JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO
O
DIREITO
INTRODUÇÃO E TEORIA GERAL
Uma Perspectiva Luso-Brasileira
TÍTULO
A
Regra
Jurídic a
C AP ÍT UL O ! 1
Caracterização
108. A regra como critério I — Estudan do anteriormente a ordem jurídica, dissemos que esta, em todo o caso, se exprime por regras. Ocorre agora estud ar especificamen te a regra jurídica. E aqui, algumas reflexões de base vãonos levar a afastar das ideias correntes. Toda a regra é necessariamente um critério: com esse critério podemos ordena r e apreciar os fenômenos. Como toda a regra, a regra jurídica pode ser considerada um critério de apreciação. Mas esse critério pode ser ainda: — de conduta — de decisão A regra jurídica será regra de conduta se der o critério por que se pautarão condutas humanas; será regra de decisão se der o critério pelo qual o intérprete resolve os casos a que se aplica. A regra jur ídica è sempre um critério de decisão. Mediante ela o intér prete chegará sempre a soluções jurídicas dos casos. A regra juríd ica é normalmente um critério de conduta, mas não o é sempre.
Se bem que a maior parte das regras tenha função orientadora das condutas
182 hum anas, regras há em que esse escopo está completam ente ausente. nesse caso:
Estão
— as regras que produzem efeitos jurídicos automáticos — as regras retroactivas — as regras sobre regras, como a lei que revoga, suspende ou reactiva outra lei. Sendo assim, é errado falar das regras jurídicas com o «normas de conduta» pois assim se omitiriam sectores muito im portantes dentro destas regras (1). II — A regra jurídica é por tanto um critério para a decisão de casos concretos: de facto, essa decisão só é possível se o intérprete possui um cri $ tério de decisão. Mas nem tod o o critério de decisão de um caso é uma regra jurídica. Os critérios de decisão podem ser: — materiais — formais Critérios materiais de solução são os critérios normativos. Mas há também critérios form ais, como a equidade. Nesta hipótese, como veremos, em vez de se trazer um paradigma dos casos e sua solução, dáse uma orientação que permita, através de meras valorações, alcançar em concreto uma solução. A regra jurídica pode pois ser caracterizada como um critério material de decisão de casos concretos.
109.
Estrutura
I — Para apreendermos o significado da regra jurídica devemos proceder a uma análise estrutural. Toda a regra jurídica se pode decompor em dois elementos (2). Estes designamse por vezes anteceden te e conseqüente, mas as designações são inexpressivas, pois, se indicam uma con juga ção dos dois elementos, nada adiantam quanto ao seu significado intrínseco. Mais substancial é distinguir uma previsão e uma estatuição. Em toda a regra jurídica se prevê um acontecimento ou estado de coisas, e se estatuem conseqüências jurídicas para o caso de a previsão se verificar
(1) Sobre a concepção de Binding, que distinguia norma e regra, e sobre numerosas outras concepções da norma jurídica, cfr. K aufmann , Teoria da Norma Jurídica, 25 e 59 e segs. (2) Sobre a análise lógica da regra jurídica, cfr. Lourival Vilan ova , Lóg ic a Ju ríd ica, 86 e segs.
183 historicamente. À previsão de cada regra se chama a fa cti species, no seu sentido de figura ou modelo dum «facto»; a estatuição é oefeito jurídico (por ex. a obrigação de indemnizar) que a norm a associa à verificação da fa ct i species (po r ex. a danificação de coisa alheia) (1). II — Vamos deixar de lado os efeitos jurídicos, que terão de ser considerados em lugares futuros da nossa exposição. Diremos agora algumas palavras sobre a fa c ti species. A designação que usamos não é em geral utilizada entre nós. 1) Falam alguns em «tipo legal» mas a expressão é equívoca, pois traz confusão com a teoria do tipo, como processo de concretização, de que falámos atrás; há também tipos de efeitos jurídicos, por exemplo, o que bastaria para se banir a designação. 2) A expressão «hipótese norm ativa» não seria incorrecta, mas é de difícil aceitação. 3) Recorrem outros a expressões estrangeiras consag radas: seja o alemão Tatbestand, seja o italiano fattispecie. Chegados a este ponto, parecenos inteiramente preferível o latim medieval fa c ti species.
III — À fa c ti species estará sempre associado um carácter dinâmico? Ou ela consistirá antes numa situação, portanto em algo de estático? Como os elementos propriamente dinâmicos são os factos, distinguem alguns dentro da fa c ti species a situação inicial e o fa cto , cujo sobrevir provocaria a aplicação da norma. Mas assim complicase inutilmente a análise, pois em certos casos não é fácil a distinção destes dois elementos. A Constituição de Caracala atribuiu a cidadania romana (efeito jurídico) aos provinciais, sem que nenhuma mutação fosse necessária para a sua aplicação. A previsão normativa ficou aqui inteiramente preenchida pela situação preexistente. Doutras vezes o elemento dinâmico é muito visível e é pelo contrário a situação preexistente que é dificilmente detectável (2). Parecenos por isso não devermos admitir distinções demasiado rigorosas. Basta que digamos que a fa c ti species pode incluir situações ou fac tos ,
(1) Mas os texto s jurídicos podem adoptar a orde m inversa. Assim , o art. 88 do Cód. Proc. Civil brasileiro dispõe qUe «é competente a autoridade judiciária brasiSeira qu an do...». A descrição dos casos constitui a previsão, e a estatuição é a competência da autoridade judiciária brasileira. (2) Por exem plo, o art. 130 do Cód igo Civil brasileiro dispõ e que não vale o acto, que deixar de revestir a forma determinada em lei. Só o a c to , elemento dinâmico, é previsto. i3
184 cumulativa ou disjuntivamente: quer uns quer outros podem pertencer à previsão norm ativa. IV — Enfim, quando se fala em fa c ti species, e se esclarece que esta consiste em factos e/ou situações, isso significa que a fa cti species consiste em realidades de facto, por oposição a realidades normativa s? A previsão será de acontecimentos ou situações naturais, ainda não juridicamente valorados? Temos de estar desde o início prevenidos contra a ambigüidade da palavra facto. Norm almente, quando em direito se fala em fa c to , isso não quer dizer que se trate de uma realidade fáctica, naturalística. Tal não se verifica aqui também. A fa c ti species que preenche a previsão normativa pode reportarse já a situações valoradas por outras regras, que daquela são pressuposto; mas pode também ter por pressuposto realidades meram ente fácticas, como o nascimento ou a morte. A regra que estabelece as conseqüências do não pagamento de um a dívida tem como situaç ão preexistente uma situação jurídica, a obrigação de alguém paga r um a dívida. É o que se passa na normalidade dos casos: a fa c ti species pressupõe já uma situação juridicamente valorada, a que se ligam ulteriores efeitos jurídicos, para o caso de sobrevir determinado facto jurídico.
110.
Hipoteticidade
I — De todo o modo é sempre incorrecto dizerse que há efeitos jurídicos «legais » ou que derivam directamente dum a norma. Tudo o que assenta numa regra, deriva directamente da verificação histórica duma situação ou acontecimento que corresponda à previsão normativa. Ne nhum a regra jurídica se aplica por si (1): a regra que estabelecer que todos os que atra vessam a fronteira têm de fazer declarações para efeitos fiscais só se aplica se houver passagem de fronteira, e se ninguém a passasse não se aplicaria de todo. Quando se diz que um efeito «deriva directam ente da lei» ou da regra, o que se quer significar é que esse efeito não é condicionado por um facto voluntário, mas então é condicionado por factos ou situações de ordem diversa. Veremos depois quais as modalidades com que devemos contar. II Quer isto dizer que as várias regras que exprimem a ordem ju rídica podem também, em determinado sentido, considerarse hipotéticas (1) Salvas justamente as normas sc'jre normas, com o a que suspende ou revoga norma interior.
185 — mas num sentido totalm en te diferente do que nos ocupou quando excluímos que das ordens normativas derivassem imperativos h ipotéticos (1). São hipotéticas porque, pairando sobre a vida social, só se aplicam quand o se produz um facto que correspond a à sua própria previsão. Publicada uma lei que pune o lenocínio (provocação ou favorecimento da corrupção de outrem), ela não se aplica autom aticam ente — só se aplica qu and o um lenocínio for efectivamente praticado. E como o pressuposto da aplicação das regras é com frequência um acto humano (por exemplo, eu só sou atingido pelas obrigações que atingem o vendedor se efectivamente vender algo) isso significa que a aplicação de uma regra, que está sempre dependente da verificação de certos pressupostos, pode conter entre esses pressupostos um acto de vontade. Mas uma vez realizados esses pressupostos, aplicada a regra, a imperatividade revelase plenamente, para nada interessando já a vontade do sujeito de estar ou não vinculado. As regras são pois de aplicação condicionada, mas imperativas quando efectivamente se verifiquem os seus pressupostos.
111.
Comando e imperativo impessoal
I — Para a visão corrente do direito, as regras jurídicas são imperativos. A visão imperativística do direito, muito antiga já, recebeu formulação coerente na obra do jurista alemão Thon. Neste sentido a regra ju rídica participa, para a maioria dos autores, da natureza do comando. Há até quem apresente o com ando como a noção mais geral, vindo as regras a integrarse em determinado passo da classificação dos comandos (2). Tocámos já ligeiramente este ponto (supra, n.° 16), ao falar da imperatividade, como característica da ordem jurídica, tendo mantido o tema inde pendente da análise da essência da regra jurídica. Mas av ançámos já que nem toda a regra pode ser reduzida a um imperativo. II — Como é natural, não nos movem as mesmas preocupações que movem aqueles que reduzem as regras jurídicas a normas condicionais, ou imperativos hipotéticos. Mas supom os que há antes de mais na teoria imperativística, como ela é normalmente acolhida, um antropomorfismo que é extremamente prejudicial, nomeadamente quando se diz que a norma é um comando do legislador. Na realidade, o direito é um a ordem objectiva
(1) (2)
Supra,
n.° 16. Cfr. por exem plo Dias Marqu es,
In tro du çã o.
n.os 20 e segs.
186 da sociedade, em grande parte independente de actuação voluntária. Mesmo a regra legal é um dado objectivo, em que a entidade legislador é uma espécie de abstracção, e que de todo o modo se apaga após o processo da feitura da lei. Com este ponto se relaciona o problema dos destinatários da regra jurídica. Se a regra fosse um com ando ou ordem os destinatários teriam sempre de existir; mas muitas vezes não se encontra ninguém nesta situação. Por isso Jhering sustentou que os destinatários seriam os entes públicos encarregados de aplicar o direito. Isto representa um desconhecimento da vida real da comunidade, pois o direito é a própria ordem da sociedade, e assfrn seria concebida como mero reflexo das ligações entre os entes públicos. A regra jurídica é um juízo, que entra por força dum facto criador para o universo das significações objectivas da sociedade, e não uma ordem a um subordinado. Com Santi Rom ano (1) diremos que é alheia à noção de destinatário. III — Por isso, de várias partes tem sido ten tada um a revisão, e há quem diga que as regras jurídicas não são imperativos mas ju ízos de valor; outros sustentam que as regras jurídicas são determinações (2). Recentemente, o tema recebeu contributos impo rtantes. Mediante uma revisão, chegase a posições em que, mantendose embora a qualificação como imperativo, a assimilação ao comando é já abandonada. Assim, Olivecrona caracteriza a regra jurídica como um imperativo impessoal ou independente (3) e Bobbio qualificaa com o uma proposição preceptiva , fundandose numa larga análise lógica (4). Como é evidente, o problema não é de palavras. Um a vez revista neste sentido a noção de imperativo não teríamos nenhum obstáculo em acolhêla. Acentuaríamos uma vez mais que o imperativo não se reduz a um comando ou a um a ordem, e traduz unicamen te a exigência de efectivação que dá o sentido objectivo da regra.
(1) N or m e gi ur idiche (d cs tina ta ri dell e ), em Fra mmen ti d i un diz io na ri o gi ur id ic o, 135 e segs. (2) A fórmula de Reinach — ainda que n ão a tota lidade da sua posiç ão — tem mu ito de útil. Dizend o que as normas são de te rm in aç õe s, traduz simultaneamente este sentido objectivo da norma e a forma como se refracta nos membros do agregado social. Cfr. L os fu nd am en to s apr io ristic os dei der ec ho ci vi l, 166 e segs. (3) L aw a s fa c t, em In terp re ta tio ns o f m o dem le g a l ph il oso phi es , E ss a ys in ho no r o f Ro sc oe Po und, 546 e segs. (4) Teoria delia norma giuridica, 123-176.
187
112.
A regra jurídica não é um imperativo
I — Mesmo com esta correção, somos porém levados a rejeitar a qualificação da regra jurídica como um imperativo. A qualificação como imperativo só se adequaria às regras de conduta. Não teria sentido para todas as ou tras categorias de regras que referimos {supra, n.° 108) em que a regra jurídica é apenas um critério de decisão — a não ser que nos contentássemos com a observação de que este critério de valoração ou de decisão é imperativo. Isto seria verdadeiro, mas farnosia cair definitivamente fora do ponto em discussão. II — Exemplos: 1) Regras meramente qualificativas. Possivelmente, haverá que contar com uma categoria de regras que podemos designar meram ente qualificativas. A ordem jurídica necessita de delimitar os elementos com que trabalha, e sobre os quais estabelece as suas valorações. Assim, são elementos prévios a essa valoração as pessoas, as coisas, as acções... As regras respeitantes à personalidade jurídica ou à capacidade, as regras que definem e classificam as coisas, as regras que caracterizam as acções humanas, são verdadeiras normas jurídicas, e todavia destinamse unicamente a qualificar, a dar precisão aos elementos de base, tornandoos capazes de suportar as valorações ulteriores (ulteriores, num ponto de vista lógico). O exame desta matéria é toda via dificultado pela objecção de que essas regras não são autô nom as (1), e antes fariam parte de regras preceptivas, únicas que se deveriam tomar em conta. Não entrarem os no exame deste problema. 2) Regras que produzem automa ticam ente efeitos jurídicos. Num erosas regras produzem efeitos no mundo do direito inde pendentemente de qualquer tarefa humana de aplicação. Assim as regras que estabelecem efeitos jurídicos automáticos, como a perda de um lugar, de uma condecoração, da qualidade de sócio, etc., aplicamse logo que se verifica o seu pressuposto fáctico e não parecem ser adequada me nte descritas como imperativos (2).
(1) pletas».
Cfr. em Enne ccerus, § 27/1, a enum eração de várias «p rop osiçõ es jurídicas inco m
(2) Englobam -se aqui portanto todas as regras que provocam uma a lteração na ordem jurídica por efeito da superveniência de um facto não voluntário.
188 3) Regras sobre regras Mais radicalmente ainda, as regras sobre regras (1), como a norma revo gatória, que se limita a eliminar outra regra, nada têm que permita qualificálas como um imperativo (2). Não encontram os aqui sequer a exigência de efectivação, embora objectivãmente entendida, que nos dá o pressuposto mínimo de legitimidade desta qualificação.
III — Mesmo no respeitante às regras de co nd uta, não su portam a qualificação como imperativos as regras permissivas. Examinaremos esta categoria no capítulo seguinte (n.° 118). 0 que dissemos basta para que não admitamos que tod a a regra ju rídica se cifre num imperativo, mesmo tendo em conta a revisão a que a teoria imperativística foi modernamente sujeita.
113.
Generalidade
1 — Procurando agora algumas características da regra juríd ica to mada por si, logo nos surgem em primeiro plano a generalidade e a abstracção. Frequentemente elas são referidas como sinônimos; noutros casos são utilizadas pa ra exprimir realidades diversas. Vejamos se, e em que termos, elas são de admitir. O primeiro problema que temos de defro ntar é o da alegada existência de regras vinculando pessoas determ inadas. Assim, se duas empresas esti pu lam os termos em que se devam efectuar futuramente os fornecimentos, os pagamentos, ou quaisquer outros aspectos juridicamente relevantes, teríamos uma regra contratual. O contrato, designado justamente nor m ativo, seria fonte de regras entre aqueles sujeitos determinados que nele intervém. Fazendose eco desta orientação, o art. 1100/V do Cód. Proc. Civil brasileiro fala em «normas legais ou contratuais». Parecenos que esta equiparação é de rejeitar. Para designar as esti pulações firmadas pelas partes, mesmo que destinadas a pau tar condutas futuras, basta que falemos em preceito contratual. A regra ou norma jurídica, tal como nos interessa, é necessariamente típica — pressupõe um tipo ou fa c ti species, nos termos anteriorm ente referidos. Ora a fa c ti species é heterónoma, não é fruto da autonomia das vontades, o que afasta desde logo as pretensas regras contratuais. Por outro lado, não se refere a pessoas determinadas, e nisto consiste a generalidade. (1) O Re ch t uber Rec ht de Zitelmann. (2) Engisch, Introdução, 29-30, realiza uma tentativa de conciliação que nos não parece convincente.
189 II — A generalidade contrapõese à individualidad e. É geral o preceito respeitante aos cidadãos, individual o respeitante ao cidadão X ; geral o preceito sobre chefes de repartição, individual o preceito respeitante ao chefe da l.a repartição de certa DirecçãoGeral. Mas só com este enunciado de hipóteses já começamos a defrontar dificuldades. São então individuais todos os preceitos respeitantes ao Presidente da República constantes da Constituição Política? Teremos de concluir que sempre que haja uma só entidade em dada situação o preceito a ela respeitante é necessariamente individual? Supomos que não, e que o que interessa para a generalidade é que a lei fixe um a categoria, e nã o uma entidad e individualizada. Se o preceito refere a categoria Presidente da República a lei é geral; se refere a pessoa determinada que em certo momento é o seu suporte, é individual. III — Impõese pois uma distinção entre generalidade e pluralidade. Se se dispõe que três governadores são chamados à capital, há uma pluralidade de implicados, mas não temos um preceito geral. Po r ou tro lado, ficamos prevenidos contra a generalidade e pluralidade aparentes: se se determina que são dissolvidas, por irregularidades graves, as empresas concessionárias de instalações nucleares, e há uma só nessas condições, o preceito é individual, não obstante a roupagem genérica de que se reveste. Mas não desaparecem com isto todas as dificuldades. Se se determinar que todos os governadores são chamados à capital, temos um preceito geral ou individual? Supomos que, nestes casos de fronteira, a distinção depende só de se saber se se têm em vista as pessoas individualmente determinadas que num momento dado preenchem aquela categoria, ou a categoria tomada por si, sejam quem forem as pessoas que a preencham. Como estas dificuldades não parecem insuperáveis, assentamos que a generalidade é característica essencial da regra jurídica, de acordo com a orientação dom inante (1). Notese porém que a qualificação pela generalidade não tem sentido nas regras sobre regras, a não ser por mediatamente estas se referirem a regras genéricas.
(1) E é esta também a posiçã o que a lei portuguesa reflecte em vários lugares. L ogo o art. 1.» do C ódigo C ivil considera leis todas as disp osiçõe s gen éricas ... Tam bém o art. 721/3 do Código de Processo Civil caracteriza como substantivas as disposições gen érica s... Enfim, é ainda pela generalidade que a lei caracteriza portarias e outros diplomas que manda publicar no jornal oficial.
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114.
Abstracção
I — Mais difícil é apurar se a abstração é característica da regra jurídica. Como dissemos, vários autores n ão distinguem generalidade e abstracção ; noutros casos falase de generalidade para englobar também a abstracção (1). O abstracto contrapõese ao concreto. Mas o concreto é por sua vez um conceito ambíguo, podendo distinguirse nele uma pluralidade de sentidos— o real, o específico, o individual (2). Quando se fala da abstracção como característica da regra jurídica querse normalmente dizer que os factos e as situações previstas pela regra não hãode estar já concretizados; são factos ou situações que de futuro podem surgir ou não surgir. Assim, se se ordena que todos entreguem as armas, que possuirem, nos postos de polícia, temos generalidade mas não ab stracç ão, pois a situação a que o preceito se aplica está já concretizada; se se mandar que as armas que forem adquiridas sejam apresentadas nos mesmos postos então já há abstracção, pois a disposição está aparelhada para execução futura. II — Poderia pensarse que a abstracção seria imposta pela p rópria natureza da fa cti species (3). Mas pensamos pelo contrário que atendendo a esta, temos dois elementos definitivos para negar que a abstracção seja característica da regra jurídica — o que nos dispensa de analisar os difíceis problemas de fronteiras que, tal como para a generalidade, se levantam para a abstracção. 1) A fa cti species abrange factos e/ou situações. Estas últimas não são acontecimentos, são estados, que podem estar já plenamente realizados. Neste caso é evidente que a regra jurídica não é ca racterizada pela abstracção. Assim, o preceito que retire a nacionalidade, imediatamente, a certa categoria de pessoas, ou que ordene a mobilização de mancebos de certa idade, só naquela ocasião, é normativo. Mais vastamente, todas as disposições que produzam um efeito imediato ou um efeito de uma só vez são normativas, desde que tenham generalidade (4).
(1) Cfr. Marcello Caetano, D ireito C on sti tucio na l, n.° 111; D ir ei to A dm in istr at iv o, ], n.os 35, 37 e 180. (2) Cfr. Engisch, Ko nkreú sierung. (3) Ne ste sentido Dia s Marques, Int rodu ção, n.os 20 e 21, para quem a própria abs tracção da f a c ti sp ec ies normativa levaria a que a aplicação da norma fosse virtualmente plural, e até indefinida. (4) Só pod eríamos continuar a falar de abstracção co m o característica da regra juríd ica se tiv éssemos da qu ela um en tend im ento diverso do corrente — se con side rá ssem os abstracta toda a regra que se nã° referisse a uma situação histórica dada, a uma situação
191 2) Há regras juríd icas retroactivas, com o veremos a prop ósito da sucessão de leis. A regra exclusivamente retroactiva, p ortan to a que se destine somente a atingir uma situação passada não tem abstracção, por definição, pois não está ap arelh ada para resolver casos fu tu ro s que se venham a pro duzir. Podemos ficar por aqui, pois tudo o que dissemos está perfeitamente assente nas nossas premissas. A regra, com o critério de decisão de casos concretos, funciona da mesma forma quer respeite a casos actualmcnte verificados, quer a casos a produzir de futuro.
115. Bilateralidade I
— Tamb ém se apo nta como característica da no rm a jurídica a bila teralidade. Seria pró prio da regra juríd ica relacionar entre si dois ou mais sujeitos, criar relações entre eles, de m ane ira que as posições duns seriam a contrapartida das posições dos outros. Por isso nos surge o conceito de relação jurídica, que para esta orientação seria a configuração universal de tudo aquilo que é juridicamente valorado (1). Não pensamos que isto seja verdade. Nem to da a regra jurídica im porta a relacionação de sujeitos dados. Basta record ar os exemplos que há pouco apresentámos sobre as regras que não conteriam imperativos para concluirmos que o direito nem sempre actua através do estabelecimento de relações. Mas se passarmos às regras preceptiva s a nossa posição só sai fortalecida. Consideremos os deveres penais. A regra penal impõe deveres aos sujeitos, não porque pressuponha uma relação com sujeitos dados, mas porque pretend e pauta r em geral a conduta de ca da pessoa. Em certos crimes não encontramos até uma vítima determinada, como nos que punem actos con tra os animais ou o desrespeito pelos morto s. Não há aí que falar em relação jurídica. Se em vez das posições passivas, os deveres, considerarmos agora as posições activas, da mesma fo rm a não encontram os sempre uma relação entre pessoas determinadas. A pro priedade, que é um caso flagrante, definese tendo apenas em vista uma pessoa e um a coisa. Fa lar de bilateralidade
individual. Ne ssa altura, a abstrac ção estaria afinal con tida na generalidade, pois desde que não houvesse a consideração das características do caso concreto haveria abstracção e generalidade. Esta é a parte de verdade dos autores que falam em generalidade e abstracção sem distinguir uma e outra. (1) Sobre toda esta matéria, veja-se o que exp usem os em A s Rel aç õe s Ju rí di ca s Re ai s, n.os 5 e segs.
192 não tem aqui sentido, pois não há sujeitos passivos da propriedade, há apenas estranhos. Isto não impede, nomeadamente neste último caso, que toda a pessoa tenha o dever genérico de não violar a prop riedad e alheia. Tod avia, este dever, como o nome indica, é genérico, de modo que não se estabelece uma relação jurídica entre o prop rietário e cada um a das outras pessoas. Há quando muito uma ligação teleológica entre as propriedades que a ordem jurídica reconhece e os deveres genéricos que por outro lado impõe, mas esse nexo teleológico não se traduz em concretas relações jurídicas entre o proprietário e cada um a das outras pessoas. ií — No fundo, o que os autores pretendem q uan do falam de bilate ralidade ou correlatividade pode exprimirse utilmente falando em socia bilidade ou alteridade da regra jurídica. A vai oração norm ativa da situação de uma pessoa tem de ser uma valoração socialmente relevante, e impõese ao respeito de todas as outras pessoas, como tudo o que é jurídico. É neste sentido que nos parece importante falar, como faz Miguel Reale (1), em bilateralidade ou proporcio nalidade atributiva. De facto, a regra jurídica não se ocupa de posições individuais senão para demarcar uma posição socialmente relevante de um sujeito. Po r isso, as regras ju rídicas, ao menos mediatamente, garantem superordenações e impõem subordinações. Este elemento de atrib uiçã o de posições socialmente relevantes fálas distanciar das regras morais, e comporta um elemento útil para a determinação do próprio conceito de direito. /
(l )
Cfr. por último Liçõe s, págs. 50-52.