Antonio Crístian Saraiva Paiva
Su j e i t o
e
L a c M o So c i a l A produção de subjetividad e na arqueogeneafogia de Mie he i Fo u ca u lt
Coleção O ut r o s D iá l o g o s Gt
íRN O DO
ESTADO DO CEARa
SECRETARIA DA CULTUHA E DESPORTO
RELUME
DUMARA
R i o d e J a n e i r o 2000
© Copyright 2000, Antonio Crístian Saraiva Paiva Direitos cedidos para esta edição à D
u m a r á
D
is t r ib u i d o r a
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P
u b l ic a ç õ e s
L
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www.relumedumara.com.br Travessa Juraci, 37 - Penha Circular 21020-220 - Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 564 6869 Fax: (21) 590 0135 E-mail:
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Coleção O u t r o s D iá l o g o s
Coordenação Daniel Lins
Revisão Àrgemiro de Figueiredo Editoração Dilmo Milheiros Capa Simone Villas Boas
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
P 166s
Paiva, Antonio Crístian Saraiva Sujeito e laço social: a produção de subjetividade na arqueoge nealogia de Michel Foucault/Anton io Crístian Saraiva Paiva. - Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria de Cultura e Desporto do Estado, 2000 (Coleção Outros diálogos; 4) Inclui bibliografia ISBN 85-7316-237-6 L Subjetividade. 2. Foucault, Michel, 1926-1984. 3. Sujeito (Psico logia). 4. Poder (Ciências sociais). I. Ceará. Secretaria de Cultura e D esp or to. II. Título. III. Série.
00-1381
CDD 306 CDU 316.728
Todo^os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da Lei n° 5.988.
DEDICATÓRIA: Este trabalho está dedicado aos meus pais, a origem deste meu buscar; Ao prof. Daniel Lins, pelo cuidado, respeito e amizade ao longo desta trajetória nem sempre fácil; A todos cuja presença dissimula-se neste moinho de palavras e afetos, especialmente Curtes e Iracema.
Quanto ao motivo que me impulsionou foi muito simples. (...) é a curiosidade - em todo caso, a única espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição de conhecimentos, e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pod e pensa r diferentem ente do que se pensa, e perc eb er diferente mente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir. M. Foucault, 1988, p. 13 O trabalho intelectual de Fo ucault não se presta a uma “história ” dos historiadores, ele é um trabalho político. Ele nos obriga ao nosso melhor isto é, à nossa paixão (...), a paixão que sustenta e caracteriza o posicionam ento de fun do a respeito da vida. C. H. Escobar, 1984, p. 7 (...) a pessoa é a obra que eu fa ço de mim mesmo, concluída e defi nida e a cada instante, e do outro, é a obra de desenvolvimento, aberta e exigindo sempre novos atos e novos desenvolvimentos. L. Pareyson, 1993, p. 176 Por que durar é melhor que inflamar? R. Barthes, 1991, p. 17
Para que olhar para os crepúsculos se tenho em mim milhares de crepúsculos diversos - alguns dos quais o não são - e se, além de os olhar dentro de mim eu próprio os sou por dentro? F. Pessoa, 1994, p. 168
SUMÁRIO
A B R E V IA T U R A S................................................................................................................... 13 P R E F Á C IO .. ........................................................................................................................... 15 APRESENTAÇÃO .......... ................................ ....................................................................17 . .
. .
C a pí t u l o 1
NOVOS CENÁRIOS SOCIAIS, NOVA CENA SUBJETIVA .................................. 23 Aproximações sobre a temática da produção de subjetividade..................... ....... 23 ..
In c i d ê n c i a s d a s u b j e t i v id a d e n a s c i ê n c i a s s o c i a i s .................................................. .
Novos Pa r a
c e n á r i o s, n o v a s experiências de s u je it o
..
..24
.......................................................... 25
a l é m d a s u b j e t i v i d a d e - r e d e f i n i ç õ e s ..................................................................35
A subjetividade como g overn o - M . Fo uca ult e a problematização da su b jetiv id a d e...................................................................................................................... 40
C a pít
ul o
2
EN TR AD AS PARA A OB RA DE FO U C AU LT............................................................ 49 A pro du ção de su bjetivid ad e nas leitur as de F o u ca u lt ............................................. 49
A escavação de nosso solo - o u o trabalho crítico do pensamento em
F o u c a u l t .............................................................................................................................. 50
Not a
s o br e o s t e x t o s
L e it u r a s
d e F o uc a u l t
............................................................................................................ 53 -
c o n t inu id a d e o u r u pt ur a ?
..................................................53
Fou ca ult dilacerad o - a leitura d e J. H ab er m as............................................... 9
..
. 54
A
n t o n io
C r Is t i a n S a r a i v a P a i v a
O percurso foucauldiano com o exercício de generosidade a leitura de G. D e le u z e ................................................................................................... 59 Foucault leitor de si próprio...................................................................... ...................65 C a pí t
ul o
3
TRILHAS FOUCAULDIANAS DA PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE ANÁLISE DA H IS TÓ RIA DA S E X U A L ID A D E ..............................................................73 U m a h is t ó r ia d a s u b j e t i v i d a d e e n q u a n t o a r q ue o g e n e a l o g ia d o HOMEM DE DESEJO...................................................................................................................... 73 A rq ue olo gia , ge ne al og ia , a rq u eo ge n ea lo gi a..........................................................73 Parên tes e n ie tzs c h e a n o .................................................................................................. 74 A produção de subjetividade na H is tó ria da s e x u a li d a d e ................................ 77 Um
recuo necessário
(V i c i a r e
p u n ir )
: em
b u s c a d o s e l e me n t o s d a m i c r o f í s i c a d o p o d e r
.........................................................................................................................7 8
Adm inistrar a vida, os corpos, os prazeres
(A
v o n t a d e d e s a b e r ) .......................83
H ip ót es e repress iva: a sex ua lida de em p e r ig o ? ....................................................8 4 O jo g o do d iz e r ................................................................................................................. 85
87 O mapa da a lm a .............................................................................................. ...............89 O se xo sem a le i, o poder sem o r e i.......................................................................... 92 Elementos do diagrama - por uma nova concepção do so c ia l ................92
E co no m ia po líti ca de uma von tad e de s a b e r ..............................................
. .
. .
P re cisõe s sobre o p o d e r .......................................................................................... 93 Regras para a pesquisa sobre o sexo e os discursos de verdade que d ele se o c u p a m ......................... ................................................................................ 100 Formação do dispositivo de sexualidade...............................................................110 So br e o d is p o s it iv o ................................................................................... ...............110 A p olítica/p olíci a do s e x o ..................................................................................... 112 O age nciam en to p olítico da v id a .............................................................................. 117 Para além da su jeiçã o à mon arquia d o s e x o ? ....................................................... 121
O r e c u o à a n t ig u id a d e : o ut r a e c o no mi a d e c o r po s e pr a z e r e s ? (O uso
d o s p r a z e r e s )
............................................................................................................. 122
U m a nov a histór ia da subje tivid ade ? - R e d e fi n iç õ e s .......................................122 Suj eito , po de r e lib er d a d e.....................................................................................124 Rumo a uma história tecnológica da subjetividade....................................128 De volta a O u s o d o s p r a z e r e s - a montagem do tríptico de Fo uc au l t . . . . 131 A ética com o problematização da relação cons igo (rapport à soi ) .............135
10
Sujeito e l a ç o social
A fórm ula greg a da é t ic a ..............................................................................................138 M onta nd o o pain el d os p razeres - a quad ritemática de F o u c a u lt................141 D ie té tic a .......................................................................................................................142 E c o n ô m i c a .......... ..................................................................................................... 14 3 . .
E r ó tic a ...........................................................................................................................144 A sc ét ic a (A fi lo so fi a na t em átic a da E ró ti ca )................................................147 Crise do sujeito e falência do mundo ( O
c u id a d o d e s i )
........................................ 150
D o e u p r o f u n d o ao eu histórico: A c ha ve d os s o n h o s .......................................151 Outros polígon os de subjetivação e solidariedade - as transformações do m un do h e le n ístic o ....................................................................................................156 U m a n ova arte de vi ver (techn é tou biou) - caracterização da cu ltura de s i .................................................................................................................. 160 O eu e os ou tros - n ovos la ç o s .................................................................................. 165 D o oikos à e s p o s a .................................................................... ..............................165 .. ..
..
A nova v id a pública p riv a d a ................................................................................166 Novas práticas dos prazeres . .................................................................................... 169 .
D ie t é t ic a .......................................................................................................................1 70 D a E con ôm ic a à E r ó tic a ........................................................................................ 171 E r ó tic a .......................................................................................................................... 172 D o cuid ado de si à pastoral da ca r n e ? .....................................................................173
N o t a s o br e a pa st o r a l c r is t ã d a c a r n e ....................................................................... 175 Sob re o po der p a sto r a l.................................................................................................. 176 Verdade e subjetividade . t ...........................................................................................177 T ecnolo gia cristã da a lm a ............................................................................................179 A fórmula cristã da ética ..............................
...............................................................181
C O N C L U SÃ O ......................................................................................................................... 205 BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................................223
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ABREVIATURAS
Para evitar excessiva repetição nas citações, alguns textos de Foucault são citados sob as seguintes abreviaturas: AS - Arqueologia do saber C S - O cuidado de si (História da sexualidade III) E S - A escrita de si (O que é um autor?) ESS - L ’éthique du souci de soi comme pratique de la liberté (Dits et écrits IV) GE - Sobre a genealogia da ética (Dossier) GP - Genealogia e poder (Microfísica do poder) GV - Du gouvernement des vivants (Dits et écrits IV) HS - História da sexualidade HSuj - L'Herméneutique du sujet (Dits et écrits IV) IFDS - Ilfaut défendre da societé (Résumé des cours) INC - Isto não é um cachimbo NGH - Nietzsche, a genealogia e a história (Microfísica do poder) NSR - Não ao sexo-rei (Microfísica do poder) OD - A ordem do discurso PR - Eu, Pierre Rivière... RM - O retorno da moral (Dossier) SHS - Sobre a História da sexualidade (Microfísica do poder) SP - O sujeito e o poder SPP - Sexe, pouvoir et ta politique de l’identité (Dits et écrits IV) S V - Subjectivité et verité (Résumé des cours) TS - Les techniques de soi (Dits et écrits IV) UP - O uso dos prazeres (História da sexualidade II) VHI - A vida dos homens infames (O que é um autor?) VeP - Verdade e poder (Microfísica do poder) VP - Vigiar e punir V S - A vontade de saber (A história da sexualidade) VSubj - Verdade e subjetividade
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PREFÁCIO
Marco Antonio Couíinho Jorge*
densidade do trabalho de Antonio Crístian Saraiva Paiva sobre Michel Foucault faz jus à complexidade inerente a esta obra ou, em seus próprios termos, à “radicalidade da escolha teórico-política de Foucault”. Escrito no contexto acadêm ico da sociologia, trata-se de um texto que revela não só invejável fôlego de pesquisa como também grande rigor conceituai. Além disso, sua escrita de teor particularmente poético consegue aos poucos envolver o leitor para adentrálo num universo teórico que trata da questão do sujeito de modo novo e antenado com questões e problemas contemporâneos. Afirmando de saída que a elaboração da questão da subjetividade é algo bastante caro à sociologia, o autor faz um percurso pelas obras de A. Giddens, U. Beck, S. Lash e M. Maffesoli. Mas ele deixa entrever, em algumas passagens e em abordagens pontuais do trabalho de J. Rajchman - que tematiza a ética numa referência simultânea a Lacan e a Foucault -, que sua perspectiva tem como ponto de ancoramento um lugar aparentemente excêntrico ao universo teórico em questão, o da psicanálise freudiana tal como retomada e renovada por Jacques Lacan. E talvez seja por isso que a História da sexu alidade é aqui eleita como sendo a obra de Foucault que mais permite refletir sobre a questão do sujeito. Antonio Crístian percorre as diferentes leituras de Foucault feitas por J. Habermas e G. Deleuze para evidenciar que não há uma ruptura entre os textos foucaultianos anteriores e estes aqui privilegiados. Mais essencialmente, o autor interroga se a história da sexualidade não seria, no fundo, a história da subjetividade, uma vez que ela se apresenta construída em torno da confissão do sujeito sobre a verdade * Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Prof. do Mestrado em Pesquisa e Clínica Psicanalítica-UERJ. Psicanalista, Membro do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro.
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A n t o n i o C r Is t i a n S a r a i v a P a i v a
inerente à sexualidade. Vê-se que um diálogo entre Foucault e a psicanálise está necessariamente subentendido aqui. Lembremo-nos a esse propósito da entrevista que Foucault deu para um gru po de psicanalistas de orientação lacaniana, na qual ele afirma que o título inicial de sua obra era Sexo e verdade , uma vez que tratava-se para ele de sab er o que se passou no Ocidente para que a questão da verdade fosse colocada a propósito do prazer sexual, isto é, em termos de discurso científico. Está claro que o em bate maior da discussão se deu ali precisamente em torno da aproximação da idéia da confissão na direção de consciência cristã com a prática da psicanálise. No horizonte de Foucault e de sua tentativa de que “um dia cheg uem os a nos ded icar à subjetividade c om a sensibilidade e a audácia do artista, d esfazendonos do que já som os e ousando novos m odos de existência ” (Crístian), vemos um
crucial ponto de convergência com a experiência psicanalítica tal como concebi da por Lacan, para a qual o sujeito pode e deve fazer valer sua capacidade de criação de sentido. Se enquanto tal o sujeito não tem nenhum sentido e dele está, por definição, desperto, isso decorre precisam ente do fato de que é do sujeito, e apenas dele, que o sentido pode emanar. Experiência psicanalítica e ato poético se confundem aqui, assim como toda outra investigação que queira tratar do su je ito em sua relação com a verdade.
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APRESENTAÇÃO M
Suspende-se o silêncio: o arriscado momento da palavra inicial. Melhor intro duzir aquilo que é tratado aqui mediante a formulação de uma pergunta e de uma aposta. A indagação: quais são os nossos modos contemporâneos de subjetivação, de relacionamento com os outros e conosco mesmos? A aposta: o textoFoucault teria algo a dizer a este respeito. Com isso, estamos já na cela central deste labirinto de discurso - é precisa mente esse interesse nos modos atuais da compreensão da produção de subjetivi dade, da administração da individualidade, da gestão do íntimo que percorre o arco das discussões efetivadas neste livro. Questão ampla demais, quase oceâni ca. Obviamente se verá que não abordamos diretamente essa questão: o lugar dela é tão-só de pólo magnetizado r do estudo efetivado - este, mais simples, ou melhor, mais recortado, mais específico - sobre a problemática da produção de subjetividade na obra de Michel Foucault. Assim sendo, este texto reconstitui o traço característico, o estilo do pensa mento crítico de Foucault sob o ângulo dos modos de subjetivação an alisados por ele. Obra gigantesca, a de Foucault, que nos obrigou a um recorte ainda mais específico: tomar os textos da História da sexu alidade a partir do interesse da produção de subjetividade. Produção, destacamos, pois é partindo de uma histó ria tecnológica dos modos de compreensão e de experiência do eu que Foucault nos informa sobre o sujeito. Por que os textos da História da se xualid ade? Estes textos informariam uma ruptura, facultariam o acesso a um Foucault mais verdadeiro que um outro ante rior, um Foucault mais elaborado etc? A visada tomada por nós de modo algum aponta para essa leitura compartimentalizada do pensamento foucauldiano. Ao contrário: tentamos justificar que a História da sexu alidade consegue reunir, na tematização da subjetividade, os avanços analítico-conceituais (que se foram ela borando ao longo do percurso de Foucault) nu ma pesquisa que movim enta esses
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A n t o n i o C r Is t i a n S a r a i v a P a i v a
instrumentais numa articulação complexa, às vezes nebulosa, mas sempre formi dável, como convite a pensar, a trabalhar. Assim, segundo nossa leitura, esta História da sexualidade revela-se uma história tecnológica da subjetividade, que foi aqui reconstituída, e mais, esperamos, revivida, recriada, reinventada a partir de nossos interesses e interrogações. Uma leitura-trabalho ( poiesis), porque, junto com Pareyson, dizemos que “ler significa executar”, que esta “execução do leitor retoma a mesma execução do artista”.1
A abordagem dos textos: um pouco de leitura O leitor é produtor de jardins (...) Robinson de uma ilha a descobrir mas “possuído” também por seu próprio carnaval que introduz o múltiplo e a diferença no sistema escrito de uma sociedade e de um texto. Quem lê com efeito? Sou eu ou o quê de mim? “Não sou eu como uma verdade, mas eu como a incerteza do eu”... ...os leitores são viajantes; circulam nas terras alheias, nômades caçando por conta própria através dos campos que não escreveram, arrebatando os bens do Egito para usufruí-los. M. de Certeau, p. 269s Ler (...) é saber que o sentido pode ser outro. E. Orlandi, p. 138 Como se trata aqui de uma pesquisa eminentemente teórica, a metodologia empregada baseou-se, no fundamental, na leitura dos textos. Leitura como gesto, como obra, como prática.2 Leitura-comentário dos textos? Absolutamente, nos entregamos a um jogo de afrontamento com os textos, entrecruzando percursos, avançando sobre eles segundo as linhas-mestras do nosso interesse::, diálogocriação, produção e incrição de vestígios e de transações nesta atividade-leitora. Não foi ambição nossa esgotar tudo o que Foucault poderia ter dito (discurso de completude) nesses textos sobre a produção da subjetividade: esta pesquisa não tem as chaves do cofre-forte do sentido .4 O horizonte não foi, igualmente, o da ortodoxia da literalidade, que sempre escon de sob as mangas a ambição terro rista, para usar a expressão de Lyotard.5 Portanto, nem o mito da leitura literal, nem o conteudismo nem o totalitarismo nesta prática (de) leitura. A abordagem do texto comporta sempre um grau de reversibilidade, de oscilação, dc polê mic a: “ler é polemizar” no espaço dos possíveis, sabendo que sentido “pode ser outro”. Seguimos o modelo proposto por Deleuze/Guattari das multiplicidades, de uma abordagem rizomática dos textos,6 uma leitura acolhedora de acoplamentos
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Sujeito
e laço
social
e diálogo com outros textos, “pondo-se à escuta de toda palavra de onde q uer que ela venha”.7 Leitura multidimensional: abordagem crítico-interpretativa, intertextual, dialógica. Isto quer dizer reconstituir o pensam ento de Foucault no conjunto dos textos no entorno da História da sexualidade, mas não simplesmente repeti-lo, comentálo, mas utilizá-lo como ferram enta para agitarmos nossas próprias questões, nos sos fragmen tos, nosso carnaval na superfície do texto de Foucault, estabelecendo-se um movimento de torsão, de entrelaçamentos na leitura. Uma montagem cartográfica, antes que um mapa definitivo: “(...) a cartografia - diferentemen te do mapa, representação de um todo estático - é um desenho que acompa nha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem”.8
A montagem cartográfica do texto Está organizado o material da seguinte forma:
Capítulo 1: Novos cenários sociais, nova cena subjetiva. Trata-se de uma aproximação do terreno da subjetividade a partir de anotações sobre sua incidên cia no âm bito das ciências sociais, de um diálogo com alguns autores que tentam apreender a natureza das transformações da cena subjetiva contemporânea e da abertura da proposta de trabalhar com Foucault a temática dos modos de subjetivação como instrumento de precisão e de orientação na rediscussão da experiência do eu no momento atual; Capítulo 2: Entradas para a obra de Foucault. Aí se definem os textos trabalhados na pesquisa, tentando justificá-los no conjunto do pensamento de Foucau lt. Assim, sustenta-se que a questão da subjetividade esteve sem pre pre sente nos fundamentos do seu percurso teórico. Contra leituras compartimentalizadas de Foucault, buscamos explicitar a importância daquela problemática no conjunto da sua ontologia histórica do presente; Capítulo 3: Trilhas foucauldianas da produção de subjetividade - An á lise da História da se xua lida de. E sta é a parte central da pesquisa. Rastream os a montagem arqueológico-genealógica como instrumento metodólogico para abor dar a história da subjetividade, dos seus modos de produção sob o enfoque parti cular da arqueogenealogia do homem de desejo. Permitimo-nos um recuo a Vi giar e punir, reunindo os elementos importantes para a tematização das relações de poder e de seu entrelaçamento com os arquivos de saber e as tecnologias de produç ão da alma/do indivíduo moderno. Com os três volumes da História da sexualidade - A vontade de saber, O uso dos prazeres e O cuidado de si, focali 19
A n t o n i o C r Is t i a n S a r a i v a P a i v a
zamos, a partir do tríptico foucauldiano (saber-poder-si), as formas em que foi articulada a experiência de subjetivação nos contextos históricos analisados por Foucault (modos de subjetivação segundo as experiências grega, helenística, cristã e moderna); Conclusão. Ensaia fornecer um panorama, um painel cartográfico da abor dagem de Foucault sobre a produção de subjetividade, recusando respostas defi nitivas ou completas. Conclusão que sempre é um momento difícil, pois quase sempre tem-se a impressão de que muito mais questões ficaram por responder do que aquelas que foram mais ou menos respondidas... Sustenta-se, ainda que silenciosamente, a pretensão de que esta investigação prolongue o gesto, a tentativa de Foucault de que um dia cheguem os a nos dedi car à nossa subjetividade com a sensibilidade e a audácia do artista, desfazendonos do que já somos e ousando novos m odos de existência. O trabalho de Foucault é este convite, e apostamos nesta generosidade, reclamando, para o material que segue, “uma hospitalidade receptiva, uma amizade”, a philia que Foucault solici tava na leitura de seus textos.9 Este livro é uma versão da Dissertação de Mestrado apresentada no Progra ma de Pós-G raduação em Sociologia da UFC. Gostaria, pois, para finalizar, agra decer a todos que contribuíram para a elaboração deste trabalho. À CAPES, pela bolsa de estudos recebida, e ao nosso orientador, prof. Daniel Lins. Agradeço especialmente às profas. Sylvia Porto Alegre, cujas disciplinas foram fundamen tais para mim, de onde aproveitei tudo na elaboração deste trabalho, à profa. Júlia Miranda, que me apresentou todo um universo de possibilidades e a quem agra deço pelo diálogo, pelo incentivo e pela interpelação - e po r que não o Foucault? - e, ainda, à profa. Mirtes A morim, pelo carinho e a delicadeza do seu olh ar e dos seus dizeres ao longo da elaboração desta investigação. Esta Dissertação deve a esta am biência teórica e afetiva a sua inspiração (e , caso haja, seu m érito), “pois a verdade chega, vem ao nosso encontro como o am or”. 10
Referências bibliográficas 1PAREYSON, L. Estética: teoria da formatividade. Petrópolis, Vozes, 1993, p. 211, 214. 2ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis, Vozes, 1996, p. 84. 3 O que justifica as diferenças de tratamento dos textos, em que se pode sentir uma atenção mais demorada nos aspectos analítico-metodológicos do que no material histórico dos estu dos de Foucault.
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Suj
eit o
e laço
social
4 CERTEAU, M de. A invenção do cotidiano 1 - Artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 1994, p. 266. 5 LYOTARD, J. F. A condição pós-moderna. Lisboa, Gradiva, 1989, p. 95. 6 Ver DELEUZE, G ./ GUATTARI, F. Mil platôs 1. São Paulo, Editora 34, 1995, Introdução, p. 11 ss. 7 A. KHATIBI, cit. por LINS, D. “Como dizer o indizível?”. In: LINS, D. (org.) Cultura e subjetividade - saberes nômades. Campinas, Papirus, 1997, p. 70. s ROLNIK, S. Cartografia sentimental - transformações contemporâneas do desejo. São Pau lo, Estação Liberdade, 1989, p. 15. yGABILONDO, A. “‘Moi’: o eixo de Foucault". Revista de Comunicação e Linguagens. Lisboa, Cosmos, n° 19, 1993, p. 139. l0ZAMBRANO, M. Clareiras do bosque. Lisboa, Relógio d’Água, 1995, p. 31.
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Ca p í t u l o T
NOVOS CENÁRIOS SOCIAIS, NOVA CENA SUBJETIVA
APROXIMAÇÕES SOBRE A TEMÁTICA DA PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE Neste momento inicial, pretendemos, à semelhança da m etodologia da orien tação cartográfica anteriormente referida, ensaiar aproximações progressivas das nossas questões centrais. Parece-nos oportuno, então, situar o problema que nos interessa - o da produção de subjetividade no pensamento de Michel Foucault num horizonte mais amplo que permita localizar suas linhas de diálogo, de con fronto e de alcance. Isto se dá, aqui, avançando (como se verá abaixo) sobre determ inados “platôs” de discussão: em primeiro lugar, chamamos a atenção para o profundo enraiza mento e importância da questão da administração da subjetividade na tradição sociológica clássica; a seguir, apontamos as alterações da cena subjetiva em nos sa contemporaneidade (o cenário “pós-moderno” da subjetividade) e as implica ções para a redefinição da “experiênc ia de indivíduo” ; mais adiante, este trabalho de redefinições nos introduz na visada foucauldiana deste momento de repensar acerca de nossa individualidade. É preciso chamar atenção, porém, de que este capítulo inicial não tem outra intenção senão a de servir como mapa aproximativo de nossas interrogações fun damentais, mostrando que elas não estão circunscritas apenas ao trabalho de Foucault, mas que encontram todo um horizonte de intertextualidade no interior das ciências sociais, e que podem contribuir à reflexão dos cientistas sociais. Desse modo, os pontos de referência assinalados a seguir não pretendem, de for ma alguma, ser caracterizados como um levantamento, um inventário de todas as contribuições fundamentais a determinar a cena subjetiva contemporânea. Não é, pois, intenção nossa fazer o balanço desses diversos percursos teóricos.
A n t o n s o C r Is t i a n S a r a i v a P a i v a
O lugar dos autores abordados, de seus pensam entos, é o de ponto s de ace s so, vias possíveis (e que são as que se abriram para nós, dentro das limitações de nosso universo de referência), conduzindo às problemáticas propostas. Certa mente se notará a ausência de referências indispensáveis àquele inventário, tais como C, Castoriadis, P. Bourdieu, A. Touraine, M. de Certeau, J. Baudrillard, E. Morin, H. A rendt - para citar os que de imediato nos ocorrem - , embora, no fundo, eles se insinuem ao longo do texto. Mas não é inventário, balanço, o que propomos. Este capítulo im ita o gesto de abertura da primeira página de um livro, pois, como afirmava Foucault na lição inaugural do Collège de France, é preciso, de algum modo, começar. O que não deixa de ser um risco. O desejo diz: “Eu não queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discur so”.(...) Existe em muita gente, penso eu, um desejo semelhante de não ter de começar, um desejo de se encontrar, logo de entrada, do outro lado do discurso, sem ter de considerar do exterior o que ele poderia ter de singular, de terrível, talvez de maléfico.1
In
c id ên c ia s
da
subjetividade n as
c iên c ia s
s o c ia is
A problemática da subjetividade esteve sempre amalgamada à reflexão das ciências sociais. Foram diversas as tematizações em antropologia, sociologia, psicologia, psicanálise, semiótica etc. A teoria sociológica clássica, com Marx, Durkheim, Weber e Simmel, construiu diversos modelos a partir dos quais se pode reconstruir teorias do sujeito, indivíduo, pessoa, bem como do liame social. Para ficar com os clássicos, podemos de imediato anotar a incidência do interesse daquela problemática. Em Marx pode-se acompanhar a tematização do sujeito como momento constituidor da ontologia do ser social,2 sujeito excêntrico, material, atravessado pelas contradições que organizam o campo socioeconômico. Com Weber, abrem-se sendas para a compreensão do longo processo que vai desem bocar no individua lismo moderno, ocidental. Uma sociologia que evita pensar genericamente, pois quer enxergar os agentes concretos da vida social, daí seu método individualis ta.3 Em Durkheim se sustentam as questões básicas da disciplina sociológica: como entender os vínculos entre os homens? o que assegura a coesão social? quais as correlações entre o que se passa na consciência individual e na consciên cia coletiva? Como com patibilizar diferenciação/individualização com a vida em comum?4 Em Simmel, se tenta articular a, relação do indivíduo com o ‘outro’, 24
S u j eit o
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social
anotando as tensões do indivíduo psicológico, socialmente engendrado, mas ao mesmo tempo reclamando sua “autonomia subjetiva radical”.5 Embora não sirva aos propósitos deste livro desenvolver cada uma das perspectivas apontadas acima, anotamos aqui. logo de início, que a tematização da problemática da subjetividade - entendendo aí subjetividade nas várias acepções já acenadas: sujeito histórico, pessoa, indivíduo etc. - é algo muito caro à ciência social, descrevendo um longo caminho de problematizações e respostas.6
NOVOS CENÁRIOS, NOVAS EXPERIÊNCIAS DE SUJEITO No entanto, costum a-se referir a falência daquelas grandes teorias explicativas do mundo social. A partir dos anos 1960 e 1970 assiste-se a uma generalizada crise naqueles paradigmas teorico-metodológicos, assim também como à emer gência de episódios contemporâneos que dificilmente se prestam à análise a par tir daqueles referenciais: o fracasso das grandes utopias, os racismos e fundamentalismos recentes, a planetarização e globalização do mundo, a emergência de uma sociedade global.' Segundo. O. Ianni: [As Ciências Sociais] pela primeira vez são desafiadas a pensar o mundo como uma sociedade global. As relações, os processos e as estruturas econômicas, políticas, demográficas, geográficas, históricas, culturais e sociais, que se desenvolvem em escala mundial, adquirem preeminência sobre as relações, processos e estruturas que se desenvolvem em escala nacional.8 A. Melucci,9 no mesmo sentido, “examina as principais feições da emergen te sociedade global informatizada e tenta entender o lugar do indivíduo naquela sociedade”, apontando as ambivalências no processo de aquisição/construção das identidades individuais e coletivas, as complexidades envolvidas na contempo rânea experiência do indivíduo (individual experience). Para discutir a problemática da produção de subjetividades no cenário con temporâneo tentando registrar as mudanças nessa nova “experiência do indiví duo”, faremos uma breve incursão no pensamento de alguns autores contempo râneos que abordam aquela problemática para anotar alguns pontos de referência que nos facilitarão o acesso ao nosso objeto de investigação. Essas referências, portanto, necessariamente são parciais, limitadas e de for ma alguma exaustiva e nem mesmo significativa da literatura que aborda a subje 25
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tividade nas ciências sociais na contemporaneidade. Tais referências, ademais, não implicam nosso posicionamen to diante das questões propostas: servem, con forme alertado, para compor um quadro de interesses, para pôr em agitação os problem as que nos interessam . Podemos seguir, nessa discussão, com A. Giddens, U. Beck e S. Lash10 na caracterização da cena contemporânea, definidora de “uma nova agenda para as ciências sociais”, 11 sinalizando um tempo de radicalização dos efeitos da nossa modernidade ocidental em articulação com as transformações nas identidades dos indivíduos. Tentando evitar o debate já desgastado entre modernidade e pós-modernidade, aqueles autores entendem que nosso mundo contemporâneo, globalizado, des creve muito mais a paisagem de uma “alta modernidade” (high modernity), en quanto desenvolvimento de um projeto iniciado alguns séculos atrás, na qual se perfilam possibilidades revolucionárias para novas experiências de vida social e pessoal. Giddens entende, fundamentalmente, que o que facultaria o entendimento do nosso presente seriam os mecanismos de “desencaixe dos sistemas sociais” 12 a partir da separação tempo-espaço rad icalizados em termos de ritmo e escopo de m udança.13 De form a a que passam os a viver num m undo em que as relações se dão independentemente dos determinismos e das tradições locais. Tal globalização se traduz na mundialização das relações sociais, econômicas, culturais, em que nada permanece isolado ou incólume ao fórum planetário. Organizam-se, então, novos modos de agenciamento das experiências e das ações desencaixados dos contextos locais e permanentemente em muta ção. Passa-se, no que diz respeito aos relacionamentos sociais, dos compro missos com rosto (facework commitments ) aos compromissos sem rosto (faceless com mitmen ts),14 ou seja, passa-se da confiança em pessoa s à confi ança em sistem as ab stra tos,15 o que, evidentemente, vai alterar as matrizes nutridoras daquilo que Giddens chama “segurança ontológica”16 dos indiví duos e das coletividades. Seriam aqueles sistemas abstratos (ciência, mídia, tecnologias,...) que passariam a alimentar aquela segurança na medida em que passa m a m erecer “confiança ativa ” 17 (isto é, não mais base ada na trad i ção, mas na interpelação racional acerca de suas razões) dos indivíduos e das coletividades. Assim, segundo Giddens, no contexto da destrad icionalização18 da socieda de moderna globalizada, teríamos um incremento da reflexividade regulando as transações entre os indivíduos e suas rotinas. O trabalho de Giddens, segundo estes apontamentos, repousaria na seguinte hipótese: 26
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Há uma conexão direta (embora dialética) entre as tendências globalizantes da modernidade e o que devo chamar de transformação da intimidade nos contextos da vida cotidiana;que a transformação da intimidade pode ser analisada em termos da adição de mecanismos de confiança; e que as relações de confiança pessoal, nestas circunstâncias, estão intimamente relacionadas à situação na qual a construção do eu se torna um projeto reflexivo.19 Continuemos com Giddens: As rotinas que são estruturadas por sistemas abstratos têm um caráter va zio, amoralizado - isto vale também para a idéia de que o impessoal sub merge cada vez mais o pessoal. Mas não se trata simplesmente de uma diminuição da vida pessoal em prol de sistemas impessoalmente organiza dos - mas de uma transforma ção genuína d a própria natureza do pessoal. (grifo nosso).20 É importante, dessa discussão, reter o seguinte: para Giddens, não devemos lamentar essa invasão da vida impessoal “colonizando” a vida pessoal, nem tampouco respirar a atmosfera depressiva do “mínimo eu narcisista” à la Christo pher Lasch,21 encapsulado diante do mundo frio do sistema. Abso luta mente. Para Giddens trata-se de ver outra coisa: o potencial crítico, revolucioná rio que tal transform ação do pessoa l facu lta aos indivíduos e às coletividades.
Isto porque tematizar a vida pessoal passa a ser descrito como um projeto aber to,22 reflexivo, crítico, com possibilidades imensas de transformação da vida interpessoal e mesmo dos contextos mais amplos, configurando-se como “uma força subversiva quanto às instituições modernas”.23 Aprofundando essas séries correlatas de transformações nas ordens do pes soal e do social, Giddens tomará como programa de trabalho a demonstração de que mesmo aspectos mais privados da existência não escapam à tendência gene ralizada de “auto-monitoração reflexiva da experiência e da ação",24 e, por con seguinte, não deixam de alterar os contextos mais amplos da vida social. Tomemse, por exemplo, suas pesquisas sobre a sexualidade plástica, a dinâmica do rela c i o n a m e n t o p u r o , a emancipação sexual como “integração da sexualidade plásti ca (autonomizada frente à finalidade única da reprodução) ao projeto reflexivo do eu”,25 o contexto dos envolvimentos homossexuais etc. Enfim, trata-se de um mapeamento, no âmbito do pessoal, no seio desta trans formação contemporânea da intimidade,26 das possibilidades de uma “democra cia emocional”27 sobre a qual basear as transformações “macro”. Novamente, a
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hipótese trabalhada por Giddens: “No plano mais amplo, existe uma simetria entre a democratização da vida pessoal e as possibilidades democráticas na or dem política global”.28 “A possibilidade da intimidade significa a promessa da democracia”.29 O “realismo utópico ” de Giddens30 passa por aí, nessa redefinição da expe riência de si, percorrendo o arco que vai da democracia em ocional à radicalização da democracia na esfera pública (não estando implicada uma linearidade neste percurso, mas mútua implicação). Eis a aposta: ...as possibilidades radicalizadoras da transformação da intimidade são bastante reais. (...) Se considerada como uma negociação transacional de vínculos pessoais, estabelecida por iguais, ela surge sob uma luz comple tamente diferente. A intimidade implica uma total democratização do d o mínio interpessoal, de uma maneira plenamente compatível com a demo cracia na esfera pública. Há também implicações adicionais. A transfor mação da intimidade poderia ser uma influência subversiva sobre as ins tituições modernas como um todo. Um mundo social em que a realização emocional substituísse a maximização do crescimento econômico seria muito diferente daquele que conhecemos hoje. As mudanças que atual mente afetam a sexualidade são, na verdade, revolucionárias e muito p ro fundas.31 Convergentemente, tentando explorar as possibilidades disruptivas da trans formação do pessoal nos contextos mais amplos da política globalizada, U. Beck32 vai anotar, a partir da novidade dos processos contemporâneos de individualização (definida como forma social33), uma redefinição da própria natu reza do político. Ora, uma vez que a individualização, fenômeno intrinsecamente ligado ao da globalização (pelos motivos que Giddens já nos forneceu), implica escolha dos estilos de vida , p ro d u çã o de b io g ra fia , a u top ro jeto e auto-representação,34 havendo, assim, uma passagem da biografia padronizada (garantida e fixada pe los contextos da tradição) à biogra fia reflexiva ,35 tem-se que a própria sociedade carece de consenso.36 E é justamente aí, nessa obrigação de ter de escolher, na “mobilidade dos agentes em todos os níveis possíveis da subpolítica”,37 que se apresenta a ativação da subpolítica, enquanto novidade frente “à imobilidade do aparato governamental e de seus órgãos subsidiários”.38 Novam en te vem os afirmado o im pacto da paisagem co ntemporânea da vida privada sobre a vida social, alteran do-a e deixando tran sp arecer um certo oti mismo:
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