e ordena-lhe que abandone as pesquisas sobre o assunto. A "descoberta" subversiva é rejeitada sem ter sido refutada.
Uma atitude leviana?, como terá pensado o público pego por testemunha pela mídia que se apossou do caso. Na realidade, uma atitude normal, em relação ao funcionamento normal da instituição. Um enunciado científico só pode pretender o estatuto de fato científico se passar vitorioso pela prova da controvérsia no seio do cenáculo dos especialistas. Ora, Benveniste entrou neste confronto de forma tanto mais imprudente quanto eram grandes suas pretensões ao se meter numa experiência dessas. Por um lado, agiu sem dúvida com precipitação ao não esperar o tempo necessário para aperfeiçoar seu enunciado, a ponto de concluir seu artigo em Nature pela seguinte confissão: A natureza precisa desse fenómeno continua inexplicada. Era duvidoso que pudéssemos estabelecer a realidade de efeitos biológicos na ausência física de moléculas. As entidades que servem de suporte para esta biologia "metamolecular" só podem ser postas em evidência através de uma pesquisa sobre o processo responsável pela interação entre as moléculas iniciais e a água, gerando assim uma atividade capaz de reproduzir o efeito específico das moléculas originais, embora nenhuma hipótese desse tipo seja atualmente fundamentada.
Não se pode dizer que tais palavras sejam persuasivas e armadas para dissipar prevenções! Por outro lado, Benveniste infringiu as regras da profissão procurando na mídia e na opinião pública os reforços que lhe faltavam. Finalmente, e sobretudo, ele cristalizou as suspeitas sobre seus trabalhos ao aceitar um financiamento do principal fabricante mundial de produtos homeopáticos. Não se disse imediatamente que as experiências sobre a memória da água vinham autorizar oportunamente o princípio da homeopatia e, por isso, desacreditavam a si próprias, vítimas do conluio de interesses intelectuais e industriais? Não que tal aliança seja chocante ou insólita em 10. J. Benveniste et alii, "Human bosophil degranulation triggered by antiserum against I.G.E.", Nature, vol. 333, junho de 1988 (trad. de C.
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si: os organismos públicos ou privados que subvencionam pesquisa não são mecenas; eles o fazem sempre em função de seus próprios interesses. Porém, ao escolher uma aliado contestado — imprudência culposa! — Benveniste deu as costas ao poderoso lobby do corpo médico e da indústria farmacêutica. A partir daí, a partida estava perdida por antecipação . E os fatos?, perguntará o positivista que acredita estar-se pendurando aí em algo sólido. Por que não se interrogam os próprios fatos? Por que nos colocamos no lugar da natureza para pronunciar o veredicto? Primeiro porque, na maioria das vezes, não é o caso de reiterar experiências. Imagine-se, para reencontrar o T.R.F. de Guillemin, sacrificar novamente milhões de cérebros de carneiros, pôr para trabalhar umas vinte pessoas durante dez anos, conseguir 2 milhões de dólares etc.? Em seguida, como se viu, os "fatos" em questão não falam claramente. Eles aparecem sob a forma de inscrições indecisas que não se pode deixar de interpretar. E eis-nos reconduzidos à subjetividade e à arbitragem humana! A despeito dos fetichistas dos fatos, não existe critério independente, que seria aquele do Real em si.íSó existem critérios humanos, e o critério social é o único recurso contra as eventualidades da subjetividade individual. A objetividade nas ciências não é o encontro peremptório do objeto, mas a superação da subjetividade individual na intersubjetividade3 yDeterminar um caráter objetivo não é meter a mão num absoluto, é provar que se aplica corretamente um método. Sempre se levantará a objeção de que porque o caráter revelado pertence ao objeto é que ele é objetivo, quando sempre se fornecerá
11. Michel de Pracontal fez uma pesquisa jornalística que destrói muitos mitos sobre a ciência, Lês mystères de Ia memoire de l'eau [Os mistérios da memória da água], La Découverte, 1990. Para uma análise detalhada de outros exemplos, reportarse a Bruno Latour, Steve Woolgar, La vie de laboratoire, op. cit., cap. 3, "La fabrication d'un fait. Lê cãs du T.R.F. (H)" [A fabricação de um fato. O caso do T.R.F. (H)]; ou Andrew Pickering, "La chasse aux quarks" [A caça aos quarks], em Michel Callon, La science et sés réseaux [A ciência e suas redes], La Découverte, 1989.
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apenas a prova de sua objetividade em relação a.um método de objetivação. A razão avançada é gratuita; a prova, ao contrário, é positiva. ^}
É considerado fato objetivo aquilo que finalmente o grupo dos especialistas, avalista do respeito que o método deve merecer, reconhece e integra como tal. Ora, o tratamento "agonístico" é ainda o melhor meio encontrado por uma coletividade para operar uma triagem e reunir-se em torno de um valor indiscutível. Aqui, para se assegurar da resistência e da objetividade de um enunciado. Como na seleção natural dos mais aptos segundo Darwin, é pela luta que se provam força e valor (biológico ou epistemológico).(Eis porque Karl Popper renuncia à ideia clássica de que um enunciado científico deve ser verificado^JO critério positivo é substituído por um critério negativo que integra o fenómeno do conflito: um enunciado é científico na medida em que todas as tentativas para. falsificá-lo (cf. também textos lie 27) resultaram yãs.\Provar um enunciado científico é, portanto, alimentá-lo o suficiente para que ele possa sair branco (purificado) e engrandecido (investido da autoridade da coisa julgada) de sua tradução perante o tribunal da profissão-JEste é um trabalho de advogado que consiste em mobilizar ao mesmo tempo o máximo de índices ("reais") e todos os procedimentos da persuasão (humana). Levemos mais longe a comparação: perante um tribunal, o réu é absolvido porque é inocente ou inocente porque absolvido? Pode-se pensar que o veredicto participa dos dois significados, mas sem poder avaliar uma e outra partes nem excluir inteiramente a possibilidade de que um culpado seja reabilitado\ Do mesmo modo, no enunciado científico que ganha estatuto dê fato objetivo após seu comparecimento perante a crítica especializada, não se pode determinar o que, de real, foi reconhecido, e o que é reputado real porque reconhecidó7\ Gaston Bachelard, La valeur inductive de Ia relativité [O valor indutivo da relatividade], Vrin, 1929, p. 243.
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A ciência também é um debate Esta insistência, porém, no aspecto agonístico da atividade científica não deve ser interpretada negativamente, como reflexo, apenas, de uma sociedade competitiva e agressiva. A luta pode também ser vista como um debate, o teste de resistência de um enunciado, assim como a medida do interesse que ele provoca. O importante é que, desde os gregos, só na comunicação a racionalidade pode vir à luz. Raciocinar é dar razão, e isto implica um adversário ou um interlocutor. O logos nasceu em praça pública, nos debates da agora. Ali é que ele rompeu com os mistérios da palavra revelada e dos mitos, ali é que derrubou a autoridade tradicional dos porta-vozes do céu. Contra o segredo dos saberes ancestrais, ele reivindicou de imediato publicidade e transparência, logo, exposição dos argumentos. Contra o privilégio dá iniciação e da revelação do saber, impôs a igualdade de todos na pesquisa. Ao mundo fechado da certeza e da obediência, opôs o mundo aberto das questões e da liberdade. Original e substancialmente, a razão é democrática e, como a filosofia, de início, a ciência é hoje sua herdeira. É por isso que, aberto ao confronto tanto quanto ao enfrentamento, o espaço onde se dá a atiyidade científica é, antes de mais nada, um espaço de discussão/^ metáfora do tribunal pode-se preferir aquela do parlamento — o essencial é que a ciência só pode nascer e subsistir numa sociedade democrática. Isto é o que Karl Popper indica ao associar, em sua obra, a "ciência aberta", não-dogmática, a progredir mais por eliminação do erro e da aproximação do que pela conquista triunfante do verdadeiro, e a "sociedade aberta", que pratica a livre crítica e protege a liberdade contra os abusos da forçaJEm ciências como em política, a razão não se impõe de maneira totalitária; ela se expõe.jTAcreditar na razão, diz frequentemente Popper, é antes detudo acreditar na razão dos outros. Assim também, Habermas situa a racionalidade da atividáS científica no empenho em querer comunicar e na vontade de 114
encerrar o debate por um consenso (cf. pp. 175-176). Por isso não é tanto o próprio conteúdo que define a racionalidade de um enunciado científico, mas sua forma social, ou, em outras palavras, sua formulação e difusão, que lhe permitem passar pela prova do confronto público e superá-la.^ A ilusão realista Portanto, é preciso admitir — dizem Latour e Woolgar — que os fatos científicos são socialmente construídos. O fato não é simplesmente descoberto, ele é realmente feito ou fabricado, por "estabilização" (p. 180) do enunciado inicial: este escapa às incertezas de seu processo de produção e aos turbilhões da controvérsia que decide sua validação, para impor-se e fixar-se. Ele se torna então objeto de citações e referência comum. Integrado ao património, não pertence mais a seu autor, e sim passa a ser propriedade de todos. Trocou sua contingência original por uma necessidade lógica, adquirida através de uma convenção sociológica. como explicar, nos próprios atores (sem falar do público que vê as coisas de longe), o desconhecimento desse processo de fabricação e a persistência da ilusão realista que leva a crer que o critério de verdade é o acordo com o objeto exterior e não o acordo dos sujeitos entre si? Pensa-se, com efeito, que se os sujeitos se põem de acordo, fazem-no obrigados pela carga de evidência da realidade, sem ver que se trata do contrário: considera-se um fato real porque fez-se consenso sobre ele. A ciência não desvenda fatos que já estavam aí por toda eternidade, "esperando" serem descobertos. Ela 93 fabrica. Mas por que, como os indígenas de Lévi-Strauss, quem faz a ciência é geralmente inconsciente do que A comparação anterior com o tribunal ainda pode esclarecer este mistério. Quando testemunhas de acusação e de defesa desfilam pela barra dos tribunais, quando advogados 115
da economia °C°rre n°
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respondem ao requisitório do promotor, só está-se mexendo com palavras, ou, digamos, roteiros. Trata-se, é claro, de abordar uma realidade, de chegar o mais perto possível da natureza e das circunstâncias do ato. Mas ninguém conhece essa realidade, ela se oculta, e por vezes tem-se a impressão de que tudo se passa como se ela não existisse (o cerimonial judiciário parecendo então escamotear o que realmente está em jogo). Constantemente presente nos debates e sempre ausente, ela é como que a imagem virtual projetada pelos discursos, inapreensível como uma miragem. A representação leva vantagem então sobre o real que não passa de um efeito projetivo daquela. Em contrapartida, a situação inverte-se após o veredicto. Este deveria dar conta da realidade, refletir a materialidade dos fatos. Dèsvaneceram-se roteiros, discursos, incertezas, hipóteses*e ensaios; fez-se a luz, os fatos estão aí. Retrospectivamente, o veredicto parece desposar é homologar uma realidade preexistente, que estava presente desde o debate, à espera de ser desvendada. Sempre "o movimento retrógrado do verdadeiro"! Assim também, o fato científico não é senão um enunciado vitorioso, cuja vitória faz esquecer os balbucies iniciais, que ela transforma em oráculo. Sua força, acredita-se, vem de que ela estaria em luta direta com o ser, enquanto ele só tem esta pretensão porque triunfou (cf. textos 28 e 29). í Uma vez acertada a controvérsia, considera-se a realidade como B. causa desse acerto, .mas enquanto dura a controvérsia, a realidade é consequência do debate —• ela segue cada meandro e cada \ volteio dele como se fosse a sombra das preocupações científicas.1 \ ~~—s
"O fetichismo da mercadoria" (Karl Marx) Esta ilusão retrospectiva do verdadeiro oculta ao mesmo tempo toda a dimensão socioeconômica da produção dos fatos 13. Bruno Latour, Steve Woolgar, op. cit., p. 186. 116
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científicos. Ela provém, &° « desprezando * cão que Marx denunciou 'álização a que política clássica; um inter6^ ^l°J^p ^^ verdade, o plano da circulação de bens ^Q tf ^ e ^ ^ parece mercado, na ignorância ^°íã.aY>^ \efi ,a.à0 Equilibrado e se consideram os produtos ^ ^ .j-ar na esfera as condições de sua produça^^ V Q $ descobrir a Marx denomina "fetichis^^o -^ -valia. O mundo das trocas, sob o $ y ilo que se u regido por uma série de e o intrínharmónico. É preciso quebí"^ j, humano e mais sórdida da produção^^o 0 f 0 exploração do trabalho hu ° òfetichismo da mercadoria ^ lCedortranspor a.^Aparentetransferiu para o produto verdade de seca, um valor que lhe ad à sua das relações de produção e& de Seguindo as indicaçõf^ ^y'ft assim uma esta análise para a produç^ c^^^ no mundo mente (para a epistemolo^.to 0. .$ r^t a outros um dado científico diz respe -<» "* e cena para consistência interna, ou, ;S locais de realidade ou fidelidade ao clássica cotação que determina sua>to a isso. Ela do conhecimento e o crédi ^ Benção ou da cientistas. Mas, na verdade» e ^vida, diz ele, O °s bastidores e observar vezes difusas Produção da ciência, os Ia o irracio* in (corno a economia política Pretende opor, por á°> descoberta" ao "contexto as 1038circunstâncias de uma """ impuras; elas fazem m* 111 l4
- Hans Reichenbach,
científicos. Ela provém, como um caso particular, da mistificação que Marx denunciou como o vício redibitório da economia política clássica; um interesse exclusivo pelo que ocorre no plano da circulação de bens e valores — em outras palavras, o mercado, na ignorância total do pano de fundo àaproduçãoj^ó se consideram os produtos acabados e suas trocas, desprezando as condições de sua produçãcylsto leva a uma idealização a que Marx denomina "fetichismo da mercadoria'\3Na verdade, o mundo das trocas, sob o signo do valor monetário, parece regido por uma série de equivalências, logo, equilibrado e harmónico. É preciso quebrar o espelho e penetrar na esfera mais sórdida da produção e das fábricas, para descobrir a exploração do trabalho humano e a criação da mais-valia. O fetichismo da mercadoria resulta portanto daquilo que se transferiu para o produto mercante, como propriedade intrínseca, um valor que lhe advém, de fato, do trabalho humano e das relações de produção entre os homens.
respondem ao requisitório do promotor, só está-se mexendo com palavras, ou, digamos, roteiros. Trata-se, é claro, de abordar uma realidade, de chegar o mais perto possível da natureza e das circunstâncias do ato. Mas ninguém conhece essa realidade, ela se oculta, e por vezes tem-se a impressão de que tudo se passa como se ela não existisse (o cerimonial judiciário parecendo então escamotear o que realmente está em jogo). Constantemente presente nos debates e sempre ausente, ela é como que a imagem virtual projetada pelos discursos, inapreensível como uma miragem. A representação leva vantagem então sobre o real que não passa de um efeito projetivo daquela. Em contrapartida, a situação inverte-se após o veredicto. Este deveria dar conta da realidade, refletir a materialidade dos fatos. Dèsvaneceram-se roteiros, discursos, incertezas, hipóteses e ensaios; fez-se a luz, os fatos estão aí. Retrospectivamente, o veredicto parece desposar é homologar uma realidade preexistente, que estava presente desde o debate, à espera de ser desvendada. Sempre "o movimento retrógrado do verdadeiro"! Assim também, o fato científico não é senão um enunciado vitorioso, cuja vitória faz esquecer os balbucies iniciais, que ela transforma em oráculo. Sua força, acredita-se, vem de que ela estaria em luta direta com o ser, enquanto ele só tem esta pretensão porque triunfou (cf. textos 28 e 29). .
Seguindo as indicações de Marx, é esclarecedor transpor esta análise para a produção da verdade científica.^Aparentemente (para a epistemologia clássica), o valor de verdade de um dado científico diz respeito à sua própria natureza, à sua consistência interna, ou, em outras palavras, a seu peso de realidade ou fidelidade ao real^Este dado recebe assim uma cotação que determina suas trocas e sua circulação no mundo do conhecimento e o crédito de que ele goza junto a outros cientistas. Mas, na verdade, é preciso sair da boca de cena para os bastidores e observar o que se passa naqueles locais de produção da ciência, os laboratórios. A epistemologia clássica (como a economia política clássica) tem aversão a isso. Ela pretende opor, por exemplo, o "contexto da invenção ou da descoberta" ao "contexto dajustificativa"u. Sem dúvida, diz ele, as circunstâncias de uma descoberta são muitas vezes difusas ou impuras; elasJfazem intervir o acaso, a psicologia, o irracio-
( Uma vez acertada a controvérsia, considera-se a realidade como ^ causa desse acerto, .mas enquanto dura a controvérsia, a realidade é consequência do debate — ela segue cada meandro e cada \ volteio dele como se fosse a sombra das preocupações científicas.13 \
"O fetichismo da mercadoria" (Karl Marx) Esta ilusão retrospectiva do verdadeiro oculta ao mesmo tempo toda a dimensão socioeconômica da produção dos fatos 13. Bruno Latour, Steve Woolgar, op. cit., p. 186.
4. Hans Reichenbach, Experience and prediction, Chicago, 1938.
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nal (intuição, sonho, associações de ideias...), fatores sociais, políticos etc. Mas pouco importa! O que conta (somente) é que a descoberta seja racionalmente justificável e possa, por exemplo, penetrar num impecável sistema de equações matemáticas^T) gastrônomo diante da iguaria preparada não procura reconstituir a receita e muito menos visitar as cozinhas... O tédio, como se viu, é que a justificativa se autodecida na arena ou no pretório, ou, em outras palavras, em lugares que não são mais frequentáveis, para os amadores da pureza, que as cozinhas. No entanto, é aí que se dissipa a ilusão. Ao se fazer uma investigação nos lugares onde se faz a ciência, de.scobre-se o caráter social da verdade e as relações de força das quais ela é oriunda. Descobre-se que a sociedade capitalista não se arranja de outro modo para produzir e trocar bens, sejam eles materiais ou intelectuais. Os conceitos marxistas não fornecem, portanto, somente uma cómoda grade de leitura do modo de funcionamento da instituição científica. Eles são, aqui, mais que sugestivos; parecem realmente adequados a seu objeto na medida em que Marx sempre considerou a teoria uma prática e a atividade de pensamento um trabalho, isto é, um processo de transformação e de produção. Portanto, reler trechos significativos de sua análise, procedendo apenas à necessária adequação de palavras, não significa forçá-los nem traí-los. / O que existe de misterioso na forma da mercadoria [do fato \cientifico] devolve aos homens as características sociais de seu próprio trabalho como características objetivas (de objeto) dos produtos do seu trabalho, como qualidades naturais dessas coisas. Os produtos da mão [da cabeça] do homem surgem dotados de vida própria, surgem como formas independentes entre si e independentes em suas relações com os homens. E isto que chamo de fetichismo.15 O que leva a ver, entre outras coisas, a ilusão produzida na
15. Karl Marx, Lê capital [O capital], primeira edição, cap. l, trad. de J.-Y. Calvez em La pensée de Karl Marx [O pensamento de Karl Marx], du Seuil, 1961, p. 287 (grifado por Marx).
maioria dos economistas [dos epistemólogos] pelo fetichismo inerente ao mundo mercantil [científico], ou pela aparência material dos atributos sociais do trabalho, é sua longa e insípida polémica a propósito do papel da natureza na criação do valor de troca [do valor da verdade]. Este valor, não sendo senão uma maneira social particular [=agonística] de calcular o trabalho empregado na produção de uma objeto [de experimentar o trabalho dedicado à produção de uma ideia] não pode conter mais elementos materiais que o curso do câmbio [o índice das citações científicas], por exemplo. J
Sendo uma instituição social, a ciência não escapa às leis gerais e ao funcionamento global da sociedade. Se os laboratórios, como a fábrica ou o escritório, apresentam todos os aspectos evidentes da divisão de tarefas, da hierarquia, da produtividade ou da concorrência, por exemplo, ele também reproduz, de maneira mais discreta, os modelos ideológicos dominantes na sociedade e o fenómeno de ocultação que lhes é inerente.
A ciência é uma empresa
A ciência não é um enclave de harmonia e de transparência, devotada ao culto exclusivo do espírito, num mundo materialista e dividido. Ela está presa, ao contrário, em todas as redes, industriais, financeiras, ideológicas, políticas, estratégicas etc., que estruturam ou desestruturam a sociedade global. Paul Feyerabend chega mesmo a dizer que, no século XX, "ela deixou de ser uma aventura filosófica" para se tornar "um poderoso negócio"17. Por isso é que John Law pode comparar a figura do cientista com aquela do empresário:
16. Karl Marx, Lê capital, ibid., trad. de J. Roy, Garnier-Flammarion, p. 75. Paul Feyerabend, Contre Ia méthode, op. cit., pp. 206 e 217.
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ciência de laboratório não é puramente, nem mesmo princiTialmente, uma atividade cerebral. É antes uma questão de organização, e sua prática exige um comportamento próximo daquele que se atribui aos empresários.1^)
Todo pesquisador de verdade, tenha ele que dirigir uma equipe ou sua própria carreira, deve associar-se a competências, colaboradores diretos ou interlocutores mais distantes, e assim garantir para si toda uma rede de relações profissionais. Deve dispor igualmente de documentação considerável, arquivada e exposta; gerar equipamentos, proporcionar-se o material ou os produtos necessários, assim como aparelhos de última geração. Isto carreia subvenção para a pesquisa e, para esse fim, a negociação de apoios, avais, alianças múltiplas com os meios industriais, financeiros, políticos, culturais... Trata-se aí de reunir os fatores de produção indispensáveis. Na outra ponta da cadeia produtiva, deve-se também assegurar a difusão e a circulação da informação produzida. Como o empresário que realiza estudos de mercado e instala circuitos de distribuição, o cientista deve, previamente, fazer contatos e lançar bases para criar essas relações e este espaço de discussão sem os quais, como se viu, o enunciado seria abortado, incapaz de se impor como fato científico. Enfim, na própria atividade de produção, é preciso pôr em ação estratégias sutis, impostas pela concorrência ou pela busca do "proveito" (lato sensu) máximo.
Estados Unidos. Schibuzawa afirma mesmo haver isolado o T.R.F. e fornece sua composição, mas sem conseguir conferirlhe credibilidade no meio científico, que considera a substância um "artefato", isto é, um fenómeno ilusório gerado pelo processo humano de experimentação. Para interromper todas essas tentativas infrutíferas, Guillemin decide-se, em 1963, por um novo programa de pesquisa: não se contentar em isolar e caracterizar a substância, mas determinar sua estrutura. Além disso, ele levanta a hipótese de que não se trata de um hormônio, mas de um peptídio, o que implica, considerando-se quantidades ínfimas dessa substância no organismo, a mobilização de enormes recursos para tratar em laboratório de milhões de hipotálamos. Ele publica um artigo que coloca catorze condições draconianas que decidem a validade de qualquer pesquisa posterior neste campo; fixa assim num ponto muito alto o nível de exigências tanto materiais quanto intelectuais. Pode-se resumir a situação dizendo que a fronteira do aceitável era determinada pelos objetivos atribuídos à pesquisa, a saber, obter a estrutura a qualquer preço.
Se Guillemin consegue os financiamentos e colaboradores necessários para pôr esse programa em ação, seus concorrentes têm que abandonar o jogo. Vê-se assim como a decisão estratégica mistura de maneira turva questões epistemológicas e questões sociológicas.
As pesquisas da equipe Guillemin sobre o T.R.F. dão um exemplo impressionante do primeiro ponto. Em 1963, quando Guillemin se lança verdadeiramente nesse terreno de pesquisa, esteja está mais que abarrotado de hipóteses, afirmações e artigos sobre as substâncias hipotalâmicas e três outras equipes estão concorrendo com ele para o isolamento do T.R.F.: Schibuzawa no Japão, Schreiber na Hungria e Harris nos
Quanto à busca do lucro que também comanda as estratégias científicas, os sociólogos introduziram, para dar conta dela, a dupla noção de crédito-credibilidade. O crédito são, é claro, os fundos disponíveis em dinheiro, mas também aquilo que Pierre Bordieu chamou de "capital simbólico"20: prestígio, j competência reconhecida, autoridade conferida pelos traba-
18. John Law, "Lê laboratoire et sés réseaux" [O laboratório e suas redes], em Michel Callon, La science et sés réseaux [A ciência e suas redes], La Découverte, 1989, p. 119.
', Steve Woolgar, op. cit., p. 114. iordieu, "Lê champ scientifique", Actes de Ia recherche en sciences sociales campo científico, Atas de pesquisa em ciências sociais], 1976, n2 2-3.
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lhos anteriores ou especialização etc. Aliás, na maioria das vezes, a importância do crédito — no segundo sentido e no singular — é que determina a atribuição dos créditos, no primeiro sentido e no plural. Para construir ou consolidar sua credibilidade, o pesquisador deve cuidar de receber, remunerado em reconhecimento e competência, os dividendos de seus investimentos pessoais. Deve escolher oportunamente os setores de pesquisa e as equipes de assistentes, gerir suas perspectivas de carreira e, naturalmente, assinar artigos cuja repercussão avaliará pelo número de citações por outros pesquisadores e pela elevação da sua cotação no "mercado". Para Bordieu, o motor da atividade científica é a série de estratégias adotadas por esse novo género de investidores para maximizar seu lucro simbólico. Como todo investidor, eles são obrigados a reinvestir continuamente seus ganhos, incentivando novas pesquisas e integrando-se a novas equipes, se não quiserem perder seu capital. Administradores e contadores dos capitais alheios no plano financeiro, eles se conduzem como capitalistas com relação a seu próprio capital simbólico. Vê-se então a que ponto a empresa científica, por um lado, reproduz os modelos gerais de nossa sociedade e, por outro, integra-se a um conjunto de redes não-científicas nas quais circulam e trocam-se capitais, informações, influências, ambições etc. Redes que determinam, tanto a montante da produção científica, os fins, os meios, a orientação que lhe são dados, quanto, a jusante, a exploração que é feita dela. Também se vê como, cegos pela importância (institucional e pessoal) desses fenómenos do "mercado", os pesquisadores podem sucumbir ao fetichismo denunciado por Marx e equivocar-se sobre a natureza real da produção científica.
O mascaramento ideológico A ilusão dos pesquisadores é ainda mais prejudicial porque só vem reforçar as representações ingénuas e míticas do público, alheio ao laboratório. Alguns deles tem consciência disso e denunciam, dentro e fora da instituição, esta "nova religião" cientificista21. Mas a ilusão é tenaz, pois não diz respeito apenas à psicologia dos indivíduos ou à mitologia da sociedade, à má-fé ou à mistificação, à complacência narcisista ou à cumplicidade ideológica. Se os fatores de erro fossem assim localizáveis no exterior da ciência, poderiam ser mais facilmente eliminados^Mas aqui ocorre como que uma ilusão de ótica: o erro não é acidental, e sim funcional, ligado aos mecanismos que produzem a ciência (ou a visão). Ele é como que um subproduto dela. Sua forma própria é uma reviravolta, um efeito de inversão, que já vimos em ação na passagem do enunciado problemático para o fato propriamente científicoj[ (pp. 115-116). É este mesmo fenómeno que leva a crer na neutralidade dos aparelhos utilizados, em seu total "respeito" aos fatos "objetivos" que eles contribuem para pôr em evidência, como em sua independência em relação às operações de pensamento. Ora, já se viu (p. 109) que, no exemplo do espectrômetro de massa usado no laboratório de Guillemin, eles são tanto uma questão estratégica quanto a materialização de teorias físicas e, logo, de pensamentos anteriores. É ele, ainda, que mascara a importância das redes de crédito e de credibilidade na construção dos fatos científicos, dando a impressão de que todos esses investimentos, tão intensamente realizados antes e durante a pesquisa, não são mais responsáveis pelo resultado 21. Cf., entre outras, de J.-M. Lévy-Leblond e A. Jaubert (orgs.), (Auto-)critique dela science [(Auto-)crítica da ciência], Points, du Seuil, 1975; e, sobretudo, o artigo do grupo Survivre [Sobreviver], "La nouvelle église universelle" [A nova igreja universal].
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finalmente obtido. Como se se pudesse separar, como o contingente e o essencial, o funcionamento da ciência de seus conteúdos cognitivos... E ele, enfim, que conforta o mundo científico no sentimento de sua insularidade ao passo que o vimos totalmente inserido nas múltiplas redes que irrigam a sociedade. Há, neste fenómeno de ilusão, uma espécie de elaboração secundária, um processo de anulação retroativa que oculta todos os fatores reais da produção científica para dar ao produto científico uma virgindade artificial, e até mesmo escamotear seu caráter de produto. Ele faz assim desaparecer qualquer vestígio dos fatores extrínsecos, e, sobretudo, sociais, que marcam a constituição do saber. Este último parece não ter outro vínculo a não ser com a realidade que se supõe que ele reprer sente objetivamente. O cientista não participaria mais disso, no final das contas, do que aquele escultor sobre o qual Michelangelo disse que se contentava em extrair a forma da estátua, presente desde sempre no bloco de mármore. Eis a ideologia, exatamente como foi definida por Engels: l A ideologia é um processo que o pretenso pensador realiza sem Múvida conscientemente, mas com uma falsa consciência. As verdadeiras forças motrizes que o põem em movimento continuam desconhecidas para ele, senão este não seria, de modo algum, um processo ideológico. Por isso ele imagina forças motrizes falsas ou aparentes. *
22. Friedrich Engels, Carta a Franz Mehring de 14 de julho de 1893. Citado em Études philosophiques [Estudos filosóficos], Sociales, 1968, p. 165.
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5. CIÊNCIA E IDEOLOGIA: AS AMBIGUIDADES DO MARXISMO
Vimos como a sociedade, e com ela a relatividade, imiscuem-se tanto nas formas e conteúdos epistemológicos quanto no funcionamento institucional da ciência. Não se pode mais, ingénua ou dogmaticamente, vincular o saber científico aos absolutos que são o Real, o Universal, o Espírito, a Razão... Ele deriva então, entre as outras produções intelectuais do homem, como tantos balões-sonda lançados no infinito e no desconhecido do mundo, com a finalidade de nos trazer índices para decifrá-lo e signos para nos governar. Mas ele não perde aí sua especificidade? Não vem se confundir com representações míticas, crenças religiosas, teorias filosóficas, projeções literárias, estéticas, políticas ou jurídicas que, todas elas, são concebidas pela consciência coletiva e visam nos situar no Ser e nos guiar? Nascido da sociedade como todos os outros saberes, ele porta seu cunho e a semelhança com aquela. Isto não torna ilusório o "corte epistemológico" que, segundo Bachelard, romperia o cordão umbilical? Isolada por seu método, a ciência tem preten125
são à exclusividade, à pureza e à transcendência racionais; esta pretensão, porém, em si, não é a marca mais comum da ideologia? Poder-se-ia dizer sobre a ideologia, hoje, o que se dizia antigamente sobre o diabo: sua maior manha é fazer com que se acredite em sua inexistência. Assim, a ideologia, regra geral, tem por primeiro efeito ocultar-se a si mesma.
Não se vê, com efeito, por que milagre (exceção epistemológica ou precaução metodológica) a ciência seria preservada da sorte comum a toda produção intelectual e, ao contrário, pôde-se observar, durante o percurso, vários sinais de sua natureza ou de sua contaminação ideológicas. Na determinação das próprias ideias, como em seu modo de produção, ela pareceu estreitamente dependente de uma ordem social que, apesar de suas negações, ela reflete ou reproduz. Porém, ainda assim, ela não é uma ideologia entre outras tantas? Não tem ela outra função e outro valor que lhe conferem identidade própria?
A noção marxista de ideologia
Uma contribuição decisiva do marxismo é haver mostrado que as ideias não caem do céu e não flutuam no ar, e sim deitam raízes nas condições de vida reais e materiais dos homens, em época e contexto social determinados... ( Os homens é que são os produtores de suas representações, de suas ideias etc., mas os homens reais, operantes, condicionados por um desenvolvimento determinado de suas forças produtivas e do comércio que corresponde a elas em suas formas mais extensas.2
Por conseguinte, essas representações intelectuais só fazem exprimir à sua maneira o modo de vida e de trabalho dos homens: elas são como que seu "reflexo" ou "eco", isto é, um efeito segundo o qual não poderia ter, por si mesmo, real eficiência. Elas pertencem à ordem das "superestruturas", os alicerces simbólicos ou teóricos que uma sociedade constrói sobre a base de sua organização económica e técnica (ou "infraestrutura") para proceder ao escoramento de sua estrutura ou à depreciação de sua imagem. O que equivale a dizer que elas são parte interessada do processo histórico durante o qual o homem produz a si mesmo produzindo seus meios de existência e com eles transformando a natureza. Relativas a um estádio determinado do desenvolvimento humano e social, não podem mais pretender uma verdade eterna qualquer é nem mesmo sua autonomia espiritual. São e continuam a ser o produto de uma consciência social e historicamente encarnada. Porém esta consciência se auto-ilude necessariamente, pois é apanhada na armadilha das contradições que afetam a sociedade. Na verdade, enquanto as forças produtivas são insuficientemente desenvolvidas para serem coletiva e democraticamente controladas, elas geram entre os homens uma desigualdade essencial e irredutível que volta uma contra a outra a classe dominante e a classe explorada. A sociedade funciona assim em oposição a si mesma, constantemente estimulada ao mesmo tempo que ameaçada por esta contradição interna. A ideologia acha sua fonte nessa ambiguidade: as ideias e sistemas de ideias que têm curso numa sociedade refletem, necessariamente o estado real desta; mas devem fazêlo de maneira inofensiva e idealizadora, mascarando aquilo cuja revelação poderia ser explosiva. Devolvendo a si mesma sua própria imagem, a sociedade, como a perversa rainha do conto de fadas, só quer estar às voltas com espelhos complacentes. A verdade lhe seria fatal.
1. Jean-Marc Lévy-Leblond, "L'idéologie de/dans Ia physique contemporaine" Lês ernes n9 337 33 2 K TS ' ' 8, agosto-setembro de 1974. ^TE^elSJ L'ideoloSÍe allemande [A ideologia alemã], 1846, (Euvres . III, Plêiade, Gaffimard, p. 1056 (trad. de Maxmulien Rubel).
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É num travestimento desses que se vê funcionarem as molas próprias da ideologia, fatores de diversas formas de ilusão... $1. Autonomia: em virtude da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, a ideologia separa a ideia de seus vínculos sociais e materiais e faz crer que, no mundo independente do espírito, as ideias geram-se a partir de si mesmas. ^,2. Inversão: a ideologia apresenta as ideias como as únicas reais e eficientes e pretende derivar delas qualquer realidade. Para ela, não é a vida que determina a consciência, e sim a consciência que determina a vida. Ela põe tudo "de cabeça para baixo" (cf. texto 30). $8. Universalidade: por causa da contradição dos interesses de classes, a ideologia exprime o interesse particular da classe dominante, mas de forma mistificada, apresentando-o como valor universal e racional. ^4. Eternidade: a ideologia traveste as ideias, efeitos e reflexos dos momentos e da inconclusão da história, em valores intemporais e, como tal, incontestáveis. ideologia surge então como uma representação ilusória do real (da natureza e das relações entre os homens), mas esta ilusão é comandada pelo real: no caso, a contradição interna à sociedade, e, ainda mais profundamente, o estado de desenvolvimento histórico desta sociedade. A ideologia é, portanto, um misto de erro (ou mistificação) e verdade. De verdade subjacente, portanto, cuidadosamente oculta ou negada, mas também verdade de certo modo antecipada: na realidade, se as representações ideológicas ficam presas na dupla particularidade do momento histórico e do interesse da classe dominante, não deixam de ser projeções de uma forma universal e eterna, cujos conteúdos atuais são, sem sombra de dúvida, fictícios, mas cujo sentido é promessa de futuro e prefiguração do fim da históriaTj' Dividida pela luta de classes, toda sociedade histórica falha 128
consigo mesma, e só pode subsistir negando esta falha por onde se precipitam todas as agitações./A ideologia tem então por função exorcizar a mudança e proteger a situação dos dominantes. Porém, ao fazê-lo, ela reúne efetivamente todos os membros da sociedade em torno de seus valores e noções, e assim anuncia a unidade da sociedade sem classes. Daí sua ambivalência essencial: como mistificação, ela secreta divisão e imobilismo; como mito, reúne e mobilizaT? --i A ciência acusada de ideologia Ao enumerar as principais ideologias, Marx cita a religião, a política, o direito, a moral, a família, a arte. Às vezes, a ciência figura explicitamente na lista3; na maioria das vezes, ela não é mencionada: deve-se acreditar que isto ocorra somente graças ao "etc." que abrevia a enumeração? Os sucessores de Marx, como se verá mais adiante, opuseram firme e regularmente ciência e ideologia, a ponto, por vezes, de cederem a um cientificismo bastante sumário. Porém, os elementos esparsos que Marx nos deixa parecem indicar que, a seus olhos, o estatuto da ciência é mais problemático. Com certeza se poderia recorrer a uma passagem (suprimida) do início do manuscrito de L'idéologie allemande [A ideologia alemã]4 na qual Marx exclui "a ciência dita da natureza" do exame que se dispõe a fazer da ideologia: "Aqui, ela não nos diz respeito." Seu argumento baseia-se na separação entre "história da natureza", à qual pertence a primeira, e "história dos homens [da qual] a ideologia é apenas um dos 3. K. Marx, Manuscrits de 1844. CEuvres [Manuscritos de 1844. Obras], T. II, Plêiade, p. 80. "Division du travail et idéologies" [Divisão do trabalho e ideologias], (Euvres, T. III, Plêiade, p. 1034. 4. K. Marx, Uidéologie allemande, Notes et variantes [Notas e variantes] (Euvres, T. III, Plêiade, p. 1720.
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lados". Porém ele lembrou a si mesmo, nas linhas anteriores, esta tese fundamental do marxismo: que a chamada separação é uma ficção. Só existe uma história, que é ao mesmo tempo história humana da natureza e história natural dos homens. Na verdade, os homens criam-se e transformam-se em sua humanidade por suas relações com a natureza (no trabalho, o domínio e a humanização paulatinas desta); e portanto, por isso mesmo, a natureza não é "uma coisa dada imediatamente e por toda a eternidade, sempre semelhante a si mesma, mas produto da indústria e das condições sociais, e isto no sentido de produto histórico, de resultado da atividade de toda uma sequência de gerações das quais cada uma delas, subindo nos ombros da anterior, continua a desenvolver sua indústria e comércio"5... A cláusula prévia pela qual se queria fazer a ciência escapar a um processo por ideologia não é portanto admissível. Quais são então os elementos que alimentam a acusação de ideologia? Em primeiro lugar, a ciência sofre todos os efeitos da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual. Ela não só é uma atividade intelectual, gozando como tal da autonomia e dos privilégios que a sociedade reconhece nas obras do espírito, como reproduz no seu seio aquela mesma divisão que opõe então teoria e experimentação, ciência pura e aplicações. Mais ainda como observará Lenin em Matérialisme et empiriocriticisme [Materialismo e empiriocriticismo]íà divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual inclina a ciência ao idealismójNão se devem levar em conta as declarações de Niels Bõhr e outros teóricos da mecânica quântica. Para eles, o real é o que os conceitos e equações da física definem, e querem livrar-se de qualquer hipótese sobre uma realidade em si, anterior e subjacente a nosso conhecimento. Em outras palavras, como na ilusão religiosa, eles tomam reflexos por realida5. K. Marx, L'idéologie allemande, (Euvres, T. III, Plêiade, p. 1078.
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de. O materialismo marxista objeta-lhes que "a realidade obi tiva existe independentemente da consciência humana que a reflete". E se nosso pensamento pode assim conhecer a natureza, é porque faz parte dela, é seu produto e sua mais elevada expressão. De certo modo, é a natureza que toma consciência de si mesma na consciência do homem... IO universo é um movimento da matéria regido por leis, e nosso conhecimento, não sendo senão um produto superior da natureza, só pode refletir essas leis.1
— Por outro lado, a ciência é uma atividade social e histórica, correspondente a um certo estado de desenvolvimento do homem e de seus recursos. Porém, apanágio dos "sábios", apropriada por eles, de certo modo, a título privado, ela é uma "alienação". Separa os homens reais de sua essência de homens, amputando-lhes seu poder de conhecer para reservá-lo a uma elite. Nestas condições, sua reivindicação de conteúdos universais, em contradição com sua "forma" particular, aparenta-se à impostura do Estado ou do Deus das religiões, outras proj ecoes de um falso universal7— Marx reprova ainda a ciência (como as ideologias em geral) por negar sua própria historicidade e por apresentar como puros conhecimentos atemporais aquilo que é apenas o resultado provisório de um processo de produção intelectual destinado a elaborar conceitos e leis sempre mais afinados a partir dos objetos brutos do mundo real. Por todas essas razõesfa ciência, as forças naturais que ela mobiliza e as realizações' técnicas que gera, "tudo isso assume o aspecto, perante os trabalhadores individuais, de objetos estranhos, de puros meios de trabalho que não dependem deles e os dominam, de meios que, em sua forma simples Lenin, Matérialisme et empiriocriticisme, pp. 139 e 223. K. Marx, Manuscrits de 1844, op. cit., p. 80. K. Marx, "Division du travail et idéologies", op. cit., p. 1034.
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e tangível, são a seus olhos funções do capital, logo, do capitalista"9. A ciência como instrumento e máscara da dominação de classe: eis o signo indiscutível da ideologia!) A ciência inocentada /E, no entanto, sob outra luz, esses elementos que investem contra a ciência tomam outro sentido e parecem separá-la da sorte comum das ideologias. Assim, por causa da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, o cientista goza de uma autonomia relativa. Seu conhecimento não está diretamente ligado aos interesses económicos e políticos, e sim segue sua própria lógica de desenvolvimento e pode, por conseguinte, pretender uma verdade sem mistura, objetiva e universal] Por outro lado, apesar de sua rigidez institucional e conceituai, a ciência não é imóvel. Ela está em constante movimento e é fonte de movimento, pois "o comportamento teórico e prático do homem em relação à natureza"10 é que é o motor e a base da história, com o capitalismo, e, nas sociedades modernas em geral, as ciências passaram a ser uma força produtiva essencial e operam portanto no sentido da história. Em particular, graças ao maquinismo e à automação nos quais desembocam suas descobertas, elas libertam a prazo o proletariado... Transformando a indústria, as ciências da natureza preparam a emancipação do homem, embora elas tenham tido que, primeiro, concluir sua decadência.11
Na verdade, se foram recrutadas a serviço do capital e se ainda participam da alienação e da exploração do proletariado, elas manifestam estrondosamente a contradição interna que mina o capitalismo e o condena à morte. Este só pode sobreviver desenvolvendo cada vez mais investimentos de pesquisa e técnica; mas está certamente trabalhando assim a mais não poder para sua própria perda, reduzindo a parte do trabalho humano, base da exploração e de todo o sistema social e fonte de lucro. Marx chega mesmo a considerar que "graças ao lazer e aos recursos colocados ao alcance de todos, a redução ao mínimo do trabalho social necessário favorecerá o desenvolvimento artístico, científico etc. de cada um"12. Assim, o desenvolvimento da ciência aboliria a alienação que ela pôde secretar fazendo de sorte a que sua pretensão à universalidade ache-se efetiva e completamente realizada pela partilha do saber entre todos. (Todos os argumentos que visavam assimilar a ciência a uma ideologia mudam então de posição — a ciência só é alienante na sociedade capitalista porque ela própria é, aí, alienada: ao se realizar, liberta os homens e recoloca-se no eixo da verdade. \ J
A ciência na prática histórica Mas se a ciência pode assim escapar à mistificação ideológica, é unicamente na medida em que está ligada à prática: . questão de saber se o pensamento humano pode dar numa verdade objetiva não é uma questão teórica, e sim uma questão prática.-A
9. K. Marx, Matériaux pour 1'économie [Material para a economia], (Euvres T II Plêiade, pp. 384-385. 10. K. Marx, La sainte famille [A sagrada família], (Euvres, T. III, Bibliothèque de Ia Plêiade, Gallimard, p. 594. 11. K. Marx, Économie et philosophie. Manuscrita de 1844 [Economia e filosofia. Manuscritos de 1844], op. cif., p. 86.
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12. K. Marx, Príncipes d'une critique de l'économie politique [Princípios de uma crítica da economia política], (Euvres, T. II, p. 306. (O grifo é meu, C. C.) 13. K. Marx, Deuxième thèse sur Feuerbach, Études philosophiques [Segunda tese sobre Feuerbach, Estudos filosóficos], Sociales, p. 61.
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Só a prática prova a objetividade do "reflexo" (cf. pp. 126127). Mas o que se deve entender pela noção de "prática"? Tratase, com certeza, da atividade social de produção de conceitos, leis, abstrações e modelos através dos quais o homem busca paulatinamente refletir fenómenos naturais que ele não pode, de pronto e imediatamente, apreender em sua totalidade. Esta prática é, portanto, histórica, e as verdades objetivas que ela produz são parciais e relativas. Mas a prática é também social, técnica, industrial. Na verdade, a natureza não é um mundo à parte, estagnado sob o olhar do homem, numa eterna identidade. Ela é transformada pela atividade humana ainda mais porque serve de suporte e transforma esta última. E, dentro do processo global e histórico de produção (quer se trate da produção de bens como da de conhecimentos que, ambas, interferem), esta dialética do homem e da natureza cruza-se do mesmo modo com aquela do homem e da sociedade e dos grupos sociais entre si... Na produção, os homens não agem apenas sobre a natureza, mas também uns sobre os outros. (...) Para produzir, eles entram em relações e ligações determinadas uns com os outros, e somente nos limites dessas relações e ligações sociais é que se estabelece sua ação sobre a natureza, faz-se a produção.
\A prática que fundamenta o conhecimento científico e garante sua objetividade é portanto, simultaneamente, atividade histórica e social dos homens, trabalho técnico e científico, luta de classes, construção do socialismo; em suma, a transformação recíproca da natureza e das relações sociais (cf. texto 31).) Por conseguinte, para o pensamento marxista, o progresso das ciências rumo à verdade e à objetividade é indissociável do progresso social e da luta de classes que é seu motor. A ciência é ideológica quando se liga a um estado social histori14. K. Marx, citado por R. Garaudy; Contribution à Ia théorie matérialiste de Ia connaissance [Contribuição à teoria materialista do conhecimento], PUF 1953, p. 294.
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camente ultrapassado e às forças conservadoras que tendem a perenizá-lo. Ela é conhecimento objetivo quando está às voltas com o movimento revolucionário e as classes ascendentes que portam o sentido da história. Assim, a burguesia só favoreceu o advento das ciências enquanto esteve historicamente numa fase ascendente. Hoje decadente, ela só pode temer e refrear o desvendamento da verdade, falsear sua expressão, e só a uma "ciência proletária" cabe abrir-se diretamente para a busca de novos horizontes de verdade (cf. texto 32). E isto ainda mais porque o proletariado não é apenas a classe social que encarna atualmente o sentido da história, mas aquela que prepara a abolição das classes sociais, a realização do universal concreto no comunismo mundial, o acesso de todos ao saber e à cultura e o fim da história. "Ela e a ciência são uma coisa só", diz Roger Garaudy (p. 319), que fica maravilhado de que, na URSS, o laboratório da nova ciência não fique confinado aos limites dos institutos científicos mas se estenda às oficinas das fábricas e aos campos imensos dos colcoses: Os grandes canteiros do comunismo revelaram novos aspectos do papel da prática como fonte e critério de conhecimento. Eles deram à ciência uma nova função na sociedade e na história. 15
A ciência deveria então conquistar incessantemente seu objetivo contra toda tentativa ou tentação de falsificação ideológica. Garaudy preconiza a vigilância crítica e o "espírito de partido" e denuncia, como pura hipocrisia, a atitude de quem, em nome do "objetivismo" e da pureza da ciência, gostaria de situá-la acima da contenda, fora da arena social e histórica... É claro que, em tais condições, o primeiro dever dos cientistas e pesquisadores é lutar impiedosamente, pela crítica e pela autocrítica, contra toda sobrevivência da ideologia do capitalismo em seus métodos e trabalhos. Ser objetivo, em história, em filosofia, em ciência, em qualquer 15. Roger Garaudy, Contribution à Ia théorie matérialiste de Ia connaissance, op. cit., p. 375.
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coisa, não é pretender colocar-se "acima das classes", é colocarse consciente e deliberadamente do ponto de vista da classe ascendente.
E, para ilustrar "a intricação, em toda disciplina científica, daquilo que reflete objetivamente a natureza e daquilo que reflete o caráter de classe do conhecimento em cada momento" (p. 36), Garaudy cita o exemplo do darwinismo que, "naquilo que tem de maior e mais verdadeiro, como no que ultrapassou historicamente, é tributário de toda a prática social do seu tempo". Ao mesmo tempo, do domínio técnico que haviam adquirido os criadores ingleses na seleção dos caracteres biológicos do seu plantei e do modelo ideológico concebido por Malthus para mascarar as contradições do capitalismo (cf. texto 33). O joio e o trigo que só os ceifeiros da história — que são os proletários e seus aliados — podem distinguir.
Um escorregão: o caso Lyssenko Entre estes, Garaudy cita com frequência Lyssenko, cujos trabalhos comprovaram o que pode "a união da ciência com a prática da construção do comunismo" (p. 315), o vínculo orgânico do conhecimento da natureza com a transformação da sociedade. Lyssenko, cujo título de glória seria justamente haver organizado a teoria darwiniana, como fez Marx com a dialética hegeliana. Signo da ideologia: a inversão; ela põe tudo de cabeça para baixo. Há espaço, portanto, para os defensores de ideias e para os reformadores da ciência! Como heróis e símbolos da ciência proletária, Lyssenko e, à sua volta, Mitchurin (jardineiro autodidata que cria novas espécies vegetais por enxerto e miscigenação), Olga Lepechins16. Roger Garaudy, op. cit., pp. 315 e 318.
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kaia (que ressuscita a ideia de uma geração espontânea contestando a teoria celular), Oparin, Williams (promotor, no estudo dos solos, de um método ativo oposto à passividade dos métodos burgueses) só conhecerão, entretanto, uma glória efémera. A história, por sua vez, logo terá que lançar por terra a obra e as pretensões desses adeptos da deposição que se valem dela para acabar com a "ciência burguesa". Sem dúvida, o impasse no qual se perderam os cientistas soviéticos é apenas uma peripécia nessa empreitada monstruosa e arrebatada, que visa transformar a sociedade e a história, que foi o stalinismo em seu conjunto. Mas seu fracasso foi um golpe fatalpara a tese das duas ciências, e ele nos força a refletir sobre os limites da crítica externa e sociológica da ciência. Retomemos rapidamente o caso Lyssenko, símbolo das pretensões e ilusões de uma descontaminação ideológica da ciência. Filho de camponeses ucranianos, T. D. Lyssenko (1898-1976) é um técnico agrícola que se tornou conhecido primeiro ao inventar o processo da "vernalização", o qual permite transformar trigo de inverno em trigo de primavera e, assim, estender as zonas de cultura e, deste modo, melhorar os rendimentos. Os resultados são mais que duvidosos, mas uma hábil operação publicitária garante o sucesso da vernalização, estendida por decisão política a todos os sovcoses e colcoses soviéticos. Na verdade, a nova técnica chega politicamente, na hora certa: ela exige investimentos (construção de estufas, de armazéns-laboratórios...) que o camponês não pode assumir individualmente e que parecem, portanto, justificar a coletivização da agricultura. Lyssenko, principalmente, insere-se habilmente numa vasta campanha ideológica destinada a mascarar os fracassos económicos e políticos do stalinismo, imputando-os à sabotagem dos kulaks, dos intelectuais burgueses e outros inimigos de classe. À ciência idealista e burguesa dos universitários, apartados da prática, a manifestar um gosto decadente pelos refinamentos teóricos e protocolos metodológicos e a confraternizar, para além das fronteiras socialistas, com a comunidade "cosmopolita" dos cientistas, opõe-se o
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saído do povo, que não é senão o prolongamento teórico ,je uma prática, a serviço de uma política de desenvolvimento para o povo, e que não esquece que o universal só pode ser Atingido através da luta mundial do proletariado. Dizer que o caráter de classe da ciência reside na defesa dos interesses de uma dada classe não passa de um argumento panfletário ou de falsificação pura e simples. Na realidade, a ciência pode ser burguesa ou proletária por sua própria "natureza", notadamente por sua origem, suas concepções, seus métodos de estudo e de exposição. Nesse sentido fundamental, todas as ciências, inclusive a matemática e a lógica, podem ter — e realmente têm — um conteúdo de classe.1
Nesse contexto, Lyssenko vai se apoiar nos trabalhos de jyiitchurin, um "cientista descalço" como ele, para apelar a uma cjência proletária engajada no front das ideias na mesma luta fá classes contra a ciência burguesa que os colcosianos contra Os kulaks, os verdadeiros comunistas contra os inimigos do p0vo, o "paizinho dos povos" contra o complô do internacionalisjjjo capitalista. Ele, que não era geneticista (nem sequer cientista), mas portador da secular habilidade dos camponeses russos, vai se engajar no combate teórico para contestar os discípulos do jjionge Mendel e os adeptos do neodarwinismo, culpados, a seu ver, por levarem a genial descoberta de Darwin para o idealisjjjo e a ideologia burguesa. Quais são então os termos e o foco do debate? Charles Darwin (1809-1882) explica a infinita diversidade do mundo vivo -sem recorrer à hipótese da livre egcolha de um criador divino: as espécies transformaram-se paulatinamente umas nas outras e a diversidade é resultado desta evolução. Engels vê nesta teoria uma das "três grandes Descobertas"18 da ciência. Aos olhos de um marxista, ela tem, com Bogdanov, citado por Dominique Lecourt, Lyssenko —Histoire réelle d'une science prolétarienne [Lyssenko — História real de uma ciência proletária], Maspero, 1976, p. 160. ig F. Engels, Dialectique de Ia nature [Dialética da natureza], Sociales, 1977, pp. 196-198.
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efeito, o mérito de introduzir a dimensão temporal e histórica no mundo do vivo e da natureza, e de contribuir de maneira decisiva para a concepção materialista de mundo reconstruindo parcialmente o processo que gera o espírito humano a partir de uma espécie. Em função das características do meio, essas variações favorecem ou contrariam a adaptação do indivíduo a seu meio ambiente. Ora, como a proliferação dos seres vivos os coloca em situação de concorrência inter- e intra-específica (entre as espécies e entre os indivíduos que compõem cada uma delas) no seio de uma natureza cujos recursos são limitados (modelo malthusiano), só os indivíduos portadores de variações vantajosas poderão sobreviver, logo, reproduzir-se e transmitir a seus descendentes o caráter novo do qual o acaso os dotou. É assim que pode surgir uma espécie nova, pelo jogo conjugado da "seleção natural", da adaptação ao meio e da reprodução. Mas Darwin parte de variações individuais que ele não explica: Trata-se de modificações adquiridas através das condições de vida? De propriedades congénitas? De onde vêm elas? Elas se reforçam pelo uso? Transmitem-se automática e invariavelmente? A genética fundada pelo monge austríaco Gregor Mendel (1865), e desenvolvida depois, entre outros, por A. Weisman (1834-1914) e T. Morgan (por volta de 1920), vai trazer respostas para essas perguntas e conduzir à síntese chamada "neodarwinismo". A ideia é que as "variações" darwinianas, doravante rebatizadas de "mutações", não surgem diretamente no nível dos órgãos, mas afetam, no germe, o suporte genético de informação necessário à construção do organismo. Elas se transmitem hereditariamente segundo leis estatísticas estabelecidas por Mendel. Com isso acaba a ideia (sustentada por Lamarck, precursor de Darwin) de que um indivíduo poderia transmitir à sua descendência caracteres que adquiriu durante a vida. A partir daí, a evolução biológica é avaliada no ritmo lento e aleatório das mutações genéticas e das inúmeras gerações necessárias à fixação de um caráter. Não se pode esperar desviar ou acelerar o curso da vida por uma ação voluntarista sobre o meio, pois nada passa do meio para o património da espécie. 139
É isto o que incomoda ideologicamente o marxismo (é preciso dizer: sob seus avatares stalinistas?), impaciente para mudar o homem e a vida por uma transformação revolucionária da sociedade e da infra-estrutura material. Causa-lhe aversão, por outro lado, a ideia de uma desigualdade natural dos indivíduos, uma desigualdade que não procederia das condições de vida e de meio. Enfim, a afirmação de uma "luta pela vida" no seio de uma mesma espécie parece refletir o estado da sociedade burguesa, baseada na concorrência interindividual e na luta de classes. Porém admiti-la como lei da natureza equivaleria a decretar o fim da utopia marxista da sociedade sem classes e da harmonia comunista. Não há por que hesitar: o debate de ideias é um combate político! De maneira ousada, Lyssenko propõe as retificações necessárias. Nega, primeiro, a ficção burguesa que são, segundo ele, as noções de cromossoma e de gens concebidas expressamente para encerrar a vida num bastião inviolável, ao abrigo de toda influência do meio. Apoiando-se nas experiências de Mitchurin, ele assegura que se pode transformar as espécies e mesmo produzir artificialmente espécies novas agindo sobre o meio e sem esperar mutações genéticas aleatórias. Ao invés de especularmos e nos entregarmos a uma compatibilidade divisória sobre ervilhas ou moscas, saibamos tirar lições do saber popular e empírico dos criadores e horticultores e construamos uma ciência na medida das necessidades da nova economia! A transmissão dos caracteres adquiridos só é um mito para quem teme mudanças. A biologia proletária parte da ideia de que é possível sujeitar cada forma animal ou vegetal a modificar-se mais rapidamente no sentido desejado pelo homem. Assim, abre-se para este último um vasto campo de ação da maior utilidade para ele.19
Quanto à ideia de uma luta intra-específica, que Darwin considerava a forma maior de luta pela vida (na medida em que os membros de uma mesma espécie estão em concorrência
19. Lyssenko, citado por D. Lecourt, em Lyssenko — Histoire réelle d'une science prolétarienne, op. cit., p. 39.
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pelos mesmos recursos naturais) e que Engels já reprovava20 Lyssenko trata-a com desprezo e zombaria: Na natureza, não há concorrência dentro da mesma espécie. A concorrência só ocorre entre espécies: o lobo come a lebre, as lebres não se comem entre si; a lebre rói a grama. O frumento não sufoca o frumento. (Cf. texto 34.)
Que a rarefação da grama prive de alimento e condene uma parte da população das lebres, que plantações muito cerradas não possam desenvolver-se harmoniosamente, eis o que quase não parece abalar sua fé na solidariedade dos congéneres. Seu entusiasmo socialista chega mesmo a alistar na mesma fraternidade específica lebres e espigas de trigo, sobre os quais ele não hesita em dizer que chegam a ter necessidade de se sacrificar individualmente para o bem da espécie: a pseudoconcorrência converte-se em abnegação altruísta21! É, aplicado à natureza, o princípio da moral stalinista que convida a geração dos pais a se sacrificar pela felicidade futura dos filhos ou netos... Aliás, Lyssenko promoverá, de acordo com este princípio da subordinação dos indivíduos ao bem da espécie, uma nova técnica de plantações em "ninhos" ou "feixes" do kok-saguiz (dente-de-leão da borracha) e árvores de floresta. A aplicação desta técnica em ampla escala no "Grande plano de transformações da natureza" de 1944 será um desastre proporcional às ambições e à cegueira do lyssenkismo! Em 1965, data da desgraça de Lyssenko, o balanço é catastrófico. Não só a contribuição da "biologia mitchuriana" foi cientificamente nula, como sua posição de ciência oficial paralisou as pesquisas durante uns trinta anos: os cientistas mais reputados foram afastados ou assassinados, toda a atividade científica bloqueada e extraviada. Na verdade, Lyssenko 20. F. Engels, Dialectique de Ia nature, op. cit., pp. 316-317. 21. Cf. conversa de Lyssenko com Mareei Prenant, citada em D. Lecourt, op. cit., p. 125. 141
impôs a esta última a tutela política e ideológica do materialismo dialético, e o que ele fez em biologia e genética, foi imitado por outros em outros ramos da ciência. Em física, Maximov denunciou como idealistas e burguesas a mecânica quântica e a teoria da relatividade. Em química, Chelintsev rejeitou as descobertas "burguesas" de Pauling sobre a natureza da ligação química e a estrutura das moléculas e tentou reconstruir toda a química orgânica sobre as bases do materialismo dialético. Tem-se aí um movimento geral de refundição das ciências para pô-las a serviço de um projeto voluntarista de controle da natureza, sem prazo nem limites. E isto porque, no contexto da guerra fria como aos olhos da missão "histórica" do proletariado, o socialismo deve provar sua superioridade sobre o capitalismo decadente. Mas a aplicação das descobertas mitchurianas e lyssenkistas aos imensos canteiros do comunismo tem por saldo uma catástrofe agrícola, um abismo financeiro e uma ruína política e burocrática. A prática, tanto sócio-histórica quanto técnica, não consegue salvar a "ciência proletária" que apostou tudo nela. A teoria das duas ciências recebeu um golpe mortal e, com ela, a suspeita de ideologia que ela fazia pesar sobre o conhecimento da natureza. Como seu mestre Stalin, Lyssenko passou sob signo negativo para os lucros e perdas da história.
ciedade, que financia e orienta as pesquisas e decide sua utilização. Porém o conhecimento, em si, em seu conteúdo conceituai e teórico, continuaria a ser obra pura do espírito em diálogo com a natureza, preservada de toda e qualquer contaminação social [A ciência só seria ideológica pelo uso que é feito dela, mais a serviço do lucro e do interesse capitalistas que daquele da humanidade, da emancipação e da felicidade dos homená^Assim, Evry Schatzman, astrofísico marxista, propõe que se distinga "cuidadosamente o conteúdo da ciência, isto é, o conhecimento científico, e a maneira pela qual este conhecimento é adquirido; homens, organizações, instituições"...22 — ou, poder-se-ia acrescentar, como esse conhecimento é usado e recuperado/^
Entre Cila e Caribde ou os excessos de um arrependimento
A ideologia não penetraria, portanto, no Santo dos Santos, a alienação não afetaria a essência mas apenas os aspectos adventícios...
Porém, como acontece frequentemente, a reação aos excessos do lyssenkismo teve um efeito pendular, sendo que o retorno do pêndulo reconduz à tese extrema de uma virgindade da ciência. Desestalinizados, "delyssenkizados", os marxistas purgam os erros e cumplicidades passados com novas ilusões e fazem-se muitas vezes de dóceis zeladores do cientificismo. Eles reconhecem, sem sombra de dúvida, que tanto a jusante quanto a montante, o conhecimento científico depende da so142
A existência de uma crise de consciência entre os cientistas resulta do conflito entre o conteúdo da ciência e a situação social da ciência. A pesquisa fundamental, em sua motivação, ignora os interesses da produção e as necessidades do poder político. Sua única meta é a descoberta das leis da naturezafO cientista, porém, não pode mais ignorar que suas descobertas possibilitam dar uma potência maior ao poder político. Ele deve mesmo constatar que suas descobertas lhe escapam e que sua própria existência serve de álibi para decisões que lhe causam horror. Esta alienação é sentida violentamente pelos jovens pesquisadores, no campo das ciências da natureza, onde, entretanto, a noção de realidade objetiva não pode ser questionada. (E. Schatzman, 1972, pp. 11-12)^1
Em matemática, em física, em biologia, em medicina, ciências de desenvolvimento e riquezas consideráveis, uma sociedade não pode, sob pena de se ridicularizar, permitir-se tratar cavalheirescamente as ideias correntes e ainda mais porque [...] a
22. E. Schatzman, "Lê point de vue matérialiste" [O ponto de vista materialista], em "La science en question" [A ciência em questão], revista Après-demain, n- 145, junho de 1972, pp. 11-12.
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ciência que se desenvolve é praticamente independente das ideias políticas ou religiosas dos cientistas. Não há uma ciência-burguesa e uma ciência proletária. Até nova ordem, só existe uma ciência. E toda tentativa de dar à pesquisa uma orientação de classe revelou-se inútil.23 As leis dos processos naturais não trazem o selo de nenhum regime económico, político ou social... [Elas] não são escravagistas, nem feudais, nem capitalistas, embora tenham sido encontradas em sociedades que portam esses nomes. (Cf. texto 35.) A ciência [...] é, como a religião, a moral, o direito, uma "superestrutura" segundo Marx? Se a superestrutura é "um reflexo do mundo real", a ciência é efetivamente um reflexo do mundo real, e pretende mesmo ser o mais fiel reflexo. Porém, [...] ela não me parece ser uma superestrutura como as outras. Ela é fundamental, mais permanente, seu cabedal é incomparavelmente mais sólido. Ela é também mais independente: a pesquisa científica progride no seu próprio ritmo, e progride através das vicissitudes de nossas civilizações. A ciência tem uma fisionomia particular, uma vida pessoal, uma evolução distinta, que resulta diretamente da natureza humana e daquela das coisas. (Cf. texto 36.)
Porém, traumatizados pelo caso Lyssenko, os cientistas que apelam ao marxismo fecham-se numa posição extrema e ameaçam, em seu desvario, deixar se perderem as armas intactas e insubstituíveis da crítica marxista. As análises dos capítulos anteriores demonstram que a ciência não pode ser tão facilmente subtraída à ameaça ideológica e que as distinções entre a forma e o conteúdo, a instituição e o saber, a jusante ou a montante, são, assim como o cómodo "corte epistemológico", demasiado artificiais para servirem eficazmente de cordão sanitário. Produzida e inserida na história social, a ciência partilha do destino e porta as sequelas daquela. Não existe ciência pura. Ademais, os choques e reveses do lyssenkismo devem prevenir-nos sobre os limites além dos quais a crítica social das ciências não poderia se aventurar.
23. L. Schwartz, "Marxisme et pensée scientifique" [Marxismo e pensamento científico], Cahiers du Centre d'Études Sociales, novembro de 1961, p. 26.
Os limites de uma sociologia da ciência Já vimos (p. 63) Alexandre Koyré brandir o leque do relativismo e do reducionismo. Na verdade, ao insistir demais no enraizamento social da ciência, para explorar socialmente o poder desta (como Lyssenko) ou para desqualificá-lo (como a sociologia crítica) corre-se o risco de negá-la ou de passar ao largo daquilo que constitui sua especificidade.(Ao combater no terreno do adversário, sempre se corre o risco de assemelhar-se a ele, e o anticientificismo pode sucumbir à mesma mitomania que o cientificismo substituindo-o pela ilusão de que a ciência é tudo, a ilusão inversa de que ela nada é. Michel Serres põe bastante em evidência aquilo que deve continuar a ser a pedra de toque em todo nivelamento dessa espécie: j í Consideremos uma história externa das ciências a mais radical possível, que reconduza uma invenção qualquer a seus fatores sociais; debates de ideias ou interesses, obrigações institucionais, estratégicas, financeiras, económicas, acumulação local de informações, organização de escolas ou laboratórios, em suma, o conjunto de forças em relação recíproca e as condições concretas mobilizadas por acontecimento tal como ele se dá. ^$ Pergunta: Por que ocorreu esta mobilização? Como esses conjuntos se cristalizam? Em razão da verdade. [...] Da objetividade como exterior a todas essas condições e obrigações e não resultando exatamente delas.24
Em outras palavras, se a ciência é mesmo unia produção social, ela só pode se constituir abrindo-se para um valor transcendente: o valor da verdade, que enfoca e concilia todas as forças mobilizadas. Se a pretensão ao verdadeiro não passasse de impostura, a empreitada cairia por terra e os elementos que nela concorrem se dispersariam, como aconteceu justamente com, o lyssenkismo. Porque universal por essência, a verdade não pertence a ninguém e é por isso que ela pode 24. Michel Serres, "Paris 1800", emÉléments dhistoire dessciences, op. cit., pp. 358-359.
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reunir, num mesmo processo de produção do saber, financistas, políticos, administradores, pesquisadores, técnicos etc., assim como, no plano puramente cognitivo, força o consenso dos homens de ciência. Pelas mesmas razões, Platão já observava que até mesmo um bando de fora-da-lei se desfaria se não estivesse firmente unido pela adesão a uma lei superior... Não deixa de ser verdade que o universal se esquiva em sua transcendência. A verdade resplandece suficientemente sobre o mundo da ciência para unificar os esforços que a ela aspiram, mas ela não se deixa apreender. Ela se mostra o bastante para que os caminhos do verdadeiro convirjam, mas continua inacessível e não permite que eles se reunam nela. Eis por que a pretensão à universalidade da ciência ocidental parece, no mínimo, prematura e suspeita. O caminho que nossas sociedades traçam em direção à verdade é o único possível e válido? Seu percurso não é determinado pelas características do terreno de nossas sociedades tanto quanto pelo fim? Não haveria às vezes interesse em pegar atalhos ou desvios? Evry Schatzman indigna-se de que "se fale com a maior facilidade em ciência francesa, ciência russa ou ciência americana". "As leis de um processo natural não têm nem nacionalidade, nem pátria", conclui ele.25 As leis da natureza, sem dúvida que não; mas, e as leis científicas? O que vale para a natureza não vale necessariamente para as representações que os homens fazem desta natureza. Ciências francesa, russa ou americana seguem evidentemente o mesmo itinerário; mas o que acontece com aquelas do Oriente ou da África? Estamos tão certos de que nosso saber singular é o único saber e que o universal fixou domicílio no Ocidente?
«"** ^Ciência e sociedade, R. Laffont,
6. UNiyERSALIDADE OU RELATIVIDADE: A CIÊNCIA DIANTE DA DIVERSIDADE DAS CULTURAS
Uma das convicções fundamentais do cientificismo é o valor universal do conhecimento científico. Embora nascido no Ocidente moderno, este seria válido em todos os tempos e lugares; transcenderia sociedades e formas particulares de cultura, como, aliás, a psicologia ou a história individual dos pesquisadores que se dedicam a ele. Obra de uma razão que é património comum da totalidade dos homens, ele seria o verdadeiro esperanto de um mundo novo... De um mundo enfim capaz de sair do obscurantismo e dos particularismos para assumir sua identidade e sua responsabilidade planetárias. O universalismo da ciência está em primeiro lugar entre aquelas opiniões admitidas que são tratadas como evidências... A ciência, como essa natureza à qual ela pertence, não é limitada nem pelo tempo nem pelo espaço. Ela pertence ao mundo e não é de país algum nem de nenhum século. (Humphrey
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Davy, químico e físico inglês) A ciência moderna nasceu na Europa, mas seu habitat é o mundo inteiro... Fica cada vez mais evidente que o que o Ocidente pode dar mais facilmente ao Oriente é sua ciência, assim como sua mentalidade científica. Estas são transferíveis de um país a outro, e de uma raça a outra, onde quer que exista uma sociedade que_pense. (A. N. Whitehead, matemático e filósofo inglês, 1861- 194?r As linguagens científicas, os métodos usados pela experimentação ou pela teoria, a maneira de abordar os problemas, de tentar cercá-los, resolvê-los, de discutir os resultados, tudo isso constitui um conjunto perfeitamente unívoco, na escala não mais de uma país, mas do planeta. (...) Assim a ciência desenvolve, com crescente amplitude, todo um conjunto de dados de caráter universal. (...); o cientista participa de uma empreitada de planetarização. (Louis Leprince-Ringuet, físico, 1966)^
Porém tais proclamações universalistas não participam do mito das Luzes que levou o Ocidente, nos séculos anteriores, a se pretender o salvador, o preceptor ou o vigilante do resto do mundo? Após haver despachado para a África, a Ásia e a América Latina seus padres, soldados e comerciantes, não estaria ele dando prosseguimento à mesma política imperialista, satisfazendo as mesmas ilusões de supremacia ou as mesmas fantasias de poder e enviando hoje mundo afora seus especialistas com suas bagagens de ciência? O Ocidente é mesmo o depositário particular de uma racionalidade de vocação universal, e, então, sobre o que assentar a reivindicação de uma universalidade de direito que não pode se prevalecer de um reconhecimento inscrito nos fatos? Em outras palavras, como poderia a razão ser universal de direito se todos os homens não são racionais de fato? A invocação da razão não seria antes o álibi de uma
1. H. Davy, obra escrita em 1825 e citada em Serge Moscovici, Essai sur 1'histoire humaine de Ia nature, op. cit., p. 389. 2. A. N. Whitehead, La science et lê monde moderne [A ciência e o mundo moderno], Payot. 3. L. Leprince-Ringuet, Discurso de recepção na Academia Francesa, Lê Monde, 21 de outubro de 1966, p. 12. 148
conquista que não pode progredir sem máscara, um golpe (ideológico) que com isso encobriria outros menos teóricos? Claude Lévi-Strauss e a reabilitação dos saberes exóticos4 No contexto colonialista do início do século, Lucien LévyBrúhl opunha a mentalidade "pré-lógica" dos povos primitivos à mentalidade racional do Ocidente (La mentalité primitive [A mentalidade primitiva], 1922). A primeira seria ignorante dos cortes que a razão introduz e, levada pela intuição e pela participação afetiva, desembocaria na comunhão mística com forças naturais e sobrenaturais. Nisso, ela escaparia aos princípios de objetividade e de não-contradição que regem o espírito racional e científico. Claude Lévi-Strauss reage a esta oposição (que Lévy-Brúhl deveria — tardiamente, aliás — nuançar). Em La pensée sauvage [O pensamento selvagem] (1962), ele mostra que os chamados povos "primitivos" constituíram em cima de seu ambiente natural (plantas, animais, lugares ou doenças...) um saber perfeitamente preciso, rigoroso e sistemático. A finalidade deste não é tanto satisfazer magicamente as necessidades da vida diária quanto proceder a uma organização do mundo, a uma classificação coerente dos objetos e funções. Ele responde, portanto, a uma exigência de ordem teórica ou especulativa antes de fornecer receitas práticas. Na verdade, ele esquadrinha o mundo com uma rede de linhas tão cerrada que nada lhe escapa: os quatro elementos, os pontos cardeais, o alto e o baixo, o masculino e o feminino, as formas, as cores, os odores e os sabores, os órgãos e as estrelas, a fauna, a flora e as funções sociais, a geografia e o parentesco... tudo se cruza, se associa ou se opõe, num vasto sistema classificatório. 4. A noção de "saber" é tomada aqui numa acepção ampla que ultrapassa aquela de "ciência", estreitamente especificada e codificada (cf. cap. 2). De certo modo, a intenção deste presente capítulo é determinar o modo de articulação (inclusão, exclusão?) dessas duas noções.
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O primitivo é um taxinomista arrebatado porém rigoroso: o caos se desvanece e dele surge um cosmos, um mundo em ordem, disciplinado pelo espírito.ÍLévi-Strauss vê em tal empreitada uma verdadeira "ciência do concreto" que se apoia na lógica e postula o determinismo?] Sem dúvida o primitivo abusa da causalidade, multiplicando os laços e entrelaçamentos. A ciência ocidental, sob a dieta do positivismo, aprendeu a fazer um uso mais moderado do princípio causal e a reservá-lo para setores mais limitados. A causalidade só transita, aí, aos poucos, e não poderia saltar além de certas fronteiras, como por exemplo, a demarcação do natural e do social. Eis porque o pensamento selvagem poderia parecer mais uma prefiguração da ciência do que uma ciência paralela. "O determinismo seria globalmente suspeito e usado, antes de ser conhecido e respeitado"5, de sorte que o pensamento mágico só faria estimular uma "ciência ainda por nascer". Mas Lévi-Strauss não se mantém nessa linha de recuo: o saber dos primitivos só faz preparar a ciência moderna, ele a precede também assumindo os dados sensíveis que a ciência "começa somente a reintegrar em sua perspectiva [após haver-lhes] dado as costas por muito tempo". Por exemplo, a química moderna dos sabores e odores sem dúvida teria muito a aprender com classificações botânicas e receitas culinárias legadas pelos saberes tradicionais. Angustiada pela multiplicidade e instabilidade de um mundo sensível em perpétuo devir, a ciência seguiu as instruções de Platão: voltou-se para o inteligível e a abstração e evoluiu no universo reafirmando leis, conceitos, números, fórmulas.".., tantos monumentos que desafiam as mudanças do tempo e a exuberância da natureza, mas compõem finalmente uma paisagem gelada e mortal. Os saberes ancestrais e populares, com seus rosários de qualidades sensíveis e de dados imediatos, marcam o retorno do reprimido, sem cuja assimilação ele não é nenhum progresso verdadeiro.
5. Claude Lévi-Strauss, La penses sauvage [O pensamento selvagem], Plon, 1962, p. 19.
Eis por que Lévi-Strauss reivindica para os sistemas do pensamento mágico a validade de um saber verdadeiro. Um saber que a perspicácia das observações e dos raciocínios torna muitas vezes mais eficaz e operacional do que se crê (no estudo das doenças e na terapia pelas plantas, por exemplo). Um saber, também, do qual nossas teorias científicas ficam epistemologicamente bastante próximas, se é verdade que elas quase não nos propõem senão modelos de mundo, intelectual e esteticamente satisfatórios, versão "alta costura", matemática e sofisticada, de uma vestimenta que os povos tradicionais preferem mais enfeitada e descontraída. O pensamento mágico não é um início, um começo, um esboço, a parte de um todo ainda não realizado; ele forma um sistema bem articulado, independente, sob essa relação, desse outro sistema que constituirá a ciência, salvo a analogia formal que os aproxima e que faz do primeiro uma espécie de expressão metafórica do segundo. Ao invés, portanto, de opor magia e ciência, melhor seria pô-las lado a lado, como dois modos de conhecimento, desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos (pois, desse ponto de vista, é verdade que a ciência é mais bem-sucedida que a magia, embora a magia pré-forme a ciência no sentido de que ela também é bem-sucedida algumas vezes) mas não pelo género de operações mentais que ambas supõem, e que diferem menos em natureza que em função dos tipos de fenómenos aos quais elas se aplicam, [...] Existem dois modos distintos de pensamento científico, uma e outra função, não, certamente, estádios desiguais do desenvolvimento do espírito humano , mas níveis estratégicos em que a natureza se deixa atacar pelo conhecimento científico: um aproximativamente ajustado àquele da percepção e da imaginação, e o outro defasado.
O saber científico é "deslocalizado" Esta noção de defasagem merece um exame aprofundado. Como Lévi-Strauss, Bruno Latour8 denuncia a "Grande í
6. Oposição à lei dos três estados formulada por Auguste Comte (cf. pp. 22-23). 7. Claude Lévi-Strauss, op. cit., pp. 21 e 24. (O grifo é meu, C. C.) 8. Bruno Latour, "Lê Grand Partage" [A Grande Divisão], Revue du MA. V. S.S., n21, La Découverte, pp. 27 a 64.
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Divisão", herdada de Lévy-Bruhl, entre espírito científico das sociedades ocidentais e espírito pré-científico das "outras" sociedades. Não há, de um lado, o racional universal e do outro o irracional de cores locais. É preciso entender como dois procedimentos igualmente racionais produzem um saber esotérico aderente ao cotidiano e localizado e outro saber público, teórico e deslocalizado. Alain Caillé conta e comenta uma história que ilustra de maneira divertida esta diferença: O etnólogo ao selvagem: "Fulano é um homem; todos os homens são mortais; você pode me dizer se Fulano é mortal?" Resposta do selvagem ao etnólogo: "Não sei... é que, veja só, eu não conheço esse Fulano... então não posso responder." Não se poderia deduzir deste exemplo que os selvagens não são "lógicos", num sentido que ainda se deve precisar. Mas o que fica claro é que eles não põem em ação uma lógica descontextualizada, funcionando por sua própria conta, independentemente dos referentes sociais concretos. Numa palavra, eles não põem em ação a lógica das nossas universidades.
O saber dos índios visa unicamente a adaptação deles a seu meio ambiente, a seu microcosmo. Ele é uma informação da vivência (formulação e colocação em forma) destinada a reinvestir-se imediata e totalmente na vida local. Ele evoca o esquema marxista M D M1 de troca pré-capitalista, no qual o dinheiro (D) é apenas um intermediário que desaparece na transação de uma mercadoria (M) contra uma outra (M1)10. Assim também, aqui, o saber não tem valor abstrato ou geral: ele só intervém como mediação para desbloquear uma situação vivida, superar o insólito e retomar o curso familiar da existência. Ele determina a passagem do indominável ao dominado, do anormal ao regular.
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Alain CaiUé, "Pour un universalisme relativiste" [Por um universalismo relativista], Revue du M.A.U.S.S., ns l, p. 139. (O grifo é meu, C. C.) Cf. Karl Marx, Lê capital [O capital], 2- seção, cap. IV.
Robin Horton11 mostrou que, na vida comum, os africanos não recorrem a seu sistema de representação que põe em cena deuses e espíritos. Só o fazem confrontados ao inabitual, quando os dados de senso comum não bastam mais para explicar o que se passa. Seu saber é conjuntural e transitório: isento de finalidade própria, ele só faz catalisar a reação vital diante de um problema. Este caráter explica, por exemplo, dois traços bastante conhecidos do saber mágico: o realismo das palavras e o que se poderia chamar "ocasionalismo". As palavras teriam, para os indígenas, o poder de fazer advir no ser o que elas designam; isto é, estariam ligadas às coisas de maneira absoluta, e não por uma simples relação de convenção ou instrumentação. Assim, a palavra do feiticeiro teria o poder de curar ou matar, de expulsar os espíritos ou fazer chover. Tal crença participa mesmo da ideia de que a ordem geral da representação, à qual pertencem as palavras, não é senão uma fase transitória num processo real: a ação bloqueada chama as palavras mágicas, e estas liberam a ação. Quanto às ideias, elas não têm um valor geral e permanente que permitiria aos indígenas expô-las como tais num sistema representativo. Ficam ligadas a ocasiões precisas e vinculadas à realidade. Por exemplo, em caso de doença, o paciente e feiticeiro saberão identificar a causa dela, digamos, a ira de determinado espírito. Mas não existe explicação genérica e permanente para a doença que poderia desembocar numa sintomatologia. O saber permanece portanto sempre inserido numa situação e numa ação particulares, estreitamente localizado. Ao contrário, na ciência, o saber torna-se capitalizável, entra num processo de acumulação. A experiência tem por finalidade constituir um saber novo que se acrescenta (como a "mais valia" na troca capitalista de que Marx dá conta com a fórmula D M D+) ao estoque de conhecimentos j á capitalizado. 11. Robin Horton, "Pensée africaine traditionelle et science occidentale" [Pensamento africano tradicional e ciência ocidental]. Artigo publicado em inglês na revista África, vol. XXXVII, Londres, Oxford University Press, 1987.
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O cientista não procura saber, como o indígena, para desbloquear a experiência e retornar à expenência; ele faz experiências com o fim único de saber. Observa-se, diz Bruno Latour retomando uma expressão de Michel Foucault, "esta queda do papel do intermediário que é tão peculiar à 'economia capitalista do verdadeiro' "12. Na realidade, a motivação do cientista parece mesmo aparentar-se àquela do capitalista. Marx mostrou que o capitalista é indiferente ao "valor de uso" das mercadorias que ele troca, sendo seu objetivo exclusivo o aumento do equivalente abstraio das mercadorias, que é o dinheiro, cujo valor é indexado sobre uma referência, em si, abstrata: "o tempo de trabalho social médio". Do mesmo modo, o cientista é indiferente ao valor de uso dos saberes locais e particulares, produzidos artesanalmente para o "consumo" imediato das populações autóctones. Ele se apropria desses saberes, mas para mudar radicalmente seu sentido, torná-los conversíveis entre si e finalmente traduzi-los nos termos de um saber universal e abstrato. Liberto das singularidades e do pitoresco locais, o saber científico constrói enunciados que se conservam através do tempo e do espaço (como, por exemplo, as leis, válidas "em todo tempo e lugar") e que permitem representar e manipular objetos e fenómenos distantes. O cientista partilha assim com o capitalismo de uma ambição de envergadura: constituir e pôr em circulação um intermediário abstrato que permite agir à distância sobre esse real no qual os atores de primeiro grau ficam imersos, deslocar-se de uma para outra esfera de atividade, de um lugar a outro, em suma, conquistar e dominar um mundo cujos atores tradicionais têm experiência limitada e visão fugaz/Q saber científico é, portanto, por vocação e necessidade, ilimitado, como o capitalismo que lhe deu origem. Ele só vive acumulando-se quantitativamente e estendendo-se, espacialmente, até os limites do mundo. "O imperialismo: estádio supremo do capitalismo", dizia^Lenin... Então o universalismo da ciência
aparece mais como um golpe inscrito nos fatos do que como uma exigência baseada em direiíoTjSurge novamente a pergunta: Este universalismo provém de uma lógica da dominação ou de uma legítima pretensão da razão? A expedição de La Pérouse, que Bruno Latour apresenta em forma de apólogo, ilustra admiravelmente essa ambiguidade e a empreitada de deslocalização ou universalização do saber que acabamos de expor (cf. texto 37). Diferentemente dos corsários e outros trapaceiros ávidos de rapinas e produtos preciosos, La Pérouse é investido pelo rei de uma missão científica de cartografia. Mas seu desinteresse é apenas aparente, pois seu mapa deve oferecer os meios de uma conquista do mundo muito mais eficiente e racional que pilhagens aventureiras. Somente com a sinalização desse mapa, frotas inteiras devem poder singrar os mares e visitar regularmente as costas. Traçar no papel a rede de pontos e linhas já é, portanto, traçar no real as redes comerciais e permitir às estratégias militares e mercantis estenderem-se a partir de Paris (ou de qualquer outro centro) para os locais cobiçados. Isto exige um saber abstrato, universal, comprovado pela transferência, para um quadrado de papel que todo mundo pode transportar consigo, de todas as informações recolhidas localmente por La Pérouse. Ele constituiu um "móbile imutável", um invariante que resiste ao tempo e se desloca no espaço, "cujo traçado é tão fiel que muitos outros podem, graças a ele, agir à distância"13. A anedota que o navegador relata em seu diário de bordo mostra como esse saber universal exige um distanciamento em relação àquele dos indígenas: este último não representa, ou, se o faz, é de maneira fugidia (na areia), visto que está vivendo constantemente o que é representado. É para o estrangeiro com intenção de domínio, e para aqueles que ele representa à distância, que esse saber deve ser fixado, registrado e, assim, deslocalizado e referido a uma forma abstrata e universal.
Vi
12. Bruno Latour, artigo citado, p. 56. 154
13. Bruno Latour, "Lê Grand Partage", artigo citado, p. 58.
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Ciência do bricoleur*, ciência do engenheiro
Esse pano de fundo de cálculos e interesses faz surgir então de repente a célebre distinção de Lévi-Strauss entre a ciência do bricoleur e a ciência do engenheiro, significando isso bem mais que uma simples metáfora. Lévi-Strauss figura nestes termos imagéticos os "dois modos distintos de pensamento científico" que ele atribui aos primitivos e aos ocidentais (cf. texto 38). O pensamento mítico ou mágico é, segundo ele, "uma espécie de bricolage intelectual" que pode atingir resultados absolutamente surpreendentes e positivos para a solução de problemas teóricos. Diversamente do engenheiro, o bricoleur não concebe nem seleciona ferramentas e materiais em função do projeto que tem de realizar. Ele sai à cata, no conjunto, de elementos heteróclitos que ele "separou", e adapta-os à sua tarefa da mesma maneira que adapta a tarefa àquilo de que dispõe. Estes elementos são, portanto, polivalentes por essência e podem ser adaptados a usos diversos. Sua forma ou natureza limita, seguramente, os usos possíveis, mas sem impor nenhum; pode-se dizer que ela é espúria. Do mesmo modo, o pensamento selvagem trabalha em cima desses elementos híbridos que são os "signos": da imagem, eles conservam sua individualidade concreta que denota um sentido ou um emprego; do conceito, conservam o poder de conotar outros signos e, portanto, sua polissemia. Assim equipado, o pensamento selvagem fica, é claro, limitado às qualidades sensíveis dadas à intuição; mas eleja pode produzir analogias, generalizar e unificar, logo, explicar, e assim, produzir obra científica. Com um número limitado de elementos, ele constrói, desconstrói e reconstrói aquelas estruturas que Lévi-Strauss se deleiChama-se bricoleur aquele que pratica o bricolage. Não há correspondente, em português, para bricolage: trata-se da atividade manual amadora, praticada em casa, geralmente para fins de lazer, ligada à marcenaria, aos pequenos consertos a confecção de objetos. (N.T.)
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tou em registrar em Mythologiques. Sem sombra de dúvida como no bricolage, o resultado obtido nunca é perfeitamente adequado às necessidades e ao projeto inicial; daí os incessantes rearranjos. Porém o pensamento mítico não deixa de criar sistemas de mundo significativos e coerentes, que remaneja de acordo com as necessidades incorporando a eles os novos acontecimentos. Se o selvagem — como o bricoleur — é conservador, em comparação o pensamento do engenheiro parece deliberadamente criativo. Sem dúvida o engenheiro não cria ex nihilo, já que é obrigado a levar em conta o saber e os meios anteriormente adquiridos e colocados à sua disposição. Porém, como o cientista, ele não trabalha em cima de elementos já informados e investidos de um sentido humano prévio. Elabora analiticamente suas ferramentas e noções, e as estruturas que fabrica a partir de sua disposição só dependem do seu projeto e vão necessariamente além do que é dado. Os elementos sobre os quais ele trabalha são portanto puros produtos do pensamento, conceitos, ou em outras palavras, operadores abstratos dotados por essência de um poder referencial ilimitado. Como tais, eles determinam um saber amplamente aberto, que faz o acontecimento com as estruturas que ele produz... (^Distinguimos o cientista do bricoleur pelas funções inversas que, na ordem instrumental e final, eles atribuem ao acontecimento e à estrutura, um fazendo acontecimentos (mudar o mundo) por meio de estruturas, o outro estruturas por meio de acontecimentos. (C. Lévi-StrausSjLapensée sauvage [O pensamento selvagem], op. cit., p. 33)^J
O primitivo só pode, de certo modo, fazer girar em círculos, numa sociedade, um pensamento e um tempo fechados. Seu devir consiste em voltar atrás incessantemente. Ao contrário, o cientista pertence a um mundo aberto ao infinito (cf. Husserl, p. 82); seu devir é futuro e aventura, com todos os riscos que comporta tal fuga para a frente, estimulada pelos sonhos de conquista e de domínio. Onde se encontra então a 157
melhor garantia de um sentido, que é a vocação primeira de toda ciência: no bricolage incansável de um sentido próximo e familiar ao qual se dedicam os primitivos? Ou no intento final de um sentido que temos que construir aos poucos e que, enquanto esperamos, deixa-nos amplamente desamparados? Paul Feyerabend: equivalência entre mito e ciência Talvez se julgue excessivo o relativismo do etnólogo, formado por profissão na escuta e no respeito às diferenças culturais e propenso, por isso mesmo, ao ceticismo. Mas é no próprio campo da ciência, como historiador e filósofo das ciências, que Paul Feyerabend sustenta um relativismo ainda mais radical. Se ele homenageia Lévi-Strauss (e outros) por haverem reabilitado o vodu (que "tem uma base material sólida"14 e cujo estudo isento de preconceitos poderia servir para "enriquecer, talvez até mesmo para rever nossos conhecimentos de fisiologia" (cf. nota 14), ele lhe reprova um resto de cientificismo. Lévi-Strauss, segundo ele, excluiria a ciência de sua "relativização de toda forma de pensamento" e consideraria "uma estrutura neutra, contendo conhecimentos positivos independentes da cultura, da ideologia ou dos preconceitos" (cf. texto 39). Para Feyerabend, a- ciência impôs-se universalmente pela força e não por causa de sua superioridade de direito sobre os outros saberes. Ela esmagou, entre nós, os saberes populares e, nas colónias, os saberes, autóctones, como outrora cristianizamos os povos pagãos: "como se isso fosse necessário, sem consultar os habitantes nem discutir com eles"15. Alegam que, diante da arbitragem da razão, todos esses saberes não são equivalentes, e Feyerabend recorre ao princípio de "incomensurabilidadé": não se pode comparar logicamente teorias ou 14. Paul Feyerabend, Contre Ia méthode [Contra o método], Seuil, 1988, pp. 50-51. Cf. também texto 10a. 15. Ibid., p. 333.
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sistemas de representações diferentes, pois cada um deles fixa o quadro no interior do qual só podem fazer sentido fatos de observação, interpretações ou modos de raciocínio que lhe dão corpo. Cada um deles constitui seu próprio domínio de referência. Portanto, a questão não seria sair de um saber para confrontá-lo, com outros, à arbitragem de fatos ou de exigências intelectuais considerados neutros e objetivos; estes últimos, na verdade, são sempre estruturados nos termos de um saber particular. Diferentes pontos de vista sobre o real são ainda mais legítimos porque nada permite que se exclua um em nome do outro, na medida em que cada ponto de vista determina o real do qual ele trata. Eis por que, na falta de um critério racional ou objetivo, a escolha entre sistemas incomensuráveis remete, em última análise, "a julgamentos estéticos, a julgamentos de gosto, a preconceitos metafísicos, em suma, a nossos desejos subjetivos" (p. 320). Se se compara a ciência ao vodu, à astrologia, aos mitos primitivos ou a outros saberes do mesmo género, nenhum critério geral de cientificidade ou de pertinência permite desempatá-los. A referência a um ou outro é caso de preferência pessoal. Com o princípio de incomensurabilidade, Feyerabend encurrala assim a ciência em sua particularidade e reprime sua pretensão universalista. Ela só pode excluir os outros saberes e ocupar todo o terreno pela força. "Mas, dir-se-á, sé o brilho da ciência não basta para fazer com que ela seja reconhecida universalmente do lado de fora, pelo menos ele -reúne unanimemente os espíritos no interior da comunidade científica. Mesmo à custa de debates, faz-se consenso em torno dê certas teorias. Não reside aí o signo de uma verdade e de uma racionalidade que não se encontram nos outros saberes? A ciência seria portanto, efetivamente, o depositário do universal, como o comprova este poder de confederar as inteligências que ela perderia somente se fazendo propagadora delas." Na realidade, Feyerabend relativiza o consenso do mundo científico e lembra que ele chega mesmo a se estilhaçar quando das revoluções científicas. Mas, sobretudo, ele o imputa a uma "ideologia profissional" que normaliza as práticas e referências 159
e impõe uma ortodoxia adaptada aos dados do tempo... e aos interesses da corporação! Não só não Ká nada de bem racional numa tal interpretação, como ela quase não difere da solidariedade que se observa em todo sistema de pensamento. A história mostra, com efeito, que cada sistema, seja ele mítico ou científico, tende a fechar-se em si mesmo a ponto de não oferecer oportunidade à refutação externa.
privilégio qualquer da ciência em relação aos outros saberes. Entrincheirada como cada um deles em sua especificidade^ usando dos mesmos processos, ela escapa a qualquer arbitragem que não o arbítrio. Todos os julgamentos superlativos que se fazem sobre ela ficam imediatamente invalidados porque pronunciados do interior e moldados no tecido dessa ciência que eles pretendem avaliar.
Desse ponto de vista, Feyerabend compara a teoria científica com a teoria da bruxaria, como ela se constituiu e impôs entre os séculos XV e XVII (cf. texto 40). O princípio comum que opera em cada uma delas (chamado "condição de compatibilidade") leva a rejeitar como isenta de sentido qualquer hipótese ou interpretação de fatos que não se afinem com a teoria admitida... Ou melhor, ele as proíbe de se expressarem. Na verdade, uma objeção eventual a esta teoria só poderia nascer através de uma teoria alternativa... à qual o próprio sucesso da primeira retira todo direito de citação. Por conseguinte, a teoria reinante é protegida por seu sucesso (e não por sua verdade): ela desativa por antecipação qualquer refutação, oferece-se o luxo de novas confirmações interpretando todo elemento novo em seus próprios termos e, graças à primazia dada ao conservantismo, transforma-se em "ideologia rígida" (p. 43), em bastião inexpugnável.
A ciência não goza de nenhuma autoridade superior. Está mais próxima do mito do que se pensa e em toda a sua história abundam exemplos onde a vemos recuperar pedaços de saberes não-científicos e se enriquecer com eles: é Copérnico assumindo as visões perturbadoras e místicas de Filolaos, Paracelso questionando as medicinas caseiras, Kepler misturando astrologia e astronomia, a medicina moderna integrando a acupuntura etc. "Separar a ciência da não-ciência não só é artificial, como também nocivo ao avanço do conhecimento" (p. 346). Feyerabend chegará mesmo a chamar a ciência de "conto de fadas como os outros" (p. 349) e a negar a suas concepções atuais qualquer superioridade sobre as teorias científicas do passado, as teorias filosóficas, os mitos religiosos ou os catálogos de receitas estabelecidos pela sagacidade popular. Na falta de poder julgá-la em termos puramente racionais e epistemológicos, ele a considera como "fornia de vida" (p. 337), com tudo o que ela implica e induz, social, psicologia, politicamente...
O uso do princípio de compatibilidade (e a supressão de soluções alternativas) é proibido em nome do enorme sucesso do ponto de vista ortodoxo, quando, na verdade, é um obstáculo ao exame aprofundado desse sucesso, (p. 40)
Ó consenso científico não é, portanto, mais digno de crédito que aquele dos adeptos de qualquer teoria ou concepção de mundo. A solidariedade dos sujeitos não prova a solidariedade do objeto. E, consciente da ambiguidade de tal unanimidade, Feyerabend chega mesmo a tornar toda teoria consagrada suspeita de tender ao mito ao cabo de um certo tempo, significando a idade, aqui, mais uma teimosia senil que uma experiência venerável. Portanto, nada parece poder dar fundamento a um 160
(_Assim, a ciência está muito mais próxima do mito do que uma filosofia científica está disposta a admitir. Esta é uma das inúmeras formas de pensamento que foram desenvolvidas pelo homem, mas não necessariamente "a melhor". A ciência é indiscreta, ruidosa, insolente; só é essencialmente superior aos olhos de quem optou por uma certa ideologia, ou que a aceitou sem nunca ter estudado suas vantagens e limites (...) Seus fins certamente não são mais essenciais do que aqueles que servem de guia aos membros de uma comunidade religiosa, ou de uma tribo, unida por um mito.i
16. Paul Feyerabend, op. cit., pp. 332 e 337. 161
O processo do relativismo
Mas quaisquer que sejam a justeza de certas análises e a necessidade de relativizar "a Grande Divisão" sobre a qual continua a viver o Ocidente, tal posição é difícil de ser mantida. Alaúde Lévi-Strauss contentava-se em reabilitar saberes por mui to tempo e com demasiada frequência desprezados e ignorados. Paui Feyerabend atenta a nossos valores mais sagrados, e r P ofana o templo da ciência. Sem dúvida, deve-se ver nisso uina r eação a vários séculos de imperialismo ocidental, mas a P°s haver acreditado em sua missão civilizadora, o Ocidente nao es tá ameaçado de sucumbir à má consciência? Num panto recente, Alain Finkielkraut denuncia La défaite de Ia pensée [A derrota do pensamento] (1987). Envenenados pelos ons sentimentos e pelo remorso do passado colonial, iludidos Peio relativismo das ciências humanas e pelo pretenso "direito a . tferença", estaríamos perdendo todo e qualquer senso de lerar quias e valores, nivelando as diferenças na equivalência, Desenvolvendo o bairrismo e o patriotismo provinciano, e finalabdicaríamos de toda pretensão ao universal. Um novo obscu:rantismo com toques românticos ameaçaria apagar as zes e esconder a Europa... esta identidade, sob efeito de seu ensinamento (o sinamento das ciências humanas, comparatistas e relativistas), não é mais nem uma missão nem motivo de orgulho; é um sistema de vida e de pensamento modestamente alinhado no nível que todos os outros. en
Esmagado pelo respeito por todas as figuras do Outro e ulpa p0r suas expansões, o Ocidente se confinaria hoje sua especificidade e sonharia com um mundo em patch• Qualquer proclamação de um universal (valor moral,
ac
198?1
162
inliielkraut
. La défaite de Ia pensée [A derrota do pensamento], Gallimard,
estético ou político) lhe pareceria anacrónica e seria denunciada como uma "violência simbólica" insuportável... Um idiotismo que pretende a universalidade; uma província que quer se igualar ao mundo; um momento que se infla às dimensões da eternidade; uma diferença que se toma por um valor absoluto: eis o escorregão culpado que deve ser constantemente remediado pela vigilância das ciências humanas. (Alain Finkielkraut, 1987, p. 119)
cNesta derrocada geral de um Ocidente atormentado pela má consciência, subsistiria quando muito o núcleo das ciências: "o universalismo inerente ao pensamento científico", segundo a frase dos sábios do Colégio de França (cf. p. 42). Finkielkraut comenta, desiludido: É na ciência, e apenas na ciência, que o homem se eleva acima dos esquemas perceptivos depositados nele pela coletividade da qual é membro. Para o resto (costumes, instituições, crenças e produções intelectuais e artísticas), ele continua ligado à sua cultura, (p. 121) \
Todo o nosso estudo mostrou a fragilidade desse núcleo, e Feyerabend não hesita em anulá-lo em sua crítica devastadora. Por este motivo, pode-se ficar surdo ao grito de alerta lançado por Finkielkraut? Não estaríamos na verdade vendendo nossa alma pela paz de nossa consciência e bradando nossos valores ao invés de enriquecer com eles o património comum da humanidade? Diante de tal defensiva, não basta mais uma posição de princípio, ética ou cética, que declare igualmente respeitáveis todos os homens, todos os povos, todas as culturas e todos os saberes. "Tudo é bom", diz frequentemente Feyerabend para resumir sua posição. A afirmação, porém, de um relativismo tão absoluto (se é que se pode dizer isso, para marcar o paradoxo interno desta passagem) equivale a um pressuposto de impotência, ao mesmo tempo teórico e prático. Não é possível nenhuma discriminação.
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Impõe-se uma primeira discussão justamente para a clareza do debate: quando se põe tudo no mesmo plano e se nega o progresso da ciência, está se visando um eventual progresso da ciência com relação a ela própria (progresso interno) ou seu pretenso progresso com relação aos outros saberes (progresso externo)? Parece difícil acompanhar Feyerabend quando ele pretende que nenhum critério permite afirmar a superioridade das teorias científicas atuais sobre aquelas que as precederam: impõem-se historicamente as teorias mais fecundas, mais sintéticas, mais previsíveis, e o saber científico é cumulativo, logo, progressivo. Mas nem por isso, sem dúvida, deve-se deduzir daí que a ciência marca um progresso com relação a saberes que não têm o mesmo desenvolvimento interno. Sejamos prudentes e não cedamos à ilusão que toma o simples fato de se mexer por um avanço. Movimento significa sempre falta e insatisfação (que são como que o negativo do progresso), enquanto a imobilidade pode ser explicada tanto pela plenitude quanto pela inércia. A progressão da ciência comprova portanto, antes de mais nada, um distanciamento em relação a seu próprio fim e não pode ser adotada como critério de sua superioridade sobre saberes conservadores ou estagnados, como o são, por exemplo, os mitos cosmogônicos dos primitivos. Demos prova disso aos relativistas: de modo geral, entre entidades diferentes, nenhuma propriedade de uma pode ser erigida como critério supremo válido para todas. Mas é difícil demais refugiar-se por trás de uma regra formal dessas. Pode-se obrigar o relativismo a expor-se (nos dois sentidos da palavra) por questões precisas: quando se afirma a equivalência dos saberes, de que equivalência está se falando? De uma equivalência antropológica, enquanto esses saberes são, para o etnólogo que os recolhe, testemunhos interessantes e respeitáveis sobre o comportamento humano, ou uma equivalência epistemológica, do ponto de vista dos processos de conhecimento que eles põem em ação? Quando se fala em relativismo dos saberes, entende-se que o mundo é complexo ou múltiplo e que se oferece aos homens sob aspectos dife164
rentes e legítimos? Ou que a variedade diz respeito aos homens Q as suas diferenças culturais impossíveis de desempatar? Quando se reivindica a igualdade de todas as culturas, está-se prestando suficiente atenção ao fato paradoxal de que o Ocidente é o único a proclamar esta igualdade universal? Enfim e sobretudo, se se contesta a apropriação da razão pelo Ocidente e a universalidade da racionalidade científica, sob que forma pode-se restituir esta razão a todos os povos e ao universo ao qual ele pertence de direito (pois os relativistas são no mínimo racionalistas sobre este ponto)? Para superar o relativismo fc) relativismo não pode revestir-se por muito mais tempo de princípios (como a igualdade de todos os homens) ou justificativas formais (como a incomensurabilidade). Ele tem que dar a prova prática de sua superioridade, como opção ideológica, sobre o racionalismo que defende a universalidade da ciência ocidentaQSe na verdade cada tipo ou modo de saber tem legitimidade e méritos, definidos em relação a seus próprios fins, se estes remetem do mesmo modo à cultura, à história e às necessidades da sociedade em questão, tomemos este referente final das necessidades como pedra de toque. Por exemplo, pesquisas sigilosas em lógica matemática poderão ter muito valor, em termos de fruição estética ou de jogo intelectual, no seio de uma classe privilegiada de uma sociedade opulenta; elas terão pouco valor aos olhos do povo miserável de um país do Terceiro Mundo. As especulações sobre os astros e o calendário podem ter parecido essenciais a sociedades religiosas, mas quase não ^têm mais sentido nem espaço num mundo laicizado. "A pesquisa de um maior domínio científico da natureza (...) tem mais significado nas sociedades capitalistas que nas sociedades feudais que elas substituíram. (...) Ela deveria 165
ser menos importante em nossa sociedade na qual parece que os problemas sociais mais prementes são mais exacerbados que aplainados pelos progressos realizados neste plano."18 Ciências a serviço de um domínio material do mundo, de uma contemplação, de uma adoração, de uma busca de felicidade, de ordem social ou paz... É preciso escolher? Gomo escolher? Alan Chalmers talvez acabe de indicar uma resposta evocando os problemas prementes da sociedade e da humanidade. Estas, na verdade, necessitam de um uso universal de nossos comandos de conceitos e regras destinados a pôr, em toda parte, a Natureza na razão, até (naquele desafio guerreiro em que o Ocidente pensou encontrar sua vocação) fazê-la entregar armas e alma? Ou é urgente relacionar-se com a Natureza não como empresários? Preservar as chances e os espaços de relações mais contemplativas e respeitosas, antes que ela se reduza a um imenso e desolado canteiro de obras? E hora de um imperialismo cientificista que erige a racionalidade instrumental do Ocidente como modelo único e universal ou de um relativismo que atrairia o diálogo das culturas e abriria nossa tradição científica para outras formas de saber? O exclusivismo do qual se vangloria a ciência ocidental não se torna prejudicial para ela? Ao se reproduzir em circuito fechado, ela não está, na verdade, correndo o risco de, dentro de um certo tempo, tornar-se estéril? E não estaria precisando de umas boas miscigenações para renovar sua vitalidade? De maneira mais ampla, os povos, que hoje não podem mais escapar a seu destino mundial, devem ir rumo ao seu futuro pela via única da ocidentalização (com todas as violências que tal redução implica) ou podem convergir por vias múltiplas, e interpelarem-se e estabelecer intercâmbios entre estas vias? (Cf. texto 41.)
18. Alan Chalmers, Qu'est-ce que Ia science? [Que é ciência?], La Découverte, 1987, p. 216.
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Oriente e Ocidente: o confronto dos saberes19
Hoje parece mesmo que o caminho estreitamente especializado no qual se forjou e se impôs a racionalidade científica do Ocidente lhe tenha fechado portas e mascarado aspectos essenciais do real. De tanto procurar saber para dominar, ela construiu uma representação de mundo que privilegia certos traços em relação a outros, que uma atitude mais contemplativa ou diferentemente orientada poderia descobrir para ela. Tudo se passa como se as culturas se empenhassem em tecer redes diferentes, de malhas mais ou menos largas, que, lançadas ao mundo, trazem necessariamente peixes de tamanho e aspectos diferentes20. O taxinomista Charles Bonnet o reconhecia num livro intitulado Contemplation de Ia nature [Contemplação da natureza] (1764): Nossas distribuições em espécie e em classes são puramente nominais. (...) Elas não representam nada mais que meios relativos a^nossas necessidades e aos limites de nossos conhecimentos. 21
19. Ater-nos-emos aqui a um estudo comparativo entre a ciência ocidental e o pensamento do Extremo Oriente. Observemos, porém, que um estudo similar foi proposto por Robin Horton com o pensamento africano (R. Horton, "Pensée traditionnelle africaine et science occidentale" [Pensamento tradicional africano e ciência ocidental], África, vol. XXXVIII, Londres, Oxford University Press, 1967). O autor mostra, em primeiro lugar, contra todas as ideias recebidas, no que o sistema de pensamento das tribos africanas pode constituir uma verdadeira explicação do mundo delas, perspicaz, coerente e eficaz em muitas de suas aplicações. Ele mostra, em seguida, no que ele se separa do pensamento científico, essencialmente por seu caráter unidimensional e pela falta de referências alternativas. 20. Ao que se pode acrescentar esta reflexão de Chuang-Tsé, um dos fundadores do taoísmo: "Para pescar o peixe, usam-se redes, mas, depois que o peixe foi pego, os homens esquecem as redes; usam-se armadilhas para apanhar lebres mas, depois que as lebres foram'pegas, os homens esquecem as armadilhas; usam-se palavras para exprimir ideias, mas, depois que as ideias foram atingidas, os homens esquecem as palavras." (Citado em F. Capra, Lê Tão de Ia physique [O Tão da física], Tchou, 1979, p. 29.) 21. C. Bonnet, citado em Michel Foucault, Lês mots et lês c/ioses,Gallimard, p. 160.
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Nessas condições, o modo de pensamento próprio do Ocidente, tanto em suas modalidades lógicas como em seus hábitos e referências culturais, não seria um obstáculo à apreensão de certos significados do mundo? Outras abordagens não seriam mais pertinentes ou, pelo menos, não poderiam fornecer "alternativas teóricas" (Feyerabend) das quais nosso saber necessita para refletir-se, criticar-se e tornar-se maleável? Werner Heisenberg (prémio Nobel de física de 1933) dá-nos um exemplo disso. Após haver descrito como fato normal e inelutável a extensão mundial da ciência ocidental e a brutal aculturação que ela provoca de volta (cf. texto 42), conclui: A grande contribuição do Japão à teoria quântica a partir da última guerra pode ser indício de um certo parentesco entre as ideias filosóficas tradicionais do Extremo Oriente e o conteúdo filosófico da teoria quântica. É possível que seja mais fácil adaptar-se ao conceito quântico de realidade quando não se passou pelo modo de pensamento de um materialismo ingénuo que ainda reinava na Europa durante as primeiras décadas do século.
Heisenberg faz alusão, aqui, à obra dos físicos japoneses Tomonaga e Yukawa, sendo este último, aliás, autor de uma obra intitulada Créativité et intuition. Regarás d'un physicien sur VOrient et 1'Occident [Criatividade e intuição. Olhares de um físico sobre o Oriente e o Ocidente] (1973). De maneira mais ampla, o que está em causa neste confronto das duas tradições culturais é a visão da natureza. Nossa cultura moderna, que gerou a ciência, desvitalizou (como vimos no cap. 2) o cosmos para reduzi-lo a um sistema níècanicista. O Oriente, ao contrário, conserva uma concepção organicista da Natureza que o leva a rever algumas de nossas teorias científicas. Pierre Thuillier cita o exemplo da teoria darwinista da evolução, revista e corrigida pelo biólogo japonês Kinji Imanishi22. Este proclama 22. K. Imanishi, Ma théorie de l'évolution [Minha teoria da evolução] (1970) eAu-delà de Darwin [Além de Darwin] (1977). Relatório e análise por Pierre Thuillier Lês passions du savoir [As paixões do saber], A. Fayard, 1988, cap. IV, "Darwin chez lês samourai" [Darwin entre os samurais].
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de pronto: "Darwin mora no Ocidente, Imanishi no Oriente " Ele reprova ao darwinismo estar contaminado pelo individualismo e pelo gosto pela luta característicos do Ocidente. Fiel à sua tradição cultural, ele privilegia a solidariedade e a harmonia do mundo natural. Eis porque, à "luta pela vida" e ao "princípio de competição" considerados por Darwin, ele opõe um "princípio de coexistência" que leva os seres vivos mais a repartirem entre si, amigavelmente, o espaço disponível, do que a se matarem uns aos outros. Assim também, ele considera que a evolução se dá no nível da espécie, entidade coletiva, e não dos indivíduos. Ou ainda, causa-lhe aversão a ideia de mudanças resultantes de "acidentes" genéticos e prefere ver nisso uma "maturação" dos gens... Deve-se assimilar esta empreitada de Imanishi à revisão ideológica praticada por Lyssenko, o primeiro defensor de hábitos culturais e o segundo de interesses políticos, tanto um quanto o outro a despeito da verdade científica? Não parece, pois, como diz Thuillier, "o veredicto da experiência não ficou claro" (p. 61). A alternativa proposta pelo biólogo japonês evidencia ainda mais a confusão dos conceitos, a ambiguidade dos fatos e a inconclusão da teoria fixados por Darwin. Nada (exceto o preconceito narcisista e orgulhoso do Ocidente) permite dizer que Imanishi ilustra somente as dificuldades da assimilação de uma verdade objetiva por uma cultura refratária. Ele revela, antes, a parcialidade ou a "partialidade" de nossos sistemas de representação. Física e taoísmo Mas Fritjof Capra, professor de física das partículas elementares na Universidade de Berkeley, foi muito mais longe ao publicar Lê Tão de Ia physique [O Tão da física] (1974). Ai, ele não busca o diálogo com uma ciência de origem e inspiração ocidentais; desenvolve um paralelo entre a física quântica e relativista, e a tradição religiosa hindu e 169
Ele fica impressionado, antes de mais nada, pelo fato de que tanto uma quanto outra descrevem um universo dinâmico e orgânico, incessantemente em movimento graças ao jogo e à unidade dos contrários. Assim, segundo ele, o par do yin e do yang, fundamental na mítica oriental, reencontrar-se-ia na unidade do espaço e do tempo ou na equivalência da matéria e da energia professada pela teoria da relatividade, assim como na complementaridade da onda e do corpúsculo descoberta pela mecânica quântica. Capra interpreta mesmo o movimento elementar das partículas como uma das figuras da dança de Shiva... Para o físico moderno, a dança de Shiva é a dança da matéria subatômica. Como na mitologia hindu, esta é uma dança contínua de criação e destruição que arrasta o universo inteiro; é o fundamento de toda existência e de todo fenómeno natural.23
Ele também mostra como, antes de nossos físicos, os sábios do Oriente conceberam o tempo e o espaço como construções do espírito humano e não como coordenadas objetiyas do real. Chega mesmo a comparar em detalhes dois sistemas de figurações simbólicas: de um lado, o quadro dos hexagramas que, no I-Ching ou Livro das transformações (um dos clássicos do taoísmo chinês), apresenta as 64 combinações possíveis de seis traços contínuos ou descontínuos simbolizando o yin e o yang; do outro lado, a "teoria da matriz S" que formula matematicmrlente as interações de partículas e as estruturas de suas transformações contínuas. Certamente Capra só está falando, na maioria das vezes, de "analogia", de "metáfora", seguramente favorecidas pelo fluxo das palavras, até mesmo dos conceitos. O I-Ching, por exemplo, tinha, na China, uma função divinatória, e não se poderia confundir um procedimento científico com um procedimento espiritual. Capra também não diz que o Oriente teria captado intuitivamente verdades 23. F. Capra, op. cit., p. 249.
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que a ciência só encontraria, laboriosa e discursivamente após milhares de anos. Ele só visa afirmar a necessidade, a complementaridade e a convergência de duas abordagens'de mundo irredutíveis uma à outra: A ciência não precisa da mística e a mística não precisa da ciência; o homem, porém, precisa das duas. (p. 311) (Cf. texto 43.)
A empreitada de Capra pode provocar ceticismo, e quando o vemos citar constantemente Heisenberg, Bõhr ou Einstein ao lado dos Upanishad ou de Lao-Tsé, podemos nos perguntar quanto de ilusão retrospectiva existe em sua interpretação dos segundos: as profecias de Nostradamus também ficam carregadas de um sentido perturbador depois dos acontecimentos! Não deixa de ser verdade que ele estabelece de modo bastante convincente que o trabalho teórico da física moderna vem sendo influenciado pela lógica, pelos esquemas de pensamento, pela visão materialista e mecanicista tradicionais do Ocidente. ("Nossa atitude é yang demais, diz Capra, demasiado racional, masculina e agressiva.", p. 311) Provavelmente as estruturas mentais e as concepções milenares do Oriente lhe forneceriam referências mais apropriadas, não que seja por que a mística assim como a física moderna exploram domínios inacessíveis aos sentidos e à lógica comum. Por uma abertura da razão
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A racionalidade ocidental, discursiva, abstrata, instrumental e conquistadora, não encarna sozinha toda a Razão humana. Ela é uma forma estritamente especializada dela e é nesta qualidade que pertence ao património universal da humanidade. A especificidade de nossa ciência diz respeito à sua orientação no sentido de uma técnica, a seu desemboque natural no domínio e na manipulação dos fenómenos. Nesta W
chá" (como dizem nossos estrategistas do comércio), Júrgen Habermas mostrou que ela não teme concorrência (cf. texto 44): a ciência do tipo ocidental só está realmente capacitada a aumentar o poder do homem sobre a natureza para fabricar computadores ou centrais nucleares, por exemplo. Mas este projeto que a especifica confere-lhe ao mesmo tempo universalidade, pois ele concerne à "espécie humana em seu conjunto". Nem por isso deixa de ser necessário que a racionalidade ocidental se abra aos saberes distantes, exóticos, e também aos saberes próximos e, todavia, desconhecidos, que são os conhecimentos empíricos da tradição popular. Alguns começam a interessar-se timidamente pela parapsicologia e pelo que nos parece irracional. Não haveria bastante a aprender sobre as vias de uma racionalidade heterodoxa que são os provérbios meteorológicos, os remédios caseiros, as observações sobre as propriedades culinárias ou medicinais das plantas e, por que não, as práticas dos feiticeiros ou descobridores de fontes24*? Com relação aos modelos gerais mais simplificados da ciência, projetos reduzidos a alguns parâmetros artificialmente isolados, os saberes de primeiro grau dos práticos têm a vantagem de serem lastreados com a riqueza e complexidade do real... Portanto(talvez não haja uma única maneira de fazer ciência (não mais que uma única maneira de fazer música!) e as fronteiras entre o que é e o que não é científico devem, sem dúvida, ficar mais permeáveis. Se estes contornos se tornarem mais fluidos, a ciência sem dúvida ganhará mais fecundações em sua margem do que perderá neles sua identidade!
24. O prof. Yves Roçar propôs uma teoria física da arte de se descobrir fontes ou lençóis subterrâneos em Lê signal du sourcier [O sinal do descobridor de fontes], Dunod, 1962. No original, o autor fala da prática dos sorciers ou dos sourciers. Sorcier seria bruxo, feiticeiro, sourcier, a pessoa a que se atribui o dom de, através do uso de uma varinha ou de um pêndulo, descobrir fontes. Infelizmente, não há como manter em português o valor semântico deste muito bem achado jogo de palavras.
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Resta o problema-chave, que é o do estatuto de uma razão que, com tantos ventos, corre o risco de fazer água e soçobrar' Só há ciência racional e razão universal. Como então conceber uma universalidade que impõe a racionalidade ocidental como modelo universal, e o relativismo, que está disposto a ver razão em tudo e em toda parte? Para passar entre Cila e Caribde e resistir ao canto das Sereias, Ulisses manda que o amarrem ao mastro do navio. Que princípio suficientemente sólido pode, hoje, impedir a razão de ficar à deriva? Pode-se encontrar ao mesmo tempo um princípio de relatividade que dissolva os falsos absolutos e um invariante que preserve do ecletismo e do ceticismo? Gaston Bachelard, como já se disse (p. 41), abrandou e diversificou a racionalidade científica. Ele se insurge contra "esse racionalismo fixista [que] formula as condições de um consensus dos homens de todos os países e de todos os tempos ante qualquer experiência"25. Mas seu relativismo diz respeito ao final da frase e não ao "consensus". Ele adere totalmente à ideia de uma ciência una e universal e exige somente da razão que se adapte às estruturas próprias de cada setor do real, e não, em absoluto, que ela se exprima diversamente, segundo os contextos históricos e socioculturais. Daí sua proposta de "racionalismos regionais", físico, químico, matemático... e até mesmo "cantonais", elétrico, mecânico, eletromagnético... Um universalismo relativista O relativismo universalista que procuramos fundar tem mais a ver, analogicamente, com a empreitada de Einstein. Muitas vezes se disse que a teoria deste foi muito mal denomi25. G. Bachelard, Lê rationalisme appliqué [O racionalismo aplicado], PUF, 1975, p. l . 26. Alain Caillé, "Pour un universalisme relativiste" [Por um universalismo relatmsta], Revue du M.A.U.S.S., n9!, pp. 135-138.
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nada pois ela é tudo, menos relativista. Sem dúvida Einstein desestabilizou às noções familiares de tempo, espaço, movimento, massa etc., e relativizou as leis da mecânica clássica, mostrando que ambas variam conforme a posição do observador e seu sistema de referência. Ele faz, porém, da velocidade da luz a "constante universal", e seu objetivo confesso é dispor de uma fórmula que possibilite converter uns nos outros todos os pontos de vista possíveis, de maneira a salvar o determinismo da natureza, a invariância das leis e a possibilidade de uma descrição completa do universo pela soma de informações fornecidas de cada ponto de vista. Em suma, para responder à ambição cognitiva da física clássica (cujo fim ele marca, se quisermos, mas nos dois sentidos da palavra), ele teve que transferir o absoluto dos pontos de vista particulares para o sistema de suas relações. Para que o rélativismo deles não anule os diferentes pontos de vista e que os conhecimentos obtidos em cada um sejam cumuláveis, ele teve que destronar aqueles absolutos que eram o tempo e o espaço dê Newton. Não é preciso, do mesmo modo, renunciar a absolutizar nossa ideia de Razão herdada das Luzes para salvar a possibilidade de uma ciência universal? Confundimos por um tempo demasiado longo o ponto de vista do universal "com o ponto de vista do particular que toma sobre ele um observador supostamente privilegiado, no caso, o observador ocidental"27. Acreditamos ingenuamente que nosso ponto de vista, sujeito a suas condições próprias de espaço-tempo (ou de cultura), valia para todos os outros observadores,-quaisquer que fossem seus respectivos sistemas de referência. Ora, Einstein indica-nos que um ponto de vista universal só pode vir à luz através das relações e conversões entre todos esses pontos de vista recortados no espaço-tempo sociocultural. O erro do Ocidente foi, sem dúvida, esquecer a lição de Sócrates dos diálogos platónicos, na hora em que a razão ainda não propunha um mundo a conquis27. Alain Caillé, op. cif., p. 137.
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tar, mas contentava-se em emergir na cidade. A razão nasce do diálogo, lembrava ele incansavelmente; ela procura antes dar a razão de algo do que ter mais razão que alguém. Ela busca a verdade com o outro e diante do outro, pois não há outro meio de fazê-la advir senão através das proposições e objeções do outro, nem outro sinal de que se chegou ao fim que seu assentimento. Dar a razão de ...: a falha do Ocidente foi esquecer a forma verbal da expressão e hipostasiar a razão a fim de apropriar-se dela. Ora, a razão é relação e regulação da ligação com o outro. Ela não detém o universal por privilégio insigne, ela vai até ele, tece-o e falha sempre com ele. Ela é, por si mesma, seu meio e seu fim, ou, em outras palavras, como demonstrou Kant, é uma ideia reguladora de ~ ~ si mesma. Em que condições, portanto, a diversidade dos saberes e culturas pode ser sublimada para produzir, sem impostura nem golpe imperialista, uma ciência de vocação universal que responda a todas as exigências da razão ao invés de usurparlhe o título? A primeira condição é que a racionalidade científica do Ocidente se faça crítica, autocrítica, para superar os aspectos formalistas, instrumentais e calculistas nos quais ela tende a encerrar-se. Isto passa, é claro, por uma renúncia ao cientificismo, uma relativização dos valores científicos e técnicos e aquela "nova aliança" com outros valores da cultura e dos saberes populares que Ilya Prigogin desejava (cf. p.31). Vimos, com Paul Feyerabend, a necessidade de uma abertura a concepções alternativas para o próprio progresso da ciência, e Robin Horton mostrou que aí reside a superioridade essencial da ciência (ocidental) sobre os sistemas de pensamento africanos: seria paradoxal que, iludida pelo sucesso, nossa ciência cultivasse sua idiossincrasia e caísse novamente na "unidimensionalidade" (H. Marcuse). Mas ela também precisa (e esta é a segunda condição) confrontar-se com saberes exóticos e estranhos, com outras tradições de cultura e de pensamento, mais contemplativas, míticas, meditativas, estéticas, com formas de racionalidade dialéticas ou sintéticas (mais que analíticas) que preferem qualidades a quantidade, união a separações, 175
oposição a identidade, imagem a conceito ete. Expondo-se assim é que ela pode ao mesmo tempo enriquecer-se com o que desconhece e fazer-se reconhecer por aqueles que a ignoram... ou que a adotam sem poder assimilá-la, impressionados com sua soberba e seu pacote degadgetsjtécnicos, mas incapazes de integrá-la à sua própria cultura. LA razão ocidental só pode escapar à tentação totalitária denunciada por Adorno e Horkheimer28 reatando com a partilha da palavra que a fez nascer e abrindo-se, hoje, para o diálogo das civilizações. Esta é a tese recentemente defendida por Júrgen Habermas (cf. textos 45 e 46): a razão, lembra ele, é por essência "comunicativa^jpla invoca o debate como a única mediação para, simultaneamente, assegurar-se de si mesma e fazer-se reconhecer pelos outros; e é por isso que ela pode tender para um universal que não implique nem poder imperialista nem técnica aliciadora. Ela se define então como um diálogo que faz emergir paulatinamente suas próprias normas e passa de di-visão (di-vergência) de opiniões ou representações iniciais para sua prova; sua fusão e sua transmutação no fogo do Logos comum. Retornando assim a uma de suas duas partes originais (o diálogo socrático e democrático), ela pode compensar a função estritamente instrumental na qual os últimos séculos tendiam a encerrá-lappo cálculo e da gestão eficiente dos meios à promoção de seus próprios fins e valores, ela reencontra sua plena vocação e pode escapar aos limites do utilitarismo para fundar um universalismo sem mito.
28. Max Horkheimer, Theodor Adorno, La dialectique de Ia raison [A dialética da razão], 1947, Gallimard, 1976; cf. p. 56.
176
CONCLUSÃO "A natureza desvendando-se à ciência" ou o mito da verdade totalmente nua
A ideologia é idólatra: ela precisa de imagens materiais para representar suas ilusões e gerar suas fantasias. Assim como a Revolução Francesa dedicou culto, festas e templos à Razão deificada, o cientificismo triunfante do século XIX erige suas estátuas. Assim, pode-se ver hoje, no museu d'0rsay, uma escultura de Barrias representando "A Natureza desvendando-se à Ciência", obra que lhe foi encomendada em 1895 para o Conservatório de Artes e Ofícios. Figura alegórica da Natureza, uma mulher, de busto nu, tira seus véus um a um. Uma outra versão, mais otimista, é conservada na Faculdade de Medicina de Bordéus: a Natureza inteiramente nua, tira o último véu que lhe cobre a cabeça. Intérprete'da consciência ou do inconsciente coletivos, o artista brinca cruelmente com esta fantasia tenaz: ver possuir a Verdade totalmente nua. Fantasia de macho e con quistador: fazer com que os véus caiam um a um, captar a 177
intimidade sem defesa, a essência exposta, totalmente entregue em suas aparências... que ilusão! Ou a nudez desvendada não é mais que carne crua e muda, massa orgânica reduzida à identidade do em si e privada do menor significado, ou ela se vela num mistério mais impenetrável e insondável que todos os véus que pareciam ocultá-la, e o significado transcende então todos os signos. A nudez não dá a ver nenhum segredo, não desvela nenhum sentido. Como indica a etimologia, o véu é que revela, o traje é que con-tém, de-tém e re-tém um sentido, de outro modo destinado a desvanecer-se. A Grécia antiga podia, sem comprometer sua transcendência, desnudar seus deuses e deusas: nenhuma marca humana consegue fixar-se no modelo perfeito dos corpos que irradiam uma beleza completamente inteligível e escondem por trás da catarata do olho o segredo de sua essência sobrenatural. Mas que o rei saia nu a passeio, como no conto de Andersen1, e acabou-se sua majestade; sua estatura real só se sustenta com o manto de ouro e púrpura, símbolo da realeza. A nudez diz sempre demais ou de menos; ela hipertrofia o sentido ou suprime-o, e, nos dois casos, perde-o. (JPortanto, a ciência não pode desnudar a natureza, a menos que renuncie a todo ideal de conhecimento e verdade, para reduzi-la a um corpo passivo, vazio de vida e sentido, presa silenciosa oferecida às violações e à exploração técnicaJ Para que esta carne do mundo se ponha a fervilhar de vida e de signos, é preciso envolvê-la no tecido dos nossos discursos ou de nossas equações, pois é nas dobras de uma tal vestimenta que podem ocorrer "des-dobramentos" e o informe tomar forma e produzir informações. Sem véu e sem disfarce, na nudez do parto primordial, a natureza nada diz... É preciso voltar ao sentido primitivo das palavras: a natureza é o nascimento ou o parto ; e a infância é a ausência de palavra, o mutismo e o não-sentido. Os véus do pudor é que dão um sentido erótico à l- H. C. Andersen, "A roupa nova do rei", Contos. 2. Cf. p. 56, nota 12. 178
f
orma rornoral e revelam seu mistério. Assim como são os véus da ciilCTmiP dão um sentido inteligível ao fenómeno natural e, d ^ dado bruto, fazem um enigma a ser decifrado. Se a ^ ^Irlialogar com a natureza, é porque primeiro a S L a esta e a prepara para o diálogo. Portanto, é r a ciência como um desvendamento e acreditar P£m ™ penetrante olhar clínico, ela traz à luz uma fielmente despojada dos ouropéis ou dos atavios com OS ouS a fantasia e a ingenuidade das culturas se deleirr^omá-la. Na verdade como vimos com Claude ícf. PP- 150-151), ela fez para si somente vestes <, 0 - h a l sofisticadas. As chamadas ciências "da natureza» não são admitidas na intimidade desta última; elas continuai ÍKfícios da cultura. Mesmo que queiram, a custa nuam a ser artifici^ ^^ ^^ ^ ^^^ elas de carregar as marcas ideológicas de sua condição. mito, o da Bíblia é menos ingénuo que o da - • ' i. Quando o homem provou do fruto da ^ !to, ele se encontrou ipso facto exilado do ^conhecimento pondo fim à conivência com as do mundo ambiente. E ele soube imediatamente da nudez* da necessidade de cobri-la... Maldição diz a mterPreíafão Convencional, preocupada em moralizar. Não se pode ver n? l TJtes e em toda força das palavras, o choque da n7 O estatuto da revelação subitamente revelado ao -nsagem sobre e para os novos tempos fornecendo a forma? A saber: a nudez chocante, a an,aaea de que o sentido só vem à luz em se •vendamento de que a condição humana e fazer o ou saber sem ver... A intimidade sem reBCiiya no mundo é doravante substituída pelas representação. Sem dúvida a folha de parreira, -Pxd^^tP arrancada à natureza, ainda é um símbolo bem P C6 TsSm como o pensamento selvagem ou o pensamento
sem dúvida os
-
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sistemas de equações e as redes de conceitos com os quais revestimos cientificamente a natureza. Mas assim como o sari, o bubu ou o tailleur valorizam de modo diverso a beleza feminina, a natureza não revela a multiplicidade e a riqueza de suas formas sob a diversidade dos drapeados com os quais os povos ê civilizações a vestem?
TEXTOS
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1.
"CIENTIFICIZAÇÃO DA POLÍTICA" J. Habermas, A técnica e a ciência como "ideologia"1
A relação de dependência entre o especialista e o político parece ter-se invertido: o político passa a ser o órgão de execução de uma intelligentsia científica que destaca, em função das condições concretas, as restrições objetivas que emanam dos recursos e técnicas disponíveis assim como das estratégias e programas cibernéticos ideais.fee a decisão tocante às questões da prática concebida como opção em situações de incerteza pode ser racionalizada a ponto de a "simetria de perplexidade" (Rittel)2 e, com ela, a problemática da decisão em si acabarem sendo cada vez mais suprimidas dela, a política não conserva mais então no Estado técnico senão uma atividade de decisão inteiramente fictícia. Seria no máximo como que o tapa-buraco de uma racionalização ainda imperfeita do domínio, havendo a iniciativa passado, de qualquer modo, para o lado da análise científica e do planejamento técnico) O Estado parece a partir de então condenado a sacrificar a própria substância de domínio para a instauração eficaz de técnicas disponíveis no quadro de estratégias objetivamente necessárias; parece que este não é mais um aparelho que se faz valer pela força dos interesses essencialmente privados de fundamento e que só são defendidos de maneira decisionista, ele parece se tornar o órgão de uma administração racional de parte a parte.
1. 2.
l Este título é de J. Habermas. Traduzido para o francês por J.-R. Ladmiral, Gallimard, 1975, pp. 100-101. T-.^.,. A «_:
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que
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2.
O CONHECIMENTO CIENTÍFICO DESEMBARAÇA-SE DOS VALORES 3 J. Monod, O acaso e a necessidade
É verdade que a ciência atenta contra os valores. Não diretamente, pois não é juiz deles e deve ignorálos; mas ela arruina todas as ontogenias4 míticas ou filosóficas nas quais a tradição animista, dos aborígenes australianos aos dialéticos materialistas, fazia se buscarem os valores, a moral, os deveres, os direitos, os interditos. Se o homem aceitar esta mensagem em seu inteiro significado, é preciso mesmo que ele desperte enfim do seu sonho milenar para descobrir sua total solidão, sua estranheza radical. Ele sabe agora que, como um cigano, está à margem do universo onde deve viver. Universo surdo à sua música, indiferente a suas esperanças como a seus sofrimentos ou crimes. Mas então, quem define o crime? Quem diz o que é o bem e o que é o mal? Todos os sistemas tradicionais punham a ética fora do alcance do homem. Os valores não lhe pertenciam: impunham-se e ele é que pertencia a eles. Ele sabe agora que eles são só dele, e por ser enfim seu senhor parece-lhe que eles se dissolvem no vazio indiferente do universo. E então que o homem moderno se volta para, ou melhor, contra a ciência, cujo terrível poder de destruição, não só dos corpos mas da própria alma, ele avalia agora.
3. 4.
184
Ed. du Seuil, 1970, pp. 187 a 190. Ontogenia: Sistema de pensamento que explica a evolução dos indivíduos.
Onde fica o refúgio? Deve-se admitir de uma vez por todas que a verdade objetiva e a teoria dos valores constituem para sempre domínios desconhecidos impenetráveis entre si? Esta é a atitude que pa'rece assumir grande parte dos pensadores modernos, sejam eles escritores, filósofos ou até mesmo homens de ciência. Eu a acho não só inaceitável para a imensa maioria dos homens, entre os quais ela só pode manter e avivar a angústia, mas absolutamente errónea, e isto por duas razões essenciais: — em primeiro lugar, é claro, porque os valores e o conhecimento estão sempre e necessariamente associados tanto na ação como no discurso; — depois e sobretudo porque apropria definição de conhecimento "verdadeiro" baseia-se em última análise num postulado de ordem ética.5 Cada um desses dois pontos exige um breve desenvolvimento. [...] (A partir do momento em que se coloca o postulado deM)bjetividade como condição necessária de toda verdade no conhecimento, é estabelecida uma distinção radical, indispensável à própria busca da verdade, entre o campo da ética e aquele do conhecimento. O conhecimento em si mesmo é exclusivo de todo juízo de valor (que não "de valor epistemológico") enquanto a ética, por essência não-objetiva, está sempre excluída do campo do conhecimento.) /[Esta distinção radical,"^ colocada como um axio-
ma, é que, em definitivo, criou a ciência) [...] Acontece, porém, que essas duas categorias estão inevitavelmente associadas na ação, inclusive no discurso. Para 5.
O grifo é de Jacques Monod.
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permanecermos fiéis ao princípio, julgaremos portanto que todo discurso (ou ação) só deve ser considerado como significante, como autêntico, se (ou na medida em que) explicita ou conserva a distinção das duas categorias; em que os valores e a verdade, associados mas não confundidos, revelam seu inteiro significado ao homem atento que experimenta sua ressonância. Em contrapartida, o discurso inautêntico em que as duas categorias são amalgamadas e confundidas só pode conduzir aos contra-sensos mais perniciosos, às mentiras mais criminosas, ainda que inconscientes.
3.
A CIÊNCIA PODE FUNDAR UMA ÉTICA J. Monod, O acaso e a necessidade
Mas (e este é o ponto essencial, a articulação lógica que associa, na raiz, conhecimento e valor) este interdito, este "primeiro mandamento" que funda o conhecimento objetivo, não é, por si — e não poderia ser — objetivo: é uma regra moral, uma disciplinado verdadeiro conhecimento ignora os valores, mas é preciso, para fundamentá-lo, um juízo, ou melhor, um axioma de valor^É evidente que colocar o postulado de objetividade como condição do verdadeiro conhecimento constitui uma escolha ética e não um juízo de conhecimento já que, segundo o próprio postulado, não podia existir conhecimento "verdadeiro" anterior a esta escolha arbitrai. O postulado de objetividade, para estabe6. 7.
186
Ed. du Seuil, 1970, pp. 191 a 194. O grifo é de Jacques Monod.
lecer a norma do conhecimento, define um valor que é o próprio conhecimento objetivo/Aceitar o postulado de objetividade é, portanto, enunciar a proposição de base de uma ética: a ética do conhecimento.\ e (Na ética do conhecimento, a escolha ética de um valor primitivo é que funda o conhecimento. Por isso ela difere radicalmente das éticas animistas que se pretendem todas fundadas sobre o "conhecimento" das leis imanentes, religiosas ou "naturais", que se imporiam ao homemj A ética do conhecimento não se impõe ao homem: ele, ao contrário, é que se impõe a ela, fazendo disso, axiomaticamente, a condição de autenticidade de todo discurso ou ação. O J)iscours de Ia méthode [Discurso do método] propõe uma epistemologia normativa, mas é preciso lê-lo também, antes de tudo, como meditação moral, como ascese do espírito. O discurso autêntico, por sua vez, funda a ciência, e põe em mãos dos homens os imensos poderes que, hoje, enriquecem-no e ameaçam-no, libertam-no mas poderiam sujeitá-lo. As sociedades modernas, tecidas pela ciência, vivendo de seus produtos, tornaram-se independentes dela como um viciado da droga. Elas devem sua potência material àquela ética fundadora do conhecimento e sua fragilidade aos sistemas de valores, arruinados pelo próprio conhecimento, aos quais elas ainda tentam se referir. Esta contradição é mortal. É ela que cava o abismo que vemos abrir-se a nossos pés. A ética do conhecimento, criadora do mundo moderno, é a única compatível com ele, a única capaz, uma vez compreendida e aceita, de guiar sua evolução. Poderia ela ser compreendida e aceita? Se é verdade, como eu creio, que a angústia da solidão e a exigência de uma explicação total, penosa, são inatas; que esta herança vinda do fundo dos tempos não é apenas cultural, mas, sem dúvida, genética, pode-se pensar que esta ética austera, abstrata, orgulhosa, 187
possa acalmar a angústia, satisfazer a exigência? Não sei. Mas talvez, afinal, isto não seja totalmente impossível. Talvez, mais ainda que de uma "explicação" que a ética do conhecimento não saberia dar, o homem necessite de superação e transcendência? A potência do grande sonho socialista, sempre viva nas almas, parece um bom testemunho disso/Nenhum sistema de valores pode pretender constituir uma verdadeira ética a menos que proponha um ideal que transcenda o indivíduo a ponto de justificar, caso seja necessário, que ele se sacrifique por elè77 Pelo própria estatura de sua ambição, a ética do conhecimento talvez pudesse satisfazer esta exigência de superação. [...] Onde, então [efetivamente] encontrar a fonte de verdade e a inspiração moral de um humanismo socialista realmente científico, senão nas fontes da própria ciência, na ética que funda o conhecimento fazendo dela, por livre escolha, o valor supremo, medida e garantia de todos os outros valores? Ética que funda a responsabilidade moral sobre a própria liberdade dessa escolha axiomática. Aceita como base das instituições sociais e políticas, logo, como medida da autenticidade, do valor delas, só a ética do conhecimento poderia levar ao socialismoTJ
4.
A LEI DOS TRÊS ESTADOS
8
A. Comte, Curso de filosofia positiva
Estudando [...] o desenvolvimento total da inteligência humana em suas diversas esferas de ativida8.
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Trechos da Première Leçon [Primeira Lição], Profil, n9 370-371, Hatier, pp. 61 a 73.
de, desde seu primeiro e mais simples advento, até nossos dias, creio ter descoberto uma grande lei fundamental, à qual ele está sujeito, por uma necessidade invariável, e que me parece poder ser solidamente estabelecida, seja em cima das provas racionais fornecidas pelo conhecimento de nossa organização, seja em cima das verificações históricas resultantes de um atento exame do passado. Esta lei consiste em que cada uma de nossas concepções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passe sucessivamente por três estados teóricos diferentes: o estado teológico, ou fictício, o estado metafísico, ou abstrato; o estado científico, ou positivo. Em outras palavras, o espírito humano, por sua natureza, emprega sucessivamente em cada uma de suas buscas três métodos de filosofar, cujo caráter é essencialmente diferente e até mesmo radicalmente oposto: primeiro o método teológico, em seguida o método metafísico e finalmente o método positivo.^Daí, três espécies de filosofia, ou de sistemas gerais de concepções sobre o conjunto dos fenómenos, que se excluem mutuamente; a primeira é o ponto de partida necessário da inteligência humana; a terceira, seu estado fixo e definitivo; a segunda destina-se unicamente a servir de transição^] No estado teológico, o espírito humano, ao dirigir essencialmente suas buscas para a natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o afetam, em suma, para os conhecimentos absolutos, imagina os fenómenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as aparentes anomalias do universo. No estado metafísico, que não passa, no fundo, de uma simples modificação geral do primeiro, os agen189
tes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades (abstrações personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidas como capazes de gerar por si mesmas todos os fenómenos observados, cuja explicação consiste então em atribuir a cada um a entidade a ele correspondente. Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e a destinação do universo, e a conhecer as causas íntimas dos fenómenos, para dedicar-se unicamente a descobrir, pelo uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, isto é, suas relações invariáveis de sucessão e similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, não é, doravante, senão a ligação estabelecida entre os diversos fenómenos particulares e algumas vezes gerais cujo número os progressos da ciência tendem a diminuir cada vez mais. [...] (Depois [da revolução científica], o movimento de ascensão da filosofia positiva, e o movimento de decadência da filosofia teológica e metafísica foram extremamente marcados. Eles se pronunciaram tanto, enfim, que ficou impossível, hoje, para todos os observadores que tenham consciência do seu século, desconhecer a destinação final da inteligência humana para os estudos positivos, assim como seu afastamento doravante irrevogável dessas vãs doutrinas e desses métodos provisórios que só podiam convir a seu advento. Assim, esta revolução fundamental se realizará necessariamente em toda a sua extensão. Se, portanto, restar-lhe ainda alguma grande conquista a fazer, algum ramo principal do campo intelectual a invadir, pode-se estar certo de que a transformação, se operará aí, como se efetuou em todas as outras\ Porque seria evidentemente contraditório supor que o espírito humano, tão 190
disposto à unidade do método, conservasse indefinidamente, para uma única classe de fenómenos, sua maneira primitiva de filosofar, quando uma vez ele chegou a adotar para todo o resto um novo andamento filosófico, de um caráter absolutamente oposto.
5. CIÊNCIA E MORAL PROVÊM DE UM ÚNICO E MESMO MÉTODO M. Berthelot, Ciência e moral9
( O conhecimento humano é adquirido por um método único, a observação dos fatos; mas ele é extraído de duas fontes diferentes, uma interna, outra externa. A sensação revela-nos o mundo exterior, e este é o ponto de partida de todas as ciências físicas, naturais e históricas. [...] Neste campo tudo é objetivo. Ao contrário, no mundo interno, aquele da consciência, o homem aparece sozinho: seu espírito, seu sentimento passam a ser a medida das coisas) Estas só existem para nós desde que as conheçamos; deste ponto de vista, portanto, elas só existem para nossa inteligência e em nossa inteligência. Neste campo tudo é subjetivo. Este é o contraste, para não dizer a oposição, entre as duas fontes de nosso conhecimento.
9.
Ed. Calmann-Lévy, 1897, pp. 22 a 25.
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Ora, as duas fontes, interna e externa, de nossa ciência positiva são igualmente, repito, as duas fontes de nossa moral. Este é um ponto capital na velha polémica que o misticismo renova hoje. C
^ liL^r A moral humana, não mais que a ciência, não reconhece uma origem divina: ela não procede das religiões. O estabelecimento de suas regras foi extraído do campo interno da consciência e do campo externo da observação. [...] Entremos no cerne do assunto, começando pelas noções extraídas da fonte interior. O homem do nosso tempo acha no fundo de sua consciência a ideia do bem e do mal e o sentimento indelével do dever, isto é, o imperativo categórico de que fala Kant. [...] Vamos então ao segundo ponto de vista. As noções emprestadas da fonte exterior de nossos conhecimentos, isto é, da história e das ciências naturais, como a antropologia, a zoologia, a fisiologia e a psicologia das espécies animais e do homem, ofereceni-nos a moral sob uma luz diferente, porque elas mostram suas origens instintivas e sua evolução. A espécie humana, na verdade, representa apenas um caso particular, entre a multidão de espécies animais que vivem em sociedade. Ora, nestas, e à medida que elas se manifestam com uma perfeição mais marcada, vemos surgirem os primeiros elementos da moralidade. A família, nascida dos instintos que presidem a conservação da espécie, existe, pelo menos temporariamente, entre os pássaros^e os mamíferos, para não descer mais baixo. Ela existe com o sentido do amor materno, e, em certos casos, do amor paterno, elevados ao mais alto grau. Entre as espécies sociáveis não encontramos somente o sentido da família, mas também o da solida-
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riedade e do devotamento do indivíduo à coletividade, levados às vezes até o sacrifício de sua vida. [...] Os instintos sociais, os sentimentos e deveres que daí derivam não são, portanto, próprios da espécie humana, e decorrentes de alguma revelação alheia e divina: eles são inerentes à constituição cerebral e fisiológica do homem, constituição semelhante à dos animais, embora de uma ordem superior, e que se tornou assim, sobretudo durante o transcorrer dos séculos, pelo efeito das conquistas da nossa inteligência.
6. A FÉ NA CIÊNCIA AINDA É UMA FÉ F. Nietzsche, A gaia ciência 10
(Sem dúvida alguma, quem quer o verdadeiro, no sentido intrépido e supremo que supõe a fé na ciência, afirma por esta própria vontade um outro mundo que não o da vida, da natureza e da história, e na medida em que afirma este "outro mundo", não está negando necessariamente, por isso mesmo, seu antípoda: este mundo, o nosso?..J Mas haverão entendido onde eu quero chegar: é numa fé metafísica que se baseia ainda nossa fé na ciência; investigadores do conhecimento, ímpios, inimigos da metafísica, tomamos emprestado nosso próprio fogo do braseiro que foi aceso por uma crença 10. Traduzido para o francês por A. Vialatte, Gallimard, Idées, 1980, p. 289, § 344. ,
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milenar, esta fé cristã, que foi também aquela de Platão, para quem o verdadeiro é identificado com Deus e toda verdade é divina... Mas, e se isto ficar cada vez mais incrível? Se nada mais se verificar divino, exceto o horror, a cegueira e a mentira?... e se ficar visível que o próprio Deus foi nossa mais longa mentira?
7.
O CIENTISTA E UM PLEBEU DO ESPÍRITO F. Nietzsche, Além do bem e do mal11
Comparado ao génio que é feito para procriar e parir, as duas palavras tomadas em toda a força dos termos, o cientista, o homem de ciência médio conserva hoje um pouco da solteirona: pois ignora, como ela, as duas funções mais preciosas do ser humano. Para uns e para outros, para cientistas, como para as solteironas, concede-se como compensação uma espécie de consideração; insiste-se nesta consideração que lhes é devida e esta concessão obrigatória é acompanhada, nos dois casos, por uma mesma dose de mau humor. Olhemos mais de perto para isto: (foue é um homem de ciência? É, antes de mais nada, uma variedade plebeia da humanidade, com as qualidades de uma raça plebeia, nem autoritária, nem dominadora, nem segura de sua própria opinião; ele tem assiduidade ao trabalho, docilidade para ficar na fila, regularidade e mediocrida11. U.G.E. 10/18, 1965, pp. 137-139, § 206.
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de nas aptidões e necessidades; conhece instintivamente seus semelhantes pelo faro e sabe do que eles necessi tanjH por exemplo, daquele pouco de independência e de verde sem os quais não se pode trabalhar tranquilo, a necessidade de ver seus méritos reconhecidos (o quê supõe primeiro e acima de tudo que se seja reconhecível e reconhecido), o raio de sol de uma boa fama, o desejo de ver-se confirmar a propósito de tudo, através de um selo, seu valor e sua utilidade, o que ajuda a vencer a desconfiança de si que carregam no coração todos os homens subalternos e os animais que vivem em bandos.
8.
A VISÃO CIENTÍFICA É UMA VISÃO MESQUINHA DO MUNDO F. Nietzsche, A gaia ciência 12
O mesmo ocorre com esta fé com a qual se satisfazem hoje tantos cientistas materialistas que acreditam que o mundo deve ter sua medida em nossas pequenas escalas, e seu equivalente em nosso pequeno pensamento; eles acreditam num "mundo verdadeiro" onde nossa pequena razão humana poderia finalmente ser bem-sucedida... Em suma, gostaríamos realmente de deixar assim degradar a existência? Rebaixá-la ao nível de composição de cálculo, fazer dela uma pequena lição de casa para matemáticos? É preciso, primeiro, recusar a qualquer preço despojá-la de seu 12. Traduzido para o francês por A. Vialatte, GaUimard, Idées, 1980, pp. 348 a 350, § 373.
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caráter proteico13; é o bom gosto que o exige, senhores, o respeito a tudo o que ultrapassa o vosso horizonte! Que só valha uma interpretação do mundo que dê razão a vós, uma interpretação que autorize a procurar e a dar prosseguimento a trabalhos no sentido que vós considerais científico (e vós pensais mecanicamente, não?), que só valha uma interpretação do mundo que não mais que permita contar, calcular, pesar, enxergar e tocar, é estupidez e ingenuidade, senão demência ou idiotia. Não é provável, ao contrário, que a primeira coisa, e talvez a única, que se possa atingir da existência, é o que ela tem de mais superficial, mais exterior, mais aparente? Sua epiderme, apenas? Suas manifestações concretas?((Uma interpretação "científica" do mundo, tal como aVntendeis, senhores, poderia portanto ser uma das mais tolas, das mais estúpidas de todas as possíveis: que isto seja dito a vosso ouvido, a vossa consciência, mecanicistas da nossa época que vos misturais de tão bom grado aos filósofos e que imaginais que vossa mecânica é a ciência das leis primeiras e últimas e que toda existência deve basear-se nelas como num fundamento necessária. Um mundo essencialmente mecânico! Mas este seria um mundo essencialmente estúpido! Se se avaliasse o "valor" de uma música por aquilo que se pode calcular e contar, pelo que se pode traduzir em números... quão absurda seria esta avaliação "científica"! Que se haveria apreendido, compreendido, conhecido de uma melodia assim apreciada? Nada, e literalmente nada, daquilo que faz justamente sua "música"!...
13. Proteico: de Proteu, personagem da mitologia que não se deixava prender pois assumia formas múltiplas. Nietzsche designa por este termo a complexidade e a mobilidade da natureza que extrapola todos os esquemas nos quais gostaríamos de encaixá-la.
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9.
PAEA LIVRAR-SE DO DOGMA DA IMACULADA CONCEPÇÃO DA CIÊNCIA P. Thuillier, De Arquimedes a Einstein14
í O que encontram os historiadores em geral e os historiadores das ciências em particular não é a Razão (universal e impessoal), mas homens que inventam e constróem certas formas de racionalidade. A própria "ciência" ocidental, por mais elevadas que sejam suas qualidades, não caiu do céu.jEla foi elaborada passo a passo, bem lentamente, sem que se possa resumir seus processos por fórmulas simples. Nos manuais, é frequente que a "revolução científica" do início do século XVII seja apresentada como um súbito triunfo do intelecto humano; e, para precisar, alguns historiadores ressaltam que primeiro foi preciso uma "revolução filosófica". O que parece exato, pelo menos se isto significa que era preciso haver uma nova concepção da natureza para inventar uma ciência nova. Porém, basta que filósofos tenham novas ideias? E por que foi preciso esperar o fim do Renascimento para que o célebre Método fosse concebido e eficientemente utilizado? É verdade, aliás, que a ciência efetiva tenha sido precedida pela definição de um novo método? E por que esses maravilhosos achados foram feitos na Europa? Os gregos e os árabes, entre outros, já haviam concebido noções e esquemas de tipo "científico". Como se explica que um certo umbral, aparentemente decisivo, tenha sido transposto por volta de 1600? Qual "motor" sociocultural foi acionado? [...]
14. Ed. A. Fayard, 1988, pp. XIX-XXII.
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Os historiadores desbravaram muito terreno, trouxeram à luz muitos documentos e propuseram muitas interpretações interessantes. Mas ocorre na história das ciências como nas próprias ciências: frequentemente, é delicadíssimo detectar e avaliar os "bons" fatos, os que foram importantes, até mesmo decisivos... A "revolução científica" foi, de certo modo, superdeterminada; a convergência de múltiplos fatores favoráveis, conforme a expressão consagrada, é que a tornou possível, e mesmo quase inevitável. Não quero dizer, com isso, que as menores especulações científicas (ou pré-científicas) daquela época sempre tiveram "causas" diretas absolutamente precisas e perfeitamente destacáveis. Mas que o movimento geral ao qual se assistiu no campo das atividades cognitivas pode ser entendido como a expressão de um conjunto de transformações socioculturais que diziam respeito às maneiras de produzir, de viver, de sentir e de pensar. Em outras palavras, faço livre uso desta hipótese emprestada daquilo a que chamam "sociologia do conhecimento": cada sociedade gera um tipo de saber (ou tipos de saberes) em que se expressam (consciente ou inconscientemente) as estruturas, os valores e os projetos desta mesma sociedade. Cada sociedade, para empregar uma expressão simples porém cómoda, tem um estilo, e este estilo reflete-se em sua concepção de conhecimento. Inversamente, sempre dentro da mesma perspectiva, torna-se normal questionar-sè sobre as bases sociais de todas as atividades cognitivas. E, por exemplo, perguntar-se de onde vêm os diversos pressupostos (filosóficos, metodológicos, semânticos etc.) que as estruturam e as tornaram possíveis. [...] As simplificações mais caricaturais certamente provêm dos historiadores que tentam descrever o nascimento da ciência recorrendo à história das ideias, à história das mentalidades e à antropologia cultural. 198
Elas devem, isto sim, ser procuradas entre os que querem, a qualquer preço, confirmar o dogma da Imaculada Concepção da Ciência. Eles é que tornam incompreensível a génese dessa ciência dissimulando de maneira mais ou menos inocente (conforme o caso) todas as contribuições "externas" que foram necessárias a seu amadurecimento. Uma espécie de intelectualismo abstrato, ainda aí, provoca uma devastação; e isto, é preciso dizer, com o aval de certos historiadores idealistas. É de se pensar que os cientificistas têm vergonha de reconhecer certas filiações, certas heranças, como se fosse desonroso, por exemplo, ter dívidas para com os mecanicistas, engenheiros e artistas.
10. O CONHECIMENTO ESTÁ AO FM DE CAMINHOS MÚLTIPLOS F. Nietzsche, Aurora
(Nenhum método científico é o único a poder dar acessc^ao conhecimento! Devemos proceder por tentativa com as coisas, mostrarmo-nos ora bons, ora maus em relação a elas e tratá-las sucessivamente com justiça, paixão e frieza! Este fala às coisas como policial, aquele como confessor, um terceiro como viajante e curioso. Obter-se-á algo delas ora pela simpatia, ora pela violência; é o respeito por seus segredos que permite que um progrida e compreenda; para outro, em compensação, o que vale, é a indiscrição e a trapaça na explicação dos 15. Traduzido para o francês por J. Hervier, Gallimard, Idées, 1974, pp. 308-309, § 432.
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segredos. Nós, pesquisadores, como todos os conquistadores, exploradores, navegadores, aventureiros, somos de moralidade temerária e devemos tomar o partido de passarmos, em conjunto, por maus.
problemas físicos e problemas sociais (não se pode dizer o mesmo da astronomia moderna), e era verificada por meios muito simples e engenhosos (observatórios de pedra na Inglaterra e no sul do Pacífico; escolas astronómicas na Polinésia). [...] Em todos os tempos, o homem abordou seu ambiente com os sentidos totalmente abertos e inteligência fértil; desde sempre ele fez incríveis descobertas; em todas as épocas, suas ideias permitem-nos aprender.
10a. O CONHECIMENTO ESTÁ AO FM DE CAMINHOS MÚLTIPLOS P. Feyerabend,16 Contra o método11
11. A CIÊNCIA CONSTRÓI REPRESENTAÇÕES DO REAL Se quisermos entender a natureza, se quisermos dominar nosso ambiente físico, devemos servir-nos de todas as ideias, de todos os métodos e não só de uma seleção de alguns dentre eles.j Afirmar, ao contrário, que não existe conhecimento fora da ciência (extra scientiam nulla salus) não passa de um comodíssimo conto de fadas. As tribos primitivas têm assim classificações de animais e de plantas mais detalhadas que a zoologia e a botânica científicas contemporâneas; conhecem remédios cuja eficácia surpreende os médicos [...]; têm, para influenciar seus próximos, meios que a ciência durante muito tempo considerou inexistentes (Vodu); resolvem problemas difíceis trazendolhes soluções que ainda não foram totalmente compreendidas por nós (construção das pirâmides, viagens polinésias). Do mesmo modo, existia uma astronomia altamente desenvolvida e internacionalmente conhecida na velha idade da pedra; esta astronomia era factualmente adequada e ao mesmo tempo emocionalmente satisfatória, pois resolvia ao mesmo tempo 16. Cf. cap. 6, "Paul Feyerabend: equivalência entre mito e ciência", p. 158. 17. Traduzido para o francês por B. Jurdant e A. Schlumberger Points Seuil, 1988, pp. 346-347.
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C. Delacampagne, Sobre a natureza do real 18
Numa escura e nebulosa noite de inverno , o capitão de um navio aventura-se a cruzar um estreito cujo mapa ele não possui. Se destruir seu barco contra os rochedos, saberá o que o estreito não é. Se, em compensação, conseguir atravessá-lo, não terá, nem por isso, aprendido nada sobre o melhor caminho possível. Terá tido sorte, mas nunca saberá o que o estreito é. Esta fábula ilustra a situação na qual se encontra não só o cientista mas todo indivíduo perante o que se convencionou chamar de real. A natureza final deste nos escapará sempre. Por quê? Porque os conhecimentos que pensamos ter sobre a realidade só existem, no final das contas, no nosso cérebro. A ciência não passa de uma linguagem; os resultados das experiências são,apenas dados perceptivos registrados por nossa mente/O real e a concepção que temos dele são uma coisa só. NÚs é que a construímos. Nós é que a inventamos.^ 18. "Como sabemos o que pensamos saber?" (Artigo publicado no Lê Monde, 4 de março de 1988.)
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12 "...EXPRESSARMO-NOS COMO SENHORES E POSSUIDORES DA NATUREZA" R. Descartes, Discurso do método
Logo que adquiri algumas (ncições gerais tQgan-_ tes à física, e "cUversas dificuldad elãs~p59em quais nos servimos atéonioniento, pensei que não ar grandemente contra a lei que nos obriga a proporcionar, do mesmo modo que ele está em nós, o bem geral de todos os homens. Porqueyelas me fizeram^ enxergar que éjjos; sível chegar a conKiécimentos quesej am bastante úteis à vid^, e que no lugar dessa filosofia especulativa, que se ensina nas escolas, podemos encontrar uma prática dela, pela qual, conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente quanto conhecemos os diversos ofícios de nossos artesãos,(poderíamos empregá-las do mesmo modo em todos_os_usos > qufjKês~st[õrpróprios,^_asstm expressarmo-nos como senhores (Tpo^SSjãõ^s^d^hettiwsza^/U^ó^íe nãõ""""édesejável somente para a invenção de uma infinidade de artifícios, que fariam com que gozássemos, sem dificuldade alguma, dos frutos da terra e de todas as comodidades que nela se encontram, mas também, principalmente, para a conservação da saúde, que é sem dúvida o primeiro bem e o fundamento de todos os outros bens desta vida.
19. Discours de Ia méthode [Discurso do método], Hatier, 1637, 6- parte, p. 68. 20. Os grifos são meus. (C. C.)
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TÉCNICAS? 13. A CIÊNCIA NASCEU DE NECESSIDADES B. Gille, Os engenheiros do Renascimento21
É sabido que os historiadores travam discussões sobre o papel exato da técnica no nascimento da ciência clássica. Uns negam qualquer influência sensível, outros lhe atribuem uma importância primordial. Certamente M. Koyré pode ter razão quando apresenta sua tese. O aparecimento do canhão não provocou o nascimento da dinâmica nova: muito ao contrário, é na experiência dos fabricantes de fogos de artifício que aniquilou-se o esforço de Leonardo da Vinci, Tartaglia e Benedetti. As necessidades da navegação, do cômputo eclesiástico, da astrologia poderiam, e deveriam, provocar um esforço de correção das tábuas astronómicas, o que não ocorreu: elas não puderam incitar Copérnico a inverter a ordem das esferas celestes e a colocar o sol no centro do Universo. As exigências do comércio, a extensão das trocas e das relações bancárias certamente provocaram a difusão dos conhecimentos matemáticos elementares, assim como aquela da contabilidade; elas não podem explicar o espetacular progresso realizado pelos algebristas italianos na primeira metade do século XVI. [...] (Seguramente, a intuição técnica não tem relação alguma-com a descoberta científica e seria bastante inútil atribuir a lei da inérciaa Francesco di Giorgio, inventor do regulador de esferasf|. É claro que a experiência, que é um dos traços fundamentais da ciência clássica, não 21. Ed. Hermann, Paris, 1964. 22. Regulador de esferas: sistema de comando destinado a manter constante o valor de uma variável, quaisquer que sejam as perturbações que poderiam fazê-la variar.
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tem relação alguma com esta experiência tomada no sentido da observação direta, de senso comum, que foi mesmo, durante muito tempo, um obstáculo. [...]) A experiência clássica é dirigida, provocada: a experiência técnica é experimentada, com tudo o que isto comporta de confusão e complexidade. Não existe, portanto, no princípio — insistamos bastante nisso —, nenhuma medida comum entre as duas. Ainda convém precisar o alcance exato das palavras que usamos. Certos historiadores ergueram-se, com razão, contra a identificação simplista que se faz com frequência entre essa experiência de senso comum e a observação experimental do cientista. Mas a experiência técnica, que foi, sem dúvida, em seus primórdios, em larga escala, uma experiência de senso comum, ainda o era em meados do século XV? Pensamos, de nossa parte, que os técnicos tinham, também eles, classificado seus problemas, distinguido componentes, elaborado uma primeira triagem entre as noções, para não dizer entre os conceitos, que lhes oferecia a prática cotidiana. Em todo caso, é curioso constatar, precisamente no decorrer desse século XV, que os problemas essenciais dos cientistas e dos técnicos coincidirão de maneira bastante exata. Às incompreensões de uns correspondiam as hesitações de outros e os problemas com os quais todo mundo esbarrava concentravam-se, de certa forma, em pontos bem definidos. Uma ciência apaixonada pelo real, desejosa de confrontar seus resultados com a experiência, e uma técnica preocupada em dar-se explicações mais válidas, mais gerais, tornada, porém, cada vez mais perita em ficar cifrada, deviam ter, fatalmente, estreitos contatos. Se uma abandonasse um pouco de sua abstração, se a outra buscava a generalização, o encontro seria inevitável. [...] 204
Por conseguinte, era plausível prever que ocorreriam cruzamentos, que, em outras palavras, engenheiros, não só porque eram engenheiros, participariam desse movimento que deu origem à ciência clássica. Quando M. Koyré declara que Benedetti se aproximou da verdade, não porque era soldado da artilharia e engenheiro, mas porque tivera conhecimento de Arquimedes, está negando muito simplesmente este notável acordo que se faz naquele momento entre as duas ordens de pensamento. [...] Contudo, esta comunhão deveria prosseguir por muito tempo e, até o final do século XVIII, os cientistas preocuparam-se com técnica da mesma forma que os técnicos vangloriavam-se de ciência.
14. UM SABER DO TIPO OPERATÓRIO
J. Ladrière, As questões da racionalidade23
A ciência moderna está estreitamente associada a um poder sobre as coisas, e sobre o próprio homem, e é por isso que ela aparece ligada à tecnologia a ponto delas serem indiscerníveis. Ela, porém, não deixa de constituir um tipo de procedimento cuja finalidade própria e imediata é fornecer conhecimentos cada vez mais extensos, precisos e confiáveis. O estatuto desses conhecimentos é que se deve tentar apreender se se deseja compreender por que o saber científico, num imenso número de casos, prolonga-se tão naturalmente numa habilitação que já pertence à esfera da tecnologia, (^oder-se-ia dizer, para chegar imediatamente 23. Lê défi de Ia science et de Ia technologie aux cultures [O desafio da ciência e da tecnologia às culturas], Aubier-Unesco, 1977 pp 28 29 33,34. ' '
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ao essencial, que o saber científico não é nem do tipo sapiencial, nem do tipo contemplativo, nem do tipo hermenêutico, mas do tipo operatório. [...] 1 Sabedoria, visão contemplativa, interpretação do sentido: não se pode negar que o discurso científico conserva algo dessas três inspirações. Talvez extraia delas, mesmo, sua virtude mais secreta; talvez seja por uma espécie de derivação que ele acabe se integrando à ação e interpretando a si mesmo como ação. E pode ser que o dia em que a ciência não for nada além de um "fazer", o dia em que tiver perdido totalmente o contato com suas raízes especulativas, ela esteja completamente esgotada. [...] Mas se é verdade que a ciência continua a enraizar-se naquelas formas fundadoras do saber, não deixa de ser verdade que ela conquistou sua originalidade afastando-se de maneira refletida dos modos puramente especulativos ou interpretativos de conhecimento e elaborando processos próprios de aquisição de conhecimento. Como já foi sugerido, o que está no centro desses processos é a ideia de operação.
15. A CIÊNCIA MODERNA É ESSENCIALMENTE ATIVA M. Heidegger, Ensaios e conferências
O que predomina na ciência é algo mais que uma simples vontade de saber por parte do homem? Na 24. Traduzido para o francês por A. Préau, Science et méditation [Ciência e meditação], col."Tel", Gallimard, pp. 50-51, 62.
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por maior que seja o tempo que fiquatíí 5 , representações habituais referentes à ciência U] Para podermos expô-la, temos que primeiro conhecer por experiência no que consiste o ser da ciência. Pode-se expressá-lo numa frase curta: A ciência é a teoria do real. Esta frase não pretende fornecer nem uma definição pronta nem uma fórmula cómoda. Ela só contém questões. Estas despertam quando se explica a frase. Antes, temos que notar que a palavra "ciência", na frasera ciência é a teoria do real", designa sempre e unicamente a ciência moderna, inclusive a contemporânea. A afirmação de que a "a ciência é a teoria do real" não é verdadeira-nem para a ciência da Idade Média nem para aquela da Antiguidade} A doctrina medieval permanece assim essencialmente diferente de uma teoria do real que, por sua vez, o é do Ejuornur] antigo. O ser da ciência moderna que, sob sua forma europeia, tornou-se neste ínterim planetária, não deixa de se fundamentar no pensamento dos gregos, que desde Platão se chama filosofia. t\Por uma análise fechada da etimologia das palavras alemãs, gregas e latinas, Heidegger mostra que o real advém numa "obra" num "fazer". O real é em primeiro lugar o processo, bem como o resultado, pelo qual, de per se ou solicitado por nossa ação, o ser se "apresenta" ou se "produz" (no duplo sentido de manifestar-se e de realizar-se). Depois, havendo sido ressaltada a ação exterior, o real é, cada vez mais, o que se obtém e se coloca diante de si, de maneira estável, como objeto. A teoria é em primeiro lugar a visão, a contemplação de uma verdade que, por si só, desvenda-se. A isto se acrescenta em seguida a ideia de uma divisão, 207
de uma separação, finalmente de uma elaboração: corta-se o ser, isolam-se as partes, e ele é tratado e preparado para que se ofereça em "fatos" objetivos.] J A teoria [...] seria assim esta elaboração do real que o segue passo a passo e se apodera dele. Mas caracterizar a ciência desta maneira poderia mesmo ir claramente contra sua essência, pois a ciência, como teoria, é precisamente "teórica". Ela se abstém de elaborar o real. Ela põe tudo em ação para apreender o real como ele é. Só intervém no real para modificá-lo. A ciência pura, proclamam, é "desinteressada". E, no entanto, a ciência moderna, entendida como teoria no sentido de intenção, é uma elaboração do real, uma intervenção, de forma alguma tranquilizadora, no real. Justamente por esta elaboração, ela corresponde a um traço fundamental do próprio real. O real é a coisa presente que se põe em evidência. Na época moderna, todavia, a coisa presente mostra-se de tal modo que põe sua presença em posição na objetividade. A este reino de objeto, como modo da presença, corresponde a ciência, tanto quanto, do seu lado, como teoria, ela provoca o real, visando especialmente sua objetividade.f A ciência põe o real contra a parede. Ela o detém e o interpela, para que ele se apresente a cada vez como o conjunto do que opera e do que é operado, isto é, nas consequências supervisáveis de causas dadas. Assim o real pode ser doravante perseguido e dominado pelo olhar .V
16. UMA CIÊNCIA IMPURA... J. Schlanger, Os conceitos científicos 25
O conhecimento, como mostra a história, funciona inteiramente em circuito fechado? Teríamos uma visão incompleta da aventura histórica ao conhecimento se olhássemos exclusivamente para as mudanças iniciadas, as mudanças introduzidas por uma iniciativa intelectual.^ Não há dúvida que a ordem intelectual tem uma consistência própria, caracteriza-se por interesses e condutas significantes que os definem; e, no entanto, existe exterioridade no conhecimento. Existem mesmo várias exterioridades. A história não-cientificista das ciências ressalta-as. A exterioridade mental-histórica do contexto de época, que é interiorizada, que é uma impregnação, e que encarrega a teoria de salvar os interesses da especulação. A exterioridade política e ideológica, que marca o papel geral do conhecimento; que marca também a incitação a uma determinada direção de pesquisa e o uso que é feito dos resultados (uso ideológico ou concreto).
17. A CIÊNCIA EUROPEIA PRETENDE O INFINITO E A TOTALIDADE E. Husserl, A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental
Há, na Europa, algo de género novo, que todos os outros grupos humanos também sentem em nós, e que
25. Isabelle Stengers, Judith Schlanger, La Découverte, 1989, p. 104. 26. Traduzido para o francês por G. Granel, Gallimard, 1936, pp. 353-355.
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é para eles, independente de qualquer questão de utilidade — e mesmo que sua vontade de conservar seu espírito próprio permaneça intocada — uma incitação a se europeizar cada vez mais, enquanto nós, se temos uma boa autocompreensão, jamais nos indianizaremos (por exemplo). Minha opinião é que sentimos (e este sentimento, qualquer que seja sua obscuridade, é realmente justificado) que há, de maneira inata em nossa humanidade europeia, uma enteléquia27 que domina, de parte a parte, o devir da Europa dentro da diversidade de seus aspectos e que lhe dá o sentido de um desenvolvimento rumo a uma forma de vida e de ser ideal, como que rumo a um pólo externo. [...] O Télos28 espiritual da humanidade europeia, na qual está incluído o Télos particular das diversas nações e dos homens individuais, acha-se no infinito; ele é uma ideia infinita, na qual, de maneira oculta, o conjunto de devir do espírito quer, por assim dizer, desembocar. [...] Desenvolvamos. A Europa espiritual possui um local de nascimento. Com isto, não entendo que ela o possua geograficamente num determinado país, embora isto também seja exato, mas entendo um local de nascimento espiritual numa nação, e, logo, nos homens individuais e nos grupos humanos dessa nação. É a nação grega antiga nos séculos VII e VI a.C. E nela que se desenvolve uma nova espécie de atitude em relação ao mundo ambiente. E, como conseqúência,(realiza-se a inauguração de uma espécie inteiramente nova de formações espirituais, que crescem até formarem uma face cultural sistematicamente fechada; os gregos chamam-na filosofia. Numa tradução correta, em seu sentido original, isto não quer dizer senão ciência universal, ciência de todo o mundo, da unitotalidade de todo o sendo!) 27. Enteléquia: substância que atinge a perfeição de que ela é capaz. 28. Télos: meta, finalidade.
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CIÊNCIA: BUSCA OU CONQUISTA?* J.-M. Lévy-Leblond, O espírito de saí29
A busca do saber tornou-se conquista. Não se trata ^n^is^déTpãcientemente, descobrir o Graal, mas de, brutalmente, ocupar a Terra Santa. Nova cruzada, a pesquisa científica mobiliza doravante verdadeiras tropas, recrutadas, equipadas, financiadas e dirigidas sistematicamente pelo Estado, muitas vezes transparente aval da Indústria ou do Exército. Os americanos, cínicos ou ingénuos, falam cruamente em complexo militar-industrial-científico, e a Ciência, entre eles, promoveu-se a Quarta Arma, após aquelas da Terra, do Mar e do Ar. Aliás, ela está mesmo em seu elemento com a quarta: o Fogo. Os objetivos táticos podem variar de uma campanha para outra — a Lua há pouco, o Sol e sua energia agora, a cura do câncer ou a fusão do núcleo —, a estratégia é sempre a do lucro económico ou político. Mas como os Cruzados no Oriente, e os exércitos napoleônicos mais tarde, os destacamentos científicos levam também em sua bagagem, com o ter e o poder, o saber. \A submissão da ciência, tanto em organização quanto em metodologia, às exigências e contingências sociais, nem assim desqualifica a validade dos seus resultados. A verdade do mundo é suficientemente complexa e múltipla para que todos possam escolher aí do que tirar proveito, material ou intelectual. \ Igreja contra Galileu, como os soviets com Lyssenko30, só fez a ciência passar pelos piores 29. Ed. A. Fayard, 1981. Points, Seuil, 1984, pp. 222-223. * No original, guete ou conquête. Temos aqui mais um jogo de palavras intraduzível. (N.T.) 30. Lyssenko: cf. cap. 5.
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ultrajes por haver subestimado sua virtude. Ele, o Capital, não tem nem a ingenuidade nem a fraqueza de recorrer ao estupro, quando a prostituição, convenientemente institucionalizada, oferece garantias seguras de renda e estabilidade.
19. UMA CIÊNCIA SEM DOMÍNIO? H. Marcuse, O homem unidimensional
q
essencialmente diferente (o de um mundo pacificado) e, por conseguinte, a ciência iria dar em conceitos da natureza essencialmente diferentes, estabeleceria fatos essencialmente diferentes. Uma sociedade realmente racional subverteria a ideia de Razão.
20. OS CRITÉRIOS DA VERDADE SÃO CRITÉRIOS SOCIAIS •Q Q M. Weber, Ensaios sobre a teoria da ciência
í
U) que estou tentando mostrar é que a ciência, por causa do seu método e de seus conceitos, projetou um universo no qual o domínio da natureza ficou ligado ao domínio do homem e que ela favoreceu esse universo — e esse traço de união tende a tornar-se fatal para esse universo em seu conjunto! A natureza, apreendida e controlada pela ciência, ainda está presente no aparelho técnico de produção e de destruição que garante e facilita a vida dos indivíduos e que, ao mesmo tempo, submete-os aos donos do aparelho. Assim, a hierarquia da Razão e a hierarquia da sociedade interpenetram-se. Deste modo, se havia uma mudança no sentido do progresso que romperia o laço entre a racionalidade da técnica e aquela da exploração, haveria igualmente uma mudança na própria estrutura da ciência — no projeto científico. As hipóteses da ciência, sem perder seu caráter racional, desenvolver-se-iam num contexto experimental 31. Traduzido para o francês por M. Wittig, Points, Seuil, 1970, pp. 209-210.
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A realidade dada é ordenada de acordo com categorias que são subjetivas no sentido específico de que constituem a pressuposição de nosso saber e que estão ligadas à pressuposição do valor da verdade que só o saber empírico pode nos fornecer) Nada podemos oferecer, com os meios de nossa ciência, a quem considera que esta verdade não tem valor — pois a crença no valor da verdade científica é produto de certas civilizações e não um dado da natureza. Por isso ele sem dúvida buscará em vão uma outra verdade capaz de substituir a ciência no que só ela pode fornecer, a saber, conceitos e juízos, que não constituem a realidade psíquica, que também não a copiam, mas que permitem ordená-la pelo pensamento de modo válido.
32. Traduzido para o francêspor J. Freund, Plon, 1965, p. 211. 33. N.B.: Os grifos são de Max Weber.
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21.
A VERDADE CIENTÍFICAS PRAGMÁTICAE OPERATÓRIA H. Bergson, Obras "Sobre o pragmatismo de William James"34
Que é um juízo verdadeiro? Chamamos de verdadeira a afirmação que concorda com a realidade. Mas no que pode consistir esta concordância? Gostamos de ver aí algo como a semelhança do retrato com o modeloí|a afirmação verdadeira seria aquela que copiaria a realidade. Entretanto, reflitamos um pouco sobre isso: veremos que somente em casos raros, excepcionais, esta definição de verdadeiro acha aplicação. [...] Tomemos uma verdade tão vizinha quanto possível da experiência, esta, por exemplo: "o calor dilata os corpos". Do que ela poderia ser cópia? É possível, num certo sentido, copiar a dilatação de um corpo determinado em momentos determinados, fotografando-a em suas diversas fases. Mesmo, por metáfora, posso ainda dizer que a afirmação "esta barra de ferro dilata-se" é a cópia do que se passa quando assisto à dilatação da barra de ferro. Mas uma verdade que se aplica a todos os corpos, sem dizer respeito especialmente a nenhum daqueles que vi, não copia nada, não reproduz nada. [...]
através da realidade móvel, coloca-nos em melhores condições e dá-nos os meios para agir sobre elaj -se a diferença entre esta concepção de verdade e a concepção tradicional. Geralmente definimos o verdadeiro por sua conformidade ao que já existe;/ James define-o por sua relação com o que ainda não existe. O verdadeiro, segundo William James, não copia algo que foi ou é: ele anuncia o que será, ou melhor, prepara nossa ação sobre o que vai ser. A filosofia tem uma tendência natural a querer que a verdade, olhe para trás: para James, ela olha para a frente.
22. A IDEOLOGIA NO CERNE DO CONHECIMENTO CIENTIFICO J.-M. Lévy-Leblond, "A ideologia da/na física contemporânea'35
Uma frase como "o calor dilata os corpos", seguida da visão da dilatação de um certo corpo, faz com que prevejamos como outros corpos se comportarão em presença do calor; ela nos ajuda a passar de uma experiência antiga a novas experiências; é um fio condutor, nada mais.(A realidade passa; nós passamos com ela; e chamamos de verdadeira toda afirmação que, dirigindo-nos
Pareceu-me grande o risco de dogmatismo e esquematismo ao se querer descobrir ideologia no nível das formas da descoberta científica. Aliás, é com algum sucesso que a própria ideologia burguesa opôs a certas críticas, contudo bem intencionadas, a "neutralidade" dos resultados científicos e sua ausência de correlação com a posição ideológica e filosófica de seus autores: a teoria da relatividade não parece marcada pelo humanismo democrático de Einstein, o formalismo quântico pelo aristocrático desapego de Dirac, os princípios quânticos de simetria pelas ideias e práticas políticas reacionárias de Wigner ou Gell-Mann etc. [...]
34. Ed. du Centenaire, pp. 1444 a 1446.
35. Lês Temps Modernes, n8 337-338, agosto-setembro de 1974, pp. 26572658.
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As razões disto ficam claras se, como tentei demonstrar, (as determinações ideológicas operam de maneira muito mais institucional que individual, quer dizer, a montante ou a jusante do lugar onde emerge o fluxo da produção científica sob a forma de uma descoberta bem delimitada e formulada, j Eu não gostaria ainda assim que se pensasse que um desinteresse total é admissível aqui. Para continuar a usar a mesma metáfora, poderia ser extremamente frutífero estudar os encaminhamentos subterrâneos desse fluxo antes de sua ressurgência, através dos caminhos dissimulados do inconsciente dos cientistas. [...] É conhecida a crescente influência mútua das pesquisas psicanalíticas e linguísticas. No nível que nos interessa aqui, tais considerações talvez permitissem esclarecer pelo menos um vínculo, cuja existência, senão a natureza, parece clara, entre a ideologia em geral e a descoberta científica nas ciências físicas em particular: aquele que materializa a relação entre as duas linguagens, matemática (formalizada) de um lado, e corrente (heurística), do outro. Esta dualidade, que me parece fundamentalmente específica da física, coloca um problema sério. Na verdade, há aí bem mais que uma simples questão de terminologia e, portanto, de escolha aparentemente arbitrária, de usar esta ou aquela palavra da linguagem usual para designar (de-signar?) um conceito físico cuja determinação própria está ligada a um formalismo abstrato. Não se trata, aí, de uma simples relação de significante (a palavra) com um significado (o conceito), já que por sua própria preexistência no seio da linguagem corrente (exceto no caso de neologismos absolutos), o termo escolhido evocará uma série de conotações bem determinadas (em particular ideologicamente!), que reagirão sobre o sentido atribuído a partir de então ao conceito e, por conseguinte, sobre 216
a maneira como ele será utilizado e, às vezes, explorado. Valeria a pena examinar, deste ponto de vista, o vocabulário da mecânica clássica. Trabalho, força, energia, potência etc., tantas palavras cujo vínculo com a produção económica parece certo, e o aspecto ideológico da escolha da terminologia dificilmente negável. Reciprocamente, a exploração dos conceitos físicos assim denominados, por abuso de linguagem, deveria ser estudada de perto, e sua justificação seguida mais de perto, em Marx, por exemplo (as forças produtivas, a força de trabalho), assim como em Freud (a energia libidinal), para citar apenas exemplos maiores.
23. O FUNCIONAMENTO DO SISTEMA NERVOSO É EXPLICADO COM BASE EM MODELOS oc MECÂNICOS R. Descartes, Tratado do homem
Assim como podeis ter visto, nas grutas e chafarizes que estão nos jardins de nossos reis, [...] apenas a força com que a água se move ao sair de sua fonte é suficiente para mover aí diversas máquinas, e até mesmo para fazê-las tocar alguns instrumentos, ou pronunciar algumas palavras, conforme a diferente disposição dos tubos que a conduzem. E, verdadeiramente, pode-se muito bem comparar os nervos da máquina que vos descrevo aos tubos das máquinas desses chafarizes; seus músculos e ten36. (Euvres completes, Adam-Tannery, T. XI, pp. 130-132, 165-166.
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does, às outras diversas peças e molas que servem para movê-las; seus espíritos animais, à água que as move, cujo coração é a fonte, e as concavidades do cérebro são os olhos. Além disso, a respiração e outras ações semelhantes que lhe são naturais e frequentes, e que dependem do curso dos espíritos, são como os movimentos de um relógio, ou de um moinho, que o curso ordinário da água pode tornar contínuos. Se algum dia haveis tido a curiosidade de olhar de perto os órgãos de nossas igrejas, sabeis como os foles, neles, introduzem o ar em certos receptáculos, que, parece-me, são chamados naquela oportunidade de porta-ventos; e como esse ar entra dali em todos os tubos, ora nuns, ora noutros, conforme as diversas maneiras que o organista movimenta os dedos no teclado. Pois bem, podeis conceber que o coração e as artérias, que introduzem os espíritos animais nas concavidades do cérebro da nossa máquina, são como os foles desses órgãos, que introduzem o ar nos portaventos; e que os objetos exteriores, que são os nervos que eles movimentam, fazem com que os espíritos contidos nessas concavidades entrem dali em alguns desses poros, são como os dedos do organista, que, conforme as teclas que ele pressiona, fazem com que o ar entre dos porta-ventos em alguns tubos. E como a harmonia dos órgãos não depende em absoluto da disposição dos tubos que se vê do lado de fora, nem da forma exterior dos porta-ventos, ou de outras partes, mas somente de três coisas, a saber, do ar que vem dos foles, dos tubos que conduzem o som, e da distribuição desse ar nos tubos: assim, quero preveni-los de que as funções que estão sendo tratadas aqui não dependem de modo algum da face exterior de todas essas partes visíveis que os anatomistas distinguem na substância do cérebro, nem daquelas de suas concavidades; mas somente dos espíritos que vêm do coração, dos poros 218
do cérebro por onde eles passam, e da maneira como esses espíritos se distribuem nesse poros. * [...f A imagem é ainda mais satisfatória porque o conjuntoMas funções de um e de outro membro da imagem são facilmente correspondentes. A grande máquina animada pelo vento e que produz uma harmonia deixa-se evidentemente aproximar do corpo humano cuja harmonia é a própria vida. A velha imagem do sopro de vida subtende o conjunto./
24. A CIÊNCIA É OBRA SOCIAL 37 É. Durkheim, Ano sociológico
Segundo M. Jerusalém,38 a sociedade é que consolidaria as imaginações mitológicas em dogmas obrigatórios, em verdades incontestes. Ela é que construiria a representação vulgar da natureza. A ciência, porém, não seria da sua alçada; ela seria obra individual. Deveríamos à sociedade as noções simples, grosseiras mesmo, que nos servem diariamente para dirigir nossos movimentos; mas ela nada teria a ver com as representações mais finas que têm, antes de tudo, por objeto expressar as coisas tal e qual são objetivamente, com toda a complexidade de seus caracteres metodicamente analisados. [...] 37. 1906-1909 , T. XI, pp. 44-45. 38. Durkheim relata uma obra de Wittielm Jerusalém (Soziologie dês Erkennens, 1909), que privilegia, na elaboração das ciências, o fator individual.
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Porém, (na realidade, a ciência é coisa eminentemente social, por maior que possa ser a parte que nela tomam os indivíduos. Ela é social porque é produto de uma vasta cooperação que se estende não só a todo o espaço, mas a todo o tempo. E social porque supõe métodos, técnicas que são resultado da tradição e que se impõem ao trabalhador com uma autoridade comparável àquela da qual são investidas as regras do direito e da moral, pão verdadeiras instituições que se aplicam ao pensamento, como as instituições jurídicas ou políticas são métodos obrigatórios da ação. A ciência é ainda coisa social porque põe em operação noções que dominam todo o pensamento e na qual toda a civilização está como que condenada: são as categorias. Falta, portanto, o papel da sociedade cessar onde começa o campo da pura especulação; pois a especulação repousa em bases sociais.
25.
O MUNDO CIENTÍFICO É UMA ESCOLA G. Bachelard, A atividade racionalista da física contemporânea39
Como não inscrever doravante na filosofia fundamental do pensamento científico, na sequência de seu estatuto intersubjetivo, seu inelutável caráter social? Pois enfim, esta essencial pluralidade dos pensadores de um pensamento científico determinado, aí está, como diz o poeta, a expressão do homem "na milésima pessoa do singular"40, aí está uma geração de cientistas unificada na singularidade de uma verdade 39. PUF, 1951, pp. 7-8. 40. Henri Pichette, prefácio do Grenier sur Veau [Celeiro sobre a água] de Emmanuel Looíen.
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novíssima, na facticidade de uma experiência desconhecida das gerações anteriores. Parece que o caráter social das ciências físicas se designa precisamente pelo evidente progresso destas ciências. Ó trabalhador isolado deve confessar "que não teria encontrado isso sozinho". Este progresso dá a essas ciências uma verdadeira história de ensino cujo caráter social não pode ser ignorado. \A. comunhão social do racionalismo docente e do raciofialismo discente que tentamos caracterizar em nossa obra anterior (trata-se do Rationalisme appliqué [Racionalismo aplicado]) dá ao espírito científico a dinâmica de um crescimento regular, a dinâmica de um progresso certo, de um progresso confirmado psicológica e socialmente pela própria expansão das forças culturaisjO homem hesita. A Escola — em ciências — não hesita. A Escola — em ciências — leva de roldão. A cultura científica impõe suas tarefas, sua linha de crescimento. As utopias filosóficas, aí, não têm poder algum. O idealismo nada mostra. É preciso pôr-se na escola, na escola como ela é, na escola que ela se torna, no pensamento social que a transforma.
26.
UMA "TRIBO" CIENTÍFICA SOB O OLHAR DO ETNÓLOGO B. Latour, S. Woolgar, A vida de laboratório41
Lendo (a literatura dos antropólogos e falando com eles, dei-me conta de seu cientificismo. Eles estudavam outras culturas e outras práticas com um respeito meticuloso, mas sobre um fundo de ciência. Eu me perguntara então o que se diria do discurso cientí41. Traduzido para o francês por M. Biezunski, La Découverte, 1988, pp. 10-14.
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fico se ele fosse estudado com o cuidado que os etnólogos dispensavam ao estudar as culturas, as sociedades e os discursos pré-, para- ou extracientíficos. A "dimensão cognitiva" não era, aí também, amplamente exagerada, e resultante de antropólogos de poltrona que nunca haviam ido a campo? Havendo recebido uma bolsa de estudos Fullbright, eu escolhera um laboratório californiano dirigido por uma pesquisador de origem francesa, como eu, da Borgonha. Este laboratório rico e famoso fazia um ótimo contraste com os funcionários da Costa do Marfim que eu acabara de estudar. Chego ao Instituto Salk. Não vejo nada além de imensas casamatas de concreto. "Parece que a gente está num filme de ficção científica", dizem com frequência os visitantes. Na esplanada de mármore, vazia, desenhada pelo arquiteto Kahn, encontro-me diante de um misto de templo grego e mausoléu. Introduzido na sala de Jonas Salk, encontro um sábio. Dizem, que, para todos os americanos médios, este sábio, o homem da vacina contra a poliomielite, é a própria imagem do cientista, como Pasteur, o homem da raiva, na França. [...] Guiam-me em direção ao subsolo; por trás das aberturas de vidro, leio, em letras douradas, "Laboratories for Neuroendocrinology". É aí que vou passar dois anos." É meu campo. Primeiro me apresentam Wylie Vale, um sulista, a estrela em ascensão do grupo, alguém me diz." Depois um homenzinho ruivo, redondo como um anão da Branca de Neve, Roger Burgus, um dos químicos do grupo. Dizem-me que este químico notável é um hás been, que deseja abandonar a química para pregar num colégio fundamentalista. Em seguida apresentam-me uma suíça, Catherine Rivier, depois Nick Ling, chinês, químico. Outro suíço, Jean Rivier, recebe-me de braços abertos e introduzme imediatamente nos livros de contabilidade do grupo: contas a pagar; quem deve quanto a quem; quem é 222
o melhor; qual o mais citado; quem tomou a ideia de quem; quanto renderá a próxima experiência. Parecia que eu estava na Bolsa. [...] Um playboy adentrou o recinto — Marvin Brown, médico. A conversa generalizou-se. Falou-se em investimentos, lucros, espaços, bolsas, subvenções, vantagens comparativas. Entendi que estava tratando com jovens executivos dinâmicos. Falou-se em estratégia, pontos de apoio, pontos de passagens obrigatórios, em investir praças, sitiar ideias, arruinar reputações, liquidar adversários, guerrilhas. Entendi que caíra no meio de uma reunião de estado-maior. Falou-se em controle, vigilância, teste às cegas, contaminação, traição, em acordo com o inimigo. Entendi que estava às voltas com algum dispositivo policial. Falou-se em mudanças radicais, revoluções, transformações rápidas, minas e explosão. Entendi que estava tratando com conspiradores. [...] Num papelzinho, anunciei-lhes bravamente que, voltando da África, eu os estudaria de agora em diante como se eles fossem uma tribo exótica. Eles caíram na risada, sem acreditar muito em mim.
27. O CONCEITO CIENTÍFICO E CONSTITUÍDO DURANTE UM PROCESSO DE CONFRONTOCOLETIVO I. Stengers, Os conceitos científicos.42
são portanto as normas, mas as controvérsias entre cientistas que decidem o que é a "racionalidade" de uma ciênciáTlA. possibilidade de reconhecer 42. La Découverte, 1989,'pp. 54-55.
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um "poder" relativo aos conceitos científicos remete ao fato de que toda pretensão inovadora foi recebida com ceticismo, escrutada de maneira impiedosa por colegas rivais à cata do ponto fraco em que o candidato inovador transformou seus desejos em "realidade", adiantou uma interpretação ou um raciocínio arbitrário, não reconheceu o caráter ambíguo ou contestável do "fato experimental" que ele está adiantando.^0 "poder" de um conceito científico não remete, portanto, a uma qualidade inerente: se ele é capaz de ultrapassar a particularidade dos fenómenos, é na medida em que aquele ou aqueles que o propunham puderam superar a crítica acirrada daqueles que, eventualmente, serviram-se em vão dessa particularidade para contestar esse poder. J Poder dos conceitos científicos e racionalidade estão, portanto, ligados, mas não o estão sobre o modo do estado de direito, mas aquele do estado de fato social e histórico. Um conceito não é dotado de poder em virtude de seu caráter racional, ele é reconhecido como que a articular um procedimento racional porque quem o propunha teve êxito ao vencer o ceticismo de um número suficiente de outros cientistas, eles mesmos socialmente reconhecidos como "competentes", que questionaram o caráter efetivo do seu poder, tentaram mostrar o caráter ilusório do ponto de vista que ele definia, o caráter arbitrário do juízo que ele propunha. E este êxito não pode, por si, ser entendido em termos "puros": ele não é arbitrário visto que uma relação arbitrária entre um conceito e o campo fenomenal que ele pretende julgar condenará este conceito a cair sob o golpe das críticas, mas ele integra igualmente relações de forças profissionais, antecipações culturais, considerações de prestígio ou possibilidades de desenvolvimentos sociotécnicos frutíferos etc. Em suma, ele depende do julgamento de atores que, com
certeza, têm todo o interesse em manter a distinção entre ciência e não-ciência, mas que, nem por isso, são "sujeitos purificados", despojados de qualquer relação interessada no mundo onde vivem, passíveis, por aí, de garantirem o caráter "puramente científico" do que eles reconhecerão, se for o caso, como "puramente científico".
28. COMO OS CIENTISTAS ILUDEM-SE SOBRE A VERDADEIRA NATUREZA DOS FATOS QUE PRODUZEM? r, S. Woolgar, A vida de laboratório43
Os membros do laboratório não estão em condições de operar uma distinção, dentre os enunciados, entre os verdadeiros e os falsos, os que são objetivos e os subjetivos, grandemente verossimilhantes ou exatamente prováveis, no momento em que são formulados. Enquanto dura o processo agonístico, modalidades são constantemente acrescentadas, suprimidas, invertidas ou modificadas. Porém, a partir do momento que o enunciado começa a se estabilizar, produz-se utna importante mudança. O enunciado torna-se entidade clivada. Por uma lado, ele é uma sequência de palavras que enunciam algo de um objeto. Por outro la,
Traduzido para o francês por M. Biezunski, LaDécouverte, 1988, p. 180.
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enunciados. No momento em que ela intervém, aparecem ao mesmo tempo objetos e enunciados sobre esses objetos. Pouco depois, atribui-se cada vez mais realidade ao objeto e cada vez menos ao enunciado sobre o objeto. VProduz-se, por conseguinte, uma inversão: o objeto passa a ser a razão pela qual o enunciado foi formulado na origeirpBem no início da estabilização, o objeto era a imagem virtual do enunciado; por conseguinte, o enunciado passa a ser a imagem em espelho da realidade "exterior". Assim o enunciado: "O TRF é Pyro-Glu-His-Pro-Nh2" justifica-se simplesmente por: "O TRF é efetivamente Pyro-Glu-His-Pro-Nh2". Ao mesmo tempo, o passado inverte-se. O TRF sempre existiu, simplesmente estava esperando ser desvendado. (A^história de sua construção transforma-se igualmente considerando-se esse novo ponto de vista lisonjeiro: o processo de construção apresenta-se aí como a sequência de um encaminhamento simples que conduz inevitavelmente à "verdadeira" estrutura. Somente graças aos talentos e esforços dos "grandes cientistas" é que falsos problemas e impasses puderam ser superados e a estrutura real pôde ser revelada pelo que ela era.A
29. A FABRICAÇÃO DOS FATOS CIENTÍFICOS B. Latour, S. Woolgar, Á vida de laboratório
Quando o estatuto de um enunciado tende para um fato sob o impulso de uma série de forças agonísticas, existem outras forças que, ao contrário, tendem a 44. Traduzido para o francês por M. Biezunski, La Découverte, 1988, pp. 184 a 186.
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fazer dela um artefato. Vemo-lo nos intercâmbios citados no início do presente capítulo. O estatuto local de um enunciado depende a todo momento da resultante dessas forças. A observação direta permite acompanhar o processo de formação e o abandono de um enunciado dado: o que se vê como um "objeto exterior" é de repente classificado como "pura cadeia de palavras", "ficção" ou "artefato". Observar a transformação de um enunciado de fato em artefato apresenta um trunfo maior: se se conseguir mostrar que o "efeito de verdade" da ciência é submetido a um movimento de fluxo e refluxo, fica muito mais difícil sustentar que o fato se distingue do artefato pois o primeiro se basearia na realidade, enquanto o segundo/geria apenas puro produto das circunstâncias locais e dos estados psicológicos. A distinção entre realidade e condições locaissó~~' "existe após um enunciado estabilizar-se como fato.~°J /Em outras palavras, o argumento de "realidade" nãopode ser usado para explicar o processo pelo qual um enunciado torna-se fato, pois só depois que ele se torna fato aparece o efeito de realidadp. Acontece de o efeito de realidade ser apresentado em termos de "objetividade" ou de "exterioridade". É precisamente porque ocorre uma controvérsia que o enunciado cinde-se numa entidade e num enunciado sobre esta entidade; esta cisão nunca se produz antes da resolução da controvérsia. [...] Que não nos enganemos: longe de nós a ideia de que os fatos — ou a realidade — não existem. Isto basta para nos afastar do relátivismo. Só afirmamos que esta "exterioridade" é consequência do trabalho científico e mão sua causa. Esta é a razão pela qual atraímos a atenção para a importância do momento em que as coisas acontecem. Em janeiro de 1968, o TRF aparecia como uma construção social contingente 227
e os próprios cientistas eram relativistas no sentido de que não excluíam a eventualidade de sua construção da realidade ser um artefato. Mas em janeiro de 1970, o mesmo TRF é um objeto da natureza descoberto pelos cientistas que, nesse meio tempo, metamorfosearam-se em realistas empedernidos. Uma vez resolvida a controvérsia, considera-se a realidade como a causa dessa resolução; porém, enquanto dura a controvérsia, a realidade é consequência do debate, ela segue cada meandro e cada volteio dele como se fosse a sombra das preocupações científicas.
30. TEORIA MATERIALISTA DO CONHECIMENTO E FORMAÇÃO DA IDEOLOGIA K. Marx, F. Engels, A ideologia alemã-45
A produção das ideias, das representações, da consciência está, à primeira vista, diretamente associada à atividade e ao comércio materiais do homem: ela é a linguagem da vida real. Aqui, a maneira de imaginar e de pensar, o comércio intelectual dos homens ainda aparecem como a emanação direta de sua conduta material. O mesmo ocorre com a produção intelectual, como ela se manifesta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica jetc., de um povo. Os homens é que são os produtores de suas representações, de suas ideias etc., mas os homens reais, laboriosos, condicionados por um desen-
volvimento determinado de suas forças produtivas e do comércio que corresponde a elas até em suas fornias mais extensas. A consciência nunca pode ser algo além do ser consciente, e o ser dos homens é seu processo de vida real. Se, em toda ideologia, os homens e sua condição aparecem de cabeça para baixo como numa camera obscura, este fenómeno decorre de seu processo de vida histórico, bem como a inversão dos objetos na retina provém de seu processo de vida diretamente físico. Ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui nos elevamos da teoria para o céu; em outras palavras, não partimos do que os homens dizem, imaginam, representam, nem tampouco do que se diz, se pensa e se imagina e se representa a respeito deles, para chegarmos ao homem de carne e osso; é considerando-se os homens realmente ativos e seu processo de vida real que expomos o desenvolvimento dos reflexos e das ressonâncias ideológicos desse processo. As brumosas formações do cérebro humano também são necessárias sublimações do processo material da vida delas, empiricamente verificável e ligado a circunstâncias materiais prévias. Por conseguinte, a moral, a religião, a metafísica e todo o resto da ideologia, assim como as formas de consciência que correspondem a elas, não conservam mais seu semblante de independência^Elas não têm nem história nem desenvolvimento; ao contrário, são os homens que, ao mesmo tempo que desenvolvem sua produção e sua comunicação materiais, transformam, com esta realidade que lhes é própria, seu pensamento e os produtos deste. Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência^
45. Traduzido pára afiances por Maximilién Rubel, Plêiade, pp. 1506-7.
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31. A CIÊNCIA É UMA PRÁTICA HISTORICAMENTE DETERMINADA R. Garaudy, Contribuição à teoria materialista do conhecimento^
2. que ela dá ao homem um poder determinado sobre essa realidade. Esta noção de reflexo e esta noção de prática estão estreitamente unidas na teoria materialista dialética do conhecimento.
Paremos aqui por um instante para mostrar como o conhecimento científico tem ao mesmo tempo um caráter objetivo e um caráter de classe. A ciência é, em primeiro lugar, um conhecimento das leis objetivas da natureza, ficando entendido que por "natureza" entendemos tanto a natureza no sentido físico da palavra quanto a natureza social, as sociedades humanas. No que consiste essa "objetividade" do conhecimento científico, que o distingue radicalmente dos ritos da magia e dos mitos da religião? . objetividade não consiste no registro passivo de "dados" experimentais. Uma ciência passiva diante da natureza será uma ciência desarmada, incapaz de perceber suas leis. A objetividade científica não é aquela que sugere um empirismo limitado. A objetividade também não consiste numa simples elaboração conceituai. A pura coerência lógica é necessária, mas não basta para garantir uma imagem fiel do mundo. A objetividade científica não é aquela que sugere um idealismo abstratoTl ^
Dizer que uma lei é objetiva é dizer: 1. que ela reflete pelo menos aproximadamente a realidade exterior; 46. PUF, 1953, pp. 308-309.
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É porque no conhecimento se realiza a unidade da teoria e da prática que é possível explicar como, em condições sociais determinadas, o reflexo da realidade pode ser deformado e mesmo invertido na cabeça dos homens. Já mostramos que o conhecimento científico deita raízes na atividade produtiva do homem, na experiência da produção. Este conhecimento supõe um certo nível de produção, um tipo histórico de ferramentas, elaborado pela prática social das gerações passadas, um conjunto de habilidades, hábitos e aptidões técnicas igualmente comunicáveis socialmente pela linguagem. Ela supõe também uma organização social dessas técnicas, certas relações de produção adaptadas ao acionamento das forças produtivas, por exemplo: relações de senhores com escravos, de amos com servos, de patrões com operários. Ela supõe, finalmente, todo um conjunto de representações sociais (organização do ensino e da pesquisa, academias, editoras, agrupamentos confessionais, políticos, intelectuais etc.) e um conjunto de representações, de ideologias, de concepções de mundo no qual a ciência aparece como um dos elementos da cultura, i desenvolvimento da ciência é portanto condicionado por todo o conjunto das relações sociais: não só pelo desenvolvimento das forças produtivas, mas tarn231
dutivas e sustenta a forma de organização do trabalho. |0 conteúdo da ciência deve portanto reter a unidade-dialética dos dois termos dessa transformaçãõj7o trabalho humano, de um lado, e, do outro, a natureza. Esta unidade é propriamente aquilo que Lenin chama de "a coisa para nós", ou, em outras palavras, o setor da natureza já dominado pela prática humana. Esta relação dialética deve ser encontrada também no desenvolvimento da ciência. Este desenvolvimento sempre tem um conteúdo alTj0^10 ^ e^e e sempre Hrelativo ao^ésíãdT as forças produtivas, sempre ligado às lutas de classes (muitas vezes por laços distantes), sempre expressivo dos interesses e da consciência de uma classe. Masfeste desenvolvimento expressa por isso mesmo o grau de controle e de domínio que uma determinada sociedade realizou sobre a natureza. Ele contém, portanto, e usa, mesmo quando se expande, o setor já dominado da natureza. Por aí se explica que a ciência seja una em seu desenvolvimento e, contudo, esteja ligada por um vínculo necessário com as lutas de classe; por aí se explica que o conteúdo da ciência seja objetivo e, no entanto, expresse o ponto de vista da classe ascendente ou dominanteA'
bem por aquele das relações de produção e de toda a superestrutura da sociedade. JT Todos esses aspectos da vida social não estão, evidentemente, separados uns dos outros, mas em constante ação recíproca.
32.
A CIÊNCIA INSERE-SE NA LUTA DE CLASSES J.-T Desanti, A ciência, ideologia historicamente relativa
"O fato de haver uma ciência burguesa e uma ciência proletária fundamentalmente contraditórias quer dizer, antes de tudo, que a ciência também é um caso de luta de classes, um caso de partido." [...] "Se a ciência é obra de classe, como entender a objetividade do seu conteúdo? Como entender a unidade, certeira, de seu desenvolvimento?" [Resposta] "A ciência é fruto do trabalho humano e neste trabalho o homem determina a natureza como ela é em si mesma. Transformar a coisa em si em coisa para nós quer dizer: agredir a natureza bruta por meio de ferramentas que forjamos em seu contato e, por esse trabalho, aprender a dominá-la. Ora, esta transformação não é o feito de um homem isolado; ela utiliza ferramentas, exerce-se no trabalho. Ela é portanto fruto da sociedade inteira: na maneira como ela se exerce reflete-se o estado das forças produtivas que sustentam todo o edifício social; refletem-se portanto, também, os interesses da classe cuja atividade social leva para a frente as forças pro47. [A ciência, ideologia historicamente relativa] Citado por D. Lecourt, Lyssenko. Histoire réel d'ime science prolétarienne [Lyssenko. História real de uma ciência proletária], Maspero, 1976, pp. 32-33.
232
33.
OBJETIVIDADE E IDEOLOGIA NA CIÊNCIA R. Garaudy, Contribuição à teoria materialista do conhecimento48
í A prática só pode assim definir-se pelo conjunto das relações ativas que os homens mantêm ao mesmo tempo COITÍ a natureza e com a sociedade! Nela não se 48. PUF, 1953, pp. 310-311.
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passa de uma consequência do regime burguês de propriedade.
expressam somente as relações atualmente existentes, mas ainda ahistória dessas relações que resumem todo o passado. ]
Assim, portanto, o darwinismo, no que tem de maior e mais verdadeiro, como no que tem de historicamente ultrapassado, é tributário de toda a prática social do seu tempo: a transformação da natureza pelos criadores ingleses, e a ideologia de classe de uma burguesia que tem necessidade de falsificar a realidade social para eternizar e santificar seu domínio de classe e seu regime.
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E o conhecimento científico faz parte dessa realidade complexa, dessa rede emaranhada, desse nó de relações ativas e em perpétuo devir entre os homens e a natureza, os homens e a sociedade. Eis porque se refletem nela, ao mesmo tempo, o sistema das leis objetivas da natureza e a estrutura da sociedade com suas classes e lutas. Um exemplo bastante característico dessas interações complexas é o da formação da teoria de Darwin. A ideia central e genial do darwinismo, a da transformação contínua das espécies, é condicionada pela situação da economia agrícola da Inglaterra do século XIX: Darwin extrapolou para a natureza inteira a experiência dos criadores ingleses, modificando e transformando as raças animais. Depois, para explicar o mecanismo da formação das espécies, para passar da seleção artificial à seleção natural, ele usou a pretensa "lei de Malthus", que não é, em absoluto, uma lei da natureza, mas o reflexo das contradições do regime capitalista: não é verdade que a população cresce em proporção geométrica e a produção de alimentos em proporção aritmética. As chamadas crises de "superprodução" provaram-no superabundantemente. Durante a grande crise de 1920, queimaram trigo, jogaram café no mar, arrancaram parreiras, incendiaram plantações de algodão, abateram vacas leiteiras, enquanto milhões de pessoas necessitavam desses géneros. A pretensa "lei de Malthus" só é invocada para mascarar esta desordem fundamental, esta contradição interna do sistema capitalista, fazendo passar por uma lei externa da natureza o que não 234
34.
A CIÊNCIA DESVIADA PELA IDEOLOGIA T.-D. Lyssenko, "Por que a ciência burguesa se ergue contra os trabalhos da ciência soviética",A9
Como explicar por que a biologia burguesa dá tanto valor à "teoria" da concorrência intra-específica? É que ela precisa justificar o fato de que, na sociedade capitalista, a grande maioria do povo vive na pobreza em período de superprodução de bens materiais. A humanidade inteira pertence a uma única espécie biológica. Então foi necessário que a ciência burguesa inventasse uma luta no interior da espécie. [...] Nós, soviéticos, sabemos muito bem que a opressão dos trabalhadores, a supremacia da classe capitalista e as guerras imperialistas nada têm a ver com as leis biológicas, mas baseiam-se unicamente nas leis podres, moribundas e burguesas da sociedade capitalista. 49. Artigo daLiteraturnaya Gazetta, traduzido pela revista Europe, 18 de outubro de 1947. Citado em Joèl e Dan Kotek, L'affaire Lyssenko [O caso Lyssenko], Complexe, 1986, pp. 77-78.
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ía natureza, não existe concorrência dentro da mesma espécie. A concorrência só ocorre entre espéciesTV) lobo come a lebre, as lebres não se comem entre si; aiebre come capim. O trigo não sufoca o trigo. Mas quando, nos campos de trigo ou de kok-saguiz, cresce o capim, o quenopódio ou outras ervas daninhas desviam para seu proveito os elementos do solo dos quais se alimentam as plantas cultivadas. A biologia burguesa, sendo por essência burguesa, não pôde e não pode observar fatos baseados na ausência de concorrência intra-específica visto que aí se trata de um princípio que ela não reconhece. Eis por que os cientistas americanos não podem adotar a prática das semeaduras cerradas. Servidores do capitalismo, eles não precisam lutar contra os elementos, contra a natureza; precisam de uma luta entre duas espécies de trigo, que pertencem à mesma espécie, e eles é que inventaram esta luta. Graças à pretensa concorrência intra-específica, esta "lei eterna da natureza" que eles forjaram na imaginação, eles tentam justificar a luta de classes, a opressão dos negros pelos brancos. Como admitiriam eles a ausência de uma concorrência intra-específica?
pressão de um fluido sobre um corpo imerso, as leis de Kepler que descrevem o movimento dos planetas, a lei de Newton que fixa a atração gravitacional, as leis de Descartes relativas à refração dos raios luminosos por dióptros, a lei de Lê Chatelier sobre os equilíbrios psicoquímicos, as propriedades ondulatórias do elétron de De Broglie, as leis da eletrodinâmica quântica de Schwinger não são nem escravagistas, nem feudais, nem capitalistas, nem colonialistas, nem imperialistas, embora tenham sido encontradas em sociedades que levam esses nomes/O cientista é, sem dúvida alguma, influenciado pelas Ideologias reinantes, mas esta influência é bastante sutil e é difícil dizer em que caso ela pára ou não na porta do laboratório .\
36. CIÊNCIA E SUPERESTRUTRA IDEOLÓGICA J. Langevin, As condições da pesquisa científica e o marxismo5^
A ciência é necessariamente materialista e estuda um universo previamente dado. 35.
A NEUTRALIDADE DA CIÊNCIA. E. Schatzman, Ciência e sociedade 50
As leis dos processos naturais não trazem a chancela de nenhum regime económico, político ou social. O princípio de Arquimedes, que determina a 50. Bd. Robert Laffont, 1971, pp. 69-70.
236
É ela, como a religião, a moral, o direito, uma "superestrutura", segundo Marx? Se a superestrutura é "um reflexo do mundo real", ã ciência é mesmo um reflexo do mundo real, e pretende mesmo ser o mais fiel. Mas ela é, como as outras superestruturas, "condicionada pelo atual estado das técnicas produtivas"? Sim, até certo ponto. O progresso científico está em 51. Cahiers du Centre d'Études Socialistes, n2 11, EDI, novembro de 1961, pp. 43-44.
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relação com o progresso técnico, o rendimento da pesquisa científica depende da organização da sociedade na qual vive o pesquisador, do lugar que ela lhe confere, dos recursos que lhe proporciona. Haveria uma série de obras a consultar, de estiidos, de investigações a conduzir sobre as condições materiais, económicas, sociais, políticas, da pesquisa científica. [...] \Embora dependa, em parte, do estado da produtividade, a ciência não me parece ser uma superestrutura como as outras. Ela é mais fundamental, mais permanente, seu cabedal é incomparavelmente mais sólido. Ela é também mais independente: a pesquisa científica progride em ritmo próprio, e progride através das vicissitudes de nossas civilizações. A ciência tem uma fisionomia particular, uma vida pessoal, uma evolução distinta, que resulta diretamente da natureza humana e daquela das coísas.y •J
Não existe, se separarmos, em qualquer época, o que é propriamente científico do envoltório dos floreios adventícios5 vinculados ao gosto do país ou do século, ciência burguesa, ciência proletária, ciência antiga, medieval ou moderna. O edifício de conjunto da ciência foi construído aos poucos, como qualquer outro, e em cada época surgiram novos ramos. Mas eles fazem parte do mesmo ser. A geometria de Tales de Mileto, a astronomia dos caldeus, a mecânica de Arquimedes fazem parte da nossa geometria, da nossa astronomia, da nossa aritmética, da nossa mecânica, e ficarão naquelas de nossos descendentes.
52. 53.
238
O grifo é meu, C. C. O grifo é meu, C. C.
37. LA PÉROUSE OU A PASSAGEM DE UM SABER LOCAL A UM SABER UNIVERSAL B. Latour, "A Grande Divisão"5
La Pérouse não viaja pelo prazer de viajar, pelo lucro, pelas rapinas, mas com a finalidade, explicitada por Luís XVI, de melhorar os mapas do Pacífico. A justificativa de suas vigílias e de suas guardas não é apenas haver visitado esta ou aquela ilha, mas, de noite, tê-las registrado, apontando no mapa cujo rascunho ele tem. Sua jornada não acaba, sua missão não se conclui enquanto ele não faz o ponto e o inscreve numa superfície de papel de alguns pés quadrados. [...] Esta viagem é uma das primeiras cuja finalidade é fazer um mapa. O diário de bordo mostra-nos esta estranha paixão; nada importa, daquilo que eles experimentam, se não estiver representado num mapa, seguindo uma exataprq/eçôo em longitude e em latitude, e se este mapa não for passível de voltar para a França a fim de ali ser multiplicado por impressão. La Pérouse, é inútil dizer, não- posa de homem desinteressado. Ele sonha apenas em desviar às rotas comerciais dos espanhóis e portugueses e só tem desprezo pelos pilotos que mantêm secretos seus rutters.55 Ele quer tornar públicos os mapas e possibilitar ao rei da França e ao comércio estender-se mais longe, mais rápido e ganhar mais. [...]
54. Revue du M.A,U.S.S., n-l, La Découverte, 1988, pp. 53-59. 55. Rutter: itinerário e caderneta de rota.
239
La Pérouse diz sem o menor problema que quer possibilitar o retorno das frotas mercantes e pouparlhes tempo e riscos inúteis. Ao atracar no que ele chama de ilha Ségalien e querendo verificar se se trata de uma ilha, a tripulação do Astrolábio e do Bússola encontra nativos. Como sempre, os marinheiros, para se pouparem de longas voltas, querem arrancar aos nativos sua geografia, sua etnografia. La Pérouse, desta vez, espanta-se de que essas espécies de chineses saibam a forma de sua ilha e do grande rio. Seu espanto é estranho. Pessoas que vivem há milénios nessas águas devem saber a forma das ilhas, cabos e correntes. Tudo, porém, está na forma dessa forma. "Conseguimos fazê-los entender que desejaríamos que eles representassem seus país e o dos manchus. Então, um dos velhos se levantou, e com uma ponta do seu cachimbo, traçou a costa da Tartária no Oeste, correndo mais ou menos Norte e Sul. A Leste defronte e na mesma direção, ele representou sua ilha; e, levando a mão ao peito, fez-nos entender que acabara de traçar seu próprio país; ele deixara entre a Tartária e sua ilha um estreito, e voltando-se para nossos navios, que se enxergava da margem, marcou com um traço que podíamos passar por ali. [...] Sua sagacidade para adivinhar nossas perguntas era enorme, mas menor ainda que a de um outro ilhéu, com cerca de 30 anos de idade que, vendo que as figuras traçadas na areia apagavam-se, pegou um dos meus lápis, e papel; traçou aí sua ilha, a que chamou Chola, e indicou por um traço o pequeno riacho em cuja margem estávamos..." (p. 88) O chinês descreve a forma — mas onde? Na areia. E inscreve-a por alguns minutos, apenas para dar a entender, para explicar, para servir de interme-
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diário à comunicação de conhecimentos que seu corpo desde a infância. Mas a areia a Outro chinês consente prazerosamente em desenhar no papel do geógrafo. La Pérouse não nasceu e nem pensa em ficar aqui. Só está de passagem. Seu saber não pode ser incorporado e não pode, portanto, sustentar-se na areia que se apaga e que a maré pode cobrir. Ele o registra, portanto, e este é o único meio que ele tem de lembrar-se de todos esses lugares que percorre em nome do rei. A natureza do registro não é indiferente. La Pérouse [...] não só quer voltar um dia, mas também que qualquer um possa voltar, por qualquer rota, e reconhecer, entretanto, a ilha, sua forma, seus pontos de abordagem e seus recifes. É preciso que qualquer navio possa orientar-se sem nunca ter vindo aí antes, Eis porque ele registra o saber dos selvagens, transfere para seu mapa e transforma-o conforme a projeção de Mercator. [•••] Para o selvagem, os conhecimentos que possui são suficientes pois está sempre naqueles locais. Porém, para La Pérouse, só conta o que está registrado pois amanhã ele não estará mais nesses locais. O intermediário — o mapa na areia — é desinteressante para o selvagem que se diverte diante de tanta ignorância; ele é tudo para a tripulação do Astrolábio. [..,] A narrativa não assume a mesma forma e não se compõe dos mesmos registros se for preciso que haja, em Paris, simulacros da ilha Sacalina fiéis o suficiente para que possam, de Paris, dividir o mundo, entre eles, abrir rotas comerciais, deslocar tropas e inventariar a fauna.
241
O retorno de outros navios aos mesmos mares impõe a La Pérouse obrigações que nenhum outro navegador conheceu. A fidelidade da geografia é um resultado tardio das redes que se deseja estabelecer.
chegando por tantos graus de latitude Norte e tanto de latitude Leste pela ponta sul da ilha Sacalina, eu teria a foz do Grande Rio por esse ou aquele grau. Este raciocínio é crível em Versalhes mesmo para quem nunca esteve no Pacífico. [...]
O mesmo ocorre com a projeção de Mercator. Sua forma depende da natureza do enunciado. Graças a ela, como disse anteriormente, qualquer um pode préconhecer os acessos à ilha. Mas esta projeção é inútil para quem quer voltar sozinho e pela mesma rota. É o caso dos pilotos portugueses cujos "rutters" secretos, ilegíveis, escondidos a todos os olhos, impunham sinalizações próprias a cada itinerário que era preciso indicar exatamente. Sem o duplo contexto do piloto e da rota única e repetida, o rutter é mudo. [...]
[ O diário de bordo de La Pérouse mostra-nos a transformação que nos interessa. O intermediário desinteressante, local, secreto, provisório, supérfluo, de todas as relações entre nativos, torna-se o único objeto permanente de todos estes deslocamentos de quem apenas passou e quer que outros — qualquer um — possam voltar. [...]!
La Pérouse, autorizado pelo rei e por uma nação que esta apropriação exaspera, quer um "universal". L..] Como pode operar-se esta transformação? Os mapas que relatam a informação conforme a projeção do Mercator, uma vez desenhados e multiplicados, permitem que se faça cálculos sobre o próprio mapa. Este ponto é essencial. Os registros dos rutters são heterogéneos, só fazem sentido para quem os decifra e esteve nos mesmos lugares. O intermediário, por si só, é sem valor, ilegível e até mesmo "falso". É no máximo um memorando. Mas os pontos de La Pérouse reunidos no mapa são tornados homogéneos pela projeção. Eles são tão homogéneos que uma única superfície liga todos, superfície esta sobre a qual é possível trabalhar. O intermediário tem por si só, tanto valor que é possível aprender coisas novas apenas trabalhando sobre ele. O compasso e a régua medem distâncias e fica possível, em Versalhes, ter raciocínios desta ordem: 242
As geografias míticas ou simbólicas dos primitivos só são assim pelo movimento de quem fala. O que ele diz ao longe sobre um lugar a pessoas que nunca estiveram lá, mas que esperam agir sobre esse lugar, acha-se necessariamente transformado. A informação é perfilada para esta viagem de longo curso ao longo de uma rede que possibilita a um outro (constituído, aliás, por esta viagem) agir à distância. Tudo, absolutamente tudo, fica falso, mítico, extravagante, exagerado, simplista, se a finalidade é construir redes tais que em Génova, Londres, Veneza ou Nova York seja possível influenciar todos os outros pontos do mundo. A diferença entre a geografia dos nativos e a de La Pérouse não é a que vai do falso ao verdadeiro, mas a de uma piroga a um navio de longo curso, ou a de uma estradinha vicinal a uma rodovia. Nada é, por si, falso ou ilógico, mas não são as mesmas pessoas que caminham numa trilha de contrabandista ou que rodam numa auto-estrada.
243
38. CIÊNCIA DO BRICOLEUR E CIÊNCIA DO ENGENHEIRO C. Lévi-Strauss. O pensamento selvagem
Entre nós, subsiste uma forma de atividade que, no plano técnico, permite bastante bem conceber o que, no plano da especulação, pode ser uma ciência que preferimos chamar de "primeira" em vez de primitiva: é aquela comumente designada pelo termo bricolage*. [...] Em nossos dias, o bricoleur é aquele que trabalha com as mãos, usando recursos indiretos se comparados com aqueles do homem da arte. Ora, é próprio do pensamento mítico expressar-se com o auxílio de um repertório cuja composição é heteróclita e que, embora extenso, continua ainda assim limitado; entretanto, é preciso que ele se sirva dele, qualquer que seja a tarefa que se atribua, pois não tem mais nada à mão. Ele aparece assim como uma espécie de bricolage intelectual, o que explica as relações que se observa entre os dois. Como o bricolage no plano técnico, a reflexão mítica pode atingir, no plano intelectual, resultados brilhantes e imprevistos. [...] Nale aprofundar a comparação, pois ela facilita o acesso às relações reais entre os dois tipos de conhecimento científico que distinguimos. O bricoleur está apto a executar um grande número de tarefas diversificadas; porém, diferentemente do engenheiro, ele não subordina nenhuma delas à obtenção de matérias-primas e ferramentas, concebidas e proporcionadas na medida de seu projeto: seu universo instrumental é 56. Plon, 1962, pp. 26 -28. * VerN.T. à p. 156. 244
fechado, e a regra do seu jogo é sempre arranjar-se com os "recursos de bordo"listo é, com um conjunto a cada instante acabado de/ferramentas e materiais, heteróclitos quanto ao mais, porque a composição do conjunto não está em relação com o projeto do momento, nem, aliás, com nenhum projeto particular, mas é o resultado contingente de todas as oportunidades que se apresentaram de renovar ou enriquecer o estoque, ou mante-lo com restos de construções e de destruições anteriores. O conjunto de recursos do bricoleur não é, portanto, definível por um projeto [...]; ele só se define por sua instrumentalidade; em outras palavras, e para usar a própria linguagem do bricoleur, porque os elementos são recolhidos ou conservados em virtude do princípio de que "isto sempre pode servir". Tais elementos são, então, semiparticularizados: o bastante para que o bricoleur não precise do equipamento e do saber de todas as corporações; mas não o suficiente para que cada elemento fique restrito a um uso preciso e determinado. Cada elemento representa um conjunto de relações ao mesmo tempo concretas e virtuais; são operadores, mas utilizáveis com vista a qualquer operação dentro de um tipo. É desse modo que os elementos da reflexão mítica sempre se situam a meio-caminho entre perceptos e conceitos. [...] Ora, existe um intermediário entre a imagem e o conceito: é o signo, pois sempre se pode defini-lo, da maneira inaugurada por Saussure a propósito desta categoria particular que formam os signos linguísticos, como um vínculo entre uma imagem e um conceito, que, na união5 assim realizada, representam respectivamente os papéis de significante e significado. [Como a imagem, o signo é um ser concreto, mas assemelha-se ao conceito por seu poder referencial: 245
ambos não se relacionam exclusivamente entre si, podem substituir outra coisa que não eles. Todavia, o conceito possui, a este respeito, uma capacidade ilimitada, enquanto a do signo é limitada."]
39. O CONTO DE FADAS CIENTIFICISTA P. Feyerabend, Contra o método
Até mesmo ousados pensadores revolucionários curvam-se perante o julgamento da ciência. Kropotkin quer destruir todas as instituições existentes, mas não toca na ciência. Ibsen vai muito longe para desmascarar a condição da humanidade contemporânea — mas conserva a ciência como medida de verdade. ÊvansPritchard, Lévi-Strauss e outros reconheceram que "o pensamento ocidental", longe de ser um ápice solitário do desenvolvimento humano, era perturbado por problemas que não encontramos em outras ideologias — mas excluem a ciência de sua relativização de toda forma de pensamento. Mesmo para eles, (a ciência é uma estrutura neutra, contendo conhecimentos positivos independentes da cultura, da ideologia ou dos preconceitos3J (A razão dessa posição particular perante a ciência é, naturalmente, nosso pequeno conto de fadas: se a ciência encontrou um método que transforma as ideias ideologicamente viciadas em teorias verdadei-
rãs e úteis, então ela não é mais, efetivamerite, em si mesma, uma simples ideologia, mas uma medida objetiva de todas as ideologias. E, por conseguinte, não está mais submetida à obrigação de uma separação entre Estado e ideologia.) (Pois bem, vimos que este conto de fadas é falso. Não existe método particular que possa garantir o sucesso de uma pesquisa ou torná-la provável) Os cientistas resolvem problemas não porque possuem um varinha mágica — a metodologia, ou uma teoria da racionalidade — mas porque estudaram por muito tempo um problema, porque conhecem muito bem seus dados, porque não são completamente idiotas (embora se possa duvidar disso hoje, quando qualquer um pode virar cientista) e porque os excessos de uma escola científica são quase sempre equilibrados pelos excessos de uma outra. (Além disso, só raramente os , cientistas resolvem seus problemas, cometem muitos erros, e inúmeras de sua soluções são perfeitamente inúteis.) Na verdade, quase não há diferença entre o processo que conduz ao anúncio de uma nova lei científica e o processo que precede a passagem de uma nova lei na sociedade: informa-se ou todos os cidadãos, ou todos aqueles que são imediatamente afetados; reúnem-se "fatos" e juízos antecipados, discute-se o caso, e finalmente se vota. Mas enquanto uma democracia faz algum esforço para explicar o processo, para que todos possam compreendê-lo, os cientistas ou escondem-no, ou deformam-no para ajustá-lo a seus próprios interesses sectários. *tfv**°" [Em suma, nenhum cientista admitirá que o voto representa um papel no seu campo. Só os fatos, a lógica e a metodologia decidem — aí está o que nos conta o conto de fadasT]
57. Traduzido para o francês por B. Jurdant e A. Schlumberger, Points, Sea.il, 1988, pp. 340-341.
146
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40 CIENTÍFICA OU MÍTICA, TODA TEORIA TENDE A TOR' FIXA NUM SISTEMA RÍGIDO p Feverabend, Contra o método
Para entender isso, basta considerar o mito da bruxaria e da possessão demoníaca que dominou todo o pensamento social dos séculos XV, XVT e XVII no continente europeu. As ideias de base desse mito foram introduzidas por teólogos que queriam dar uma explicação unificada a fenómenos estranhos e bastante assustadores, e fornecer com isso um guia para a ação ante esses fenómenos. Algumas das ideias de base estavam em acordo com os preconceitos comuns e foram aceitas por largos segmentos da população. No momento em que a mania dos feitiços chegou ao auge, o mito tornara-se um sistema complexo de explicações flanqueado por inúmeras hipóteses auxiliares destinadas a descobrir casos particulares. Ele atingiu facilmente uma alto grau de confirmação. Fora ensinado durante muito tempo; seu conteúdo era imposto pelo medo, pelos preconceitos, pela ignorância, assim como por um clero invejoso e cruel. Suas ideias penetravam a linguagem mais comum, contaminando todos os modos de pensamento e inúmeras decisões importantíssimas para a vida humana. Ele fornecia modelos que explicavam qualquer acontecimento concebível — concebível, quero dizer, para quem o havia aceito. [...] Também os resultados de observação pregavam a favor do mito, pois eram formulados nos termos dele, sem outra formulação possível no horizonte. Parecia que a verdade finalmente fora encontrada! Ao mesmo 58. Traduzido para o francês por B. Jurdant e A. Schlumberger, Points, du Seuil, 1988, pp. 44 a 46. 248
tempo, é evidente que todo contato com o « perdido e que a estabilidade assim conquistai»^ simulacro de uma verdade absoluta manifestando simultaneamente no pensamento e na percepçã °~~e era senão o resultado de um conformismo absol t Pois como poderíamos testar, aperfeiçoar os princípios fundamentais de uma teoria que é construída de tal sorte que todo acontecimento concebível pode ser descrito em seus termos e toda dificuldade pode ser explicada a partir de seus princípios? A única maneira de sondar tal teoria seria compará-la com outra, também genérica — mas um procedimento assim estava excluído desde o início. (Ç) mito não tem então nenhuma pertinência objetiva; ele continua a existir somente através do esforço da comunidade dos fiéis( e de seus guias, sejam eles padres ou prémios Nobel.
41. UNIVERSALIDADE OU RELATIVIDADE DA RACIONALIDADE CIENTÍFICA 59 A. Caillé, Por um universalismore^ttvista
A sociedade mundial [...] está, evidentemente, em gestação nos fatos, mas esta gestação opera-se numa quase total ininteligibilidade, tanto ética quanto política ou teórica. A questão-chave, raramente abordada de frente, e que levanta imediatamente o problema dos estatutos respectivos do racionalismo e do relativismo, é saber se, e em que medida, a mundialização é e deve ser sinónimo de ocidentalização, isto é, de conversão maciça e definitiva do conjunto das 59. Revue du MAUSS, r? l, La Découverte, 1988, pp. 123-124.
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culturas às normas centrais originadas da tradição europeia. Outras questões, temíveis, articulam-se a esta. Se a mundialização implica a ocidentalização, como a evolução real pode levar a pensar, que grau de violência implica a universalização dos valores ocidentais? Ou, inversamente, com que grau de espontaneidade esses valores serão aceitos? Isto equivale a diminuir o grau de naturalidade e racionalidade do problema. Se, na verdade, o Ocidente encarna, grosso modo, a naturalidade e a racionalidade, então a ocidentalização deve poder efetuar-se sem cataclisma maior. Se não for esse o caso, a mundialização corre o grande risco de revelar-se apocalíptica, a menos que se chegue a pensar formas culturais e políticas que transcendam a versão europeia do universalismo. Dimensiona-se melhor, assim, o debate que opõe racionalistas e relativistas.(Relativistas: aqueles que colocam que cada tipo de cultura é irredutível ao outro e que não existe entre eles nada de suficientemente comum, nenhuma dimensão de universalidade, a partir da qual se possa pô-los em perspectiva. Desse ponto de vista relativista, a mundialização e, a fortiori, a ocidentalização, implicam necessariamente a violência, e nada além da violência. Os racionalistas, ao contrário, pensam que existe, para além da diversidade das culturas, um núcleo que é comum a elas e que a civilização europeia representa o desenvolvimento das virtualidades contidas nesse núcleo. Para eles, a ocidentalização do mundo não só é necessária ou inelutável, mas também desejável. Ela constitui, na verdade, o correlato obrigatório de um processo de emancipação da espécie humana, emancipação da necessidade material graças ao Estado democrático, emancipação da ignorância e do obscurantismo religioso graças à ciência. 250
42. EXTENSÃO MUNDIAL DA CIÊNCIA OCIDENTAL W. Heisenberg, Física e filosofia
(É sob esse aspecto que a ciência moderna está penetrando nas outras partes do mundo onde as tradições culturais eram inteiramente diferentes das da civilização europeia. O choque que causa esta nova atividade experimental e técnica deve se fazer sentir, nessas regiões, ainda mais profundamente que na Europa, pois as mudanças nas condições de vida que levaram dois ou três séculos para se realizarem na Europa se produzirão ali em algumas décadas. É preciso saber que em muitos lugares esta nova atividade aparece forçosamente como um declínio da antiga cultura, como uma atitude impiedosa e bárbara que transtorna o delicado equilíbrio sobre o qual repousa á felicidade humana. Tais repercussões são inevitáveis e devem ser aceitas como um aspecto da nossa época. Porém, mais uma vez, a abertura de mente da física moderna pode ajudar, até certo ponto, a conciliar as antigas tradições e as novas correntes de pensamento. Por exemplo, a grande contribuição do Japão à teoria quântica a partir da última guerra pode ser indício de um certo parentesco entre as ideias filosóficas tradicionais do Extremo Oriente e o conteúdo filosófico da teoria quântica. É possível que seja mais fácil adaptar-se ao conceito quântico da realidade quando não se passou pelo modo de pensamento de um materialismo ingénuo que ainda remava na Europa nas primeiras décadas de nosso século.
60. Traduzido para o francês por J. Hadamard, Ed. Albin Michel, 1971, pp. 271-272. 251
43. TAOÍSMO E FÍSICA MODERNA F. Capra, O Tão da física 61
As filosofias religiosas orientais tratam do conhecimento místico eterno que ultrapassa o raciocínio e do qual não conseguimos fornecer uma expressão verbal adequada. O parentesco desse conhecimento com a física moderna é apenas um de seus diversos aspectos e, como todos os outros, não pode ser demonstrado de maneira conclusiva, mas deve ser experimentado de forma intuitiva, direta, imediata. O que espero haver realizado, até certo ponto, não é, portanto, uma demonstração rigorosa, mas sim ter dado ao leitor uma oportunidade de ir ao encontro, por momentos, de uma experiência que se tornou, para mim, uma contínua fonte de alegria e inspiração: as teorias e os modelos principais da física moderna conduzem a uma visão de mundo coerente e em perfeita harmonia com as concepções da espiritualidade oriental.
verbais quanto não-verbais, pondo em relevo diversos aspectos. Todas elas são válidas e úteis no contexto onde aparecem. Todas, entretanto, não passam de descrições, ou representações, da realidade, e são, por conseguinte, limitadas. Nenhuma poderia dar uma imagem do mundo.
Para quem fez a experiência dessa harmonia, a importância dos paralelos traçados entre as concepções de mundo dos físicos e dos místicos não deixa dúvida. A questão interessante não é, portanto, saber se esses paralelos existem, mas porquê, e , além disso, o que implica sua existência.
A concepção mécanicista de mundo da física clássica é útil à descrição dos fenómenos físicos que encontramos em nossa vida diária e, portanto, próprio para tratar de nosso ambiente cotidiano, e uma concepção assim revelou-se também extremamente operante como base da tecnologia. Ela comprova ser, contudo, incapaz de dar conta dos fenómenos físicos no campo infra-atômico. O que se opõe à concepção mécanicista de mundo é a visão espiritual que pode ser resumida pela palavra "orgânica", já que ela considera todos os fenómenos do universo como partes integrantes de um todo harmónico e indissociável. Nas tradições místicas, uma visão de mundo assim nasce dos estados meditativos da consciência. Em sua descrição do mundo, os místicos empregam conceitos tirados dessas experiências incomuns e que são, em geral, impróprias a uma descrição científica dos fenómenos macroscópicos. A visão orgânica de mundo não oferece interesse algum para a construção de máquinas, nem para a resolução de problemas técnicos num mundo superpovoado.
Para tentar entender o mistério da vida, o homem seguiu diferentes vias. Dentre elas, encontramse as vias científicas e espirituais, mas há muitas outras; as vias dos poetas, das crianças, dos clowns, dos xamãs, para citar apenas algumas. Estas vias foram dar em diversas descrições do mundo, tanto
[...] Além das dimensões de nosso ambiente cotidiano, todavia, os conceitos mecanicistas perdem a validade e devem ser substituídos por conceitos orgânicos muito próximos daqueles utilizados pelos místicos. Assim é a experiência essencial da física moderna/) da qual se tratou aqui.
61. Tchou, 1979, pp. 307 a 309.
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44. COMO SABER TÉCNICO, A CIÊNCIA É ÚNICA E UNIVERSAL
J. Habermas, A técnica e a ciência como "ideologia »62
Marcuse pensa na alternativa de uma outra atitude diante da natureza,63 mas não é possível extrair daí a ciência de uma nova Técnica, fem vez de tratar a natureza como um objeto do qual e-possível dispor tecnicamente, pode-se ir ao encontro dela como ao encontro de um parceiro numa interação possível]. Pode-se buscar a natureza fraternal em vez da natureza explorada. No nível de uma intersubjetividade ainda incompleta, podemos emprestar aos animais e às plantas, até mesmo às pedras, uma certa subjetividade e comunicarmo-nos com a natureza em vez de apenas trabalhá-la sem a menor comunicação. E a ideia de que há na natureza uma subjetividade ainda cativa que não poderá ser libertada antes que a comunicação dos homens entre eles esteja livre de toda e qualquer dominação — esta ideia conservou uma atração totalmente particular, para não dizer mais. Somente se os homens se comunicassem sem constrangimento e se cada um pudesse se reconhecer no outro é que a espécie humana talvez pudesse reconhecer na natureza um outro sujeito — e não, como queria o idealismo, reconhecer esta natureza como seu Outro, mas reconhecer-se a si mesma como o Outro deste sujeito. Seja como for, uma Natureza que sai assim do seu sono não poderia substituir as realizações dá técnica que são indispensáveis no seu género. A alternativa proposta à técnica existente, isto é, o projeto da 62. Gallimard, 1975, pp. 15-16. 63. Cf. texto 19.
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natureza como parceira e não mais como objeto, remete à alternativa de uma outra estrutura de ação: remete à interação mediatizada por símbolos, por oposição à atividade racional em relação a um fim. Porém isto quer dizer que esses dois projetos são projeções do trabalho e da linguagem, dos projetos da espécie humana em sua totalidade e não de uma época particular, de uma classe determinada, de uma situação passível de ser superada. Não mais que a ideia de uma (Nova Técnica, a de uma Nova Ciência não resiste a uma análise consequente, desde que se entenda aqui por ciência a ciência moderna, ligada à invenção de dispositivos que permitem certas manifestações técnicas; para esta função que é a sua/dela, como para o progresso científico e técnico em geral, também não há substituto que seja mais "humano"^
45. PELA COMUNICAÇÃO E PELA INTERCOMPREENSÃO... J. Habermas, Teoria da ação comunicativa
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[J. Habermas parte da constatação de que todo ato de linguagem põe em jogo ao mesmo tempo uma declaração sobre o mundo objetivo, a busca de uma comunicação e de um acordo com aqueles a quem nos dirigimos, a expressão de um estado interior ou de uma experiência pessoal. Assim, o enunciado linguístico refere-se a três mundos (o mundo objetivo, o mundo social e o mundo subjetivo) e corresponde a três critérios de validade: a validade objetiva do conteúdo, a 64. Traduzido para o francês por J.-M. Ferry e J.-L. Schlegel, Ed. A. Fayard, 1987, T.I, p. 115.
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o enunciado efetuado é verdadeiro (ou ainda, que estão efetivamente preenchidos os pressupostos de existência de um conteúdo simplesmente evocado numa proposição);
conformidade da forma às normas lógicas e intersubjetivas, a autenticidade ou veracidade da intenção.] Os locutores integram num sistema os três conceitos formais de mundo [...] e pressupõem este sistema como um quadro de interpretação comum no interior do qual eles podem chegar a um entendimento.ÍNão é mais de maneira não refletida que eles se referem a algo no mundo; eles relativizam mais suas expressões com relação à possibilidade de sua validade ser contestada por outros atoresjComo mecanismo que coordena a ação, a intercompreensão supõe que os beneficiários da interação concordem sobre a validade de suas expressões, isto é, reconheçam intersubjetivamente as pretensões à validade que eles objetam reciprocamente. Reportando-se por sua expressão a pelo menos um "mundo", um locutor faz valer uma pretensão criticável. Ao mesmo tempo, a fim de conduzir seu confronto a uma tomada de posição racionalmente fundamentada, ele usa o fato de que a relação entre ator e mundo é fundamentalmente acessível a uma apreciação objetiva.fo conceito de atividade comunicativa pressupõe a linguagem como meio para processos de intercompreensão de uma certa natureza, processos durante os quais os beneficiários objetam um perante o outro, reportando-se a um mundo, pretensões à validade que podem ser aceitas ou contestadas^ Esse modelo pressupõe que os beneficiários da interação mobilizem, expressamente para o fim do entendimento para o qual eles cooperam, o potencial de racionalidade que [...] se investe nas três relações com o mundo. Se pusermos de lado o aspecto da boa formação da expressão simbólica utilizada, um ator que busque a intercompreensão nesse sentido é obrigado a objetar implicitamente, ao expressar algo, exatamente três pretensões à validade, ou seja, a pretensão de que: 256
a ação linguística é exata em relação a um contexto normativo em vigor (ou ainda, que o contexto normativo ao qual ela deve responder é, em si, legítimo); • a intenção manifesta pelo locutor é pensada por ele do mesmo modo que ele a expressa.
46.
... RUMO A UNIVERSALIDADE J. Habermas, Teoria da ação comunicativa65
[Este modelo formal pode ser aplicado aos "padrões~de racionalidade"constituídos nas diferentes culturas e às obras culturais cuja produção eles determinam. Uma racionalidade universal só pode ter origem através da dinâmica de uma tal intercompreensão.] j Consideremos a estrutura racional interna dos processos de intercompreensão: caracterizamos esta estrutura conforme a) as três relações com o mundo instauradas pelos atores, e os conceitos correspondentes de mundo objetivo, mundo social e mundo subjetivo; b) as pretensões à validade especificadas como verdade propositiva, exatidão normativa, veracidade ou, ainda, autenticidade; c) o conceito, em primeiro lugar, racionalmente motivado, em outras palavras, o 65. Traduzido para o francês por J. M. Ferry e J.-L. Schlegel, Ed. A. Fayard, 1987, T. I, pp. 115,153-154.
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conceito de um acordo baseado no reconhecimento de pretensões criticáveis à validade; e d) o conceito de intercompreensão,, entendida como negociação cooperativa que visa definições comuns de situações. Se a exigência de objetividade deve ser satisfeita, deve-se poder mostrar em que sentido determinado essa estrutura racional interna tem valor universal. Há aí uma exigência fortíssima para alguém que opere sem estar coberto pela metafísica e que não espere que se possa realizar um programa transcendental-pragmático66 rigoroso, adiantando pretensões a uma fundação última. É claro que o tipo de ação cuja estrutura interna esboçamos provisoriamente, o agir orientado para a intercompreensão, não deve em absoluto ser considerado o caso normal que encontraríamos sempre e em toda parte na prática diária da comunicação. Eu mesmo indiquei as contradições entre a compreensão mítica e a compreensão moderna de mundo, os contrastes típicos que podemos reconhecer entre as orientações da ação nas sociedades modernas. Se quisermos, com mil reservas, pretender a validade universal para nosso conceito de racionalidade e não aderir assim a uma crença perfeitamente insustentável no progresso, o ónus da prova a assumir é considerável. Seu peso fica totalmente evidenciado se passarmos dos contrastes abruptos e hipersimplistas que sugerem uma superioridade do pensamento moderno às oposições menos nítidas que desvenda a comparação intercultural entre os modos de pensamento das diferentes religiões e civilizações universais.
BIBLIOGRAFIA
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66. Programa que, à maneira de Kant, pretendia deduzir a priori as condições e limites de exercício da razão dentro da ordem da ação. N.B.: O grifo é de J. Habermas.
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