O IMAGINÁRIO DO ALÉM-MUNDO NA APOCALÍPTICA E NA LITERATURA VISIONÁRIA MEDIEVAL: ITINERÁRIOS DE RECEPÇÃO
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Diretor Geral
Robson Ramos de Aguiar Conselho Diretor
Paulo Borges Campos Jr. (Presidente), (Presidente), Aires Ademir Leal Clavel (Vice-Presidente), Esther Lopes (Secretária). Titulares: Afranio Gonçalves Castro, Augusto Campos de Rezende, Jonas Adolfo Sala, Marcos Gomes Tôrres, Oscar Francisco Alves Jr., Ronilson Carassini, Valdecir Barreros Suplentes: Nelson Custódio Fér Reitor: Marcio de Moraes Pró-Reitora de Graduação: Vera Lúcia Gouvêa Stivaletti Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa: Fábio Botelho Josgrilberg Escola de Comunicação, Educação e Humanidades: Nicanor Lopes Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião: Helmut Renders Conselho de Política Editorial
Marcio de Moraes (presidente); Almir Martins Vieira; Fulvio Cristofoli; Helmut Renders; Isaltino Marcelo Conceição; Mário Francisco Boratti; Peri Mesquida (representante externo); externo); Rodolfo Carlos Martino; Roseli Fischmann; Sônia Maria Ribeiro Jaconi Comissão de Publicações
Almir Martins Vieira (presidente); Cristiane Lopes; Helmut Renders; José Marques de Melo; Marcelo Módolo; Rafael Marcus Chiuzi; Sandra Duarte de Souza Editor Executivo
Rodrigo Ramos Sathler Rosa
SÃO BERNARDO DO CAMPO •
2015
UMESP Dados Internacionais de
Catalogação na Publicação (CIP)
(Biblioteca Central da Universidade Metodista de São Paulo)
O imaginário do além-mundo na apocalíptica e na literatura visionária visionária medieval: itinerários itinerários de recepção / Paulo P aulo Augusto de Souza Nogueira organizador. São Bernardo do Campo : Universidade Metodista de São Paulo, 2015. 407 p.
Bibliografia ISBN 978-85-7814-310-7 1. Literatura apocalíptica 2. Escatologia I. Título II. Nogueira, Paulo Augusto de Souza CDD 236 EDITORA METODISTA Rua do Sacramento, 230, Rudge Ramos 09640-000, São Bernardo do Campo, SP Tel: (11) 4366-5537 E-mail:
[email protected] www.metodista.br/editora Capa: Cristiano Freitas Imagem da capa: http://en.wikipedia.org/wiki/ Stefan_Lochner#/media/File:Stefan_Lochner_006.jpg Stefan_Lochner#/media/File:Stefan_L ochner_006.jpg . Acesso em: 10 jun. 2015. Editoração eletrônica: Maria Zélia Firmino de Sá Revisão: Ronaldo Sathler Rosa As informações e opiniões emitidas nos artigos assinados são de in teira responsabilidade de seus autores, não representando, n ecessariamente, posição oficial da Universidade ou de sua mantenedora.
AFILIADA À
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SUMÁRIO
I NTRODUÇÃO Paulo Augusto de Souza Nogueira 7
Parte I Narrativas e enredos apocalípticos
sobre o além-mundo e o além-morte CAPÍTULO 1 Corpos, pecados e punições: a construção do além-mundo na visio pauli (Apocalipse de Paulo) Paulo Augusto de Souza Nogueira 17 CAPÍTULO 2 Além-mundo no Antigo Israel e nas religiões do Oriente Próximo Ágabo Borges de Souza 41 CAPÍTULO 3 Visionários e seus apocalipses: do judaísmo, j udaísmo, do Novo Testamento ao misticismo judaico Sebastiana M. da Silva Nogueira 59 CAPÍTULO 4 Entre este mundo e o mundo além: concepções de além-mundo na apocalíptica judaica e suas considerações no meio acadêmico Jonas Machado 97 CAPÍTULO 5 A ascensão como metáfora: estudo do imaginário da ascensão César Carbullanca Núñez 133
Parte II Visionários e visões medievais do além-mundo CAPÍTULO 6 A Visão de Túndalo: da danação d anação à salvação numa viagem imaginária medieval Adriana Zierer 163 CAPÍTULO 7 “Do inferno ao céu...”: a visão de túndalo Kenner Roger Cazotto Terra Francisco Benedito Leite 207 CAPÍTULO 8 O além-mundo no imaginário medieval: a visão de Thurkill Luana Martins Golin Ricardo Boone Wotckoski 243 CAPÍTULO 9 A visão de Godeschalcus/ Godeschalcus/Gottschalk Etienne Alfred Higuet 267
CAPÍTULO 10 O além sob três olhares: uma análise comparativa do Apocalipse de João, da visio pauli e pauli e de Joaquim de Fiore Valtair A. Miranda 301 CAPÍTULO 11 Pèlerinage de vie humaine, humaine, de Guillaume de Digulleville José Adriano Filho 329
Parte III Apropriações e recriações do além-mundo na literatura CAPÍTULO 12 A imagem literária do além-mundo e sua su a crítica histórica em Pedro Páramo, de Juan Rulfo Ana Lúcia Trevisan 357 CAPÍTULO 13 Ecos do além-mundo em Auto da Compadecida e em Memórias Póstumas de Brás Cubas Paulo Sérgio Proença 373
INTRODUÇÃO
OUZA N OGUEIRA OGUEIRA P AULO AUGUSTO DE S OUZA
Este livro analisa o impacto da literatura bíblica no imaginário ocidental em torno de um tema central na cultura: a descrição do mundo dos mortos e da relação deles com os vivos. A literatura do cristianismo primitivo possui uma variedade de textos que se referem ao mundo dos mortos. E esses textos pertencem a tradições muito diferentes entre si, de forma a parecer impossível organizá-los num todo coeso. Um primeiro tipo de texto sobre o mundo do além se encontra na estória narrada no evangelho de Lucas em que Jesus conta sobre um mendigo chamado Lázaro, que desejava viver de migalhas na porta da casa de um homem rico, vestido de púrpura e linho fino e dado a festas luxuosas (Lc 16, 19-21). 19-21). Ambos morrem. O primeiro vai para o “seio “seio de
Abraão”, o segundo é atormentado por torturas tais que pede a Abraão que lhe mande Lázaro para aliviá-lo, colocando o dedo molhado em sua língua. Abraão, no entanto, frustra frus tra o seu pedido afirmando haver um grande abismo separando-os: separando-os: “para que os que quiserem passar daqui para vós não o possam e que também os de lá não se atrevessem até nós” (v.26). O rico pede então a Abraão que envie Lázaro ao mundo dos vivos para que ele advirta seus irmãos para que “não venham, eles também, para este lugar de tortura” (v.28). Ao que Abraão lhe responde: “eles têm Moisés e os profetas, que os ouçam”. Porém, o rico insiste argumentando que o apelo será maior se alguém dentre os profetas lhes aparecerem. A resposta de Abraão é paradigmática: “Se eles não escutam Moisés nem Moisés nem os profetas, mesmo que alguém ressuscite dos mortos, não ficarão convencidos” (v.31). Esta anedota contém elementos bizarros e até mesmo divertidos, desde a caracterização primeira dos personagens (Lázaro: “e os cães vinham lamber as suas feridas” e o rico: “fazia diariamente brilhantes festins”), até a caracterização invertida dos personagens no mundo do além, quando o rico no Hades implora por um alívio (um dedo molhado!). Esse pedido não faz sentido ao leitor, a não ser que os sofrimentos infernais se tratem de algo além dos limites da imaginação. Não é à toa que este texto é negligenciado pela pesquisa acadêmica, afinal não há nela grande teologia, nem sofisticação narrativa. Em nossa opinião, esse texto é de especial interesse, pois nele encontramos ecos de oralidade e de questionamentos religiosos do homem e da mulher da rua, com suas perguntas pouco sofisticadas, ainda que provocadoras: como seria a sociedade no além-mundo, como ela se relacionaria com a sociedade injustamente estruturada do aquém-mundo, seria uma continuidade ou uma inversão do se vê? Essas perguntas um tanto ingênuas sempre despertaram a curiosidade das pessoas e ganharam reflexo na cultura popular. Esse texto também partilha do pressuposto da religião popular de que havia canais de comunicação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Esse texto não tem a força satírica das narrativas de Luciano, que em seu Diálogo dos Mortos Mortos faz com que os filósofos cínicos Menipo de Gadara e Diógenes zombem acidamente dos poderosos e comparem impiedosamente glórias passadas deles com os tons cinzas de seus ossos e do ambiente lúgubre do Hades. Porém, ele representa os primeiros esforços de um grupo religioso emergente que terá como um de seus temas e enredos preferidos a descrição do destino de justos e injustos após a morte. Até que esta grande narrativa do cristianismo primitivo sobre os mortos e seu mundo seja constituída ele terá que adaptar e amalgamar várias tradições judaicas e pagãs, inicialmente incompatíveis entre si, num enredo complexo e imageticamente poderoso. Se a narrativa da inversão de lugares entre Lázaro e o rico na casa dos mortos é apenas uma versão trágica (e algo cômica) do destino do indivíduo após a morte, havia narrativas no cristianismo primitivo que, ainda que seguissem o princípio das inversões de destino entre o aqui e o além-mundo estavam inseridas em contextos maiores, invertendo destinos de grupos inteiros. Para isso era necessária uma instância narrativa que paralisasse os tempos individuais e os sincronizassem em um único tempo, um tempo cósmico que se impõe sobre todos os demais. Esta grande narrativa também está preservada na tradição dos evangelhos, a saber, no material especial de Mateus, em Mateus 25, 31-46. Trata-se da narrativa sobre a vinda do Filho do Homem para executar o juízo final. Nesta narrativa temos uma mudança radical de perspectiva em relação ao texto sobre a inversão de lugares no além-mundo entre Lázaro e o rico. Lá o foco está posto sobre os destinos individuais que são comparados, ainda que no texto seja omitida sagazmente a morte concomitante dos concomitante dos protagonistas. Em Mateus 25, no entanto, não se trata de mortes concomitantes que ocorrem despercebidas no quotidiano, mas da suspensão de todo o
tempo, de um final do tempo (eschatón (eschatón), ), em uma única cena, com morte e inversões de posições no mundo do além para todos, sem exceção. Este tempo é um tempo extraordinário: “Quando o Filho do Homem vier em sua glória acompanhado de todos os anjos, então ele se assentará em seu trono de glória. Diante dele serão reunidas todas as nações, e ele separará os homens uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos” (v.31-32). (v.31 -32).
Para essa suspensão do tempo o texto elabora um palco: o juízo universal de todos os homens diante de uma autoridade única, o Filho do Homem em glória, assentado em seu trono. Encontramos aqui uma narrativa escatológica universal e cósmica. Esse tempo qualificado quebra o tempo histórico e o evento pressupõe uma espacialidade total, uma disponibilidade de toda a humanidade diante do trono. Apesar da grandiloquência dessa narrativa inspirada nas visões mais espetaculares da apocalíptica judaica, ela tem certas similaridades com a historieta de caráter popular de Lucas 16: mantém-se o esquema de inversão de papéis entre um tempo e outro, de revelação surpreendente dessa inversão, e um tom social provocador. O texto divide as pessoas em dois grupos antitéticos. Um é caracterizado como “benditos do meu pai”, destinados para a “herança do Reino”. Esses são os que fizeram o bem ao Cristo, mesmo sem o saber, fazendo-o fazendo-o aos “pequeninos”. O outro grupo, a quem o juiz chama de malditos e que são destinados ao fogo eterno, são os que sem o saber não fizeram o bem ao Cristo na pessoa dos “pequeninos”. Ou seja, o esquema de inversão proposto por Lucas 16 não desaparece, ele só ganha dimensões universais. E há também o mesmo elemento de surpresa que toda a tradição posterior tentará suprimir por meio de penitências post-mortem penitências post-mortem:: que Lázaro e não o rico seja o bem-aventurado e que fazer o bem ou não aos “pequeninos” seria fazê-lo fazê-lo ou não ao próprio Cristo. As visões do mundo do além do cristianismo primitivo e, na sua recepção, nos textos visionários medievais, tentarão minimizar esse elemento surpresa, dando descrições detalhadas das beatitudes e maldições eternas a partir de esquemas bem definidos de comportamento. Elas serão uma espécie de manuais para que não se incorra no risco da danação eterna. O fato da tradição evangélica oferecer uma narrativa poderosa sobre o juízo e suas implicações para a vida do além-morte, não significa que as questões colocadas pelo drama da morte do indivíduo tenham sido deixados de lado. Pelo contrário. A tradição da escatologia individual, do julgamento das pessoas logo após suas mortes, devido ao seu caráter concreto, se inseriu na grande narrativa do julgamento de todos no final dos tempos de tal forma a ser totalmente transformada. Encontramos os primeiros ecos da sobreposição de uma tradição sobre a outra em 1 Tessalonicenses 4 e 5, quando Paulo busca responder à pergunta dos fieis sobre qual o destino “dos que dormem no Senhor” no curso dos eventos do tempo escatológico, ou seja, os que morreram na comunidade de Tessalônica não podiam ficar esquecidos e invisíveis diante da grandiosidade do juízo final: quando o Senhor voltar com os seus anjos anjos “os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro”, apenas depois disso é que os vivos serão arrebatados nas nuvens (1 Ts 4,16-17). Essa solução paulina só fez sentido aos seus leitores porque eles esperavam pela vinda iminente do Senhor, não havendo, portanto, uma expectativa histórica de longo prazo. Quando essa urgência escatológica das primeiras comunidades é substituída por uma noção de que o final dos tempos seria antecedido por um tempo histórico de missão aos gentios e de consolidação da igreja no mundo, outros esforços foram feitos no sentido de inserir a narrativa da escatologia individual dentro da grande narrativa da escatologia cósmica. Ou seja, a perspectiva de que viria
um tempo em que todas as ações, de todos os homens, seriam postas em evidência e julgadas, tinha que ser posta em harmonia com a perspectiva ainda mais urgente de que os homens morrem em tempos diferentes e que nesse tempo de espera já tenham antecipadas as recompensas ou as punições por suas ações. O tempo do cosmo e o tempo do indivíduo têm que ser negociados e harmonizados numa única narrativa. Para atender a essa demanda surge uma nova forma de escatologia que insere o tempo do indivíduo no tempo do escatológico: trata-se da narrativa de viagens ao além-mundo para a contemplação do destino dos mortos na espera do juízo final . Isso é possível por meio de um artifício dessa nova narrativa escatológica: ela suprime o desconforto da incompatibilidade entre as duas temporalidades (a da morte do espacialidade. A dimensão da indivíduo e a do final de todo o tempo) pondo sua ênfase na espacialidade. espacialidade já tinha sua importância nos textos apocalípticos judaicos que, por meio das viagens aos céus e aos infernos dos visionários, descreviam o cosmo e seus segredos. Mas, a centralidade no destino dos homens após a morte, no mundo do além, e a correlação entre os pecados cometidos, os lugares ocupados o cupados no além-mundo, além -mundo, e as consequências sobre os corpos só será desenvolvida na literatura do cristianismo primitivo, em textos como o Apocalipse de Pedro, o Evangelho de Bartolomeu e, em especial, no Apocalipse de Paulo, também conhecido como a Visio Pauli. Pauli. A hipótese que norteia a maioria dos capítulos desse livro é que essa narrativa sobre o alémmundo, de inserção do destino do indivíduo após a morte no grande quadro da escatologia, se tornou a narrativa de referência para a formação do imaginário cristão sobre o além-mundo. Esse imaginário se formou lentamente, tendo seus inícios no Novo Testamento, mas se estruturou e se adaptou principalmente na literatura apócrifa do cristianismo primitivo. Essa transformação realizada pela literatura apócrifa se tornou tão decisiva que passou a ser o esquema narrativo dentro do qual mesmo os textos canônicos do Novo Testamento passaram a ser interpretados. Ou seja: as lacunas do material mais antigo, composto por dois tipos de escatologia aparentemente incompatíveis, passaram a ser preenchidas pelo leitor com a ajuda da mediação das narrativas visionárias apócrifas, sendo essas o seu filtro interpretativo. As narrativas sobre o além-mundo se constituíram num gênero literário vivo e dinâmico e é por isso que elas desempenharam um papel fundamental na formação do imaginário ocidental do além-mundo, ao invés de textos patrísticos de caráter teológico e dogmático. Textos visionários vi sionários são constituídos por narrativas, e boa parte delas descrições. Essas narrativas dispõem em tempo e espaço os temas do alémmundo, oferecendo ao leitor (ao ouvinte, no mundo antigo e medieval) um quadro dentro do qual se inserir imaginativamente. Prova do impacto dessa literatura sobre a audiência é o desenvolvimento de seu enredo e de seus temas nas visões medievais do além-mundo, como as visões de Túndalo, Turkhill, Drylthelm, Gosdeschalkus, entre outras. Essa tradição visionária medieval mostra como os temas sobre o além-mundo despertavam não só a curiosidade dos homens do mundo medieval, mas se constituíam em preocupações prementes e formas de pensar o mundo, não só o dos mortos, mas também a sociedade e suas práticas. Esse livro está organizado em três partes. A primeira, intitulada Narrativas e enredos apocalípticos sobre o além-mundo e o além-morte, nos além-morte, nos oferece um marco histórico-religioso em que essas ideias do imaginário cristão sobre o além-mundo se formaram. Ainda que muitas sociedades na Antiguidade tenham narrativas sofisticadas sobre o além-mundo, buscamos mostrar suas origens e estrutura na literatura bíblica, desde os textos da Bíblia Hebraica, até a apocalíptica judaica e os Manuscritos do Mar Morto. Também apresentamos o desenvolvimento do tema nos primeiros escritos do cristianismo primitivo. O fato dessa sessão se iniciar com um
capítulo sobre o Apocalipse de Paulo, uma fonte relativamente tardia em relação aos textos bíblicos, pretende sugerir que ele representa um primeiro estágio em que a narrativa sobre o mundo do além está formada: ele representa o elo entre a tradição bíblica, a literatura apócrifa e os relatos visionários medievais sobre o além-mundo. Ele ajudará a perceber como os distintos textos e tradições analisadas colaborarão em sua formação, Além disso, também permitirá ver como as tradições antigas foram integradas nessa nova narrativa pelo leitor da antiguidade tardia. Na segunda parte do livro, intitulada Visionários e visões medievais do além-mundo, além-mundo, apresentamos capítulos que exploram os textos dos visionários medievais e suas descrições do mundo do além. Nossa perspectiva é explorar esse estrato intermediário da sociedade medieval, suas práticas religiosas, seu universo de crenças por meio de sua mitologia, que cremos estar representada nesses relatos. Veremos como elementos de um cristianismo oral, e depois letrado sem ser erudito, são assimilados em diferentes culturas europeias, promovendo recepção e transformação criativa dos elementos bíblicos antigos. Por fim, na terceira parte do livro, Apropriações e recriações recriaçõ es do além-mundo na literatura, literatura, oferecemos ao leitor pontes para refletir sobre as formas como essa estrutura mítica sobrevive na literatura. Seja na literatura alegórica cristã, seja na literatura Latino-Americana, os temas e enredos dos relatos sobre o além-mundo se mostram quadros apropriados para falar sobre o presente, sobre as tensões sociais, e nos permite compreender como o mundo dos mortos lança luz sobre o mundo dos vivos em todas as suas tensões e ambiguidades. Esse livro é fruto do trabalho de uma equipe de pesquisadores, professores e pós-graduandos, da área da Teologia, das Ciências da Religião, da História e dos Estudos Literários que se articularam em torno da temática. O projeto de pesquisa intitulado O imaginário do além-mundo na apocalíptica e na literatura visionária medieval foi foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) na modalidade de projeto de pesquisa regular. À FAPESP nosso agradecimento pelo generoso financiamento. Também agradeço aos alunos da Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, onde o projeto foi executado, pelo empenho na realização do projeto. Agradeço o doutorando Kenner Cazotto Terra pela leitura do material e, em especial, à doutoranda Luana Golin pela leitura, revisão técnica e tradução de um dos capítulos. Finalmente agradeço aos meus colegas professores Adriana Zierer, Cesar Carbullanca, Ágabo Borges, Etienne Higuet, Marcelo Furlin e José Adriano Filho pelo incentivo e colaboração nas reuniões, publicações e discussões do grupo de pesquisa. INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO
Parte I Narrativas e enredos apocalípticos sobre o além-mundo e o além-morte CORPOS, PECADOS E PUNIÇÕES :
A CONSTRUÇÃO DO ALÉM -MUNDO NA VISIO PAULI (APOCALIPSE DE PAULO)
P AULO AUGUSTO DE S OUZA OUZA N OGUEIRA OGUEIRA* visio pauli, pauli, também conhecida como Apocalipse de Paulo, é uma das mais importantes fontes para o estudo da origem e desenvolvimento das ideias e representações sobre o alémmundo no cristianismo da antiguidade tardia. Esta obra, em sua versão final, é produto do cristianismo do Egito do século III ou IV, mas seus estratos mais antigos podem remeter ao século II. Ainda que seja precedido pelo Apocalipse de Pedro e pelo Evangelho de Bartolomeu na constituição de uma narrativa sobre o além-mundo cristão, é nele que encontramos a primeira forma elaborada e completa desta narrativa. Talvez seja por isso também que a visio pauli tenha pauli tenha sido uma das obras apócrifas de maior circulação no mundo medieval e que nele tenha exercido forte influência na constituição de um imaginário do além-mundo. Supõe-se que ela tenha sido conhecida inclusive por Dante Alighieri. De qualquer forma a obra teve uma forte transmissão textual, além de ter sido traduzida
A
para diferentes línguas no Medievo1. Essa popularidade se deve ao fato de que esta obra tenha exercido um papel importante na imaginação religiosa de estratos intermediários da sociedade, em especial de leigos, sacerdotes, monges e pregadores. Teve, também, um papel estratégico para suprir a lacuna entre a escatologia cósmica judaica e cristã primitiva e as crenças e expectativas de uma escatologia individual, voltada para o indivíduo, em seu eschatón eschatón após a morte. Voltaremos a este tema adiante. De qualquer forma é importante destacarmos o papel que a visio pauli pauli (VP) exerceu ao fornecer a grande narrativa de passagem de uma escatologia cósmica, do final dos tempos no juízo final, para uma escatologia individual, mais tangível, dada ao fato da morte ser inelutável. Esta obra consegue inserir o destino individual de juízo após a morte no contexto do juízo cósmico. Um dos fatores que também garantiu sucesso a esta obra é a riqueza imaginativa de seus cenários e das ações ali descritas. O Apóstolo Paulo, conduzido pelo anjo Miguel, percorre regiões celestes, paradisíacas e também as limítrofes e infernais, numa grande jornada mítica, que deve ter despertado a curiosidade dos ouvintes e dos leitores. Nunca antes uma obra cristã fornecera um quadro completo de uma jornada da alma pela grande geografia cósmica do alémmundo. Isso deve ter sido o bastante para garantir à VP grande popularidade. Literariamente a VP é organizada como uma pretensa continuidade do relato sobre a ascensão do Apóstolo Paulo aos céus, conforme narrado em 2 Coríntios 12. Ali Paulo se refere a uma viagem celeste, na qual teria visto e ouvido coisas “indizíveis”, que a história da interpretação associou a segredos celestiais. Estes segredos estariam registrados em um escrito oculto, destinado a ser revelado em gerações futuras. É este escrito que o Apocalipse de Paulo pretende ser. Neste capítulo pretendo abordar a VP em duas perspectivas. per spectivas. Na primeira, mostrarei mostr arei como a VP se articula retoricamente para se apresentar como um relato apocalíptico de primeira linha,
semelhante aos apocalipses antigos, ainda que voltado para uma nova audiência. Boa parte desta estratégia se articula em construir Paulo como um mediador, numa espécie de novo Enoque ou novo Moisés. Paulo não apenas revela os eventos do mundo do além, mas ele também exerce um papel de mediador neste n este mundo. Todo este processo de legitimação sobre Paulo como veículo de revelação também se reflete sobre a importância do escrito. Na segunda perspectiva, argumentarei que a VP elabora uma sofisticada e fantástica visão da sociedade do além-mundo, uma sociedade que ultrapassa os limites do conhecido e do desconhecido, da vida e da morte, da geografia quotidiana à geografia do além. Veremos os possíveis reflexos que esta sociedade imaginária carrega da sociedade para a qual o escrito foi redigido. Nosso objetivo é que estas duas perspectivas nos ajudem a compreender melhor os motivos que levaram a VP a ser uma das obras apócrifas de maior sucesso no passado e a estruturar muitas das ideias sobre o além-mundo do imaginário ocidental. 1. Paulo, o mediador das visões e do mundo do além A VP está organizada como um relato de visão, ou melhor, como um relato de um conjunto de visões contempladas no contexto de uma jornada no mundo do além. Ainda que a VP inaugure ou consolide um novo tipo de repertório de temas no cristianismo da antiguidade tardia, ele está inserido numa longa história de textos que narram sobre as visões de homens santos em suas jornadas no além. Nos apocalipses intitulados de apocalipses de jornada ao além-mundo o profeta vê a verdadeira constituição do mundo no mundo celestial, do qual o mundo terreno não passa de sombras. Trata-se, mais do que simplesmente apresentar descritivamente lugares fantásticos, estruturas cósmicas e sociais idealizadas. Neste sentido tudo o que é visto e a forma como é visto (em especial a disposição dos agentes, lugares, hierarquias, ações, enfim, sua reorganização) é entendido como avaliação da realidade social. Por isso não são raras as inversões de lugares e de perspectivas no mundo do além. Estas inversões devem ter origem na cultura popular, como, por exemplo, no caso do relato que bem pode ter origem na oralidade (portanto, muito menos elaborado que em nosso relato) que é a estória (incorretamente chamada de parábola) de Lc 16, 19-31, 19-31, chamada de “O rico e o mendigo”. O texto descreve seus protagonistas de forma caricatural, um rico (“que se vestia de púrpura e linha finíssimo e que, todos os dias, se regalava esplendidamente”) e um mendigo (“chamado Lázaro, coberto de chagas...”). Após a morte de ambos, o mendigo mendigo encontra-se encontra-se “no seio de Abraão”, enquanto que o rico se encontrava no Hades, em tormentos, clamando por uma gota de água na língua para refrescar-se. Não é difícil imaginar o prazer ou o sorriso sarcástico que este tipo de historieta causava nos ouvintes. Por mais absurda que fosse a situação e os personagens da inversão, o recado era dado, as pessoas percebiam (e desejavam) as inversões que estavam em jogo. Já nos escritos apocalípticos, muito mais sofisticados que estas historietas que procedem da cultura oral, as inversões são sofisticadas, o mundo do além é estratificado e ações e recompensas são descritas com detalhes. Mas, o princípio é o mesmo, no âmbito da visão, e mais especificamente, no âmbito das narrativas de visões, o mundo social é invertido e reconstruído. Para isso ele constrói um enredo no qual este mundo possa ser reelaborado, no qual os personagens e seus estratos possam ser reorganizados, com a liberdade da criação visionária e narrativa. O Apocalipse de Paulo faz estas recriações e inversões de mundo de forma exemplar, pois alia num único relato dois subgêneros apocalípticos: a jornada celestial e a jornada aos infernos. A VP é num único complexo narrativo tanto jornada ao céu, como contemplação do mundo inferior. Isso
faz com que o texto tenha pretensões enciclopédicas. Seus personagens são Cristo, a Virgem, os apóstolos, os profetas, mártires, santos, e também Satanás, demônios horripilantes, e pecadores de todas as classes. Os lugares descritos também são os mais variados, incluindo a cidade santa, o paraíso, a terceiro céu, e os limites entre este mundo e o mundo dos abismos intermináveis. Para realizar um projeto literário e imaginativo tão ousado o autor precisa de um enquadramento correto e de ancoragem na tradição. No mundo bíblico (aqui entendido também como o mundo mun do dos apócrifos), e no mundo antigo em geral, tudo tem que estar ancorado na tradição. Uma palavra repousa em uma palavra anterior. E textos novos são produzidos na reorganização de textos anteriores. Este é um dos motivos porque os autores bíblicos lançam mão da pseudepigrafia. Trata-se de escrever um texto usando da autoridade de outro, de alguém que efetivamente pode dizer algo. A pseudepigrafia também permite criar outro efeito nesta literatura de revelação. Ao propor ler um texto escrito e ocultado no passado, cria-se o efeito de que o texto, ainda que antigo, foi escrito para o agora. A revelação foi ocultada para ser revelada para a última geração. Desta forma a organização da obra e sua relação com o autor pseudepígrafo estão interligadas. Se Enoque é o homem primordial que andava com Deus e que fora arrebatado por ele aos céus, é compreensível que apocalipses cuja autoria seja atribuída a Enoque tratem da rebelião dos anjos contra Deus no tempo primordial, ou das descrições do mundo celeste. E que leiamos este texto num momento histórico (ou mítico) específico, faz com que este tempo seja qualificado como tempo de revelação de sabedoria ancestral. Neste contexto nos perguntamos: e no caso de Apocalipses criados sob a autoria de Paulo, há elementos que podem ser atribuídos a esta relação fictícia? Qual a retórica da autoridade paulina no texto? Vejamos o início do livro: “Passarei às visões e revelações do Senhor. Conheço um homem em Cristo que há quatorze anos, não sei se no corpo ou se fora do corpo, Deus o sabe, que foi arrebatado até o terceiro céu. E conheço tal homem que, se no corpo ou fora do corpo desconheço, Deus o sabe, foi arrebatado até o Paraíso e ouviu palavras secretas (archana (archana uerba) uerba) que não é permitido aos homens falarem. Por causa deste homem me gloriarei, por minha causa, no entanto, não me gloriarei, a não ser em minha fraqueza. 1. Quando aconteceram estas coisas? No consulado de Teodósio Augusto o Jovem e de Cinégio, certo homem honrado habitava em Tarso na casa que fora de São Paulo, e apareceu um anjo à noite e lhe revelou dizendo que escavasse o fundamento da casa e que publicasse o que encontrasse. Este pensava que se tratasse de uma alucinação. 2. Mas ao vir o anjo pela terceira vez o flagelou e o obrigou a escavar o fundamento da casa. E escavando descobriu uma caixa de mármore escrito nas laterais. Ali estava a revelação de São Paulo e as suas sandálias, com as quais andava a ensinar a palavra de Deus. Este, porém, teve medo de abrir a caixa e a enviou para o juiz. O juiz a aceitou e, por estar selada com cera, a enviou ao imperador Teodósio, temendo que fosse qualquer outra coisa. Quando o imperador a recebeu abriu-a e encontrou a revelação de São Paulo. Mandou uma cópia para Jerusalém e reteve a autêntica consigo. 3. Quando estava no corpo, no qual fui arrebatado ao terceiro céu, veio a palavra de Deus a mim dizendo...” 2
O Apocalipse de Paulo começa com uma citação de 2 Coríntios 12, 1-5. Mas estrategicamente não o faz no formato de citação 3. O texto bíblico tem continuidade na história da descoberta da revelação. Ou seja, a revelação que é descoberta escondida na fundação da casa de Paulo em Tarso é a que contém as coisas que ele teria visto em sua viagem ao terceiro céu e no Paraíso, e que não são relatadas no texto bíblico. Também podemos nos perguntar se as “palavras secretas que não é permitido aos homens falarem” correspondem aos conteúdos do apocalipse. A estratégia de costurar o novo relato com o texto bíblico (já dotado de prestígio) encontra-se na inserção da narrativa da descoberta milagrosa do escrito em duas referências claras a 2 Coríntios 12, que enquadram a narrativa. A primeira na citação bíblica e a segunda na passagem da introdução às primeiras visões do apocalipse, na forma de continuidade com ela: “Quando estava no corpo, no qual fui arrebatado ao terceiro céu, veio a palavra de Deus a mim dizendo...”. Desta forma, velho e novo se fundem num único relato. Mas se no texto bíblico Paulo não sabe se estava no corpo ou fora dele, aqui, estava no corpo, corpo, no qual foi arrebatado. Uma modificação sutil, mas fundamental. É no corpo do Paulo desta narrativa desta narrativa que a revelação bíblica vem à tona. As formas de legitimação do “apocalipse de Paulo” também são estrategicamente articuladas na história da descoberta do manuscrito. Primeiro encontramos referência ao tempo preciso da descoberta, o que lhe dá maior aparência de veracidade. Toda a narrativa apela para a origem divina da descoberta (o anjo que revela, dá a ordem e a faz executar), para a honradez do homem que faz a descoberta, ainda que seja anônimo, e o envio ao imperador, como garantia de autoridade. Resultado: este apocalipse é a revelação que Paulo não pôde revelar no seu tempo, mas que agora, no tempo dos leitores, é não só descoberta e revelada, mas também transmitida por pessoas da mesma honradez, hon radez, o que inclui não ninguém menos que o imperador Teodósio. Há uma poderosa estratégia retórica de legitimação do escrito utilizada na VP. Nela Paulo é apresentado como um visionário que participa ativamente dos eventos que narra. Ele toma parte da jornada celestial vendo, mas também fazendo perguntas aos anjos, chorando, e adorando a Deus. Um anjo inclusive o navega pelo lago do além-mundo, o lago Acherusio. Esta participação ativa de Paulo nos processos de revelação parece impor a Paulo um papel que as Escrituras não lhe atribuíram: a de um mediador do além-mundo. O Paulo da VP está mais para o profeta João, visionário do Apocalipse, do que para o Paulo das cartas. Um exemplo deste papel de Paulo como mediador pode ser encontrado na narrativa da entrada de Paulo pela porta dourada no terceiro céu, por entre as colunas douradas cheias de letras (19). Após entrar pela porta dourada no terceiro céu ele vê um ancião que o recebeu festivamente e que, em seguida, começou a chorar devido à rejeição das promessas divinas por parte dos seres humanos. Paulo pergunta ao anjo sobre sobre quem seria este ancião e o anjo lhe responde: “Este é Enoque, o escriba da justiça. E entrei naquele lugar e imediatamente vi Elias (ou o Sol), que veio e me saudou com alegria”. Depois deste encontro inusitado o anjo diz a Paulo: “E o anjo respondeu respondeu e disse-me: disse-me: ‘qualquer coisa que eu lhe mostre aqui e o que quer que você ouça, não diga a ninguém na terra’. E ele me conduziu e me mostrou e ouvi ali as palavras que não são permitidas aos homens dizerem. E outra vez ele disse: ‘Siga-me ‘Siga-me e te mostrarei as as coisas que deves narrar publicamente e relatar” (21).
Este parágrafo contém duas cenas interligadas. Paulo encontra-se com Enoque, o viajante celestial e o revelador por excelência dos mistérios divinos. Era de esperar que Paulo o saudasse com maior reverência ou que Enoque, já considerado um ser semidivino no judaísmo, tivesse uma postura mais elitista. Pelo contrário, ambos se encontram, porém, em seguida o anjo faz
referência às tais palavras que não são lícitas de serem reveladas aos homens. Estaria o texto sugerindo que Paulo é superior a Enoque, cujas revelações já foram publicadas? Há uma reserva de revelação em Paulo, que implica também numa reserva de legitimidade? O Apocalipse de Paulo nos revela as coisas que Paulo viu e ouviu na sua viagem aos céus mencionada em 2 Coríntios, mas ainda há uma revelação secreta. É como se dessa revelação secreta emanasse a força de tudo o que Paulo narra, e que efetivamente só ele tem poder e legitimidade para revelar. O papel de Paulo, no entanto, não se restringe em revelar as coisas que ele viu nos céus. Depois que ele visita as regiões infernais, Paulo cai em desespero lamentando pelos pecadores. Em seguida ele vê o poço onde os piores pecadores são punidos. Quando os mesmos reconhecem a Paulo e a Miguel, que o guia por esta viagem, e eles clamam a Paulo por misericórdia (43). A resposta à intercessão de Paulo é surpreendente: ocorre uma grande epifania na qual se manifestam os 24 anciãos, os quatro seres viventes, e o próprio Filho de Deus que desce sobre os infernos. Ainda que os pecadores não tenham boas ações em seu favor, por causa de Paulo e de Miguel eles receberão um dia de misericórdia (44). Já nos chama a atenção o fato de que Paulo seja mencionado junto com Miguel, com o mesmo status mesmo status e e que seu clamor tenha alterado o curso dos eventos no mundo do além. Este papel de revelador especial atribuído ao apóstolo Paulo também repercute sobre a obra: a revelação de Paulo é um texto que não pretende ser listado ao lado de outros ou cujos conteúdos podem ser ponderados em sua pertinência ou não. Ao contrário, o portador da revelação, revelação esta selada até sua descoberta por esta geração (a dos primeiros leitores, mas em tese, de todos os atuais leitores), goza de prestígio celeste a ponto de mudar - pouco é verdade – verdade – mas mas num âmbito no qual os seres humanos não têm absolutamente nada a dizer. Nesta estratégia de envolver a descoberta da revelação em mistério, de colocá-la nas mãos mais confiáveis (nada menos que a do imperador) e da elevação de Paulo a um estágio angelical, de mediador junto a Deus, o Apocalipse de Paulo dá grandes passos para determinar sua recepção. 2. A construção da sociedade do além-mundo no Apocalipse de Paulo A VP é um texto enciclopédico. Nele encontramos uma viagem pelo cosmo e pela geografia imaginária, tal como concebida no mundo antigo. Ainda que o elemento estruturador geográfico prevaleça, o texto ainda busca estabelecer conexões temporais, pois aponta para o passado por meio de suas constantes referências a personagens da história bíblica e, também, aponta para o futuro ao fazer referência aos últimos fatos que se podem narrar na história mítica e escatológica: o juízo final. Trata-se, portanto, de um texto com pretensões totais, na boa tradição da mitologia das religiões e da bíblica, em especial. Ele oferece amplas coordenadas para cima, para baixo, para frente e para trás Nelas o leitor tem que marcar seu espaço, neste emaranhado de virtualidade textual. Neste mapeamento de mundo o que prevalece, no entanto, é o elemento geográfico. Você se descobre dentro da narrativa se identificando com pessoas e lugares (ou melhor: pessoas em lugares) ou sentindo repulsa por outras mal localizadas. E é aí que o texto pega seu leitor. Para entendermos a retórica da VP e a forma como o leitor navega sua própria viagem na viagem do Paulo visionário precisamos do roteiro inteiro. Para isso apresentaremos um breve esboço de toda a narrativa com o objetivo de nos localizarmos no cosmo narrativo e imaginativo da VP e de mapearmos o espaço textual que ocupam os corpos e suas punições.
Estrutura da viagem de Paulo na VP Introdução 1-2: Narrativa da descoberta do Apocalipse de Paulo (reuelacio ( reuelacio sancti pauli). pauli). 3-6: Protesto dos astros contra o gênero humano pelos seus pecados. 7-10: Advertência aos seres humanos para que louvem a Deus, especialmente quando o sol se põe. Anjos que “habitam” nas pessoas, que as “preservam e as protegem”, apresentam a Deus cada ação do dia, seja boa ou má. O JULGAMENTO DA ALMA 11-12: Um anjo mostra a Paulo para onde vão justos e pecadores, para o céu e para o abismo ( abyssum). abyssum). Paulo vê no firmamento o poder ( potestatem): potestatem): lista de espíritos dos p ecados/vícios. 13-16: Paulo pede para que o anjo lhe mostre as almas dos justos e dos pecadores deixando o mundo. Paulo vê o mundo todo e ele não era nada aos seus olhos. Viu também uma chama que se espalhava pelo mundo, era a injustiça sendo misturada pelos “príncipes dos pecadores” (a principibus (a principibus peccatorum). peccatorum). • Descrição da alma do justo deixando o corpo (14). • Descrição da alma do ímpio deixando o corpo (15). 17-18: Uma alma que deixou seu corpo há sete dias é conduzida por dois do is anjos. Ela clama a Deus. Deus lhe pergunta: o que fizeste? A alma mente. A VIAGEM DE PAULO AOS CÉUS 19-30: Paulo é levado para ver os lugares dos justos. Sobe até o terceiro céu e é colocado à porta. Nela estão escritos paradisi). Encontro com Enoque e os nomes e a aparência dos justos. Paulo entra na porta do paraíso ( interiora portae paradisi). Elias. Paulo ouve palavras que não são permitidas dizer.
• E depois, passa a ver coisas sobre as quais deve falar em público. • A descida de Paulo: do terceiro ao segundo céu, ao firmamento, ao “oceano”, à terra da promessa, onde as almas dos justos, após saírem do corpo, são enviadas por p or um pouco. Depois que a terra for dissolvida é nela que o Cristo reinará com os justos por 1000 anos. • As delícias da terra da promessa: frutos, leite, mel (multiplicados por mil, por dez mil, etc). Este é o lugar dos casados, mas os ascetas (virgens, famintos, sedentos por justiça) receberão sete vezes mais. • Paulo vê o lago Acherusio, onde Miguel batiza os arrependidos (após a morte) antes de entrarem na cidade (22). • Descrição da cidade de Cristo. • Os quatro rios. • Paulo é levado ao meio da cidade, perto dos muros: cada muro excede o outro em tamanho (29). Em cada entrada viu tronos e homens com diademas e entre eles tronos de maior glória ocupados pelos que tiveram “bondade e compreensão de coração”. Aplicaram-se Aplicaram-se a um único capítulo dos mandamentos (são homens iletrados). • No meio da cidade há um altar alto e no meio dele Davi cantando “aleluia”. Referência ao paralelismo entre o culto de Davi no sétimo céu e o oferecido na terra. Interpretação do “aleluia” em linguagem celestial. cel estial. A VIAGEM DE PAULO AO INFERNO
31-43: Paulo é conduzido para fora do paraíso e levado para contemplar as almas dos ímpios e pecadores. É levado em direção ao ocaso, em direção ao “oceano que cerca a terra”, a um lugar sem luz, triste. • Lamento de Paulo. Repreensão do anjo. Serão apresentadas punições sete vezes maiores que estas. • Longa lista de pecadores e as respectivas punições. • As descrições acima são seguidas pelo lamento de Paulo e pelo lamento dos danados. Miguel desce dos céus com seu s anjos. Os danados clamam por misericórdia. Eles reconhecem seus pecados
e sua falta de arrependimento enquanto na terra, em vida. Miguel se apresenta como o intercessor dos humanos. Buscará também um alívio para eles junto a Deus. Intercessão de Paulo (43). • Visão da corte divina (24 anciãos, 4 animais), vinda do Filho de Deus, descendo do céu. Clamor dos danados. Explanação do Cristo sobre seus sofrimentos na terra e sua f alta de arrependimento. Por causa da intercessão de Miguel e seus anjos, de Paulo e das pessoas que na terra oferecem libações (referência a intercessões pelos mortos?!) um dia (e uma noite) de descanso será concedido aos pecadores condenados(44). PAULO NO PARAÍSO COM OS PATRIARCAS, OS PROFETAS E A VIRGEM 45-51: Visão do paraíso e o encontro de Paulo com os patriarcas, os profetas, etc. • O Anjo o conduz ao paraíso: ele vê “o começo das águas”, os quatro rios (Pison, Gion, Tigre, Eufrates). A árvore de cujas raízes brotam as águas dos quatro rios. O Espírito de Deus descansa nesta árvore. Paulo vê a árvore do bem e do mal. Vê também, no meio do paraíso, a árvore da vida. Encontros de Paulo: • Com a Virgem Maria, vindo ao seu encontro com duzentos anjos. O desejo dos celestiais de se encontrarem com Paulo enquanto ainda na carne. [Parece [Par ece que temos aqui uma devoção hagiográfica h agiográfica de Paulo. Assim até o final do livro]. Maria é a que primeiro encontra os justos que morrem(46). • Encontro com os patriarcas e personalidades do Antigo Testamento. [Fim do texto latino e do grego. Segue a versão siríaca e copta]
A estrutura da narrativa é relativamente simples, apesar de seu caráter enciclopédico. A introdução insere a narrativa da VP na vida do apóstolo Paulo; em seguida vem a apresentação do tema principal da VP, a saber, o julgamento e o destino da alma após a morte (a escatologia individual); a jornada de Paulo aos céus, sua jornada ao inferno e, por fim, seu encontro com os santos e a Virgem. No que se refere à espacialidade o texto tem uma estrutura A – A – B B – A’, – A’, ou seja: Paulo alterna as viagens ao céu (terceiro céu, cidade santa, paraíso), ao inferno (com seus diferentes setores) – setores) – e e retorna ao céu (à companhia de seus habitantes). Desta estrutura podemos inferir que é dado destaque à jornada ao inferno, ainda que às jornadas ao céu seja dedicado mais espaço no texto. O fato é que o problema principal proposto pela VP é o julgamento da alma, iniciado no começo da VP, logo após a morte, e depois desenvolvido de uma forma muito particular no tema da intercessão de Paulo pelos danados. Ainda que as imagens paradisíacas sejam de fato fascinantes e que devam ter despertado e maravilhado a imaginação dos leitores da VP na antiguidade (e em todos os tempos), o problema colocado pelo texto com todo o destaque é o da salvação da alma diante do perigo que ela corre de ser levada para além das bordas após bordas após a morte. E também é na apresentação da sociedade neste além das bordas que o texto centra o seu foco, servindo as cenas paradisíacas de enquadramento e contraponto. É nas câmaras de tortura
infernais que encontramos descrições de pessoas, de posições sociais, clericais, de gênero e uma apresentação grotesca de seus corpos no mundo do além. É nessas câmaras infernais que a sociedade é retratada. Desta forma entendemos que esta seção do texto é central para entendermos a construção de mundo e a leitura da sociedade que o texto propõe. Vejamos estes elementos com mais detalhe. A partir do capítulo 31 Paulo é guiado por Miguel para contemplar as regiões infernais. O texto enfatiza que algo muito diferente está para ser visto, que há uma mudança de tom na narrativa. Após Paulo ser conduzido para o oceano que sustentava os fundamentos dos céus celi ), o anjo lhe perguntou: “Compreendes que (duxit me super oceanum qui portat fundamenta celi), estás caminhando (para fora)?” fora)?” e o anjo lhe anuncia “Vem e segue-me segue-me e te mostrarei as almas dos ímpios e dos pecadores, para que saibas como é o lugar”. E a caracterização do lugar é a de um lugar além do limite: um lugar do ocaso do sol, sobre o rio que fundamenta os céus, cujo nome é Oceano, que circunda toda a terra. Paulo narra “e como fui para o exterior do Oceano, vi e não havia ali luz, mas trevas, tristeza e angústia, e eu suspirei”. A partir daí, dos limites exteriores do mundo, Paulo começa a ver grupos delimitados de pessoas, organizadas hierarquicamente. Vale observar que estas pessoas estão não apenas fora dos espaços paradisíacos apresentados nos capítulos anteriores, mas estão também fora do espaço ordenado do mundo e da possibilidade de ordenação de sociedade humana (além do Oceano, além da luz do sol). Ser tirado dos limites do mundo habitado e conhecido para conhecer o destino dos que desobedeceram as leis é ser submetido aos experimentos grotescos e bizarros da linguagem por meio de descrições de torturas dos corpos. Nos limites do mundo e da sociedade os corpos são, portanto, representados por meio de imagens distorcidas: é nessas imagens distorcidas que entramos em contato com o mundo tal como imaginado e percebido por esses grupos religiosos. A viagem de Paulo ao inferno, que abrange os capítulos 31 a 44, pode ser estruturada da seguinte forma: Punições infernais: a) daqueles que são “nem quentes, nem frios” (leigos) ainda na borda b) dos clérigos (“sobre seus joelhos”) deixando as bordas c) homens e mulheres (leigos) mulheres (leigos) deixando as bordas d) os hereges (e pagãos) além das bordas
Desta forma o mundo do além parece estar organizado na oposição dos pecados clérigos para com os dos leigos, e dos pecados mais comuns até os imperdoáveis. Vejamos agora estes grupos, pecados e respectivas punições mais detalhadamente. d etalhadamente. a) Os que são “nem quentes, nem frios”.
A apresentação deles é organizada corporalmente, ou seja, eles são imersos em um rio de fogo até diferentes partes de seus corpos: até os joelhos, o umbigo, lábios e cabelos, respectivamente. Eles são mais profundamente mergulhados conforme a gravidade de seus pecados. Sua caracterização de “nem quentes, nem frios” se refere à Carta à Igreja de Laodiceia, no Apocalipse 3,15-16, na qual Jesus acusa esta comunidade de não ter compromisso com ele. Para nossos ouvidos esta acusação não é convincente o suficiente: por que punir alguém por ser “morno” na fé, onde está a gravidade destes pecados? Mas não é esta a sensibilidade da VP, na qual se espera compromisso total com a igreja, e compromisso numa forma muito especifica.
Este compromisso é tão marcante que a falta com ele implica em mutilações graduais nos corpos, num jogo de implicações e simbolizações bizarras. Aqueles que receberam a eucaristia e fornicaram são imersos até o umbigo. O umbigo é aqui entendido como a parte do corpo que está relacionada com o ventre e este, por sua vez, com os órgãos sexuais e, portanto, com o desejo sexual. Já aqueles imersos até os lábios são culpados de calúnia. Como calúnia é um pecado relativo ao falar, os pecadores são imersos até os lábios. No caso dos que são mergulhados até as sobrancelhas, estão os que tramam o mal na igreja e os que “fazem sinal com a cabeça consentindo, mas armam ciladas maldosas contra o seu próximo” (31). Neste caso o sinal facial enganador é que parece estar relacionado com as sobrancelhas. As formas como os pecados e as partes do corpo são postas em relação mostra como os corpos individuais e o corpo social também estão em relação. b) A igreja no inferno. A partir do parágrafo 32 há uma curiosa apresentação autocrítica da igreja no inferno. A geografia mítica da VP transporta o leitor para o norte - que se tornará lugar tradicional de punições infernais na literatura visionária vision ária medieval – medieval – e e para um lugar muito profundo. Primeiro são apresentas almas num poço, sobre as quais era derramado um rio de fogo. Estes parecem ser leigos (ou pagãos), os que “não esperaram no Senhor”. Depois desta cena abre-se abre-se uma seção de punição contra os clérigos. Eles são apresentados na seguinte ordem: um presbítero, um bispo, um diácono, um pregador (lector (lector ) e, finalmente, um poço com homens e mulheres que praticaram usura. Suas punições também são muito corporais e violentas: os intestinos de um presbítero são cortados por um instrumento ins trumento de aço com três pontas; um bispo bi spo é imerso imer so num nu m rio de fogo até os joelhos e atingido na face com pedras, sendo impedido de clamar a Deus por misericórdia; um diácono está de joelhos sobre um rio de fogo, com vermes em sua boca e narinas, clamando pela misericórdia divina; o pregador tem seus lábios e língua dilacerados; e por fim os usurários, usurár ios, homens e mulheres, são devorados devor ados por vermes. Toda Tod a a hierarquia da igreja é encontrada no inferno. E suas punições correspondem a seu status seu status e e funções: por exemplo, um bispo que não pode clamar por misericórdia para par a si mesmo. Mas o caráter de punição contra contr a uma classe específica, contra os clérigos, já está indicada no fato de que eles se encontram de joelhos sobre um rio de fogo. Que as punições dos líderes da igreja ganhem tal destaque na VP pode parecer surpreendente num primeiro momento, mas elas também podem parecer compreensíveis se considerarmos que aqui há um discurso centrado na igreja e na sua importância, e que o grau de responsabilidade que se põe sobre seus líderes deve corresponder com a importância que se projeta na instituição. Os corpos dos danados, o corpo da igreja e o corpo social são fundidos nestas visões. c) A condenação de homens e mulheres. Depois destas cenas Paulo vê “lugar muito apertado, e havia um muro cercado de fogo” (37). Novamente o campo semântico dos limites e fronteiras é enfatizado. E, como veremos, estas fronteiras são acompanhadas de novas fronteiras para o corpo na relação com a moralidade, em especial, a moralidade sexual. As visões têm como alvo os leigos (com exceção de um caso), homens e mulheres. Em uma sociedade na qual falar de “homens” pressupõe a possibilidade de inclusão de mulheres, a menção explícita de mulheres é sinal de ênfase nelas, em especial, entre os condenados. Novamente a descrição das condenações é muito concreta e grotesca: pessoas mastigam as próprias línguas (os que não prestaram atenção à pregação), tinham as faces pretas
(os adúlteros), tinham pé e mãos lacerados, estavam nus sobre gelo e neve, consumidos por vermes (os que maltrataram os órfãos, as viúvas e os pobres). Em alguns dos casos as analogias são mais evidentes, como no caso das punições nos lábios dos que pronunciaram fórmulas mágicas. Noutros casos é necessário entender os códigos culturais da sociedade, como no caso da face escura, representando desonra e vergonha dos que tinham sido infiéis no casamento. Na busca pelas inter-relações entre corpo e sociedade e entre os limites de ambos nas descrições d escrições das punições, nos deteremos em dois grupos de condenados que quebram o ritmo da estrutura da descrição. No primeiro caso, ao invés de encontrarmos a referência a “homens e mulheres”, lemos sobre um grupo de jovens vestindo negro, acompanhadas por quatro anjos que tinham correntes cadentes em suas mãos e que as colocaram em seus pescoços. Estas jovens são as que mancharam sua virgindade sem o conhecimento de seus pais. Já não bastasse nosso desconforto com esta descrição de condenação de jovens adolescentes, a próxima descrição de condenação de mulheres ainda ganha tons dramáticos surpreendentes. Trata-se Trata-se de um grupo assim descrito: “Eu olhei e vi outros homens e mulheres sobre uma pirâmide de fogo e animais selvagens os cortavam em pedaços. E a eles eles não era permitido dizer: Senhor tem piedade de nós” (40). Paulo chora diante desta cena e pergunta ao anjo sobre a identidade deles. “Elas são as mulheres que mancharam o que Deus formou em seus ventres e eles são os homens que foram para a cama com elas”. elas”. E as crianças abortadas apelaram diante de Deus “Defende“Defende-nos de nossos pais!”. Aqui nos encontramos no tratamento dado com destaque aos pecados sexuais, ênfase de toda esta sessão. A natureza destes pecados explica o porquê de jovens mulheres mereceram destaque. Por causa de sua natureza sensual as mulheres são consideradas ameaçadoras e perigosas. Além destas duas cenas, as demais desta seção também são relacionadas a pecados sexuais criando um conjunto significativo: adultério, aborto e homossexualidade. E por falar em homossexualidade, é em relação a esta temática que a narrativa se volta para os de dentro, de tal forma que alguns intérpretes acreditam poder ver referências ao grupo do autor da VP. A última punição desta série é assim apresentada: “Depois disso eu vi homens e mulheres vestidos de pano de saco cheio de piche e de fogo sulfúrico e dragões estavam em volta de seus pescoços, ombros e pés. E anjos com chifres de fogo os prenderam e bateram neles, fechavam suas narinas e diziam: Por que não conheceram o tempo apropriado para o arrependimento e para servir a Deus e por que não o fizeram? (40).
E Paulo pergunta pela identidade destes. “Eles são os que pareciam renunciar este século vestindo nosso hábito, mas os impedimentos do mundo os fez miseráveis de forma que eles não fizeram ágape sequer e não tiveram compaixão das viúvas e dos órfãos. Não acolheram o estrangeiro e o peregrino, nem ofereceram uma oblação, nem mostraram misericórdia para com o próximo. Nem mesmo por um dia a oração deles subiu pura para o Senhor Deus. Muitos impedimentos do mundo os retiveram e eles não foram hábeis para fazer o que era reto diante da face de Deus”
Sua situação era tão grave que estes condenados eram acusados até pelos outros pecadores. É difícil não reconhecer reconhecer que esta acusação é dirigida contra monges, “os que pareciam renunciar este século vestindo nosso hábito (habito (habito nostrum induentes). induentes). Apesar de constrangedora, a presença destes monges faz f az sentido uma vez que a VP apresenta um discurso centrado centr ado na igreja e que nele a igreja apareça como um único corpo. Esta referência combinaria bem com a proposta de que a VP tenha sido redigida em sua forma final no século IV, no Egito, uma vez que é nesse
contexto que surgem os primeiros movimentos monásticos. Mas daí propor que a VP tenha sido escrita por monges e para monges, conforme J. N. Bremmer, 4 o qual enfatiza um olhar monástico para todo o conjunto de pecados e condenações, nos parece um exagero. Exemplo desta postura, em nossa opinião, exagerada, é a compreensão da condenação do homossexualismo como um pecado da vida monacal. Conforme Bremmer: “se contextualizamos a ordem em um contexto monástico, sua menção faz mais sentido. Isoladas de relações heterossexuais, as tentações da carne naturalmente se dirigem para desejos homossexuais” 5. Ele também entende como sendo de origem monástica a condenação dos magos, da mesma forma que o pecado de quebrar o jejum antes da hora determinada 6. Apesar de que possa haver algum sentido nestas colocações, entendo que elas perdem o sentido do conjunto. As representações da sociedade são por demais amplas e elaboradas, tendo uma importância estrutural no relato, não tendo apenas a função pragmática de prevenir que monges cometam certos pecados específicos. Nos parece antes que leigos e clérigos são responsabilizados e colocados uns frente aos outros numa imagem idealizada da igreja e de sua presença no mundo diante do seu reflexo no mundo do além. Os pecados se referem aos mais diferentes aspectos da vida social, como o cuidado com os mais frágeis, a vida sexual, a correção dos compromissos, práticas e discursos na igreja. E estas práticas dizem respeito a homens e mulheres, jovens e adultos, leigos e clérigos. Seria equivocado entendê-las no Apocalipse de Paulo como orientações em um guia para a vida monástica. d) Os hereges (clérigos e pagãos). Aqui Paulo se encontra nos limites mais extremos de sua jornada para o mundo do além. E acompanhando desta distância, o tom do relato se torna cada vez mais dramático. Após Paulo ter visto tantas punições e tanta gente condenada, ele chora pelo destino dos pecadores. O anjo o repreende dizendo-lhe: dizendo-lhe: “Está chorando quando ainda nem viu as maiores punições? Segue-me Segue-me e você verá aqueles que são sete vezes maiores que estes”. E a narrativa destaca o grupo a ser descrito em seguida por seguida por meio da posição geográfica isolada dos mesmos: mesmos : “E ele me levou para o norte (do lugar das punições) e me colocou sobre um poço e eis que ele estava selado com sete selos (41)”. Isso indica que se trata de um lugar muito isolado e que as pessoas ali encarceradas en carceradas não serão mais lembradas diante de Deus. O grupo de pessoas que Paulo vê naquele poço está relacionado com o que a VP considera serem as doutrinas centrais do cristianismo: “Eles são os que não confessaram que Cristo veio em carne e que foi gerado pela virgem Maria e que o pão e o cálice de benção não são o corpo e o sangue de Cristo” (41). Estas referências a doutrinas levantaram questões sobre quem seriam os hereges do texto e quais as heresias que seriam refutadas. Eu não sou da opinião de que haja grandes discussões teológicas em torno a doutrinas e suas formulações corretas. Este não é o objetivo da VP e sua linguagem narrativa e imaginativa não pretende competir com a precisão e sofisticação dos tratados sobre os dogmas. A referência a duas doutrinas centrais do cristianismo neste período - a vinda em carne do Cristo, nascido da virgem Maria e a presença do corpo e do sangue de Cristo na eucaristia – eucaristia – querem querem marcar limites externos (no caso, mínimos) da pertença ou não à igreja. Estas referências a doutrinas como um padrão mínimo (o Cristo, e o rito mais importante, a eucaristia) fazem parte do mesmo projeto de delimitação da igreja nas bordas do corpo, da sociedade e da geografia cósmica. Ou seja, ao invés de estar preocupado com doutrinas, o texto está cultivando as bordas, mas aqui, apesar da linguagem apocalíptica, não como um grupo sectário do final dos tempos, mas ao apresentar um grande corpo social, a igreja,
a partir do qual os corpos concretos são regidos neste mundo e no mundo do além. As referências a doutrinas básicas da igreja (e de muitas de suas vertentes, de tão elementares) também definem as fronteiras mais externas (aqui simbolizadas pelo poço selado sete vezes). Os de fora, os pagãos ficariam evidenciados pela ausência aus ência de fé nestes ensinamentos fundamentais. fund amentais. A VP faz a igreja ocupar não só o lugar central no além-mundo, mas todos os lugares. Os corpos são deslocados e desmembrados na sua relação com este grupo. A geografia mítica da VP está a serviço desta ocupação simbólica. E é no compromisso com o ethos dos cristãos que a ocupação dos espaços no além-mundo se define. Por isso a VP tem que executar o seu projeto narrativo atentando cuidadosamente com as diferentes dimensões do corpo: dos corpos concretos, do corpo social e do corpo do além. E como a linguagem mítica dos apocalipses é dotada de pretensões de poder e de controle, nenhum espaço do corpo individual (micro) e do corpo social (macro) pode ficar intocado. A VP foi um sucesso no mundo antigo e uma leitura muito cultivada no mundo medieval. Suas imagens foram fundamentais para a construção do imaginário do além-mundo no cristianismo. É impossível pensar no mundo estratificado das almas sem fazer referência a este escrito. Seu impacto na cultura, porém, foi mais além . A VP também forneceu uma grande narrativa sobre a igreja e seu ethos no cosmos. E sua linguagem tomada de elementos grotescos e suas narrativas oníricas também nos propiciaram um exercício de experimentação bizarra sobre nós e nossos corpos. A VP cria, dessa forma, uma grande narrativa, que desempenha a função de mapa, no qual o cristianismo busca entender seu lugar no mundo – mundo – pensamos mundo aqui também no sentido mítico - em tempos de fusão com o poder imperial. Mas, a partir dessa afirmação, reduzir o Apocalipse de Paulo a um escrito de propaganda ou de cooptação com o poder é mostrar incompreensão com o fato de que suas imagens e enredos provm da cultura popular, tendo origem nas fantasias escatológicas e do além-mundo de judeus e cristãos da antiguidade, num amálgama de idéias religiosas e mitológicas do mundo mediterrâneo. Os personagens vão dos heróis do passado bíblico (com destaque para a imagem idealizada de Paulo de Tarso), passando pelo suspeito e pouco comprometido clero do tempo presente, até os o s leigos que correm corr em o risco de transgredirem as fronteiras, no aqui e depois no além. Os temas mais importantes nos parecem ser as ameaças contra a igreja, contra suas práticas e ensinamentos, e a sexualidade humana entendida como um espaço perigoso, no qual se perdem homens e mulheres. Para construir um mundo cristão, no qual a igreja se sinta comprometida e segura, a VP alarga suas fronteiras, sem lhe relativizar as bordas e as transgressões às mesmas e o faz na junção de temporalidades inicialmente separadas, mas aqui juntadas com maestria: o tempo escatológico do indivíduo (a morte) e o tempo escatológico cósmico (o juízo final). Bibliografia de referência: BREMMER, J, N Christian Hell: From the Apocalypse of Peter to the Apocalypse of Paul. Numen 56, p.310, 2009 BREMMER, Jan N. & CZACHESZ, István (eds). The visio pauli and the Gnostic Apocalypse of Paul. Leuven: Peeters, 2007. BYNUM, Caroline Walker. The Resurrection of the Body in Western Christianity, 200-1336. 200-1336. New York: Columbia University, 1995. DINZELBACHER, Peter. The Way to the Other World in Medieval Literature and Art, in: Folklore 97.1 (1986), p. 70-87. DINZELBACHER, Peter & KLEINSCHMIDT, Harald. Seelenbrücke und Brückenbau im mittelalterlichen England, in Numen 31.2 (Dec., 1984), 242-287.
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O texto mais completo e mais antigo é a tradução latina encontrada por James (dar nome completo) em Paris, em 1893. Esta descoberta levou ao estabelecimento do texto L1, formado por este manuscrito, chamado de P (Paris, Bibliotèque Nationale), Nationale), que data do oitavo ao décimo primeiro século, e do manuscrito St. G. (St. Gallen, Kantonsbibliothek Gallen, Kantonsbibliothek , Vadianische Sammlung), que data do nono século. L1 apresentam uma versão completa do texto, acrescido do prefácio de autenticidade. Logo a obra recebeu traduções ao siríaco, ao cópta, ao armeno, ao eslavo e ao russo antigo. No período medieval o Apocalipse de Paulo foi traduzido para as mais diferentes línguas europeias, incluindo as línguas escandinavas. Mais de trezentos manuscritos desses sobrevivem. O Apocalipse de Paulo foi sem dúvida um dos apócrifos de maior popularidade do mundo antigo e medieval. Ver mais sobre a história dos manuscritos e da transmissão textual em Silverstein, Theodore e Hilhorst, Anthony. Apocalypse of Paul.A New Critical Edition of Three Long Latin Versions.Genebra: Patrick Cramer Éditeur, 1997, p.11-21. 2 As traduções são minhas, a partir de L1 (Paris), (P aris), segundo a edição de Silverstein, Theodore e Hilhorst, Anthony, Apocalypse of Paul. 3 A pesquisa crítica reconhece o fato de que esta introdução é secundária em relação ao conjunto do texto do Apocalipse de Paulo, ou seja, enquanto o corpo do texto tem estratos que podem ser datados até o segundo século, a introdução, que tem por objetivo legitimar a autoridade do texto e reforçar sua autenticidade deve ser datada do final do terceiro até o início do quarto século. Ainda assim há diferenças na datação do prólogo da VP. Silverstein e Hilhorst entendem que a referência ao consulado de Teodósio o Jovem e Flávio Constâncio devem indicar o ano 420. Mas de acordo com Piovanelli (The Miraculous Discovery of the Hidden Manuscript, or the Paratextual Function of the Prologue to the Apocalypse of Paul, in: Bremmer, Jan N. & Czachesz, István. (Eds.). The Visio pauli and the Gnostic Apocalypse of Paul . Leuven: Peeters, 2007, p.34.) esses autores se
equivocaram ao desconsiderar que houve um erro no manuscrito, afinal Teodósio Augusto o Jovem foi cônsul de 408-450, enquanto Cinegio o foi em 388. A leitura correta devia ser então: “Teodósio Augusto (I, 379 -395) e Cinesius (cônsules juntos em 388)”. Isso anteciparia a data de composição do prólogo. 4 BREMMER, J, N Christian Hell: From the Apocalypse of Peter to the Apocalypse of Paul. Numen 56, p.310, 2009. 5 BREMMER,, p.311. 6 BREMMER, p.312. * Doutor em Teologia pela Universidade de Heidelberg, Alemanha (1991), Pós-doutorado em História na UNICAMP, professor titular da Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.
CAPÍTULO 2 ALÉM-MUNDO NO ANTIGO ISRAEL E NAS R ELIGIÕES ELIGIÕES DO ORIENTE PRÓXIMO Á GABO GABO BORGES DE S OUSA OUSA* Introdução o pensarmos no Além-Mundo temos que ter em mente dois aspectos: 1. Uma dimensão extraterrestre, normalmente pensada como morada da divindade, que se exime das delimitações do tempo e do espaço, onde se afirma nossa existência, mas que não necessariamente seria a dimensão do ser após a sua vida terrestre. Neste caso incluiríamos uma compreensão de céu, olimpo ou outra dimensão, que encontra sua apresentação nos mitos; inclusive, nos mitos cosmogônicos, que são as narrativas de criação do mundo. 2. Uma dimensão, que poderia estar ligada à primeira, porém não necessariamente, para onde se estenderia a “existência”, que se mantêm após a morte. Neste caso, esta dimensão dimensão teria diversos aspectos; dentre eles, a ideia do retorno ao estado original. Há, ainda, a compreensão de que esta dimensão dependeria da maneira como a “existência terrestre” foi conduzida, pois esta geraria uma identidade com a divindade ou um distanciamento tal, que implicaria em uma continuidade de “existência” marcada pelo sofrimento da penalidade ou da ausência da divindade, podendo ser a própria negação desta “existência” estendida. Estes dois aspectos vão estar de alguma maneira regendo nossa percepção, pois somos influenciados pelo pensamento do cristianismo, que traz consigo estas compreensões. Porém, devemos destacar que o Antigo Testamento é pré-cristão, ou seja, é ele que influencia o pensamento cristão e não o contrário. Talvez a nossa maneira de ler o Antigo Testamento, a partir dos testemunhos no Novo Testamento, não nos ajude a perceber, com certa clareza, o que há de afirmação sobre o Além-Mundo, uma vez que temos a expectativa de vermos nele as afirmações conhecidas nos diversos corpos doutrinários ou mesmo no Novo Testamento. Gostaria de ressaltar que a preocupação com a vida após a morte não é forte no Antigo Testamento; temos ali mais uma preocupação com a vida e sua condução, ou seja, com a imanência e seus condicionamentos de tempo e de espaço, do que com uma dimensão metafísica, ou mesmo metahistórica, de uma expressão do ser para além da vida. Posso até afirmar que a morte, no Antigo Testamento, não é necessariamente interrupção da vida, como muitas vezes queremos entender, mas parte integrante dela. Tendo ela, contudo, o seu tempo; busca-se, assim, evitar uma precocidade. Então disse o SENHOR: Não contenderá o meu Espírito para sempre com o homem; porque ele também é carne; porém os seus dias serão cento e vinte anos. (Gn 6,3).
A
Há a compreensão de um tempo limite na existência humana, pelo seu próprio condicionamento condicionamento (porque ele também é carne). carne). A narrativa da morte de Abraão nos ajuda perceber isto: E Abraão expirou, morrendo em boa velhice, velho e farto de dias; e foi congregado ao seu povo (Gn povo (Gn 25,8). Uma morte em “boa velhice”, já satisfeito, saciado dos dias; como alguém que senta à mesa para uma refeição e para de comer ao sentir-se saciado; assim é a existência humana, na compreensão dos textos do livro de Gênesis. Parar a vida sem que se esteja saciado e em boa velhice é considerado morte precoce, a isso se deve evitar. Já aqui percebemos que a compreensão de uma “vida eterna” não é uma preocupação primeira. Vamos voltar a este texto quando pensarmos como era compreendido o pos o pos mortem, mortem, que aqui afirma ser “congregado ao seu povo”. Ser humano como “ser existente”
Pensar em Além-Mundo sem entender alguns elementos básicos da antropologia do Antigo Testamento não nos possibilitará perceber a compreensão de morte e “vida além-t além-túmulo”. úmulo”. Diferente da compreensão grega, que entende o ser humano de maneira dicotômica ou tricotômica, o Antigo Testamento o apresenta como uma “unidade dinâmica”, sendo ele um ser em relação inserido em uma realidade entrelaçada (ein (ein Wesen in Verhältnis in einer vernetzte 1 Wirklichkeit ) . Neste sentido, os conceitos que traduzimos por alma (nephesh (nephesh), ), espírito (ruah (ruah), ), carne (basar (basar ), ), coração (leb (leb), ), entre outros, não designam uma parte do ser humano, mas um aspecto de sua própria humanidade. humanidade.2 Neste sentido, a morte seria, em princípio, a negação da existência humana. Independentemente das razões para a afirmação da limitação da vida do ser humano, o texto de Gn 6,3 nos traz, com certa clareza, a compreensão da morte. Pois ela consiste na ausência do fôlego da vida do Espírito de Deus no ser humano, que é a força dinâmica do ser. Então disse o SENHOR: Não contenderá o meu Espírito para sempre com o homem; porque ele também é carne; porém os seus dias serão cento e vinte anos (Gn 6,3) A ausência da força dinâmica do ser, que dá movimento à existência, é o princípio do que o Antigo Testamento entende por morte, pois o ser humano é, também, carne, ou seja, ele é frágil, falível. O autor de Eclesiastes nos ajuda a entender melhor o sentido da morte na existência humana. E o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, Deus , que o deu (Ec deu (Ec 12,7). “O ruach é ruach é o componente que ativa o neshamach, neshamach, dando ao basar vida vida e chamando o nephesh 3 a existência” .É o Espírito de Deus, que possibilita o fôlego (neshamach (neshamach), ), tornando o ser humano uma “alma (nephesh (nephesh)) vivente”. Do ponto de vista físico, o corpo, a carne, que é pó, retorna ao seu estado de origem. Contudo, esta compreensão de morte não nega um algo mais, para além dela. Pois, o texto de Gn 25,8, acima citado, afirma que Abraão juntou-se juntou- se ao seu povo. Há, pelo menos, três interpretações mais conhecidas deste texto: 1. Abraão teria sido enterrado no túmulo de sua família; 2. Abraão teria se encontrado com os seus no sheol no sheol , lugar dos mortos; 3. Abraão é agora contado entre os mortos e não entre os vivos; ele pertenceria agora ao grupo dos pais que já se foram, dos quais ficou a lembrança lembrança4. Percebemos que a compreensão de morte no Antigo Testamento parte da objetividade observada na experiência e não da especulação do que poderia ser para além da vida.
Há algumas observações que devemos ressaltar quando lemos os diversos textos que falam do sheol , como o submundo dos mortos. Pois, parece que na compreensão do Antigo Testamento, nem todos pertencem a este “lugar”; chama-nos chama-nos a atenção que descrição de morte para Abraão é o acolhimento ao seu povo, não uma viagem ao submundo dos mortos. Os mortos tremem debaixo das águas, com os seus moradores. O Sheol está nu perante Ele, e não há coberta para Abadom (Jó 26,5-6). Na visão de mundo do antigo Israel o Sheol está abaixo do oceano subterrâneo, que pode ser chamado também de Abadom de Abadom,, o mundo dos mortos. O Submundo dos mortos no Antigo Testamento O antigo Israel vivia no contexto de relações com muitos outros povos. Desde sua origem havia uma grande influência dos Egípcios; mais tarde, dos Cananeus, dos Babilônicos e, até mesmo, dos Gregos. Por isso, podemos imaginar que sua compreensão do mundo dos mortos não era muito diferente da compreensão dessas culturas. O que havia de especial para o antigo Israel era a relação com a Divindade de sua devoção; pois esta relação basicamente determina a maneira como se percebe o além. Havia no imaginário do antigo Israel a ideia de que o mundo dos mortos estaria nas profundezas, como um submundo. s ubmundo. Este seria um “lugar” de escuridão, onde a sombra representa a ausência de luz. Porventura não são poucos pou cos os meus dias? Cessa, pois, e deixa-me, deixa- me, para que por um pouco eu tome alento. Antes que eu vá para o lugar de que não voltarei, à terra da escuridão e da sombra da morte (Jó morte (Jó 10,20-21). Puseste-me no abismo mais profundo, em trevas e nas profundezas (Sl profundezas (Sl 88,6). Trata-se Trata-se de um “lugar” de onde não há não há retorno. Aqueles, que ali adentram, ficam encarcerados em suas portas. Assim como a nuvem se desfaz e passa, p assa, assim aquele que desce des ce ao Sheol nunca tornará tornar á a subir (Jó 7,9). Há uma entrada, como que um portão, que cuida para que este “lugar” seja de per manência. manência. Eu disse: No cessar cessa r de meus dias ir-me-ei às portas por tas do Sheol; já estou privado pr ivado do restante de meus anos (Is anos (Is 38,10). Porventura, te foram reveladas as portas da morte ou viste essas portas p ortas da região tenebrosa? tenebros a? (Jó 38,17). Ali também é “lugar” do silêncio. Se o SENHOR não tivera ido em meu auxílio, a minha alma quase que teria ficado no silêncio (Sl 94,17). Há algum movimento neste “lugar”, pois se estabelece como espaço de recepção dos mortos. O Sheol desde o profundo se turbou por ti, para te sair ao encontro na tua vinda; despertou por ti os mortos, e todos os chefes da terra, e fez levantar dos seus tronos a todos os reis das nações (Is nações (Is 14,9). Eles, porém, não sabem que ali estão os mortos, que os seus seu s convidados estão nas n as profundezas do Sheol (Pv 9,18). Contudo, este “lugar” não tem produção, projeto de futuro, entendimento da vida.
Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura (sheol), para onde tu vais, não há obra nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria alguma (Ec 9,10). Estas observações nos ajudam a perceber que o imaginário refletido no Antigo Testamento não está muito distante dos imaginários de Além-Mundo de outras culturas, como o Hades Hades grego. Trata-se de uma negação da existência em sua dinâmica e em sua possibilidade de construção da vida, nos diversos aspectos e na complexidade de relações que ela representa. Como destacamos acima, o Antigo Testamento está muito mais preocupado em discutir e pensar a vida, do que refletir sobre a morte; contudo, não se exime desta discussão, considerando a morte como uma parte integrante da vida, pela qual todos haverão de passar, mas cada um na particularidade de sua existência. A ideia de uma vida após a morte e (ou) ressurreição só vem surgir nos textos do Antigo Testamento bem mais tarde, mais especificamente com Daniel, já no II Sec. a.E.C. Antes disso a morte se caracterizava pelo “dormir com os pais” ou ingressar no mundo dos mortos. É importante, ainda, ressaltar que, apesar do antigo Israel sofrer, naturalmente, essas influências das culturas ao seu redor, ele estabelece alguns aspectos nesta visão de Além-Mundo que lhe são próprios. Como observamos acima, há o aspecto da relação do povo com Jahwe com Jahwe,, o seu Deus, Aquele que lhe lhe dera a identidade: “Eu serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo”. Esta relação possibilita elementos próprios no imaginário do Além-Mundo, consequentemente na vida após a morte. Vida após a morte no Antigo Testamento Já observamos que parece haver uma diferença entre estar unido aos pais e estar no sheol no sheol . A ideia do sheol do sheol traz traz um imaginário negativo, como vimos acima. Gostaria de pensar um pouco sobre ressurreição, ressaltando a compreensão de um pos um pos mortem e observar rapidamente as narrativas de arrebatamento de Elias e Enoque. O Antigo Testamento só vai desenvolver uma ideia de ressurreição escatológica individual, ou particular, talvez na segunda metade do Sec. III a.E.C. ou mesmo no II Sec. a.E.C. com o movimento apocalíptico de Daniel. Contudo, esta compreensão surge a partir de tradições, não apenas vindas de outras culturas, como do Egito, por. exemplo, mas também das tradições internas de movimentos como o movimento profético, pois é este movimento que, no Antigo Testamento, inaugura esta experiência. O movimento profético, porém, não discute uma ressurreição escatológica, mas a dinâmica do poder de Deus, Jahwe, Jahwe, que é capaz de trazer de volta à vida aquele, cujo nephesh, nephesh, o havia deixado. Podemos perceber isto na narrativa, na qual a morte do filho da viúva de Sarepta é declarada. E clamou ao SENHOR, e disse: Ó SENHOR meu Deus, também até a esta viúva, com co m quem me hospedo, afligiste, matando-lhe o filho? ( 1Rs 1Rs 17,20). nephesh, ou seja, seu fôlego de Entretanto, não é dito que o espírito se afastou dele, mas o seu nephesh, vida. Então se estendeu sobre o menino três vezes, e clamou ao SENHOR, e disse: Ó SENHOR meu Deus, rogo-te que a alma (nephesh) (nephesh ) deste menino torne a entrar nele. E o SENHOR ouviu o uviu a voz de Elias; e a alma (nephesh) do menino tornou a entrar nele, e reviveu (1Rs 17,21-22). Esta narrativa deixa claro que para o movimento profético, na historiografia deuteronomista, a ressurreição é o retorno à vida, à existência em seus condicionamentos do mundo e da história,