Ana Cristina Canosa
M adrastas D oCo oContodeF adas paraavid idareal
Ana Cristina Canosa Gonçalves
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© Copyright by Ana Cristina Canosa Gonçalves © Copyright © 1998 by Iglu Editora Ltda.
Editor responsável: Julio Igliori Revisão: Ana Cristina Canosa Gonçalves Composição: Real Produções Gráficas Ltda. Capa: Flávia Igliori Gonsales Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Gonçalves, Ana Cristina Canosa Madrastas : do conto de fadas para a via real / Ana Cristina Canosa Gonçalves. – São Paulo : Iglu, 1998. Bibliografia. 1. Contos de fada 2. Madrastas – Ficção 4. Madrastas – Psicologia I. Título. 98–3426
CDD–306.8743
Índices para catálogo sistemático: 1. Madrastas : Relacionamento familiar : Sociologia 306.8743 Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por processo xerográfico, sem permissão expressa do Editor (Lei nº 5.988, de 14.12.73).
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A gradecimentos Aos mestres e amigos Nelson Vitiello e Luis Carlos, pelas valiosas contribuições. A Jonas e Jane Ribeiro, pelo incansável incentivo. Aos meus pais, Elsa e José, por estarem sempre prontos a estender-me suas mãos. Aos amigos Fabia Vitiello, Eliezer Berenstein, Roberto Souza, Julio Igliori, Paula Donzelini, Yvone Cruzes Duarte e Meire Takeuti, que de uma forma ou outra ajudaram para que este livro se tornasse realidade. A todas as madrastas e enteados que confiaram a mim seus sentimentos mais secretos e intensos, sem os quais este livro não poderia ser realizado. E mesmo sem poder nomeá-los, certamente todos saberão que aqui expresso minha gratidão. A meu marido Eduardo e minha enteada Livia pela paciência, incentivo e pelo amor que me dedicam dia a dia. Aos alunos e colegas dos Cursos de Pós-Graduação em Educação Sexual que torceram tanto para que este livro fosse editado. As alunas e coordenadores da Universidade Aberta para a Terceira Idade que me ensinaram a dar significado às histórias de fadas que lhes contei.
P araL ivia
A presentação Como todo tema que se refere ao contexto do relacionamento familiar, este é bastante complexo e entremeado de nuances sutis e de delicada abordagem. Longe de ser sempre aquele paraíso, cheio de paz e de amor que nos apraz imaginar, a família se revela por vezes um núcleo social recheado de emoções desagradáveis, sentimenos hostis e até mesmo de violência, como bem o demonstram as estatísticas sobre espancamentos de mulheres e agressões fisicas e sexuais aos filhos, que tem vindo a conhecimento público nos últimos tempos. Dentre os temas passíveis de estudo dentro do contexto familiar, o abordado neste livro é sem dúvida dos mais fascinantes. As madrastas, culturalmente vistas sempre como más e perseguidoras, principalmente das enteadas, tem relevante papel nos Contos de Fada, que são importante repositório de tendências socio-culturais. Assim, a análise da associação entre as visões das madrastas na vida real e nos Contos de Fada é interessante e importante estudo, especialmente para os familiares diretamente envolvidos nessa associação, bem como para os profissionais interessados na assistência aos problemas gerados por essa situação. Ainda que o termo “madrasta” derive etimologicamente da mesma raiz que “mãe”, a sílaba inicial parece formar uma associação inconsciente com “má” e com “maldade”. Socialmente vistas assim, as madras-
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tas tem lugar importante no fabulário de nossa cultura, sendo nesse sentido clássicas as madrastas das histórias de Cinderela e Branca de Neve, entre muitas outras. Cumpre lembrar, fato este bem analisado pela autora, que em vista das mais frequentes separações conjugais em nosso tempo, o número de madrastas cresceu, pois temos agora não apenas aquelas que substituem a mae falecida, mas também as de um segundo casamento, mesmo quando o homem não fica com a guarda dos filhos. Nessa última situação, ainda que os enteados não morem com a madrasta, o relacionamento em eventuais contatos apresenta características peculiares. É o que a autora denomina, com muita propriedade, de “madrastas em tempo parcial”. Uma socióloga já disse que não escolhemos os temas que versamos, mas sim que são eles que nos escolhem. Para bem empreender a análise deste tema esta afirmação mais uma vez se confirma. A autora é psicóloga, além de mulher jovem, bonita e inteligente. Além disso é profissional das mais preparadas na área, sendo inclusive Coordenadora de Curso de PósGraduação em Educação Sexual. Juntese a tudo isso seu interesse profissional pelos Contos de Fada, aliás tema de uma belíssima Monografia de sua autoria, que ela ainda esta a dever ao público, e o fato de ser, na vida real, madrasta em tempo integral. Como se vê, é mesmo a pessoa mais indicada para versar o tema, e o faz de maneira elegante e interessante, revelando um estilo fluente, que torna a leitura muito agradável. Tenho a certeza de que o livro agradará não apenas às leitoras que se vêem na situação de madrastas, mas também a todos os leitores.
Nelson Vitiello
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S umário Prefácio .................................................................................................................. 13 Introdução:
EraumavezumaM adrasta...............................................
Capítulo I – A Capítulo II – J
M adrastanosContosdeF adas...........................
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oãoeM ariaeoA bandonoM aterno.................
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Capítulo III – Cinderela ea R Capítulo IV– B
ivalidadeF raterna............................
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Capítulo V – CachinhosdeOuroemB Epílogo:
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uscadaF amíliaI deal.... 137
E F oramF elizesP araS empre......................................... 151
Bibliografia Recomendada ................................................................................. 155 Notas ....................................................................................................................... 157
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“Eu sou e não sou. Eu devo ser, e pode ser que não. tenho uma tarefa a cumprir, Mas não devo fazê-la bem demais Sou o som de uma única mão batendo palmas Jogo tênis sem bola e golfe sem taco neste jogo trocaram todas as regras, E nunca admitem que eu estou jogando. Poderei olhar para as flores e nunca colher nenhuma? Poderei ouvir os pássaros e nunca nomeá-los? Poderei criar todos os seus filhos E nunca ter o seu bebê? Não me diga para traçar os limites E nunca chegar À raiva, à expectativa e ao amor Diabos, quem você pensa que sou?”
Ruth Roosevelt*
* Ruth Roosevelt In Evelyn S. Bassof. Entre mãe e filho, São Paulo, Saraiva, 1996, p. 177.
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PREFÁCIO Já faz algum tempo que manifesto a vontade de escrever um livro que tivesse como tema central os Contos de Fadas. Essas histórias da infância que revelam conteúdos tão significativos do universo humano e que resistem por séculos a fio. Mas por alguma razão, não havia ainda encontrado uma forma de iniciar. Este impulso aconteceu quando minha enteada se tornou órfã de mãe e veio morar comigo e com o pai. E tenho a nítida certeza que escrever sobre madrastas fez parte de um processo de elaboração, da necessidade interna de delinear este novo papel na vida dela e sua im portância em minha vida, bem como das mudanças na estrutura de nossa família. Enquanto ia escrevendo fui percebendo o quanto as madrastas não tem um papel definido na sociedade, e, muitas vezes, uma identidade que lhe seja satisfatória na estrutura familiar. Porque invariavelmente as madrastas esbarram no papel materno, ao mesmo tempo em que se contrapõem a ele. Muitas vezes são responsáveis pelos cuidados essenciais com as crianças, mas são “impedidas” de partilhar da vida delas com mais intensidade. Sem contar que a imagem da “madrasta perversa” reproduzida nos Contos de Fadas é ainda bastante presente, porque é uma expressão da sociedade e das idéias pré-concebidas acerca desse papel. A figura da madrasta má faz parte do imaginário, mas promove no contexto real uma superposição de sentimentos, um confronto entre a realidade e a fantasia. Embora me coloque claramente nesse livro, permitindo-me inclusive emitir opiniões baseadas em experiência pessoal, tomei o cuidado de não ser parcial. Procurei estudos e livros sobre o assunto que pudessem ampliar minhas impressões sobre a relação de madrastas e enteados, suas dificuldades e suas alegrias. Mas a grande limitação foi sem dúvida ter de me abster de literatura sobre o assunto, principalmente de estudos aprofundados sobre o tema no Brasil. Encontrei poucas referências brasileiras e isso sem dúvida eu não esperava. Tive então de me basear em literatura estrangeira, principalmente norte-americana para
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colher mais dados e opiniões. Todas as referências estão relacionadas na bibliografia. Além disso, procurei contato com outras madrastas para recolher depoimentos, tentando sempre discutir o tema com elas. Mas isso nem sempre foi possível, porque dependia da indicação de amigos para entrar em contato, da disponibilidade de tempo para deslocar-me e para elas me receberem para uma conversa. Então passei também a enviar para algumas madrastas uma carta explicando o projeto e pedindo que me remetessem um depoimento seguindo um roteiro de questões que gostaria que elas abordassem. Este roteiro de questões foi baseado em outro, de Donna Smith1. Novamente para ter acesso a essas mulheres tenho que agradecer a alguns amigos, que se prontificaram a me ajudar, muitos deles realmente se mobilizando para entregar a carta às madrastas que conheciam. Fiquei realmente feliz com o número de depoimentos que consegui reunir, ao todo 37, entre cartas, telefonemas, entrevistas pessoais e mesmo troca de mensagens via Internet. Sem contar a satisfação de perceber que todas essas mulheres me apoiaram na idéia de escrever este livro, o que foi sem dúvida importante para não desistir no meio do caminho. Este livro não se trata de um trabalho científico, porque para isso seria necessário fazer uma pesquisa mais aprofundada, mas em nenhum momento pensei em transformá-lo em um trabalho com essas características. Na verdade o encaro como o ponto de partida para uma reflexão em torno do papel da madrasta na vida pessoal, familiar e social. Uma reflexão que está se iniciando e ainda se encontra muito distante de englobar a complexidade do assunto. Deixo o trabalho científico para um outro momento, ou para quem saiba e possa fazê-lo com carinho e dedicação. Além da minha experiência pessoal, dos estudos e dos depoimentos contei também com a experiência clínica que obtive (e obtenho) como Psicoterapeuta e alguns dos exemplos que utilizo aqui são provenientes dos casos clínicos que tive o privilégio de atender. Por uma questão ética, todos os depoimentos foram utilizados de forma genérica, e as poucas citações não estão identificadas de forma pessoal. Os temas abordados estão divididos em capítulos, embora eles estejam a todo o momento unidos entre si. Cada capítulo utiliza uma História de Fadas como exemplificação e tem seu conteúdo interpreta14
do através de uma leitura baseada em conceitos da psicanálise, procurando demonstrar como eles se expressam na vida cotidiana. O livro tem também um capítulo introdutório e um outro que tece considerações sobre os Contos de Fadas e a personagem conhecida da madrasta. Os Contos utilizados foram retirados, em sua maioria, da coletânea dos Irmãos Grimm e alguns da versão de Charles Perrault. Todos também relacionados na lista bibliográfica e nas notas de rodapé. O último capítulo não é uma conclusão, mas apenas um fechamento; até porque pretendo continuar a pesquisar o assunto, agradecendo antecipadamente futuras contribuições que me possam ser encaminhadas. Espero que os leitores possam compreender minhas limitações. Contudo, gostaria imensamente que este livro possa vir a ajudar na reflexão daqueles que estão envolvidos nas relações familiares que tenham madrastas como membro presente e importante. Além é claro de desejar que todos tenham o mesmo prazer que eu tenho toda vez que recordo das histórias de Fadas, lembrando inclusive de momentos mágicos da infância.
Madrastas tem um pouco de mim, mas tem muito de todos nós...
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I NTRODUÇÃO
EraU maVez U maM adrasta... “Fiquei sem mãe aos 9 dias, conheci 1 2 guerras e 2 madrastas...” “ Sei que é grande maçada Morrer, mas morrerei Quando fores servida Sem maiores saudades Desta madrasta vida, Que, todavia, amei.”2
Madrasta: “Mulher, em relação ao(s) filho(s) que o marido teve de matrimônio anterior” 3. Descritivamente simples, fácil de entender; simbolicamente de um significado complexo e emocionalmente difícil de se elaborar. A madrasta, ou mais precisamente a mulher que assim está intitulada, é passível das projeções sociais que por séculos lhe foram atribuídas. Esta “madrasta social” é má, vingativa, invejosa, é a bruxa que se transforma para ferir sua enteada, roubar-lhe a beleza, o lugar, o prínci pe, o pai. Existir enquanto madrasta é sofrer uma existência de outra, de alguém que ocupa o lugar da mãe, segundo as crianças, e que personifica o fracasso de um matrimônio que era “para ser feliz para sem pre...”. Geralmente a madrasta não se casa na igreja, não possui sapatinho de cristal, muito menos carruagem com lacaios. Madrasta que é madrasta não aceita os enteados, é narcísica, fútil e pouco sabe sobre educação infantil. A madrasta nunca sabe de nada, pegou o “bonde andando”, não faz parte da família, não pariu, não viu crescer e portanto não deve se meter nos assuntos de família (da primeira família, é 17
claro). A comparação com a mãe biológica é sempre inevitável, muitas vezes implacável e cruel. Embora as descrições acima pareçam um tanto fortes e radicais, elas são fruto das nossas pobres elaborações afetivas que por muito tempo contaminaram o processo de aculturação. É claro que nem todas as madrastas são apedrejadas, mas com certeza todas já experimentaram a estranheza interior de ser chamada como tal. Por mais que se tente experimentar outras nomeações, elas pouco soam verdadeiras: “A mulher do meu pai” ou “A segunda mulher do meu ex-marido” são frases longas demais, por outro lado simplesmente a “fulana...” é muito impessoal, já que em qualquer dinâmica familiar os papéis devem estar sempre muito bem definidos, “politica e religiosamente corretos”! Certa vez, uma madrasta me relatou um diálogo interessante que teve com a mãe de um amigo de sua enteada. Era a primeira vez que se falavam, e ela se apresentou como a madrasta de fulano. Quando foram trocar os telefones e a mulher ia anotar seu nome, ela perguntou: “Tudo bem te chamar de madrasta...quero dizer, é normal para vocês?” A madrasta então riu e disse que sim, que embora soasse pesado, ela e sua enteada estavam acostumadas a se chamarem por madrasta e enteada. A mulher então comentou que era a segunda vez que ouvia alguém falar “minha madrasta”, e que realmente isso a havia tomado de surpresa, porque soava realmente pesado, mas que estava feliz por saber que o estigma da maldade parecia estar sendo desfeito. Comentou ainda que tinha uma amiga que era divorciada e que tinha um filho do primeiro casamento e que casou-se novamente. O filho desta mulher chamava o padrasto pelo nome e não por padrasto. Aconteceu que esse casal veio também a ter uma filha em comum. E a filha também passou a chamar o pai pelo nome. Todos dentro da casa chamavam-no por seu nome, e não pela relação de parentesco. A madrasta comentou que isso deveria parecer estranho, já que estamos acostumados a falar pai, mãe, etc. E a mulher consentiu: “realmente me pareceu estranho!” Este diálogo me faz refletir o quanto realmente somos reconhecidos pelos papéis que representamos na sociedade. Não somos apenas “fulano”, somos “fulano de tal”, pai, mãe, madrasta de outrem. Ou ainda somos Drs., Dras., Comandantes, Generais, Professores, Rainhas, Sr., Sra., Dona, etc.. Diante desta constatação, ser madrasta é o mesmo que ser pai, mãe, irmão, avó, avô. É assumir um papel para si mesmo e para a sociedade. 18
E muito embora o papel que se configura para si não seja sempre aquele que corresponde ao papel social ideal, eles andam sempre de mãos dadas. Mesmo que questionado, o papel social não deixa de interferir na crença do indivíduo e em sua conduta. Mas os papéis sociais não são imóveis. Eles se movimentam, se modificam, avançam e regridem, assim como nós que avançamos e regredimos durante o nosso desenvolvimento psíquico. E esta força que possibilita a mobilidade nem sem pre está a serviço do desenvolvimento humano. Muitas vezes, e desgraçadamente, impulsiona os indivíduos para a estagnação e a inércia, para a crença nos papéis e comportamentos estereotipados e preconceituosos. Adequar-se ou não à norma depende de amadurecimento. Questionar a norma depende de coragem. E muitas vezes isso representa tal luta interna, que muitos desistem no meio do caminho porque não resistem à pressão social. As madrastas terão que se defrontar com o seu papel estigmatizado de mulher má. No próprio vocábulo madrasta já está implícita a idéia de maldade, considerando-se o prefixo “ma” que se liga ao radical “drasta” (ma+drasta). Muito embora o prefixo “ma” derive de mãe, ou seja, é relativo à maternidade, este mesmo prefixo em outra circunstância é um adjetivo. Um adjetivo utilizado para caracterizar um comportamento ruim, de maldade. E parece que madrasta soa sempre como uma palavra ligada ao adjetivo “má”, tornando estas mulheres susceptíveis ao desconforto de assim serem reconhecidas. Além do confronto com o preconceito, são várias as dificuldades que uma mulher pode encontrar quando assume uma posição importante na vida afetiva de um homem que já é pai. O ciúmes das crianças, a competição materna, a desconfiança dos parentes, a incredulidade do meio e muitas vezes a incompreensão do companheiro são talvez as mais relatadas pelas madrastas que pude contatar, mas com certeza não são as únicas. Porém, é preciso ressaltar que essas dificuldades ultra passam as fantasias individuais, já fazem parte da expectativa social acerca das relações entre madrastas e enteados. E a maior expectativa é com certeza a resistência à aceitação. Geralmente essa resistência que os filhos têm em aceitar a entrada de uma nova companheira do pai na vida familiar é demonstrada por eles logo no início da relação. Toda nova experiência provoca uma certa excitabilidade, um misto de medo e euforia que cria fantasias e esperas diversas. Com estas 19
mulheres não seria diferente. Quando uma “candidata a madrasta” vai conhecer os filhos do companheiro, ela também está contaminada pelas fantasias de ataque a sua figura. Como uma espécie de defesa, ela pode reagir retroativamente, revidando uma agressividade que nem ainda aconteceu, e com isso instaurar uma barreira na relação. A ânsia dos primeiros encontros com as crianças é sempre grande e tende a diminuir quando os encontros tornam-se mais freqüentes e quando a resistência da aceitação começa a ser quebrada. Muitas crianças demoram para quebrar suas resistências e aceitar a idéia de uma nova mulher ao lado do pai. Outras parecem nunca aceitar, rejeitando qualquer aproximação e manifestação de carinho por parte das companheiras do pai. Tornam-se adultos ressentidos e amargos. Mas existem aquelas que também conseguem desvincular as qualidades individuais dos papéis estigmatizados, que enfrentam seus medos e anseios e se permitem experienciar novos vínculos afetivos. Vencer a resistência à aceitação geralmente leva um certo tempo. Durante este período muitos obstáculos deverão ser superados, e haverá muitas descobertas gratificantes também. Certamente existirá trabalho para todos. Adotarei neste livro o conceito de Smith 4, para separar as madrastas que convivem diariamente com seus enteados, e para aquelas que convivem esporadicamente com eles. As que convivem diariamente chamaremos de “madrastas de tempo integral”; para as que convivem esporadicamente, chamaremos de “madrastas de tempo parcial”. Nas gerações anteriores era mais provável que a morte fosse a razão da perda de um dos pais do que a separação ou o divórcio. Entretanto, hoje, a quantidade de casamentos desfeitos e de segundas uniões coloca as crianças diante da possibilidade de ter uma madrasta. Diante disso, a forma mais comum de ser madrasta na sociedade ocidental contemporânea é a de tempo parcial. Os filhos moram, em sua maioria, com a mãe, mas passam os finais de semana e feriados com o pai e a madrasta. Isto pode variar dependendo dos acordos de custódia que se seguem ao divórcio. Uma questão interessante que pude perceber com muita clareza é que em nossa sociedade são consideradas madrastas só as mulheres que vivem com os enteados, e mais, aquelas que ajudaram na sua criação. As mulheres que não habitam na mesma casa com os enteados não são consideradas madrastas. E essa percepção não é só das pessoas que estão fora deste tipo de relação. As próprias madrastas de tempo parcial não 20
se sentem madrastas. Muitas delas nem sabem que podem ser consideradas madrastas, se avaliamos esta condição do ponto de vista conceitual. Neste caso específico, o das madrastas de tempo parcial, percebemos que há uma disparidade entre o significado da palavra madrasta e de como ele foi absorvido pela nossa cultura. E diante disso podemos tecer algumas considerações: Talvez, pelo fato de ser um assunto pouco discutido na nossa sociedade ficamos atrelados ao modelo de madrasta reproduzido nos filmes e nas histórias infantis, aquelas mulheres que assumiram a maternidade de enteados ainda pequenos e órfãos de mãe. Sendo assim, as madrastas de tempo parcial não se encaixam no modelo. Outra hipótese possível e complementar é que o ideal de um matrimônio indissolúvel ainda é por nós cultuado, mesmo que o aumento significativo de casamentos desfeitos e de uniões posteriores nos demonstre que as relações maritais são muito mais complexas do que um simples juramento de amor eterno. Sob este ponto de vista, ainda temos dificuldades em aceitar com naturalidade as segundas uniões e, conseqüentemente, a idéia de mulheres tornando-se madrastas de enteados que vivem com a mãe. Um terceiro ponto é relativo ao papel paterno. Se os pais separados atuam apenas como provedores das necessidades financeiras das crianças e mantêm pouco contato com os filhos, então suas segundas esposas se encontram muito distantes de assumir um papel significativo na vida dos enteados, distanciando-se das funções maternas que poderiam lhe ser atribuídas e, conseqüentemente, do significado social da palavra madrasta. Uma última possibilidade que me parece bastante provável é que madrasta seja um termo que se tornou tão pejorativo que as crianças e as próprias madrastas preferem não se identificar com ele. Claro, ninguém quer ser reconhecido como uma figura má, que atormenta crianças tão “singelas, desprotegidas e ingênuas”. Embora as madrastas, sejam elas de tempo total ou de tempo parcial, tenham dificuldades e alegrias semelhantes, algumas diferenças são também perceptíveis. Porque as madrastas de tempo integral podem ter mais encargos para com os enteados, têm de dividir seu tempo e seu espaço, mas isso também auxilia na construção do vínculo afetivo entre todos. Já as madrastas de tempo parcial recebem os enteados apenas por alguns dias e esta quebra na rotina tende a ser mais rapidamente absorvida e controlada por ela, principalmente se as visitas forem estipuladas previamente. Por outro lado, as visitas esporádicas não permitem uma convivência mais íntima, um conhecimento mútuo, e, freqüente21
mente, estas madrastas se vêem em situações difíceis de contornar. Uma madrasta de tempo total geralmente tem uma atuação maior na vida dos enteados, principalmente quando eles são ainda pequenos. Nesse caso, ela pode ser bastante responsável pela educação das crianças. Sua voz é ativa, ela se torna um modelo de atuação, estabelece normas e regras na rotina familiar. Já as madrastas de tempo parcial se defrontam com crianças que são geralmente educadas pela mãe, e esta educação pode não ser condizente com aquela que a madrasta acredita ser a melhor. Isto pode provocar uma certa confusão ou irritação para essas mulheres, até que elas possam se acostumar com este limite da sua relação. Também, as madrastas de tempo parcial muitas vezes tem sua autoridade na casa diminuída, porque é comum que as crianças se voltem somente ao pai para pedir qualquer tipo de consentimento. Os conflitos que provêm da resistência à aceitação têm íntima relação com a falta de uma identidade satisfatória para as madrastas. Porque invariavelmente esta identidade esbarra na figura materna. Sendo assim, o que distingue a natureza do significado que a madrasta tem no âmbito familiar e social é com certeza sua proximidade com esta figura. Se as madrastas deveriam ser apenas as companheiras de um homem que já é pai, deveriam também ser destituídas das funções maternas que lhes são delegadas. Mas efetivamente não é isso que ocorre, nem no plano concreto nem no plano simbólico. Não obstante, as madrastas muitas vezes são as responsáveis por cuidados fundamentais para com seus enteados que assumem uma similaridade com os cuidados dispensados pela mãe biológica. Sendo assim, seu papel se mistura com o papel materno, e o limite para delimitar espaços e atri buições se torna tênue demais. Quando pensamos no papel das madrastas na dinâmica familiar, faz-se necessário tecermos contribuições em torno da maternidade para entendermos esta íntima relação. A própria palavra madrasta já está imbuída de atribuições à figura da mãe. Madrasta é uma palavra que provém do Latim: matrasta 5, e é derivada da palavra mãe. Mas seu significado diz respeito à mãe que é descaroável (pouco carinhosa), ingrata. Podemos dizer que “Mãe descaroável” é uma frase que denota conteúdos mais complexos acerca da maternidade, ou melhor, de uma maternidade idealizada. Desde o século XVIII6, a maternidade assumiu características que muito se aproximam da santidade. As mães que antes davam seus filhos 22
para ser amamentados por amas de leite, que também eram responsáveis pelos principais cuidados dos bebês, agora eram orientadas a cuidar de seus filhos em tempo integral. A amamentação materna tornou-se uma obrigatoriedade para que a criança estabelecesse uma relação íntima com a mãe e que pudesse estar imune a qualquer perturbação de ordem física e mental. Mães deveriam estar sempre prontas a atender as necessidades de seus filhos, mesmo (e principalmente) que isso lhes custasse abandonar objetivos profissionais e sociais. Estabeleceu-se uma relação de doação total, onde o papel materno deveria ser o de abnegação, resignação e amor incondicional. Contemporânea a esta idéia de maternidade é a de que todas as mulheres nasceram para ser mães, e só as mulheres que deram à luz podiam amar uma criança com verdadeiro altruísmo. A gravidez era considerada o “ápice da carreira da mulher”, era o elo de ligação entre o mundo e o etéreo, e esta concepção contribuiu muito para a repressão da voz feminina em todos os segmentos sociais, políticos e culturais. Negar este papel atribuído as mulheres era sinônimo de desequilíbrio até por elas próprias. Pensando nisso podemos concluir que “mãe descaroável” era quase que uma “má formação interna” no que diz res peito a negação deste conceito de maternidade. O peso do conceito da maternidade que advém desta época e a pressão social que recaiu sobre as mulheres, provocou quase que uma fobia aos sentimentos negativos que as mães sentem por seus filhos em fases de seu desenvolvimento. “Rejeitar” um filho, mesmo que por alguns segundos era um gerador de culpas, que descobriu-se mais tarde, só fazia dificultar a relação mãe/filho. Mas observamos que ainda hoje o ideal de maternidade é cultuado em nossa sociedade. Mesmo que a Psicologia da Gravidez, Parto e Puerpério esteja contribuindo muito para desmistificar esta “plenitude” de sentimentos maternos, demonstrando que as mulheres experimentam sentimentos negativos desde o momento que descobrem uma gravidez, ainda sim essa desmistificação parece estar restrita aos meios acadêmicos. É um discurso que encontra grandes resistências sociais e individuais, o que dificulta a mudança interior. Quando falamos desta “rejeição materna”, comum a todas as mulheres, falamos de todas as mudanças que um filho traz à vida das mulheres e do casal. Ter de abdicar de algumas atividades, ter de adaptar-se aos novos horários, ter de assumir responsabilidades novas, causa ansieda23
des, medos e fantasias que se traduzem na rejeição que estamos mencionando. Além do mais, a mudança corporal durante a gravidez reproduz simbolicamente a mudança de identidade à que a mulher vai tendo de adaptar-se aos poucos, e como em toda mudança os sentimentos não são só os de alegria e plenitude. Estes sentimentos de “rejeição” se alternam com os sentimentos de alegria para com a idéia de conceber e resumem o conceito do que chamamos de ambigüidade materna. Pesquisas mostram, inclusive, que mulheres que aceitam seus sentimentos negativos para com sua gravidez têm menor incidência de problemática nos partos que aquelas que negam tais sentimentos: “...A admissão de sentimentos negativos referentes à gravidez pareceu representar um fator de proteção com relação à ocorrência de complicações obstétricas...talvez, as pessoas que conseguem falar abertamente de seus sentimentos negativos tenham melhores condições de elaboração mental dos mesmos e de cooperar posteriormente no necessário.” 7 Mas estes conceitos ainda são novos comparados a alguns séculos de uma visão estereotipada da maternidade. Se o ideal da maternagem era o da satisfação absoluta e negação de qualquer sentimento que não fosse o da felicidade e euforia, então não poderíamos ter “mães ingratas”. Mas se eles existiam, mesmo que abafados pelas defesas do ego, então era necessário que fossem pro jetados em alguém. Ninguém melhor que as madrastas. Assim madrasta tornou-se uma palavra perfeita para designar estas mulheres que não eram as “mães de verdade”. Quando procuramos o significado da palavra madrasta nos dicionários de Língua Portuguesa encontramos dois significados distintos. O primeiro diz respeito à relação de parentesco: “Mulher casada, em relação aos filhos que o marido teve de casamento anterior” 8. O segundo significado diz respeito ao sentido figurado da palavra: “mãe ou mulher descaroável; pouco carinhosa; ingrata; má; vida madrasta”. 9 Se madrasta é a palavra para designar uma mãe ou mulher ingrata e pouco carinhosa, então esta designação não necessariamente deve ser aplicada a “mulher casada, em relação aos filhos que o marido tem de casamento anterior”. Contudo, estes dois significados distintos da palavra parecem estar sempre unidos tornando o termo madrasta sinônimo para duas designações: o da mulher má e o da mulher que se casa com um homem que já é pai. E parece ser isto o que mais acontece quando uma mulher se une a um homem que já é pai: enfrentar também o 24
estigma de “mulher má”. Um Dicionário de Sinônimos e Antônimos da Língua Portuguesa chega mesmo a colocar, como sinônimos da palavra madrasta, somente àqueles que se referem ao sentido figurado: “Ingrata, cruel, avara, ríspida, descarinhosa, má.” 10 Neste dicionário não há sequer menção de outro sinônimo para madrasta: o da mulher que se casa com um homem que já é pai. Outro aspecto interessante do significado da palavra é que, uma mãe pode ser considerada uma madrasta quando ela é pouco carinhosa, ingrata ou má. Já ouvi mesmo uma mulher dizer: “minha mãe mais parece uma madrasta”. Porém o inverso não é verdadeiro: a palavra mãe não é sinônimo para as madrastas consideradas “boas”. E muito embora frases do tipo: “Esta mulher é como uma mãe para mim” sejam até freqüentemente verbalizadas, elas não encontram respaldo do ponto de vista conceptual, e defrontam-se ainda com outras expressões repetidamente utilizadas: “mãe é uma só”. E me parece é este sentimento contraditório que as madrastas experimentam na vida real. Sendo assim, a madrasta inexiste enquanto identidade, ela não é única. Ela é diferente de pai, mãe, irmão, irmã, padrasto, avô e avó, todos bem definidos, com apenas um sentido. Já a madrasta está im pregnada de significados que não lhe foram atribuídos num primeiro momento. E nem o serão num segundo. Madrastas vão lidar com uma falta de identidade porque simplesmente não possuem um modelo satisfatório: por um lado lhe são atribuídas funções maternas que se confrontam diretamente com o fato de ela não ser a mãe natural, esperando-se dela que seja uma “boa mãe madrasta”; por outro ela carrega seu título de mãe má, esperando-se também que não seja tão boa como a mãe natural. Um tanto contraditório, não? Esta ambigüidade presente na construção do papel mais adequado de “ser madrasta”, está intimamente ligada a figura materna, tanto nas identificações positivas, quanto nas negativas. E estar tão próxima desta figura pode também aprisionar as madrastas ao ideal de maternidade, impulsionando-as a corresponder a este ideal. Isto acontece certamente quando as madrastas têm em sua história pessoal o ideal internalizado pela própria experiência com a figura materna. Além disso, as madrastas podem sentir a necessidade de reagir inversamente ao papel estigmatizado de mulher má. Geralmente, elas assumem tarefas para com os enteados que não são suas, que deveriam estar sendo exercidas pelos pais biológicos. Muitas vezes este comportamento cria uma competi25
ção com a mãe biológica, que vê ameaçada sua posição afetiva na vida dos filhos, além é claro de confundir a criança. Além do confronto com estes dois sentimentos opostos, o da plenitude e bondade contra o da maldade e rejeição, as madrastas tem de lidar com mais uma falta fundamental: o ato de conceber. Isto provoca uma lacuna na relação de madrastas/enteados que diz respeito às experiências não vividas por ambos. Enquanto uma mãe biológica supostamente acompanha o crescimento de seus filhos desde o início de sua existência, a madrasta geralmente começa a estabelecer um vínculo com os enteados em uma fase posterior do desenvolvimento. Sabemos que é nos primeiros anos de vida que as crianças necessitam vivenciar uma relação íntima com a figura materna. Um vínculo simbiótico que protege a criança e proporciona a internalização dos comportamentos positivos da mãe. Este vínculo vai sendo abandonado paulatinamente durante o desenvolvimento infantil. Esta estreita ligação entre mães e filhos, esta belece uma relação de “reconhecimento” que um simples mortal não pode compreender. Mães reconhecem seus filhos, filhos reconhecem suas mães. Além das características físicas que carregamos geneticamente, uma mãe atenciosa parece identificar o significado de um sim ples movimento de seu filho. A máxima da maternidade: “Coração de mãe não se engana” é difícil de ser negada. É a falta deste “reconhecimento natural” que pode provocar certa angústia nas madrastas, principalmente no relacionamento inicial das madrastas de tempo integral com os seus enteados. Porque elas atuam como figuras maternas, assumindo os cuidados com os enteados, mas não os podem reconhecer como filhos. E o cotidiano se encarregará de mostrar isso diariamente. Podemos citar vários exemplos que à primeira vista podem parecer sem grande importância, mas que na verdade assumem um significado importante para a relação. Se a madrasta assume os cuidados de enteados pequenos, e torna-se responsável por leválos ao médico, por exemplo, perguntas sobre vacinação, remédios, doenças que a criança contraiu quando mais nova, etc., podem ser um tormento, porque não ter esses dados propicia o confrontamento com a falta do “reconhecimento natural”. Participar de reuniões escolares, sem conhecer o histórico escolar da criança é igualmente desconcertante. Receber os primos, tios, avós sem poder compartilhar de histórias típicas desses encontros, tais como: “você se lembra quando aos 3 meses ele caiu do berço... não tomou mamadeira... não dormia à noite...” também coloca 26
as madrastas frente a sua ambiguidade fundamental: comportar-se como uma mãe biológica, mas não ser esta mãe, confrontar-se com a lacuna da relação que se contrapõem ao ideal materno. Conviver com esta lacuna é certamente aceitar os limites da relação, negá-la é prolongar a angústia. Embora as madrastas tenham aflições semelhantes, que se remetem a este sentimento de “vazio”, devemos levar em conta as situações específicas de cada relação. As madrastas de tempo parcial confrontam-se mais com a lacuna porque ela é mais visível, por outro lado a similaridade com o papel materno está mais distante. Já as madrastas de tempo integral, têm que se defrontar com a ambigüidade e o vazio pode ser mais angustiante. Porque elas passam a construir o reconhecimento, mas isso necessita de convivência contínua e afeto. Mas em ambos os casos se as madrastas conseguem conviver com estas faltas, os enteados também conseguirão. E isto torna a relação mais amadurecida e facilita a construção da identidade e do vínculo afetivo. Desta forma, com o passar do tempo, mesmo algumas madrastas poderão reconhecer seus enteados a distância, seus movimentos, seus desejos, suas angústias, e poderão dizer “Coração de madrasta não se engana”, mas isto está longe de ser comparado ao ideal da maternidade. Se por um lado as madrastas se defrontam com o ideal da maternidade que se contrapõe as realidades e sentimentos da vida cotidiana, as crianças também o vivenciam. Se as madrastas tem medo de não corres ponder ao modelo, as crianças tem medo de perder o ideal da mãe perfeita, sempre cheia de amor e proteção. Sim, porque ao se aproximarem da madrasta temem perder a segurança que, em suas fantasias, só a mãe biológica pode fornecer. A madrasta simboliza a ruptura do contato com a mãe, mesmo que ela esteja viva, mesmo que a criança more com ela. Em inglês, a palavra madrasta é traduzida por “step mother”. A palavra “step” significa perda; vem do inglês “steop” e da palavra do antigo alto alemão ligada ao sentido de destituído e destituição. Sendo assim, O “Dictionary of Slang and Unconventional English” (dicionário de gírias e inglês não convencional) informa que expressões como “step off” e “step out” se referem a morrer, o que confirma a estreita ligação entre a palavra “step” e morte.11 O “Scottish National Dictionary” dá a expressão escocesa usada para madrasta: “step-minnie” e ainda diz que na Escócia um ano de morte ou privações é considerado como “um ano de madrasta”. 12 Sendo assim, a palavra madrasta tem um significado de perda da mãe, o que simboliza a perda da fantasia de uma mãe sempre presente, 27
boa e dedicada. Num primeiro momento, quando o casamento era considerada uma instituição fechada e indissolúvel, ter uma madrasta era sinal da perda concreta da mãe, da morte da mãe biológica. Com a legalização do divórcio, ter uma madrasta não significa necessariamente ser órfão de mãe, mas sim ter de conviver com mais uma figura feminina que se assemelha à figura materna e que ao mesmo tempo se opõe a ela. Ter uma madrasta representa defrontar-se com duas mortes essenciais: a morte simbólica da mãe sempre boa e dadivosa e a morte simbólica de uma relação que deveria “durar para sempre”. Embora o papel das madrastas na vida dos enteados, da família e da sociedade ainda não tenha sido bem delineado, porque sofre significações pré-concebidas, não podemos negar que muitas madrastas atuam como “mães substitutas”, principalmente as madrastas de tempo integral. Este conceito, o de “mãe substituta” pode ser analisado por vários ângulos e pode também correr o risco de ser mal interpretado. Na minha opinião, uma “mãe substituta” é toda aquela figura, seja masculina ou feminina, que cumpre funções maternas concretas e/ou afetivas, freqüentemente ou circunstancialmente na vida das crianças e que não é a mãe biológica. Sob este prisma, qualquer pessoa pode cumprir funções maternas e ser considerada uma “mãe substituta”. Porém, as figuras femininas, como avós, empregadas domésticas, tias, irmãs mais velhas, freqüentemente tornam-se mães substitutas para as crianças, mesmo que a mãe biológica coexista com elas. O vínculo entre a criança e a “mãe substituta” é que vai ser diferenciado, porque cada criança vai buscar nesta relação satisfazer as suas necessidades pessoais. A palavra substituta não representa uma substituição concreta da mãe por outra figura (embora isso possa ocorrer nos casos onde a mãe biológica não está mais presente na vida dos filhos), mas sim que na ausência da figura materna a outra figura assume responsabilidades e cuidados para com as crianças. E embora eu não ache o termo substituta o mais adequado para esta conceituação, não consigo encontrar outro mais satisfatório. As madrastas então, de alguma forma fazem parte deste grupo de “mães substitutas”, mas nem por isso devem ser comparadas em sua função, com a mãe biológica das crianças. Portanto, se as madrastas são de alguma forma “mães substitutas”, sua família é uma “família substituta”. Mas este conceito serve apenas para diferenciar a família nuclear das outras famílias que não apresentam a constelação mãe, pai, filhos, ou ainda que possuem a presença de outros membros. É apenas um referencial para distinguir as famílias 28
que não se enquadram na constituição da família primária, porque veremos, esta diferença tornou-se fundamental em nossa sociedade. 13 Smith, em seu livro “Madrastas, mito e realidade” levanta um outro aspecto interessante sobre a diferença de aceitação social para com as “mães substitutas”. As mães adotivas e de criação “são admiradas pela sociedade, enquanto as madrastas são quase sempre vistas com desconfiança”. Para esta autora, “Uma mãe de criação escolhe criar um filho, uma mãe adotiva escolhe adotar uma criança, uma madrasta escolhe o pai delas.” 14. Não concordo integralmente com a autora porque acredito que as madrastas, de alguma forma, em algum nível, também “escolhem” estar com as crianças, mesmo que neguem conscientemente isto. Não pretendo aqui discutir todas as relações possíveis entre os casais, os encontros e as peculiaridades de cada relação, muito menos opinar sobre questões como “amor à primeira vista”. Só acredito que ninguém faz uma escolha afetiva sem levar em consideração aspectos importantes da vida do outro, mesmo que no plano inconsciente. Portanto, as madrastas muitas vezes não optam concretamente por assumir a maternidade como as mães de criação ou as adotivas, mas sabendo da existência das crianças e da importância delas para o companheiro, devem vislumbrar um futuro familiar mais amplo do que uma vida a dois. Até porque, mesmo que as crianças vivam com a mãe e só visitem o pai de vez em quando, a vida não pode ser controlada o tempo todo e nos coloca a frente de situações que muitas vezes evitamos em pensar. A morte de uma mãe ainda jovem, por exemplo, é uma destas situações que reviram do avesso a vida das madrastas e de seus companheiros. Também o desejo das crianças, em determinada fase de suas vidas (principalmente na adolescência) de querer morar com o pai é uma variável possível e mais comum do que se imagina. Por isso, desvincular totalmente as crianças do pai, afastando estas situações possíveis de estreitamento de vínculo com elas, só trará problemas na vida concreta do casal, e na identidade da madrasta. O que concordo plenamente com a autora é que as madrastas possuem um significado social bastante diferenciado das outras “mães substitutas”, e suas dificuldades ou são exacerbadas ou minimizadas pela sociedade. O que posso efetivamente perceber é que com o crescente número de divórcios, houve também um aumento significativo no número de mulheres que se tornaram madrastas, principalmente as madrastas de tempo parcial. Como conseqüência do movimento feminista e da tentati29
va de revisão dos papéis de homem/mulher, bem como das dificuldades que a sociedade moderna colocou frente as pessoas (dificuldades financeiras, de habitação, etc.) novas relações familiares foram se criando e como toda nova situação, há que se ter um tempo para elas se estruturarem, tempo este que parece, ainda não foi suficiente. Porque ainda encontro com freqüência mulheres que se sentem extremamente culpadas por deixarem seus filhos aos cuidados de outras pessoas para poderem ir ao trabalho. Ainda encontro homens que se divorciam no momento em que suas mulheres resolvem estudar. Ainda encontro casais que vivem cada um a sua vida sem nenhuma parada para um diálogo afetivo, e que só não se divorciam porque não suportam a idéia de um matrimônio fracassado. Ainda encontro crianças emocionalmente perturbadas porque vivem situações familiares insustentáveis. E mesmo com toda a “aparente mudança”, ainda sim encontro madrastas que se incomodam com este papel, que relatam uma dificuldade em encontrar uma posição confortável na família e uma angústia provocada pela visão estereoti pada da madrasta má que persiste até hoje. As polaridades mau versus bom, sempre fizeram parte da humanidade. E cada sociedade se encarrega de depositar essas polaridades nas figuras que bem lhes convir, que possam garantir uma suposta “norma social”. Com a figura da madrasta isso não foi diferente. E a expressão social que mais delegou às madrastas as características típicas que modelam o mau, sem dúvida foi a divulgação dos Contos de Fadas clássicos. Quem não se recorda da madrasta de João e Maria que os abandona cruelmente na floresta? E da pérfida Rainha de Branca de Neve, que manda matar a pobre enteada? Ou ainda da madrasta de Cinderela, que a maltrata sem dó nem piedade? Com certeza, essas histórias são uma das primeiras referências que uma criança tem sobre a madrasta. E este primeiro contato deve ser realmente amedrontador. Mas seria ingenuidade demais se atribuíssemos aos Contos de Fadas a responsabilidade de difundir, no mundo todo, a imagem da madrasta má. Porque essas histórias, como veremos no capítulo seguinte, são expressões do povo, são uma coletânea do modo de pensar, agir, desejar, temer, amar e odiar que se revela através de personagens atrativos e histórias cheias de magia. Se essas histórias não encontrassem ressonância social, não sobreviveriam, e talvez o papel social das madrastas não ficaria tão impregnado. Mas ao contrário, século após século as personagens são aclamadas da mesma forma. 30
Se os Contos de fadas não transmitissem uma linguagem subliminar, que estabelece uma ponte com o inconsciente e com seus conteúdos, então não fariam tanto sucesso e não resistiriam por tanto tempo. Creio que eles apenas reproduzem em seu enredo as manifestações psíquicas do homem e da sociedade; estão longe de ditar normas por si só. Sendo assim, nos indagamos que em algum momento houve a necessidade de depositar na madrasta uma parcela da maldade humana e houve também a tentativa de estirpá-la da dinâmica familiar. Porque invariavelmente todas as madrastas das histórias infantis morrem tragicamente no final. Elas são combatidas, e como toda pecadora estão fadadas a pagar pelos seus pecados. Se os Contos de Fadas reproduzem os conflitos humanos, então assumir o papel da madrasta é defrontar-se com alguns destes conflitos, que são comuns ao desenvolvimento psíquico de todos nós. Quando tomamos uma história, do ponto de vista interpretativo, podemos avaliar seus personagens e suas atitudes com certa facilidade, percebendo seus movimentos diante das suas necessidades psíquicas fundamentais. A Interpretação das histórias de fadas pode possibilitar leituras diferenciadas, depende portanto, de como cada agente interpretativo encara a temática da história diante de sua perspectiva de trabalho. No âmbito da Psicologia, as diversas teorias possibilitam que o curso da história seja analisado por variados ângulos, já que o processo psíquico dos indivíduos é explicado de forma diferente. Assim, a Psicanálise tratará de decifrar o conteúdo das histórias, baseando-se nas necessidades do herói diante de seu conflito interno; já a Psicologia Analítica de Jung dará maior ênfase aos aspectos que reproduzem o inconsciente coletivo e os tipos arquetípicos das personagens. Mas em ambos os casos, o herói é o ponto de partida para a interpretação, assim como o enredo é decifrado através dos símbolos. O que muda efetivamente é que pode-se interpretar a história como ela é, transportando-a para a vida real, sem aprofundar-se no conteúdo simbólico do conto e sem se levar em conta as relações que se estabelecem entre os personagens sob o ponto de vista dos processos psíquicos de cada um. Sendo assim, podemos utilizar o conto “João e Maria” para exemplificar um estudo sobre as mães que abandonam seus filhos ainda na maternidade, sem interpretar as dificuldades de João e Maria em libertarem-se da dependência materna, sem tomar o conto como linguagem 31
simbólica, não concreta. E mesmo não sendo esta a minha abordagem, nada impede que este tipo de leitura seja utilizada com sucesso. Eu mesma tive a oportunidade de presenciar isso. O livro “Pele de Asno não é só história” 15 é um estudo sobre a vitimização sexual de crianças e adolescentes em família e das conseqüências desastrosas deste tipo de relação. As autoras deste estudo que se tornou livro, utilizam a história “Pele de Burro”(ou “Pele de Asno”) para ilustrar o desgaste emocional das crianças que se defrontam com o abuso sexual de seus pais. “ Pele de Asno” conta a história de um rei que, depois de percorrer vários reinos à procura de uma esposa que se assemelha em beleza e virtuosidade a sua falecida esposa, percebe um dia que sua filha não só assemelhava-se à mãe, mas como era ainda mais linda e virtuosa. O rei decide então casar-se com a própria filha. A princesa assustada, com a ajuda da ama, foge do castelo, vestida com uma pele de asno para não ser reconhecida e vive outras aventuras até casar-se com um príncipe para ser feliz para sempre . O objetivo das autoras não era o de interpretar as relações edípicas entre pai e filha, mas sim o de tomar o conto pelo prisma de uma realidade cruel. E isso elas o fizeram com clareza e êxito. “Adeus, Bela Adormecida”16 de Madonna Kolbenschlag também é um exemplo da utilização dos contos com objetivos bem definidos. A autora utiliza contos clássicos que envolvem figuras femininas, como “Cinderela”, “Branca de Neve”, “A Bela e a Fera”, entre outros, para fazer uma reflexão da condição feminina e sua representação na sociedade nos dias de hoje. Reconhece em “A Bela Adormecida” por exem plo, uma passividade feminina que precisa ser quebrada; em “Cinderela” uma condição de vítima e insignificância que precisa ser modificada, e assim por diante. O livro, que é muito interessante, aprofunda-se na questão feminina, enfatizando as pressões sociais e culturais a que foram submetidas as mulheres e as relações entre o machismo e o feminismo na história da humanidade. “Madrastas” tem também um objetivo muito claro, o de utilizar os contos de fadas para interpretar os conflitos humanos com esta figura que está intimamente ligada à figura materna. Tenta buscar um caminho para entender a estigmatização das madrastas na sociedade através das necessidades infantis de internalizar uma figura materna sempre boa e amorosa, projetando nas madrastas os sentimentos negativos que são originalmente voltados para a mãe. E procura oferecer ao leitor a possibilidade de refletir sobre o assunto, e talvez esse seja seu maior objetivo. 32
“Minhas estórias da Carochinha, meu melhor livro de leitura capa escura, parda, dura, desenhos preto e branco. Eu me identificava com as estórias. Fui Maria e Joãozinho perdidos na floresta. Fui a Bela Adormecida no Bosque. Fui Pele de Burro. Fui companheira do Pequeno Polegar e viajei com o Gato de Sete Botas. Morei com os anõezinhos Fui Gata Borralheira que perdeu o sapatinho de Cristal na correria de volta, sempre à espera do Príncipe Encantando desencantada de tantos sonhos nos reinos da minha cidade”
Cora Coralina*
* Cora Coralina., Meu Melhor Livro de leitura , In Vintém de Cobre, Goiânia, Editora da Universidade Federal de Goiás, 1984, p. 54/5. 33
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CAPÍTULO I
A M adrastadosContos deF adas “– Ai, ai minha pobre babá. – respondeu Graciosa – Quem não havia de chorar? O rei vai dar-me uma madrasta... Como poderei vê-la deitada nesse belo leito que a rainha minha mãe bordou ela mesma com suas delicada mãos? Como poderei acariciar essa macaca que gostaria de me matar?” (Graciosa, do conto “Graciosa e Percinet”)1
Nenhuma coletânea de histórias dá tanta importância às madrastas quanto os contos de fadas. Foram eles a grande manifestação social que revelaram as polaridades, as ambigüidades e os estigmas sociais. Como as bruxas, as madrastas são as responsáveis por todo o sofrimento moral, emocional e físico dos heróis e heroínas dos contos de fadas. Não há madrastas boas, assim como, com raríssimas exceções, as fadas são capazes de qualquer ato maléfico contra os heróis. Por mais que os contos de fadas se passem na terra do nunca e suas imagens sejam fantásticas e irreais, eles se prestam a reproduzir os conflitos humanos como ninguém. Utilizando imagens sobrenaturais, cheias de detalhes, os contos de fadas falam ao inconsciente permitindo que nossas fantasias sejam vividas e elaboradas. Ninguém precisa sentar junto às cinzas como “Borralheira” ou ser abandonado na floresta como “João e Maria” para vivenciar o abandono e a rejeição. É através da linguagem simbólica do conto que crianças e adultos experimentam experiências interiores como se fossem experiências sensoriais, como se fossem algo que estivessem fazendo ou que fosse feito a eles no mundo dos objetos. 35
Os dilemas existenciais vividos pelas personagens dos contos permitem ao espectador, em especial a criança, apreender o problema na sua forma mais essencial, onde uma trama mais complexa confundiria o assunto para ela. É através da linguagem simbólica da história que a criança estabelece uma ponte de significação do mundo exterior para seu mundo interior. É esta linguagem que fascina a criança e torna possível a apreensão do conteúdo simbólico do conto. Este livro enfatiza os contos de fadas clássicos, aqueles mais conhecidos em nossa cultura. E para os entendermos enquanto manifestação simbólica do universo humano, faz-se necessário tecermos algumas contribuições acerca de seu surgimento e sua transformação na literatura infantil. Nelly Novaes Coelho2 diferencia, por exemplo, os Contos Maravilhosos dos Contos de Fadas. Para esta autora, os Contos Maravilhosos têm origem Oriental e são datados de séculos antes de Cristo. Na Idade média foram reconhecidos em fontes Européias e na passagem da Era Clássica para a Era Romântica tornaram-se literatura para criança. No Conto Maravilhoso não há a presença de fadas embora o cotidiano assuma as propriedades “mágicas” da história. Além disso, a característica da busca do herói é aquela ligada ao desejo de auto-realização. São narrativas que se iniciam geralmente com situações de miséria e fome, diante das quais o herói sai à procura de soluções. Também a busca pelo poder, riqueza e realização pessoal são os temas centrais destes contos. Segundo a classificação desta autora, seriam Contos Maravilhosos: “Simbad, o marujo”, “As mil e uma noites”, “Aladim e a Lâmpada Maravilhosa”, entre outros. Já os Contos de Fadas têm origem Céltica e surgiram como estilo de literatura no século XVII. Os Celtas foram um povo que, originários da Ásia, povoaram alguns países da Europa como a Alemanha, Gália, Ilhas Britânicas, Península Ibérica. Foram se expandindo e se fundindo com germanos, gauleses, francos, etc. Os Celtas dividiam-se em tribos e clãs e emigravam em busca de grandes pastos para carneiros e gado. Não eram um povo essencialmente guerreiro, guerreavam apenas em defesa de sua plebe e bem-estar. Eram sim um povo simples; veneravam todas as manifestações da natureza o que caracterizava sua espiritualidade voltada a eleição de divindades agrárias e cultos aos animais. As fadas parecem ter nascido no seio da cultura céltica, e com elas uma sucessão de histórias de amor espiritual, eterno, mágico e indestrutível. 36
Os Contos de Fadas podem ou não ter a presença de fadas, mas têm como particularidade principal a magia feérica. O tempo não apresenta uma cronologia linear no enredo e o desejo do herói normalmente está ligado à união homem/ mulher. São Contos de Fadas: “Cinderela”, “A Bela Adormecida”, “Rapunzel”, “Branca de Neve”, entre outros. Podemos dizer que os Contos de Fadas são uma variação dos Contos Maravilhosos, e ainda ambos são diferenciados das Fábulas e dos Mitos. As Fábulas possuem a característica de contarem com uma moral explícita no enredo: “A Cigarra e a Formiga” 3 é uma Fábula bastante conhecida no Ocidente que exemplifica bem este tipo de narrativa. Além disso, as Fábulas se valem geralmente da utilização de animais como protagonistas da história. Já os Mitos são caracterizados por acontecimentos grandiosos, por transmitirem uma força espiritual, onde o divino está presente sem pre solicitando os simples mortais.4 Muitos contos de Fadas desenvolveram-se a partir dos mitos; outros foram a eles incorporados, mas cada uma dessas formas literárias estabelece uma ponte de significação particular. A característica divina dos mitos não permite que a criança se aproxime o suficiente para que possa identificar-se com seus heróis, além do mais os heróis mitológicos são em sua maioria adultos. Nos Contos de Fadas, ao contrário, os heróis são crianças que sofrem dilemas existenciais que qualquer criança pode vivenciar, como a morte das figuras parentais, as dificuldades com os irmãos, a fome e a miséria, etc. Além disso os mitos quase sempre terminam de forma trágica, o que não corresponde ao final sempre feliz das histórias de Fadas. Outros autores ainda distinguem os contos com relação a sua construção. Assim, por exemplo, Wundt5 propõe a seguinte divisão: Contosfábulas mitológicos; Contos de feitiçaria puros; Contos e fábulas biológicas; Fábulas puras de animais; Contos “sobre a origem”; Contos e fábulas humorísticos e Fábulas Morais. De qualquer modo, estejam estas classificações válidas ou não, até porque os limites entre elas me parecem muito tênues, há uma importância básica para diferenciar todos esses contos das histórias infantis mais recentes: sua autoria. Enquanto as histórias infantis atuais têm uma autoria definida, ou seja, agentes específicos que as escrevem, os contos de fadas clássicos foram retirados da chamada “sabedoria popular”. Seus autores são anônimos, como todos nós o somos no meio de uma multidão. Assim, os 37
escritores dos Contos de Fadas que nós conhecemos, não os inventaram propriamente, eles coletaram e organizaram este material oral em material escrito, ou seja, registraram a literatura oral. É por isso que os livros dos Irmãos Grimm são conhecidos como: “Coletânea dos Irmãos Grimm”, o que nos dá a idéia da compilação. As histórias de fadas de hoje sofreram modificações durante séculos. Encontrar o original de Chapeuzinho Vermelho é o mesmo que procurar uma agulha em um palheiro, se é que esta agulha realmente exista. Ao estudarmos a origem dos contos de fadas nos deparamos com versões diferentes de um mesmo conto em uma mesma cultura. O que dirá em culturas diferentes. Assim, só como exemplo, a “Cinderela” dos Grimm perde um “sapatinho de seda bordado de ouro”; já a versão de Perrault é entitulada “Borralheira ou Sapatinho de Vidro” 6 e como o título diz, o sapatinho perdido fazia parte de “um par de sapatinhos de vidro, os mais lindos do mundo”. “Chapeuzinho Vermelho” nas versões mais antigas era conhecida como “Capinha Vermelha”. “ Branca de Neve” que ficou conhecida como “Branca de Neve e os sete anões” por obra dos estúdios Disney, é na Itália “A moça de leite e sangue”, porque na Itália por raramente nevar, as três gotas de sangue do dedo da rainha caem no leite, no mármore ou mesmo no queijo branco. 7 Já na versão russa8 não são sete anões que habitam a casinha da floresta e sim sete cavaleiros, e a história se chama: “O Conto da Princesa Morta” *. Cachinhos de Ouro era conhecida inicialmente como “Cabelo de prata” que se tornou “Cachinhos de prata” para transformar-se posteriormente em “Cabelos de ouro” e finalmente “Cachinhos de Ouro”, como conhecemos hoje. Todas essas diferenças são fruto das modificações sociais, morais e culturais pelas quais cada sociedade e num nível mais amplo a humanidade tem passado desde seu surgimento. Além disso cada história passa por adaptações que moldam o enredo, e principalmente os detalhes, às particularidades culturais de cada país. Porém, por mais que estes coletores de material folclórico tenham modificado detalhes, omitido ou mesmo acrescentado outros, seria por demais injusto delegar-lhes toda a responsabilidade pelas modificações. Viviam em sociedade como nós, contaminados pelas normas morais como nós e como nós, tinham sua própria história e objetivo de vida. Foi Charles Perrault quem primeiro (séc.XVII) recolheu estas histórias da tradição oral, dando forma literária àquilo que antes era can38
ção ou poema. Assim a corte francesa de Luis XIV tinha uma nova forma de entretenimento: ouvir os contos de Charles Perrault. Mas sua linguagem não era casual. Perrault fazia questão de explicitar a moral vitoriana da época, alertando os ouvintes para os perigos da atuação das fantasias e desejos. Além disso Perrault foi extremamente influenciado pela luta feminista de uma sobrinha. Tentando demonstrar a condição feminina da época, Perrault moldou as personagens segundo as idéias de masculino e feminino que imperavam naquela época. Contudo acabou com isso reforçando os estereótipos femininos e masculinos, ao invés de tentar contestá-los. E assim, somente como exemplo, Charles Perrault termina Cinderela:
“E esse pequeno dom chamado graça, que tece suaves formas e face... e se quereis aprender como e que se faz hoje para ter o dom de apontar o dedo dourado Que atravessará no príncipe Seu coração Jovens, não é preciso mais Do que ser tão gentil e doce Quanto ela!” 9 A mensagem de Perrault é clara: somente as jovens doces e gentis conquistarão um príncipe encantado. A utilização de histórias como veículo de mensagem bem endereçada não é um privilégio de Perrault. A cultura Oriental há muito se utiliza de Histórias para ajudar o indivíduo a esclarecer seus problemas oferecendo-lhes uma saída. A “moral da história” é ainda um termo bastante utilizado por nós para educar, reprimir ou simplesmente aconselhar alguém. Hoje existem formas de Psicoterapia que utilizam história orientais para elucidar o conflito dos pacientes. É claro que a história é utilizada como um instrumento para facilitar a compreensão, e não para incutir uma lição moral. Nossrat Peseschkian10 teceu uma teoria chamada “Psicoterapia positiva” que toma como base os princípios da sabedoria milenar. Esta teoria crê que algumas parábolas orientais poderiam atuar como fantasia de suporte para o paciente identificar situações e ampliar 39
sua visão dos conflitos e atitudes cotidianas. Também tenho visto crescer o número de terapeutas que se utilizam da poesia e da música com o mesmo objetivo. Cabe ao psicoterapeuta utilizar estas ferramentas adequadamente, para que elas não sejam protagonistas de uma ação normatizadora e ideal. A verdade é que a moral e a ética são necessárias ao processo de hominização, mas muitas vezes acabam servindo a outros fins. É em nome de um poder que a visão das normas se transforma com objetivos nem sempre tão claros assim. Um poder que controla o comportamento individual, que estabelece regras e convenções, que protege uns para desproteger outros. Rainhas só existem porque existem plebeus, prínci pes sobrevivem se sobrevivem os lacaios e para as fadas existirem em bondade e beleza devem necessariamente existir as bruxas más e horrorosas. Assim, para conservar a bondade materna devem existir as madrastas, o contraponto da maternagem. É assim também que a chamada família nuclear (pai/mãe/filhos) é o protótipo da normalidade social. As famílias substitutas se perdem num emaranhado de ambigüidades sociais, religiosas e legais. É assim com a adoção, com a tutela, e com as madrastas e padrastos que pouco têm seu papel explicitado nas relações familiares. Esta “anormalidade” familiar que constrange ainda a sociedade contemporânea é aquela que promove os “bodes expiatórios” e os sustenta enquanto necessários para garantir a norma. Os contos de fadas não deixaram de sofrer este processo. Os famosos Irmãos Grimm transcreveram os contos de fadas no século XVIII e sua importância para a literatura infantil é inegável. São as versões dos Grimm as mais conhecidas e difundidas no Brasil. BRUXAS versus FADAS = MADRASTAS versus MÃES De um número infindável de contos de fadas, alguns tornaram-se mais conhecidos porque respondem mais prontamente às expectativas sociais. As histórias de princesas, lindas e bondosas, maltratadas e abandonadas, e que como recompensa por sua benevolência e resignação ao final casam-se com um lindo príncipe encantado para viverem felizes para sempre, tornaram-se mais famosos que as histórias de pequenas camponesas que saem em busca dos irmãos desaparecidos. E em quase 40
todos eles existe sempre a contraposição entre a maldade das bruxas e a bondade das fadas. Os Contos de fadas são sem dúvida histórias que reproduziram as polaridades do universo humano. Suas personagens possuem características próprias, e essas particularidades se repetem em várias histórias, conservando a distinção. Sendo assim, encontramos mais madrastas cruéis do que mães rejeitadoras, mais bruxas incorrigíveis do que fadas passíveis de sentimentos negativos. Esta dificuldade de integrar o bom e o mau em um mesmo personagem é correlativa à própria dificuldade dos seres humanos em integrá-los como aspectos da personalidade de uma mesma pessoa. A infância é marcada pelo conflito da desintegração e a grande tarefa é aprender a construir pontes sobre a imensa lacuna entre a experiência interna e o mundo real. As necessidades infantis de amor e proteção confrontam-se diretamente com os sentimentos de ódio e raiva. Não há como, para a criança, perceber o mesmo objeto como bom e ruim, ela trata de separá-los em dois: um bom e o outro ruim. Melanie Klein 11 explica este processo de forma interessante: na mente do bebê, a mãe aparece como seio bom e seio mau. Há uma cisão na personalidade que não consegue integrar o objeto. Seio bom e seio mau são separados um do outro. A criança deseja, a todo momento que a figura materna lhe satisfaça de forma integral. Ela não está preocupada se a mãe está às voltas com outras coisas, que ela precisa dormir ou que não é hora de comer. Ela quer a satisfação imediata. A mãe precisa ser boa e dadivosa para que a criança integre os aspectos bons, sadios, em sua personalidade, para que possa sentir-se protegida e amada. Quando a mãe responde aos seus apelos, ela é o seio idealmente bom. Porém, quando a mãe não atende de pronto as necessidades infantis, quando a criança se defronta com o “não” do mundo real, então a mãe passa a ser um objeto ruim, ao qual a criança volta todo o seu ódio. Ela é o seio mau que ameaça a criança. A criança usa de sua imaginação para resolver o conflito. Pode, por exemplo imaginar que a mãe, quando lhe nega um pedido ou briga com ela, não é a mãe verdadeira, é uma marciana que roubou sua mãe e se colocou no lugar dela. 12 Fantasia aonde esta marciana poderia ter levado sua mãe e quando a trará de volta. E logo seus devaneios se dissi41
pam quando a mãe torna a aparecer, lhe afagando ou servindo um delicioso jantar. E a tal marciana poderá voltar quantas vezes forem necessárias, até que a criança possa perceber que mãe e marciana são uma só. Os Contos de Fadas reproduzem exatamente esta necessidade infantil em separar uma figura em duas, uma boa e a outra má. Em Chapeuzinho Vermelho, a amável vovó torna-se um Lobo voraz que ameaça destruir a criança. Na história a avó representa simbolicamente a figura materna. Esta adverte à Chapeuzinho que não desvie-se de seu caminho. Mas a menina não segue os conselhos maternos; conversa alegremente com o lobo e adentra pela mata para colher flores, desviando-se do caminho original. Quando chega a casa de sua avó, depara-se com o lobo, vestido de vovó. Ora, a menina sabe que descumpriu o que havia prometido à mãe, e o quanto ressentida e raivosa a mãe poderia ficar com ela. O Lobo está no Conto assumindo os aspectos negativos da figura materna (avó), ele é parte dela, ele representa a fantasia de uma mãe cruel e destruidora. Mas perceber que a amável vovó (mãe) pode ser também um lobo é por demais ameaçador. Então, a criança trata logo de separar: a vovó, sempre bondosa e o lobo sempre cruel são figuras distintas. O caçador chega, mata o lobo e vovó reaparece, benevolente como sempre. Este mecanismo de “colocar para dentro” alguns aspectos do outro denomina-se introjeção. Já o que deposita no outro aspectos que não podem ser aceitos denomina-se projeção. Segundo a teoria Kleniana, o ego esforça-se para introjetar o bom e projetar o mau. Sendo assim, em situações de ansiedade, a projeção e a introjeção são usadas como mecanismos de defesa a fim de manter os objetos perseguidores e ideais afastados o máximo possível um dos outros, mantendo-os sob controle. Ela chama este processo de posição esquizoparanóide e reforça: “... são ansiedades e defesas que persistem durante toda a vida” 13. Nossos com portamentos, muitas vezes, são regidos por estas lembranças de prazer/ desprazer o que nos faz projetar estes sentimentos nas figuras substitutas de pai e mãe. Os mecanismos esquizoparanóides, como atuação defensiva das situações de prazer/desprazer acompanham nosso desenvolvimento, e se espalham nas percepções de vida e de mundo dos indivíduos e da sociedade. Qual a sociedade que não projeta o mau em categorias específicas de seus segmentos, tornando-os verdadeiros objetos persecutórios? Da mesma forma que mulheres foram queimadas nas fogueiras 42
por serem consideradas as bruxas da Idade Média, os contestadores e intelectuais foram exilados na época da ditadura brasileira e os homossexuais foram responsáveis pela propagação da Aids no mundo inteiro, cada sociedade projeta o mau no objeto que lhe convém. E quando as questões são levantadas pela sociedade, demonstrando uma tentativa de integração, muda-se o objeto como em um círculo vicioso que resiste à mudança. Em um plano mais individual, estes mecanismos também apresentam atuação importante nas escolhas afetivas. Com maior ou menor grau, os indivíduos projetam o mau e introjetam o bem e vice-versa e esta forma rudimentar de relação com o objeto é repetida durante a vida. Só o amadurecimento psíquico pode promover a integração, se não total com uma parcialidade que facilita o enfrentamento das situações resultando em escolhas mais satisfatórias. Os contos de fadas, que colocam os personagens em categorias distintas: os bons, os maus e os omissos, reproduzem os mecanismos polarizados da posição esquizoparanóide. Por serem manifestações de um povo e por terem tido uma repercussão fantástica durante séculos, suponho que as projeções encontraram repercussão social porque fazem parte do desenvolvimento humano. E, muito embora os detalhes dos contos se apresentem distintos nas diversas línguas que foram traduzidos, assumindo particularidades em cada cultura, o tema central de cada conto se conserva o mesmo, não é modificado. Bettelheim cita em seu livro “A Psicanálise dos Contos de Fadas”, a probabilidade de “A Gata Borralheira” ser encontrada em 345 versões diferentes, espalhadas pelo mundo. As versões se distinguem em detalhes, personagens omitidos ou acrescentados e mesmo em cenários adversos. Mas sempre a temática é a mesma: uma moça que sofre pela morte da mãe biológica e é maltratada pela segunda mulher de seu pai (a madrasta) e pelas filhas dela. Concluo então que precisamos tanto de “Gatas Borralheiras” quanto precisamos de suas irmãs invejosas; que para toda “Chapeuzinho Vermelho” deve haver um lobo; e que para toda madrasta vil deve existir uma fada boa e caridosa. Madrastas e bruxas são o exemplo clássico e presente da nossa dificuldade em aceitar a “mãe má”. Ao invés de nos defrontarmos com os nossos ressentimentos com a figura da mãe, estes são projetados em outras figuras que se assemelham à sua função. E as madrastas não só assemelham-se, mas se misturam com a figura materna, ao mesmo tempo 43
que se contrapõem a ela. Além de contradizer o ideal de um matrimônio indissolúvel, ameaçam a posse e a supremacia materna. Geralmente, impregnada das projeções de “seio mau”, a madrasta se confunde com a figura da bruxa. Em algumas histórias ela se transforma na bruxa, em outras possui os aspectos dela. Diante disso a madrasta tem o mesmo significado simbólico da bruxa, assim como a mãe adquire as característica das fadas. As fadas sempre são bondosas, e surgem magicamente para solucionar os problemas dos heróis. A fada, simbolicamente, é a parte boa da mãe, e este processo na história pode ser comparado àquele do desenvolvimento infantil: “se mamãe madrasta é ruim, logo chegará mamãe fada para reparar todo o estrago e prover todas as minhas necessidades”. Para se ter uma idéia de quão próximas as mães estão das fadas, voltemos o nosso olhar para os livros de registros genealógicos ou linhagens da Idade Média. Nestes, freqüentemente atribuía-se a uma mulher sobrenatural a origem de famílias ilustres como um modo de enobrecer a família. Ter como descendência nesta época uma “mãe primordial”, uma criatura não-natural capaz de sortilégios, seria muito mais importante do que descender de uma simples mortal. 14 Embora em menor escala, as mães rejeitadoras, más e perversas também existem nas histórias infantis. Mas o interessante é que essas histórias, que podem ser consideradas exceções (levando em conta o grande número de Contos de Fadas), não foram tão difundidas em nossa sociedade, porque penso eu, confrontam o ideal da maternidade. Mas mesmo essas mães rejeitadoras são, como as madrastas e bruxas, somente a projeção do “seio mau”, não possuem os aspectos bons da personalidade, o que nos reforça a idéia de cisão. Como no caso de “Um-Olhinho, Dois-Olhinhos, Três-Olhinhos”15; uma história de uma mãe que tinha três filhas: Uma só tinha um olho no meio da testa; a segunda os dois olhos como todo mundo; a terceira possuía três olhos, um de cada lado e o terceiro no meio da testa. A mãe não gostava de Dois-Olhinhos porque ela era como todo mundo, a maltratava e a obrigava a fazer todos os serviços difíceis da casa. Suas irmãs também não gostavam dela e tentavam a toda prova lhe humilhar. Depois de muitas provas e desafios a menina vai embora com um rei, casa-se com ele e vive feliz e satisfeita em seu castelo. No final, perdoa as irmãs que vão morar com ela, e a história nada mais fala de sua mãe. Isto é interessante, porque nos contos que envolvem madrastas geralmente o fim destas é trágico. Já nos que envolvem mães menos bondosas, sim44
plesmente elas desaparecem sem deixar rastros. Posso supor que isso se deva à crença de que um dia elas voltarão ressentidas e arrependidas, pedindo o perdão dos filhos! “Um-Olhinho, Dois-Olhinhos, TrêsOlhinhos” é um conto que aborda a temática da rejeição materna e da rivalidade fraterna, porém não fez tanto sucesso como Cinderela que tem o mesmo tema central. Me parece que a realeza sempre foi mais atrativa em sua beleza, riqueza e poder do que a vida simples e sacrificada dos camponeses. Também a madrasta cruel é melhor aceita do que a mãe natural rejeitadora. “Rapunzel” 16 é outro conto que podemos considerar uma exceção, no que diz respeito à inclusão dos aspectos negativos na figura da mãe. O conto começa com o desejo de um casal em ter um filho. Depois de alguns anos a mulher engravida. Olhando pela janela de sua casa ela avista no quintal vizinho um “magnífico jardim cheio das mais lindas flores e hortaliças. Mas era cercado por um muro altíssimo, que nin guém se atrevia a escalar, porque pertencia a uma feiticeira de grandes poderes e muito temida”. A mulher vê no quintal vizinho belos pés de rabanetes e sentiu enorme desejo de comer alguns. Como não havia jeito de conseguir os rabanetes e seu desejo era tanto, a mulher foi ficando doente. O marido, assustado, resolve pegar alguns rabanetes do quintal da feiticeira, e ao anoitecer pulou o muro e arrancou a toda pressa um punhado de rabanetes, levou para a mulher que comeu-os satisfeita. Mas depois de algum tempo seu desejo tornou a voltar e o marido, ao anoitecer, pulou novamente no quintal da feiticeira. Porém, desta vez a feiticeira estava no quintal. Raivosa ela amaldiçoa o homem que pede piedade e lhe conta a história do desejo de sua mulher. A feiticeira então deixa que o homem leve quantos rabanetes quiser, mas com uma condição: “tem que me dar a criança que sua mulher vai ter. Cuidarei dela como se fosse sua própria mãe, e nada lhe faltará.” O homem apavorado concordou, e assim que a criança nasceu a feiticeira surgiu no mesmo instante, deu-lhe o nome de Rapunzel e levou-a embora. A menina cresceu, tornou-se bela, e quando fez doze anos a feiticeira trancou-a no alto de uma torre no meio da floresta... Rapunzel é um conto que fala da rivalidade entre mãe e filha. A feiticeira está representando a fantasia de uma mãe que não suporta os encantos e o despertar da sexualidade de sua filha e a trancafia em uma torre, para manter o controle sobre ela. E embora no início do conto a mãe de Rapunzel não cometa nenhum ato maléfico contra ela, também 45
não luta por ela quando a feiticeira a toma para si. Muito embora a mãe de Rapunzel e a feiticeira sejam, no plano simbólico, a mesma pessoa, esta representação só será percebida no plano inconsciente, porque no conto o abandono materno, está implícito e recebe pouca ênfase na história, mas não deixa de ocorrer. Traçando um paralelo com outro conto menos conhecido “As Três Fiandeiras”17, percebemos que a história de Rapunzel, no que diz res peito à forma que está escrita, alivia a responsabilidade da mãe. É o pai de Rapunzel que vai pegar os rabanetes na horta da feiticeira para levar à esposa grávida. É o pai de Rapunzel que, ao ser pego pela feiticeira promete lhe dar Rapunzel quando nascer. Já em “As Três Fiandeiras”, a própria mãe entrega a filha à Rainha. Porque a filha só sabia fiar o dia todo, a mãe se envergonhava dela e estava “a ponto de dar-lhe umas pancadas”. Ouvindo o choro e os gritos da menina, uma rainha que por ali passava e que gostava de ouvir a roca rodar, pede à mãe da menina que a deixe ir com ela para o castelo, onde poderia fiar à vontade. E a mãe deixou que a rainha a levasse embora. Mas ao chegar no castelo da rainha, a menina encontra três quartos cheios de linho, que ela deveria fiar como prova de sua “valente diligência”. Neste conto a “rejeição materna” aparece com mais nitidez do que em “Rapunzel”. Apesar de a mãe de Rapunzel ser semelhante a mãe de “As Três Fiandeiras”, assim como a feiticeira ser semelhante à rainha, e todas elas representarem a figura materna, “Rapunzel” fez maior sucesso, porque a olhos “nus” a mãe de “As Três Fiandeiras” parece mais cruel. Como a mãe concreta dificilmente é tomada no conto como uma figura malvada, também não há fadas ruins, por serem elas a representação do seio idealmente bom. Aliás, os Contos de Fadas poderiam ser chamados, sem sombra de dúvidas, de “Contos da boa mãe”! Mas o que é importante ressaltar é que se tivéssemos a capacidade de conhecer todas as histórias que fazem parte deste tipo de narrativa, bem como todas as transformações que sofreram, e todas as nuances culturais que adquiriram, então certamente encontraríamos um número maior de Contos onde a figura materna possa se apresentar menos cindida. Talvez um resquício desta hipótese possa ser a história da “A Bela Adormecida” 18. Como um Conto Clássico que teve um eco fantástico, esta história é uma excludente no que se refere à figura das fadas. Porque em “A Bela Adormecida” existe uma fada que não possui as características bondosas e dadivosas, comuns a todas as outras. 46
A história se inicia com o desejo de Rei e Rainha terem um filho. Quando a Rainha engravida e posteriormente dá a luz a uma linda menina, o rei trata de convidar todas as fadas para uma festa. Cada fada daria como presente à menina um dom: a beleza, a bondade, a riqueza, a virtude, e assim por diante. Só que como no reino só haviam 12 conjuntos de pratos e talheres de ouro, rei e rainha deixaram de convidar uma das fadas que eram treze no total. Porém, a fada apareceu na festa furiosa, e antes que a décima segunda fada pudesse pre sentear a menina com o dom, a fada disse: “– Quando completar quin ze anos, a princesa vai espetar o dedo num fuso e morrerá”. Então, a décima segunda fada que ainda não havia concedido um dom para a princesa, aproximou-se do berço e disse: “– Eu não tenho poderes para anular a maldição, mas posso abrandá-la. A princesa não morrerá, quando picar o dedo com o fuso. Mas vai dormir por cem anos”. Então o rei ordenou que fossem retirados todos os fusos do castelo e a princesa cresceu bela e saudável até os seus quinze anos. Só que quando completou seus quinze anos, sua curiosidade juvenil fez com que subisse a torre do castelo e encontrasse uma velha fiando em uma roca. A velha que era a décima terceira fada disfarçada, aconselha a princesa a tocar no fuso e assim satisfazer sua curiosidade com o objeto que nunca havia visto. A princesa toca o fuso, seu dedo sangra e ela cai adormecida por cem anos. Decorrido os cem anos, um príncipe acorda Bela Adormecida de seu sono profundo com um beijo e se casa com ela para ambos serem felizes para todo o sempre... “A Bela Adormecida”, além de tratar de temas ligados à descoberta da sexualidade na adolescência, permite ao leitor que entre em contato com uma fada raivosa e ciumenta. É comum que encontremos algumas versões deste conto onde esta fada é uma bruxa malvada. A dificuldade de aceitar a maldade em uma figura que deve ser sempre dadivosa é um fato que não se pode negar. Mas, ao estudarmos a cultura céltica encontramos dados interessantes no que se refere à crença nas fadas. Os Celtas não só acreditavam nas fadas que viviam nas florestas, como separavamnas em grupos com funções bem definidas. E além dos grupos das boas fadas, chamavam de Banshees as fadas que eram responsáveis por avisar a morte. Quando uma pessoa avistava uma banshee sabia que logo ela, ou alguém muito próximo iria morrer. Suponho que a décima terceira fada de “A Bela Adormecida” era uma banshee, uma das poucas que sobreviveu ao processo de estereotipação dos papéis nos contos de fadas. 47
Mesmo avaliando essas exceções, das mães rejeitadoras e das fadas nem tão boas assim, no caso das madrastas e das bruxas, elas não ocorrem. Não conheço uma história de fadas em que as madrastas se tornam boas e as bruxas se redimam de seus atos nocivos. Às madrastas e bruxas sobram as torturas, a morte ou simplesmente o descaso. No plano concreto, podemos perceber que nem só de madrastas é constituído o nosso grupo de objetos passíveis de projeções: professoras, empregadas domésticas, babás, psicólogas, etc., são alvos constantes das projeções infantis, tanto em seus aspectos bons quanto ruins. E os adultos também elegem figuras que se aproximam à figura materna para projetar seus sentimentos bons e maus: a sogra é um bom exem plo disso. A sogra é uma madrasta disfarçada. Ela faz parte do universo materno porque também é mãe, boa apenas com seus filhos, má com sua enteada, que é nora. Sogra que se preze é invejosa e competitiva, uma bruxa ardilosa que ronda a sua casa esperando apenas por um pequeno deslize seu...que pode ser fatal! Para adultos menos cindidos mamãe pode ser (de vez em quando) ruinzinha, mas a sogra é sempre mais ruinzinha que mamãe. A verdade é que nós estamos sempre procurando reviver as sensações prazeirosas de uma relação simbiótica com a mãe, projetando esta necessidade e a frustração de não alcançála, nas relações que travamos vida a fora. Para se ter uma idéia do quanto sogras e madrastas têm um significado simbólico tão íntimo, vejamos o que nos dizem os franceses: a palavra francesa para madrasta é a mesma empregada para sogra: bellemère . A tradução, mãe bela, parece-nos num primeiro momento de uma beleza de encher os olhos! Mas belle-mère é utilizado pelos franceses de forma pejorativa e irônica 19, tendo na verdade as mesmas conotações negativas que as madrastas dos contos de fadas. Na literatura infantil, quase não encontramos contos de fadas que tenham sogras como personagens, pelo menos concretamente. Porque simbolicamente ela pode ser percebida como uma fada boa (substituta da mãe boa) ou como uma bruxa ou madrasta má (projeções de seio mau). Esta inexistência das sogras nos contos infantis tem uma explicação muito simples: elas não fazem parte do mundo infantil, porque sendo os heróis dos contos de fadas crianças, elas ainda são pequenas para terem sogras. E mesmo os contos que tratam de adolescentes, estes tem como tema central a busca pelo amor objetal, a passagem da infân48
cia para a adolescência com todos os seus conflitos e não as dificuldades de um casamento e das relações familiares após o matrimônio. Uma das poucas exceções que encontrei, em contos infantis onde a figura da sogra aparece, foi no conto da coletânea dos Irmãos Grimm entitulado “Os doze Irmãos 20”. A sogra é uma figura que só aparece no final da história, quando rei e princesa se casam, mas o interessante é que ela logo se transforma em uma madrasta, o que confirma o pressu posto que sogras e madrastas têm a mesma conotação social.
Conta a história que um rei e uma rainha tinham doze filhos homens. O rei, que queria muito uma filha mulher, disse à rainha: “Se o décimo terceiro for uma menina, os outros doze terão de morrer, para que a riqueza da menina fique maior e ela seja a única herdeira do reino”. O rei manda fazer doze caixões e os coloca em um quarto trancado. A rainha por sua vez fica muito entristecida e, contradizendo a ordem do rei, acaba contando ao filho mais novo as intenções de seu marido. Aconselha o filho que fuja com seus irmãos para a floresta, e que quando o décimo terceiro filho nascer, colocará uma bandeira na torre do castelo para ser avistada por eles da floresta. Se a bandeira fosse branca é porque seria um menino e eles poderiam retornar ao castelo. Se fosse vermelha é porque haveria nascido uma menina e eles deveriam fugir para sempre. Então os doze filhos fogem para a floresta, e algum tempo depois avistam a bandeira vermelha. Os irmãos ficaram encolerizados e disseram: “Então devemos morrer só por cau sa de uma menina? Juramos que vamos nos vingar: onde quer que encontremos uma menina, faremos jorrar o seu sangue vermelho”. Os irmão encontram uma casinha na floresta e lá passam a viver. Enquanto isso, no castelo, a menina ia crescendo e certa vez encontra doze camisas pequenas na lavanderia. Pergunta à mãe de quem eram as camisas, e a rainha conta sobre a existência dos irmãos e do que sucedera com eles. A menina, que era “boa de coração e linda de rosto, e tinha uma estrela de ouro na testa” parte para a floresta à procura dos irmãos. Encontra a casinha e dentro dela seu irmão mais novo. Eles se abraçam felizes, mas temem a vingança que outrora os irmãos fizeram. Então a princesa se esconde em uma tina e quando os outros onze chegaram em casa o mais novo persuade-os a abandonarem a vingança e revela a irmã escondida. Felizes os irmãos a aceitam e a princesa passa a conviver com eles. Certo dia, a princesa que era responsável 49
pela arrumação da casa percebe que no jardim haviam doze lírios “magníficos e estranhos”. A menina colhe os lírios e no mesmo instante os doze irmãos viram corvos e saem voando. A menina desesperada encontra uma velha que diz que a única maneira de quebrar este feitiço seria a da menina ficar muda por sete anos, sem falar nem rir. A menina aceitou o desafio “... subiu numa árvore alta, sentou-se ali, e ficou fiando, sem falar e sem rir”. Acontece que um dia um rei passou por ali e se encantou com a menina. Pediu-a em casamento e ela as sentiu com a cabeça. Ele colocou-a em seu cavalo e a levou para o castelo onde se casaram. Depois que viveram alguns anos juntos e felizes, a mãe do rei, que era mulher malvada, começou a caluniar a jovem rainha, e disse ao rei: “Não passa de reles mendiga essa moça que você trouxe consigo. Quem sabe lá que espécies de coisas perver sas ela faz às escondidas. Se ela é muda e não pode falar, pode ao menos rir de vez em quando. Mas quem nunca ri é porque tem má consciência”. A velha insistiu tanto que o rei acabou se convencendo e mandou matar a esposa. Porém, o dia em que a esposa ia ser queimada em uma fogueira era exatamente o dia que marcava o final dos sete anos. Então, quando a jovem rainha já estava amarrada “à estaca e o fogo já lambia às suas vestes com línguas vermelhas... ouviu-se no ar um rufar de asas, doze corvos vieram pousando, e assim que eles tocaram o chão, transformaram-se nos doze irmãos que ela havia libertado”. Os irmãos soltaram a irmã, que já podia falar. Ela contou ao rei toda a sua história e este por sua vez ficou contente. Eles viveram felizes e unidos até a morte. “A malvada madrasta, porém, foi levada a julgamento e foi metida num barril cheio de óleo fervente e serpentes venenosas, onde morreu de morte horrível”. Neste conto cheio de detalhes, a sogra embora tenha uma partici pação pequena, é uma figura importante que impõe à nossa heroína um obstáculo difícil de transpor. Sua felicidade é ameaçada pelo ciúmes e a inveja desta sogra que não suporta a idéia de ter seu filho casado com uma mulher. Mas, se analisarmos o começo da história, esta sogra não é mais que a própria mãe da princesa em outra roupagem. Porque a princesa sente-se culpada pelo afastamento de seus irmãos do lar, por ter sido a preferida do pai, e ter causado tamanho sofrimento à sua mãe. É a culpa que move a menina a ir atrás de seus irmãos e a enxergar a mãe como uma mulher malvada que vai se vingar dela. Ao encontrar os irmãos, 50
ela vive feliz por algum tempo, mas novamente é a responsável pelo desaparecimento dos irmãos, que desta vez são transformados em corvos. Neste momento do conto aparece novamente a figura feminina, a mãe substituta que lhe impõe uma dura tarefa: a de abdicar da fala e do sorriso para resgatar seus irmãos. Ela precisa ficar muda e sem rir por sete anos, como se não pudesse expressar sua beleza, seus encantos. Ela precisa sofrer um período de introspecção, para que seus irmãos possam reaparecer na história desta família. Mas mesmo assim, o pai continua a se encantar pela filha. O rei (representação da figura paterna) casa-se com ela e retorna ao castelo. O castelo (representação do lar) marca o retorno ao início do conto, e a sogra está simbolizando a imagem materna, que persegue a filha. Na verdade é a própria filha que, movida por seus sentimentos de culpa, visualiza na sogra alguém que irá puni-la. É por isso que a sogra é a figura malvada que não a deixa viver feliz; porque ela própria não pode viver tranqüila com sua história e precisa ainda sofrer pelos danos que causou à família. Mas é quando verdadeiramente assume sua culpa fundamental, quando se sente uma bruxa que deve morrer na fogueira, ela consegue libertar-se da culpa e resgatar os irmãos. Então, a figura da mãe ameaçadora não precisa mais existir. E o final do conto delata o quanto sogras e madrastas estão intimamente ligadas como projeções da mãe má: “a madrasta malvada” em vez da “ sogra malvada” é talvez um lapso inconsciente importante para a leitura e a interpretação da simbologia dos contos de fadas, uma lacuna que passa quase desapercebida em histórias mágicas “pouco racionais”, mas que é fundamental para a compreensão do com portamento humano. Em contos de fadas para adultos, uma literatura pouco conhecida no Ocidente, as sogras aparecem mais freqüentemente como personagens importantes, muitas vezes responsáveis pelo rumo da história. E como pudemos perceber em “Os doze irmãos”, mesmo essas sogras de séculos atrás já estavam contaminadas pelas projeções humanas da mãe má. É por isso que concordo cada vez mais com a idéia de que os contos de fadas são a reprodução dos conflitos humanos, e se esses conflitos se repetem através dos séculos é porque fazem parte dos mecanismos psíquicos do homem. Assim como as madrastas dos contos infantis, as sogras dos contos de adultos são invejosas, competitivas, cruéis e más. O conto japonês “A Toalha Mágica”21 fala de uma velha que morava com o filho e 51
a nora. A mulher invejava a beleza da nora e por isso a maltratava ordenando-lhe que fizesse todo o trabalho pesado da casa. A moça que era meiga e bondosa não se queixava, o que deixava a velha mais enfurecida. Certo dia passou um monge andarilho e a nora generosa deu-lhe um bolo de arroz. A sogra quando deu falta do bolo esbravejou e mandou a nora buscá-lo. A nora foi ao encontro do monge que devolveu-lhe o presente e lhe deu uma toalha para que ela enxugasse o rosto . A cada vez que a moça enxugava o rosto ficava mais bonita e radiante, porque aquela era uma toalha mágica. Percebendo o que estava acontecendo a sogra roubou-lhe a toalha para ficar tão bonita quanto a nora. Mas a cada vez que esfregava o rosto com a toalha ele ficava mais feio e grotesco. Desesperada a velha mulher pede socorro à nora; esta parte em busca do monge para reverter a situação. O monge lhe explica que “quando uma pessoa malvada usa a toalha, acaba parecendo um demônio”. Preocupada a nora pede que o monge diga como curar a sogra: “Diga à sua sogra que use o outro lado da toalha!”. A moça voltou correndo e disse à sua sogra o que o monge havia dito. No mesmo instante a sogra virou a toalha e pôs-se a esfregar o rosto. Na terceira esfregada o rosto transfigurado transformou-se em seu próprio rosto, enrugado, mais humano. A sogra abraçou a nora e chorando disse “Querida filha, eu não via como eu era má com você!”. E deste dia em diante, tornou-se boa e generosa e trabalhou lado a lado com a nora... “A Toalha Mágica”, embora seja um conto de adultos, pouco difere dos contos infantis, onde a temática gira em torno da competitividade entre mãe e filha. Como em “Branca de Neve”, por ex., a sogra inveja a beleza da nora, e como em “Cinderela” a trata como a empregada da casa. Mas, a nora é ajudada por um monge, que está substituindo a figura do pai, e que deseja que a filha possa ainda ser mais bonita provocando a inveja materna. Como veremos nos próximos capítulos deste livro, existem conflitos na infância, como é o caso do Complexo de Édipo, que provocam os sentimentos de rivalidade entre mãe e filha e que se não bem elaborados na infância se repetirão na vida adulta. Contudo, os contos só demonstram os conflitos do herói de forma sim bólica e projetiva. Assim, a rivalidade da menina para com sua mãe é projetada na figura materna. Não é ela que sente raiva da mãe e sim a mãe é que a inveja, ou mais precisamente é a madrasta e a sogra que são figuras possíveis de ter sentimentos tão negativos para com criatu52
ras tão inocentes e bondosas! Em “A Toalha Mágica” o próprio conto se encarrega de revelar a projeção de mãe má na figura da sogra: “Querida filha, eu não via como eu era má com você!” . Quando o conflito diminui e o monge também pôde ajudar a mulher, a moça não precisa mais projetar seu ressentimento na figura da sogra. Agora a sogra dantes má e invejosa se torna uma mãe boa e calorosa! O que intriga é que o final do conto embora seja revelador não permite que a sogra se torne boa, trata logo de transformá-la em mãe. Mais uma vez, a cisão de sentimentos sobrepõe-se ao amadurecimento, o que acaba reforçando as idéias preconceituosas dos papéis familiares. Sendo assim, sogras e madrastas podem se dar as mãos: são ruins por natureza! Até este momento tentamos estabelecer um paralelo entre os papéis femininos que fazem parte, numa interpretação ampla, do universo materno. Mas o que poderíamos dizer dos papeis masculinos, que são parte integrante deste universo? Parece-me que os padrastos, no que diz respeito ao seu papel na sociedade, têm tido mais sorte que as madrastas. E embora também tenham dificuldades concretas com a aceitação de seus enteados, sua posição dentro da dinâmica familiar parece não ter sofrido uma significação tão contraditória historicamente como a das madrastas. Assim diz um Dicionário de Língua Portuguesa sobre a palavra padrasto: “Indivíduo em relação aos filhos que sua mulher teve de matrimônio anterior”22. Não há nenhum significado a mais, não há atributos negativos acoplados a seu papel. Os contos de fadas quase não falam de padrastos, e o interessante é que mais freqüentemente os contos se utilizam da figura materna substituta (madrasta) para expressar a agressão e a crueldade materna, do que a figura do padrasto. Já a “crueldade” paterna não é substituída, são os próprios reis, lenhadores, artesãos, comerciantes, que impõem aos filhos as dificuldades da vida: “... Você é meu filho único e quero aplicar o meu dinheiro, que ganhei com o suor de meu rosto, na sua instrução. Se você aprender alguma coisa que preste, poderá me sustentar na minha velhice, quando os meus membros estiverem endurecidos e eu tiver de ficar cansado em casa...” (“O Gênio na Garrafa”) 23; “Era uma vez um rei e uma rainha, que viviam juntos em boa paz e tinham doze filhos, que eram todos meninos. Então o rei disse à sua esposa: – Se o décimo terceiro for uma menina, os outros doze terão 53
de morrer, para que a riqueza da menina fique maior e ela seja a única herdeira do reino...”(“Os doze irmãos”)24; “Um pai tinha sete filhos... mas finalmente chegou uma menina... O pai mandou um dos meninos para a fonte, buscar água para o batizado; os outros seis correram junto com ele, e como cada um queria ser o primeiro a tirar a água, acabaram deixando a jarra cair no poço. Lá estavam eles parados, sem saber o que fazer, e nenhum tinha coragem de voltar para casa. E como eles demoravam tanto para voltar, o pai ficou impaciente e gritou na sua raiva: – Eu quero que os meninos se transformem em corvos! Mal ele acabou de pronunciar essas palavras...,olhou para o alto e viu sete corvos negros como carvão voando embora...” (“Os sete corvos”) 25; “... Quando o rei ficou velho e fraco e começou a pensar no seu fim, não sabia qual dos seus filhos deveria herdar o seu reino. Então ele lhes disse: – Ide-vos em viagem, e aquele que me trouxer o mais belo tapete, este será meu herdeiro, após a minha morte...” (“As três penas”)26 . Também os monstros, os bruxos e os duendes são projeções negativas da figura do pai, mas por serem figuras fantásticas, estão muito mais a serviço do inconsciente. As madrastas, por serem figuras concretas, que existem na vida real, acabam sendo um alvo mais fácil para as projeções infantis, e conseqüentemente para os comportamentos negativos das crianças. Podemos especular que os padrastos tenham sido menos estereoti pados socialmente, porque a figura paterna adquiriu outra caracterização nas relações familiares, que não a do contato afetivo íntimo com os filhos. Embora hoje a paternidade esteja sendo questionada em sua função e algumas atitudes têm sido modificadas dentro da família, ainda os pais não são cobrados em seu afeto para com os filhos. Ainda eles se responsabilizam pela ordem, proteção e manutenção financeira do lar, deixando a cargo da mulher o estabelecimento do vínculo afetivo e de grande parte da educação dos filhos, bem como dos cuidados com a higiene e saúde. Diante desta idéia de paternidade e principalmente de homem, os pais ficaram isentos da proximidade afetiva de seus filhos, e com certeza perderam muito com isso. Mas eu não estaria sendo justa se lhes delegasse a culpa por este afastamento afetivo, até porque acredito que o machismo tem sido também um fardo pesado aos homens. Para serem aceitos devem ser viris, bem-sucedidos, potentes, responsáveis e racionais. Além do mais, competir com o ideal de maternidade 54
que visualiza na relação mãe/filho um sentimento que beira o etéreo, inexplicável e intenso, é por demais frustrante para meros mortais. Um outro dado interessante é que em algumas sociedades orientais é comum que o irmão de um homem que venha a falecer, assuma a família (mulher e filhos) dele, como uma obrigatoriedade moral, já que para estas sociedades é quase inconcebível que uma mulher viva sozinha com seus filhos, sustentando-os por seus próprios meios. Também o inverso é verdadeiro, uma mulher pode facilmente assumir os filhos de um viúvo. A diferença é que as madrastas devem criar vínculos afetivos estreitos com seus enteados, o que no caso dos padrastos necessariamente não precisa acontecer. Assim sendo, elas vão experimentar diversos sentimentos porque vão lidar diretamente com as expectativas, medos e ansiedades dos enteados, facilitando a instalação dos rótulos e idéias preconceituosas acerca de seu papel. Concluindo, se espera do padrasto o mesmo que se espera do pai, assim como se espera da madrasta o mesmo que da mãe. O agravante é que se espera mais da mãe, não do pai, e acabamos com isso caindo na velha dicotomia Homem/Mulher que se expressa em cada um de nós. Concordo com Marilena Chauí27 quando afirma que os contos de fadas são ambíguos. Se por um lado possibilitam a expressão das fantasias inconscientes, por outro reforçam padrões estereotipados de com portamento. Mas me parece esta é a grande luta interna do indivíduo que os contos de fadas captaram tão bem: buscar a compreensão de um mundo de desejos e fantasias inconscientes sem desconsiderar a realidade, mesmo que não se concorde com ela. É esta capacidade de abstrair os conflitos infantis, com todas as suas contradições e polaridades, transmitindo ao mesmo tempo significados manifestos e latentes, que os contos de fadas conduzem as crianças. É através de suas imagens que a criança pode estruturar seus devaneios e com eles dar melhor direção à sua vida, além é claro de satisfazer suas necessidades de fantasiar. Pode parecer contraditório que eu, ao mesmo tempo que constate a estereotipia das madrastas nos contos clássicos, ainda assim defenda o seu conteúdo e a sua utilização. Quando sou questionada sobre isso e principalmente sobre o efeito que os contos clássicos promovem na criança, sob o ponto de vista de que acabam reforçando os rótulos sociais e os papéis femininos e masculinos, respondo sempre que, mesmo se não existissem os ideais de príncipes e princesas, ainda sim nós fantasiaríamos esses ideais e os projetaríamos em outras figuras. Não muda55
ria muito se as madrastas ficassem boas e dadivosas e as mães cruéis e ríspidas; mesmo assim ainda estaríamos cindindo bom e mau. Porque o funcionamento infantil é ambivalente e as crianças não estão preocupadas e nem têm condições de perceber as dificuldades da vida no plano concreto. Elas vivem a fantasia de um mundo repleto de magia e feliz para para sempr sempre, e, e não é preci preciso so que que o con conto to lhes lhes neg negue ue isso isso:: a própri própriaa vida vida familiar se encarrega de colocar à frente da criança os obstáculos do mundo real. E mesmo com todas as contradições das histórias, ainda acho que impor uma visão racionalizada da vida faz com que as crianças percam uma fase maravilhosa da infância, que é pura mágica, pura fantasia. Além disso, a estigmatização dos papéis não é criação das histórias, mas sim da humanidade. Se alguém tem de modificar a visão estereoti pada pada da dass nor norma mass e co conc ncei eito toss soc socia iais is somo somoss nós nós mesm mesmos os.. E nã nãoo ser seráá uma uma história de Fadas que comprometerá o olhar crítico das crianças, porque estando a serviço do inconsciente, elas não fazem mais do que elucidar. Se não fosse assim, crianças que nunca ouviram histórias de Fadas não fantasiariam os ideais masculinos e femininos, bem como não teriam tanta resistência ao se defrontarem com suas madrastas. E com certeza não é isso que ocorre. O problema é que as questões que envolvem a ambigüidade materna fazem parte dos processos psíquicos do ser humano antes mesmo que a sociedade promova figuras e objetos para que eles encontrem expressão. Diante desta constatação, as madrastas sempre estarão vulneráveis na relação com os enteados, bem como impregnadas dos estigmas sociais. E os rótulos pejorativos são repetidos por nós tão automaticamente que quando percebemos já contamos a piada da sogra ou fizemos caretas ao ouvir a palavra madrasta. Questionar os rótulos sociais é um proc proces esso so muit muitas as ve veze zess dol dolor oros oso, o, mas mas que que prom promov ovee ao ao ind indiv ivíd íduo uo seu seu amaamadurecimento e sua libertação pessoal. É tentando fugir desses conceitos pré-concebidos que muitas madrastas e enteados utilizam o termo Boadra Boa drasta sta.. Conheço várias crianças ça s que chamam suas madrastas assim, assim, e muitas madrastas que preferem preferem serem assim chamadas. Este termo certamente é utilizado de maneira positiv positiva, a, servi servindo ndo como como manif manifest estaçã açãoo de carinho carinho e afet afeto. o. E eu não não prepretendo desconsiderá-lo, mas acho necessário refletirmos sobre ele. Boadrasta sugere a inversão do sentido ruim da sílaba “má”, transformando-o no seu antônimo. Mas desta forma ele acopla à palavra madrasta 56
apenas o sentido positivo, da bondade, refutando todos os negativos, o que não muda nada. Negar nosso lado negativo é o mesmo que há anos estamos fazendo com as madrastas: privando-as de seu lado positivo. Contudo esta reflexão não pretende rejeitar o termo, porque ele é resultado de uma procura: uma forma de nomear essas mulheres que não se enquadram no sentido pejorativo da palavra madrasta. Quando uma criança se refere “a minha boadrasta” ela tenta proteger a si e a sua madrasta dos olhares desconfiados dos outros. É como estivesse dizendo: “Ela não é o que você pensa; não precisa ter pena de mim, ela é muito legal comigo e eu gosto dela também!” E se madrastas e enteados preferem utilizar o boadrasta como defesa e também como manifestação de afeto, não há porque contestar. O importante é avaliarmos que este termo parece parece manif manifes estar tar também também sua con contr trari aried edade ade com o esti estigm gmaa da da madras madrasta ta pervers perversa. a. E o termo Boadrasta não está sozinho na tentativa de quebrar os preconce preconceitos itos com as madrasta madrastas. s. Também Também encontre encontreii alguns alguns program programas as de televisão e livros infantis que tratam das relações entre madrastas e enteados com delicadeza e carinho. Como no livro de Tereza Noronha entitulado “Os Quatro Levam a Melhor” 28, que uma amiga graciosa de minha enteada fez questão de me emprestar:
– Assim diz Glória a empregada empreg ada do Dr. Alfredo, Alfred o, viúvo, pai de Cristina: “– Então, só depende de você. Seu pai não tem coragem de falar. fal ar. D. Adélia Adé lia é capaz de espera es perarr calada calad a o resto da vida... vida ... Os dois doi s têm medo de que você não queira uma madrasta. “Madrasta e “sogra” são palavras que às vezes assustam, você sabe...” E assim respondeu Cristina, a órfã prestes a assumir o papel de enteada: “– Apenas palavras... Só me interessa o que uma pessoa é. Um nome não muda nada.” A reflexão e a postura de “Cristina” diante dos rótulos Sogra e Madrasta é de um amadurecimento invejável, uma postura que a autora com certeza deva ter.
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CAPÍTULO II
J oãoeM ariaeo A bandonoM aterno “– Sabes de uma coisa, amanhã bem cedo levaremos as crianças para a floresta, onde o mato é mais espesso... Elas não acharão mais o caminho de volta para casa, e estaremos livres delas”. (a madrasta do conto “João e Maria”)1
João e Maria é um conto de fadas bastante conhecido que aborda o tema do abandono e da rejeição. Por serem estes sentimentos um dos primeiros que nós experimentamos na infância tornando importante a compreensão de como são elaborados pela criança, eu sempre utilizo esta história em minhas palestras e cursos. E o que me chama a atenção, é que quando as pessoas são solicitadas a recordarem o conto, duas imagens são rapidamente recordadas: a primeira é certamente a das duas crianças abandonadas na floresta; a segunda a da “deliciosa casinha de biscoitos”.
A história conta que perto de uma grande floresta vivia um pobre lenhador com a sua mulher e seus dois filhos, João e Maria. Como a fome assolava o país, o pobre lenhador não conseguia nem mesmo ganhar o pão de cada dia. Certa noite, ele estava tão preocupado que disse à mulher: “– O que será de nós? Como poderemos alimentar nossos pobres filhos, se não temos mais nada nem para nós mesmos? – Sabes de uma coisa, – respondeu a mulher, – amanhã bem cedo levaremos as crianças para a floresta, onde o mato é mais espesso. Lá acenderemos uma fogueira e daremos a cada criança um pedaço de 59
pão; então iremos trabalhar e as deixaremos sozinhas. Elas não acharão mais o caminho de volta para casa, e estaremos livres delas. – Não, mulher, – disse o marido, eu não farei isso; como poderei forçar meu coração a deixar meus filhos abandonados na floresta? As feras selvagens viriam logo estraçalhá-los.” Mesmo com os apelos do marido, a mulher não desistia da idéia e ele acabou concordando com ela. Mas enquanto conversavam, as crianças que não conseguiam dormir de tanta fome, ouviram os planos da madrasta. João pensou então em uma forma de salvar a si e a irmã. Ele levantou-se, abriu a porta da casa e encheu os bolsos com pedrinhas brancas que brilhavam com a luz da lua. Voltou para seu quarto e disse para sua irmã dormir tranqüila. Na manhã seguinte, a madrasta foi logo acordando “os preguiçosos” e com a desculpa de que iam todos para a floresta buscar lenha, ela deu para cada um pedacinho de pão como a única refeição que teriam no dia. Então puseram-se todos a caminho da floresta, e enquanto andavam João ia jogando as pedrinhas para marcar o caminho de casa. Quando eles chegaram no meio da floresta, o pai acendeu uma fogueira para que as crianças não sentissem frio. Então a madrasta disse: “– Agora, deitem-se junto ao fogo, crianças, e descansem, enquanto nós entramos na floresta e procuramos lenha. Quando terminarmos, voltaremos para buscá-los.” João e Maria ficaram deitados junto ao fogo. Ao meio-dia comeram o pão e ficaram lá sentados por muito tempo até que adormeceram de cansaço. Quando acordaram, já era noite fechada e Maria começou a chorar. Mas João consolou a irmã, dizendo que quando a lua surgisse eles iriam achar o caminho de volta. E assim que a lua cheia começou a brilhar, João tomou a irmã pela mão e seguiu as pedrinhas que brilhavam como moedas de prata. Caminharam a noite inteira e chegaram de madrugada à casa do pai. Bateram na porta, e quando a madrasta viu que eram as crianças, foi logo dizendo: “– Ó crianças más, por que ficaram tanto tempo dormindo na floresta? Nós pensamos que não queriam voltar mais para casa”. Mas o pai ficou contente, porque lhe doera o coração ter deixado as crianças sozinhas e abandonadas... O início deste conto provoca nas crianças uma ansiedade frente as fantasias de que os pais possam abandoná-las. E toda a criança pequena 60
tem esse medo. Totalmente dependentes dos pais, elas manifestam seu ressentimento e pavor quando sentem que a sua integridade física e psíquica possa ser ameaçada pelo afastamento da figura materna e/ou paterna. Isto pode ser claramente observado no medo infantil em enfrentar o escuro e a solidão da hora de dormir. As crianças sentem-se desprotegidas, à mercê de monstros e gigantes que em suas fantasias adentrarão no quarto e as levarão embora. Isso é claro sem que a mãe perceba, pois ela está dormindo em outro quarto e não terá tempo de socorrer os filhos. Quando a criança resiste em adormecer sozinha no quarto ela nutre em seus devaneios todo o ressentimento de a mãe não estar lá ao seu lado. Na história, toda a ansiedade frente ao abandono é ativada durante a noite. João e Maria escutam a voz da madrasta durante a noite, assim como as crianças escutam os monstros subir as escadas ou fazerem barulho dentro do armário. Mas a ameaça que o mundo exterior provoca na criança, que interfere na relação de dependência, principalmente com a figura materna, não pode ser considerada como uma realidade concreta. Porque antes mesmo que a criança tenha qualquer indício de ausência materna, ela já está resistindo a essa possibilidade. Verificamos, então que as fantasias de abandono materno têm uma origem remota no desenvolvimento infantil, e que encontram expressão nos comportamentos repetidos durante a nossa existência. É durante o primeiro ano de vida que mais freqüentemente os bebês experimentam a primeira sensação de rejeição da figura materna. Enquanto a mãe satisfaz prontamente todas as necessidades do bebê, o mesmo vive em absoluta satisfação. A necessidade principal do bebê é a alimentação, o que garante sua sobrevivência. Sendo assim o vínculo que se estabelece no ato de amamentar/ser amamentado vai adquirir um significado peculiar na relação mãe/filho. O ato de amamentar provoca uma sensação de saciação física e psíquica. Para o bebê, o seio materno é o objeto de satisfação, com o qual a criança estabelece uma relação definida pela sucção. Ao sugar o seio materno o bebê visa, num primeiro momento a integração do objeto amado(mãe) e obtém a satisfação daquilo que a psicanálise chama de impulsos orais. A oralidade compreende esta primeira fase do desenvolvimento psicossexual infantil, onde o prazer está ligado à excitação da cavidade oral, dos lábios, da língua e regiões circunvizinhas. Neste período o bebê não diferencia ainda o objeto, fazendo a mãe parte de 61
seu próprio corpo. Sugar o leite materno é simbolicamente introjetar a mãe, colocá-la “para dentro”. 2 Abandonar a satisfação oral, ou seja, abandonar a dependência materna, a necessidade de satisfação imediata pela figura materna é o primeiro grande obstáculo do ser humano. Quando a mãe já não atende todas as solicitações do bebê, este começa a ressentir-se dela. Neste momento a mãe se torna alvo das projeções negativas do bebê, ela é o seio mau que não atende de pronto suas necessidades. Ela é a madrasta que quer abandonar João e Maria na Floresta. Esta é a chave de nossa interpretação: a madrasta encontra-se em “João e Maria” como uma figura que está representando a parte má da figura materna, para que a parte boa possa então ser preservada. Porque, como já refletimos, projetar a parte má da mãe em outra figura faz parte do dinamismo de nossos processos psíquicos; preservar a parte boa da mãe é necessário, para que possa ser internalizada e dar segurança à criança. Ao analisarmos as diferentes versões deste conto, principalmente as mais recentes, percebemos que muitos escritores tentam, em vão, minimizar a ansiedade infantil. Como esta: “Dois bons irmãos, João e Maria, viviam às margens da floresta com seus pobres pais. Durante o dia ajudavam o pai a recolher a lenha para o fogo. Um dia, as duas crianças, brincando, entraram tão profundamente no bosque que, ao anoitecer, não conseguiram mais encontrar o caminho para casa...” 3 Neste exem plo, a idéia de que os pais abandonam as crianças na floresta é omitida e desta forma a história perde um conteúdo fundamental. Também, descaracteriza a ação inteligente de João de buscar as pedrinhas para marcar o caminho de volta para casa. A história perde passagens, personagens e detalhes que são muito importantes como mensagens inconscientes que fazem as crianças se defrontarem com seus conflitos. De nada adianta apresentar uma ilustração a uma criança onde João e Maria se encontram abraçados e amedrontados no meio da floresta e todos os animais que estão a sua volta são totalmente inofensivos. Isso não minimiza o receio de estar sozinho, sem a presença confortante dos pais. Vladimir I. Propp4 estudou a morfologia dos contos maravilhosos da Rússia e constatou que as partes fundamentais dos contos maravilhosos (que ele chama de funções) se repetem nos contos, independentemente da personagem que as executa. Propp apresenta em seu estudo a análise de 100 contos em relação a sua forma, e constata que o núme62
ro de funções nos contos maravilhosos além de limitado se repete na estrutura de cada conto. Ele relacionou 31 funções que obedecem uma seqüência sempre uniforme. Um conto não apresenta as 31 funções, mas mesmo assim as funções obedecem a ordem. Assim, um conto pode começar pela função 1 e depois passar para a função 4, 5, 10 e assim por diante. E mesmo que os contos utilizados por Propp sejam oriundos do folclore Russo* , podemos aplicar as 31 funções aos contos de fadas clássicos sem nenhuma dificuldade, o que me faz supor que a estrutura dos contos de fadas é correlativa à estruturação do psiquismo humano. E com isso não quero dizer que o psiquismo possa ser assim facilmente mensurável, apenas que as fases de desenvolvimento psíquico tam bém se repetem, só não sei se de forma lógica e uniforme. Para ilustrar minha idéia, utilizarei as primeiras funções de Propp aplicando-as aos contos clássicos e posteriormente ao significado simbólico que elas representam. A primeira função que Propp relaciona tem como definição o afastamento e é denominada “Um dos membros da família sai de casa”; a segunda função, “Impõe-se ao herói uma proibição”, tem por definição: proibição . A primeira função afastamento pode dizer respeito ao afastamento físico de um membro da geração mais velha ou da geração nova (o próprio herói) e também diz respeito à morte de um ou de ambos os pais. Como veremos a seguir esta função pode ser claramente constatada nos contos clássicos: “... Certa manhã, a mãe chamou-a e disse: – Filha, leve este bolo e esta garrafa de vinho para a sua avó, que está doente e fraquinha. Vá logo antes que fique tarde e esfrie. Não deixe o caminho e não invente de correr pela mata...” (do conto “Chapeuzinho Vermelho” 5). Neste exemplo não só a primeira função afastament o é visível como também a segunda: proibição . Outro exemplo: “Há muito tempo, aconteceu que a esposa de um rico comerciante adoeceu gravemente e, sentindo seu fim se aproximar, chamou sua única filha e disse: – Querida filha, continue piedosa e boa menina, que Deus a protegerá sempre. E lá do céu olharei por você, e estarei sempre ao seu lado – mal acabou de dizer isso, fechou os olhos e morreu...” (do conto “Cinderela”6); Ainda outro: “Era uma vez um homem que tinha três filhos. Todo mundo chamava o mais moço de João Bobo, e riam e zombavam dele o tempo todo. Um dia, o mais velho resolveu ir à floresta cortar lenha. Antes de sair, a mãe deu a ele um bolo gostoso e uma garrafa de vinho 63
para matar a fome e a sede. Quando estava no meio do mato...” (do conto “ O Ganso de Ouro” 7). Sendo os contos de fadas um universo de significados que revelam os conflitos humanos, parece-me que no plano simbólico da história as funções de Propp revelam sentidos importantes. Assim, a função afastamento no plano concreto diz respeito à saída de casa, no plano simbólico está intimamente ligada à independência das relações entre pais e filhos, já que os pais protegem seus filhos e a casa é símbolo desta proteção. Também a morte de uma das figuras parentais denota a desproteção. Ao “sair de casa” ou ao sentir-se “desprotegido”, os filhos terão de enfrentar o mundo e descobrir seus prazeres assim como as provas de sobrevivência a que estarão submetidos. E estas descobertas certamente provocam ansiedade, tanto para as crianças quanto para os pais. É neste sentido que as funções de Propp caminham lado a lado com as dificuldades encontradas pelo ser humano. Na minha percepção o afastamento diz respeito à separação, e a separação é o primeiro obstáculo a ser enfrentado por todos nós. Voltando ao conto “João e Maria”, podemos verificar que o afastamento também é a primeira função importante do conto: “...-sabes de uma coisa, -respondeu a mulher, – amanhã bem cedo levaremos as crianças para a floresta, onde o mato é mais espesso. Lá acenderemos uma fogueira e daremos a cada criança um pedaço de pão; então iremos trabalhar e as deixaremos sozinhas. Elas não acharão mais o caminho de volta para casa, e estaremos livres delas...” João e Maria estão vivendo a ansiedade por terem que deixar o lar para enfrentar os perigos do mundo concreto e simbólico representado pela floresta. A floresta é um lugar escuro, fechado e cheio de surpresas, onde habitam animais ferozes. Assim como a floresta (ou a selva) serve para metaforicamente designar o mundo concreto, simbolicamente ela representa o inconsciente, um lugar de difícil acesso, onde os animais ferozes representam nossos impulsos e desejos primitivos. É na floresta que os heróis parecem sofrer as mais duras provas, assim como é através de nossos impulsos inconscientes que nós experienciamos nossos maiores conflitos. João e Maria resistem em deixar a casa, não querem abandonar a dependência, e suas fantasias de privação são dirigidas à figura da mãe. A mãe não é mais vista como aquela boa e dadivosa da lactância, mas como uma madrasta má, egoísta e rejeitadora. 64
Certamente a figura da madrasta serve para diminuir a ansiedade infantil. Se o conto falasse abertamente desta rejeição materna, que não é concreta e sim simbólica, isso provocaria um confrontamento direto com as ansiedades infantis. Mas a figura da madrasta, no plano inconsciente, é percebida como a parte má da mãe. No plano consciente serve apenas para reforçar a cisão da personalidade e utilizá-la como depositária de todas as frustrações infantis. Ela acaba que por sintetizar o fracasso da mãe ideal e encarna os sentimentos negativos quanto a amar os filhos e criá-los com sucesso. Mas o que diríamos de crianças que experimentam uma rejeição concreta, um abandono real? Podem internalizar uma imagem materna idealizada como mecanismo de defesa contra o sentimento de abandono, ou simplesmente depositar na mãe todo o seu ressentimento e raiva. Podem também alternar sentimentos positivos e negativos: “mamãe me abandonou porque não tinha como me criar, coitada!” ou “ aquela que se diz minha mãe não o é, porque me abandonou!”. Nestes casos a criança vivenciará o abandono da mãe na figura da madrasta e poderá associála ou não à figura materna o quão pronta esteja para enfrentar a rejeição. O que se modifica em ambos os processos, da sensação de abandono simbólica ou da de rejeição concreta é, me parece, uma questão de intensidade e não diferencial. Atualmente as crianças podem experimentar esta rejeição concreta através de uma nova idéia de maternidade e paternidade. Ao se separarem, pai e mãe questionam a guarda dos filhos, situação esta que antes era pouco (ou nada) questionada. Até bem pouco tempo os filhos invariavelmente ficavam com a mãe e esta arcava com toda a responsa bilidade de cuidar deles, enquanto o pai cumpria seu papel suprindo-os financeiramente. Com o movimento feminista, as mulheres começaram a questionar estes valores, mesmo que de forma um tanto desordenada. Passaram então a delegar aos homens funções que antes eram apenas responsabilidade das mulheres. Também requisitaram para si direitos que antes só os homens podiam desfrutar. Hoje, em casos de divórcio, podemos encontrar um número pequeno, mas crescente de crianças que ficam sob a guarda do pai, simplesmente porque as mães não se colocam disponíveis para requerê-la. Mas como esta opção ainda é um tanto nova e controversa ela ainda se defronta com o ideal da maternidade instaurado no séc. XVIII. Assim, crianças que por exemplo optam por ficarem sob a guarda do pai podem experimentar profundos sentimen65
tos de culpa porque rejeitaram um padrão estabelecido e supostamente normal (o de ficarem com a mãe). Se, por outro lado a guarda foi delegada ao pai juridicamente, subentende-se que a mãe não queria ou não podia assumir a responsabilidade, mas isso acaba que tomando uma proporção devastadora na família e no âmbito social que esta família está inserida. E as crianças poderão experimentar profundos sentimentos de rejeição e privação da figura materna. Para estas crianças a expectativa com relação à entrada de um novo membro na família, no caso a madrasta é um tanto imprevisível. Dependendo do quanto a família elaborou seus sentimentos quanto a esta nova opção pela paternidade, a madrasta poderá encontrar três lugares distintos: o da mulher salvadora que assumirá o papel da mãe faltante; o da mulher que será a companheira do pai, que poderá assumir algumas funções maternas, mas que é distinta de uma mãe idealizada; e por último o de uma mulher que será a depositária de todos os ressentimentos que as crianças (e muitas vezes o pai delas) tem pela figura materna. A questão é que na maioria das vezes estes “lugares” se encontram sobrepostos, combinados, ficando difícil delimitar onde é o início de um e o término de outro. Um enteado pode às vezes requerer de sua madrasta a “mulher salvadora” e em outros momentos olhá-la como “a mulher má”. Assim como a madrasta também pode demonstrar o quanto é a companheira do pai, e em outras ocasiões a “salvadora da família”, ou mesmo se comportar como as duas coisas no mesmo instante. A dificuldade é justamente delimitar estes espaços e perceber quando cada um está prevalecendo sobre o outro. No caso da madrasta ser considerada com maior intensidade como o porto-seguro da criança, ela terá realmente que lidar com esta expectativa e com o ressentimento dos enteados a qualquer sinal de seu descontentamento. Porque as expectativas da família é que ela corresponda ao ideal materno, e não que reaja a ele. E por não ser a mãe biológica e tentar provar para si e para todos que é capaz de assumir os enteados, ela tende a assumir todas as tarefas e superproteger as crianças. Além é claro de viver atormentada por suas próprias cobranças. Mas o dese jo que a madrasta possa se transformar em uma “fada madrinha” que satisfaça por completo as crianças abandonadas é também do pai delas. Muitos homens esperam que suas companheiras preencham a falta materna, assim como esperam que preencham suas faltas também. Geralmente este tipo de relação familiar é bastante estressante para as ma66
drastas e elas costumam ficar apavoradas quando descobrem sua falta de amor maternal e muitas vezes chocadas com a raiva que encontram em seu lugar. “O que há de errado comigo que não consigo ter um lugar terno em meu coração para essa criança inocente?”. 8 Certamente se essas madrastas aceitassem seus sentimentos menos amorosos para com os enteados e que são absolutamente normais, elas não se angustiariam tanto ao descobri-los. Quando uma madrasta aceita o fato de não ser obrigada a amar o enteado, ela costuma se perguntar: “Qual é a minha obrigação com esta criança?”. Esta pergunta sem dúvida é essencial para que a madrasta possa delimitar os espaços na sua relação com os enteados. No caso inverso, o da madrasta ser, prevalecentemente, a representante das frustrações familiares com a figura materna, provavelmente ela se defrontará com a resistência das crianças em aceitá-la e estabelecer um vínculo positivo na relação. Assim como no conto de fadas, Joãos e Marias visualizarão nas madrastas suas fantasias de privação e lhe atribuirão os significados que caracterizam a madrasta perversa e que encontra um “eco social”. É assim que em suas fantasias a madrasta estará sempre tramando contra eles, e se pudesse expulsariam-nos de casa na primeira chance que tivesse. Madrastas não cozinham bem, não nutrem e não fazem tudo que pedimos como mamãe. Na verdade mamãe também não fazia tudo que eu queria, mas eu prefiro não pensar nisso! João e Maria estão em um conflito crucial: aceitar a necessidade de abandonar a fantasia de uma mãe sempre boa e dadivosa e de reconhecer seu ressentimento ou de reivindicar sua dependência materna intensificando seus sentimentos de raiva e projetando-os na figura da madrasta. E é desta última forma que eles o fazem.
Pouco tempo depois, houve novamente fome e miséria por toda parte, e novamente as crianças ouviram a madrasta falar ao pai: “– Já consumimos tudo de novo; temos ainda meio filão de pão, depois será o fim de tudo. Temos de nos livrar das crianças; vamos levá-las para mais fundo na floresta, para que não encontrem mais o caminho de volta – não há outra salvação para nós”. O pai tentou convencer a mulher em mudar de idéia, mas não houve jeito. “Quem diz A tem de dizer B, e já que ele cedera da primeira vez, tinha de fazêlo também agora”. 67
Ao ouvir os planos da madrasta, João como da outra vez, levantou-se da cama, mas a mulher trancara a porta e ele não conseguiu sair. Na manhã seguinte, a madrasta acordou logo as crianças. Lhes deu um pedacinho de pão, que era ainda menor que o anterior e todos saíram em direção à floresta. João esfarelou o pão dentro do bolso do casaco, e à medida que iam andando foi jogando uma migalha atrás da outra pelo caminho. Desta vez a mulher levou-os mais fundo na floresta, onde elas nunca estiveram em toda a vida. Lá fizeram novamente uma fogueira e a madrasta falou: “– Fiquem sentados aqui, crianças, e quando estiverem cansadas, podem dormir um pouco; nós vamos para dentro do mato cortar lenha, e à tardinha, quando terminarmos, viremos para buscá-las”. Depois de comerem o pedaço de pão de Maria, os dois adormeceram e só acordaram quando já era noite fechada. João consolou a irmã dizendo que esperassem até que a lua brilhasse e assim poderiam ver as migalhas de pão que mostrariam o caminho de volta para casa. Mas quando a lua surgiu eles não encontraram uma migalha sequer, porque os pássaros da floresta haviam comido todo o rastro de migalhas. João e Maria saíram em busca do caminho de volta. Andaram a noite toda e também na manhã seguinte. Estavam mortos de fome e não tinham o que comer. Da primeira vez que se vêem abandonados na floresta, João e Maria conseguem voltar para casa, porque João marcou o caminho com pedrinhas. Mas da segunda vez, João marca o caminho com miolos de pão que são comidos pelos passarinhos. Bettelheim 9 assinala que o miolo de pão representa a comida em geral, “o salva vidas do homem”, e o quanto a dependência da comida para a segurança não favorecem o desenvolvimento infantil. João demonstra sua regressão e fixação oral, e o quanto este comportamento se torna ineficaz para a solução de seus problemas. Como já avaliamos, a comida estabelece uma relação intima com o afeto. Ser alimentado é simbolicamente ser acarinhado, ser protegido, ser amado. Não é à toa que enteados resistentes às suas madrastas rejeitem também a sua comida. Muitos depreciam a comida que suas madrastas fazem comparando-a com a que a mãe faz ou fazia. Freqüentemente escutamos um: “ela não sabe cozinhar”, ou “lá na casa de papai não há o que comer”. Para as crianças (e também para os adultos) ninguém cozinha melhor que “mamãe”. Quando uma criança resiste a independer da 68
mãe, ela se volta a qualquer um que possa ser responsabilizado pelo afastamento. Quando a mãe de um pequeno cliente meu resolveu começar a trabalhar, trocou de empregada doméstica pelo menos 4 vezes em menos de dois meses, porque este menino não comia a comida que elas lhe faziam. E mesmo acordando mais cedo para preparar o almoço do filho, ele passou a reclamar que as empregadas não cuidavam dele, não lavavam a louça nem passavam sua roupa da escola. Mas seu ressentimento materno não era só projetado na empregada. A nova companheira do pai também sofria com seus ataques. Toda a vez que passava alguns dias com ela e o pai, reclamava que “a comida dela é uma droga”. O problema certamente não estava na madrasta, muito menos nas empregadas e menos ainda na comida, estava no fato deste garoto se ver desprovido da presença materna no período que a mãe afastava-se fisicamente de casa.
Depois de três dias que João e Maria estavam afastados da casa do pai, as crianças estavam cansadas e famintas. Retomaram a caminhada e resolveram seguir um passarinho branco que cantava maravilhosamente. O passarinho pousou no telhado de uma casinha, e quando os irmãos chegaram bem perto viram que a casinha era feita de pão e coberta de bolo, e as janelas eram de açúcar transparente “– Agora vamos avançar nela, – disse João, – e fazer uma refeição abençoada. Quero comer um pedaço do telhado! Mariazinha, tu podes comer um pedaço da janela, ela é doce. E João e Maria avançaram na casinha. Estavam tão absortos que nem ligaram quando ouviram uma voz fina gritando de dentro da casinha: “Roque, roque, roidinha, / Quem comeu minha casinha? E eles apenas responderam: “Não foi ela, não fui eu, Foi o vento que roeu” Não conseguindo retornar ao lar, João e Maria dão rédea plena a sua regressão oral. Devoram a casa de biscoitos numa tentativa de introjetar a mãe-boa, fonte de nutrição. O pássaro branco que os leva até a casa, atua como uma “fada madrinha”. É um representante da figura materna 69
boa que vem salvá-los de sua fome. A casa de biscoitos que encanta crianças e adultos é a representação simbólica do corpo da mãe, refúgio seguro que nutre e satisfaz. É muito comum que crianças que tramitam por dois lares, o do pai e o da mãe, a qualquer sinal de desconforto em um correm para o outro à busca da satisfação. Se, por exemplo a mãe não deixa que a criança saia para brincar, porque tem que recuperar-se nos estudos, a criança ressentida, corre para a casa do pai. Volta-se à madrasta e ao pai com a intenção de obter a gratificação esperada, ou seja, procura o consentimento para brincar. Porém, se a madrasta e o pai também não a deixam brincar, a criança se volta novamente para a mãe, e assim por diante. Até entender sobre sua responsabilidade nos estudos, a criança busca quem possa lhe gratificar. Geralmente a mãe é melhor “compreendida” do que a madrasta, simplesmente porque a criança não suporta a culpa de ressentir-se com a mãe. E o ciclo se repete: quando busco de maneira desenfreada satisfazer as minhas necessidades, não percebo os perigos a que estou me arriscando. Assim, João e Maria devoram a casa e não percebem as intenções malvadas da bruxa. Esta não é mais que a madrasta disfarçada, a mãe má que não suporta a oralidade de seus filhos.
“... De repente a porta se abriu, e apareceu, arrastando os pés, uma mulher muito velha, apoiada numa muleta. João e Maria ficaram tão assustados que deixaram cair o que tinham nas mãos. Mas a velha balançou a cabeça e disse: – Ei, lindas crianças, quem vos trouxe aqui? Entrai, ficai comigo que não vos farei mal” Ela tomou-o pelas mãos e levou-os para dentro. Serviu uma boa comida, arrumou duas caminhas e os irmãos deitaram-se nelas “pen sando que estavam no céu” Mas no dia seguinte, a velha que só se fingira de boazinha e que era uma “bruxa malvada”, agarrou João e trancou-o atrás de uma porta gradeada. João berrou, mas não adiantava nada. A bruxa então acordou Maria e fez a coitada cozinhar para o irmão, para que ele engordasse e a bruxa pudesse comê-lo. Todas as manhãs, a bruxa, que não enxergava direito, ia até o curralzinho e pedia para que João mostrasse seus dedos, para sentir se ele já estava gordinho. Mas João lhe passava pela grade um ossinho de frango para que a velha achasse 70
que era o seu dedo e que o mesmo continuava magro. Certa vez ela perdeu a paciência e gritou para Maria: “– Aqui, Maria, anda ligeiro e traz a água! O Joãozinho pode estar gordo ou magro, não importa; amanhã eu vou matá-lo e cozinhá-lo”. Maria ficou assombrada. Rezou para que o “Bom Deus” ajudas se a ela e ao irmão. Na manhã seguinte a velha pôs a água para ferver no caldeirão, mas quis também assar pão. Então pediu a Maria que se enfiasse no forno de assar para ver se o fogo já estava bem quente. Assim que Maria estava quase dentro a velha quis fechar o forno para que Maria lá ficasse assada. Mas Maria percebeu as intenções malvadas da bruxa e disse que não conseguia entrar no forno. A Bruxa perdeu a paciência e entrou no forno para mostrar à Maria que ela caberia lá dentro. Rapidamente Maria deu-lhe um empurrão e a velha caiu lá dentro, e a menina bateu a portinhola de ferro e puxou o ferrolho. A bruxa gemeu e morreu queimada. Maria correu para soltar seu irmão. Eles pularam e se abraçaram de alegria. Pegaram todas as pérolas e pedras preciosas que estavam na casa da bruxa e saíram pela floresta em busca do caminho de volta para casa. A bruxa está representando a parte má da mãe, que foi projetada na madrasta no início da história. Bruxa e madrasta são a mesma figura. A comparação da madrasta com a bruxa é muito comum. Alguns contos se utilizam da imagem da bruxa para justificar as atitudes malvadas de uma madrasta cruel. E não é preciso dizer que enteados ressentidos com suas madrastas fazem a mesma comparação! A atitude da bruxa de prender João numa gaiola para engordá-lo e posteriormente comê-lo nos dá a idéia da defesa de João: não é ele quem quer introjetar e devorar a mãe, e sim ela é que quer colocá-lo novamente para dentro, na barriga. João projeta na figura da bruxa seu dese jo de ser novamente um feto totalmente protegido no corpo da mãe. As “intenções malvadas da bruxa” forçam João e Maria a reconhecer os perigos da voracidade oral descontrolada e da dependência. Para sobreviverem, os dois devem desenvolver a iniciativa e perceber que seu único recurso está na ação e no planejamento inteligente. Só assim, comenta Bettelheim10, abre-se o caminho para um estágio mais alto de desenvolvimento. 71
O conto oferece-nos a idéia de que à medida que as crianças transcendem a ansiedade oral e se libertam da dependência materna de uma satisfação oral para segurança, podem também se libertar da imagem da mãe ameaçadora e redescobrir os pais. É assim que Maria consegue lubridiar a bruxa empurrando-a para dentro do forno e soltando João. Ambos voltam para a casa com os tesouros da bruxa. Mas se esta ansiedade oral não for ultrapassada, a cisão entre o bom e o mau encontrará dificuldades para integrar-se. Então Madrastas não deixarão de ser más, enquanto existir somente ideais de mães boas e nutridoras.
Depois que João e Maria caminharam pela floresta algumas horas, chegaram a um grande lago. Como não tinham como atravessálo pediram a um pato branco que estava nadando para ajudá-los. O patinho então se aproximou e João montou nele. Foram até a outra mar gem do rio. João pulou do dorso do pato para a terra firme. O patinho então voltou para buscar Maria. Depois que já estavam ambos do outro lado, eles caminharam mais um pouco e avistaram a casa de seu pai. Puseram-se a correr e caíram nos braços do pai. “O homem não tivera nem um momento de paz desde que deixara os filhos na floresta, mas a mulher já morrera. Mariazinha sacudiu seu aventalzinho, e as pérolas e pedras preciosas saíram pulando pelo chão, e Joãozinho tirava dos bolsos um punhado atrás do outro e as juntava àquelas. Então todas as tristezas tiveram fim, e eles viveram juntos e felizes.” O final deste conto tão conhecido nos remete à nossa discussão sobre a identidade da madrasta. Quando João e Maria finalmente retornam ao lar o pai os esperava ansioso e a madrasta já havia morrido. Da mesma forma que a bruxa, sua figura já não tinha lugar no conto, já que as crianças se libertaram da imagem materna má. Mas o que é interessante é que este final reforça a idéia de que madrastas não podem ser boas, então elas devem desaparecer. O conto não oferece outra alternativa que não seja a morte simbólica e concreta da madrasta e isso demonstra bem a contaminação por ideais e rótulos sociais que encontramos nas suas entrelinhas. E assim, libertos definitivamente de sua presença “... todas as tristezas tiveram fim, e eles viveram juntos e felizes.” Da mesma forma que João e Maria se defrontaram com a necessidade de “cortarem o cordão umbilical” e vivenciaram, através das difi72
culdades da história, as fantasias de abandono e a rejeição, assim é com todos nós. E as madrastas da vida real, além de enfrentarem um papel pouco definido e contraditório, com certeza se defrontarão com seus pró prios sentimentos de privação. Uma madrasta poderá enfrentar problemas com seus enteados se suas provocações encontrarem ressonância em seu inconsciente, tornando seu comportamento impulsivo e muitas vezes agressivo. Assim, dependendo como internalizou sua imago materna poderá atuar projetivamente com as crianças, visualizando nelas sua própria privação infantil. E isso a levará a atuar de duas formas: super protegendo as crianças numa tentativa de corresponder ao ideal de maternidade que criou ou rejeitá-las como sente que assim o fizeram suas figuras parentais. Desta última forma a madrasta assumirá na vida real o que era apenas uma figura de contos de fadas. Ainda gostaria de ilustrar este capítulo com outro conto entitulado “Maninho e Maninha”11 que é menos famoso no Ocidente, mas que faz parte da coletânea dos Irmãos Grimm. É uma história semelhante a “João e Maria”, onde um casal de irmãos sofre os maus tratos da madrasta. Desta vez porém, vou tomar a madrasta como figura principal, tentando compreender e ilustrar os significados de suas atitudes más no conto. A história começa assim:
“Maninho pegou sua maninha pela mão e disse: – Desde que a nossa mãe morreu, não tivemos mais uma única hora boa; a madrasta bate-nos todos os dias, e quando a procuramos ela nos enxota a pontapés. As duas crostas de pão que sobram são o nosso alimento, até o cãozinho debaixo da mesa passa melhor que nós” às vezes ela até lhe joga um bocado melhor. Deus tenha misericórdia se a nossa mãe soubesse disso! Vem, vamos embora juntos para o vasto mundo.” Maninho e Maninha caminharam por prados e cam pos até chegarem a uma grande floresta. Na floresta adormeceram e no dia seguinte acordaram com o sol forte. Maninho estava com sede e saíram então os dois em busca de uma fonte. Mas a madrasta os havia seguido. Ela, que “era uma bruxa”, enfeitiça todas as fontes da floresta. Maninho está com sede, mas ao encontrar a primeira fonte, Maninha ouve a fala do riacho murmurando: “... Quem beber de mim, vira tigre, vira tigre”. Maninha adverte o irmão que não bebe a água e sai à procura de outro riacho. Ao encontrar, curva-se para beber a água, mas Maninha novamente escuta o murmúrio: “... Quem beber de 73
mim vira lobo, quem beber de mim vira lobo”. Ela adverte outra vez o irmão. Ao encontrar outro riacho, Maninha mais uma vez escuta o murmúrio: “... Quem beber de mim vira corça, vira corça; quem beber de mim, vira corça”. Porém desta vez Maninho sucumbe a sede e bebe a água da nascente transformando-se em veadinho. Como em João e Maria este conto também fala da dependência materna, contudo uma diferença bastante significativa é que Maninho e Maninha decidem ir embora por sua própria vontade e saem de casa para “o vasto mundo”. O abandono da casa por Maninho e Maninha demonstra sua necessidade de independência em seu desenvolvimento. Mas a perseguição da madrasta, agora olhando para as suas necessidades internas, revela sua dificuldade em deixar os enteados (filhos) entrarem em contato com o mundo e estabelecerem novas relações. Ela não suporta a perda e quer mantê-los sob seu feitiço, assim como qualquer mãe que estabelece uma relação simbiótica com seus filhos e os amaldiçoa na primeira tentativa deles de quebrar este vínculo. Esta madrasta assim o fez; primeiro supostamente adotou seus enteados como filhos próprios a quem devia amar incondicionalmente e proteger, depois ressentiu-se amargamente por eles não corresponderem às suas expectativas de serem bons filhos e que vivessem sempre na sua dependência. O feitiço do riacho assume o mesmo significado simbólico da casa de biscoitos de “João e Maria”, assim como a fome de João é a sede de Maninho em “Maninho e Maninha”. A sede é a necessidade da proteção e o riacho a representação do corpo materno onde Maninho vai buscar a saciação. A madrasta enfeitiça o riacho para que Maninho não consiga se desfazer de seu vínculo de dependência. Primeiro tenta transformálo em tigre, um animal feroz e temido que representa nossos instintos agressivos que primeiro são expressos pela devoração. Na segunda tentativa ela procura transformá-lo em lobo, um animal também agressivo, mas que propõe conotações dos impulsos ligados à sexualidade masculina (O conto Chapeuzinho Vermelho representa bem a relação sedutora entre uma criança e um lobo). Na terceira tentativa, a madrasta consegue transformar o enteado em um animal que, diferentemente dos anteriores é bastante frágil. O veadinho está representando a fragilidade da criança de sexo masculino que, por ter criado um vínculo simbiótico com a mãe, poderá ser comida de tigres e leões ou mesmo servir de alvo 74
para caçadores. Esta fragilidade é com certeza experimentada por todas as crianças (de ambos os sexos) no momento em que são estimuladas ao contato com o mundo fora do lar. A madrasta consegue então que Maninho possa experimentar uma existência desprotegida como punição por tê-la abandonado. A maioria das madrastas tem no início o desejo de colocar ordem na vida dos enteados. Culturalmente condicionadas a ser mães como todas as outras mulheres, adota enteados que talvez mal conheça, assumindo toda a tarefa de educá-los, alimentá-los, discipliná-los, como se os tivesse conhecido desde o nascimento. Uma boa parcela destas madrastas fica decepcionada quando suas tentativas parecem fracassar ou as crianças a rejeitam. Sentem-se estranhas e acreditam que suas boas intenções não são compreendidas. É isso que acontece em “Maninho e Maninha”. Eles não esperam e não desejam que sua madrasta os ame incondicionalmente. Uma madrasta disse: “Eu não pude ter filhos e amei meu enteado como se fosse meu próprio filho. Eu morria de inveja das minhas vizinhas que tinham filhos e tentei fazer de meu enteado o filho que eu não tinha. O problema é que ele não me aceitava, me rejeitava e nossa relação até hoje é muito conturbada. Na época isso foi como se ele tivesse colocado uma faca em meu coração!”. Esta mulher deixou claro que, como uma
mãe adotiva ela optou por assumir a maternidade integral do enteado, ela não se considerava “madrasta dele”. Já o enteado a via como uma madrasta, e não como uma mãe substituta. Cada um agia a partir de suas necessidades internas, e elas eram bastante diferentes. E as coisas parecem não ter saído muito bem.
Maninha chorava pelo pobre irmão enfeitiçado: “– Sossega, veadinho querido, eu não vou te abandonar, nunca.” Depois de andarem muito tempo os irmãos encontraram uma casinha, e lá decidiram viver, cabendo a Maninha as tarefas domésticas e os cuidados com o irmão. Por algum tempo eles viveram na casinha sozinhos em perfeita harmonia. Um dia aconteceu que um rei promoveu uma grande caçada pela floresta, e ao ouvir o latido dos cães e o grito alegre dos caçadores, o veadinho manifestou vontade de sair para a floresta: “– Ai, disse ele à Maninha, – deixa-me sair para a caçada, eu não agüento mais ficar aqui”. Maninho pediu tanto que a irmã concordou. Mas antes que ele saísse pela porta maninha o advertiu: “Volta para 75
casa ao anoitecer!... e para que eu te reconheça, bate e fala: “Maninha minha, abre a portinha!” E se não falares assim, não destrancarei a porta.” “Então o veadinho saltou para fora, e sentiu-se tão bem, e ficou muito alegre ao ar livre”. Logo o rei e seus caçadores viram o belo animal e partiram ao seu encalço. Mas o veadinho conseguiu despistálos e voltou para casa. Bateu na porta e disse “Maninha minha, abre a portinha”. Na manhã seguinte novamente Maninho pediu a Maninha para sair e Maninha mais uma vez advertiu o veadinho para que não esquecesse de sua fala ao voltar para casa. Quando o rei e os caçadores tornaram a ver o animal correram atrás dele, e embora o veadinho fosse ágil, no final da caçada conseguiram cercá-lo e um deles feriulhe o pé. Mesmo assim o veadinho conseguiu escapar do cerco e voltou para casa. Bateu na porta e disse: “Maninha minha, abre a portinha”. Mas um dos caçadores seguiu o animal e presenciou a cena. Correu para contar ao rei o que vira. Enquanto isso Maninha cuidava do seu veadinho que estava ferido. No dia seguinte, ouvindo os barulhos da caçada o veadinho tornou a querer sair: “– Eu não agüento ficar, preciso estar lá com eles; tão cedo ninguém vai me apanhar”. Maninha tentou evitar que o irmão novamente se aventurasse com os caçadores, mas não pôde fazer nada. O veadinho sai novamente para a caçada. Enquanto ordena que os caçadores saiam atrás do veadinho, mas que não façam mal a ele, o rei vai até a casinha e repete a frase do veadinho que foi ouvida por um caçador na noite anterior. E quando Maninha abre a porta assusta-se com o rei. O rei, por sua vez se encanta com a beleza de Maninha e a pede em casamento. E Maninha aceita impondo apenas uma condição: “– Oh, sim, mas o veadinho tem de vir comigo, eu não vou abandoná-lo”. Aceitando a imposição, o rei leva Maninha e o veadinho para seu castelo. Quando escolhem viver na casinha, Maninha assume as funções maternas, o que lhe é esperado e o que ela mesma se impõe enquanto mulher. Caberia aqui a indagação: É a história que imita a vida, ou a vida é que imita a história? Não tenho certeza em optar por uma dessas questões. A verdade é que histórias de irmãs que herdam as funções maternas para com seus irmãos desprotegidos já nos são tão conhecidas e esperadas quanto as histórias de madrastas que devem herdar os cuida76
dos de seus enteados. Maninha assume as características que a madrasta gostaria de assumir: os cuidados maternos para com uma criatura frágil e dependente. Mas Maninho, mesmo estando ainda em sua condição de “veadinho” continua a buscar sua independência: “– Ai, deixame sair para a caçada, eu não agüento mais ficar aqui”. Ele vivencia um conflito muito parecido com o de João em “João e Maria”: por um lado recebe a gratificação por sua existência frágil (os cuidados maternos) e por outro lado deseja ansiosamente correr os perigos que a floresta pode lhe oferecer. E seus desejos são mais fortes. Maninho sai da proteção do lar em direção a floresta e se defronta com um conflito básico de sua natureza humana: o enfrentamento com a figura de um pai poderoso e agressivo que pode lhe ameaçar a vida. É diante da conflitiva edípica que os meninos terão de lidar com o desejo simbiótico pela mãe e com as fantasias de castração que lhe são impostas pela figura paterna. Foi preciso que Maninho iniciasse a quebra de vínculo com a mãe para então perceber o pai. É por isso que a figura masculina do rei caçador só aparece neste momento do conto. Aparece para interferir na relação mãe/filho, e reclamar a figura feminina para si, que é representada por Maninha. O rei deseja caçar o veadinho, mas ao conhecer sua irmã apaixona-se por ela e leva ambos para seu castelo.
Quando a “perversa madrasta” soube que Maninha e Maninho não tinham morrido, e que ambos estavam bem e felizes, a inve ja e a maldade despertaram no seu coração. A filha da madrasta, “que era feia como a noite e só tinha um olho”, reclamava: “– Chegar a ser rainha, esta sorte era a mim que caberia! – Fica sossegada, – disse-lhe a velha, procurando tranquilizá-la. – Quando chegar a hora, eu estarei a postos” Quando a rainha teve um lindo menino, a bruxa e sua filha foram ao castelo e a madrasta assumiu a forma de camareira. A madrasta convida a rainha a se banhar, e depois que ela e sua filha carregaram a rainha debilitada para a banheira, elas trancaram a porta e fugiram. “Mas antes elas tinham aceso um fogo tão infernal na estufa do quarto de banho, que a jovem bela rainha logo morreu sufocada.” Então, a madrasta colocou uma touca na cabeça da filha e a fez deitar-se na cama no lugar da rainha. Deu-lhe também a 77
forma e o aspecto da rainha, menos o olho perdido, que ela não pôde devolver. Neste momento do conto a figura da madrasta reaparece. Ela descobre que os enteados não morreram como havia pensado (e desejado) e que “Maninha” havia se casado com o rei, transformando-se em uma bela rainha e que ainda mantinha sob seus cuidados o irmão/veadinho, a quem protegia e amava. A madrasta se enche de ira e inveja à posição de Maninha. Nova figura é introduzida no conto: uma filha legítima da madrasta “... que era feia como a noite e só tinha um olho...” e que reclamava o lugar de Maninha, sua sorte e sua felicidade junto ao rei. A filha legítima da madrasta representa simbolicamente ela própria, seu desejo em estar no lugar de Maninha como a rainha do castelo (representação do lar) e de poder resgatar o filho desprotegido. Esta afirmação parece confirmar-se com o curso da história: a madrasta só vai até o castelo quando Maninha concebe “um lindo menino”. Novamente a madrasta não supera a inveja de poder atuar a maternidade. Sua própria filha tem um olho faltante, não pode enxergar direito, e isso é um sinal de sua maternidade deficiente, que lhe causa ansiedade e desespero. Muitas madrastas podem enxergar seus enteados como “a filha de um olho só” deste conto, um pedaço que lhe faltou para exercer uma boa maternidade. O que lhes faltou, com certeza foi a própria concepção, já que seus enteados não são filhos naturais. Algum pedaço lhes foi negado e elas não suportam esta falta, invejando e competindo com as figuras maternas bondosas e “naturais”.
Quando o rei regressou de sua caçada quis logo ver a sua amada esposa e seu filhinho recém-nascido. Mas a madrasta impede-o de abrir o cortinado da cama inventando que a rainha não podia olhar para a luz por conta de seu estado debilitado. O rei é persuadido pela madrasta e ausenta-se do quarto. Durante a noite a madrasta, disfarçada de ama “... que estava sentada ao lado do berço e era a única que velava, viu a porta se abrindo e a verdadeira rainha entrando. Ela tirou a criança do berço, pegou-a no colo e deu-lhe de mamar. Então, sacudiu o seu travisseirinho, colocou-a de volta no berço e cobriu-a com a colchinha. Mas não esqueceu o veadinho, que estava deitado num canto, foi lá e acariciou-lhe o pêlo das costas. Depois disso, ela 78
saiu em silêncio pela porta, e a ama perguntou na manhã seguinte aos guardas se durante a noite alguém entrara no castelo. Esses responderam: -Não, nós não vimos ninguém”. E assim sucederam-se as visitas da verdadeira rainha durante muitas noites, sempre se comportando da mesma maneira e sem dizer uma só palavra. Esta parte belíssima do conto pressupõe o conflito da madrasta diante de seu desejo de assumir uma maternidade que não é sua, de colocar-se no papel da mãe natural e do quanto estará assim podendo enxergar apenas com “um olho só”. Mesmo matando concretamente a rainha, esta volta no calar da noite para amamentar seu filho e afagar seu irmão, como um fantasma que só é visto pela madrasta disfarçada de ama e por mais ninguém. Uma madrasta não pode disfarça-se de ama, assim como não pode fingir ser a mãe natural. Toda vez que fizer isso será amedrontada pelo fantasma da rainha que, mesmo sem dizer uma palavra, lhe coloca frente a função materna mais primitiva e de significado mais relevante para o ideal da maternidade: a amamentação. A madrasta não é capaz de “amamentar” e enquanto quiser se colocar no lugar da mãe natural e atuar como ela, sofrerá a angústia de não conseguir, simplesmente porque esse não é o seu papel. E se sua angústia não for percebida e elaborada, ela provavelmente colocará tudo a perder.
Quando passou algum tempo, a rainha começou a falar durante a noite, e disse: “Como vai o meu filho? Meu veado o que faz? Volto mais duas vezes, depois nunca mais”. A falsa ama não respondeu, mas quando a rainha desapareceu ela foi correndo contar ao rei. Então o rei disse: “– Meu Deus, o que é isso? Na próxima noite eu mesmo velarei ao lado do meu filho.” Ele foi para o quarto da criança e à meia-noite quando a rainha apareceu e disse: “Como vai meu filho? Meu veado o que faz? Eu vim desta vez, depois nunca mais.” Então o rei precipitou-se para ela e gritou: “– Tu não podes ser outra senão minha esposa amada!” E ela respondeu: 79
“– Sim, eu sou tua esposa amada, e no mesmo instante, pela graça de Deus, ela recuperou a vida, ficou sã, viçosa e corada.” Ela contou ao rei tudo o que a bruxa malvada e sua filha haviam feito contra ela. O rei ordenou que fossem julgadas e elas foram condenadas. A filha foi levada para a floresta, onde as feras selvagens a devoraram. A bruxa foi queimada na fogueira. E assim que ela transformou-se em cinzas, quebrou-se o feitiço do veadinho e ele recobrou a sua figura humana. “E maninho e Maninha viveram juntos e felizes até o fim”. O conteúdo importante do final deste conto diz respeito à frustração da madrasta em não poder assumir o lugar da mãe biológica. Quando a rainha avisa que só virá ao castelo uma vez mais a angústia da madrasta aumenta, justamente porque reconhece não ser capaz de assumir um papel que não é seu. Ela não permite que a rainha se vá para sempre e avisa o rei, como que pedindo para que ele interviesse e impedisse seu desaparecimento. Mas seu comportamento é um tanto ambíguo já que se a rainha desaparecesse para sempre ela conquistaria, através de sua filha, o lugar que tanto desejou. Mas foi através do reconhecimento e enfrentamento da realidade, que a madrasta abdicou de sua fantasia, devolvendo à mãe natural a vida e seu papel social, através da figura do rei. Assim é também com o veadinho que pôde também se libertar de sua existência frágil com a morte da madrasta, mais precisamente com a morte simbólica de uma madrasta possessiva e controladora. Embora a luta da madrasta por uma busca de identidade seja tarefa das mais árduas, ela não pode cometer o engano da madrasta de “Maninho e Maninha”. Fingir para si mesma que é a mãe natural só confundirá mais ainda seu papel na dinâmica familiar. Madrastas podem assumir uma maternidade que lhes foi legada, desde que percebam que existem limites bem definidos nesta relação, muitos dos quais já foram estabelecidos antes mesmo de sua entrada na família. Se não conseguir distinguir estes limites, muitas vezes sutis, viverá se defrontando com o fantasma da mãe natural e poderá se frustar regularmente com frases do tipo: “Você não é minha mãe!”. Se, ao invés de querer estar no lugar da mãe natural estas madrastas soubessem conviver com a existência delas, poderiam encontrar uma posição mais confortável dentro da relação. A grande vantagem das madrastas (e padrastos) na atuação com os enteados, é que pela 80
relação não ser tão próxima como a existente entre pais biológicos, eles podem se manter mais à distância. Sendo assim, não há perigo de eles verem as crianças como extensão de si mesmos. “Às vezes, porque estão menos envolvidos, têm mais facilidade de perceber onde se encontram os reais interesses da criança” (Boletim Informativo da Associação nacional da Família Substituta, Primavera, 1987). 12 Usufruindo desta objetividade, as madrastas podem tornar-se uma “amiga adulta” para as crianças, assumindo uma participação significativa na vida delas como uma conselheira, como alguém com quem eles podem desabafar e pedir orientações.13 Esta vantagem é realmente observada pelos enteados, principalmente para os que estão entrando na adolescência. Como uma fase realmente conflitiva, muitos tem dificuldades para expressar suas dúvidas, anseios e descobertas para os pais biológicos, temendo que temas como sexualidade, drogas e outros possam ser recriminados. Estes adolescentes muitas vezes encontram na madrasta um “ouvido” mais permeámeável do que o dos pais, e interpretam suas idéias como menos tendenciosas do que seriam as idéias paternas e maternas. E estas madrastas podem também traduzir a linguagem adolescente para o pai, com tranqüilidade e maior isenção do que se essa fosse transmitida pela mãe. E esta contribuição na vida dos enteados e da família têm um valor especial. “João e Maria” e “Maninho e Maninha” são contos que revelam em sua essência a tendência do ser humano de enxergar os outros “com um olho só”. João e Maria enxergavam apenas a mãe má e rejeitadora, enquanto a madrasta de “Maninho e Maninha” enxergava apenas sua necessidade de posse e controle. Um conto completa o outro na medida que ambos tratam da dificuldade da separação. E as madrastas deverão enfrentar repetidas vezes esta dor: a separação de sua própria mãe, a separação de seu companheiro com sua ex-esposa, a separação de seus enteados com a própria mãe e sua separação na relação com seus enteados. Mas, com certeza enfrentar tantas separações é propiciar muitos encontros também.
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CAPÍTULO III
C inderelaea R ivalidadeF raterna “– Você Cinderela! Suja e cheia de pó, está querendo ir à festa? Como vai dançar se não tem roupa nem sapatos?...” 1 (a madrasta do conto “Cinderela”)
A história de Cinderela é talvez uma das histórias de fadas mais conhecidas mundialmente. O sofrimento da heroína comove as pessoas, e a recompensa por sua resignação estimula as fantasias de um número incontável delas. O sucesso de “Cinderela” bem como sua propagação pelo mundo todo, tem uma justificativa. A história trata de vários conflitos do desenvolvimento psíquico, entre eles muitos que se referem à figura das madrastas. Duas pesquisadoras canadenses, Dra. Katalin Morrison e Airdrie Thompson-Guppy2, chegaram mesmo a utilizar esta história para caracterizar um conjunto de sintomas que, segundo elas, é comum a muitas madrastas. Chamaram de “Síndrome da Madrasta de Cinderela”, relacionando os seguintes sintomas: 1. “Os sintomas sintomas flutuam, flutuam, dependendo dependendo da interação interação com os enteaenteados. A antecipação da interação, assim como a reação à interação, pode ter influência significativa sobre os sintomas. 2. Vários dos seguintes seguintes sintomas sintomas estão presentes: presentes: a. preocupação preocupação com com a posição na família; família; b. b. confusão confusão de identida identidade de quan quanto to a seu papel papel como como madrasta madrasta;; c. sentimento sentimento de ansiedade, ansiedade, que que às vezes podem levar levar à perda de sono, problemas de apetite e sintomas de tensão; d. sentiment sentimentoo de rejeição na situação situação familiar familiar;; 83
e. sentimentos sentimentos de ineficác ineficácia, ia, incompetênci incompetênciaa e falha no que diz diz respeito à realização da função maternal com os enteados; f. culpa e hostilidade hostilidade em relação relação aos aos enteados enteados quando quando a madrasmadrasta não pode ajudá-los e não consegue se sentir aceita; g. inabilidad inabilidadee para resolver problema problemass referentes referentes ao papel de madrasta com o pai das crianças, criando assim tensão, hostilidade e medo de rejeição no relacionamento conjugal; h. perda perda de auto-e auto-esti stima; ma; i. supercompensa supercompensação ção como como método método de lidar lidar com com esses esses probleproblemas, o que leva à exaustão.” “O mito da Cinderela da madrasta malvada deveria ser posto de lado de uma vez por todas”, dizem as pesquisadoras. “Os problemas das madrastas modernas deveriam ser vistos pelo que são: reações a uma situação inerentemente difícil e complexa, exacerbada pela percepção da sociedade do papel das mulheres em geral e das madrastas em partic particula ular”. r”. Muito Muito embor emboraa eu ache que que relacio relacionar nar sinto sintomas mas agrup agrupand andooos em uma “síndrome” seja transformar sentimentos comuns a todas as pessoas quase quase que em uma doença, doença, as autoras autoras acertadamente acertadamente chamam chamam a atenção para a dificuldade que as madrastas encontram nas relações familiares e que não dizem respeito a ela em particular, mas ao papel que ocupam na sociedade. E é isto que veremos neste capítulo. “Cinderela”3 começa assim:
“Há muito tempo, aconteceu que a esposa de um rico comerciante adoeceu gravemente e, sentindo seu fim se aproximar, chamou sua única filha e disse: – Querida filha, continue piedosa e boa menina, que Deus Deus a protegerá sempre. E lá do céu olharei por você, e estarei sempre ao seu lado – mal acabou de dizer isso, fechou os olhos e morreu. A jovem ia todos os dias visitar o túmulo da mãe, e chorava muito. Veio o inverno, a neve cobriu o túmulo com seu alvo manto. Chegou a primavera, o sol derreteu a neve, e o viúvo tornou a se casar...” O falecimento de uma das figuras parentais é uma experiência dolorosa para as crianças. Pai e mãe são figuras importantes no desenvolvimento infantil e a ausência de uma delas é sentida pela criança como o mesmo que perder uma parte de si mesmo. 84
A orfandade é talvez o maior receio do der humano. Histórias tristes estão sempre ligadas à separação, seja concreta, seja simbólica, mas sempre à separação. Um órfão é sempre uma figura que mobiliza os sentimentos das pessoas, são dignos de sua pena, dó e ajuda incondicional. Talvez por isso “Cinderela” tenha tido uma repercussão fantástica. Ela é a personificação da orfandade, do abandono e do sofrimento humano. A figura da mãe é tão importante para a criança, que quando esta vem a falecer, a criança procura ansiosamente substituí-la. Isto é tão verdadeiro que, mesmo crianças que convivem com a mãe, mas que por diversas razões não conseguem estabelecer um vínculo afetivo com elas, projetam nas figuras substitutas femininas esta mãe faltante, esperando delas que lhe “adotem” como filhos. Isto acontece principalmente com as crianças ainda pequenas. As madrastas que assumiram a maternidade de crianças pequenas, que tiveram pouco contato com a mãe biológica, têm maior facilidade para para est estab abel elec ecer er um um vínc víncul uloo estr estrei eito to com com ela elas. s. Prim Primei eiro ro por porqu quee as cri crian an-ças anseiam dela os cuidados maternos essenciais. Segundo porque elas assumem a maternidade da criança, e acompanham o desenvolvimento delas desde a mais tenra infância, chegando a reconhecê-las como filhos “quase legítimos”. Terceiro que, por a figura materna não ter tido uma importância fundamental na vida da criança, esta figura não se inter põem na relação relação dela com a madrasta madrasta.. Nesses Nesses casos, casos, embora embora a madrast madrastaa não seja a mãe biológica, sua identidade é menos ambígua, porque o seu papel na vida da criança é efetivamente o papel materno. Conheço algumas madrastas que assumiram enteados com pouco mais de um ano de idade. Uma delas relatou-me que ao assumir o enteado, na ocasião com 1 ano e meio e órfão de mãe, ela realmente esperava construir com ele um vínculo de mãe e filho. Quando uniu-se ao pai do menino, conscientemente unia-se estreitamente com o filho dele também. Ela não queria ser só companheira, havia também escolhido ser mãe da criança. Isto estava muito claro para ela, para o companheiro, para a família e portanto ficou logo claro para o menino também. Hoje este “menino” é um jovem de 14 anos que parece vivenciar sua entrada na adolescência como a maioria dos rapazes de sua idade, com energia, alegria e uma certa confusão pubertária. Chama de mãe a madrasta, mesmo sabendo que ela não é sua mãe biológica, e nutre por ela um carinho bastante visível. Quando perguntada sobre as dificuldades que encontrou em ser madrasta, com franqueza ela me respondeu: “As 85
mesmas que qualquer mãe tem na criação de seus filhos. Porque me identifico muito mais como mãe do que como madrasta. Foi o papel que escolhi para mim e ofereci a ele. E ele logo aceitou!”
Certamente esta madrasta não teve tantas dificuldades para com a aceitação de seu enteado, justamente por ele ter tido pouco mais de um ano de convivência com a mãe natural, e por necessitar de uma figura feminina que a substituísse. Porque uma criança nesta idade é ainda totalmente dependente da figura materna. Além disso, a sinceridade e a clareza desta madrasta pôde tornar sólido o seu posicionamento na família e na sociedade. E talvez toda a sua atuação com o enteado, ainda pequeno, tenha feito sentir-se mais próxima daquilo que a sociedade entende como papel materno e do que ela compreenda como papel da madrasta. De qualquer forma, esta mulher criou um laço afetivo muito forte e cheio de amor com o enteado, não fazendo distinção nenhuma com seus outros filhos. E no meu ponto de vista, aos objetivos a que se propôs, ela é uma madrasta bem sucedida. No caso das crianças mais velhas, que perdem a mãe, a situação pode não ser tão tranqüila assim. E “Cinderela” é a representação desta dificuldade de superar a morte da mãe biológica, quando esta mãe foi carinhosa e cuidadosa e a criança guarda lembranças vividas dela. No conto, isto fica muito claro pelas ações da heroína: após a morte da mãe Cinderela vai todos os dias visitar seu túmulo e chorar sua perda. Com a chegada da primavera, o pai de Cinderela se casa novamente. Primavera é a estação das flores e representa o florescimento, o colorido da vida, a renovação da natureza. Assim foi para o pai de Cinderela, sua vida estava pronta para florescer. Assim não foi para Cinderela que chorou a morte da mãe durante todo o inverno, época fria onde o sol pouco aquece e as pessoas buscam o aconchego do lar. Cinderela não percebeu a chegada da primavera. Sua existência tornou-se fria e infeliz. Em termos concretos, quando a criança mais velha, que vivenciou um vínculo cheio de carinho com a mãe e já internalizou uma imagem materna positiva, experimenta a perda dolorosa da mãe, esta geralmente tende a tornar-se uma figura idealizada. Smith 4 aponta que nestes casos é possível que se crie uma fantasia de como ela sempre teria sido perfeita, uma mãe cheia de compreensão, perdão e amor. Vivendo este ideal a criança tem dificuldades para aceitar futuras companheiras do pai porque não suporta a idéia de que essas mulheres possam substituir a mãe. De certa forma madrastas que assumem enteados órfãos o fazem 86
concretamente, mas nunca substituirão integralmente a mãe, mesmo que assim o queiram. A madrasta então terá uma prova difícil de ultra passar: a competição que a criança promoverá com a figura idealizada da mãe. Na fantasia destas crianças a madrasta veio roubar o lugar da mãe, se aproveitar da ausência dela para ocupar-lhe o lugar. E a mãe ausente não pode fazer nada. A criança pode resistir à presença da madrasta porque torna-se um guardião do lugar materno na vida da família, um príncipe valente trajando uma armadura reluzente com uma espada na mão, que não poupará esforços em atacar qualquer um que ouse adentrar o “território sagrado do amor materno”. Muitas crianças cultuam a fantasia de que, se deixar a madrasta aproximar-se, a mãe se ressentirá com ela, estando aonde estiver. Este sentimento, além de expressar a resistência no abandono da figura materna idealizada, também demonstra os sentimentos de culpa que a criança experimenta no caso de criar um vínculo com a madrasta, superando a perda da mãe. E estes sentimentos de culpa também estão ligados a outros conflitos comuns da infância. Já dissemos o quanto as crianças projetam nas mães suas frustrações por abandonos e rejeições. Dissemos também o quanto as crianças se ressentem por terem de abandonar a dependência materna. O que não dissemos é o quanto as crianças, movidas pelo sentimento de abandono e rejeição, fantasiam a morte das figuras parentais. “Eu queria que ela (ele) morresse” é uma fala comum de crianças ressentidas com os pais. E mesmo que não falem as crianças assim os sentem mais freqüentemente em algumas fases de seu desenvolvimento. Quando por uma contingência da vida uma das figuras parentais morre concretamente, o sentimento de culpa pela concretização da fantasia da criança é muitas vezes devastador. Assim, a criança pode, inconscientemente se sentir culpada pela morte da mãe (ou do pai) e seu com portamento pode ser o de merecedor de todo o sofrimento que deverá passar pela vida até que possa elaborar esta perda. Como a linguagem do conto de fadas é simbólica e revela os conflitos humanos, Cinderela parece buscar a própria infelicidade. Seu sofrimento estava apenas começando...
“... A nova esposa trouxe suas duas filhas, ambas louras e bonitas, mas só exteriormente. Tinham a alma feia e cruel. Então começaram dias difíceis para a pobre enteada. 87
– Essa imbecil não vai ficar no quarto conosco! – reclamaram as moças. – Lugar dela é na cozinha! Se quiser comer pão que trabalhe! Tiraram-lhe o vestido bonito que ela usava, obrigaram-na a vestir outro, velho e desbotado, e a calçar tamancos. – Vejam só como está toda enfeitada a orgulhosa princesinha de antes! – disseram a rir, levando-a para a cozinha. A partir de então, ela foi obrigada a trabalhar de manhã à noite nos serviços mais pesados. Era obrigada a levantar-se de madrugada para ir buscar água e acender o fogo. Era ela quem cozinhava e lavava. Como se não bastasse, as irmãs caçoavam dela e a humilhavam. Despejavam lentilhas e feijões nas cinzas do fogão, para obrigá-la a catá-los. À noite, exausta de tanto trabalhar, ela não tinha onde dormir e era obrigada a se deitar sobre as cinzas do fogão. E, como andasse sempre suja e cheia de cinza, só a chamavam de Cinderela...” À primeira vista, as meia-irmãs de Cinderela são frias e cruéis. Mas se refletirmos mais profundamente sobre o relacionamento entre irmãos dentro da família, veremos que a rivalidade fraterna é um tema comum, que gera inúmeras fantasias nas mentes infantis. A entrada das meia-irmãs na vida de Cinderela não provoca nada a mais do que seria a entrada de irmãs de sangue. E esta rivalidade fraterna é um dos conflitos centrais desta história. No conto, a madrasta privilegia suas filhas e reduz Cinderela a uma existência de “empregada” dentro da casa. Esta questão de privilégios na dinâmica familiar é freqüentemente reclamada pelas crianças. Algumas vezes é realmente observada, quando mães e pais acabam dando maior atenção, cuidado e afeto para um dos filhos; àquele que é considerado o mais frágil, ou mais “problemático”, ou o mais “dependente” ou ainda o que corresponde aos ideais dos pais, tornado-os merecedores de atitudes “diferenciadas”. O processo de relacionamento entre pais e filhos é bastante complexo. Uma infinidade de variáveis internas e externas vão interferir neste vínculo, desde a gravidez. Se a gravidez foi planejada ou não, se houve rejeição por um dos pais, se a saúde física e emocional da mãe foi comprometida, se a situação financeira era favorável para o recebimento de um novo membro na família, se existia a expectativa pelo nascimento de um filho de determinado sexo, e assim por diante. Tudo isso interferirá na situação emocional desta criança quando vier a nascer e 88
refletirá no comportamento adotado pelos pais. Diante desta constatação, nenhum filho será criado como o outro, mas algumas crianças podem realmente experimentar uma rejeição concreta por uma das figuras parentais (ou por ambas) que as fará sentir como a “Cinderela do lar”. Mas, na maioria das vezes este sentir-se como Cinderela pode ser fruto das fantasias de privação e culpa das crianças e não de uma realidade concreta. Se, por exemplo a criança tem maior dificuldade em abandonar a dependência materna, pode ressentir-se com os cuidados que a mãe dispensa também para com seus outros filhos. E estes últimos passam a ser os rivais da criança. É assim com boa parte dos filhos únicos que sentem seus relacionamentos com a mãe ameaçados pela chegada de um novo bebê. Este ciúmes que está intimamente ligado à perda de uma posição privilegiada na família é, muitas vezes, o responsável pelos ataques agressivos da criança à mãe e ao novo irmão. O que precisamos esclarecer é que a rivalidade fraterna está ligada à figura de pai e mãe, que é deslocada para os irmãos. Por que a maior dificuldade da criança é ter de dividir o afeto dos pais com os irmãos. Seguindo este caminho, Cinderela parece ressentir-se com a chegada das irmãs, porque terá de dividir o pai com elas, perdendo a posição privilegiada ao lado dele. Na verdade ressente-se com o pai, mas projeta nas irmãs e na madrasta esta sua raiva. Mas esta raiva pode ser também originalmente dirigida só ao pai. O ciúmes que a criança experimenta quando o pai assume os filhos da madrasta, ou quando também tem filhos em comum com ela, é bastante comum. Quando a criança não mora com o pai, e só o visita, pode experimentar um profundo sentimento de traição; na sua fantasia o pai prefere estar com os meio-irmãos, e não com ela. Ela inveja o tempo que os meio-irmãos passam ao lado do pai e às vezes invejam a posição deles num sentido mais amplo, o de poderem viver realmente como uma família nuclear. Nesses casos a rivalidade fraterna voltada aos meio-irmãos que é correlativa àquela dirigida aos irmãos de sangue, pode ser intensificada pela realidade concreta, ou seja, pelo fato de a criança não morar com o pai. E a criança tende a voltar a sua raiva para os meio-irmãos ou para a madrasta, que para a criança é a responsável por os ter colocado ali, entre ela e o pai. Porém, com essas constatações, não pretendo aqui minimizar o sofrimento das crianças que foram realmente esquecidas por seus pais. Mesmo porque há muitas histórias verídicas de pais que se casam novamente e se esquecem dos filhos do casamento anterior, 89
não os procuram nem cuidam deles. Constróem uma nova família realmente destruindo a anterior. E estes casos realmente não são aqueles a que me refiro aqui. A sensação infantil de que os pais, principalmente a mãe, dão maior atenção aos irmãos também pode ter origem nas fantasias que a criança tem da desaprovação materna. As crianças acreditam, em alguns períodos de sua vida que, devido a seus desejos secretos ou até mesmo as ações clandestinas, merecem ser rebaixadas, banidas da presença dos outros, relegadas ao submundo do carvão. 5 O aprendizado da higiene e educação, por exemplo colocam a criança frente a normas de comportamento que cumprem um papel importante para as crianças: ganhar a estima dos pais. Se a criança reprime seus desejos de fazer coisas socialmente inaceitáveis, ela consequentemente recebe a gratificação da mãe e sua aprovação. Mas se resistir a adequar-se aos padrões estabelecidos pelos pais durante o processo de socialização, o receio de perder o amor de ambos é ativado e também os sentimentos de rejeição. E mesmo que a criança reaja a este medo da perda do amor dos pais aceitando as novas regras, isto não impede que seus desejos continuem existindo. Sendo assim, a criança se sente culpada por tais sentimentos, e isto pode provocar a sensação de que seus irmãos são privilegiados porque conseguiram corresponder às expectativas dos pais e sua aprovação. Se nossa “Cinderela” é suja e maltrapilha é porque sente-se culpada por seus desejos secretos e repreensíveis. Por isso não pode ser bonita como as irmãs, nem pode receber os privilégios que acredita que elas recebem da mãe. Claro, porque enxerga a figura da mãe como alguém que irá puni-la, que não lhe dará carinho e proteção. A rivalidade fraterna experimentada pelas crianças com seus irmãos de sangue é a mesma experimentada pelos meio-irmãos. O próprio conto se encarrega de nos mostrar isso. Porque em nenhum momento da história as meia-irmãs são apresentadas desta forma e sim como irmãs. Ora, se as histórias sempre colocam de forma bastante categórica os seus personagens, para distinguí-los em suas atuações positivas e negativas, possibilitando a interação do herói com estes personagens, posso supor que tamanho lapso no caso de “Cinderela” tenha seu propósito. O de mostrar que não importaria se as meia-irmãs de Cinderela fossem irmãs de sangue, ou não. Tanto isto é verdadeiro, que muitas crianças chamam seus meio-irmãos de irmãos. Um enteado até confessou-me sua irritação pelo fato de sua madrasta dizer à seu filho biológico que o 90
meio-irmão era seu primo:
“Ela fica dizendo para ele que eu sou primo, não irmão! Ora, ela é horrível, porque eu sou irmão, somos filhos do mesmo pai!”
O que está em jogo na rivalidade fraterna, sem dúvida, é o quanto os irmãos podem se interpor na relação da criança com os pais. Talvez, a única nuance a ser reconhecida é que esta rivalidade fraterna pode ser intensificada pela realidade concreta. O que eu quero dizer é que na relação entre meio-irmãos as diferenças no trato e cuidado se tornam mais visíveis e se prestam mais a projeções. Porque a culpa pelos sentimentos negativos experimentados pelas crianças é bastante menor, já que os meio-irmãos não são irmãos “verdadeiros” e por isso as crianças não têm a “obrigação” de ser condescendentes com eles. Além do que, a raiva fundamental da criança é originalmente dirigida para os pais, e depois deslocada para os irmãos. E sabemos, experienciar uma raiva dirigida objetivamente para os pais é mais angustiante para a criança do que deslocá-la para outros objetos. Seja com os pais, ou seja com os irmãos a agressividade voltada à família nuclear, pai, mãe e irmãos, é constantemente reprimida pelas normas de conduta sociais. Espera-se da criança que ela seja boa com os irmãos, que os ame como ama seus pais e portanto, que reprima seus sentimentos negativos para com eles. “Quem semeia o mau colhe tempestade”. Se a madrasta é má, suas filhas também são. E possivelmente serão madrastas também. E, neste ponto, eu abro uma parênteses para ir além da interpretação dos sentimentos negativos de Cinderela para com suas meia-irmãs: parece-me que o conto também nos fala de uma certa “lei social de continuidade”, onde os estigmas da bondade e da maldade parecem passar de pai para filho como genes hereditários. Assim como os estigmas da loucura, da luxúria, da criatividade, etc. Os filhos são identificados pelas ações e pensamentos de seus pais, avós, etc. Espera-se deles o mesmo comportamento que os reconheça na sociedade como “filhos de fulano” ou “netos de ciclano”, e isto pode provocar um sofrimento muito grande porque corre-se o risco de viver com uma identidade totalmente misturada e atrelada à dos outros. E, por mais que a relação entre pais e filhos influencie fortemente na personalidade das pessoas, cada um vivenciará esta relação de forma diferenciada, elaborando seus processos psíquicos e “moldando” seus comportamentos enquanto indivíduo. E isso não caracteriza uma “hereditariedade generalizada” que possa enquadrar os seres nos rótulos e estigmas sociais. 91
Uma outra variável que podemos observar nas relações de madrastas que tem filhos legítimos e que também é responsável pelos enteados é que elas podem privilegiar os seus, como a madrasta de Cinderela o fez. A dificuldade de encontrar uma identidade que lhe seja confortável e natural provocará sentimentos contraditórios na relação com seus enteados. Se, por exemplo ela ansiosamente adota seus enteados como se fossem seus filhos, se ressentirá com qualquer demonstração de resistência deles em “adotá-la” como mãe. Seu ressentimento e sensação de fracasso podem gerar atitudes agressivas e vingativas: privilegiando seus filhos legítimos mostrará aos enteados o quanto perderam em não deixála assumir sua maternidade. Esta questão das expectativas da relação entre madrastas e enteados não só provém das madrastas. Os enteados também têm grandes expectativas ao defrontarem-se com suas madrastas e seus meio-irmãos. E essas expectativas nem sempre são ruins. Muitas vezes os enteados esperam que suas madrastas atuem como uma mãe infinitamente boa. Este tipo de esperança é percebido com maior freqüência nas crianças que são órfãs de mãe ou que não possuem um bom relacionamento com suas mães biológicas. Projetam nas madrastas o seio idealmente bom, e se frustram com facilidade se elas não correspondem aos seus ideais. Um conto dos Irmãos Grimm entitulado “Os Três Homenzinhos da Floresta”6, assim como em “Cinderela”, tem como tema central a rivalidade fraterna, mas o início do conto pode elucidar melhor a questão da expectativa x frustração. O conto começa assim: “Era uma vez um homem, cuja mulher morreu, e uma mulher, cujo marido morreu. O homem tinha uma filha e a mulher também tinha uma filha. As duas moças se conheciam e foram passear juntas e depois vieram à casa da mulher. Então a mulher disse à filha do homem: – Ouça, diga ao seu pai que eu quero me casar com ele; então você poderá tomar banho de leite e beber vinho todos os dias; a minha filha porém, só poderá tomar banho de água e beber só água, também. A moça foi para casa e contou ao pai o que a mulher lhe dissera. O homem disse: – O que devo fazer? Casar é uma alegria, mas é também um tormento. Finalmente, por não saber o que fazer, ele descalçou uma bota e disse: – Pegue esta bota, que tem um buraco na sola, suba com ela ao sótão, pendure-a no grande prego e derrame água dentro. Se a água parar dentro dela, eu tomarei outra esposa; mas se a água vazar, eu não me casarei mais. 92
A moça fez o que ele mandava. A água fez o buraco se contrair e a bota ficou cheia até em cima. A moça contou ao pai o que acontecera. Então ele mesmo subiu e quando viu que era realmente verdade, foi até a viúva, fez-lhe a proposta e o casamento foi celebrado. Na manhã seguinte, quando as duas moças se levantaram, havia para a filha do homem leite para se banhar e vinho para beber, e para a filha da mulher, água para se banhar e água para beber. Na manhã seguinte, havia água para se banhar e água para beber preparada para a filha do homem e para a filha da mulher. E na terceira manhã, havia água para se lavar e água para beber para a filha do homem, e leite para se lavar e vinho para beber para a filha da mulher, e assim permaneceu. A mulher começou a odiar a enteada e não sabia o que fazer a fim de piorar as coisas para ela, de um dia para o outro. E também estava com inveja, porque a enteada era bela e amável, mas a sua própria filha era feia e desagradável...” O início deste conto demonstra bem as expectativas que a filha do homem tinha por sua futura madrasta. Órfã de mãe, esta menina parece não ter superado a separação materna e procura ansiosamente uma substituta que satisfaça suas necessidades. Ela deposita na madrasta seu desejo de que ela a ame como sua filha legítima, ou melhor que a ame mais intensamente do que ama a própria filha. Ela espera que a madrasta “banhe-a com leite” e lhe dê “vinho para beber”. “Banhar-se com o leite” é sem dúvida uma alusão a uma amamentação farta, possui as características da fantasia infantil de uma mãe idealmente boa e nutridora. Beber o vinho também possui significados da introjeção materna. A menina fantasia que poderá introjetar a madrasta bebendo o vinho, que está simbolizando o sangue. Bebendo o sangue da madrasta acredita estar possuindo uma relação de consangüinidade com ela. Tornar-se-á sua filha legítima. Sua procura por uma mãe substituta é tão verdadeira que é ela quem leva ao pai a proposta de casamento. E é ela quem vai pendurar a bota furada cheia de água no sótão da casa. Estes detalhes do conto são ricos em significados. O sótão geralmente é um lugar escuro e empoeirado, onde guardamos objetos antigos que foram importantes no passado e que mesmo em desuso não podem ser jogados fora. Este sótão também se presta à representação do inconsciente, onde estão guardadas as necessidades mais primitivas da menina. E lá ela coloca a bota com o buraco na sola que deve ser preenchido pela água. Ora, a falta 93
materna é o buraco da menina, bem como do pai. Iludida pela fantasia de que a futura madrasta preencheria o buraco de ambos, a menina permite que o pai se case com a mulher. Mas após o casamento a menina se defronta com uma realidade cruel: a madrasta não pode corresponder às suas expectativas, porque ela faz parte do ideal da menina e por ser um ideal, nem ela nem ninguém poderia correspondê-lo. É desta forma que a madrasta e sua filha legítima passam a assumir característica más na história, tornamse o objeto mau que a persegue e as responsáveis por todos os seus sofrimentos. Esta necessidade de preenchimento, esta “falta” que assume as características conflitivas da menina não podem ser preenchidas pela madrasta/mãe, nem por ninguém. O ser humano deve lidar com suas faltas e não buscar que o outro possa preenchê-las. Sendo assim, na história, a menina ressente-se com isto. E este ressentimento é projetado na madrasta. Ela é a representante de todas as faltas que a figura materna pode assumir na fantasia da criança durante o seu desenvolvimento. Em “Cinderela” também fica claro que a madrasta e sua filhas legítimas não correspondem ao ideal da heroína. Ela sente-se traída pela madrasta e fantasia uma grande desigualdade no tratamento para com ela e para com suas meia-irmãs. Parece que a grande dificuldade do ser humano é lidar com seus ideais, ou melhor, lidar com a frustração constante de nunca encontrar ninguém que possa correspondê-los por inteiro. E madrastas e enteados terão que esforçar-se conjuntamente para lidar com essas questões. Embora no conto fique claro que a madrasta é má e assim o são suas filhas, sob o ponto de vista do herói (de Cinderela) e suas necessidades neuróticas, é Cinderela que visualiza a maldade da madrasta e de suas meia-irmãs. Esta hipótese pode confirmar nossa indagação: O que fez Cinderela para ser maltratada e escorraçada pela madrasta e suas filhas? Para ter um pai omisso que não a protege nem se aflige pelo seu sofrimento? Se tomamos o ponto de vista das necessidades do herói, então a história não precisa explicar as culpas de Cinderela. Mas nós podemos trilhar caminhos que nos levarão ao início de uma compreensão. No mundo Ocidental a história de Cinderela não tinha esse nome. A confusão que ainda fazemos entre Cinderela, Borralheira ou Gata Borralheira para nomear este conto tem sua origem nas modificações que o conto sofreu durante séculos. No Ocidente a história editada come94
çou com a versão de Basílio entitulada “A Gata Borralheira”. 7 Fala de um príncipe viúvo que adora sua filha Zezolla, e casa-se com uma mulher malvada que odeia a enteada. Zezolla queixa-se disso à governanta, dizendo que preferia que o pai se casa-se com ela. A governanta se sente tentada pela oportunidade e diz a Zezolla que peça à madrasta para pegar algumas roupas dentro de uma grande arca, de modo que, ao se curvar dentro dela, Zezolla pudesse soltar a tampa sobre a cabeça da madrasta e assim quebrar seu pescoço. Nos diz a estória que Zezolla segue os conselhos da governanta e mata a madrasta. Depois persuade o pai a casar-se com a criada. Após o casamento, a criada promove as suas seis filhas, que mantivera escondidas até então e faz o pai de Zezolla ficar contra ela. E assim, a ela é delegada todas as tarefas do lar, e por sua aparência suja e maltrapilha ela passa a ser chamada de Gata Borralheira. A estória continua, com detalhes diferentes, da forma como conhecemos, mas para minha finalidade é o início desta versão de Basílio que me interessa neste momento. Interessa porque ele é bastante diferente da Cinderela atual dos Grimm, ou mesmo da versão de Perrault, porque parece-me a estória de Basílio ser a única no Ocidente em que o destino da heroína depende dela, é resultado de suas próprias ações. Ela não é perfeita, nem ingênua, mas como todos nós é passível de sentimentos menos edificantes. Zezolla mata a madrasta, mesmo que incentivada pela governanta é ela quem pratica a ação, ela não contém seus impulsos agressivos dirigidos a madrasta. Mata porque tem ciúmes do pai, porque não suporta, primeiro a perda da mãe (embora o conto não fale especificamente da morte da mãe, nos faz supor sua morte), segundo a “perda” do pai para outra mulher. Embora a estória nos fale também sobre os conflitos edípicos de Zezolla (que falaremos mais demoradamente no próximo capítulo), ela nos revela os sentimentos de culpa que a heroína precisa reparar, sofrendo uma existência de Borralheira. Sendo assim, mesmo que a “Cinderela” de nossos tempos aparentemente tenha seus atos omitidos, sua origem a desmistifica enquanto ser dotado apenas de virtudes. Cinderela precisa expurgar suas culpas e a madrasta é a personificação das suas projeções do seio mau (na história de Basílio a criada, agora casada com seu pai, é sua nova madrasta). Se Cinderela se culpa por seus desejos secretos de ataque à figura materna, então precisa repará-los. Ao mesmo tempo precisa projetar o mau em outro alguém. É assim que a madrasta mais uma vez é a personificação do mau enquan95
to a imagem da mãe fica preservada na figura da boa fada. E nenhuma madrasta foi tão egoísta e insensível como em Cinderela. Mas, vejamos também porque existem madrastas que parecem ter sido retiradas da história de Cinderela com todas as suas característica malévolas, e que rejeitam os enteados tão categoricamente na vida real. Os Contos falam da morte das mães, e de todos os conflitos que as crianças passam para superar esta dor. Hoje, ter uma madrasta não significa ser órfão de mãe. Como já dissemos, com a legalização do divórcio, cresceu o número de segundas uniões matrimoniais, e portanto o número de crianças que têm mães e madrastas (como também pais e padrastos). E a separação dos pais também pode ser sentida pela criança com tamanha intensidade, tal como é sentida pelo casal. Ninguém passa ileso por uma separação. Muitos sentimentos acom panham a família; vão desde a sensação de fracasso pessoal até a dificuldade de superar os sentimentos de posse e controle dirigidos para os integrantes da família. Superar uma separação, é com certeza um trabalho emocional para o casal. Quanto mais podem compreender e elaborar seus sentimentos para com esta situação, mais as crianças também conseguirão superá-la. Mas quando a separação é mal resolvida pelo casal, a vivência de uma nova relação matrimonial pode estar repleta de resquícios da união anterior, interferindo diretamente na relação das madrastas e enteados. Se por exemplo a mãe biológica não consegue aceitar o novo relacionamento do ex-marido, ela tende a projetar sua raiva na nova com panheira dele. Ela passa a ser a responsável por todo o seu sofrimento emocional. Estabelece uma competição, que passa também pelo relacionamento delas com seus filhos, utilizando-os como um instrumento para atingi-las. Incitam a criança a rejeitá-la e pior, demonstram sua desa provação quando as crianças dão qualquer sinal de aproximação afetiva para com suas madrastas. Isto, para as mães biológicas pode soar como uma traição tão profunda, que as crianças preferem não enfrentar. É muito comum que o ressentimento da mãe das crianças com a nova união do pai delas seja deslocada para questões financeiras. Porque a forma mais comum dos acertos do divórcio é que as mães que ficam com a guarda dos filhos, recebam uma pensão relativa às despesas com eles. Geralmente, quando o pai das crianças tem filhos com a madrasta, a ex-companheira estabelece comparações: “Seu pai dá tudo para o “novo” filho dele, e para vocês só aquela mísera pensão...”; “Quan96
do você fez aniversário de 4 anos, ele não lhe deu uma bicicleta...”; “para mim ele nunca deu nada, eu passei anos ao seu lado e precisava implorar para ele me dar dinheiro para comprar um vestido novo, agora ele dá tudo para aquela lá, deu até um carro novo...”. Estas colocações na verdade
revelam muito mais do que questões financeiras. Dizem respeito à resistência em aceitar a nova união do ex-companheiro, que são deslocadas para o dinheiro. E mesmo que existam questões a ser discutidas com relação à manutenção dos gastos com as crianças, isso diz respeito aos adultos e não às crianças. Incitar as crianças contra o pai, a madrasta e os filhos deles só serve para ressentir as crianças e para dificultar seu relacionamento com eles. Outro conflito comum, e que diz respeito a acordos financeiros, é a questão dos bens. Enteados adultos e suas mães, podem temer que a madrasta venha “roubar aquilo que eles ajudaram a construir”. O maior temor nesses casos, é que a madrasta tenha filhos com o genitor e então os enteados tenham que dividir a herança do pai com o meio-irmão. Questões destas junto à justiça brasileira são muito comuns. Aliás, nossa legislação além de demonstrar seu descaso à figura da madrasta *, foi ainda mais longe, ao manifestar por ela, também sua desconfiança. O infundado, porém indisfarçável receio de que a madrasta possa delapidar os bens de seu enteado, conduziu o Código Civil brasileiro a manter, desde 15 de janeiro de 1919, dispositivo que proíbe, expressamente, o viúvo que tenha tido filho com a esposa falecida, casar-se sem antes assegurar todos os direitos desse filho, ou seja, no dizer da lei: “enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros” (art. 183, inciso XIII), o que demonstra o preconceito de ser a condição de madrasta, por definição, também nada confiável, seja ela quem for. Desta forma a figura da madrasta torna-se a de uma usurpadora que ameaça um dos mais importantes valores de nossa sociedade: o patrimônio familiar. Mas também como no caso dos acordos de uma separação, o temor da usurpação não diz respeito só ao dinheiro; avaliado com mais profundidade demonstra o ressentimento da família primária em que o “pai seja roubado” pela madrasta e que este divida com ela e com seu novo filho uma intimidade que até então só os membros da primeira família tinham o privilégio de usufruir. Uma mulher, que foi enteada na infância, me contou sua história cheia de mágoa e ressentimento. Sua mãe morreu, e o pai casou-se novamente. Ela e os irmão de sangue passaram a conviver com a madrasta e 97
com os meio-irmãos que foram surgindo da nova união do pai. Suas lembranças deste período são as piores possíveis. Contava amargurada que a madrasta servia carne e leite para seus próprios filhos, mas para elas e seus irmãos nunca havia carne e leite (uma semelhança com o conto “Os três Homenzinhos da Floresta” que veremos a seguir). Ela era obrigada a cuidar da casa como uma empregada doméstica (semelhança com Cinderela), e sofria os maus tratos da madrasta, que nunca lhe dirigia uma palavra ou uma atitude de afeto. Quando o pai desta mulher veio a falecer, deixou uma casa como herança para os filhos do primeiro casamento. Mas a madrasta conseguiu burlar a lei e ficar tam bém com esta casa como parte de sua herança. E como se isso não bastasse, entregou esta mulher e seus irmãos a um orfanato, ficando ela e seus filhos com toda a herança do pai. Esta madrasta pode ter sido uma daquelas que não suporta a idéia de conviver com o passado do com panheiro, de dividir seu afeto com os filhos dele. Tanto que não dividiu também aquilo que ele deixou, por ocasião de sua morte. As expectativas que envolvem a relação das madrastas com os enteados estão também relacionadas com as tarefas domésticas e com os “cuidados maternos”. O cuidar da casa, da higiene, da saúde e da alimentação ultrapassa os limites da realidade concreta e assumem um significado afetivo. Porque culturalmente estas tarefas cotidianas foram delegadas às mulheres e acopladas ao ideal materno. Sendo assim, as “boas mães” devem cuidar das roupas de seus filhos, de uma alimentação saudável, e de um ambiente sempre limpo e confortável. E as “boas mães” passaram a ser reconhecidas na sociedade pela quantidade de tarefas que conseguem cumprir diariamente, independentemente se as cumprem com amor e satisfação. Algumas mães são exímias donas-de-casa, mas não trocam uma palavra afetiva com seus filhos. Estas mulheres buscam tão ansiosamente serem reconhecidas socialmente como “boas mães”, que um uniforme escolar bem limpo se torna mais importante que passar uma tarde de suas vidas usufruindo da companhia de seus filhos. Mas este limite tênue que separa os afazeres cotidianos da qualidade do afeto gera uma série de conflitos. Porque com a restruturação dos papéis femininos e masculinos, as mulheres reenvindicaram sua insatisfação para com as tarefas domésticas rotineiras e aborrecidas, demonstrando que elas deveriam ser separadas do ideal da “boa mãe”, da “boa esposa”. É claro que os cuidados maternos são necessários para que a criança possa internalizar o seio bom, para que possa se sentir amada e segura o 98
suficiente para seguir adiante em seu desenvolvimento. Porém acoplar as tarefas domésticas à qualidade da relação afetiva é por demais impiedoso. Contudo, esta justaposição de conceitos foi tão absorvida que ainda hoje as mulheres se culpam por não conseguirem cumprir todas as tarefas a que se impõem. E isso ainda se tornou mais confuso quando as mulheres puderam adentrar no mercado de trabalho buscando satisfação pessoal. Se em “Cinderela” a heroína passa da condição de criada para rainha, as mulheres também passaram por esta transformação: de donasde-casa insatisfeitas para profissionais bem-sucedidas. Mas esta mudança também colocou as mulheres frente a uma ambivalência: por um lado elas desejam desvincular as tarefas domésticas do papel da “boa mãe”, por outro se cobram por não conseguirem cumpri-lo totalmente. A Cinderela dos contos de fadas também é assim. Por um lado anseia o reconhecimento pelas tarefas que desempenha na casa, por outro quer tornar-se uma linda rainha que terá criados para desempenhar este papel. Mas tornar-se rainha também assume o significado de “rainha do lar” e Cinderela só foi escolhida pelo príncipe porque é uma mulher que sabe cumprir todas as tarefas domésticas. Não só em Cinderela, mas em muitos outros contos, a heroína passa da condição humilhante de uma “simples criada” para a condição da realeza. Em “Pele de Burro” 8 a menina que era a cozinheira do palácio, faz um bolo para o príncipe curando-o de sua doença. O príncipe que antes já havia estado com ela no baile, pede sua mão em casamento e ela torna-se uma linda princesa. Em “Um-Olhinho, Dois-Olhinhos, Três-Olhinhos” 9 a heroína é a responsável por todas as tarefas domésticas, mas ela tem poderes que encantam os olhos de um rei que se casa com ela. Em “A Guardadora de Gansos”10 a princesa que segue em viagem para o reino para se casar com um príncipe é obrigada por sua ama a trocar de lugar com ela. Quando chegam ao reino a ama, que está disfarçada de princesa, apresenta a menina como uma criada, e esta passa a ser responsável por cuidar dos gansos do castelo. Mas o rei acaba descobrindo a farsa e no final do conto a princesa verdadeira se casa com o príncipe, ficando a ama condenada à morte. O que podemos notar é que viver uma condição de “empregada” pode trazer um bom casamento. Porque como acontece em “Cinderela”, as irmãs fúteis, vaidosas e preguiçosas aca bam não conquistando um bom casamento e uma felicidade sem fim. O ideal da “boa mãe” também está implícito nos contos de fadas e se estabelece na passagem das figuras da criada e da rainha. 99
Muitas madrastas defrontam com o ideal da “boa mãe”. Relatam sentirem-se como meras empregadas domésticas, responsáveis pelas tarefas domésticas, mas privadas de uma atuação mais objetiva na vida dos enteados e da família. Esta madrastas sentem-se à margem da relação entre os enteados e o pai. Suas opiniões sobre a educação e a vida dos enteados é desconsiderada, fazendo-as se sentir uma estranha na família. Para aquelas madrastas que partilham da mesma casa com seus enteados, ou seja as madrastas de “tempo integral” este sentimento de estar à margem entra em contradição diretamente com as outras tarefas que lhe são usualmente atribuídas. Geralmente são responsáveis por nutrir e assumir outros cuidados concretos que são delegados a todas as mulheres, mas suas opiniões acerca da vida e do desenvolvimento de seus enteados são desvalorizadas. Uma madrasta de tempo integral assim colocou: “...claro que tenho dificuldades com eles, pois o pai não me dá autonomia, ele estabelece uma ponte, onde eu devo levar os problemas para ele e então ele resolve junto às crianças, enquanto eu acho que tenho que ter autonomia junto à eles. Preciso trabalhar no sentido de acabar com essa ponte para que eu possa me sentir mais segura.”
De um modo geral, as madrastas que enfrentam este tipo de conflito sentem-se muitas vezes como uma empregada doméstica ou coisa parecida e a comparação com esta figura não poderia ser mais providencial. Porque a função da empregada doméstica esbarra na função materna pela caracterização do trabalho e do contexto a que ele está inserido. Trabalhar em uma “casa de família” é se defrontar com a dinâmica das relações familiares de forma direta. A casa é o núcleo familiar, é a representação do indivíduo, a referência da identidade. Uma empregada doméstica participa desta referência individual e coletiva. Por outro lado lhe é imposto o vínculo empregatício que não lhe dá o direito de interferir diretamente nas relações familiares. Assim, as empregadas domésticas fazem parte da família ao mesmo tempo que não o fazem. Como as madrastas que são como “mães” para os enteados, no que diz respeito aos cuidados com eles e com o ambiente que vivem, e ao mesmo tempo são impedidas de expressar suas opiniões acerca dos assuntos relacionados à educação e ao afeto. Mas esta questão pode ser também avaliada por outro prisma: além de conviverem na dinâmica familiar e se misturarem à família, as empregadas domésticas, assim como as mães e as madrastas adquirem um 100
certo “poder” pela atividade feminina que desempenham na casa. Parece que cuidar da casa e das crianças assume um certo sentimento de posse que dá direito ao controle eterno. Não é isto que ouvimos de nossas mães quando estamos prestes a tomar as decisões por nós mesmos? Que elas passaram, lavaram, passaram noites acordadas quando estivemos doentes, e que por isso têm todo o direito de partilhar de todas as nossas decisões? A única diferença neste tipo de diálogo é certamente de quem ele provém. Se da mãe biológica, ele adquire uma credibilidade quase inquestionável. Se das empregadas, ele logo é confrontado com a relação empregatícia. Se das madrastas, ele fica assim, quase pairando no ar... O que quero dizer é que antes mesmo de discutirmos o problema das madrastas se sentirem à margem da relação, parece que este discurso não é novo e tem raízes no “modo de vida” que é peculiar às mulheres. Se as madrastas não conseguem precisar seu papel na vida dos enteados, podem certamente fazê-lo com seus filhos legítimos, e isso pode compreender em uma diferença na sua atuação. Com seus filhos legítimos podem assumir todas as tarefas, cabendo-lhe inclusive as decisões mais importantes acerca de suas vidas. Isto tende a ser comum, por todas as questões sociais que envolvem a relação entre mães e filhos, mas as diferenças no trato das madrastas de tempo integral com seus filhos legítimos e com seus enteados podem tornar-se tão diferentes e visíveis que provocam na família uma separação definida pela consangüinidade e não pela maturidade e capacidade afetiva dos envolvidos. Separar os sentimentos entendendo-os e dividir as res ponsabilidades, é com certeza necessário, mas isto está longe de ser com parado ao separatismo sangüíneo onde cada um tenta defender a sua cria com unhas e dentes. Sentir-se uma empregada doméstica pode ser tão duro que as madrastas podem reagir tentando fazer de seus enteados “Cinderelas do lar”. Já ouvi de várias enteadas que suas madrastas não pedem aos filhos que ajudem nos serviços da casa, mas constantemente pedem a elas que lavem os copos, arrumem as camas, varram a sala, etc. Com este com portamento demonstram que não estão ali para servir, e que já que não podem assumir a maternidade por inteiro então recusam-se a assumi-la pela metade. Em “Cinderela” isso é bem visível. As meia-irmãs fazem questão de demonstrar que ela não faz parte da família e a reduzem a uma existência de doméstica. A própria Cinderela precisa estar perto da mãe bio101
lógica idealizada, por isso assume as tarefas domésticas como ela o fazia. “Viver junto às cinzas” é viver junto às cinzas da mãe, do que sobrou dela. Cinderela vivia junto às cinzas, próxima ao fogão (ou em algumas versões à lareira), que é a representação do corpo materno. Aquece e nutre. Cinderela não consegue enfrentar seus conflitos com a figura materna. Seu ciúmes por ela ser atenciosa com as filhas a faz refugiarse na fantasia idealizada da boa mãe. Além das tarefas domésticas e do fogão, um outro detalhe do conto nos revela a necessidade de nossa heroína de buscar a mãe boa e dadivosa da lactância:
“...uma vez o pai resolveu ir a uma feira. Antes de sair, perguntou às enteadas o que desejavam que ele trouxesse. – Vestidos bonitos – disse uma. – Pérolas e pedras preciosas – disse a outra. – E você Cinderela, o que vai querer? – perguntou o pai. – No caminho de volta, pai, quebre o primeiro ramo que bater no seu chapéu e traga-o para mim. Ele partiu para a feira, comprou vestidos bonitos para uma das enteadas, pérolas e pedras preciosas para a outra e, de volta para casa, quando cavalgava por um bosque, um ramo de aveleira bateu no seu chapéu. Ele quebrou o ramo e levou-o. Chegando em casa, deu às enteadas o que elas haviam pedido, e à Cinderela, o ramo de aveleira. Ela agradeceu, levou o ramo para o túmulo da mãe, plantou-o ali, e chorou tanto que suas lágrimas regaram o ramo. Ele cresceu e se tornou uma aveleira linda. Três vezes, todos os dias, a menina ia chorar e rezar debaixo dela. Sempre que a via chegar, um passarinho branco voava para a árvore e, se a ouvia pedir baixinho alguma coisa, jogava-lhe o que ela havia pedido...” Este momento do conto nos mostra como Cinderela ainda vivencia os conflitos da infância em abandonar a dependência materna. Suas meiairmãs, embora pareçam num primeiro momento fúteis e narcísicas, têm necessidades condizentes ao período de desenvolvimento em que se encontram. A preocupação com a beleza é característica da adolescência, época na qual a sexualidade desperta com fulgor. Já Cinderela está presa à busca incessante da figura materna, porque ainda precisa dela para sentir-se protegida e amada, para depois identificar-se com ela. 102
O ramo de aveleira (ou de nogueira em outras versões) que Cinderela planta ao lado do túmulo da mãe é o representante simbólico de sua necessidade de conforto e proteção. Ela precisa resgatar dentro de si a imagem materna positiva, que está simbolizada na nogueira que se torna uma árvore bonita e frondosa. Também o pássaro branco que lhe dá tudo o que deseja é o símbolo da boa mãe que é capaz, em sua fantasia de lhe satisfazer todas as necessidades. Quando os heróis dos Contos de Fadas estão à volta com o ressentimento materno, alternam seus sentimentos negativos com a busca dos positivos. Alternam a insegurança com a busca da segurança e assim por diante. É por isso que nas história como “Cinderela” os símbolos que representam a dualidade estão sempre presentes. No nosso “Cinderela” a madrasta e as meia-irmãs são aquelas que causam sua insegurança, a aveleira e o pássaro o símbolo da proteção. Em outras versões para este conto, o pássaro é substituído pela fada-madrinha que aparece de repente para ela 11. Numa versão escocesa para Cinderela, que é intitulada “A Princesa dos Sapatos Dourados”12*, a princesa que não é alimentada pela madrasta, recebe os alimentos de uma velha e chifruda ovelha cinza que magicamente coloca uma mesa grande e repleta de alimentos para ela, no campo de pastagem das ovelhas. E assim, os heróis alternam sua experiência e sentimentos com a figura materna cindida e projetada em duas figuras, a boa e a má. Esta atitude também pode ser percebida no comportamento das crianças que têm mães vivas e também têm madrastas. Quando a criança está com raiva da mãe biológica, procura na madrasta a parte boa da mãe, e vice-versa. Além disso, muitas crianças tentam, e infelizmente muitas conseguem, colocar à prova o amor da mãe biológica, falando o quanto são boas as suas madrastas. Dizem frases do tipo: “a fulana deixa eu dormir mais tarde...”; “... ela fez um bolo de chocolate tão gostoso para mim...”. A recíproca também é verdadeira. Quando a madrasta coloca limites na criança, esta pode recorrer à figura boa da mãe para estabelecer a comparação; “...minha mãe deixa eu fazer isso”; “...lá em casa eu não preciso arrumar a minha cama...”. Em outras palavras a criança está dizendo: “Faça tudo o que quero senão vou deixar de amar você para amar a outra”. Esta crueldade infantil tem um objetivo muito simples. A satisfação das necessidades da criança de ter sempre uma mãe que gratifique-a o tempo todo, seja ela a mãe, seja ela a madrasta. Além, é claro, da satisfação egóica de ter “duas mães” competindo pelo seu 103
amor. Na verdade, estas comparações são apelos comuns das crianças, mesmo que não tenham madrastas envolvidas na relação. Elas se utilizam de outras figuras femininas para alcançar seus objetivos junto à figura materna: “A mãe do fulano deixou ela ir...”; “A vovó sempre faz isso para mim”; “ Sabia que a mãe da fulana não trabalha fora?”. Porém, só as mães muito inseguras se deixam seduzir com essas com parações. Já quando a outra figura é a madrasta, por outros conflitos estarem em jogo, como o ciúmes, a competição, etc., muitas mães sentem-se tão ameaçadas e ressentidas que são capazes de fazer qualquer coisa para que a criança não repita frases deste tipo novamente. E muitas madrastas também agem impulsivamente dessa forma. Mas existem outras formas de apelo infantis que causam o mesmo efeito. Dizer para a mãe, por exemplo, que foi para a casa do pai e foi maltratada pela madrasta é, em outras palavras dizer: “Mamãe, eu a amo; você é maravilhosa, melhor do que ela. Continue tão boa como você é, e não se esqueça de me gratificar por ter dito isso a você!” Da mesma forma as madrastas podem ser seduzidas por um: “... se eu pudesse escolher, viria morar com você e com papai”. Notem, que em ambos os discursos infantis a dualidade permanece. No primeiro as crianças utilizam a bondade para contrapor a maldade; no segundo o inverso. O grande problema em ambos os casos é justamente quando uma das duas figuras, ou pior as duas, se deixa seduzir por esses apelos infantis. Reforçam a atitude da criança. Esta logo percebe que está recebendo sua gratificação e começa a repetir o comportamento no momento que lhe convier. E então, mães e madrastas criam um pequeno monstrinho que não pode nunca ser frustrado, que terá grandes dificuldades em integrar bom e mal como aspectos da personalidade da mesma pessoa podendo tornar-se um adulto cindido e onipotente que acredita que o mundo está sempre a seu redor.
“...Um dia o rei mandou anunciar uma festa que duraria três dias. Todas as jovens bonitas do reino foram convidadas, pois o filho dele iria escolher entre elas aquela que seria a sua futura esposa. Quando souberam que também deveriam comparecer, as duas filhas da madrasta ficaram contentíssimas. – Cinderela! – gritaram. – Venha pentear nosso cabelo, escovar nossos sapatos e nos ajudar a vestir, pois vamos a uma festa no castelo do rei! 104
Cinderela obedeceu chorando, porque ela também queria ir ao baile. Perguntou à madrasta se poderia ir, e esta respondeu: – Você, Cinderela! Cinderela ! Suja e cheia de pó, está querendo querend o ir à festa? Como vai dançar se não tem roupa nem sapatos? Mas Cinderela insistiu tanto, que afinal ela disse: – Está Est á bem. bem . Eu despej des pejei ei nas cinzas cin zas do fogão fog ão um tacho tac ho cheio che io de lentilhas. Se você conseguir catá-las todas em duas horas, poderá ir...” E Cinderela recorreu à ajuda dos pássaros para completar a tarefa. Mas a madrasta não cedeu e lhe deu mais um tacho de lentilhas para separar. E mesmo tendo Cinderela conseguido cumprir a tarefa, a madrasta seguiu apenas com suas filhas e o marido para o baile. Mas Cinderela pediu ao pássaro da aveleira um lindo vestido de ouro e prata e um sapato de seda bordado de prata. E ela foi ao baile sem ser reconhecida, apenas levantando as suspeitas de seu pai. E o príncipe príncip e se encantou encant ou com ela. Mas quando queria queri a ir embora teve de fugir dele para que ele não descobrisse de scobrisse quem era ela. Mais dois bailes sucederam, e mais duas vezes Cinderela Cind erela foi ao baile com os vestidos e sapatos presenteados pelo pássaro da aveleira. Porém, no último baile, temendo que nunca mais encontrasse a bela princesa, o príncipe passou piche em um degrau da escada e quando Cinderela tentava esquivar-se dele, deixou um sapato preso no degrau. O príncipe pego-o e saiu à procura de sua amada, a dona do sapatinho. sapatinho. Neste ponto ponto do conto, a maldade da madrasta madrasta começa a aparecer aparecer mais concretamente. Porque até então ela era deslocada para as meiairmãs de Cinderela. A madrasta não deixa que Cinderela vá ao baile, sem antes conseguir separar as lentilhas no tacho. Mas Cinderela não separa as lentilhas, são os pássaros, que separam para ela.. Por mais que as tarefas dadas pela madrasta possuam uma conotação negativa no conto, elas tentam mostrar à heroína que ela precisa trabalhar, amadurecer, para então tornar-se uma princesa. Mas novamente Cinderela recorre aos pássaros para completar a tarefa, e a madrasta não se deixa convencer. Ela sabe que Cinderela precisa separar as lentilhas boas das lentilhas ruins, ou seja, que Cinderela precisa reconhecer em si mesma sua parte boa e ruim, para então poder integrá-las em sua personalidade. Assim, poderá deixar de reconhecer na madrasta todo o seu infortúnio. E foi identificando-se com a parte positiva da 105
mãe (através dos vestidos e dos sapatos que o pássaro da aveleira lhe deu), que Cinderela pôde ir sozinha ao baile e encantar o príncipe. Esta tarefa, a de promover o amadurecimento das crianças, para que possam possam perceber perceber em si mesmas mesmas suas suas ambigüida ambigüidades des e suas projeçõ projeções, es, é talvez a tarefa mais sábia que uma madrasta pode adotar. Demonstrar aos enteados que não está contra eles, nem que pretende roubar-lhes o pai, nem competir com a mãe biológica, estando ela viva ou não, é essencial para que a criança diminua a sua ansiedade e sua agressividade para com ela.
No outro dia di a de manhã o príncipe prín cipe foi até a casa cas a de Cinderela Cinder ela e falou a seu pai: “– Só me casarei com a dona do pé que couber neste sapato”. sapato”. As irmãs irmãs de Cinderela Cinderela ficaram ficaram esperançosa esperançosas. s. A mais velha foi para o quarto com a mãe e experimentou o sapatinho, mas não conse guiu meter o dedo dedo grande do pé dentro dele. Então a mãe mãe deu-lhe uma faca e disse: “– Corte fora o dedo. Quando você for rainha, vai andar pouco pou co a pé.” pé. ” Assim Ass im fez a moça, mo ça, e o pé p é entrou entr ou no sapa s apato. to. O prínc pr íncipe ipe recebeu-a como sua noiva e levou-a na garupa de seu cavalo. Porém quando passavam pelo túmulo da mãe de Cinderela os pássaros que estavam na aveleira cantaram: “– Olhe para trás! Olhe para trás! Há sangue no sapato, sapato, que é pequeno demais! Não é a noiva certa que vai sentada atrás! O príncipe virou e viu escorrer o sangue do pé da moça. Fez o cavalo voltar e devolveu a moça a seu pai. A mãe então levou a outra filha para o quarto e ordenou que calçasse o sapato. Porém desta vez foi o calcanhar calcan har da moça que não entrava entra va no sapatinho. sapatin ho. A mãe então lhe deu a faca para que ela cortasse o calcanhar fora. Com o sapato no pé, o príncipe tomou-a como noiva e saiu com ela em seu cavalo. Mas novamente quando passaram pela aveleira, as duas pombinhas avisaram novamente. O príncipe então viu o sangue no pé da moça e levou a falsa noiva de volta para casa e disse ao pai: “– Esta também não é a verdadeira noiva. Vocês não têm outra filh filha? a? “– Não – respondeu o pai – a não ser a pequena Cinderela, filha de minha falecida esposa. Mas é impossível que seja ela a noiva que procura. 106
O príncipe ordenou que fossem buscá-la, mesmo que a madrasta tentasse impedir. Cinderela curvou-se diante do príncipe e pegou o sapato que ele lhe estendeu. O sapato serviu-lhe como uma luva, e quando se levantou o príncipe reconheceu reconheceu sua verdadeira verdadeira noiva. A madrasta e suas filhas filh as levaram levara m um susto e ficaram ficara m brancas de raiva. raiva . O príncipe prínc ipe ergueu Cinderela e colocou-a na garupa de seu cavalo e partiram. Quando passaram pela aveleira as duas pombinhas brancas cantaram: “– Olhe para trás! Olhe para trás! Não há sangue sangue no sapato, sapato, que serviu bem demais! essa é a noiva certa. Pode ir em paz! Quando o casamento de Cinderela com o príncipe se realizou, as falsas irmãs vieram à festa. festa. Subitamente, Subitamente, as duas duas pombas pombas que estavam pousadas pousa das nos ombros da noiva voaram e furaram furara m os olhos das irmãs de Cinderela. Ambas ficaram cegas para o resto de suas vidas. O final de “Cinderela” serve para advertir as madrastas sobre os perigo perigoss da rivali rivalidad dadee frater fraterna. na. As madras madrastas tas não pod podem em impedi impedirr que seus enteados preencham seu espaço na vida da família, o espaço que lhe é de direito na vida do pai. O vínculo afetivo entre o pai e os filhos não pode pode ser ser con conta tami mina nado do pel pelaa inst instit itui uiçã çãoo do casa casame ment nto. o. A sepa separa raçã çãoo de um casal não envolve (ou não deveria) a separação do pai com seus filhos. A figura paterna, tanto quanto a figura materna serão sempre importantes para os filhos, independente de quantos casamentos eles contraírem durante a vida. E os filhos de uma relação deveriam ser tratados com o mesmo amor e carinho que os da segunda união. E as madrastas devem saber disso. Ningué Ninguém m pode pode roub roubar ar um um espaç espaçoo que que não não é seu. seu. E a histór história ia deix deixaa isso muito claro. O sapatinho de Cinderela não coube nas meia-irmãs, por mais que a madrasta cortasse o dedão de uma e o calcanhar da outra. O sapatinho era de Cinderela, só servia em seu pé. E isso lhe propiciou o casamento com o príncipe para viver feliz para sempre... Dê à criança o seu devido respeito e seu lugar na vida familiar que ela cedo ou tarde dará à madrasta seu lugar ao lado do pai. Porque todas as madrastas também necessitam separar as lentilhas boas das ruins.
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CAPÍTULO V
B rancadeN eveeo CiúmeEdípico “Branca de Neve tem que morrer! – gritou – nem que seja à custa de minha própria vida!” 1 (a madrasta do conto “Branca de Neve”)
“Uma vez, foi em pleno inverno, quando flocos de neve caíam do céu como plumas, uma rainha costurava ao pé da janela, cujos caixilhos eram de ébano. Como prestasse mais atenção aos flocos de neve do que à costura, espetou o dedo na agulha, e três gotas de sangue pingaram na neve. Foi tão bonito o efeito do vermelho na brancura da neve que ela pensou: “Ah! Se eu tivesse uma criança branca como a neve, corada como o sangue e de cabelos negros como este ébano...”. Pouco depois, a rainha deu à luz uma menina de pele alva como a neve, corada como sangue e de cabelos negros como ébano. Por isso, ela se chamou Branca de Neve. Infelizmente, a rainha morreu logo depois que a criança nasceu...”2 Branca de Neve nasceu ambígua: por um lado é branca como a neve, por outro vermelha como o sangue; se possui a pureza do branco possui também o vermelho da sexualidade, da sedução e das paixões violentas. Bettelheim3 assinala com perspicácia que esta contradição gera uma problemática que a história terá de resolver: “inocência sexual, brancura, contrastada com o desejo sexual, simbolizado pelo sangue vermelho”. Diante disso as crianças que entram em contato com este conto, são levadas a enfrentar um acontecimento perturbador: o sangramento sexual. Como na menstruação e no rompimento do hímen, as crianças aprendem que para se haver concepção deve haver um sangramento anterior. As três gotas de sangue, salienta Bettelheim, são asso109
ciações inconscientes com o sexo. O número três, além de representar o número dos principais órgãos responsáveis pela sexualidade (na mulher os dois seios e a vagina e no homem os testículos e o pênis) ainda representa o triângulo edípico, que é o drama mais importante vivido pelas crianças durante seu desenvolvimento psicossexual e o responsável pelas primeiras identificações sexuais delas. Os temas ligados à sexualidade humana são uma constante nos Contos de Fadas. Em “Branca de Neve” a heroína se defronta com seus sentimentos ambíguos em relação aos impulsos sexuais. Este conflito é comum a todos nós, principalmente nas sociedades que reprimem a manifestação da sexualidade, reforçando um comportamento sexual que seja dirigido apenas à procriação. Além disso, devemos lembrar que as crianças até muito pouco tempo eram consideradas seres assexuados, ingênuos e puros. Mas o simbolismo das histórias infantis demonstra que as crianças manifestam a sexualidade desde o nascimento, uma forma de sexualidade que é acompanha o seu desenvolvimento e difere da forma adulta de amor objetal. Se “Branca de Neve” possui ao mesmo tempo a pureza e sedução, um outro conto entitulado “Alva-neve e Rosa-rubra” 4 separa estes sentimentos, projetando-os em duas pessoas distintas. A história conta que uma viúva vivia em uma pequena cabana, na frente da qual havia um jardim. No jardim haviam duas roseiras, uma de rosas brancas, outra de rosas vermelhas. A mulher tinha duas filhas. Uma se chamava Alva-neve e parecia com as rosas da roseira branca; era “mais quieta e suave” que a irmã e gostava de ficar em casa com a mãe ajudando-a nos serviços caseiros. Rosa-Rubra era o oposto da irmã: gostava de pular pelos campos e prados, colher flores e caçar borboletas, e seu jeito de ser a assemelhava às rosas da roseira vermelha. “As meninas gostavam tanto uma da outra, que andavam de mãos dadas sempre que saíam juntas...”. Neste conto as irmãs andam sempre juntas, de mãos dadas porque na verdade elas se complementam. Em certo sentido elas podem ser consideradas a mesma pessoa, dotada dos sentimentos opostos que são originários nos impulsos sexuais inconscientes. Ainda quero fazer um parênteses com relação às expectativas que a mãe de Branca de Neve tinha com relação a ela, e estas estão longe de ser parte de apenas uma história de fadas. Qual a mãe que não deseja filhos sadios e bonitos? As fantasias dos pais com relação à vida de seus filhos ultrapassam em muito o período de gestação. É muito comum que os pais ten110
tem impor, às vezes de forma sutil, uma carreira e um estilo de vida a seus filhos que lhe possibilitem uma vida brilhante e satisfatória. É também comum que os filhos recusem a imposição ou assumam-na como meta obrigatória durante a vida, vivendo para corresponder às expectativas de seus pais. E, sabemos que nem a recusa total dos conselhos paternos e maternos e nem a aceitação total dos mesmos são saídas favoráveis, porque ambas são geradoras de uma angústia muitas vezes insustentável. Da mesma forma, ser recusado ou ter de assumir a responsabilidade pelo rumo que a vida dos filhos tomou é bastante frustrante para os pais, e estes sentimentos passam pelas madrastas também. Uma madrasta pode sentir as escolhas de seus enteados como algo que não lhe compete questionar, como algo que está fora de seu alcance, e que se algo não for bem pode pensar que se fossem com seus filhos legítimos seria tudo diferente. Estes pensamentos apenas defendem a madrasta do mesmo sentimento de frustração dos pais naturais, porque mesmo elas criam expectativas acerca de seus enteados. Tanto isto é verdade que freqüentemente as madrastas de tempo parcial questionam a forma que as mães biológicas educam os filhos, criticam as maneiras de seus enteados se comportarem responsabilizando suas mães por todas as atitudes negativas deles. É claro que este comportamento das madrastas tem ligação com a competição que estabelecem com a figura da mãe biológica, e ainda com os ideais de maternidade que procuram corresponder. Porém, criticar constantemente as ações dos enteados também tem raízes no “ideal do bom filho”. Se os filhos não são seus, se ela não os pode reconhecer, então é mais fácil criticá-los. Mesmo vivendo num século que vislumbrou mudanças culturais importantes no âmbito do comportamento humano, ainda assim parece que as expectativas com relação ao futuro de um bebê ainda são fortemente demarcadas pela diferença entre os sexos. Pais admitem que, ao pensarem na vida de suas futuras filhas, esta se assemelha muito ao de uma princesa moderna; que será uma ótima profissional, mas também deverá casar-se com um homem bonito, financeiramente estável e que enfrentará qualquer dragão para protegê-la. Também deverá ter filhos lindos e sãos para que a família não se extinga. Esta futura princesa deverá ser pura o bastante para que mereça a aceitação masculina, mas também deverá guardar uma sedução fulminante para que possa com petir com tantas outras donzelas à espreita de um mesmo príncipe. E 111
estes príncipes são a expectativa principal que recai sobre os bebês do sexo masculino: fortes, bonitos e viris, devem conquistar o poder com força, honra e dignidade para que possam ser admirados como líderes, quer seja de um povo, de um reino, de um lar ou mesmo de um time de futebol. O que me parece é que mesmo que o discurso feminista tenha colocado abaixo a imagem estereotipada de mulheres frágeis e incapazes, ainda assim as princesas dos contos de fadas fazem parte de nossos ideais. Basta percebermos que uma das mulheres mais admiradas na Europa e também em outros países é a princesa Diana, porque ela representou o protótipo da princesa moderna: rica, bonita, dotada de uma imagem forte que suporta tudo, questionadora e bondosa; em sua constante necessidade de expansão, conseguiu fazer ser reconhecida a máxima do orgulho feminino: “Atrás de uma grande homem sempre há uma grande mulher”. Mesmo que Lady Di tenha confessado seu sofrimento psicológico, seu sentimento de solidão e toda a pressão que o título de pertencer à família real fez recair sobre seus ombros, muitas mulheres sonharam em estar em seu lugar. E mesmo depois de divorciada de Charles foi a mulher mais fotografada na história do jornalismo e continuou a ser chamada pelo título que outrora assumiu e que lhe fez conhecer: o de Princesa. A comoção mundial perante sua morte trágica em agosto de 1997, reafirma a nossa posição. Frente a ansiedade da perda concreta do Ideal Feminino, rapidamente tornaram a figura de Diana em mito. Um mito que mesmo a Realeza Britânica tratou de sustentar. Como Diana, Branca de Neve conserva uma boa parte das idealizações femininas de nosso século, mesmo que tenha sido personagem de uma história de séculos atrás. Não faz parte do ideal feminino ser madrasta. Até porque ele é justamente o que mais se contrapõe ao ideal da princesa. Não é incomum que mulheres que se unem a companheiros que têm filhos de casamento anterior, encontrem resistência por parte da família e dos amigos. Todos advertem sobre as dificuldades que a mulher poderá encontrar na vida em comum com estes homens e aquilo que era para ser uma alegria às vezes se torna um problema. Porque quando uma pessoa deseja unir-se a outra, pressupõe-se que está amando e feliz. E geralmente as pessoas gostam de dividir sua felicidade com os outros. É por demais frustrante quando uma união que está por acontecer não pode ser dividida com alegria, porque os outros a vêem com desconfiança. Enfrentar o ideal social, como já dissemos, requer coragem e equilíbrio. 112
Voltando ao nosso Conto, um outro ponto interessante da história de Branca de Neve é que ela carrega uma culpa fundamental: a morte da mãe. Mesmo que nos pareça um tanto assustadora esta idéia, é esta a idéia que crianças que perderam suas mães por ocasião de seus nascimentos carregam pela vida. O peso de se sentirem responsáveis pela morte da mãe podem fazê-las se sentir malvadas, egoístas e com a sensação de ter desencadeado uma “maldição” que as acompanhará pelo resto de suas vidas. Mas como seria insustentável conviver com esta culpa, nossos mecanismos de defesa se encarregam de acobertá-la promovendo outra saída para ela. A saída de Branca de Neve foi a de projetar, na segunda esposa de seu pai, toda a maldição familiar, toda a vaidade que ela mesmo possui, por ter nascido linda e bela como sua mãe tanto desejava. Assim, a madrasta foi a depositária da vaidade feminina e do narcisismo porque a própria Branca de Neve não pôde assumi-los.
“...Um ano depois o rei casou-se de novo. A nova rainha era linda, mas a tal ponto vaidosa e arrogante, que não podia suportar a idéia de que existisse alguém mais bela do que ela. Possuía um espelho mágico e todos os dias, ao olhar-se nele, perguntava:
– Espelho, espelho meu! Existe algué m neste mundo mai s bela do que eu?
E o espelho respondia: –Neste mundo, a mais bela sois vós, senhora rainha!
E ela ficava satisfeita, porque o espelho só dizia a verdade.” O inconfundível espelho mágico é a chave desta trama que um olhar menos cuidadoso pode perceber apenas como mais um mero detalhe do conto. Mas o espelho como objeto que não omite nenhuma parte de nosso corpo, seja ela percebida como bela ou feia, digna de admiração ou comiseração, possui um significado que vai além daquele reflexo que nos permite a identificação do corpo. O espelho reflete a alma, o confrontamento das nossas idealizações individuais que se misturam 113
com as imagens idealizadas de qualquer sociedade. E é impressionante como podemos nos enganar com estas duas imagens sobrepostas, muitas vezes perdendo nosso referencial. A moda é um bom exemplo disso. As vestes nem sempre nos caem bem, mas se elas são o ingresso para o reconhecimento social então nossa avaliação diante do espelho fica um tanto comprometida e nossa autocrítica também. Assim como a balança, o espelho atualmente tornou-se reflexo da vaidade humana; há espelhos por todos os lados, em todos os lugares e dependendo de nosso estado emocional eles são ou não bem-vindos. Se nosso ideal está muito longe daquela imagem refletida no espelho então ele está nos proporcionando uma angústia que pode nos servir de impulso para a auto-descoberta e para a mudança. Não falo de uma mudança que nos garanta a proximidade com o ideal social, mas aquela que nos permite uma proximidade com nosso eu pessoal. Lembro-me com carinho de uma cliente que buscava ansiosamente construir uma identidade que se aproximasse de suas idealizações. Seu sofrimento era intenso porque não conseguia esta identidade e cada vez mais afastava-se dela. Certo dia ela me relatou que não tinha espelhos em casa, apenas um pequeno em cima da pia do banheiro. Por várias vezes pensava em comprar um que pudesse refletir seu corpo inteiro, mas sempre adiava esta compra. Esta cliente esteve em terapia comigo durante alguns anos, sendo o tema central da terapia a busca de sua identidade. Quando ela pôde perceber suas idealizações que se expressavam através da imagem cor poral, das dificuldades de aceitar esta imagem como boa o suficiente para si mesma, ela demonstrou um avanço surpreendente que se personificou na compra de um espelho: “...grande o suficiente para que eu me veja por inteiro, para que eu me admire e me de conta dê mim mesma”.
Este exemplo demonstra bem o quanto um espelho reflete a imagem que temos de nós mesmos, seja ela mais próxima de nossa identidade ou de nossas idealizações. Concordo com Rubem Alves5 quando diz que o interessante em “Branca de Neve e os sete anões” é a relação da madrasta e seu espelho. Segundo ele, ela estabelece uma relação de “amor paradisíaco” com o espelho que lhe diz “És a mais linda”. O espelho é o outro que nos reforça o narcisismo. Porque nos vestimos, nos embelezamos, nos comportamos para os outros, ou melhor, para que os outros confirmem a nossa beleza. E o espelho mágico é o outro da madrasta de Branca de Neve. Mas quando este outro reconhece um terceiro, a madrasta sente114
se excluída; ela é obrigada a reconhecer a aparição de outra imagem, mais bela: “... Ele (o espelho) respondeu: “ Sois belíssima, senhora r ainha, “ mas Branca de Neve é mil vezes mais bela! ”
A percepção de Rubem Alves é interessante. Percebe a madrasta como dotada de uma fragilidade humana, muito distante da redoma narcísica em que Branca de Neve se enclausura. A madrasta ao sentir-se excluída assume sua ira, sentimento este que todos nós experimentamos quase que naturalmente durante a vida. Ela resiste em aceitar a existência do outro, mas é chamada a fazê-lo . Já Branca de Neve nada vê. Luta por tentar preservar a qualquer preço a satisfação e o deleite que encontra em si mesma. O outro não existe para ela. O mito de Narciso, o homem belo que se apaixona por sua própria imagem refletida nas águas de um riacho nos dá a idéia de que precisamos suportar a exclusão, porque senão, como ele, nos aprisionaremos em um amor impossível, o amor por nós mesmos que pode nos levar à morte. O narcisismo faz parte da configuração infantil; a criança deve aprender gradualmente a ultrapassar esta forma “perigosa de auto-envolvimento”. 6 A história de Branca de Neve adverte sobre as conseqüências desagradáveis deste amor a si mesmo, tanto para os pais, quanto para as crianças. A infância de “Branca de Neve” é pouco relatada no conto, o que nos faz supor que não tenha tido problemas e que sua vida familiar era suficientemente boa, assim como a sua convivência com sua madrasta. E esta constatação vem confirmar a idéia levantada no capítulo anterior, de que os problemas vivenciados entre as madrastas e crianças pequenas tendem a ser menores do que aqueles relativos à aceitação das madrastas pelas crianças mais velhas. Mas, é claro que mesmo as madrastas que assumem crianças ainda pequenas, e formam vínculos afetivos com elas, enfrentarão os sentimentos negativos que a criança experimenta durante o seu desenvolvimento, e que são originalmente voltados para figura materna. E é isso que acontece na história Ao completar sete anos de idade a beleza de Branca de Neve começa a ser reconhecida por ela, por sua madrasta e pelo outro simbolizado pelo espelho mágico. Mas como este outro está sempre a nosso serviço, a voz que fala do espelho não deixa de ser a própria voz de 115
Branca de Neve. É ela que estabelece a competição com a madrasta em busca do reconhecimento do espelho mágico, e a madrasta como tam bém não suportou a exclusão, foi tomada por um ódio aterrorizante. Mas novamente a madrasta, no conto de fadas assume todos os sentimentos negativos, como o ódio, a agressividade e a maldade humana. A rivalidade entre mãe e filha se estabelece no momento em que a menina vivencia o que Freud chamou de Complexo de Édipo, um drama intensamente vivido pelas crianças de ambos os sexos durante a fase fálica. A fase fálica inicia-se no término do segundo ano de vida e é um marco para a formação da identidade sexual. A diferenciação sexual entre meninos e meninas passa a ser percebida e os órgãos genitais assumem o centro das atenção das crianças. Elas atribuem à região genital uma importância crescente na manifestação de sua sexualidade. Esta sexualidade associa-se à fantasia de poder mágico que desconhece barreiras. A criança, sob a influência de fantasias onipotentes, percebe a mãe como mera extensão do seu ego. A mãe passa a ser um objeto total em direção ao qual o desejo infantil estende-se sem barreiras nem limites. É a partir da eleição da mãe, pela criança, como objeto de desejo, que se inicia o Complexo de Édipo, e o seu correlato, o Complexo de Castração. Freud encontrou no mito de Édipo a designação para este processo importante e que, segundo a psicanálise, todos nós vivenciamos. Édipo era filho de Laio e Jocasta. Advertido pelo oráculo de Delfos que um dos filhos o mataria, Laio abandonou o menino que foi encontrado por alguns pastores. Estes levaram Édipo ao rei do Corinto Pólibo que juntamente com sua esposa Peribéia adotaram-no como filho. Quando adulto, Édipo desconfiado de sua origem, consultou o oráculo de Delfos que lhe revelou que ele mataria o pai e desposaria a mãe. Assustado, Édipo deixou Corinto numa tentativa de evitar a predição, pois acreditava que seus pais verdadeiros eram Pólibo e Peribéia. Mas durante a sua viagem, Édipo desentendeu-se com um desconhecido e matou-o. Mas este era seu verdadeiro pai Laio, e assim a primeira parte da profecia de Delfos havia se confirmado. Em Tebas, Édipo se deparou com a Esfinge, monstro que propunha aos viajantes um enigma e, não obtendo resposta satisfatória, devorava-os. Édipo porém decifrou o enigma da Esfinge que, desapontada, precipitou-se do alto de um rochedo. Como reconhecimento à sua façanha, Creonte, regente de Tebas, passou-lhe o trono e concedeu-lhe a mão de Jocasta.. 116
Dessa união incestuosa nasceram quatro filhos, todos de trágico destino. Depois de alguns anos de reinado feliz, a população de Tebas foi acometida por uma epidemia. Novamente Édipo recorreu ao oráculo que declarou-lhe que a peste só cessaria quando o matador de Laio fosse banido de Tebas. O soberano maldisse o assassino, e consultou o adivinho de Tirésias para tentar encontrá-lo. Porém, através de suas revelações Édipo acabou chegando à verdade. Jocasta, envergonhada ante o conhecimento do incesto, enforcou-se. Édipo vazou os próprios olhos e passou a levar vida errante, morrendo em Colona, um burgo perto de Atenas.7 O mito de Édipo demonstra o quanto estamos todos, na infância e posteriormente na adolescência, vulneráveis aos nossos desejos inconscientes voltados para os pais. O drama edípico nos meninos se inicia concomitantemente ao interesse pela área genital. Para eles o falo é o que de mais importante existe, é mágico, não encontra barreiras. Os meninos voltam seu desejo erótico para a mãe. Acreditam inconscientemente que podem seduzir a mãe. Querem estar ao lado delas e se ressentem com a presença do pai. Este passa a ser o rival da criança porque “possui” a mãe. Mas competir com o pai pela mãe gera inúmeras fantasias no menino. A mais intensa é que se o pai descobrir suas intenções para com a mãe, ele certamente se vingará. E a pior vingança será a do pai desprovê-lo daquilo que é mais importante para ele no momento: o falo. É a ansiedade de castração que permitirá que o menino abandone seu interesse erótico pela mãe e se volte para o pai para identificar-se com ele enquanto figura masculina. Se para os meninos é a castração que os fazem elaborar o édipo, nas meninas é o inverso. É através da ansiedade de castração que o Édipo terá o seu início A menina vislumbra o poder do falo nas excitações clitorianas e tal como os meninos, dirige para a mãe seus impulsos eróticos. Esta atração sexual que a criança sente pela mãe, está relacionada à função maternal, e não à mãe biológica. A criança acopla-se à pessoa que desempenha a função maternal, constituindo com ela uma unidade que, do ponto de vista infantil, é auto-suficiente. Logo após abandonar a esperança que o clitóris cresça e se transforme em pênis, a menina volta-se contra a mãe, já que esta não pôde lhe oferecer um pênis e também não possui um. Ao vivenciar a ansiedade de castração (ausência de pênis) a menina se torna hostil e decepcio117
nada com sua mãe. Passa então a dirigir seu interesse erótico para o pai, encarado como apto a fornecer-lhe um pênis. A mãe é sentida como uma rival que compete com ela a proximidade e o amor paterno. O pai é o outro a quem se destina suas fantasias eróticas inconscientes, mas a mãe é o outro que se colocará entre elas proibindo e frustrando este amor. E estes outros não deixam de fazer parte de um outro só, como na imagem refletida e na voz do espelho mágico. Além de temer a vingança da mãe, que na fantasia da menina irá ser devastadora, ela percebe também que é incapaz de fornecer ao pai o amor genital. Assim, a menina volta-se novamente para a figura materna, num processo de identificação, passando a assumir a identidade feminina e buscar, nos homens, similares do pai. É preciso salientar que o Complexo de Édipo e o Complexo de Castração são processos que, mesmo facilmente observáveis no cotidiano das relações familiares, são vivenciados pela criança no plano inconsciente. Concomitantemente com a ocorrência desses processos é neste período que há a consolidação do superego, que tem um papel “assimilável ao de um juiz ou de um censor relativamente ao ego. Freud vê na consciência moral, na auto-observação, na formação de ideais, funções do superego... constitui-se por interiorização das exigências e das interdições parentais”. 8 Sendo assim, o amor edípico da menina pelo pai e do menino pela mãe são sentidos pela criança como passíveis de culpa e punição por ação do superego e projetados nos pais de mesmo sexo nas fantasias de vingança aterrorizantes. A interdição da mãe que é vivenciada pela menina diz respeito à interdição do superego e ao recalcamento do incesto. O outro é o interditor, é a lei necessária para que a criança abandone suas fantasias narcísicas e onipotentes e possa se desenvolver como um ser social. Quando os apelos edípicos diminuem, a criança passa por um estado de calmaria no que diz respeito aos impulsos sexuais dirigidos às figuras parentais. Mas com a entrada da adolescência e o despertar da sexualidade, o drama edípico volta, com menos intensidade, mas tam bém promovendo uma competição entre a criança e o genitor do mesmo sexo. Se nossa Branca de Neve vivenciou seu Édipo na infância, tornará a revivê-lo em sua adolescência. É isso que nos mostra a versão russa da história de Branca de Neve, entitulada “O Conto da Princesa Morta” 9*. A história segue o mesmo padrão de Branca de neve, mas a heroína não é uma garotinha que des118
perta a inveja de sua madrasta. Ela é “uma jovem e charmosa princesa, com estonteantes olhos e sobrancelhas negras e sem defeitos em sua tez...”. Conta a história que a princesa logo “... encontrou o homem de seus sonhos, o arrojado e bonito Elisey Korolevich e os dois ficaram noivos. Logo depois de anunciarem o noivado, a rainha perguntou novamente a seu espelho quem era a mais formosa de todas e o espelho res pondeu: – Você é bonita, minha querida, mas eu devo confessar, a mais bela agora é a princesa”. A rainha então, ficou furiosa e mandou que a criada de quarto levasse a princesa até o “coração da floresta” e lá fosse amarrada em uma árvore para ser devorada pelos lobos. Mas a criada, que amava a princesa e “a tinha em seu coração”, teve com paixão por ela e simplesmente deixou a princesa no escuro da floresta. O início desta versão de “Branca de Neve” demonstra bem que a adolescência retoma o Édipo e conseqüentemente a rivalidade entre mãe e filha. Na versão Russa, a figura paterna está misturada à figura do belo rapaz que se enamora da princesa e isso provoca uma raiva intensa na madrasta. A rivalidade estabelecida com a mãe também provoca o medo da perda do amor materno, a criança não só se sente culpada por odiar aquela que sempre cuidou dela e a acolheu, mas também tem suas fantasias de abandono reativadas. É por isso que a madrasta em Branca de Neve serve como projeção destas fantasias, preservando a imagem boa e doce da heroína. Presume-se que Branca de Neve vive o conflito edípico com intensidade, e embora a figura do pai não esteja concretizada no conto ela aparece simbolizada no espelho mágico. A fantasia de Branca de Neve de que o pai a prefere à madrasta, e que ele está enebriado com sua beleza ecoa por todo o castelo: “... Br anca de Neve “ é mil vezes mais bela! ”
A madrasta então responde às fantasias de Branca de Neve, “... o ódio e o ciúme tomaram conta dela, e não tinha mais sossego nem de dia, nem de noite”. Na verdade, é a culpa de Branca de Neve e o seu ciúme que são projetados na madrasta, que se fosse a mãe biológica não se prestaria tão bem a esse papel. Se uma criança não pode se permitir sentir ciúmes dos pais, já que isto lhe é por demais amedrontador, 119
projeta seus sentimentos neles. Se não consegue admitir que “tenho ciúmes de todas as vantagens de mamãe”, então inverte este pensamento para: “mamãe tem ciúmes de mim”. Algumas versões mais antigas deste conto colocam a conflitiva edípica mais concretamente presente do que as versões mais atuais, que deixam o conteúdo a cargo de nossa imaginação. Começam assim: “Um conde e uma condessa passaram por três montes de neve branca, o que fez o conde dizer: “Quisera ter uma filha tão branca como esta neve”. Pouco depois passaram por três buracos cheios de sangue vermelho, e o conde disse: – Quisera ter uma filha com as faces tão vermelhas como este sangue. Finalmente viram três corvos voando, quando então ele desejou uma filha “com cabelos tão negros como os corvos”. Continuando o caminho, encontraram uma menina branca como a neve, rosada como o sangue, e de cabelos tão negros como os corvos: era Branca de Neve. O conde imediatamente fê-la sentar-se na carruagem e amou-a, mas a condessa não gostou e pensou apenas como poderia livrar-se dela. Finalmente deixou cair as luvas e ordenou a Branca de Neve que a procurasse; neste meio tempo o cocheiro deveria partir em grande velocidade”. 10 Nesses relatos os desejos edípicos entre pai e filha, bem como o ciúmes que despertam na mãe fazendo com que deseje livrar-se da filha são afirmados de forma mais clara, mesmo que conde e condessa sejam os pais disfarçados, assim como a madrasta, nas versões atuais é a mãe disfarçada. E se não fosse desta forma, se os contos e histórias infantis falassem abertamente de pais e mães e de todos esses sentimentos contraditórios de amor e ódio, desejo e rejeição, as crianças certamente seriam expostas aos conflitos de forma desnecessária. Porque não podemos esquecer que os contos servem também como uma forma de lazer, de diversão e de estímulos à fantasia e à criatividade, e não só como material de interpretação de conflitos inconscientes. Quando um conto aproxima seus heróis das personagens da vida real, percebemos que as reações de quem os ouve (mesmo dos adultos) é muito mais emocional e muitas vezes negativa. “Pele de Burro” 11 (ou Pele de Asno) é um conto desses, porque o amor entre pai e filha é concreto. Após a morte da esposa o rei procura outra esposa que fosse “tão linda e virtuosa como ela”. Sua busca dura anos, até que ele percebe que sua filha não só era tão bonita e virtuosa como era ainda mais linda e virtuosa que a mãe! E o rei quer casar com a própria filha, que com a ajuda da criada acaba 120
fugindo do castelo vestida com uma pele de burro para não ser reconhecida. Sendo assim, madrastas, condes e condessas, bruxas e fadas, dragões e gigantes servem a nós como “substitutos das figuras parentais”. Se a condessa abandona Branca de Neve fazendo correr a carruagem, a madrasta expulsa Branca de Neve do castelo, incumbindo um caçador de matá-la e retirar seu fígado e seus pulmões como prova. A expulsão da casa é uma fantasia comum das crianças que se sentem culpadas por seus desejos secretos de ataque às figuras parentais, mas no conto novamente estes sentimentos são projetados no outro .
O caçador levou Branca de Neve para a floresta, mas ao puxar seu punhal para trespassar o coração da princezinha, ele se comoveu com sua beleza e com seu pedido choroso pela libertação. Deixou-a ir floresta adentro imaginando que ela iria ser devorada pelas feras: “A princesa ia morrer, ele sabia. Mas não seria pelas mãos dele.” O caçador então, mata um javali e lhe arranca o fígado e os pulmões, levando-os para a rainha que, satisfeita, manda cozinhar as vísceras e as come pensando que fossem de Branca de Neve. O caçador está simbolizando aqui a figura do pai. Na época em que os contos de fadas começaram a existir, a caça era um privilégio da aristocracia; reis, príncipes, condes, e outros personagens que compunham a casta superior da sociedade, organizavam caçadas que eram verdadeiros acontecimentos sociais e que significavam a primazia do homem sobre os animais, a força sobre a fragilidade. São essas características que envolvem o caçador que nos levam a acreditar que ele é a representação da figura paterna. Além disso, o caçador também simboliza a proteção. É ele que afugentará os animais ferozes que freqüentemente rondam as casas e castelos, salvando a vida de sua família. Em um nível mais profundo de interpretação, o caçador protegerá seus filhos contra as imagens ameaçadoras que rondam a fantasia e os sonhos infantis. Frutos do medo e da culpa, as imagens ameaçadoras de fantasmas e animais devoradores são aquelas representantes dos desejos, agressividade e conflitos primitivos que estão no inconsciente (floresta) e que serão seguidos e caçados pelo representante maior da lei social: a figura paterna (não necessariamente o pai, mas aquele ou aquela que assume a sua função). Porém, o caçador de “Branca de Neve” não consegue reprimir de forma eficaz os desejos edípicos da menina o que amenizaria a com121
petição entre mãe e filha. Por um lado tenta satisfazer a rainha, executando aparentemente suas ordens. Por outro também sucumbe às súplicas da menina, deixando-a ir. Assim como o espelho mágico, ele reconhece a beleza da filha e seus desejos edípicos. “...quando puxou o punhal para trespassar o coração da inocente criança... ele se enterneceu.” O punhal é sem dúvida um símbolo fálico, e esta cena da história representa bem o quanto o amor edípico da filha pelo pai estão instalados. Como já dissemos a floresta se presta bem à representação inconsciente, onde os conflitos emergem da escuridão. Branca de Neve deseja que este pai caçador, ao mesmo tempo que apunhale-a bem no coração (representação de amor), também não o faça deixando-a ir. Porque se o fizesse seus desejos incestuosos seriam concretizados e isso seria desastroso para ambos. Afinal o pai não pode responder aos apelos edípicos de sua filha, é de sua responsabilidade ajudar a recalcá-los. Mas a verdade é que este caçador não faz bem nem uma coisa nem outra, porque não a apunhá-la concretamente, mas deixando Branca de Neve ir embora está tomando o seu partido enganando a madrasta. É assim que na fantasia da menina ela vence mais uma etapa de sua competição com a mãe (madrasta), porque entende que o pai está a seu lado. Parece que o pais dos contos de fadas são um tanto omissos na resolução dos conflitos entre mães e filhos. Sua posição é sempre ambígua e estão sempre dominados por sua esposas. Muitas vezes parecem mais a caça do que o próprio caçador. Mas isto está relacionado tam bém com o que a criança espera de seus pais. Espera-se do pai que a proteja do mundo exterior* enquanto que a mãe cuide dela e a satisfaça em todas as sua necessidades físicas, garantindo sua sobrevivência. Mas se as mães não conseguem supri-las (como em João e Maria) e os pais não conseguem proteger (como em Cinderela), então os contos estão recheados de madrastas e de caçadores e os heróis terão de enfrentar a floresta cheia de perigos. E a verdade é que, para as crianças (e também para todos nós), os pais sempre estarão devendo alguma coisa, nunca conseguem satisfazê-las por inteiro. Os contos de fadas trazem esta mensagem importante para pais e filhos: só os cuidados amorosos conjugados a um comportamento responsável e claro dos pais ajudará seus filhos a elaborar seus conflitos; por outro lado só o * Através da força, da virilidade e da coragem. 122
confrontamento das frustrações dos filhos com relação à fantasia de pais sempre prontos a satisfazer todas as sua necessidades, promoverá seu amadurecimento e sua independência. Deixemos um pouco de lado a história e observemos como ela se destaca das páginas do livro se misturando com a vida real. Se a conflitiva edípica é vivenciada por todos nós e se todos os pais e mães biológicos experimentam o amor e a rivalidade dos filhos do mesmo sexo e isso já é o bastante para colocar em cheque a maturidade emocional dos pais, o que dirá o equilíbrio psíquico da madrasta. Porque na relação com seus enteados, por não ser a mãe biológica, ela sofrerá os ataques à sua figura com maior intensidade. Quando os pais se divorciam, as crianças têm a fantasia de que de certa forma conseguiram o que tanto queriam: ambos só para si. Assim, onipotentemente ela consegue conquistar a posição com que sempre sonhou, estar ao lado de ambos ocupando o lugar do outro. Mas este desejo inconsciente que é natural a todas as crianças ao encontrar a sua satisfação na fantasia onipotente da criança, também é um gerador de culpas constante. É por isto que as crianças, filhas de pais separados se debatem entre desejos de que os pais retomem sua relação e, ao mesmo tempo, de que mantenham-se separados e sozinhos para que elas desfrutem de sua companhia. Concretamente, os pais solitários podem ser alvo constante dos apelos edípicos de seus filhos no estágio de desenvolvimento que estamos tratando, mas é claro que não será por isso que seus filhos vão deixar de elaborar o Édipo. Porque pais e mães podem exercer ambas as funções (materna e paterna) e interditar o desejo da criança. Além disso existe um outro social que a criança vai incorporando a partir da atitude de seus pais e que lhe fornece parâmetros para a resolução de seus conflitos. O problema é que constantemente os pais recém separados acabam utilizando as crianças como um escudo sentimental, fomentando os conflitos infantis. E quando um dos pais ou ambos começam a assumir outros relacionamentos, o ciúmes infantil é muitas vezes aumentado pelo ciúmes da figura parental que não consegue elaborar a perda. Mas esta estreita ligação que pode estabelecer-se entre a criança e a figura parental solitária, não é só fruto dos apelos edípicos da criança. O pai ou a mãe tendem também a buscar nos filhos o apoio emocional que tanto necessitam. A criança passa a ser quase que um(a) companheiro (a) para eles, assumindo responsabilidades e tarefas que não 123
seriam (ou deveriam ser) suas. Um olhar mais criterioso pode reconhecer nesses casos que a criança e o pai (ou mãe) estão reproduzindo uma união de adultos e não uma relação entre pai e filho. E nem sempre esta relação permite que um terceiro quebre este vínculo. Mas quando isso acontece, geralmente é a criança que tem de abandonar a fantasia de que ela é a companheira insubstituível do pai (ou da mãe). Porque os adultos tem necessidades concretas, como o relacionamento sexual, que a criança não pode oferecer, e esta necessidade acaba movimentando o adulto a buscar um parceiro adequado para uma relação. A madrasta que se defronta com uma relação destas, sente-se como a criança no estágio edípico de desenvolvimento. Um terceiro que se interpõe entre o “casal”. Enfrenta um ciúmes muitas vezes doentio da criança e se torna alvo de toda a sua frustração e agressão. E por colocar-se como um adulto traído, a criança pode despertar o ciúmes da madrasta também, enquanto mulher. E esta competição pelo amor paterno só atrapalha a relação de todos. Sem dúvida a atuação do pai nestes casos é fundamental. Um pai que é como o caçador de Branca de Neve, que tenta satisfazer a ambos, à madrasta e aos filhos igualmente, na verdade está só satisfazendo a si mesmo. Inconscientemente experimenta uma profunda gratificação por despertar o ciúmes em todos que o rodeiam, e sendo assim, fomenta a competição. Uma mulher de aproximadamente 35 anos relatou-me uma situação destas. Ela namorava um homem separado, que tinha uma filha de 13 anos. A menina havia pouco tempo tinha se mudado para a casa do pai, e cuidava da casa como uma exímia dona-de-casa. Quando começaram o relacionamento, este homem evitava levar a mulher em sua casa. Pedia que ela só telefonasse em seu telefone celular. Após alguns meses de relacionamento, a mulher foi apresentada à filha, que fez questão de demonstrar a sua raiva emitindo os seguintes comentários: “Você também é namorada dele? Pensei que fosse a fulana...”. Mas o tempo passou e a mulher percebeu que a aceitação da filha do companheiro ainda estava longe de acontecer. Porque percebeu também que o companheiro não permitia que ela telefonasse para sua casa, e só a levava em sua casa quando a filha estava passando uns dias na casa da mãe. Esta mulher contou também que quando o homem lhe comprava flores também comprava um maço para a filha, e que muitas vezes teve quase que se esconder, para que a filha não a visse junto ao pai. Ela confessou o ciúmes que tinha da filha do companheiro, porque sabia 124
que ele estava sempre mais preocupado com a filha do que com ela, além de sentir-se como uma “amante de um homem sem esposa”. Após algum tempo esta mulher terminou o relacionamento. Pode parecer absurdo, mas histórias como essas estão longe de ser uma raridade. Existem relações deste tipo que podem realmente ser consideradas patológicas e necessitam de cuidados especiais. Mas em um menor grau, muitas madrastas se defrontam com os ciúmes dos filhos de seus companheiros porque o pai não soube estabelecer os limites necessários da relação pai/filho. Um pai mais amadurecido sabe que seu amor por uma mulher é diferente do amor pelos filhos, e pode satisfazer a ambos respeitando as diferenças. Um pai assim sabe delimitar os espaços dos filhos e da com panheira, usando de bom senso para resolver as dificuldades. E este pai promove o amadurecimento dos filhos e de sua relação. Ainda com relação à atitude paterna, muitas madrastas se queixam da incompreensão de seus companheiros para com suas dificuldades com os enteados. Muitas vezes minimizam seus problemas dizendo que só a companheira é que reclama das crianças, que ele não vê problema algum. Outros ainda não reconhecem seus esforços para estabelecer um vínculo afetivo com eles. As madrastas que não encontram compreensão de seus companheiros para a sua angústia, geralmente sentem-se muito sozinhas e excluídas da relação pai/filho. Para estes pais, enfrentar a realidade de que as coisas não vão bem na nova família é certamente reviver as dificuldades que vivenciou na anterior, e isso pode ser por demais angustiante. Porque uma fantasia comum das pessoas que enfrentaram uma separação, é a que o novo (a) companheiro(a) seja realmente aquela pessoa que o compreenderá, com quem possa realmente compartilhar tudo, que atinja uma cumplicidade na sua vida. Esta fantasia diz respeito a corrigir o passado, e não a revivê-lo. Sendo assim, muitos homens negam as dificuldades de suas companheiras para com seus filhos, simplesmente porque eles não querem acreditar que esses obstáculos possam existir. Outros pais, movidos pela mesma fantasia podem atuar de forma inversa: elegem a companheira como sua “salvação” e com medo de perdê-la, não dão atenção às dificuldades de seus filhos. Estes homens temem que seus filhos sejam um fardo para ela e por isso reprimem as crianças quando demonstram qualquer sinal de descontentamento, diminuindo inclusive o tempo que as crianças passam ao seu lado. 125
Atuar dessas duas formas pode aumentar a dificuldade da nova família. No primeiro caso, as madrastas podem enciumar-se da ligação pai/filho, no segundo os filhos enciúmam-se da relação do pai com a mulher. Em ambos, o pai resiste em encarar os obstáculos que qualquer relacionamento encontra, e portanto impede que eles possam ser superados. O medo de um segundo fracasso pode provocar outro, ainda maior. Se a madrasta pode encontrar o ciúmes de seus enteados, principalmente das meninas que se encontram envolvidas pelo Édipo e projetam na sua figura a raiva originalmente dirigida à mãe, algumas madrastas podem também se ver às voltas com o amor edípico dos meninos. Se desejar a mãe gera inúmeros sentimentos de culpa, desejar a madrasta pode ser uma saída para alguns meninos. Não que eles deixem também de dirigir seus apelos edípicos para a mãe biológica, mas podem também voltá-los para a madrasta. Além disso, desviar a conflitiva edí pica para a família substituta pode ser até uma forma de tentar resolvê-la. Porque ali estão simbolicamente “pai e mãe”, e a criança sadia busca a interdição da figura paterna. Às vezes a mãe biológica está sozinha, não tem um companheiro com quem o menino possa rivalizar e recalcar seus desejos instintivos. Assim como o pai pode enciumar-se da relação do filho com a mãe na família nuclear, na família substituta o mesmo acontece. Esta ameaça sentida pelo pai acontece em maior grau quando o filho se aproxima em idade com a madrasta, quando ele já é um jovem cheio de energia sexual. Se o mito de Édipo é um tanto assustador, porque fala abertamente do amor do filho pela mãe, o mito de Fedra pode ser considerado também difícil, já que representa o amor da madrasta por seu enteado.
Fedra era filha de Minos, rei de Creta. Seu irmão Deucalião ofereceu-a em casamento a Teseu. Com ele teve dois filhos, Acamante e Demofoonte. Acompanhando Teseu a uma viagem, Fedra conheceu um filho dele de outra união. Hipólito. Fedra apaixonou-se violentamente por Hipólito. Mas quando ela confessa o seu amor, Hipólito a repudia. Encolerizada, Fedra acusou-o junto a Teseu de haver tentado violentála. E Hipólito é castigado por Netuno a mando de seu pai. O jovem conduzia seu carro junto ao mar, quando assustados por um monstro 126
que emergia das vagas, seus cavalos precipitaram-se pelas rochas, causando-lhe a morte. Fedra, de remorso e desespero, enforcou-se.12 Embora no mito fique claro que é a madrasta que se apaixona pelo enteado, isso não significa que o inverso não aconteça. E como no mito, os sentimentos de culpa pela fantasia de uma relação “quase incestuosa” levam à morte seus protagonistas. Enfrentar esta ameaça na relação é uma tarefa para as madrastas e para seus companheiros. Principalmente se os pais invejam a energia e virilidade manifestadas pelos seus filhos adolescentes, energia que tende a diminuir com a maturidade, mas que está longe de ser comparada à qualidade de uma relação. O problema é que em nossa sociedade ser homem é confundido com ser viril. A capacidade masculina é, infelizmente medida pela capacidade erétil, pela potência sexual. E muitos homens podem realmente se prender nessa aspiral e fantasiar na relação de suas companheiras e seus filhos uma possibilidade real de traição. Mas invejar a energia da adolescência não é uma prerrogativa dos homens. Mães e madrastas podem reagir à competição estabelecida pelas adolescentes porque também invejam sua beleza e energia, sua capacidade de sedução. Se os homens se vêem às voltas com a masculinidade associada ao pênis, as mulheres se defrontam com a imagem de um corpo perfeito associado à capacidade de sedução. Infelizmente o ideal de beleza contemporâneo descarta o amadurecimento do corpo feminino, além de não enaltecer o amadurecimento psíquico que as mulheres adquirem com a idade. Sendo assim, as mulheres sofrem para manterem sua auto-estima; a todo momento, em todos os lugares visualizam os modelos de beleza que mais parecem retirados do Olimpo do que de uma Terra de simples mortais. Uma madrasta às voltas com os problemas emocionais da meiaidade feminina podem realmente estabelecer com suas enteadas adolescentes e cheias de vida uma competição, e o pai neste caso é o príncipe que elas tentam conquistar. O pai é o outro que reconhece a beleza de uma e outra, como o espelho mágico faz na história de Branca de Neve. Um outro detalhe do conto nos revela o conflito da rivalidade entre a madrasta(mãe) e a enteada (filha), por conta da beleza. Quando a madrasta manda o caçador matar a enteada, manda também que traga suas vísceras, para que ela as coma. Esta passagem pode ser interpretada por duas formas, que na verdade se complementam. A primeira é que 127
os antigos acreditavam que se ingerissem as vísceras de outra pessoa, adquiririam suas virtudes. Sendo assim, o desejo da madrasta era o de internalizar a beleza, a ingenuidade e a jovialidade de Branca de Neve para então, tornar-se a mais bela. Num nível mais profundo e complementar, colocar as qualidades de Branca de Neve “para dentro” é quase que desejar que ela fosse sua filha legítima, que pudesse ser gerada por ela. A madrasta tenta enxergá-la como uma criança bela e boa, e não como uma rival. Mas na verdade, a madrasta de Branca de Neve não consegue satisfazer seu desejo; come as vísceras de um javali, que o caçador matou voltando ao castelo. Não conseguindo internalizar a parte boa de Branca de Neve, a madrasta continua a rivalizar com ela. Se a madrasta (mãe) tenta, sem sucesso, resolver o conflito da rivalidade, o conto nos mostra que Branca de Neve também procura resolvê-lo. Ela tenta se identificar com a parte boa da mãe. A passagem de Branca de Neve na casa dos anões pressupõe um amadurecimento. A heroína precisa aprender a conquistar as coisas através do trabalho.
Sozinha na floresta, Branca de Neve corre assustada até que encontra uma casinha. Entra para descansar e lá dentro percebe que tudo é pequeno, limpo e bem arrumado. Com fome, Branca de Neve avista a mesa posta, com sete pratinhos, cada um com sua colherinha, seu garfinho e sua faca, e diante de cada prato, um copinho. Ela come um pouco de cada prato e bebe um pouco de cada copo, e depois deita se em uma das camas, a que não era pequena demais para ela. Quando os anões chegam, logo percebem que as coisas estavam diferentes. E se deparam com a linda criança deitada em uma das camas. “Eles ficaram tão encantados que não a acordaram”. Na manhã seguinte Branca de Neve acordou e se deparou com os anões. Contou a eles a sua triste história e eles ofereceram a ela a sua morada, mas em troca Branca de Neve deveria fazer todos os trabalhos domésticos para eles. Foi assim que Branca de Neve passou a morar em total harmonia com os anões. Os anões entram no enredo da história como figuras que ajudam Branca de Neve a amadurecer. Pela primeira vez Branca de Neve não consegue as coisas com sua beleza sedutora. Embora encantados com a sua beleza, eles só a deixam ficar se trabalhar para eles em troca. E ela assume todas as tarefas domésticas, como uma boa mãe faria para o con128
forto de seus filhos. Ela limpa, arruma, costura, cozinha, e toda essa atuação demonstra o quanto tenta se identificar com a mãe idealmente boa. Branca de Neve repete as atitudes que fazem parte do ideal da boa mãe. Essa repetição dos padrões e atitudes ligados à feminilidade pode ser comparada à da brincadeira de bonecas das meninas. Os anões são os bonecos que representam os filhos e Branca de Neve atua como a mãe. É por isso que tudo é pequeno, porque Branca de Neve é uma criança. Na versão russa “The Tale of The Dead Princess”13, como já vimos antes, a heroína é uma princesa enamorada de um belo rapaz. Quando abandonada pela ama na floresta, a princesa adolescente encontra uma casa. A casa não era pequena como na nossa versão, e os sete habitantes eram homens já crescidos. Eram 7 cavaleiros que, como os anões, deixam a princesa morar com eles. Eles a “adotam” como uma irmã que também fica responsável pelos afazeres domésticos. A diferença entre as duas versões é relativa à idade da heroína e os detalhes se modificam por conta desta diferença. Mas o conflito central das duas versões é o mesmo: o drama edípico vivenciado pela menina que é reativado na adolescência. Embora Branca de Neve tente identificar-se com a parte boa da mãe, ela ainda se vê às voltas com sua vaidade e continua a rivalizar com a madrasta. Se não fosse assim, a madrasta não apareceria novamente na historia, e o enredo tomaria outro rumo. Mas Branca de Neve novamente é traída por sua necessidade de competir.
Enquanto isso, no castelo a madrasta volta a consultar o espelho: – Espelho, espelho meu! Existe algué m neste mundo mai s bela do que eu?
E, como das outras vezes, o espelho respondeu: –Sem dúvida, senhora rainha, sois aqui a mais bela. Alé m das montanhas, poré m, na casa dos sete anões, vive Branca de Neve, mi l vezes ainda mais bela! 129
Ao ouvir isso, a rainha ficou irada. Disfarçou-se numa velha vendedora ambulante e foi até a casa dos sete anões. Quando chegou, ofereceu à Branca de Neve faixas de seda. Branca de neve que foi advertida pelos anões para não deixar ninguém entrar, não viu mal algum em deixar a velha entrar. Comprou uma bonita faixa e a velha ofereceu-se para colocá-la em sua cintura. Branca de Neve aproximou-se e então a velha agiu com rapidez: Apertou o laço de tal forma que a menina ficou sem poder respirar e caiu desfalecida. A rainha sorriu triunfante achando que a princezinha estava morta. No final da tarde os anões retornaram e ao verem a menina no chão ergueram-na e perceberam a faixa apertando-lhe a cintura. Rapidamente a retiraram e a menina voltou a respirar. Novamente advertiram Branca de Neve por ter deixado a velha entrar. Tempos depois, a madrasta foi ao espelho, mas novamente ele respondeu a mesma coisa. A madrasta ficou raivosa por saber que a enteada estava viva. Mais uma vez disfarçou-se de vendedora e foi até a casa dos anões. Desta vez ofereceu à Branca de Neve um pente que estava envenenado, e novamente a menina não resistiu. Abriu a porta para a velha vendedora e deixou que ela penteasse o seu cabelo. A rainha então enfincou o pente envenenado em sua cabeça e Branca de Neve caiu desacordada. Quando os anões chegaram e viram a menina caída no chão, suspeitaram que a rainha havia estado ali. Logo descobriram o pente envenenado e retiraram-no da cabeça da menina. Ela reviveu e contou-lhes o que havia acontecido. Mais uma vez os anões aconselharam-na a ser cautelosa. Enquanto isso a rainha chegou ao castelo e apressou-se em con sultar o espelho, que mais uma vez disse que Branca de Neve era a mais bela. Ao ouvir as palavras do espelho a rainha estremeceu de raiva: “ Branca de Neve tem que morrer!” Ela trancou-se num quarto e ficou lá por muito tempo, envenenando uma maçã. Era uma maçã tão linda, corada e apetitosa que qualquer um seria tentado a comê-la! A madrasta se disfarçou de camponesa e foi até a casa dos anões. Branca de Neve resistiu em deixá-la entrar, mas a rainha que era esperta, comeu a parte branca da maçã para mostrar que não havia problema em Branca de Neve comê-la, e ofereceu a outra parte, vermelha e envenenada à menina. Branca de neve não resistiu e aceitou a metade da maçã. Mas assim que deu uma mordida, caiu morta no chão. 130
A rainha correu para o castelo e perguntou ao espelho: “– Espelho, espelho meu! “ Existe algué m neste mundo “ mais bela do que eu?”
E desta vez o espelho respondeu: “–Neste mundo, a mais bela sois “ vós, senhora rainha! ”
“... Só então o invejoso coração da rainha ficou tranqüilo. Tão tranqüilo quanto pode ficar um coração invejoso...” Branca de Neve é traída pelo próprio narcisismo. Não consegue resistir ao apelo da beleza. Primeiro deixa-se envaidecer pela fita colorida, e chega às beiras da morte. Os anões advertem-na desta atitude, mas novamente seus impulsos narcísicos a impedem de seguir o conselho dos anões. Deixa que a madrasta penteie o seu cabelo com o pente envenenado. Por duas vezes Branca de Neve é advertida dos perigos que corre em acreditar que é a mais bela, que é a única mais bela no mundo. Da terceira vez Branca de Neve é seduzida pela maçã. A maçã é o símbolo máximo da sexualidade, do pecado original. Como Branca de Neve ela é metade vermelha metade branca, e nossa heroína morde a metade vermelha e cai morta no chão. Esta parte do conto mostra claramente que Branca de Neve não pode atuar sua sexualidade porque ainda é uma criança. Por isso cai morta no chão. Adverte as crianças que os apelos edípicos podem ser vivenciados no inconsciente, mas que não devem ser concretizados na vida real. De nada adiantará uma enteada raivosa com ciúmes da intimidade de sua madrasta (ou mãe) com o pai. A madrasta é uma mulher adulta que pode corresponder ao amor genital do pai. A criança não pode fazer isso. Por outro lado o conto adverte também a inveja e o ciúmes da madrasta com a jovialidade e a beleza da enteada. Mostra que a madrasta vive assombrada com o fantasma da menina que é refletido no espelho. E isso não a ajuda em nada. Muitas vezes a questão do ciúmes não se manifesta só da parte dos enteados. Algumas madrastas visualizam nos enteados a relação anterior 131
de seu companheiro. Elas deixam de ser filhos de seu companheiro para serem o fruto da relação anterior, mais precisamente representantes da mãe. Elas tem ciúmes das crianças porque representam uma intimidade que houve entre a mãe delas e seu atual companheiro. Podemos especular que o fato do companheiro ter tido filhos com outra mulher seja um dos motivos deste ciúmes. Porque nós ouvimos a todo o tempo frases do tipo: “Você é a mulher que eu escolhi para ser mãe dos meus filhos” ou ainda “Eu quero que você me dê um filho”. Estas frases denotam uma relação entre homem e mulher que se estabelece pela idéia de maternidade. É como se essas mulheres fossem especiais só porque são capazes de gerar os sucessores para seus maridos. Certamente essas frases estão impregnadas pelos ideais de relação, matrimônio e maternidade. E muitas madrastas podem sentir-se enciumadas porque não foram as primeiras escolhidas para gerar os filhos do com panheiro e que assim a mãe dos enteados possui algo que elas nunca conquistarão. E os enteados são a prova viva disso. Nestes casos, a cada vez que os enteados estão com a madrasta, a figura da mãe está com elas como um fantasma que ameaça sua segurança e auto-estima. A voz do espelho é da criança, a imagem é a da mãe delas. A madrasta reage a esta ameaça, com ciúmes, raiva e agressividade. Pode então adotar vários comportamentos, nenhum deles favoráveis. Pode, por exemplo, provocar o ciúmes das crianças demonstrando que o pai delas prefere estar com ela, e não com eles, que o pai lhe dá todo apoio em suas decisões, e por isso as crianças devem temê-la. Pode também rejeitar as crianças, colocando impecilhos na relação delas com o pai, evitando o contato ou tentando estabelecer regras que lhe permitem acreditar estar no comando da situação, sabendo entretanto que a situação lhe foge ao controle totalmente. Conheço madrastas que se irritam pela presença da criança em suas casas, e simplesmente perdem o controle quando a criança menciona o nome da mãe. Outras impedem que o companheiro converse com a mãe das crianças, transformando a situação difícil para o pai, que não deixou de ser este responsável pelos filhos e que precisa conversar sobre eles com a ex-companheira. Algumas destas madrastas enfrentam mães biológicas ciumentas e raivosas, e sua insegurança é intensificada pelos ataques dela à sua figura. Mas outras destas madrastas têm uma insegurança própria, que não encontra eco na mãe biológica, é fruto de sua própria personalidade. Elas rejeitam as crianças, tentando demonstrar para si mesmas que elas não são impor132
tantes em sua vida e na vida do pai delas. Elas desejam apagar o passado, não suportam a idéia de que o passado do companheiro esteja ali, representado na figura dos filhos dele. Objetivam ser a única na vida do com panheiro, não suportando a idéia de ter de dividir o afeto dele com outras pessoas. Para estas madrastas, pouco importa se a mãe biológic a está viva ou não, se ela também já tem outro companheiro ou não, porque os filhos desta mãe continuam ali, vivos, presentes e crescendo cada vez mais. A madrasta de Branca de Neve fica furiosa em saber que sua enteada estava viva e tenta por todos os meios matá-la, da mesma forma que as madrastas tentam apagar o passado afetivo de seus companheiros.
Quando encontram Branca de Neve, os anões tentam em vão ressucitá-la. Percebendo que a menina estava morta, deitaram-na num caixão e durante três dias choraram sem parar. Era preciso enterrar Branca de Neve, pensaram os anões, mas ela estava tão bonita e corada que eles não tinham coragem de enterrá-la na escuridão da terra. Então, fizeram um caixão de vidro e escreveram na tampa com letras de ouro que ela era filha do rei e se chamava Branca de Neve. Depois levaram o caixão para uma montanha, e sempre um dos anões ficava vigiando. Branca de Neve ficou ali por muito tempo, conservando sua aparência branca como a neve, corada como o sangue e com os cabelos pretos como ébano. Parecia estar dormindo. Aconteceu que um dia um príncipe passou por ali e se apaixonou pela bela menina deitada em seu caixão de vidro. Ele pediu aos anões para levá-la consigo, e foi tão insistente e parecia tão sincero que os anões ficaram com pena e deram-lhe o caixão. O príncipe mandou que seus criados carregassem o caixão até o castelo. Mas eles tropeçaram em uma raiz e o caixão levou um solavanco que fez o pedaço da maçã envenenada que estava entalado na garganta de Branca de Neve pular para fora. A menina abriu os olhos, levantou a tampa do caixão e sentou-se. “... Estava viva!”. O príncipe contou a branca de Neve o que havia acontecido e que estava apaixonado por ela. E como ela também já estava gostando dele acompanho-o ao seu castelo e o casamento deles foi providenciado. No dia da festa, a madrasta foi ao espelho e ficou irada quando o espelho disse que Branca de Neve era a mais linda. Pensou em não ir ao casamento, mas não resistiu à curiosidade. Quando viu Branca de Neve, ficou espantada e imóvel. No mesmo instante trouxeram um par de chinelos de ferro em brasa que 133
foram colocados diante dela. “... Depois, obrigaram-na a calçá-los e a dançar com eles, até cair morta.” O final de “Branca de Neve” diz respeito a uma diminuição dos apelos edípicos, dos impulsos sexuais. Depois de ter experimentado a maçã envenenada, Branca de Neve cai morta no chão. Mas sua face não aparenta a morte. Em um caixão de vidro, Branca de Neve continua aparentemente viva, parece mais estar dormindo. É como se ela estivesse ali, adormecida para o mundo, mesmo fazendo ainda parte dele. Ela está trancada em seu próprio ser, porque envolvida com as questões edípicas, não pode enxergar mais nada. A maçã está entalada em sua garganta, como se a fantasia de atuação do incesto não pudesse ser digerida. Branca de Neve precisa adormecer seus impulsos sexuais para amadurecer e então ser capaz de lidar com eles na adolescência. Foi desta forma que o príncipe pôde encontrar Branca de Neve na história e se casar com ela. Morrer dançando com um par de chinelos de ferro em brasa é realmente uma forma cruel de retirar a madrasta da história. Simbolicamente ela precisa desaparecer porque Branca de neve já não rivaliza mais com a mãe. Mas novamente, como em “João e Maria” este final reforça a idéia de que madrastas são mulheres perigosas e más que precisam ser extirpadas da sociedade. Não existem “fórmulas prontas” para resolver o ciúmes infantil. Porém, através do relato das madrastas que tive o privilégio de conhecer e ouvir, algumas atitudes provaram ser eficientes. A primeira delas é sem dúvida ter segurança quanto ao relacionamento do companheiro com a ex-esposa. Se uma madrasta sente-se insegura quanto aos sentimentos do marido pela mãe de seus filhos de casamentos anteriores, então o relacionamento com os enteados e a mãe deles provavelmente será turbulento. As madrastas não podem apagar o passado de seus companheiros, porque também não devem apagar o seu. O passado faz parte da história de cada indivíduo, e nós precisamos saber lidar com ele. E a mãe das crianças faz parte do passado afetivo do pai delas, assim como do presente com relação aos cuidados com os filhos. Impedir o contato do companheiro com a mãe dos enteados é realmente uma atitude pouco satisfatória. Outro comportamento importante para as madrastas é o de adotar uma postura respeitosa para com a mãe dos enteados. Nunca emitir opi134
niões que firam o sentimento da criança, até porque emitir opiniões sobre uma pessoa com a qual pouco convivemos é uma atitude impulsiva e totalmente parcial. São essas atitudes que promovem o reforço dos preconceitos sociais que estamos tentando quebrar. Deixar que as crianças fiquem sozinhas com o pai por alguns períodos (principalmente quando elas não moram com ele e só o visitam) parece também desanuviar a ansiedade infantil e a fantasia de que a madrasta está tentando “roubar-lhes” o lugar. Demonstrar à criança que elas são bem recebidas na casa do pai, que elas têm o seu lugar na casa, e são esperadas pelo pai e pela madrasta com carinho, é sem dúvida um bom caminho. E sobretudo sempre refletir sobre o que está acontecendo, se os sentimentos estão misturados. Tentar sempre precisar o que é “meu” e o que é do “outro”, para que se possa ter uma visão mais ampla do todo. Quando podemos avaliar nossos sentimentos com clareza, podemos encontrar melhores soluções para os conflitos. Ter uma conversa franca com os enteados e com o pai deles pode ser uma boa saída, nos casos em que eles estão abertos para isso. E nunca, mas nunca mesmo ir além do que você pode fazer e do que você pode ser. Ser honesto consigo mesmo e com os outros é sem pre a melhor opção.
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CAPÍTULO V
CachinhosdeOuroem B uscada F amíliaI deal “ Não tenho nada que me prenda a essa casa. Não tenho raízes aqui. As crianças não são minhas. Elas não me amam. Nunca me amaram... Não tenho sequer uma chave para deixar para trás, nem instruções para deixar para ninguém. Tenho estado fora, fora de tudo. Desde o primeiro dia em que vim para cá.” (a madrasta da história “A Dama do mar”) 1
Embora a história de “Cachinhos de Ouro” 2 não tenha uma madrasta como personagem, ela aborda uma temática importante para nossa reflexão: a busca por uma família perfeita. “Cachinhos de Ouro” não faz parte da Coletânea dos Irmãos Grimm. Talvez por isso não seja uma história por nós tão conhecida, e encontra-se adaptada por diversos escritores. Além disso, Cachinhos de Ouro não é um Conto de Fadas propriamente dito, já que não possui uma característica fundamental deste tipo de narrativa: o final feliz. Pelo contrário, algumas adaptações colocam no final da história um conteúdo moral explícito, o que é uma particularidade das Fábulas. Contudo, “Cachinhos de Ouro” é uma história da tradição oral que como todas as outras revela conteúdos importantes do psiquismo humano.
A história conta as aventuras de uma “linda menina que tinha cabelos de cor de ouro”, por isso era conhecida como “Cachinhos de Ouro”. Certa manhã ela andava pelo campo quando avistou uma casinha. Como era curiosa, a menina entrou na casa e viu uma mesa com três pratos de sopa sobre ela: um bem grande, o outro um pouco menor 137
e o terceiro bem pequeno. Como estava com fome pegou o prato menor e tomou toda a sopa dele. Depois, sentindo-se cansada, Cachinhos de Ouro procurou uma cadeira para sentar. Encontrou três cadeiras: uma bem grande, outra um pouco menor e a outra bem pequena. Sentou-se na cadeira maior, mas logo percebeu que era muito grande para ela. Então, sentou-se na do meio, mas era grande também. Finalmente sentou-se na pequena, mas esta era tão pequena e frágil que não agüentou o peso dela e quebrou. Cachinhos de Ouro procurou então, no único quarto da casa, uma cama para se deitar. Encontrou três camas: uma bem grande; outra um pouco menor, e a outra, bem pequenininha. Ela deitou-se na cama maior, mas disse para si mesma: “– Oh! Esta cama é muito grande para mim!”. Então, resolveu deitar-se na cama do meio. Mas também não ficou satisfeita. Por último deitou-se na cama menor e exclamou: “– Esta sim é boa! Vou tirar uma soneca!” Cachinhos de Ouro adormeceu. Pouco tempo depois os donos da casa chegaram. Eram três ursos. Papai Urso era grandão; Mamãe Urso era menor que o marido e finalmente o ursinho, que era filho do casal.. Assim que chegaram foram logo comer, mas quando sentaram se à mesa, o ursinho olhou para seu prato e disse “-Tomaram minha sopa!”. E ele se pôs a chorar. Mamãe Urso foi então preparar algo para seu filho comer. Assim que acabaram de comer, os três foram para a sala descansar. Mas quando o ursinho foi sentar-se em sua cadeira, percebeu que ela estava quebrada. Então, Papai Urso percebeu que deveria haver alguém por ali que tinha feito aquelas traves suras. Procuraram pela casa e acabaram encontrando Cachinhos de Ouro dormindo na cama do ursinho. Ele deu um grito de espanto que acordou Cachinhos de Ouro. Quando ela viu os três ursos pulou pela janela e saiu correndo.” A história Cachinhos de Ouro fala de uma criança sozinha que tenta identificar-se com uma família de ursos. Ela vem não se sabe de onde, interfere na constelação familiar sem pedir licença, e vai embora da mesma forma. Ela ameaça a integridade e a segurança emocional da família. Cachinhos de Ouro e sua tentativa em fazer parte da família de ursos me faz lembrar as dificuldades de identidade das madrastas. Porque elas, tal como Cachinhos de Ouro, encontram uma família que, embora separada, já fora constituída anteriormente. Porque as cadeiras estavam lá: uma grande, outra menor e a terceira ainda mais pequena. 138
A família de ursos representa o modelo de família nuclear: pai, mãe e filhos, que vivem em harmonia, cada qual com seu papel bem definido na estrutura familiar. Isto está demonstrado de forma simbólica no conto: os pratos, as cadeiras e as camas têm o tamanho exato de cada membro da família. E Cachinhos de Ouro, além de não ser um urso, não consegue se identificar com nenhum dos papéis: a cadeira maior é grande demais, na menor também não se sente confortável, e ao sentar-se na pequenininha quebra a cadeira. Cachinhos de Ouro é uma invasora. A família nuclear é certamente uma aspiração que permeia ainda a sociedade contemporânea e que está atrelada ao ideal de um matrimônio indissolúvel. Como diz Kolbenschlag3 “... Nossa sociedade espera que todos se casem. A vida social, pública ou particular, é organizada em torno do casal. A díade romântica é a relação arquetípica de nossa cultura...”, e ainda: “Nossas expectativas do casamento provavelmente são as maiores de toda a história da civilização...” 4 E eu vou mais além: nossa expectativa com o matrimônio é a de que ele aconteça uma única vez, não uma segunda, ou uma terceira. Não faz parte do ideal coletivo, que um homem ou uma mulher se unam pela primeira vez a alguém que já foi casado e tem “frutos vivos” desta união anterior. Do contrário, espera-se que um homem e uma mulher solteiros se apaixonem, casem-se, tenham filhos e constituam um patrimônio seguro para a família que lhes garanta uma vida tranqüila e feliz. O modelo de família moderna, pressupõe-se, nasceu no seio da burguesia da Europa por volta de 1750 e instaurou-se como estrutura familiar dominante na sociedade capitalista avançada no séc. XX. 5 Se o modelo que a antecede, o da família aristocrática, já pressupunha o casamento como necessidade e forma de acúmulo de bens, a família burguesa pouco se distancia disto. Apenas transforma as formas de relação e autoridade. A aristocracia promovia o casamento como um ato político e a autoridade era delegada ao estado. A família burguesa inova, possibilitando que o casamento seja opção afetiva e outorgando a autoridade aos pais, nas relações entre pais e filhos. Os valores e regras agora vem de dentro do cerne familiar, não de fora dele. Porém, o casamento enquanto instituição e a família nuclear enquanto valor social nada mudam. A família burguesa tornou-se única, fechada e “auto-suficiente”. Em sua estrutura havia muito pouca elasticidade e variação. A Família primária adquiriu uma importância fundamental, transformando-se no ideal do modelo familiar burguês e estabelecendo uma ponte entre aquisição material e poder. 139
Embora a família moderna esteja hoje mais permeável, ainda assim se apoia no molde burguês. Nas camadas sociais menos favorecidas, onde as características de aspiração burguesas se encontram muito aquém de ser alcançadas, parece que as relações familiares e de parentesco foram também menos contaminadas pelo excessivo valor que se deu à família nuclear. Não é incomum que nestas, as famílias estejam repletas de madrastas e padrastos e isto se torne algo bastante aceitável ou mesmo, em alguns casos, de pouquíssima relevância para os membros da família. Já, nas sociedades mais abastadas, onde o modelo de família burguesa é o preponderante, a sucessão de uniões e de relações de parentesco, nem sempre é vista com bons olhos. O ideal social da construção de uma família nuclear pode também ser percebido no início de muitos contos clássicos. Como em “A Bela Adormecida 6 ”: “Há muitos e muito anos, viveu um casal de reis cuja maior tristeza era não ter filhos. Não passava um só dia sem que suspirassem – Ah! Se tivéssemos um herdeiro...”; ou em “Branca de Neve” 7: “Uma vez, foi em pleno inverno, quando flocos de neve caiam do céu como plumas, uma rainha costurava ao pé da janela...ela pensou: Ah! Se eu tivesse uma criança branca como a neve, corada como sangue e de cabelos negros como ébano...” ou ainda em “Rapunzel” 8: “Era uma vez um casal que vinha desejando um filho inutilmente. Os anos iam passando sem que seu sonho se realizasse. Afinal, chegou um dia, a mulher percebeu que Deus ouvira suas preces. Ela ia ter uma criança.” O desejo de um casal em ter um filho para que possam “constituir uma família” é retratado nas histórias infantis e quando ele é satisfeito, tudo parece ficar maravilhoso. Mas os problemas que os casais enfrentam com a entrada de um novo membro em sua relação, também é demonstrado nas histórias, mas sempre de forma simbólica e utilizando projetivamente outras figuras. Sendo assim, quem vem quebrar o sossego dos pais em “A Bela Adormecida” não é a filha, mas uma fada maldosa. Em “Branca de Neve” é a madrasta, e em “Rapunzel” a vizinha feiticeira. Ora, se nós temos dificuldades em aceitar que os filhos não só nos dão alegrias, mas também provocam tensões na relação, então vamos passar a vida toda lutando contra nós mesmos, nutrindo o ideal da família perfeita que é o protótipo da “normalidade social”. E qualquer pessoa que venha a contradizer esta idéia de “normalidade” social, está fadada a ser expurgado da história! É desta forma que pessoas que optam por viver sozinhas, casais que escolhem não ter 140
filhos e mesmo pessoas divorciadas ainda são vistas com olhos impregnados pelos estigmas sociais. E madrastas e padrastos também fazem parte deste grupo de bodes expiatórios de uma sociedade que luta para não deixar seu castelo de sonhos desmoronar. Mesmo que nossa sociedade esteja presenciando a dissolução das estruturas de relacionamento de clã, de vizinhança e institucionais, nossa desilusão é ainda maior que o sentido voltado à mudança. A sensação de fracasso pessoal acompanha os indivíduos para onde quer que se dirijam: se não se casam, experimentam o dissabor de estar fora da noção social de vida feliz; se casam descobrem que o casamento deixou de ser a única opção para uma vida feliz; se desfazem um casamento são acometidos por uma frustração inconsolável. O “discurso moderno” que prega a liberdade de escolha, que vai desde a opção sexual até as ditas “uniões abertas”, ainda está longe de se concretizar. Porque ainda percebemos nestas manifestações uma agressividade que se volta ao agressor. E o agressor nada mais é do que a pró pria instituição família, que foi criada pela humanidade e que não aceita facilmente variantes no comportamento esperado. E não quero dizer com isso que a família não seja importante. Apenas que o ideal de família ainda se contrapõe à aceitação de novas possibilidades de relacionamento, ou melhor de vida. As famílias substitutas enfrentam uma sociedade que, mesmo tendo vislumbrado tantas mudanças no comportamento humano, ainda assim se incomoda com elas. As famílias substitutas muitas vezes sentem-se como Cachinhos de Ouro na casa dos ursos: sem lugar para ficar. Porque, como aponta Smith9 “nas famílias nucleares, estejam todos os membros satisfeitos ou não com a companhia uns dos outros, há clareza sobre os participantes. Eles estão ligados por seu relacionamento recí proco estabelecido por casamentos, nascimento ou adoção. Os limites dos membros da família substituta não são claros, talvez nem sequer reconhecidos por todos aqueles que poderiam ter uma participação.” Além disso, a família substituta geralmente começa sua vida com a maioria de seus membros sentindo dor em relação ao passado e com todos sentindo-se inseguros a respeito do futuro, provavelmente quase sem preparo algum para enfrentar ganhos e perdas. E estas perdas podem ser deliberadamente projetadas na madrasta. Num primeiro momento, as madrastas podem tornar-se as representantes da falência de um casamento e da desintegração da família nuclear. Porque se um homem se 141
une a uma segunda mulher, supõe-se que tenha findado o relacionamento com a companheira anterior. Sendo assim as madrastas personificam o “fracasso” do matrimônio anterior e confrontam a sociedade, em especial as crianças, com a separação dos pais e com o insucesso do ideal familiar. Se uma criança tem dificuldades para aceitar a separação dos pais, certamente resistirá na aceitação de ter uma madrasta, muitas vezes atribuindo a ela a responsabilidade pelo afastamento dos pais. É claro que nenhuma madrasta é responsável pela desunião de uma família, mas o ideal da família nuclear é ainda tão forte, que enquanto os pais separados vivem sozinhos, a criança (e a sociedade) nutre a fantasia de que eles voltem a se unir. Quando um terceiro ameaça esta fantasia, ele passa a ser, para a criança, o culpado de toda a “tragédia familiar”. E a criança não poupará esforços em demonstrar o seu descontentamento com a nova união do pai, até que possa internalizar a separação. Muitas madrastas percebem a ansiedade infantil como um ataque direto à sua figura, e não como uma reação contrária à situação em si, e algumas podem realmente sentir-se culpadas por adentrar na “casa dos ursos”. Ora, mesmo que aparentemente, na casa de Papai Urso a cadeira de Mamãe Urso esteja vazia, as madrastas não podem ocupá-la. Será como na história: ou ela é grande demais, ou pequena demais. Porque mesmo que Mamãe Urso não se sente junto a mesa, sua cadeira estará lá, sem pre presente. E até que a madrasta possa se sentir confortável na “casa dos Ursos”, ela vai ter de se defrontar com o sentimento de exclusão. O sentimento de exclusão, de estar a margem das relações familiares que já estão estabelecidas entre pais e filhos e mães fisicamente ausentes, é certamente o que faz muitas madrastas se sentirem como estranhas. Muitas descrevem seus sentimentos como os de alguém que “está e ao mesmo tempo não está...”, ou de alguém que é protagonista de “uma nova história que se desenrola a partir da anterior...”. Algumas madrastas têm realmente dificuldade para lidar com a exclusão. São acometidas de um sentimento de ciúmes pelos laços afetivos entre as crianças e o pai delas. Porque elas não fazem parte deste vínculo, não fazem parte da história da família, e sentem-se desconsideradas enquanto figuras que podem opinar sobre os assuntos que esbarram na dinâmica familiar anterior. “O que você está falando? Não é a mãe deles, não sabe como eles são!”. Esta é uma frase que desqualifica as madrastas enquanto adultos que podem emitir suas opiniões dentro de sua própria 142
casa e sobre a vida daqueles com quem partilha seu tempo, espaço, e principalmente seu afeto. Mas o sentimento de exclusão não é só percebido no cerne da estrutura familiar. Expande-se também para as outras relações de parentesco. Quando uma família substituta se forma, existe uma certa confusão com relação a determinar quem pertence à família. Porque novos pares de avós e tios podem ser formados e nem sempre os pares da família anterior aceitam a nova formação. Para as madrastas, conviver com os pares antigos pode ser uma tarefa realmente difícil, principalmente se a separação não foi bem aceita pela família. Por outro lado, os avós que desempenhavam o seu papel com confiança e prazer podem se afastar dos netos, sem saber como se comportar. Alguns pares de avós podem realmente se verem privados do contato com os netos por causa dos conflitos que precederam a separação dos pais. No caso por exemplo da mãe da criança morrer e a criança passar a viver com o pai e a madrasta, os avós (pais da mãe) podem ser acometidos da fantasia de que o neto não mais lem brará deles, que ele agora fará parte apenas da “outra família”. Esses avós sentem-se inseguros em adentrar em um terreno que é por eles desconhecido, que pode vir a descaracterizar suas ações enquanto avós. Visitam os netos com um certo desconforto e com medo de não serem bem recebidos pela madrasta e por seus familiares. Também, dependendo de como eles lidaram com a morte da mãe da criança, esses avós e os tios podem rejeitar a mulher que em suas fantasias “tomará o lugar dela”. Avaliemos outro caso: Se por exemplo os avós paternos aceitam bem o novo casamento do filho, ficam inseguros em continuar o relacionamento com a mãe de seus netos. Acreditam que se mantiverem contato, a nova nora pode realmente se zangar. Nestes casos a tendência é o afastamento dos netos que continuam morando com a mãe, ficando os avós restritos ao contato com eles quando estes visitam o pai. A questão com tios e primos pode ser considerada a mesma. O próprio pai das crianças também vê alguns vínculos estabelecidos na relação anterior serem quebrados com a nova união. Se ele criou uma relação afetiva com os sogros, de convivência pacífica e prazeirosa, esta relação pode não ser bem aceita pela madrasta e seus pais. Porque continuar mantendo o contato com sogro e sogra pode parecer, aos olhos das madrastas, desejar restabelecer o casamento anterior. E nem sempre isso é verdadeiro. 143
Outra dificuldade aparente é a dos pais da madrasta encararem seus enteados como “netos verdadeiros”, principalmente quando os enteados moram com a madrasta que também têm filhos com o pai das crianças. Estes avós, por estarem também contaminados com a norma social da família nuclear, podem estabelecer diferenças no trato com os “netos verdadeiros” e os “netos postiços”. Diferenciam o carinho, os presentes, enfim estabelecem um vínculo afetivo dependendo da relação consangüínea. E as crianças podem realmente se ressentir com isso. Com tantas modificações na estrutura familiar primária, as crianças também se consideram como “Cachinhos de Ouro” na casa dos ursos. Não sabem bem como sentirsentir-se se à vontade vontade no novo modelo modelo de relaçã relaçãoo familiar, nem como reconhecer os integrantes da família. Passam a ter novos pares de avós e tios, mas nem sempre os identificam desta forma. Até este momento tenho tentado privar os leitores de colocar neste livro exemplos que dizem respeito à minha experiência como madrasta e à experiência da Livia como minha enteada. Mas com sua devida permissão, citarei uma experiência que ela teve e que ela considera “divertida” com relação à figura de meu pai, porque pode exemplificar bem nossas considerações. Certa manhã, meu pai foi entregar-me um pacote de papel sulfite. Como moramos em apartamento e ele estava com pressa, pedi a Livia que buscasse o pacote lá embaixo. Quando Livia tornou a entrar no elevador, com o pacote na mão, foi abordada por outra moradora: “– Onde é que você comprou este papel? Faz tempo que estou procurando esta marca, e não encontro em lugar nenhum!” E Livia respondeu: “– Não fui eu quem comprou, foi o pai...., foi...., foi...., ah!, foi o meu avô que trouxe!”.
Quando chegou ao apartamento foi logo me contar, rindo, o que se passara. E disse para mim: “– Eu não sabia o que responder, achei mais fácil dizer que era meu avô, oras! Afinal ele é meu avô postiço, não é?!”
A incerteza de minha enteada em responder à mulher, reflete bem as novas relações familiares que ela tem de precisar para si mesma. Se meu pai “funciona” como seu avô ou não, é uma decisão que ela tomará com o tempo, dependendo do vínculo que estabelecerá com ele. Minha atitude nestas horas, que pode também não ser a correta, é a de discutir o assunto, tentando realmente compreender seus sentimentos ambíguos e dificuldades, bem como partilhar de sua descoberta de “ter um avô” (porque seus avôs, tanto maternos quanto paternos, já são falecidos). Procuro também deixar muito claro que ela não tem obrigação de fingir 144
para si mesma e para os outros que ela é neta dele se ela não se sente desta forma, e isso se estende para todas as outras relações, inclusive para a nossa. Mas muitas crianças não têm tanta liberdade para avaliar seus sentimentos e estabelecer suas relações. Se vêem divididas com o apelo dos avós, principalmente se a família substituta não recebe com carinho os pares de avós da relação anterior. As crianças podem realmente se sentir culpadas por ter avós e tios melindrados, mas elas mesmas estão longe de ter alguma culpa nestas situações. Muitas crianças se deparam com passagens realmente estressantes em suas vidas, que foram impostas pelos adultos. Têm, por exemplo, suas festas de aniversário divididas em duas, ou mesmo três: uma para os amigos da escola, outra para o pai, a madrasta e a família deles, outra ainda para a mãe e sua família. E embora ter três festas de aniversário possa ser aparentemente uma “delícia”, as crianças acham confusas todas essas divisões e no fundo gostariam mesmo é de ter uma festa única com uma família ideal. Os adultos certamente deveriam privar seus filhos de situações tão desagradáveis. Na minha opinião, se as crianças são poupadas dos problemas que dizem respeito só aos adultos, elas têm muito mais facilidade de conviver satisfatoriamente com as variantes das famílias substitutas. Outro dia pude presenciar uma cena interessante. Era aniversário do filho do primeiro casamento de uma amiga, que hoje tem um novo companheiro. O que me surpreendeu não foi o fato de estarem juntos na festa o pai pai e o padras padrasto to do menin menino, o, mas sim sim estare estarem m conver conversa sand ndoo alegr alegrem emen ente te no sofá a avó materna, a avó paterna e a “ avó postiça”, mãe do padrasto do garoto. Observando a cena, pensei o quanto o menino era “sortudo” por por ter ter uma uma famí famíli liaa co com m limi limite tess elás elásti tico coss qu quee po poss ssib ibil ilit itam am uma uma co conv nviivência harmoniosa entre todos os seus membros, e que venceram os padrõe padrõess estabele estabelecid cidos os pela famíli famíliaa nuclear nuclear ideal. ideal. Infelizmente o que podemos observar é que a cena acima é ainda uma exceção. Porque senão eu mesma não teria estado surpresa, e esse livro também não teria razão de existir. As famílias substitutas ainda enfrentam um certo descaso da sociedade, quando não a sua insatisfação com o fato de se desviarem da norma e transgredirem regras importantes que mantém aparentemente o equilíbrio social. Toda sociedade tem seus estereótipos. Aqueles que por alguma alguma razão servem servem para rotular rotular pessoas, pessoas, e servem servem de parâmeparâmetros para uma sociedade que só se reconhece através da normatização. 145
O que é normal se destaca comparativamente com o que é anormal. E certamente as famílias substitutas ainda estão mais próximas do “diferente” do que do conhecido e esperado. As madrastas também nutrem o ideal de uma família perfeita. Quando perguntadas sobre as suas expectativas com relação à formação de suas famílias, assim responderam: “Sempre quis ter uma casa com todos os filhos se dando bem, comendo e brincando saudavelmente. saudavelmente. Mas o nosso dia-a-dia não nos dá subsídios para isso...”; “ Da parte das crianças eu senti que elas gostariam de uma pessoa que fizesse todas as suas vontades. De minha parte, na época, eu pensei em ser a mãe, a esposa, enfim até tomar conta da casa.”; “Eu esperava que nossa família fosse unida, com todos os integrantes se dando bem, se respeitando e sendo afetivos. E eu tinha meu papel a cumprir”.
Nas famí famíli lias as subst substit itut utas as,, o medo medo de en enfr fren enta tarr seu seu car carát áter er diferente é comum, e faz parte das primeiras experiências de famílias deste tipo. Porque o modelo aceito de família é pertinente à primeira família nuclear. Para a madrasta, o nome socialmente aprovado e idealizado de “mãe” é substituído pelo rótulo injurioso de “madrasta”. 10 Geralmente a madrasta reage ao seu papel diferente tentando aproximá-lo o mais possível do esperado. Tenta ansiosamente encarar sua família como uma família padrão, que não tem dificuldades específicas com a sociedade. Voltando ao conto, ela é Cachinhos de Ouro tentando adentrar na casa dos ursos como se fosse um deles também. Mas logo os ursos colocam Cachinhos de Ouro para correr. Uma madrasta que finge para si mesma que sua família é igual à família nuclear, está prolongando sua angústia e sua dificuldade em encontrar um papel que lhe seja confortável. Já uma madrasta que pode aceitar suas diferenças com o modelo primário, enfrenta menos tensões no relacionamento familiar. Mas este enfrentamento com a realidade de ser diferente , não é só um trabalho para as madrastas, mas também para o pai das crianças. Muitos pais temem que em decorrência da separação e da segunda união, as crianças sejam vistas como “coitadas”, ou mesmo que sofram rejeição no ambiente escolar e social. Estes pais tendem a superproteger a criança e atribuem ao fato de as crianças serem “filhos de pais separados” qualquer comportamento que seja hostil a eles. E esta fantasia de hostilidade gratuita pode ser projetada na professora, no filho do vizinho ou na madrasta. Esta atitude na verdade pode estar encobrindo 146
a culpa que alguns homens sentem por desfazerem seus casamentos e por não estarem presentes no dia-a-dia de seus filhos. Alguns desses comportamentos podem ter reflexos no novo relacionamento. É comum, por exemplo que os pais tentem evitar qualquer discussão normal com suas companheiras na frente da criança, porque para a criança isso pode representar uma ameaça de outra separação. Uma madrasta colocou-me essa dificuldade de estabelecer uma “relação normal” com seu marido quando seus enteados estão junto: “...eu nunca posso estar de mau humor ou contradizê-lo, ou mesmo discutir qualquer assunto levantando um pouco mais a voz. As crianças logo correm para o quarto e ele fica ali, fazendo aquela cara de reprovação, pedindo para que eu fale mais baixo, que não discuta na frente dos filhos, que eles vivenciaram muitas brigas no passado e que isso os assusta...ora, eu não posso me expressar em minha própria casa, e isso me deixa realmente muito chateada...” Nessas situações o que está em jogo certamente é a
fantasia do adulto de salvar as crianças e a si mesmos de um passado triste, de curar as feridas de uma separação. Mas evitar que as crianças presenciem qualquer discussão normal entre o casal não cura feridas, apenas serve como um esparadrapo para escondê-las. Embora as diferenças estejam sendo melhor aceitas pela sociedade, ainda assim as normas legais estão longe de acompanhar a mudança. E o que caracteriza uma sociedade é ter um conjunto de leis que a regimente. Do conjunto de famílias substitutas, as que encontram mais dificuldade no âmbito legislativo é sem dúvida aquela formada por madrastas e padrastos. Em termos legais, madrastas e padrastos não existem. No Brasil, nem mesmo a Constituição Federal outorgada em 1988, que por tanto ter ressaltado os direitos e garantias individuais é denominada “Constituição Cidadã”, lembrou-se da madrasta. Longe de lhe ter sido concedido algum direito ou garantia, à madrasta restou o descaso do legislador e, principalmente, inúmeras restrições impostas pelos representantes do povo. Tanto assim que a legislação civil não reconhece nenhum vínculo de parentesco entre o enteado e a madrasta, negando-se a indicá-la como sucessora (herdeira) de seu enteados; nem mesmo ela poderá ser tutora de seu próprio enteado, caso seu companheiro, ou seja, o pai de seu enteado, sendo viúvo, venha a falecer. O legislador negou à madrasta a tutela de seu enteado, com quem convive, muitas vezes, durante anos, tendo preferido conceder o encargo, na seguinte ordem: ou ao avô paterno, ou depois, ao materno, ou na falta deste à 147
avó paterna ou materna, ou aos irmãos ou aos tios, caso não haja documento autêntico, elaborado por quem de direito, nomeando-a tutora (o direito de nomear tutor compete ao pai, à mãe, ao avô paterno e ao materno, nessa ordem e por incapacidade ou falta de uma dessas pessoas). Assim, muito embora a madrasta seja a orientadora de seu enteado, criando-o, alimentando-o, formando-o para a vida, preenchendo de fato as obrigações, as funções, os deveres que seriam inerentes à mãe natural, ela não exerce, em relação a ele, o chamado pátrio poder, nem mesmo parcialmente, não podendo administrar seus bens, representá-lo ou assisti-lo legalmente. Por outro lado, o Código Civil determina ser dever do filho, para com os pais, a prestação de “obediência, respeito e serviços próprios de sua idade e condição” (artº, inciso VII), mas em se tratando de madrasta silencia totalmente a respeito desse tema, dando oportunidade para ser interpretado que o enteado não tem dever para com ela. Toda esta omissão para com as madrastas não ocorre com as mães adotivas. As mães adotivas, possuem o direito constituído da guarda de seus filhos adotivos. E isso certamente lhes garante um conforto no que diz respeito ao reconhecimento legal de sua forma de parentesco com a criança. Num país como o nosso, repleto de burocracias, questões como herança, seguro de vida, contribuição providenciaria, pensões, etc., podem tornar-se muito complicadas se as relações de parentesco não estão estabelecidas. Tomemos o exemplo da herança para estabelecer a comparação. Um casal que adota uma criança legalmente estabelece uma relação de pai, mãe e filho, como se fosse consangüínea. No caso de um dos dois vir a falecer, a criança terá automaticamente a parte que lhe cabe na herança (ao menos que alguma parte interessada queira questionar esse vínculo). No caso de um pai biológico, seu filho e a madrasta, e a madrasta vir a falecer, seu enteado não terá direito legal à sua herança. Agora vejamos como fica a questão da separação. Se os pais adotivos se separaram, geralmente a mãe “adotiva” fica com a guarda da criança, porque socialmente isto é mais comum e esperado do que o pai tomar a guarda para si. No caso da madrasta se separar do pai biológico que já possui a guarda do filho, esta tende a permanecer com o pai (pátrio poder). Caso a madrasta queira requerê-la, terá de apelar para a justiça para postular o pátrio poder e adquirir conseqüente tutela. Estas variantes das relações das mães substitutas dizem respeito à vida cotidiana, ao mundo concreto, e não às questões afetivas. Ter ou não 148
a guarda legal de uma criança não significa que o vínculo afetivo possa ser mensurável, que seja maior ou menor dependendo dos direitos adquiridos ou constituídos. Significa que, no caso das madrastas que criam laços afetivo com os enteados, que convivem com eles o suficiente para realmente fazer parte de suas vidas, este vínculo terá que ser demonstrado, quase provado, para que questões junto a justiça possam ser solucionadas. Conheci uma mulher que foi madrasta de dois meninos pequenos. Ela era madrasta de tempo parcial e gostava muito dos enteados. Porém, ela se separou do pai das crianças. Por algum tempo, ele levava os meninos para visitá-la. “As pessoas achavam aquilo muito estranho, ele trazer os filhos de outra mulher para me verem!” Mas ela e o pai das crianças tiveram um desentendimento e ela nunca mais viu os garotos: “Eu realmente senti muita falta deles. Agora eles já têm outra madrasta e eu aprendi a conviver com minha dor...”
“O fato de não haver vínculo jurídico entre madrastas e enteados contribui para a sua ambigüidade social e cultural. Leis que dizem respeito à família não reconhecem a importância das relações entre os enteados e seus padrastos e madrastas, quer em famílias unidas pelo casamento, quer em famílias formadas pela coabitação.” 11 Esta falta de compreensão para com os sentimentos das madrastas em relação aos enteados, somado à falta do reconhecimento social e legal, fazem com que muitas madrastas resistam em desenvolver um sentimento intenso pelos enteados. Porque a qualquer momento elas podem se defrontar com sua perda, uma perda que não podem sequer reivindicar. As madrastas de tempo parcial vivenciam a perda a todo momento: no momento em que as crianças retornam a casa materna. Talvez por isso essas mulheres nem sequer se coloquem no papel de madrastas, pois supõe-se socialmente que madrasta é aquela que convive intensamente com os filhos que não são seus. Todas as madrastas com quem contatei expressaram suas dificuldades para encarar seu caráter diferente no início da relação com os enteados. Uma grande parte delas constituiu com o pai das crianças uma “família nuclear”, e isso parece diminuir a ansiedade dessas mulheres. Mas a grande maioria delas revelou sua insatisfação para com a indiferença da sociedade para seus problemas. Também se ressentem com a imagem estigmatizada de “mulher má”, e muitas relatam um certo sentimento de solidão, uma falta de “ombro amigo” que possa partilhar de 149
suas dúvidas, ajudar nas dificuldades e reconhecer seus esforços. Como Cachinhos de Ouro elas estão sozinhas na floresta, ameaçadas pelos perigos, perdidas na escuridão. Mas muitas madrastas conseguiram encontrar o caminho de casa. Algumas levaram um tempo maior para se adaptarem, outras não. Algumas tiveram a sorte de encontrar nos enteados pessoas amáveis e amadurecidas, outras se defrontaram com crianças agressivas e ciumentas. Algumas tiveram a dádiva de reconhecer no companheiro um homem adulto, maduro e compreensivo, contudo outras se defrontaram com o oposto. Algumas foram recebidas pela mãe dos enteados com simpatia e afeição; outras entretanto tiveram de lidar com ex-esposas ciumentas e raivosas. Porém, àquelas que conseguiram lidar com as diferenças de seu núcleo familiar certamente sentem-se mais seguras e fortalecidas. Embora esta falta de um lugar na sociedade e na família, coloque as madrastas vulneráveis a “quebrar a cadeira de algum urso”, na verdade seus anseios não são essencialmente o de “roubar um lugar”. As madrastas não reivindicam grandes reconhecimentos, querem apenas ser ouvidas. Certamente não é um “Dia das Madrastas” que ecoa da voz dessas mulheres. É um simples “Não me ignorem”.
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EPÍLOGO
E foramF elizes P araS empre... “Se minha madrasta for realmente operada eu estarei lá para segurar a sua mão. Afinal, ela esteve sempre ao meu lado nos momentos mais difíceis da minha vida” (uma enteada)
Se este livro começou com “Era uma vez uma madrasta...”, não poderia deixar de terminar com o famoso “E Foram Felizes para Sem pre”. Muitas pessoas questionam essa expressão. Dizem ser uma fantasia que fala muito pouco da vida real, que serve apenas para embalar o sono infantil. Outras ainda são mais radicais, acreditam que nem as crianças deveriam ser expostas a tamanha irrealidade. E eu não quero cometer o engano de parecer romântica demais, contudo acredito ser preciso sem pre vislumbrar um futuro melhor, pautado em relacionamentos amadurecidos e prazeirosos. Como nos contos de fadas, onde os heróis se defrontam com provas a ultrapassar, as madrastas da vida real também têm sua história para contar. E como vimos, essas histórias estão permeadas de dificuldades, ambigüidades e distorções. Mas todos os obstáculos da vida têm uma função primária para os indivíduos: a de promover o amadurecimento pessoal. O final feliz dos Contos de Fadas está longe de fazer parte apenas de um ideal romântico, mas tem a função de mostrar ao indivíduo que é possível encontrar soluções satisfatórias para seus problemas. As madrastas também devem trabalhar para conquistarem um “futuro melhor”. E este objetivo não diz respeito a alcançar um modelo de família perfeita e sim de obter uma clareza de idéias e sentimentos que lhe permita viver melhor. Reservar um espaço para os enteados em sua vida é permitir que eles descubram um no “coração” deles também. 151
Diante das dificuldades na relação familiar das madrastas o que se torna importante é enfrentamento dos problemas. Se a madrastas encaram seus problemas com seus enteados, com o pai deles e com tudo que envolve a dinâmica de sua família, ela provavelmente estará no caminho certo. Se puder avaliar seus sentimentos contraditórios com os enteados, puder respeitar seu lugar na vida do pai, e ainda respeitar o lugar de sua mãe, então ela pode se considerar uma vencedora. Se a sociedade resiste ainda em reconhecer na madrasta uma peça importante na engrenagem da família moderna, então não pode realmente compreender o que se passa com seus integrantes. Nunca houve tanta preocupação com a educação das crianças, sua exposição à violência, a separação dos pais e sua convivência maior com empregadas domésticas e babás. Mas poucos questionaram os sentimentos das mesmas crianças com relação às suas madrastas. Da mesma forma, nunca se discutiu tanto sobre a figura feminina. O ser mulher, o ser mãe, é alvo de tantas discussões, encontros, passeatas, está em todas revistas femininas, nos “out-doors”, nas páginas dos jornais. E o “ser madrasta” ainda se restringe as conversas íntimas e tímidas ou reduz-se as quatro paredes dos consultórios psicológicos. Há tantas madrastas, e ninguém fala delas. Em muitas das histórias que ouvi, a contribuição das madrastas para a vida dos enteados é considerada “fundamental”. Alguns enteados chegaram a reconhecer em suas madrastas uma “amiga confidente” com quem tinham longas conversas sobre sexo, drogas, conversas estas nunca travadas com a mãe biológica. Outros ainda disseram que suas madrastas “não tinham ataques” como suas mães, quando chegavam tarde ou tiravam nota baixa na escola. Um rapaz chegou à dizer que sua madrasta foi “a responsável pela aproximação entre meu pai e eu.” Da mesma forma, algumas madrastas reconhecem em seus enteados, pessoas afetivamente importantes em suas vidas, pessoas a quem podem ajudar, orientar e compartilhar momentos de alegria e satisfação. Diante desta realidade, possível e gratificante, nenhuma madrasta deve sentir-se ameaçada pelo mito da “mãe perfeita”, porque é o aprisionamento a este ideal que provoca a angústia e a sensação de nunca conseguir “chegar lá.” Nenhuma madrasta deve ressentir-se porque é a única na casa que é chamada pelo nome. Ser chamado pelo nome é ser reconhecido como indivíduo, como pessoa dotada de virtudes e defeitos, e não como alguém que desempenha um papel. 152
E finalmente, nenhuma madrasta tem o dever de amar “como uma mãe ama a um filho”, nem os enteados têm de amar suas madrastas “como se amassem a própria mãe”. Aliás, nem acho que isto seja necessário. Existem outras formas de amor possíveis para esta relação. Um amor menos possessivo, menos controlador. Um amor que diria: “Eu o amo com minha capacidade de amar a outro ser humano.”
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Manuel Sampaio. As Almas Santas da Quaresma, In Notícias da Santa Sé, www.christusrex.org/www1/news/papas 4-1-96.html. 2 Manuel Bandeira. Estrela da Vida inteira, p. 292. In Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Dicionário Aurélio , Rio de Janeiro, editora Nova Fronteira, 1ª edição. 3 Ferreira, idem. 4 Donna Smith. Madrastas: Mito & Realidade, Porto Alegre, L&PM Editores, 1995, p. 29. 5 Dicionário Prático da Língua Nacional. 6 Smith, op.cit ., pp. 86/9. 7 Florence K.Corrêa e Rachel V. Fávero. Complicações Obstétricas: fatores maternos, psicológicos e sociais, Revista ABP-APAL 13(4):143-151, 1991. 8 Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa Ilustrado. São Paulo, Abril Cultural, 1971, p. 1012. 9 Ibidem. 10 Dicionário de Sinônimos e Antônimos da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Globo, 30ª edição, p. 584. 11 In Smith, op.cit ., pp. 27/8. 12 Smith, bidem. 13 Ver cap. V deste livro. 14 Smith, op.cit ., pp. 40/1. 15 Maria Amélia Azevedo e Viviane Nogueira de A. Guerra. Pele de Asno Não é Só História, São Paulo, Editora Roca, 1988. 16 Madonna Kolbenschlag. Adeus, Bela Adormecida, São Paulo, Editora saraiva, 1991. 157
aoCapítuloI 1 Mme.
D’Aulnoy. In Contos de Perrault , São Paulo, Cultrix, 2 a edição, 1965. 2 Nelly Novaes Coelho. O Conto de Fadas, São Paulo, Editora Ática, 1991, pp. 11/5. 3 Esta fábula conta a história de uma cigarra e uma formiga. Durante o verão, a cigarra só cantava, enquanto a formiga trabalhava, buscando e guardando alimento. Porém, quando chegou o inverno, a formiga tinha como sobreviver, pois guardara alimento suficiente. A cigarra, que nada tinha guardado, ficou à mercê do frio e da fome. 4 Por exemplo, o mito de Ícaro, um jovem que, para fugir do labirinto, alçou vôo com as asas que seu pai fabricara. Porém, como voou alto demais, contrariando a recomendação de seu pai, os raios de sol derreteram a cera que fixava as suas asas, e Ícaro precipitou-se no mar. 5 Wundt, In Vladimir Propp. Morfologia do Conto Maravilhoso , Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 1984, p. 16 6 Charles Perrault. Contos de Perrault , São Paulo, Cultrix, 2 a edição, 1965. 7 Bruno Bettelheim . A Psicanálise dos Contos de Fadas, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1980, p. 239. 8 The Tale of the Dead Princess In Russian Fairy Tales, www.lacquerbox.com/tales.htm. * Tradução da autora. 9 Perrault, Ibidem. 10 Nossrat Peseschkian. O Mercador e o Papagaio , Campinas, Papirus Editora, 1992, pp. 30/40. 11 Hanna Segal. Introdução à Obra de Melanie Klein , Rio de Janeiro, Imago Editora, 1975. 12 Bettelheim, op. cit ., pp. 84/5. 13 Segal, op. cit . , p.11. 14 Coelho, op. cit ., pp. 59/60. 15 Jacob e Wilhelm Grimm. Os Contos de Grimm, São Paulo, Edições Paulinas, 1989, pp. 100/8. 16 Jacob e Wilhelm Grimm. Contos de Grimm, v. 2, São Paulo, Editora Ática, 1991, pp. 87/96. 17 Jacob e Wilhelm Grimm. Os Contos de Grimm, São Paulo, Edições Paulinas, 1989, pp. 158/60. 18 Grimm, ibid ., pp. 73/9. 19 Smith, Donna Smith. Madrastas: Mito & Realidade, Porto Alegre, L&PM Editores, 1995, p. 22. 20 Grimm, op. cit . , pp. 167/73. 21 Allan B. Chinen. ...E Foram Felizes Para Sempre, São Paulo, Cultrix, 1989, pp. 31/2. 22 Francisco da Silveira Bueno. Minidicionário da Língua Portuguesa, São Paulo, Editora FTD, Edição atualizada, p. 476. 23 Jacob e Wilhelm Grimm. Os Contos de Grimm, São Paulo, Edições Paulinas, 1989, pp. 232/6. 24 Grimm, ibid . , pp. 167/73. 25 Grimm, ibid ., pp. 90/2. 26 Grimm, ibid ., pp. 161/3. 27 Marilena de S. Chauí. Repressão Sexual: essa nossa Des(conhecida), São Paulo, Editora Brasiliense, 1985, pp. 30/5. 28 Tereza Noronha. Os 4 Levam a Melhor , São Paulo, Pioneira, 1984. 158
aoCapítuloI I 1 Wilhelm
e Jacob Grimm. Os Contos de Grimm, São Paulo, Edições Paulinas, 1989,
pp. 79/90 2 Alberto Reis O. Advincula; Lúcia Maria Magalhães e Waldir Lourenço. Teoria da Personalidade em Freud, Reich e Jung , São Paulo, EPU, 1984, pp. 27/9. 3 João e Maria , São Paulo, Editora Maltese, 1993. 4 Vladimir I. Propp. Morfologia do Conto Maravilhoso , Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 1984, pp. 31/60. * Histórias como “Branca de Neve” e “Cinderela” têm também sua versão russa. 5 Jakob e Wilhelm Grimm. Contos de Grimm, v. 2, São Paulo, Editora Ática, 1991, pp. 7/14. 6 Grimm, ibid ., pp. 71/86. 7 Jacob e Wilhelm Grimm. Os Contos de Grimm, São Paulo, Edições Paulinas, 1989, pp. 208/14. 8 Jeanette Lofas e Ruth Roosevelt In Evelyn Bassof. Entre Mãe e Filho, São Paulo, Editora Saraiva, 1996, p. 174. 9 Bruno Bettelheim. A Psicanálise dos Contos de Fadas, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1980, p.196. 10 Bettelheim, op.cit ., p.198. 11 Jacob e Wilhelm Grimm. Os Contos de Grimm, São Paulo, Edições Paulinas, 1989, pp. 126/34. 12 In Donna Smith. Madrastas: Mito & Realidade, Porto Alegre, L&PM Editores, 1995, p.63. 13 Smith, ibid ., p. 109.
aoCapítuloI I I 1 Jacob
e Wilhelm Grimm. Contos de Grimm, v. 2, São Paulo, Editora Ática, 1991,
pp. 74/5. 2 In Evelynf Bassof. Entre Mãe e Filho, São Paulo, Editora Saraiva, 1996, pp. 178/9. 3 Grimm, Ibid., p.71/86. 4 Donna Smith. Madrastas: mito & realidade, Porto Alegre, L&PM Editores, 1995, p. 25. 5 Bruno Bettelheim. A Psicanálise dos Contos de Fadas, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1980, p. 281. 6 Jacob e Wilhelm Grimm. Os Contos de Grimm, São Paulo, Edições Paulinas, 1989, pp. 134/9. 7 Bettelheim, op. cit ., pp. 284/8. * Ver p. 147/8 deste livro. 8 Charles Perrault. Contos de Perrault , São Paulo, Cultrix, 2ª edição, 1965. 9 Jacob e Wilhelm Grimm. Os Contos de Grimm, São Paulo, Edições Paulinas, 1989, pp. 100/8. 10 Jacob e Wilhelm Grimm. Contos de Grimm, v. 1., São Paulo, Editora Ática, 1993, pp. 7/22. 11 Charles Perrault. Borralheira ou O Sapatinho de Vidro , In Contos de Perrault, São Paulo, Cultrix, 2ª edição, 1965. 12 Conto Escocês: “The Princess and The Golden Shoes”, In www.ece.ucdavis.edu/ scripts/support. * Tradução da autora. 159
aoCapítuloI V 1 Jacob
e Wilhelm Grimm. Contos de Grimm, v. 2, São Paulo, Editora Ática, 1991, p. 65. 2 Grimm, ibid ., pp. 55/70. 3 Bruno Bettelheim. A Psicanálise dos Contos de Fadas, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1980, pp. 241/2. 4 Jacob e Wilhelm Grimm. Os Contos de Grimm, São Paulo, Edições Paulinas, 1989, pp. 108/17. 5 Rubem Alves. O retorno e terno, Campinas, Papirus Editora, 1993, pp. 19/22. 6 Bettelheim, op.cit ., p. 242. 7 Dicionário de Mitologia Greco-Romana, São Paulo, Abril Cultural, 1976, pp. 54/5. 8 J. Laplanche e J.-B. Pontalis. Vocabulário da Psicanálise, São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora, 1986, pp. 643/6. 9 “The Tale of The Dead Princess” , In Russian Fairy Tales, www.lacquerbox.com/ tales.htm. * Tradução da autora. 10 Bettelheim, op.cit ., pp. 239/40. 11 Charles Perrault., Pele de Asno, São Paulo, Editora Scipione, 1994. 12 Dicionário de Mitologia Greco-Romana, op. cit ., p. 73. 13 Russian Tales, ibidem.
aoCapítuloV S. Bassof., Entre Mãe e Filho, São Paulo, Editora Saraiva, 1996, p. 169. 2 Adaptação de Heloisa Maria Da Fonseca., Cachinhos de Ouro , Rio de Janeiro, Editora Brasil América, Coleção Peteleco, nº 12. 3 Madonna Kolbenschlag. Adeus Bela Adormecida, São Paulo, Editora Saraiva, 1991, p. 178. 4 Kolbenschlag, ibid . , p. 243. 5 Mark Poster. Teoria Crítica da Família , Rio de Janeiro, Editora Zahar, 1979, pp. 185/ 224. 6 Jacob e Wilhelm Grimm. Contos de Grimm, v. 2, São Paulo, Editora Ática, 1991, pp. 31/8. 7 Grimm, ibid ., pp. 55/70. 8 Grimm, ibid., pp. 87/96. 9 Donna Smith. Madrastas: Mito & Realidade, Porto Alegre, L&PM Editores, 1995, pp. 116. 10 Smith, op.cit ., p. 135. 11 Smith, op.cit ., p. 17. 1 In Evelyn
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Contos de Fadas", tem se dedicado ao estudo das representações simbólicas destas histórias e de sua importância para