UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA PSICOLOGIA SOCIAL II
RESENHA CRÍTICA OS ESTABELECIDOS E OS OTSIDERS Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade
Discentes:
Alessandra Galina de Souza
Caroline Christine Garcia do Nascimento
Cuiabá, 01 de agosto de 2013.
Os Estabelecidos e os Outsiders – sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade O estudo dos sociólogos Norbert Elias e John L. Scotson apresenta uma minuciosa e original investigação sobre o cotidiano de uma pequena aldeia operária da Inglaterra, denominada Winston Parva, cujo texto possibilita uma interlocução com a Psicologia Social, que toma como objeto de estudo o comportamento dos indivíduos em interação. Neste sentido, o encontro e a interação social, bem como a interdependência entre os indivíduos fazem parte da investigação da psicologia neste contexto, atuando frente à percepção social, a comunicação, as atitudes, as mudanças de atitudes, o processo de socialização, os grupos sociais e os papéis sociais. No texto, o autor expõe que sua pretensão inicial fora estudar os desníveis de delinqüência juvenil e violência numa pequena comunidade da Inglaterra, contudo, percebeu que tais problemas derivavam de arranjos sociais latentes pautados em relações de poder que deflagravam comportamentos sociais manifestos. Com este novo olhar, Elias e Scotson passam a buscar uma compreensão acerca da lógica da configuração social e das relações de interdependência observadas na cidade, onde violência, discriminação e exclusão social são características que depreendem da análise social do local. Vale ressaltar que a situação verificada em Winston Parva é observável em inúmeras outras cidades em processo de industrialização. Da compreensão das relações cotidianas intrínsecas dos dois grupos locais, do entendimento do jogo de poder encoberto, destacou-se: os
"estabelecidos" ,
cuja
denominação esta vinculada ao seu tempo de residência local. Eles constituíram ali três gerações de ascendentes, fator este que lhe atribuía o poder de detentora de direitos especiais, inclusive o de não aceitar o segundo grupo, pois seus integrantes se julgavam dotados de um carisma grupal que os tornavam “superiores”. Já os “outsiders”, o grupo dos que chegaram chegara à região em uma fase recente da industrialização, ou seja, os forasteiros, foram estigmatizados pelos moradores mais antigos, considerados como sendo de menor valor humano, moral ou virtude, desprovidos de carisma. Mesmo após um bom número de anos esse grupo continuava sendo visto e tratado pelos primeiros como sendo estrangeiro e intruso, e pior, passaram a se reconhecer desta forma.
O tempo, então, era a única diferença entre os dois grupos que formavam uma comunidade relativamente homogênea, considerando renda, educação, ocupação, religião, língua e nacionalidade. Uma forma de entender este processo é explicada pelo potencial de coesão, tomando-o como ponto inicial do controle social. O tempo de convivência entre os integrantes dos estabelecidos (integração) e as vivencias culturais instituíram um potencial de poder frente a falta de coesão do outro grupo, formado de indivíduos oriundos de locais variados, sem identidade grupal e sem referencias. Esta coesão é o ponto primordial da estigmatização, onde o grupo estabelecido tende a potencializar as características ruins do grupo outsider e, em contrapartida, sua auto-imagem é modelada conforme suas poucas características exemplares. Forma-se assim o “valor humano inferior”, respaldado no estigma social imposto pelo grupo dominante como modo de manutenção desta condição. O preconceito, o estigma e o rótulo de inferior garantem o distanciamento de ambos os grupos, numa espécie de barreira emocional com uma absorção subjetiva. Porém, para que esta condição de poder, de status social se perpetue é preciso que todos os integrantes do grupo dos estabelecidos se impliquem no processo de cumprimento de normas impostas por eles mesmos, garantindo assim não só a manutenção do grupo , mas sua “pureza”. Percebe-se então que também existe uma forma de controle sob a conduta dos integrantes deste grupo e uma sujeição a tais padrões específicos, amenizados por uma sensação de recompensa. O preço pago por pertencer a este grupo é a manutenção de sua identidade, limitando a esfera de liberdades de ações pessoais. Neste ponto, vale um adendo referente à diferenciação existente entre o preconceito individual e a estigmatização grupal praticada em Winston Parva. A primeira tem sua raiz na personalidade dos indivíduos, enquanto a segunda, a qual um grupo rotula negativamente outro, tem como elemento fundamental a instabilidade do equilíbrio do poder entre agrupamentos sociais distintos. Quanto aos outsiders, cuja anomia é a censura mais freqüente, estes são apontados como indignos de confiança, indisciplinados e desordeiros, instaurando sintomas de inferioridade humana que refletem em sua estrutura de personalidade. Não havendo possibilidade de caracterizá-los de tal forma, o grupo dominante instaura outras maneiras de distingui-los, humilhá-los e oprimi-los, se valendo de valores referentes a
pobreza, higiene pessoal ou limpeza. Esta situação demarca bem o sentimento de que o contato de um grupo com o outro pode acarretar contaminação. Um fator ainda mais nocivo e citado em alguns exemplos no texto, se refere às pessoas sob as quais tais questões estão impostas, que acabam por absorver tais impugnações e criam uma auto-imagem de si mesmas respaldadas em tais afirmações inescrupulosas, reconhecendo-se como incapazes, indignos. Os autores chamam a atenção às explicações dadas sobre as relações de grupo voltadas a diferenças raciais, étnicas, religiosas, entre outras. Tais relações de tensões e conflitos ultrapassam a cor da pele, a crença ou a língua, alcançando os mesmos níveis de dominação e manutenção de controle ocorrido entre os estabelecidos e os outsiders. Mais que preconceito, este distanciamento se estabelece numa dominação de “superiores” sob “inferiores”, mesmo que seus
integrantes pertençam a uma mesma
raça, credo ou cor. Isso vai além de uma ideologia de preconceito racial, que se restringe apenas nas diferenças físicas, sotaques, entre outros. Mesmo que tais diferenças existam, estas são somente reconhecidas como insígnias, formas de identificação dos integrantes do grupo, enquanto a sociodinâmica da relação entre grupos interligados na condição de dominação é determinada por sua forma de vinculação e não por qualquer característica definida. Considerando o exposto, então qual seria a maior privação sofrida pelo grupo outsider? Elias e Scotson (2000) ao questionar os estigmas sofridos pelos outsiders, lançam algumas dificuldades - “A principal privação sofrida pelo grupo outsider, não é a privação de alimento. Que nome devemos dar-lhe? Privação de valor? Privação de sentido? Privação de amor-próprio e auto- respeito?”( 2000:35) Qual é a mecânica desta estigmatização? O autor afirma que a supremacia dos aspectos econômicos tem acentuação máxima quando o equilíbrio de poder entre os grupos „rivais‟ é
mais desigual. Quando os grupos outsiders têm que viver no nível de
subsistência, a soma de sua receita predomina sobre todas as suas outras necessidades. Quanto mais se colocam acima do nível de subsistência, mais a sua própria renda serve de meio para atender a outras aspirações humanas que são a satisfação das necessidades animais ou materiais mais elementares, e mais agudamente os grupos nessa situação tendem a sentir a inferioridade social. Nesta situação, a luta entre estabelecidos e outsiders deixa de ser uma simples luta para aplacar a fome e obter meios de
subsistência física e se transforma numa luta para satisfazer também outras aspirações humanas. Esta exclusão operada pelo grupo dos estabelecidos fortalecia a identificação e certificação da sua superioridade. Este estigma só poderia ocorrer com a instalação de uma estrutura que garantisse o poder de um grupo sobre o outro, neste caso, o tempo de permanência sobre esta comunidade na Inglaterra era garantia de tradições e comportamentos já estabelecidos como normas aceitáveis e progressivas. As fofocas, tecnologia utilizada pelo grupo dos estabelecidos com função de denegrir a imagem dos outsiders, fazia muito sentido. Pois as fantasias elaboradas pelo grupo tido como superior exercia tamanha força que saia do campo da imaginação para um estigma material. Legitimando-se a cada nova situação em que os grupos outsiders se identificavam com as imagens lançadas sobre sua comunidade. Elias e Scotson entendem a mecânica da estigmatização a partir do papel desempenhado pela imagem que cada pessoa faz da posição de seu grupo entre outros e de seu próprio status como membro desse grupo. Os que “estão inseridos” participam
desta tradição, mas pagam um preço - a submissão às normas específicas do grupo. O pertencimento tem um preço pago individualmente através da sujeição de sua conduta a padrões específicos de controle dos afetos. Os membros do grupo estigmatizado são tidos como não observantes destas normas e restrições, sendo vistos, coletiva e individualmente, como anomios 1 que põe em risco as defesas do grupo estabelecido, gerando um “medo da poluição”. O contato com outsiders ameaça o “inserido” de ter
seu status rebaixado dentro do grupo estabelecido, podendo perder a consideração dos membros deste. O cerne das relações intergrupais é a distribuição das chances de poder, como afirma Elias: “O problema é saber como e porque os indivíduos percebem
uns aos outros como pertencentes ao mesmo grupo e se incluem mutuamente dentro das fronteiras grupais que os estabelecem ao dizer „nós‟, enquanto ao mesmo tempo
excluem outros seres humanos a quem percebem como pertencentes a outro grupo e a quem se referem coletivamente como „eles‟.”(2000:37-38) 1
Estado de ausência;ausência de leis; normas ou r egras de organização. Anotações disciplina Psicologia social II, ministrada dia 18/07.
Por constituírem um padrão de vida juntos por um determinado tempo, o grupo estabelecido possuía uma coesão, que faltava aos recém-chegados, e este distanciamento era a marca condicional para todas as outras sujeições do grupo outsider, ampliando a influencia dos estabelecidos, vista que as fofocas, ferramenta utilizada pelos moradores da aldeia contra os moradores do loteamento, surtiam o efeito regulador como uma espécie de anunciação e propagação de regras. O grupo de estabelecidos já havia atravessado o processo grupal que lhes conferia o peso moral da tradição. A comunhão de sentimentos e simpatias torna-se fundamental para compreender a lógica e o sentido da formação do „nós‟ que eles usavam para se referir umas às outras. Essa identificação temporal justificava em partes o distanciamento em sua vida particular com pessoas de áreas inferiores da localidade, a quem viam como menos respeitáveis e menos cumpridoras das normas do que eles. Os autores fazem referencia à Freud, no que concerne as funções de autocontrole entre indivíduos, destacando que as camadas da estrutura de personalidade são ligadas mais direta e estreitamente aos processos grupais de que as pessoas participam, como a imagem do nós e o ideal de nós, ficaram fora do horizonte de Freud, cujo conceito de homem continuou a ser de um indivíduo isolado na medida em que as pessoas pareciam estruturadas e as sociedades formadas por pessoas interdependentes afiguravam-se um pano de fundo, uma realidade não estruturada, cuja dinâmica não exercia nenhuma influência no ser humano individual. (2000:43-47) Podemos afirmar que as categorias, estabelecidos e outsiders, se definem na relação que as nega e que as constitui como identidades sociais. Os indivíduos que fazem parte dessas comunidades estão ao mesmo tempo unidos, mas também separados por uma relação de interdependência grupal. Elias e Scotson destacam a sociodinâmica das relações grupais, evidenciando, mesmo que em uma comunidade pequena, a genealogia da cristalização destas relações entre estabelecidos-outsiders, tornam-se características de constrangimento e padrões de autocontrole que vão sendo ampliadas pela dimensão temporal dos estabelecidos contra os outsiders. Qualquer grupo que possa ameaçar este status superior é visto como transgressor, sujo, causando entre os estabelecidos a irritação de não serem respeitados como padrão normatizador da “melhor forma de se viver”.
Os estabelecidos veem os outsiders como
uma ameaça a sua posição, por isso, contestaram ao se sentirem expostos a um ataque contra o monopólio das fontes de poder, o carisma coletivo e suas normas grupais.
Criaram um escudo contra os recém-chegados, excluindo-os e humilhando-os. Condição que dificilmente os outsiders teriam na intenção de agredir os antigos residentes, mas foram colocados em uma séria de situação adversa, que em certo momento legitimava as fofocas anômicas lançadas sobre eles. “O drama todo
foi encenado pelos dois lados
como se eles fossem marionetes”(2000:50) encerra Elias e Scotson, sobre a observação
das relações de poder conferidas à estes grupos.
Considerações: A descrição da comunidade abordada pelos autores, bem como todo o estudo das relações de poder a partir de um arsenal de superioridade e desprezo grupal, só se diferenciavam no tocante ao seu tempo de residência no lugar, pode ser expandido tomando-o como um tema humano universal. Uma situação fácil de ser identificada considerando: homens e mulheres, brancos e negros, protestantes e católicos, moradores de um bairro nobre e periferia, empresário e trabalhador, e mais inúmeras relações de tensão e conflito geradas por detenção do poder. Estas relações de poder, muitas vezes erroneamente denominadas como preconceito racial, perpassando ideologias, na realidade apresenta raízes mais profundas e marcantes, relacionadas com a relação de poder e dominação entre grupos de “estabelecidos” e “outsiders”. São questões que vão além da
cor, raça ou crença e que
alcançam resultados devastadores quando os próprios “dominados” passam a se reconhecer como indignos, sujos, indisciplinados e desordeiros. Como esperar melhores comportamentos de um grupo cuja reputação é ruim? Seriam a violência e a criminalidade algumas formas de se fazerem ouvir? De serem percebidos? Os autores conduzem o texto de maneira a responder que sim, e aponta a tradição cultural própria como um fator preponderante para modificar o impacto da situação nos membros do grupo outsiders. A constituição de uma coesão grupal. Voltando a Psicologia Social para este contexto, a qual se abarca da investigação das relações interpessoais e das interações entre o indivíduo, esta deve se implicar no processo de identificação da dinâmica da linguagem e as percepções do indivíduo nestas relações de poder, auxiliando no entendimento dos comportamentos manifestos, muitas vezes marginalizados. É de responsabilidade da Psicologia Social a promoção e o desenvolvimento de intervenções nos espaços comunitários e institucionais para verificar quais relações são estabelecidas pelos indivíduos no grupo,
buscando mitigar o sofrimento grupal e individual. E, segundo já citado anteriormente, atuar na formação de uma coesão grupal, com referencias, cultura, identidade.
Referencial Bibliográfico
ELIAS, Norbert. Estabelecidos e outsiders . Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000 (Introdução: pp.19-50).
LANE, S.T.M. O que éPsicologia Social? São Paulo: Brasiliense, 1981. _____________. Linguagem, pensamento e representações sociais. In: LANE, S.T.M.; CODO, W. (Orgs.), Psicologia Social: o homem em movimento São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 32-39.