Christfried Böttrich Beate Ego Friedmann Eissler
ABRAÃO no judaísmo, no cristianismo e no islamismo
ABRAÃO no judaísmo, no cristianismo e no islamismo
ABRAÃO no judaísmo, no cristianismo e no islamismo
Christfried Böttrich Beate Ego Friedmann Eissler
ABRAÃO no judaísmo, no cristianismo e no islamismo
Tradução: Milton Mota
Título original: Abraham in Judentum, Christentum und Islam
© Vandenhoeck & Ruprecht GmbH & Co. KG Christfried Böttrich; Abraham in Judentum, Christentum und Islam, Göttingen 2009 Theaterstraße 13, 37073 Göttingen, Germany ISBN 978-3-525-63398-4 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Böttrich, Christfried. Abraão no Judaísmo, no Cristianismo e no Islamismo / Christfried Böttrich, Beate Ego, Friedmann Eissler ; tradução Milton Mota. -- São Paulo : Edições Loyola, 2013. Título original: Abraham in Judentum, Christentum und Islam. Bibliografia ISBN 978-85-15-03959-3 1. Abraão (Patriarca bíblico) I. Ego, Beate. II. Eissler, Friedmann. III. Título. 12-12429
CDD-222.11092
Índices para catálogo sistemático: 1. Abraão : Patriarca bíblico : Interpretação
222.11092
Preparação: Sandra Garcia Custódio Capa: Mauro C. Naxara e Viviane B. Jeronimo Abraão e os três anjos , ilustração de Gustave Doré ( A Bíblia Sagrada ), gravada por Ligny, 1866 (gravura). Coleção privada/Ken Welsh. http://commons.wikimedia.org/wiki/ File:Abraham_and_the_Three_Angels.png Diagramação: Ronaldo Hideo Inoue Revisão: Maurício Balthazar Leal Edições Loyola Jesuítas Rua 1822, 341 – Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP T 55 11 3385 8500 F 55 11 2063 4275
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ISBN 978-85-15-03959-3 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2013
SUMÁRIO PREFÁCIO ——————————————————————
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ABRAÃO no judaísmo ————————————————————
1. 2. 3. 4.
9 INTRODUÇÃO: O AMIGO DE D EUS ——————————— 9 A TRADIÇÃO BÍBLICA DE A BRAÃO ———————————— 11 A FIGURA DE A BRAÃO NOS TEXTOS NÃO BÍBLICOS DO ANTIGO JUDAÍSMO —————————— 18 R ESUMO E PERSPECTIVA : A BRAÃO COMO FIGURA DE LEMBRANÇA E COMO FUNDAMENTO DA ESSÊNCIA DE ISRAEL ——————————
45 5. BIBLIOGRAFIA (SELEÇÃO) ——————————————— 48
ABRAÃO no cristianismo —————————————————— 53
1. INTRODUÇÃO: UMA VELHA
HISTÓRIA EM NOVA PERSPECTIVA
2. 3. 4. 5.
———————————— A BRAÃO NOS ESCRITOS DO NOVO T ESTAMENTO —————— A BRAÃO NA TRADIÇÃO CRISTÃ ————————————— P ERSPECTIVA : A CESSOS COMUNS A A BRAÃO ———————— BIBLIOGRAFIA (SELEÇÃO) ———————————————
53 57 88 95 98
ABRAÃO no islamismo ——————————————————— 101
1. INTRODUÇÃO: COMO O
ISLAMISMO NARRA SOBRE A BRAÃO
2. 3. 4. 5.
——————————— 101 A BRAÃO NO A LCORÃO ———————————————— 110 A BRAÃO NA TRADIÇÃO PÓS-A LCORÃO —————————— 145 UMA PERSPECTIVA : ECUMENISMO ABRAÂMICO? —————— 156 BIBLIOGRAFIA (SELEÇÃO) ——————————————— 161
PREFÁCIO É difícil a relação entre judeus, cristãos e muçulmanos. Mas eles eles podem haurir de uma fonte em comum: o rico tesouro das grandes narrativas bíblicas. Eles confessam um Deus único, que criou o céu e a terra. Em sua história, eles se entrelaçam e se inter-relacionam com frequência. No entanto, quanto maior a proximidade, mais nitidamente também se formam os con flitos, como sabemos. A longa história das relações judaico-cristão-mulçumanas foi frequentemente acompanhada por demarcações e hostilidades, por pogroms, cruzadas, genocídios e atos terroristas. Evidentemente houve também períodos de convivência pací fica. A época áurea da espantosa simbiose judaico-islâmica na Espanha dos séculos XI/XII, por exemplo, se inscreveu de modo inesquecível nos anais da história europeia. Personalidades individuais foram capazes de transpor os abismos das diferenças religiosas. Mas a vasta massa de fiéis continuou a ter dificuldades para ver irmãos e irmãs em seus semelhantes. As experiências de conflitos seculares têm um peso muito grande. Por isso, o entendimento comum é mais urgente do que nunca neste nosso mundo com interconexões cada vez mais estreitas. Tanto a assimetria das relações quanto a diferença estrutural das três religiões abraâmicas revelam ser uma di ficuldade especial nessa convivência. As inter-relações têm proporções diversas e pesos diferentes. As categorias teológicas de uma religião não são simplesmente compatíveis com as da outra. Todavia, para além da necessidade pragmática de encontrar uma convivência pacífica em nosso mundo moderno, ameaçado, há também uma ampla base de semelhanças teológicas. Há décadas os cristãos e judeus têm avançado bastante no reconhecimento desse fato. Em contrapartida, o diálogo com o islamismo é totalmente incipiente. Mas aqui falta principalmente ampliar, numa base de conhecimentos gerais gerai s e evidentes, o saber especial das poucas pessoas envolvidas num diálogo. É nesse ponto que este livro gostaria de dar uma contribuição. O pressuposto mais importante para todo encontro consiste em le var em conta um ao outro e obter conhecimento um do outro. Isso se revela de especial importância justamente onde as três religiões
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abraâmicas acolhem tradições comuns, pois o livro se ocupa com as figuras marcantes das narrativas bíblicas que são igualmente signi ficativas entre judeus, cristãos e muçulmanos. Nisto a tradição judaico-veterotestamentária adquire importância fundamental. Tanto os escritos do Novo Testamento como também as obras da teologia que começa no século II remetem a ela. O Alcorão e a tradição islâmica a ele conectada retomam tradições judaicas e várias tradições cristãs e lhes dão nova forma. Essas linhas deverão se tornar visíveis aqui. Trata-se, nesse processo, tanto das semelhanças que são de finidas pelo material comum quanto das diferenças que são in fluenciadas pelo contexto de cada comunidade religiosa. Ao mesmo tempo, as grandes gr andes figuras das tradições se vinculam a importantes campos temáticos. Este livro sobre Abraão é dedicado à fundamental questão sobre o significado da crença em Deus. A experiência experiência nos diz que o medo do estranho é maior onde não o conhecemos ou o conhecemos apenas vagamente. Portanto, se este livro puder transmitir conhecimentos fundamentais, teremos dado um passo importante para o entendimento comum. Nesse processo, o olhar sobre a crença do outro e sobre o que lhe é importante faz nossa própria tradição reaparecer numa luz inteiramente nova. Este livro pretende ser um estímulo para isso. As três partes do livro foram escritas com toda a necessária ex pertise em teologia judaica, cristã e islâmica, mas de um ponto de vista cristão comum. O público leitor almejado será muito provavelmente um grupo predominantemente cristão. No entanto, damos prioridade ao esforço de fazer justiça, tanto quanto possível, à compreensão que os judeus, cristãos e muçulmanos têm de si mesmos. Pois, apesar de toda a busca por semelhanças, não se pode tratar de apagar as fronteiras para criar uma grande uniformidade. Ao contrário, a atenção imparcial de uns aos outros deve também possibilitar uma conversa instruída e construtiva. Nada mais apropriado do que promover um diálogo inter-religioso a partir da figura de Abraão. As três religiões “abraâmicas” se reencontram em seu nome para um diálogo. A antiga promessa de bênção, que em todas as três religiões vincula Abraão ao mundo das nações, também fortalece a esperança numa convivência nova, liberta.
Beate Ego
ABRAÃO no judaísmo
1 INTRODUÇÃO: O AMIGO DE DEUS É por um acaso histórico que hoje possuímos uma representação plástica de Abraão oriunda da época do judaísmo antigo: pois, quando os habitantes da cidade Dura-Europos, às margens do Eufrates, em 256 d.C., quiseram se proteger da aproximação dos sassânidas, eles, sem hesitar, encheram de areia os recintos da sinagoga, situada diretamente atrás da muralha da cidade, a fim de reforçar as fortificações desta última. A situação era tão ameaçadora que ninguém pôde se preocupar com as pinturas murais, que tinham sido trazidas apenas poucos anos antes na restauração da sinagoga e retratavam diversas cenas bíblicas. Desse modo, várias gerações depois, nas décadas de 1920 e 1930, os arqueólogos encontraram inúmeros afrescos durante a escavação da cidade, quase totalmente preservados porque a areia e o clima quente os haviam conservado por séculos a fio — e entre eles se encontrava uma representação de Abraão: um homem idoso, vestido numa túnica, está de pé sob o firmamento e olha diretamente para nós. Quem é esse Abraão? São variadas as imagens literárias de Abraão que conhecemos da Bíblia hebraica e das incontáveis tradições do judaísmo antigo que surgiram nos séculos antes e depois da virada dos séculos
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I a.C./I d.C. A tradição bíblica o chama pela primeira vez de “amigo de Deus” (Is 41,8), exprimindo com isso que essa figura tinha relação especial, estreita com Deus. Com efeito, isso se torna nítido não apenas na tradição bíblica de Abraão, mas também num grande número de narrativas tardio-judaicas posteriores: Abraão, que busca o Deus único, verdadeiro; Abraão, que já antes da entrega da Torá de Moisés no Sinai é fielmente devoto à lei divina; Abraão, que instrui a humanidade nas ciências e nas artes. Em todos esses temas, dos quais ouviremos a seguir, refletem-se ideais de diferentes correntes em Israel e no judaísmo antigo. Eles também mostram a maneira criativa com que o judaísmo antigo lidou com suas tradições e como as pessoas viveram com essas e nessas tradições de sua história. As tradições não pertencem ao passado, mas servem para formar o presente. No entanto, essas tradições revelam pouco sobre o Abraão histórico. Segundo a cronologia bíblica, o período dos patriarcas data do início do segundo milênio a.C. Os textos bíblicos e do judaísmo inicial surgiram, portanto, mais de 1000, se não 2000 anos após esse “período dos patriarcas”. O que também di ficulta uma busca de vestígios históricos é o fato de não existir nenhum testemunho extrabíblico para Abraão e os outros patriarcas e matriarcas de Israel. Então só podemos fazer constatações bastante gerais: o mundo da vida de Abraão, como também o dos outros patriarcas e matriarcas, é o mundo dos nômades das montanhas, que viviam à margem e nas regiões menos frutíferas da terra cultivada e se nutriam dos produtos de suas ovelhas e cabras. Seu modo de vida, seus nomes e também seus costumes jurídicos se encaixam bem na imagem que podemos obter de outros textos acerca do mundo do Oriente Médio do final da Idade do Bronze. Desse modo, pode-se supor que na narrativa sobre Abraão — como também nas histórias em torno de Isaac e Jacó e suas mulheres — se espelhe a memória de que a confederação das tribos de Israel possui, ao menos em parte, um passado nômade. No final da Idade do Bronze, nômades da terra cultivada se uniram a outros grupos, que tinham raízes nas cidades cananeias ou no deserto, fora do país. Aqui o grupo mais proeminente é o assim chamado grupo do êxodo, vindo do Egito. A profissão de fé no Deus único, YHWH, unia-os a todos. Assim como vários grupos se juntaram formando a grande Israel, com o passar do tempo diferentes histórias sobre sua origem também formaram aquela grande obra total de que hoje dispomos nos livros do Pentateuco. Esse testemunho exprime
claramente que Israel pode conceber sua existência apenas como uma história da proteção divina e da bênção divina, que é atribuída a esse povo antes de todos os outros e o distingue radicalmente deles. Esses temas foram amplamente discutidos nos estudos do Antigo Testamento, mas não podem ser desenvolvidos aqui. É, antes, o Abraão como figura literária que deve estar no centro do interesse de nossas explanações. Após um panorama sobre os textos bíblicos de Abraão e uma breve reflexão sobre a história de sua gênese, deverão ser apresentados principalmente os temas fulcrais da tradição de Abraão do judaísmo antigo. Como o espaço dado aqui não permite analisar detalhadamente todos os textos, vamos escolher ênfases diversas e iluminar suas diferentes facetas. Um capítulo final apontará alguns outros temas da tradição abraâmica do judaísmo antigo e tentará resumir suas linhas essenciais. Abraão aparece como representante do conhecimento verdadeiro de Deus e como um tipo de “ figura limítrofe”, que se encontra entre Israel e o mundo das nações; nele se espelha tanto a crença de Israel em Deus como também sua relação com as nações.
2 A TRADIÇÃO BÍBLICA DE A BRAÃO O ponto de partida para todas as observações sobre Abraão e sua família é a história bíblica de Abraão que se encontra em Gênesis 12,1– 25,11. Essa história, que se inicia com o chamado divino a Abraão e termina com sua morte, liga-se diretamente à pré-história bíblica com suas incontáveis genealogias. De Shem, um dos três filhos de Noé, procedem na linha de Arpakshad muitas gerações, até que finalmente se apresenta Térah como pai de “Abrão, Nahor e Haran” (Gn 11,26). É só depois disso que a sóbria sequência de gerações é interrompida. Pois agora ficamos sabendo que Haran morre em Ur ainda enquanto seu pai está vivo. Abrão e Nahor se casam, mas a esposa de Abrão, Sarai, é estéril. Em seguida, Térah conduz todos os membros da família para Harran, uma cidade no norte da Mesopotâmia, onde morre aos 205 anos. Portanto, aqui se fala pela primeira vez de Abraão e Sara, mas o que chama a atenção é que eles são inicialmente apresentados sob os nomes menos conhecidos “Abrão” e
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“Sarai”. Posteriormente ainda ouviremos mais coisas sobre isso. Em todo caso, a narrativa de Abraão propriamente dita se inicia apenas após essa sóbria enumeração de fatos genealógicos. Pois agora podemos ouvir em Gênesis 12,1-3 as célebres palavras segundo as quais Abrão deve deixar sua pátria, sua família e a casa do pai e Deus lhe promete uma grande descendência e bênção (Gn 12,1-3). Portanto, da sequência de gerações saem uma figura única e um evento único, que se tornam o ponto central de uma história. Aí ainda ocorre algo totalmente inesperado: o evento mundano abre-se para uma esfera transcendente: o próprio Deus fala a Abrão com suas promessas e sua palavra de bênção. Nenhuma palavra na narração bíblica nos diz quando isso aconteceu, em que momento, em que ano, em que período do ano ou do dia — tampouco ficamos sabendo por que isso ocorreu e por que é justamente Abrão para quem Deus se volta falando. Encontramos, isto sim, uma extrema redução ao essencial: um homem é abordado por Deus, ele deve abandonar seu ambiente, com que está familiarizado, e mudar para uma terra estranha, desconhecida. O caráter dramático dessa ordem é estilisticamente sublinhado: enquanto o lugar de partida de Abrão é precisamente indicado em círculos concêntricos com os três conceitos “terra, família, casa paterna”, a descrição do destino de sua viagem, “a terra que Deus lhe mostrará”, é deixada totalmente aberta. Inicialmente não sabemos nada sobre a direção, nem a situação, muito menos o nome do lugar para o qual Abrão, o filho de Térah, deve se dirigir. É só em seguida que deve ficar claro que se trata aqui da terra de Canaã. A exortação de Deus a Abrão está ligada a uma palavra de bênção: Deus lhe promete fazer dele um grande povo e proporcionarlhe fama e honra. O final da seção com o imperativo “Tu sejas uma bênção” (Gn 12,2) mostra que Abrão tem também a missão de transmitir a bênção recebida de Deus. Por fim, fica claro que aqueles que aceitam Abrão como portador da bênção podem participar da força da bênção. Os que, porém, negarem a Abrão a força de bênção, os que o amaldiçoarem, estes serão, por sua vez, amaldiçoados. A última sentença da seção resume tudo concisamente: em Abrão serão abençoadas todas as famílias da terra. A bênção dada a Abrão transborda, por assim dizer, e vale para todas as famílias da terra. Levando em conta a Bíblia como um todo, essas audazes declarações devem ser lidas no contexto da pré-história: com a história da expulsão do Pa-
raíso, as narrativas de Caim e Abel e a construção da Torre de Babel, essa pré-história foi, em grande medida, uma história de redução de vida; no entanto, com Abrão retorna ao mundo a bênção, que a partir dele se propaga para o mundo das nações. Sem questionamento, sem hesitação e sem dúvida, Abrão, juntamente com sua mulher, Sarai, seu sobrinho Lot e seus servos, se põe a caminho, em direção à terra até então desconhecida. Chegando a Canaã, Abrão vai primeiramente até Siquém. Deus promete essa terra a seus descendentes; Abrão reage a isso construindo um altar para Deus e in vocando seu nome. Por fim, passando por Betel, onde também ocorre a construção de um altar, Abrão deslocou-se até o sul da região, de modo que ele, por assim dizer, simbolicamente atravessou o país todo. Nessa abertura da narrativa de Abraão são explicitados os temas centrais da história bíblica de Abraão, da descendência e da terra; pela temática “descendência”, também Sarai, a esposa de Abrão, é, ao mesmo tempo, indiretamente envolvida como figura fundamental da ação. O primeiro tema determinante da narrativa bíblica de Abraão é o cumprimento da promessa da descendência. A promessa de Deus no início da narrativa segundo a qual ele pretende fazer de Abrão um grande povo enfrenta alguns obstáculos. Com base em Gênesis 11,30, já sabemos da esterilidade de Sarai; além disso, ao sair de Harran, Abrão já está com 75 anos. Mas a situação se agravará ainda mais a seguir: um período de fome obriga Abrão a ir com sua mulher para o Egito, o celeiro da Palestina. Lá, a condição da futura matriarca é ameaçada pelo faraó, que cobiça Sarai por causa de sua beleza. Abrão, para defesa própria, alega que Sarai é sua irmã, a qual é, de fato, levada para a corte do faraó. Deus, no entanto, resgata Sarai. Agora, Abrão e Sarai, com ricos presentes, deixam o Egito e no vamente sobem para Canaã (12,10-20). As opiniões diferem quanto a essa narrativa: enquanto alguns intérpretes pretendem descobrir aqui a pouca fé de Abrão, até mesmo sua covardia, outros veem a narrativa como uma prova da inteligência e da astúcia do patriarca. Se seguimos o fio narrativo da promessa de descendência, vemos, então, que a história em Gênesis 15 desempenha um papel extraordinário. Deus responde à queixa de Abrão com a promessa de que sua descendência será tão numerosa quanto as estrelas no céu; Abrão confia na palavra divina, e isso lhe “é imputado como justiça” (Gn 15,6). O caráter apropriado e correto de sua conduta é, portanto,
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reconhecido por Deus. Abrão se torna o “pai da fé” e o protótipo de uma existência que agrada a Deus. E o capítulo seguinte, 16, também se dedica ao tema da descendência de Abrão: em virtude da esterilidade de Sarai, Abrão e ela resol vem servir-se de Hagar, a serva egípcia, como mãe de aluguel — segundo testemunhos extrabíblicos, esse era um costume legal, também habitual em outras partes no Antigo Oriente, como, por exemplo, na Babilônia. Dessa relação de Abrão com Hagar nasce Ismael, que se torna progenitor de um povo livre e agreste do deserto (16,1-16). Aqui também alguns intérpretes pretendem ver um indício da pusilanimidade de Abrão e de sua escassa con fiança em Deus. Mas, se Deus fez a Abrão a promessa de que ele se tornaria o pai de muitos povos, então já se deu com essa história o primeiro passo para alcançar esse objetivo. Gênesis 17 narra outro episódio em que Deus assegura a Abrão — e também a Sarai — a promessa de uma grande descendência. Essa promessa é chamada aqui de “aliança” ( berit em hebraico). Pois quando Abrão já está com 99 anos Deus lhe promete que ele terá uma rica descendência. Aqui o nome “Abrão” muda para “Abraão”. Supostamente esses dois nomes eram originalmente apenas duas formas do mesmo nome próprio semítico, que significa tanto “O pai (da tribo) é elevado” ou “O pai (como designação do Deus protetor) é elevado”. Em Gênesis 17, o nome “Abraão” é interpretado num jogo de palavra como “pai de muitos povos” (em hebraico: av-hamon), tornandose assim símbolo da promessa divina. A relação entre Deus e Abraão refere-se à descendência de Abraão, como vemos numa fala de Deus: “Estabelecerei minha aliança entre mim e ti e, depois de ti, as gerações que descenderão de ti; esta aliança perene fará de mim teu Deus e o da tua descendência depois de ti” (Gn 17,7). O sinal dessa aliança é a circuncisão, que deve ocorrer no oitavo dia de vida de um menino. Aqui também se dá a mudança de nome de “Sarai” para “Sara”, como também ocorre a promessa de que ela terá um filho (Gn 17,19). Após a visita dos três homens a Abraão e a Sara em Mamrê, em que eles podem experimentar a hospitalidade de Sara e Abraão e profetizam a esta que ela realmente terá um filho em um ano, Gênesis 21 relata o nascimento dessa criança. Ela recebe o nome de Isaac, o que literalmente significa “ri-se, ou ele ri”. Uma interpretação desse nome é dada pela própria Sara, quando ela diz: “Deus me deu de que rir. Todo aquele que souber disto há de rir a meu respeito” (21,6). Supostamente isso
não deve significar que rirão de Sara por causa de seu “ filho tardio”, mas sim aponta a alegria de seus semelhantes. Além disso, Sara exprime com suas próprias palavras o lado transcendente do evento: a criança desejada é um presente de Deus!. Em face dessa história, aquilo que se narra a seguir tem efeito de um balde de água fria: depois da desunião entre Isaac e Ismael (21,921), Abraão deve sacri ficar seu amado filho Isaac por ordem de Deus e assim demonstrar sua incondicional obediência à palavra divina. Somente no último minuto Isaac é salvo pela intervenção de Deus, e são sobretudo a fé e a con fiança de Abraão que devem ser realçadas nessa narrativa (Gn 22). Depois da morte de Sara, Abraão se casa com Qeturá, que se tornará mãe de seis filhos, os quais, juntamente com seus descendentes, se tornam progenitores de povos que habitam as regiões desérticas (25,1-6). O segundo tema fundamental, o tema da terra, é desdobrado após a abertura em Gênesis 12,1-9 com a história da separação de Lot. Visto que a terra tinha se tornado muito pequena para Abraão e Lot e seus rebanhos, Lot se separa de Abraão e passa a morar em Sodoma, na região ainda frutífera naquela época junto ao Mar Morto (Gn 13,6-12). A coisa mais notável nessa narrativa é a generosidade de Abraão, pois ele deixa a terra mais produtiva para o sobrinho. No final da narrativa, ocorre outro reforço da promessa da terra (Gn 13,14-18). Depois da peculiar história da firmação de aliança entre as metades dos animais, em que Deus novamente promete a Abraão a futura posse da terra (Gn 15,13), o tema da posse da terra também vem à baila em Gênesis 21,22-34: por causa do direito a um poço, ocorrem confrontações com os servos do rei filisteu Abimeleque; mas Abraão consegue dirimir as rixas mediante um acordo contratual, criando com isso uma base de vida próspera para as duas partes. Além disso, a temática da terra aparece também em Gênesis 23: Abraão adquire a caverna de Makpelá em Hebron de seu proprietário original, um hetita, para ali enterrar sua esposa Sara, que havia falecido nesse meio-tempo. Com isso ele se torna proprietário legal de uma porção, ainda que pequena, da terra prometida. Por fim, a história de Abraão contém outras narrativas que estão vinculadas à figura de Lot. Depois de ter se estabelecido junto ao Mar Morto, Lot é capturado numa confrontação militar de diferentes reis e levado com todos seus bens para o norte do país. Assim que Abraão
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tem notícia dessa história, ele corre para salvar seu sobrinho. Depois de seu retorno, ele se encontra com Melquisedeque, o sacerdote da cidade de Shalêm, que abençoa Abraão. Este, por sua vez, reconhece o governo dele e lhe dá o dízimo de tudo — certamente do butim de guerra, no contexto presente. À parte isso, Abraão demonstra sua abnegação ao renunciar a todo o butim de guerra (Gn 14). Finalmente, Lot é surpreendido por um destino singular: como as pessoas de sua cidade, Sodoma, trataram com violência os anjos que visitavam Lot, as cidades de Sodoma e Gomorra são aniquiladas (Gn 19,1-29). Apenas Lot, juntamente com suas filhas, pode se salvar, refugiando-se nas montanhas. Por uma relação incestuosa com suas filhas, Lot se torna o progenitor dos moabitas e amonitas, dois dos povos vizinhos de Israel, que habitam a região ao leste do Mar Morto (Gn 19,30-38). Assim sendo, podemos fazer o seguinte resumo da narrativa bíblica de Abraão: Abraão aparece aqui como uma forma ideal. No que diz respeito ao seu próprio povo, ele prova ser corajoso e altruísta, em relação aos estranhos ele é hospitaleiro e inclinado ao equilíbrio e à paz — até mesmo astuto para evitar derramamento de sangue e atos de violência. Enquanto a promessa da terra é realizada apenas em parte, o cumprimento da promessa divina da descendência é amplamente representado. Aqui é decisivo o fato de que a bênção prometida por Deus deve passar tanto para Isaac quanto para Ismael; à figura de Isaac — que, por sua vez, é o pai de Jacó, o progenitor de Israel — atribui-se um peso especial, pois ele também deverá firmar aliança com Deus (Gn 17,21). Apesar de a história bíblica de Abraão se apresentar, em geral, como uma história coerente, contínua, ela não pode ser remetida a um único autor. Ao contrário, a narrativa bíblica sobre Abraão “cresceu” num longo processo, que certamente durou vários séculos. Isso é o que mostram as seguintes repetições: o tema da ameaça à ancestral aparece tanto em Gênesis 12,10-20 como em Gênesis 20,1-18; a expulsão de Hagar para o deserto também é narrada duas vezes, em Gênesis 16,613 e Gênesis 21,9-21. A isso ainda se acrescenta o fato de que a história exibe inúmeras diferenças estilísticas, o que fica claro principalmente quando se lê e estuda o texto em sua língua original, o hebraico. A pesquisa veterotestamentária discute há vários anos, e abundantemente, como devemos conceber o crescimento desse texto em detalhes; mas ainda está longe um consenso entre os estudiosos. Como essa problemática complexa não pode ser analisada no espaço de que dispomos
aqui, algumas indicações devem ser su ficientes. Com certeza, no início do processo da tradição há tradições orais, e também se deve supor que o ciclo narrativo Abraão-Sara, que no sentido mais amplo gira em torno do nascimento do filho desejado (Gn 12*.16*.18*.21*), como também o ciclo narrativo Abraão-Lot (Gn 13*.18*.19*) pertenciam às partes mais antigas dessa história, que derivam do período pré-exílico. Com o passar do tempo, essa base foi “enriquecida” por outras narrati vas, como, por exemplo, a história da ancestral na corte de Abimeleque (Gn 20). É de importância decisiva a ligação do material com o assim chamado escrito sacerdotal, que nasceu como reação à experiência do exílio de Israel. As narrativas individuais são unidas por genealogias e dados temporais sucintos numa estrutura genealógica e cronológica mais ampla e teologicamente preenchida. No âmbito textual de que tratamos, essa “teologização” se mostra de modo especialmente claro na tradição da aliança firmada com Abraão e na circuncisão (Gn 17). Esse capítulo, ao lado de Gênesis 23, é a única narrativa sacerdotal em toda a tradição de Abraão; à parte isso, essa camada contém apenas notas escassas (Gn 12,4b.5; 16,1a.3.15; 21,1b-5; 25,7-11a). Algumas partes da tradição de Abraão são subordinadas àquela grande corrente teológica chamada “deuteronomística” nos estudos sobre o Antigo Testamento. Ela foi supostamente inserida no texto apenas quando o escrito sacerdotal foi vinculado à obra histórica deuteronomística (Gn 15,6; 18,19; 22,15-18; 26,3b-5). Nesse crescimento da tradição de Abraão se espelha também uma parte da história de fé de Israel. Isso pode ser desdobrado exemplarmente na narração da aliança e da circuncisão: se a promessa a Abraão, que também inclui as gerações seguintes, pode ser designada pelo termo “aliança” (em hebraico berit) e ser, além disso, conectada a um sinal, então fica claro que as tradições existentes são, de certo modo, ajustadas à situação atual: no tempo do exílio, Israel se encontrava numa situação de crise, pois em face da perda do reinado, do templo e da terra surgiram fortes dúvidas sobre até que ponto YHWH estava do lado de seu povo. A narrativa em Gênesis 17 pode ser perfeitamente entendida como atenuação dessa crise de fé. Na remissão à pré-história e ao progenitor de Israel, apresenta-se a relação especial entre Deus e Israel como uma aliança, uma relação que experimenta, por meio de um sinal corpóreo, uma simbolização direta. Outro exemplo para essa “atualização” da tradição de Abraão
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e de seu ajuste aos valores do presente é representado pela estilização de Abraão como uma figura fiel à lei divina, sobre a qual falaremos mais tarde com mais detalhes. Mas também outros textos bíblicos, fora da história de Abraão propriamente dita, mostram o significado que essa figura tinha para Israel no período do exílio. Assim, um pequeno trecho do livro de Ezequiel, que também pode ser datado do período do exílio, atesta que aqueles que permaneceram na terra eram considerados os verdadeiros filhos e com base nisso fundamentavam sua reivindicação à terra (Ez 33,24). O profeta Dêutero-Isaías, por sua vez, aponta para o fato de Deus ter abençoado Abraão e ter-lhe dado descendência, pretendendo com isso exortar Israel a também confiar na intervenção salvífica de Deus e em sua misericórdia para com seu povo nas situações atuais de penúria. O objetivo que essas palavras almejam aqui é a reconstrução de Sião, de cujo deserto deve nascer uma espécie de paraíso (Is 51,1-3). Assim, esses textos bíblicos atestam que, já na época em que a narrativa bíblica de Abraão ainda estava crescendo, as tradições como tais eram produtivamente acolhidas também fora dessa grandeza literária ainda em formação e que atuavam com vistas à superação da crise atual. Abraão representa, com a recepção da bênção e da promessa divina, uma figura ideal da relação com Deus; e como ele é, pura e simplesmente, o representante de Israel, ele pode ao mesmo tempo fortalecer a esperança no presente cumprimento dessa idealidade.
3 A FIGURA DE A BRAÃO NOS TEXTOS NÃO BÍBLICOS DO ANTIGO JUDAÍSMO
3.1. ELEMENTOS FUNDAMENTAIS: AS FONTES A figura de Abraão, que as histórias bíblicas dos progenitores narram tão detalhadamente, também desempenha um papel importante na literatura do antigo judaísmo, que surgiu nos séculos antes e depois da virada dos séculos I a.C./I d.C em face de eventos históricos significativos no período helenístico e romano. De um lado, lacunas narrativas da tradição bíblica são preenchidas e, de outro, determinados traços
narrativos recebem mais adornos, de modo que a história básica bíblica experimenta ênfases totalmente novas. Várias fontes, que são também em parte bastante distintas, desempenham um papel decisivo nesse processo de tradição. Como fontes mais importantes devemos inicialmente citar aquelas obras que recontam de modo relativamente livre os conteúdos bíblicos e que são chamadas pelos estudiosos de rewritten Bible. Aqui se devem indicar em primeiro lugar o assim chamado Livro dos jubileus, que surgiu no contexto da revolta macabeia, ou as Antiguidades bíblicas e o Apocalipse de Abraão: essas duas últimas obras podem ser datadas na década após a destruição do segundo templo no ano 70. Uma re-narração das narrativas bíblicas encontra-se também nas Antiguidades judaicas do historiógrafo Josefo (cerca de 38-100 d.C.), que foi testemunha contemporânea da guerra judaica contra os romanos e da destruição do templo de Jerusalém (66-70 d.C.). Mas, enquanto os textos da rewritten Bible foram compostos em hebraico ou aramaico, Josefo escreveu sua obra em grego. Isso também está ligado especialmente à intenção desse autor: Josefo era inicialmente comandante na guerra judaica contra Roma. Depois de sua detenção na batalha de 67 d.C., ele viveu e trabalhou no acampamento do general Vespasiano ou de seu sucessor Tito. Ele foi com este último para Roma depois da vitória dos romanos; lá ele obteve a cidadania romana, como também uma pensão da casa imperial. Em Roma ele compôs suas obras. Escrevia principalmente para as pessoas instruídas de Roma, às quais ele queria mostrar que seu próprio povo possuía um alto nível cultural e não era de modo algum um povo formado por fanáticos violentos — como talvez os ataques dos zelotas fizessem pensar. Para a apresentação da figura de Abraão é de principal importância sua obra Antiquitates judaicorum, as Antiguidades judaicas, que foi publicada no início da década de 90 em Roma. A obra do judeu filósofo da religião Fílon, que viveu na virada dos séculos I a.C/I d.C. na Alexandria egípcia (20 a.C. a 40 d.C.), também é marcada por um interesse apologético. Havia nessa cidade uma grande comunidade da diáspora judaica. Fílon escreveu dois grandes tratados sobre nosso tema, a saber, Sobre Abraão ( De Abrahamo) e Sobre a peregrinação de Abraão ( De migratione Abrahami). Outras referências à figura de Abraão se encontram, em contexto secundário, em sua obra Sobre as virtudes ( De virtutibus), § 212-217. É característico das exegeses
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bíblicas de Fílon o fato de ele expor tanto o signi ficado literal como também o significado alegórico dos textos. Para a tradição de Abraão isso significa concretamente: além de uma renarração parafraseante da história bíblica, ocorre uma interpretação alegórica dos textos bíblicos, que entendem alguns elementos como indicações de eventos abstratos. Esse tipo alegórico de interpretação foi adotado do mundo do pensamento grego, onde ele era importante sobretudo para as exegeses de Homero. Visto que velhos mitos sobre os deuses e suas lutas não eram mais atuais, desenvolveu-se depois de longos processos, principalmente na Alexandria desde o século III d.C, um sistema que podia ler as velhas narrativas no sentido figurado como indícios de princípios mais profundos, mais abstratos. Nesse contexto, a obra de Fílon pode, de certo modo, ser caracterizada como uma síntese que une a tradição judaica, biblicamente marcada, e a cultura grega e seus valores. Com isso, ele faz justiça tanto às exigências da tradição judaica, para as quais os textos bíblicos em seu sentido literal eram signi ficativos para a constituição da identidade, como também às exigências da tradição filosófica científica de Alexandria. Além disso, ele também pode mostrar que os textos bíblicos não apenas são de particular interesse para o povo, mas também contêm um componente universal. Os textos rabínicos do assim chamado midrash têm, por sua vez, um caráter totalmente diferente. Essa literatura, que surgiu nas décadas e nos séculos depois da destruição do templo de Jerusalém, no ano 70 d.C., comenta os textos bíblicos rapidamente. A uma citação bíblica se segue a interpretação, que, com relativa liberdade, complementa muitos detalhes narrativos novos e em parte surpreendentes, conferindo assim profundidade e concretude ao texto bíblico. Com relação à visão rabínica da figura de Abraão, o midrash Bereshit Rabba, a interpretação do livro de Gênesis, fica em primeiro lugar; nessas amplas informações, além disso, existem ainda inúmeras outras interpretações de versículos bíblicos que — muitas vezes de modo completamente inesperado — podem ser relacionados a Abraão.
3.2. A BRAÃO COMO PAI DE MUITAS NAÇÕES A tradição bíblica apresenta Abraão como o “pai de muitas nações”, pois dele devem se originar não apenas o povo de Israel, mas também
a descendência de Ismael e os filhos de Qeturá, que são todos, por sua vez, considerados progenitores de diferentes nações. No contexto de que Abraão é avô não apenas de Jacó, mas também de Esaú, abre-se, além disso, outra linha genealógica. Esse papel de Abraão como pai de muitas nações, que é indicado na tradição bíblica, recebe formas totalmente diferentes nas diversas tradições do judaísmo antigo e da Idade Média. Um olhar sobre as tradições mais antigas do período helenístico mostra inicialmente que tal visão não encontrava aprovação unânime. Aqui são instrutivas, em primeiro lugar, as declarações sobre a circuncisão no Livro dos jubileus. De um modo semelhante ao relato bíblico em Gênesis 17, Deus ordena a Abraão circuncidar todos os filhos no oitavo dia. A circuncisão é aqui ligada à ideia dos anjos ou demônios. Israel, cuja tarefa é circuncidar os filhos no oitavo dia, é protegido pelos anjos, ao passo que Deus entregou aos demônios os outros povos, que também estavam sob sua esfera de poder. Além disso, o narrador salienta aqui o tema que já soou no texto bíblico segundo o qual todo aquele que não observa o mandamento da circuncisão merece a morte. Enquanto o texto bíblico relaciona esse mandamento aos membros do povo de Israel e relata de modo bastante geral que Ismael, com quem Deus não estabelece nenhuma aliança e que, no entanto, está sob a bênção divina e também foi circuncidado (Gn 17,20 s.25 s.), o Livro dos jubileus explicitamente exclui do evento da promessa divina esse descendente, como também o neto de Abraão Esaú, nascido mais tarde; o Livro dos jubileus também salienta que Deus não se “aproximou” deles e não os elegeu. Todos os povos que não Israel são dominados por demônios ( Livro dos jubileus, 15,26-32). Como Karl-Josef Kuschel mostrou claramente, Abraão é aqui inequivocamente reivindicado como propriedade de Israel e apenas seus descendentes são considerados receptores da bênção divina. Com isso o papel de ser pai de muitas nações é parcialmente relativizado. O contexto em que surgiu o Livro dos jubileus torna compreensí vel essa atitude negativa para com os outros povos, que praticamente os demoniza. O judaísmo dessa época estava profundamente dividido: enquanto uma parte se abria para a cultura helenística, outro círculo defendia uma posição mais conservadora, que salientava a posição especial de Israel e a importância da Torá. Depois de uma rebelião conduzida pela família dos macabeus, houve finalmente uma
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confrontação ativa com o poder de ocupação grego. O judaísmo conservador se encontrava na defensiva e tinha de se separar ostensivamente de todos os estrangeiros. Apenas poucas décadas depois, encontramos um cenário totalmente diferente quando olhamos as narrativas nos livros dos Macabeus. Neles se narra como as antigas lutas por liberdade geraram uma dinastia. Por meio do sucesso militar e de uma habilidosa política de aliança, a família dos macabeus, com o passar do tempo, conseguiu se livrar da soberania selêucida e construir uma dinastia poderosa. Para criar um contrapeso em relação aos gregos, o macabeu Jônatan (161143 a.C.) intensi fica contatos amigáveis com os romanos e os espartanos, apresentando-lhes seus cumprimentos numa carta e pedindo a renovação de uma aliança que já tinha sido estabelecida antes. Se Jônatan também salienta expressamente que seu povo superou as a flições passadas na luta contra os reis ao seu redor sem nenhum apoio militar, mas apenas com a ajuda de Deus, então fica implicitamente claro que Jônatan também estava contando com auxílio futuro no caso de guerra. Nesse contexto, o narrador indica uma carta que o rei de Esparta teria enviado ao sumo sacerdote Onias. Pois ela diz: Descobriu-se num texto que os espartanos e os judeus são irmãos, pois ambos os povos descendem de Abraão. E, agora que temos conhecimento disso, conviria que nos escrevêsseis sobre vossa prosperidade. De nossa parte respondemo-vos que vossos rebanhos e vossos bens são nossos, e os nossos serão vossos (1Mc 12,21).
A remissão a Abraão assegura uma aliança pragmática militar, de certo modo, por linhas de parentesco e a remete, por assim dizer, a causas naturais. Essa maneira franca de abordar o parentesco de Abraão com os povos é também reproduzida na obra do historiógrafo judeu Josefo. Assim, ele sabe que Ismael tinha uma mulher do Egito, que lhe gerou doze filhos, que habitaram a região do Eufrates até o Mar Vermelho e deram seus nomes às tribos dos árabes tanto “por consideração à sua própria eficiência” como também “por honra a Abraão” ( Antiguidades judaicas I 12,4). Os filhos de sua última mulher e os filhos deles, que se distinguiam “por força física bruta [sic!] e por aguçada inteligência” ( Antiguidades judaicas I 15,1), até mesmo lançaram a ponte para a África e
o mundo grego. Os dois filhos de Qeturá, Afras e Afer, dos quais se deriva o nome “África” (segundo a terminologia grega, a região em torno de Cartago), teriam — como diz Josefo referindo-se a Alexandre Polihistor e Cleodemos — conduzido uma batalha com Heracles contra a Líbia e certo Anteu. Esse Heracles, por sua vez, se casou com a filha de Afras, gerando com ela o filho Diodoro. Este, por seu turno, tornou-se pai de Sophax, que deu nome ao povo dos sofacos. Ainda que os contextos geográfico e etnográfico destas informações não possam ser todos esclarecidos aqui, fica claro que as relações de parentesco de Abraão são bastante expandidas se comparadas com as da Bíblia. Ao contrário dos dados bíblicos, o parentesco de Abraão vai além dos povos vizinhos imediatos da Palestina, pois agora ele também é vinculado aos povos da África. Essas breves informações sobre o parentesco de Abraão retomam, além disso, materiais de lendas antigas. Pois Anteu é conhecido como gigante líbio e filho de Poseidon e Gaia da mitologia grega. Ele dispõe de forças sobre-humanas, que são constantemente renovadas por sua mãe, a Terra. Apenas depois de erguêlo no ar, Heracles conseguiu matá-lo e então se casou com a viúva, Tinge. Além disso, o rei Juba da Mauritânia, que viveu entre cerca de 50 a.C. e 23 d.C., segundo o que ele próprio diz em sua crônica o ficial da corte, também descenderia de Sofax e Diodoro. Quando essa história é então ligada ao parentesco de Abraão, fica inicialmente clara sua lealdade ao mundo grego. A breve notícia em Josefo ganha um ápice especial pelo fato de que Hércules, conhecido até hoje por suas forças sobrenaturais, recebe na luta um apoio do parentesco de Abraão. Isso exprime indiretamente a força do clã de Abraão. A história serve, com isso, para aumentar o prestígio do autor. Josefo, que compôs seus escritos quase 200 anos após o autor do 1° Livro dos Macabeus, tem menos interesse político do que diplomático. Depois dos distúrbios da guerra romana, o que lhe importava era descrever o lado amistoso e humano de seu povo e sua profunda conexão especialmente com o mundo “ocidental”. Como Martin Hengel mostrou em sua obra Judaísmo e helenismo , essas construções de história étnica eram bastante difundidas na Antiguidade, quando cidades não gregas, sobretudo na Ásia Menor, postulavam relações de parentesco com os gregos. Também em épocas posteriores, as pessoas provavelmente fizeram, mediante tais construções narrativas de relações de parentesco,
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declarações sobre a relação com outras etnias ou culturas ou grupos religiosos. É nesse sentido que é interpretada, por exemplo, a narrativa de Abrão e Hagar transmitida no midrash tardio Pirqe de Rabbi Elieser (cap. 30). Nele se narra detalhadamente que Abraão continua a manter relações amigáveis com a criada Hagar e seu filho Ismael mesmo após sua expulsão de sua casa e lhes fazem visitas regulares. Enquanto Hagar é representada como idólatra, seu filho Ismael, entretanto, se encontra sob proteção especial de Deus. Pois para Ismael, que corre risco de morrer de sede no deserto, Deus criou já na véspera do sábado da criação uma fonte para aliviar sua sede. No deserto de Paran, em que Hagar e Ismael finalmente se estabelecem, também se encontram correntes de água em abundância. Pirqe de Rabbi Elieser informa agora que Abraão, três anos após a separação de Ismael, se pôs a caminho para visitar seu filho. Visto que a mulher de Ismael, Aische, não o recebe com hospitalidade e lhe nega água e pão, ele manda dizer ao seu filho que “a soleira de sua casa” não é boa. Por isso, Ismael abandona sua mulher e se casa com certa Fatuma. Quando Abraão, depois de três anos, vem em nova visita, ela generosamente lhe dá água e vinho. A narrativa termina com as seguintes palavras: Abraão se posicionou e orou perante o Santíssimo, bendito seja ele, por seu filho e [por isso] a casa de Ismael foi preenchida de todo o bem de todo tipo de bênção. E quando Ismael retornou à casa, sua mulher lhe relatou o ocorrido. Então Ismael reconheceu que até o [dia] atual, a misericórdia de seu pai estava com ele, pois assim se disse: “Como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se compadece daqueles que o temem” (Sl 103,13)
Pela citação dos nomes árabes “Aysche” e “Fatuma”, Ismael se torna o representante do mundo muçulmano. Esses nomes têm, sem dúvida, um caráter simbólico, uma vez que uma das mulheres de Maomé se chamava Aischa e uma de suas filhas era chamada Fátima. Desse modo, em Pirqe de Rabbi Elieser ressoam tons que, em última análise, são mediadores, conciliatórios em relação ao islamismo. Abraão permanece amistoso para com Hagar e seu filho, Ismael, mesmo após a expulsão deles para o deserto e está até mesmo disposto a quebrar uma promessa em relação à sua mulher, Sara. O comportamento para com Abraão decide o bem-estar da família de Ismael: pois quem não trata
Abraão com dignidade será — metaforicamente falando — “enviado ao deserto”. No entanto, onde ele é recebido amigavelmente, a casa transborda de bênção.
3.3. A BRAÃO E O CONHECIMENTO DO D EUS ÚNICO Se nos voltamos para outras tradições sobre a figura de Abraão no antigo judaísmo, é com relativa surpresa que notamos que há em primeiro plano nessas tradições um traço narrativo que não foi explicitado na tradição bíblica, a saber, a concepção de que Abraão era um adorador do Deus único e por isso combatia veementemente todas as formas de adoração de outros deuses. Por causa do signi ficado que esse tema adquire na tradição de Abraão do início do judaísmo, oferecemos aqui uma exposição relativamente ampla dos contextos pertinentes. O elemento narrativo do conhecimento de Deus por Abraão preenche os vazios narrativos deixados pelas escassas notas sobre a origem e a família de Abraão em Gênesis 11,27 ss. Desse modo, ficamos sabendo nas tradições concernentes ao antigo judaísmo (como complementação da tradição bíblica) por que Haran, o irmão de Abraão, morre e o que, em última análise, leva Abraão a se separar de sua família. No plano da história das tradições, as tradições em questão certamente também foram impulsionadas pela breve nota em Josué 24,2, segundo a qual os antepassados de Israel serviram a outros deuses e Deus retirou Abraão desse “ambiente”. Pelo impulso em termos de conteúdo, como também pelo modo de narrar conciso em Gênesis 11,27 ss., que leva ao chamamento de Abraão em Gênesis 12, surgiu por fim uma história que informa que Abraão desde a mais tenra juventude adorou um único Deus, que criou o céu e a terra. Visto que a família de Abraão continuava a adorar um grande número de deuses, Abraão acabou rompendo com sua parentela e — chamado por Deus — encontrou em Canaã uma nova pátria. Se não levarmos em conta a breve nota em Josué 24, então é no Livro dos jubileus que encontraremos o registro explícito certamente mais antigo da concepção da fé de Abraão no Deus único. Essa obra contém uma renarração da história bíblica da criação até a revelação da Torá no Sinai, que é apresentada na forma de uma revelação de um anjo para Moisés. Além de inúmeras formulações das tradições
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bíblicas, das quais ainda falaremos a seguir, é típico nele o fato de os diferentes eventos serem amarrados numa estrutura cronológica. A unidade temporal determinante aqui é o jubileu, que abrange sete semanas de anos, ou seja, 49 anos. Para o autor do Livro dos jubileus, que compôs sua obra provavelmente no contexto da revolta macabeia e na confrontação com a cultura helenística, desde o tempo de Adão até a entrada na terra prometida resultam cerca de 49 49 anos, ou seja, 49 jubileus (cf. Livro dos jubileus 50,4). Nesse amplo contexto da renarração do tempo dos ancestrais, encontramos uma detalhada história da juventude de Abraão: sem indicação dos motivos, ficamos sabendo que Abraão reconhece o deus único verdadeiro. Esse reconhecimento de Deus lhe possibilita pôr fim a uma demoníaca praga de corvos ( Livro dos jubileus 11,11-24). Abraão tenta então mover seu pai para a fé no Deus único ao lhe mostrar que nos deuses que ele adora não há “nenhum espírito” (12,3). Por isso ele admoesta seu pai a adorar o “Deus do céu, […] que faz tudo na terra e tudo criou por meio de sua palavra”. Visto ter receio das pessoas de seu convívio, o pai não decide se distanciar publicamente dos deuses. Ele inicialmente pede ao filho que mantenha silêncio, o que Abraão também faz durante anos. Então — como mostra a cronologia do Livro dos jubileus — é apenas aos 60 anos de idade que Abraão resolve tomar uma atitude coerente com o seu conhecimento de Deus, ao se levantar de noite e incendiar a casa de seu pai com todos os ídolos que nela se encontravam. Haran, seu irmão, que tenta salvar os ídolos da casa em chamas, morre. Mas Tara, Nachor e Abrão se mudam para Karan. Ali, à noite, Abraão contempla o céu estrelado. De seu conhecimento de que todos os sinais do céu estão nas mãos de Deus e de que Deus controla a chuva com sua vontade, ele abandona a investigação dos corpos celestes. Numa oração, ele se dirige a Deus e pede salvação dos maus espíritos e que lhe mostre o conhecimento correto e o caminho verdadeiro. Em seguida ocorre a revelação de Deus, e ouvimos, numa retomada de Gênesis 12,1, que Deus envia Abraão para Canaã e lhe promete sua bênção ( Livro dos jubileus 12,1-24). A moldura determinante em que se encontra o reconhecimento de Deus de Abraão é o mundo de ideias de finido pela crença nos demônios. O Deus único é aquele que é mais poderoso que todos os demônios, de modo que Abraão está sob proteção totalmente especial e, ao mesmo tempo, revela ser um taumaturgo com efeitos sobre-humanos — como mostra o episódio dos corvos. Mas são os demônios ×
que também provocam a crença errônea, de sorte que se libertar dos demônios é um ato que também tem um componente cognitivo. A história da juventude de Abraão, com o tema do reconhecimento do Deus único, foi retomada na época após a destruição do segundo templo no ano 70 d.C. em outras tradições do judaísmo antigo. Aqui é inicialmente o Apocalipse de Abraão que desempenha um papel importante. Esse texto provavelmente remonta a um original em língua semítica e hoje está conservado apenas na tradição eslavoeclesiástica. Em comparação com a tradição provavelmente 200 anos mais velha do Livro dos jubileus, essa narrativa já é interessante apenas porque contém uma explicação de como Abraão pôde a final chegar ao conhecimento do Deus único. Com isso um vazio narrativo do Livro dos jubileus é, de certo modo, preenchido. Nessa narrativa de leitura divertida, o caminho de Abraão ao Deus único é descrito como um processo de várias etapas. Primeiramente, Abraão se confronta com a natureza das imagens dos ídolos. O fato de elas terem sido criadas de material perecível, destrutível leva o jovem Abraão a duvidar do poder desses deuses em geral. Isso é plasticamente ilustrado em algumas cenas: numa primeira cena Abraão descreve que, ao entrar no templo, descobriu que a cabeça de Marumat, esculpida de pedra, tinha caído no chão. Sem nenhuma cerimônia um novo corpo é fabricado, sobre o qual a velha cabeça é encaixada; o corpo do velho Marumat é simplesmente jogado fora. A essa se segue outra história que demonstra a materialidade e, com isso, a efemeridade das figuras divinas: quando Abraão quer levar cinco figuras divinas da oficina de seu pai para o mercado, três delas caem de cima do burro e se quebram. Sem nenhuma cerimônia, Abraão se despoja dos restos lançando-os no rio. Por isso Abraão aos poucos começa a duvidar do poder dos deuses. Como esses seres podem ajudar se não são sequer capazes de ajudar a si mesmos? Abraão comunica essa ideia ao seu pai, que fica bastante furioso. Segue-se um episódio final sobre o tema da impotência das imagens divinas, que realmente as faz parecer ridículas: a pequena figura de madeira de Barisat cai nas lascas que Abraão usa para o fogo do fogão. Em tom de provocação, ele encarrega a figura de vigiar o fogo, mas este a queima. Depois dessa experiência, Abraão se dirige ao seu pai cheio de ironia elogiando o amor de Barisat, que pelo pai se jogou no fogo. O pai em sua ingenuidade realmente louva a força de
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Barisat e anuncia: “Hoje quero fazer ainda outro, e que amanhã ele prepare minha refeição” ( Apocalipse de Abraão 5,12-14). Essas experiências negativas com a materialidade das estátuas de deuses, que revelam sua impotência, fazem Abraão procurar o divino — em outra etapa de seu processo de conhecimento — nos diversos elementos da criação. Por causa de sua experiência com Barisat, ele começa pelo fogo, dando início à seguinte cadeia argumentativa: sem dúvida, o fogo é mais digno de adoração do que os ídolos; mas o fogo é vencido pela água. Mas se a terra pode secar a água então esta não pode ser considerada o supremo de todos os elementos. Num segundo passo, Abraão se volta para os corpos celestes: o olhar se dirige primeiramente ao sol, que transforma a terra úmida em pó; mas também o sol não pode ser chamado de Deus por Abraão, pois à noite ele é obscurecido pelas nuvens e isso também se aplica igualmente à lua e às estrelas. Assim, Abraão chega finalmente à conclusão de que deve buscar aquele que é o criador de todos esses elementos. Nessa passagem, nosso texto parece ser in fluenciado pelo filósofo Fílon (cerca de 20 a.C.-50 d.C.) ou pelo historiógrafo Josefo (cerca de 38-100 d.C.), que também tematizam o conhecimento de Deus de Abraão: em Sobre Abraão, § 68-89, de Fílon, Abraão compreende pela observação das estrelas que por trás da matéria deve haver uma regência superior, invisível, assim como o microcosmos homem possui um espírito que o guia ( Sobre Abraão § 68-70; § 7275). Fílon chega à conclusão de que o cosmos não é o primeiro deus, mas a obra do primeiro deus (Sobre Abraão 75). De modo bastante semelhante, em Sobre as virtudes, § 216, diz-se que Abraão foi o primeiro a confiar em Deus porque ele também foi o primeiro “a ter uma fé firme e inabalável de que há uma causa suprema e de que ela rege diligentemente sobre o mundo e tudo que há nele” (citado segundo Cohn II, 374). Josefo, por sua vez, informa que Abraão, “dos eventos da terra e do mar, no sol e na lua, e das modi ficações na abóbada celeste” concluiu “o poder de um ser superior, a quem devemos apenas prestar graças e honra” ( Antiguidades judaicas I 17,1, citação segundo a tradução de Clementz, 38 s.). Ambos os documentos revelam, como também outras obras do judaísmo helenístico — como, por exemplo, a sabedoria de Salomão — uma in fluência da filosofia popular pós-aristotélica, tal como foi articulada principalmente no estoicismo. No segundo livro de sua obra De natura Deorum, Cícero se refere ao estoico Balbus, segundo o qual os filósofos, depois da exaspera-
ção inicial causada pela observação do movimento, da ordem e da regularidade do céu, devem chegar à noção de que o habitante do céu também é seu guia, dirigente e arquiteto. De acordo com isso, os homens, pela observação do céu, chegariam obrigatoriamente, por assim dizer, à ideia de um ser superior. No entanto, o que é típico do Apocalipse de Abraão é o fato de que o conhecimento filosófico de Deus por Abraão é integrado à percepção da autorrevelação de Deus e à imagem de um Deus pessoal. Abraão é o filósofo pensante e, além disso, está numa relação direta com seu Deus. Depois de ter conhecido, por meio do pensamento racional, que só pode haver uma divindade como princípio de todo ser, Abraão lhe pede que se revele, e então cai — como diz nosso texto — “a voz do potente numa torrente de fogo do céu”. Abraão é chamado pelo nome, a voz se dá a conhecer como “Deus dos deuses” e como criador e exorta Abrão a abandonar a casa paterna. Tão logo ele satisfaz esse desejo, um som de trovão queima o pai e sua casa, deixando no lugar apenas uma cratera com uma profundidade de 40 cúbitos ( Apocalipse de Abraão 1-9 início; citado segundo PhilonenkoSayar/Philonenko, 421 ss.). Com isso termina essa parte da narrativa. A segunda parte do Apocalipse de Abraão narra uma viagem de Abraão ao céu, na qual este se familiariza com os mistérios da história. O tema da viagem no céu aproxima Abraão de Henoc, conferindo ao seu saber uma autoridade totalmente especial. Se, nessa viagem ao céu, Abraão contempla os mistérios da criação e a história futura de Israel, então também se revela para ele a relevância histórico-teológica de seu conhecimento do Deus único: pois Abraão vê no mundo celeste a “imagem do ídolo do ciúme” ( Apocalipse de Abraão 25,1). Visto que o narrador explicitamente diz que essa imagem se assemelha à imagem divina entalhada em madeira pelo pai de Abraão, então essas declarações podem ser compreendidas no sentido de que Abraão passa a saber aonde leva a adoração dessa imagem divina, ou seja, à destruição do templo. Desse modo, a polêmica dos ídolos é integrada ao plano histórico-teológico. A adoração dos ídolos não é de modo algum uma época há muito terminada da história inicial do povo; ela tem antes uma relação direta com a atualidade no que tange ao passado imediato do narrador, pois ela é responsável, em última análise, pela destruição do templo de Jerusalém.
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Essa observação produz uma ênfase totalmente singular de nosso tema: se até agora — seguindo os paralelismos citados acima — pudemos partir da ideia de que se trata, na polêmica dos ídolos, de uma polêmica inter-religiosa, voltada para fora contra o mundo pagão, agora se vê que o tema no Apocalipse de Abraão pode ser localizado num contexto intrajudaico. Abraão se torna agora não apenas a figura-símbolo, que representa um verdadeiro judaísmo para o exterior, mas também se torna uma figura que apresenta o ideal da ortodoxia e da ortopráxis para o interior. Como não podemos aqui seguir o tema do conhecimento de Deus por Abraão em todas as fontes, algumas breves indicações de verão bastar. Além do Livro dos jubileus e do Apocalipse de Abraão, as Antiguidades bíblicas ( Liber antiquitatum biblicarum ) conhecem também uma tradição que surgiu provavelmente também nos anos após a destruição do templo, a concepção de Abraão como o primeiro monoteísta. Abraão se recusa, por causa de sua pro fissão de fé no Deus único, a participar da construção da torre de Babel e está até mesmo disposto a dar a vida por isso. De uma maneira miraculosa ele é salvo da fornalha em que deveria morrer. Pode-se supor que a semelhança de som entre o topônimo hebraico “Ur”, a pátria de Abraão, da qual Deus o tirou, e o nome hebraico para fogo (hebraico: or ) tenha, por assim dizer, criado essa história. Em todo caso, a narrativa parece reproduzir as experiências que o judaísmo teve com o governo helenístico ou romano. Desde o tempo dos macabeus, a prontidão para o martírio por causa de Deus único é um tema que pertencia aos componentes fi xos da tradição judaica, e foi tanto na época da guerra judaica como também na época da revolta de Bar-Kochba que essa ideologia do martírio ganhou novas atualidade e urgência. A literatura rabínica que, após a destruição do templo e da revolta de Bar-Kocha, tenta rede finir a identidade do judaísmo por meio da Torá e da obediência à Torá seguiu, em suas declarações sobre Abraão, esses modelos e também caracterizou Abraão em seu espírito de luta pela fé no Deus único. A salvação de Abraão para fora da fornalha também se torna um tema signi ficativo que alcança até a literatura narrativa da Idade Média, além de ter recebido uma forma artística em diversos livros de oração. Mas o tema do conhecimento de Deus por Abraão também continua a exercer efeito na literatura da Idade Média. Segundo o
grande filósofo da religião Maimônides, Abraão, por meio de suas especulações filosóficas, fornece uma prova racional da existência de Deus e desenvolve a doutrina da creatio ex nihilo. Também na moderna filosofia judaica Abraão é, por fim, considerado modelo do verdadeiro conhecimento de Deus e de uma vida religiosa perfeita.
3.4. A BRAÃO COMO PROSÉLITO E MESTRE DOS POVOS Do conhecimento de Abraão sobre o Deus único vai um caminho direto até o outro tema que também desempenha um papel importante para as tradições do judaísmo antigo, a saber, a concepção de que Abraão foi o primeiro prosélito e por isso também pode ser considerado o pai de todos os prosélitos. Essa conexão é nitidamente expressa sobretudo nas explanações de Fílon: depois de ter mostrado como Abraão conhece a natureza de Deus pela observação dos astros e abandona sua família, ele o descreve como “um modelo de nobreza para todos os prosélitos, que abandonaram a natureza vil originária de costumes desnaturados e sacrílegos, segundo os quais pedra e madeira e, em geral, objetos inanimados possuem honra divina, e se voltaram para a constituição realmente dotada de alma e vida, que é conduzida e vigiada pela verdade” ( Das virtudes § 218; citado segundo a tradução de Cohen, Vol. II, 374 s.) Encontra-se uma concepção semelhante em inúmeros textos da literatura rabínica. Pois se Abraão descende dos povos e encontra o caminho para o Deus de Israel, que segundo o pensamento rabínico corresponde ao caminho da Torá, então Abraão é, por assim dizer, o primeiro de todos os prosélitos, isto é, o primeiro de todos aqueles que do mundo dos povos se dirigem ao judaísmo (Talmude babilônico Hagiga 3a). Nesse contexto, a instrução de Deus a Abrão para ser uma bênção (Gn 12,2) experimenta uma ênfase totalmente específica. Num jogo de palavras o midrash Bereshit Rabba 39,11 diz que Abraão, tal qual um lago (berekha), “purifica” aqueles que estão longe do judaísmo. A expressão especial segundo a qual Abraão se deslocou para Canaã com as “almas que ele tinha adquirido em Haran” (segundo a citação literal de Gn 12,5) é, em muitos midrashisn, como também no Targum, a tradução aramaica da Bíblia hebraica, relacionada às pessoas que Abraão tinha convertido para o judaís-
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mo ( Bereshit Rabba 39,14). Também é bonita uma interpretação de Gênesis 12,8 segundo a qual Abraão chamou o nome de Deus. O midrash lê aqui o verbo “chamar” não no radical (kal na terminologia da gramática hebraica), mas sim como causativo (hi fil, segundo a gramática hebraica) no sentido de “fazer chamar”, e conclui disso que Abraão conduziu as pessoas sob “as asas da shekhina, a presença de Deus” ( Bereshit Rabba 39,16). Essas tradições, que são retiradas de um grande número de documentos semelhantes, reproduzem a experiência de que o judaísmo nos primeiros séculos d.C. exerceu uma grande fascinação em fiéis de outras religiões, tanto na Palestina como na Diáspora. Aqui se deve distinguir vários graus de aproximação do judaísmo. No sentido pleno da palavra, eram considerados prosélitos aqueles que realizavam a circuncisão e o banho de imersão e atestavam o ficialmente que queriam tomar para si a lei da Torá. Na época do segundo templo, a transição para o judaísmo implicava também o compromisso da peregrinação para Jerusalém. Além de tais “prosélitos plenos”, existia o grupo bem maior dos assim chamados tementes a Deus, que são conhecidos do Novo Testamento como destinatários da pregação de Paulo. Eles frequentavam as sinagogas e também observavam parte da lei ritual judaica. Só assim se pode explicar a declaração de Josefo, que se vangloria de que “muitos dos helenos tinham aceitado a Torá de Israel” e de que não havia nenhum povo e nenhuma cidade “onde não existiam pessoas que observavam o sábado, acendiam luzes e evitavam alimentos proibidos” (Contra Apião II, 282). Em que consistia a força de atração do judaísmo nessa época é algo que hoje se pode de finir apenas limitadamente; em geral, pode-se supor nesse contexto que as ideias de costumes religiosos do judaísmo, que se expressavam na Torá e na exegese bíblica dos sábios, tenham exercido uma grande força sobre muitas pessoas, mas também especialmente sobre as mulheres. A concepção de que Abraão pela observação dos astros conheceu o Deus verdadeiro único está estreitamente ligada ao tema de Abraão como inventor e mestre da astrologia. A ênfase aqui é posta não sobre o lado teológico da sabedoria de Abraão, mas, por assim dizer, sobre o aspecto “mundano” dela. Abraão, que conheceu as regularidades dos astros, é representado como aquele que traz cultura para todo o mundo das nações. Nesse contexto, devemos ao Padre da Igreja Eusébio, com sua obra Praeparatio evangelica, a remissão a tradições mais
antigas. Segundo Pseudo-Eupolemos (também chamado por alguns de “anônimo samaritano”), que provavelmente escreveu na Palestina entre a conquista selêucida em 200 a.C. e a revolta macabeia, Abraão superava “a todos em nobreza e sabedoria”. Por ordem de Deus, ele emigrou para a Fenícia, onde ensinou aos fenícios o “curso do sol e da lua e toda outra sabedoria” para agradar a seu rei. Em sua estada no Egito, que nessa renarração da tradição de Abraão vem apenas depois do episódio da salvação de Lot (cf. Gn 14), conta-se que Abraão instruiu os sacerdotes de Heliópolis em diversas coisas, mas sobretudo na astrologia. Diz-se explicitamente que essa astrologia não foi uma invenção dos egípcios, mas dos babilônios, e a verdadeira autoria remontava, contudo, a Henoc (Eusébio, Praeparatio evangelica 9, 17, 2-9; citação segundo Walter, 141 s.). Supostamente essa informação representa uma reação à notícia transmitida por Heródoto de que os sacerdotes de Heliópolis eram os homens mais sábios do Egito e os egípcios, por sua vez, os mais sábios em geral. Como mostrou Martin Hengel, há aqui uma modificação do pensamento registrado em Heródoto, Platão e sobretudo em Hecateu de que os gregos foram instruídos pelos egípcios. Se Abraão se torna o mestre dos (fenícios e) egípcios, então, ao mesmo tempo, a tradição bíblica prova ser a mais antiga sabedoria dos homens. Com esses construtos, Pseudo-Eupolemos encontrou inúmeros sucessores: por exemplo, o historiador Alexandre Polihistor relata que Abraão, segundo os dados do historiógrafo Artapanos, lecionou astrologia no Egito durante vinte anos (transmitido em Eusébio, Praeparatio evangelica 9, 18, 1). Supostamente a passagem — de difícil compreensão e conservada apenas em fragmentos — do Apócrifo de Gênesis, segundo a qual Abraão leu em voz alta o livro de Henoc para os egípcios, aluda a essas tradições; como mostra sobretudo o Livro astronômico de Henoc, é justamente a figura de Henoc que deve ser vinculada a conhecimentos astrológicos. Por fim, Josefo também reflete essa concepção ( Antiguidades judaicas I 9,3).
3.5. A S ORAÇÕES DE A BRAÃO E A PROTEÇÃO DE D EUS A história da juventude de Abraão já salienta que ele se encontra numa relação especialmente qualificada com Deus. Enquanto a ênfase aqui
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recai sobre o conhecimento do Deus único por Abraão, outras tradições tematizam o caráter pio de Abraão, que é ilustrado por suas orações. No que diz respeito a esse tema, um signi ficado especial é atribuído, entre as tradições do judaísmo inicial, principalmente ao assim chamado Apócrifo de Gênesis. Nessa tradição, que foi descoberta entre os manuscritos do Mar Morto em 1947 na caverna 1 de Qumran e que foi conservada apenas fragmentariamente, há uma extensa re-narração da estada de Abraão e Sara no Egito. Aí Abraão aparece como narrador na primeira pessoa e relata seu destino. As páginas do Apócrifo de Gêne sis conservadas são datadas, via de regra, no século I a.C.; no entanto, a tradição como tal talvez seja décadas mais antigas. Alguns indícios levam a crer até mesmo que ela seja anterior à tradição do Livro dos jubileus e, com isso, deva ser datada no período pré-macabeu. Se isto realmente é verdade, a tradição de Abraão do Apócrifo de Gênesis seria a tradição de Abraão extrabíblica mais antiga de todas. O que é típico do modo narrativo do Apócrifo de Gênesis é inicialmente o fato de a história ser rica de inúmeros detalhes geográ ficos e cronológicos. Além disso, é literariamente signi ficativa a descrição hínica de Sara, com que os homens do faraó a elogiam perante seu senhor. Sara é descrita aí como figura ideal, em que a beleza física se une à sabedoria: Quão cintilante e belo o aspecto de sua face e quão (3) […e] q[uão] fino o cabelo de sua cabeça, quão amáveis seus olhos e quão encantador seu nariz e toda a irradiação (4) de seu semblante [e] quão gracioso seu busto e quão bela sua (pele) branca. Seus braços, quão belos, e suas mãos, quão (5) perfeitas! E (quão) [atraente?] todo o aspecto de suas mãos! Quão suaves as palmas de suas mãos e quão longos e delgados todos os dedos de suas mãos. Suas pernas — (6) quão belas! E quão perfeitas suas coxas! Nenhuma das virgens ou noivas que entram na câmara nupcial é mais bela do que ela. Sua beleza está acima de todas as mulheres, sua beleza supera todas. E com toda essa beleza está (unida) muita sabedoria, e tudo o que ela tem (8) é encantador ( Apócrifo do Gênesis 20,3-8; citado segundo Maier I, 219).
Para nosso contexto, é interessante sobretudo a imagem de Abraão nessa renarração do episódio de Gênesis 12,9-20. Enquanto a narrativa bíblica pode perfeitamente lançar dúvidas quanto à integridade
de Abraão, pois este faz Sara passar por sua irmã e, além disso, obtém lucros financeiros do fato de Sara ir para a corte do Faraó, no Apócrifo de Gênesis Abraão aparece numa luz totalmente diferente, inequivocamente positiva. Pois no Apócrifo de Gênesis as relações se apresentam do seguinte modo: logo no início da narrativa ouvimos que Abraão, na noite em que vai para o Egito com Sara, tem um sonho em que vê um cedro e uma bela tamareira que crescem, ambos, de uma mesma raiz. Quando alguns homens se aproximam para derrubar o cedro e deixar apenas a tamareira, esta implora aos homens que não façam nada de mal ao cedro; pois ambos — o cedro e a tamareira — eram da mesma raiz. Por causa dessa intervenção corajosa da tamareira, o cedro é poupado do destino ameaçador. Depois de acordar bastante inquieto pelo sonho, Abraão oferece a seguinte interpretação para ele: o sonho indica uma situação em que ele será morto, mas Sara permanecerá viva ( Apó crifo de Gênesis 19,19). Por isso Abraão pede à sua mulher que finja que ele é seu irmão para que ele seja salvo. Os sonhos na Antiguidade, em geral, eram remetidos a revelações divinas, motivo pelo qual Abraão se sente claramente aliviado com esse sonho. Ele não age por egoísmo e interesse próprio ao instruir Sara a se passar por sua irmã, mas, de certo modo, o faz sob autorização divina. A continuação da ação confirma que Abraão foi totalmente realista em sua avaliação da periculosidade da situação no Egito. Pois, enquanto em Gênesis 12 se diz concisamente que Sara foi levada para o palácio do faraó, o Apócrifo de Gênesis narra expressamente que o faraó pretende matar Abraão (cf. 20,9). Depois disso, tal como foi instruída, Sara finge que ele é seu irmão. Desse modo, Abraão é poupado, quando ela é levada à corte do faraó. O Apócrifo de Gênesis não diz que o faraó presenteou ricamente Abraão depois da entrega de Sara, de sorte que não pode haver a mínima suspeita de que Abraão possa ter obtido vantagens financeiras da situação. Enquanto a narrativa bíblica nada nos fala sobre a vida interior de Abraão, mas logo narra que Deus ataca o faraó com severas pragas, no Apócrifo de Gênesis abre-se uma janela que possibilita um olhar para a alma de Abraão, de modo que percebemos claramente a estreita relação de Abraão com Sara, como também sua con fiança na proteção de Deus. Pois imediatamente após o “arrebatamento” de Sara Abraão se volta para Deus com uma oração suplicando que ele lhe faça justiça em relação ao faraó, “para que ele esta noite não tenha forças para
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macular minha esposa” ( Apócrifo de Gênesis 20,15). A intensidade da oração é sublinhada pelo tema do choro. Abraão chora quando Sara é levada embora ( Apócrifo de Gênesis 20,11); a oração em si é introduzida pelas seguintes palavras: “Naquela noite, eu rezei, pedi e implorei e falei com aflição e minhas lágrimas escorreram” (20,12), e no final da oração ele ainda diz: “eu chorei e me calei” (20,16). Assim fica claro que toda a oração de Abraão é emoldurada pelo tema do pranto. E isso implica, de um lado, uma emocionalização do material narrativo, mas de outro sublinha a aflição de Abraão e a intensidade de sua entrega a Deus. Todas essas reações mostram que Abraão negocia a libertação de Sara por legítima defesa e com profunda dor e, nessa aflição, confia-se totalmente a Deus. O envio do espírito da praga, da qual também se fala no texto bíblico, aparece apenas agora na narrativa do Apócrifo de Gênesis e deve ser entendido como reação de Deus à oração de Abraão. A resposta imediata de Deus à oração de Abraão mostra que Abraão se encontra numa relação especialmente qualificada com Deus. Ele e naturalmente também Sara, sua mulher, são protegidos e preservados por Deus. Depois de o Faraó e toda sua casa terem sido acometidos por um espírito da praga por dois anos, Lot, que no Apócrifo de Gênesis acompanhou Abraão e Sara para o Egito, revela o motivo da miséria na corte real. Em consequência disso, os homens do faraó se dirigem a Abraão e lhe pedem que reze pelo faraó e seu povo e afugente o espírito mau (20,19-22). Só depois de Sara deixar a corte do faraó, Abraão intervém, de fato, em favor do faraó e de seu povo. Abraão diz uma oração de intervenção e pratica o rito da imposição de mãos, de modo que o demônio é realmente expulso e o faraó e seu povo recuperam as forças (20,28 s.). Aqui nossa narrativa se mostra in fluenciada por Gênesis 20, em que Abraão também aparece como intercessor em favor do doente Abimeleque. Depois da cura do faraó e de toda a sua casa, Abraão pode, agora com ricos presentes, retornar à sua pátria. Ao chegar novamente a Betel, ele oferece sacrifícios e oferendas no altar já construído ali, louva a Deus e lhe dá graças por todos os bens e pela salvação para fora do Egito. O tema central que percorre essa história como fio condutor é, portanto, a piedade de Abraão expressa em suas orações. Tanto em sua aflição como também em sua salvação, ele se volta para seu Deus. Além disso, sua oração é tão poderosa que ele pode fazer que Deus expulse o espírito mau do faraó.
3.6. A BRAÃO E A OBSERVÂNCIA DA TORÁ A piedade de Abraão não se exprime apenas em seu conhecimento de Deus e em suas orações, mas também se manifesta em sua obser vância da Lei. Ainda antes de a Torá ser entregue no Sinai, ele tinha uma conduta de acordo com as regras da Halakhá e vivia em conformidade com a Torá. No “Elogio dos antepassados” — o registro extrabíblico mais antigo — no escrito sapiencial de Jesus Sirac ( fim do século II a.C.), diz-se que Abraão observou a lei do Altíssimo. Também em Qumran é conhecida essa concepção, quando o Escrito de Damasco 3,2 descreve Abraão não apenas como um devoto à Torá, mas também como professor da Lei. Essas afirmações podem inicialmente surpreender, pois as tradições bíblicas à primeira vista não parecem apontar nessa direção. Mas, se olharmos com mais precisão para os textos bíblicos e seu entorno histórico-tradicional, descobriremos dados totalmente diferentes. O ponto de partida para esta observação é uma pequena nota em Gênesis 26,3b-5, em que a história de Abraão é vinculada à história de Isaac. Aqui, Isaac, apesar de uma calamidade de fome, é exortado por Deus a permanecer na terra, onde ele receberá a bênção de Deus. Isaac se torna — assim diz Gênesis 26,3-5 — o portador da promessa apenas por causa de sua ascendência. Uma vez que Abraão foi obediente “à voz de Deus” e guardou “seus estatutos, mandamentos, seus decretos e sua lei”, Isaac e sua descendência serão abençoados (Gn 26,3b-5). Sem dúvida, essas declarações sobre a obediência de Abraão podem ser perfeitamente relacionadas à sua obediência à ordem divina de abandonar sua família (ver Gn 12) ou de oferecer seu filho em sacrifício (Gn 22; ver também a conclusão: 22,15-18). Mas o decisivo é que o estilo linguístico em Gênesis 26,3- 5 indica nitidamente a linguagem e a teologia daquele grupo de pensadores teológicos que são conhecidos, na terminologia especializada, como deuteronomistas. Esse grupo, que atuou na época após o exílio do povo, entende por “comandos, decretos e instruções” concretamente o mandamento divino, tal como foi revelado no Sinai (Dt 4,1.5.8.44; 5,1; 31; 6,1). Nesse contexto intertextual, fica claro que em Gênesis 26,3-5 a obediência de Abraão, que em algumas narrativas ganha uma expressão plástica, se volta para o universal e é designada com conceitos que a interpretam, de forma totalmente geral, como o cumprimento do mandamento divino.
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Gênesis 18,19 dá um passo a mais: segundo esse trecho, a tarefa de Abraão consiste em que “prescreva a seus filhos e à sua casa depois dele que observem o caminho de YHWH, praticando a justiça e o direito”. Mais uma vez são a linguagem e a teologia deuteronômicodeuteronomísticas que aproximam Abraão do mandamento divino. Pois, como mostram inúmeros inúmero s exemplos desse conjunto de escritos, o “caminho de YHWH” significa, de fato, o mandamento de Deus (ver Dt 5,33; 8,6; 11,28; 19,8 s. passim). Portanto, Abraão aparece como um mestre da Lei e se aproxima de Moisés, cuja missão, presente justamente no Deuteronômio, é esclarecer o significado da obediência à Torá para o povo. A continuação desse versículo, “a fim de que YHWH faça vir sobre Abraão o que lhe prometeu”, mostra que essa ação dos descendentes de Abraão representa a condição para que todas as promessas de bênção que Deus fez a Abraão sejam realmente cumpridas. Com isso, as promessas divinas a Abraão são, de certo modo, condicionadas. Enquanto Enquan to os documentos documentos bíblicos, bíblicos, como também também Jesus Jesus de Sirac e o Escrito de Damasco fazem apenas declarações gerais sobre a fidelidade de Abraão à Torá, há no Livro dos jubileus vários exemplos da obediência de Abraão aos mandamentos divinos. Essas ordens di vinas originam-se de âmbitos bastante diferentes. Abraão é inicialmente o representante do culto, quando oferece diversos sacrifícios. Como mostra o Livro dos jubileus, Abraão, após o retorno feliz do Egito, oferece o sacrifício queimado (13,16); além disso, a renarração da obscura cena da aliança entre as metades de animais de Gênesis 15 é claramente formulada no Livro dos jubileus como um ritual de sacrifício. Primeiramente, Abraão oferece sobre um altar o sangue dos animais cortados em pedaços e, depois da aparição de Deus, que caminha como chamas entre as metades dos animais, ele sacri fica as “coisas estendidas […] e as aves e as ofertas (de manjares) pertencentes a elas e as libações” ( Livro dos jubileus 14,19). A continuação dessa dessa pequena seção mostra que Abraão já obser vou o calendário de festas. Pois naquele dia Abraão renovou a festa das Semanas, que Noé já tinha observado em seguida à aparição do arco-íris depois do dilúvio. De acordo com o Livro dos jubileus 6,17, trata-se aí de uma grandeza supratemporal, pois foi “ordenado e está inscrito nas tábuas celestiais que eles celebrem a festa das Semanas neste mês uma vez por ano para renovar a aliança a cada ano e nos anos”. Mas também no Livro dos jubileus 15,1 s., assim como em 22,1,
relata-se que Abraão observou a festa das Primícias, que, segundo 22,1, é equiparada à festa das Semanas. No contexto do nascimento de Isaac, ficamos então sabendo que Abraão foi o verdadeiro fundador f undador da festa f esta dos Tabernáculos. Como expressão de sua felicidade pelo nascimento do filho, ele constrói um altar e também, na proximidade do altar, “tendas para si e seus escravos” ( Livro dos jubileus 16,21), de modo que ele foi o primeiro a celebrar a festa dos Tabernáculos na Terra. Tal como a festa das Semanas, isso também está atestado nas tábuas celestes. Por fim, os textos também permitem concluir que Abraão obser vou a festa festa da Páscoa Páscoa.. Pois Pois a narrativa narrativa sobre o atamento atamento de Isaac termina com uma etiologia da festa, segundo a qual Abraão celebrou uma jubileus us festa de sete dias e que ele a chamou festa do Senhor ( Livro dos jubile 18,18). Essa festa também está inscrita nas tábuas celestes. Embora a data do atamento de Isaac não seja explicitamente citada no Livro dos jubileus jubil eus, podemos inferir indiretamente que ela ocorreu no dia 14 de Nissan (ver Livro dos jubil jubileus eus 18,3 em conexão com 17,15), o dia em que, segundo 49,2 s., também se devia oferecer o sacrifício da Páscoa (ver Ex 12,5 s.). Em todo caso, fica claro que Abraão seguia todas as festas principais do judaísmo. Para a compreensão do Livro dos jubil jubileus eus, isso não é nenhum anacronismo. As determinações individuais formam, antes, uma grandeza supratemporal, pois elas foram registradas nas tábuas celestes ainda antes da revelação no Sinai para Moisés. As a firmações no Livro dos jubileus sobre a circuncisão mostram que o livro, com sua referência a Abraão, não apenas se dirige para fora, mas também busca traçar limites no âmbito intrajudaico. Pois após o autor ter representado a circuncisão no oitavo dia como um mandamento que, tal como as leis sobre as festas, também foi gravado nas tábuas celestes, e assim representa uma grandeza supratemporal ( Livro Livro dos jubileus 15,25), o narrador termina suas declarações com um olhar sombrio em relação ao futuro de Israel. Visto que os filhos de Israel não circuncidaram seus meninos, Deus não pode mais perdoá-los ( Livro dos jubileus 15,44–34). Quando nos lembramos de que a temática da apostasia da circuncisão era virulenta justamente na época da reforma helenística, percebemos que não é difícil, com base nessa seção, reconstruir a inserção histórica e ideológica do Livro dos jubileus. Pois os livros dos Macabeus falam não apenas de uma proibição proibição da circuncisão sob Antíoco IV, mas também narram a prontidão prontidão com que muitos judeus seguiram essa ordem do gover-
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nante selêucida. Além disso, nessa época o costume do epispasmos — uma intervenção cirúrgica com que se tentava anular a circuncisão e refazer o prepúcio — parece ter tido certa difusão (ver 1Mc 1,16). Abraão se torna assim o representante do verdadeiro Israel, e com o auxílio de sua autoridade os círculos fiéis à tradição tentam impor suas reivindicações contra os helenistas. Por fim, a concepção de Abraão como um patriarca devoto à lei encontra continuação na literatura rabínica. Isso é compreensíve compreensívell por causa da alta apreciação da Torá, que está em primeiro plano no pensamento rabínico. A isso se acrescenta o fato de que para o judaísmo rabínico a concepção da qualidade supratemporal da Torá já tinha se tornado um conhecimento comum. A Torá, como informam inúmeros midrashim , foi criada por Deus até mesmo antes da Criação e lhe serviu como plano segundo o qual ele deu forma à Criação. Como já se vê na tradição bíblica, em Jesus Sirac Sira c e no Escrito de Damasco, encontramos também na literatura rabínica asserções bastante gerais sobre a fidelidade de Abraão à Lei. Por exemplo, uma mishná em Kiddushin 4,14 diz que Abraão praticava toda a Torá antes mesmo de ela ser entregue. Segundo o talmude babilônico Yoma 28, o patriarca patriarca de Israel guardava tanto a Torá oral quanto a escrita. Sem dúvida, várias tradições da literatura rabínica não falam explicitamente da fidelidade de Abraão à Torá. Mas, em última análise, elas são interiormente e compreensivelmente motivadas por esse tema: como mostrou Gabrielle Oberhänsli-Widmer, para esses contextos é instrutivo o capítulo de Hagar do midrash midrash Bereshit Bereshit Rabba . Se lemos a narrativa bíblica com os olhos de um judeu fiel à halakhá, logo descobrimos dois aspectos que poderiam parecer problemáticos do ponto de vista do mandamento judaico. Visto que Hagar era uma egípcia, a ligação de Abraão com a serva de Sara representa inicialmente uma infração do mandamento bíblico sobre o casamento misto, já formulado em Deuteronômio 7,3 e Neemias 10,31 na tradição bíblica e fortalecido na halakhá rabínica (por exemplo, o talmude babilônico Abodah Zarah 36b). Como Hagar é ainda a segunda esposa de Abraão, ele também é culpado de bigamia. Ainda que a tradição bíblica não conheça nenhuma proibição de poligamia, a tradição rabínica reproduz primariamente relações monogâmicas. Com isto ela está em correspondência com a legislação romana, que proíbe a bigamia para todos os cidadãos romanos, roman os, que a partir de 212 d.C. também incluíam os judeus.
Evidentemente, os exegetas rabínicos não puderam eliminar totalmente as dificuldades do episódio sobre Hagar; mas foi possível uma “limitação” da problemática. Assim, o midrash já identifica Hagar com Qeturá (por exemplo, BerR 61,4), a terceira mulher de Abraão, que teria se casado com ela após a morte de Sara (Gn 25,1). Assim, o número das mulheres estrangeiras de Abraão é reduzido a um mínimo. Em relação à problemática da bigamia, é compreensível por que o midrash Bereshit Rabba 45 (45,4) salienta que Abraão teve relações sexuais com Hagar apenas uma vez e que ela ficou grávida logo na noite de núpcias. Isso mostra claramente que ele, de fato, obedeceu apenas aos comandos da necessidade. O midrash tardio Pirqe de Rabbi Elieser esclarece as relações familiares de Abraão ao interpretar expressamente que Abraão rompeu com Hagar. Uma concepção totalmente diferente da devoção de Abraão às leis é encontrada no filósofo helenista Fílon, que — como já explicamos — viveu na Alexandria nas décadas em torno da virada dos séculos I a.C./I d.C. Segundo Fílon, os patriarcas — e, portanto, também Abraão — são corporificações da lei não escrita. Esse pensamento já se encontra nitidamente no título total de seu escrito “Sobre Abraão”, que é: “Descrição da vida do sábio que, por instrução, alcançou a perfeição, ou: o livro das leis não escritas, ou: Sobre Abraão”. Abraão e com ele outros pios da pré-história são descritos como “modelos” das leis, que, “seguindo apenas a voz interna e instruídos por si mesmos, aderiram à ordem da natureza e, na convicção de que a própria natureza é o mais antigo estatuto, como ela na verdade o é, realizaram sua vida na mais bela legalidade” (§ 5-6; citado segundo a tradução de Cohn I, 96 s.). Fílon tem, portanto, um conceito de lei totalmente diferente daquele do judaísmo, representado pelo Livro dos jubileus ou pela literatura rabínica. Pois, enquanto nesses textos a lei representa uma grandeza que separa Israel dos povos, Fílon, que se empenha por uma síntese entre Israel e o mundo grego, vê na lei uma grandeza universal. Ela permeia toda a criação e pode, por princípio, ser compreendida por qualquer pessoa pelo conhecimento da estrutura espiritual básica do mundo. Essa tendência universal também se mostra em Fílon no fato de que temas como “terra”, “aliança” ou “circuncisão” em sua renarração da história de Abraão não merecem atenção especial. No entanto, seria errôneo querer concluir disso que o
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Abraão de Fílon volta-se totalmente para o universal. Na primeira parte de sua investigação sobre o signi ficado das leis — como mostrou M. Böhm em sua análise do significado das figuras dos pais em Fílon —, a circuncisão realmente não é representada como sinal de aliança, mas Fílon se atém a esse costume como tal quando ele, entre outras coisas, o esclarece racionalmente com motivos higiênico-médicos (Sobre as leis especiais I, 2-11). A circuncisão tem, portanto, valor universal. Mas, quando se compreende que esse costume era a nota judaica por excelência, então se pode dizer que esse acesso universal encontra sua limitação, ao menos, na prática.
3.7. A S TENTAÇÕES DE A BRAÃO E SUA FÉ Outro aspecto importante da relação de Abraão com seu Deus é o tema da sua fé, que se mantém firme apesar das mais extremas tentações. Para a história bíblica de Abraão, é significativa aqui a narrativa do atamento de Isaac; é também ela que, por assim dizer, lança a primeira pedra para todos os desenvolvimentos posteriores. Breves paráfrases nos textos apócrifos já mostram isso. Enquanto nas tradições como 1 Macabeus 2,51 e Sirácida 44,21 a fé de Abraão é formulada sumariamente, outras tradições adornam um pouco mais esse tema. O Livro dos jubileus já conhece a concepção de que Abraão teve de sofrer uma série de tentações, às quais ele, sem exceção, foi capaz de resistir: E o Senhor sabia que Abraão era fiel em todas as suas a flições, pois Ele já o havia tentado com sua terra e pela fome. E o havia tentado com a riqueza dos reis. E o havia tentado de novo por meio de sua esposa, quando ela foi tirada dele, e pela circuncisão. E o havia tentado por meio de Ismael e Hagar, sua serva, quando ele os mandou embora. E em tudo em que ele o tentou, ele se provou fiel. E sua alma não se impacientou, e ele não demorou a agir, pois ele foi fiel e amante do Senhor ( Livro dos jubileus 17,17 s.; citação segundo Berger, 418).
Se aqui também são enumeradas apenas sete tentações, então o Livro dos jubileus 19,8 mostra, referindo-se à morte de Sara e à compra da sepultura (ver Gn 23,1-20), que essa tradição parte de um total de
dez tentações de Abraão. Para complementar com as duas tentações ainda ausentes, devemos incluir, de um lado, a história da juventude de Abraão com seu compromisso pela fé no Deus único ( Livro dos jubileus 11,16–12,31), de outro, o atamento de Isaac (18,14ss.). A literatura rabínica segue esse modelo. De forma bastante concisa se diz na mishná Avot 5,3: “Por dez tentações nosso pai Abraão foi tentado e ele resistiu a todas, para mostrar quão grande era o amor de nosso pai Abraão”. Outros midrashim explicitam as dez tentações. Se esse material não pode ser oferecido aqui detalhadamente, podemos — com referência ao trabalho de Gabrielle Oberhänsli-Widmer — dizer resumidamente que, em geral, nas fontes pertinentes (por exemplo, ARN A 33,2; ARN 36,5; MTeh 18,25 e PRE 26-31) são citados os seguintes elementos, todavia nem sempre nesta mesma ordem: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10.
Juventude de Abraão, ou seja, Abraão na fornalha Abandono da pátria Migração condicionada pela fome Perigo para a ancestral Luta contra os reis Visão da escravidão dos descendentes Hagar Circuncisão Ismael Atamento de Isaac
Por certo, as diversas tradições se diferenciam no que tange aos temas individuais e à ordenação do material, mas todas têm em comum o fato de a série terminar com o atamento de Isaac. Isso põe esse elemento narrativo numa posição de destaque, dando-lhe um peso todo especial, que indica sua importância para a tradição rabínica como um todo. Isso é confirmado por um olhar nas outras fontes: no midrash Bereshit Rabba — que é uma exegese do livro do Gênesis, a ser datada no século IV d.C. e que contém, entretanto, elementos muito mais antigos — encontra-se uma renarração impressionante dessa história. Nisto o modelo bíblico é enriquecido em muitos detalhes: não apenas Abraão, mas também Isaac são representados aqui como figuras ideais da obediência à fé. Isaac, que é explicitamente apresentado
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como um homem de 37 anos, aceita de bom grado o sacrifício e cuida para não ser ferido, a fim de poder realmente atuar como cordeiro sacrifical. Toda a ação é comicamente encenada e dramatizada ao extremo. Satã, que iniciou o teste, tenta com todas as forças impedir o atamento de Isaac, pois quer fazer que Abraão fracasse. Os anjos, por sua vez, que do mundo celeste observam todo o evento, desatam a chorar por pura compaixão por Abraão e Isaac ( BerR 55,4-56,10). Além disso, outros textos rabínicos, incluindo também tradições tão antigas quanto a Mekhilta de Rabbi Yishmael , Pisha 7 para Êxodo 12,13 ou Pisha 11 para Êxodo 12,23 pressupõem que Isaac foi realmente sacrificado. O midrash tardio Pirqe de Rabbi Elieser 31 também atesta a subsequente ressurreição de Isaac: Quando a espada tinha alcançado seu pescoço, a alma de Isaac evadiu-se e fugiu. Quando [Deus] ouviu sua voz entre os dois querubins e disse: Não estendas a mão contra o jovem (Gn 22,12), a alma retornou ao seu corpo, e Abraão desatou-o, e Isaac se pôs de pé. Então Isaac soube que assim um dia os mortos são ressuscitados. E nessa hora ele abriu [a boca] e disse: Louvado sê tu, YHWH, que vivi ficas os mortos (citação segundo a tradução de Börner-Klein, 362).
Para a concepção de que Isaac no atamento foi realmente sacri ficado e perdeu sua vida, há ainda um registro bastante interessante numa imagem. Pois se observamos a representação em mosaico do atamento de Isaac em Bet Alfa, que é provavelmente do século VI d.C. e foi descoberto apenas na década de 1939 na construção do kibbutz homônimo no vale do Jordão, vemos que Isaac, o qual paira sobre o altar, tem pequenas asas. Ora, esse é um símbolo da psique de uma pessoa, isto é, daquela parte imortal de uma pessoa em que ela se converte depois de sua existência terrestre. Um simbolismo bastante semelhante é encontrado também na representação da visão ezequieliana do campo dos mortos em Dura-Europos. Gabrielle Oberhänsli-Widmer, em sua análise, mostrou de modo impressionante que o tema do teste de Abraão está estreitamente ligado aos eventos da guerra judaica e da revolta de Bar-Kochba. Como já insinuamos acima no contexto do tema de Abraão na fornalha nas
Antiguidades bíblicas, a morte da fé própria estava totalmente no horizonte do mundo real da experiência na virada dos séculos I a.C./I d.C. — como já durante a época dos macabeus. O intento da literatura rabínica, que teve de processar esses eventos históricos traumáticos, era fortalecer a justeza dessas ações e assim consolidar a identidade do povo e sua ligação à Torá.
4 RESUMO E PERSPECTIVA :
A BRAÃO COMO FIGURA DE LEMBRANÇA E COMO FUNDAMENTO DA ESSÊNCIA DE ISRAEL Se, nas estruturas aqui presentes, não pudemos apresentar a tradição de Abraão rabínica e do início do judaísmo em sua totalidade, está, contudo, claro quão cambiante e complexa nos parece a figura de Abraão. Além do “pai Abraão”, há a figura de Abraão como um sábio que consegue compreender a essência da criação, podendo, assim, conhecer o criador verdadeiro. O conhecimento de Deus por Abraão forma o ponto de partida para as concepções de Abraão como uma figura pia, fiel à lei, que, mesmo nas difíceis situações existencialmente ameaçadoras de ataque à fé, permanece fiel a esse Deus. Ao mesmo tempo, o sábio Abraão aparece como mestre do mundo dos povos, cuja instrução pode ter característica tanto religiosa quanto mundana. Todas essas tradições pintam Abraão como uma figura ideal, e esse aspecto ainda se deixou complementar por muitos exemplos. Assim, Josefo pode descrever Abraão, de modo totalmente geral, como um homem que possuía “um olhar aguçado”, “grande persuasividade” e “discernimento que raramente falha” ( Antiguidades judaicas I 8,1) e que “sobressaía em virtudes de todo tipo e a quem Deus amava de modo especial por causa de sua excelente piedade” ( Antiguidades judaicas I 17); em sua renarração de Gênesis 4, ele ainda o pode retratar como poderoso general e figura régia ( Antiguidades judaicas I 9). Mas também narrativas do antigo judaísmo, que aqui podem ser apenas tocadas de leve, mostram o caráter de Abraão numa luz positiva: desse modo, o assim chamado Testamento de Abraão, numa ampla adoção de temas de Gênesis 18, põe sua hospitalidade em primeiro plano.
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Como Abraão é uma pessoa tão especial, ele também morre uma morte especial. Visto que ele nega permanentemente aceitar seu destino mortal, a morte, que aqui aparece personi ficada, se serve de uma artimanha. Ela lhe promete “alegria, vida e força”, se Abraão agarrar sua mão. Com efeito, o patriarca aceita essa negociação, mas a situação muda completamente de figura, pois agora a morte agarra sua alma; em seguida, o arcanjo Miguel juntamente com outros anjos sepultam o corpo de Abraão em Mamrê. Mas os anjos escoltam “sua alma preciosa” ao céu e, nesse percurso, cantam o “Três vezes santo” ao “Senhor, Deus do universo” (citação segundo a tradução de Janssen, 253 ss.). Abraão, portanto, também nas tradições do judaísmo inicial, é desenhado geralmente como figura ideal, mas essas tradições se diferenciam entre si porque, com base em distintas concepções de valor, definem diferentemente seus ideais. Desse modo, há representações de Abraão que, em parte, são nitidamente diferentes entre si: se o midrash salienta sua emocionalidade e pode até mesmo fazê-lo chorar, Fílon valoriza a compostura de Abraão: nem mesmo situações tão difíceis como o sequestro da esposa ou o dever de oferecer o filho amado levam Abraão a perder o controle sobre seus sentimentos ( Sobre Abraão § 170.74 s.). Fílon mostra, com isso, que foi in fluenciado pelas concepções de mundo da filosofia estoica, que considerava a serenidade uma das supremas virtudes humanas. A relação de Abraão com a astrologia também é descrita de modo igualmente controverso: enquanto os historiadores judaicos podem representar Abraão como inventor e mestre do saber astrológico, no Livro dos jubileus há um repúdio total a tais concepções. Pois ele explica expressamente que Abraão, na observação dos astros, chega à conclusão de que todos eles estão nas mãos de Deus. Portanto, uma investigação das estrelas e de suas regularidades é obsoleta ( Livro dos jubileus 12,17 s.). Essa relação mais distanciada com a astrologia, que lembra um pouco o “Livro dos vigilantes” do Henoc etíope (8,3), pode ser bem explicada no contexto da intenção do Livro dos jubileus, para o qual é importante um distanciamento da cultura grega. A tradição do Livro dos jubileus, em que ocorre uma expressa marginalização de Ismael e Esaú, mostra, além disso, que a ideia de que Abraão também desempenha um papel importante para o mundo dos povos não foi, de modo algum, positivamente aceita em todas as tradições do judaísmo antigo; ao contrário, vê-se aí, quando se considera a totalidade dos textos, uma posição completamente ambivalente.
Abraão — como mostram nitidamente nossos textos — representa para o judaísmo uma “figura da lembrança” com a qual se vinculam inúmeras tradições, amiúde totalmente diferentes. Nisto, o processo da formação da tradição pode ser perfeitamente comparado com o processo da memória individual: como pesquisas recentes da psicologia da memória mostraram, a memória nunca armazena um conteúdo de lembrança “em si”. A lembrança é, antes, algo vivo e sempre se constitui de novo na relação com a posição individual e supraindividual da pessoa que se lembra. Mas em Abraão não se espelha apenas a autoimagem de Israel ou de determinados grupos dentro do judaísmo. Em Abraão também se funda, por assim dizer, a existência de Israel. A tradição bíblica já vê em Abraão uma garantia do bem-estar de seus descendentes, quando Gênesis 26,5 informa que Isaac será abençoado porque Abraão ouviu a voz de Deus. Um pensamento semelhante, mas agora voltado para o coletivo, encontra-se em 2 Reis 13,23, quando se diz que Deus se compadece de Israel “por causa de sua aliança com Abraão, Isaac e Jacó”; e na “oração de Azarias”, nos suplementos ao livro canônico de Daniel, os jovens em seu pedido a Deus para que os salve da morte referem-se à promessa de Deus feita a Abraão, Isaac e Jacó (adições a Daniel 3,10). Assim, na tradição bíblica e nos apócrifos já está presente uma base para uma concepção que então deverá desempenhar um papel importante especialmente na teologia rabínica da época após a destruição do Templo de Jerusalém. Os sábios de Israel desenvolveram a concepção da zekhut de Abraão, do mérito de Abraão; a ela se ligou, de modo bastante geral, o discurso sobre o mérito dos patriarcas. Os méritos especiais que Abraão, mas também os outros patriarcas, adquiriram beneficiarão, em última análise, as gerações subsequentes. Desse modo, os textos rabínicos, muitas vezes por meio de associações de palavras-chave, estabelecem conexões bastante ousadas. Citemos aqui apenas alguns exemplos do midrash Bereshit Rabba: porque Abraão rachou a madeira (Gn 22,3), Deus mais tarde rachou o mar para Israel (Ex 14,21; assim Bereshit Rabba 55,8); porque Abraão partiu para Moriá no terceiro dia (Gn 22,4), Deus se revelou no terceiro dia para dar a Torá (Ex 19,16); no terceiro dia os que estavam no exílio também retornaram (Esd 8,15); por causa de Abraão, Deus ressuscitará os mortos no terceiro dia (Os 6,2; assim Bereshit Rabba 56,1). Mas o atamento de
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Isaac também estará do lado de Israel no juízo final e na ressurreição dos mortos ( Bereshit Rabba 56,1). Esses pensamentos in fluenciam até hoje a liturgia de Israel, pois na festa de Ano Novo, em que Israel pede o perdão dos pecados, há referência, nas assim chamadas orações de sikhronot, aos episódios no monte Moriá, para que Deus esvazie sua ira “de seu povo, de sua cidade e de sua herança” (citação segundo a tradução do livro de orações Safa Berura, 95 ss.). Então fica claro: Abraão não é apenas uma figura de lembrança, mas, graças à sua atuação, o Israel que reza pode até hoje contar com a graça de Deus. Por conseguinte, Abraão é uma parte integrante não só do passado, mas também do futuro do povo de Deus.
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Christfried Böttrich
ABRAÃO no cristianismo
1 INTRODUÇÃO:
UMA VELHA HISTÓRIA VELHA HISTÓRIA EM EM NOVA NOVA PERSPECTIVA PERSPECTIVA ABC: quem diz A, A de Abraã Abraão, o, deve também dizer Isaac. Quem diz Jacó diz Judá. E quem diz Judá diz Péres, e quem diz Péres diz Hesron. E quem diz Hesron diz Ram. E quem diz Ram diz Aminadab e Nahshon e Salmá e Bôaz e Obed e Jessé e David e Salomão e Roboão e Abias e Josafá e Jorão e Uzias e Jotão e Acaz e Ezequias e Manassés e Amom e Josias e Jeconias e Salatiel. E quem diz Salatiel diz também Zorobabel e Abiúde e Eliaquim e Azor e Sadoc e Aquim e Eliud e Eleazar e Matan e Jacó. E quem diz Jacó diz também José, marido de Maria, da qual nasceu Jesus, o Cristo. Quem diz C, C de Cristo, ingressa na história, na história de uma família que começa com o A de Abraão e não termina com o A de Auschwitz … (Jürgen Dialog og mit mit der Bibel, Berlin, 1984, 40). Rennert, Dial
Com A, de Abraão, marca-se um início cujo signi ficado é extraordinário para a autocompreensão da fé cristã, pois o que Jesus de Nazaré anunciou e o que os mensageiros do Evangelho continuam a levar depois da Páscoa estão profundamente enraizados na história do povo de Deus. Jesus e seus seguidores são judeus, que crescem na tradição
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de piedade de Israel, que preenchem seu cotidiano com orações e bênçãos, que no sábado vão à sinagoga e que ocasionalmente viajam a Jerusalém em festas de peregrinação. As grandes narrativas da Bíblia hebraica lhes são familiares desde a infância. Sua educação se nutre do reservatório da “Escritura” e se aperfeiçoa no círculo comum em torno de sua interpretação e sua atualização. São novos a mensagem de Jesus sobre o reinado iminente de Deus e, mais tarde, o próprio Evangelho da morte e ressurreição de Jesus — mas não ocorreria a ninguém entender essa pregação como fundação de uma nova religião. O fato é, antes, que Jesus e o cristianismo primitivo se inserem na história do povo de Deus Israel. Sem essa história seria impossível entender o que “reinado de Deus” signi fica. E sem essa história faltariam todos os pressupostos para compreender Jesus de Nazaré como o “Cristo” (isto é, “Messias “Messias”), ”), o “Kyrios” ou “o filho de Deus”. Onde quer que o nome de Abraão apareça no Novo Testamento, entra em consideração todo esse contexto histórico. Abraão atua como um símbolo da origem em comum, que qu e une judeus e cristãos. Se abrimos o Novo Testamento bem no início e começamos a ler o evangelho segundo Mateus, Abraão é um dos primeiros nomes que encontramos. O evangelista começa com uma “árvore genealógica” de Jesus, que ele — em consciente alusão a Gênesis 2,4 ou 5,1 — inaugura com as seguintes palavras: “Livro das origens (da “gênese”) de Jesus Cristo, filho de David, filho de Abraão”. Com dois grandes passos ele retorna ao fundo da história. Nesse processo, David e Abraão são as estações mais importantes, que o evangelista realça da seguinte maneira: com David ele põe em cena a esperança messiânica de Israel, com Abraão ele almeja a promessa da bênção de Deus para o mundo das nações. Ele não olha para um períod períodoo anterio anteriorr a isso. A partir de Abraão há novamente uma subida: “Este gerou aquele, que gerou aquele, que gerou …” — e assim se torna visível a sequência de gerações geraçõ es até José e Maria, os pais de Jesus. Como sabemos, o evangelista Lucas comportase nesse âmbito de forma totalmente diferente. Sua “árvore genealógica”, que só é encaixada após o batismo de Jesus (Lucas 3,23-38), conta para trás partindo de Jesus e chegando, por fim, a Deus, o criador dos homens. Isso mostra Jesus principalmente como “ filho de Deus” e Abraão é apenas apenas um na longa série de antepass antepassados ados (Lucas (Lucas 3,34). Em vez disso, para Mateus importa mostrar: com Jesus Cristo começa a história mais uma vez — mas esse recomeço tem sua pré-história. Ela começa naquele que, segundo Gênesis 12,13/18,18, deverá se tornar
“bênção para os povos”. Assim, também não é de admirar que nessa árvore genealógica já descubramos algumas pequenas “irregularidades” — as mulheres, por exemplo, que, contra o procedimento habitual, são expressamente citadas e que vivem como “estrangeiras” no povo de Deus (Tamar, Raab, Rute e a mulher de Urias). Com Abraão já está dada desde o início essa “perspectiva dos povos”. No judaísmo da época de Jesus, toda criança sabe o que é narrado em Gênesis 12–25 acerca do primeiro dos três “patriarcas”. Abraão é uma das figuras mais populares da piedade judaica. As pessoas do mundo helenístico não estão menos familiarizadas com sua história. Autores não judeus também de vez em quando se referem a ele. Quem participa do serviço na sinagoga ouve as leituras e interpretações dos capítulos correspondentes. Na diáspora, a tradução grega da Bíblia hebraica, a Septuaginta, torna as narrativas acessíveis para um novo e vasto público. Portanto, se Jesus vem a falar de Abraão, ele não precisa primeiramente dar uma longa explicação do que quer dizer. Bastam alusões. Algo semelhante se passa mais tarde com o apóstolo Paulo. Naturalmente, ele pode pressupor o conhecimento das narrativas bíblicas quando emprega Abraão em seus argumentos com as comunidades na Galácia e em Roma. Todos eles, incluindo os não judeus na comunidade cristã, estão inteirados sobre Abraão. Isso explica por que as menções a Abraão são tão esporádicas no Novo Testamento. Referências mais extensas encontram-se apenas na fala de Estêvão (At 7,2–8.16) e numa série de modelos da fé apresentada pela epístola aos Hebreus (Hb 11,8-19). Mas normalmente a história de Abraão é adotada no Novo Testamento apenas seleti vamente. Nisto, a promessa de Deus (Gn 15) e o atamento de Isaac (Gn 22) aparecem como os dois episódios mais importantes. Além disso, Paulo retoma ainda a história do conflito entre Sara e Hagar (Gn 16 e 21). Isso tudo, no entanto, concerne a somente uma pequena seção da narração dinâmica e de múltiplas camadas que vemos em Gênesis 12–25, para não falar dos inúmeros escritos e interpretações sobre Abraão do judaísmo primitivo! No centro das menções neotestamentárias está, de modo quase exclusivo, o interesse na promessa que Abraão recebe de Deus: Deus lhe promete terra, rica descendência e bênção. Para o cristianismo primitivo, a promessa da terra desempenha apenas um papel secundário. A promessa da descendência, ligada à promessa de “bênção para as nações”, desenvolve uma fascinação totalmente nova: já não se
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encontra presente aqui o motivo decisivo para também poder incluir não judeus na comunidade cristã? Não é justamente essa promessa original de Deus que pode exibir uma idade maior e uma dignidade superior do que o estabelecimento da aliança no Sinai? Então, a partir do século II nasce aos poucos uma literatura teológica cristã. O que ela tem a dizer sobre Abraão é decididamente determinado pelas diretrizes dos escritos neotestamentários. Mas, nesse meio-tempo, sua coleção, no emprego litúrgico e teológico, se funde com os escritos da Bíblia hebraica. Do “Antigo” e do “Novo Testamento” surge a Bíblia dos cristãos, que é primeiramente lida em grego e, depois, por longo tempo também em latim. Ali as pessoas reencontram toda a história de Abraão, cujo conhecimento se torna parte integrante de sua tradição. Nas pregações e nos comentários, os teólogos cristãos interpretam e reinterpretam essa história — como o fazem também seus colegas judeus. As obras do filósofo da religião Fílon de Alexandria, que trata detalhadamente e repetidas vezes o trecho Gênesis 12–25, estão na estante de Padres da Igreja tão influentes do período inicial como Clemente de Alexandria, Orígenes ou Gregório de Nazianzo. O historiador judeu Flávio Josefo, que reconta a história do Antigo Testamento para o público instruído grego, é estudado com atenção justamente pelos leitores cristãos. A literatura teológica recorre totalmente aos textos de referência originais e a sua história exegética judaica, mas não deixa de usar os óculos do Novo Testamento em sua leitura. Apesar de todos os pontos de contato com a tradição judaica, ela trilha seu próprio caminho. Até hoje a questão da relação metodológica com “a Escritura”, tal como a podemos observar no Novo Testamento e mais tarde na teologia cristã, desencadeia as maiores controvérsias. Os autores do Novo Testamento lidam, em parte, muito prodigamente com os textos de referência veterotestamentários, modificam o conteúdo textual de suas citações e acabam encontrando sempre o que querem encontrar neles. Muita coisa hoje nos parece um tratamento arbitrário dos textos. Mas até mesmo um Paulo ou mais tarde, por exemplo, um Orígenes são metodologicamente muito bem instruídos segundo os padrões de sua época. Seus princípios de exegese são simplesmente diferentes dos que usamos hoje. Eles não leem os textos como documentos históricos, que surgiram em determinado tempo sob determinadas circunstâncias e aos quais, por isso, devemos primeiramente conceder seu próprio direito. Ao contrário, eles partem de sua experiência de fé atual, que eles
põem sob a luz dos textos transmitidos. Usam preferencialmente o método da “interpretação alegórica”, que foi desenvolvida na interpretação grega de Homero e era amplamente difundida na cena literária do período helenístico. A interpretação alegórica parte da ideia de que o texto tem por base um sentido mais profundo oculto, que é preciso descobrir com auxílio de uma chave determinada. Para os autores do cristianismo primitivo, essa chave é o “evento de Cristo”, que desde muito já estava resolvido em Deus e, por isso, também sempre esteve presente na história do povo de Deus, Israel. Disso resulta a convicção: tudo o que essas narrativas do Antigo Testamento comunicam já aponta para Jesus Cristo! Podemos julgar essa leitura dos textos como uma monopolização deles ou como uma expropriação dos “proprietários” originais dessas narrativas — e muitas vezes ela foi isso mesmo. Por outro lado, não podemos avaliar a antiga interpretação bíblica com critérios e conhecimentos modernos. E o judaísmo daquela época não se comporta de modo diferente no aspecto metodológico. Assim, a exegese do Antigo Testamento ocupa intensamente judeus e cristãos por séculos a fio, ainda que nisto as divergências tenham aparecido com mais força do que o elemento conector do objeto comum. No entanto, apesar de todas as interpretações errôneas e dos atos falhos, a referência ao povo de Deus continuou sendo para os cristãos uma parte irrenunciável de sua própria identidade. Por isso, o cristianismo desde sempre não viu Abraão simplesmente como um “arameu errante” (Dt 26,5) de um passado longínquo, mas como um portador da esperança que para os cristãos se cumpriu em Cristo. Por isso, Abraão não é uma figura que eles poderiam observar e descrever com interesse distanciado. Ao contrário, Abraão representa a história da qual procede a fé cristã e que une todos os cristãos indissoluvelmente ao povo de Deus, Israel.
2 A BRAÃO NOS ESCRITOS DO NOVO TESTAMENTO 2.1. A BRAÃO E A PROMESSA DE D EUS Entre todos os episódios da história de Abraão do Antigo Testamento, há um muito especial para a nova perspectiva do cristianismo primi-
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tivo — a saber, o episódio da promessa de Deus a Abraão em Gênesis 15. Sua abertura, que aponta muito além da moldura da narrativa, faz dela uma história em que a comunidade cristã poderia se reencontrar e se abrigar. No nível narrativo, algumas coisas já ocorreram até esse momento. Abraão e seu clã partiram de Haran, perambularam por Canaã, por causa da fome foram para o Egito e depois do perigo lá enfrentado retornaram; por fim, Abraão e Lot se separaram, e, em seguida, Abraão por uma ação militar liberta Lot (que havia sido preso) e se encontra com o enigmático rei sacerdote Melquisedeque. E nisto, desde o início, as promessas de Deus acompanharam essa vida mo vimentada, aventureira. Repetidas vezes Deus fala diretamente com o patriarca. E sempre se trata de promessas de grande envergadura. Logo na saída de Haran, Deus lhe promete que ele se tornará um grande povo e “bênção para todas as famílias da terra” (Gn 12,1-3). Depois da chegada a Siquém, acrescenta-se a promessa da posse da terra (Gn 12,7). Depois da separação de Lot, passam novamente para o centro a rica descendência e a posse da terra (Gn 13,14-17). Mas o tempo passa, e nada disso se concretiza. Assim, a narrativa em Gênesis 15 chega a um ponto crítico. Quando Deus fala novamente com Abraão, este objeta em resignação: “Senhor Deus, que me darás? Eu vou-me embora sem filho, e o herdeiro da minha casa é Eliézer de Damasco!”. Mas agora ocorre a virada decisiva: Deus reitera todas as três promessas (descendência, bênção, terra) e as fortalece ao estabelecer formalmente uma aliança. Nesse contexto se encontra a impressionante cena em que Abraão deve contar as estrelas do céu, o que Deus comenta com as palavras: “Tal será a tua descendência!” Então se segue em 15,6 a sentença decisiva: “Abraão teve fé no Senhor, e por isso o Senhor o considerou justo”. Uma con fiança apesar das experiências até então e contra todas as probabilidades — é isso que distingue Abraão. E o cristianismo primitivo parte disso. Pois ele pressente: o mesmo se passa com a fé em Cristo, que contra toda experiência e contra todas as probabilidades signi fica confiança na atenção de Deus; ao mesmo tempo, a dimensão das promessas excede tudo o que desde então se podia depreender de Abraão e de sua descendência. Aqui se manifesta um excedente de sentido que move o termo “promessa” para uma perspectiva universal, que diz respeito à humanidade! Os autores do Novo Testamento se deixam impressionar por essa promessa transbordante. O evangelista Lucas a aborda numa passagem
significativa, logo no início de seu evangelho. Nas histórias sobre o nascimento de Jesus, ele interrompe várias vezes a sequência narrativa por meio de passagens hínicas, que re fletem teologicamente sobre a marcha dos acontecimentos. Tem um peso especial o assim chamado “Magnificat”, aquele hino de louvor que Maria entoa em seu encontro com Elisabete (Lc 1,46-55). O que realmente apenas deveria descrever a feliz expectativa de uma mãe galileia torna-se repentinamente um manifesto de grandes expectativas salví ficas com matiz político e deságua na conclusão: “Veio em socorro de Israel, seu servo, lembrando-se de sua misericórdia, como dissera aos nossos pais, a Abraão e sua descendência para sempre”. Aqui se exprime a convicção de que as promessas a Abraão ainda não se cumpriram totalmente, o que agora, no entanto, com o nascimento da criança se move para uma proximidade palpável. Algo análogo se aplica ao assim chamado “Benedictus”, um hino de louvor com que Zacarias celebra a recuperação da fala no dia da circuncisão de seu filho, João (Lc 1,68-79). Nisto se atribuem coisas à criança que deveriam sobrecarregar desesperadamente o rebento de uma família sacerdotal média. O cerne é a salvação para Israel que se insinua com seu nascimento: pois Deus criou salvação por meio dessa criança, “… e se lembrou da sua aliança santa, do juramento que fizera a Abraão, nosso pai, de conceder-nos que, libertados das mãos dos nossos inimigos, o servíssemos sem temor, em santidade e justiça sob seu olhar, ao longo dos nossos dias…” (Lc 1,73-75). Aqui também parece ter ficado da aliança de Deus com Abraão alguma coisa aberta que só agora é cumprida. As palavras de Zacarias permanecem totalmente na moldura do povo de Deus. Mas o público leitor de Lucas já sabe naturalmente até onde se estende o horizonte aqui. Nos Atos dos Apóstolos, os diversos discursos e pregações têm uma função semelhante à dos hinos do evangelho na moldura da história do nascimento. Eles flanqueiam as narrativas dramáticas da difusão do evangelho mediante reflexões teológicas correspondentes. Um dos primeiros discursos é feito por Pedro, que, depois de um milagre de cura no distrito do templo, se dirige à multidão que se junta (At 3,12-26). Depois de ter se referido no começo ao “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, o Deus de nossos pais”, ele guia o final de seu discurso para o tema da promessa: “Vós sois os filhos dos profetas e da Aliança que Deus concluiu com vossos pais, quando disse a Abraão: ‘Em tua descendência, todas as famílias da terra serão abençoadas’” (Gn
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12,3/22,18). Portanto, essa promessa da bênção cumpre-se agora nessa geração — mais precisamente pelo “servo de Deus (Jesus Cristo)”, com que Pedro termina. Mais claro ainda é Estêvão em sua pregação (At 7,1-53). Esta começa imediatamente com uma lembrança daquela promessa que outrora fez Abraão sair de sua pátria e, em seguida, desenvolve a exposição da história toda de Israel como uma história da revolta justamente contra essa promessa fundamental: “… vós sempre resistis ao Espírito Santo; como o fizeram vossos pais, assim também vós!”. Nisto já se pode ouvir o tom polêmico de uma controvérsia que gira em torno de saber se Jesus Cristo é parte ou não dessa história de promessa e esperança. Pela primeira vez tal controvérsia termina com a morte de um dos disputantes. Fica reservado ao apóstolo Paulo fornecer argumentos exegéticos. Para ele não pode haver dúvida: a promessa em que Abraão con fia va tão inabalavelmente refere-se à bênção que por “sua descendência” chega aos povos — e isso signi fica uma descendência totalmente especial: Cristo (Gl 3,16)! No nível narrativo, ele vê essa promessa como cronologicamente anterior à aliança da circuncisão entre Deus e Abraão (Gn 17) e muito mais anterior à firmação da aliança no Sinai com a entrega da Torá — e disso ele conclui a primazia dessa promessa em relação a todos os outros eventos salví ficos na história de Israel. Mas ainda falaremos mais detalhadamente disso em outro contexto.
2.2. A BRAÃO E SEUS FILHOS No sentido estrito, o patriarca Jacó deve ser considerado progenitor de Israel, pois a ele e aos seus doze filhos se remete diretamente o “povo das doze tribos” (At 26,7). Segundo o trecho de Gênesis 32,29, o nome “Israel” (= “aquele que luta com Deus”) deriva daquele encontro misterioso com Deus que Jacó, em seu retorno do Oriente, vivencia à noite num vau do rio Iaboq. Apenas com Jacó se inicia a delimitação genealógica que diferencia Israel dos outros povos em seu entorno geográfico. O que ocorre então no processo de formação do povo — na mudança para o Egito, no assentamento lá e, finalmente, na milagrosa libertação na noite da Páscoa — procede da história de Jacó e sua descendência. Abraão, no entanto, com sua fundamental experiência de Deus, está por trás dessa história. É ele que se desprende da
“idolatria” de seus pais, que con fia no Deus único e que, por isso, se torna digno daquela aliança que, na segunda geração seguinte, marca também a vida do patriarca Jacó. Nesse sentido, há sobretudo um significado teológico no fato de Israel se referir a Abraão como “seu pai”, pois soa nisso não uma conexão de descendência, mas, primariamente, o elemento de uma relação singular com Deus. 2.2.1. Privilégio da filiação a Abraão Em Israel, a referência aos patriarcas sempre foi entendida como um privilégio. Até hoje uma passagem da oração matinal do Siddur (o livro de orações judaico) diz: “Mas somos teu povo, os filhos de tua aliança, filhos de Abraão, que te amou, a quem juraste no monte Moriá, os descendentes de Isaac, seu único filho, que foi atado ao altar, comunidade de Jacó, de teu primogênito, a quem chamaste Israel e Ieshurun por causa de teu amor com que o amaste e por causa de tua alegria com que te alegraste com ele!”. Quem é um membro do povo de Deus, Israel, pode também se chamar “filho de Abraão” — o que indubitavelmente pode ser considerado um título de dignidade. Os filhos de Abraão vivem numa relação especial com Deus, que não esquece sua aliança com o progenitor. O evangelista Lucas narra duas histórias em que fica visível o privilégio dessa filiação a Abraão. A primeira se desenrola no dia de sábado numa sinagoga (Lc 13,10-17), onde Jesus está justamente ensinando. Ele então vê uma mulher toda curvada, dirige-lhe a palavra e cura-a. Como era de esperar, os críticos logo tomam a palavra, pois no dia de sábado não se pode realizar trabalho algum, o que normalmente também inclui a atividade de médico. Mas Jesus justi fica seu comportamento dizendo que “também ela, uma filha de Abraão”, sempre tem o direito de ser livre de sua enfermidade. Jesus enfrenta críticas de um lado totalmente diferente na célebre história de seu encontro com o coletor de impostos Zaqueu (Lc 19,1-10). A censura agora surge porque Jesus se hospeda na casa de um pecador e ainda se senta à mesa para comer com ele! Novamente ouvimos a resposta: “Hoje veio a salvação a esta casa, pois também ele é filho de Abraão”. Nenhuma doença (“presa por Satanás”, Lc 13,16), nenhuma falta (“se prejudiquei alguém”, Lc 19,8) podem separar por tanto tempo de Deus que não sejam possíveis
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uma cura ou uma conversão. Como “filha” e “filho de Abraão”, ambos permanecem membros do povo de Deus, em que não há uma filiação de primeira classe e uma de segunda classe. A mesma situação reaparece no círculo da comunidade paulina. Quando Paulo, na metade da década de 50 do século I d.C., está ensinando em Éfeso, chegam-lhe más notícias de Corinto. Pois lá, em sua ausência, surgem missionários que questionam sua legitimação apostólica e sua qualificação teológica — e nisto obtêm sucesso junto à comunidade. Sobre sua própria teologia, eles mal podem dizer algo de certo. Apenas isto é claro: eles são cristãos de proveniência judaica, que fazem valer enfaticamente sua identidade judaica. Paulo tenta reconquistar sua comunidade por meio de cartas. Em 2 Coríntios 11,21-33, ele aceita o desa fio e compara-se cheio de mordaz ironia com seus oponentes. O que estes têm a mostrar, Paulo o pode oferecer desde muito: “São hebreus? também eu; são israelitas? também eu; são descendência de Abraão? também eu; são ministros de Cristo? … muito mais eu!…”. É extremamente signi ficativo que logo Paulo, que como nenhum outro de seus contemporâneos discute tão intensamente a validade da Torá e o acesso dos não judeus a Deus, possa lançar sua identidade judaica no prato da balança de modo assim tão drástico. Ele não fica em nada atrás daqueles que invocam Abraão. Ele é um perito nos assuntos das “tradições dos pais” (Gl 1,14). Paulo volta a abordar expressamente esse ponto de vista. Em Romanos 9–11, em que trata da relação entre aqueles que creem em Cristo e os judeus que não o fazem, ele lança em 11,1 a questão retórica: “Acaso Deus rejeitou o seu povo?” A resposta diz: “De modo nenhum; porque eu também sou israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim!”. Esse não é apenas um ato de solidarização, mas sobretudo uma expressão daquele saber de que a pertença a Abraão significa um privilégio — um privilégio com o qual o próprio Deus se comprometeu irrevogavelmente. Todavia, a “filiação a Abraão” não é uma apólice de seguro com a qual se poderiam reclamar direitos. Podemos encontrar palavras agudas para isso no Sermão da Montanha de João Batista (Mt 3,7-10/Lc 3,7-9). Como um dos antigos profetas do Juízo Final, o Batista aparece e confronta os jerosolomitanos, que vão ao seu encontro no Jordão com autoconfiança: “Crias de víboras! Quem vos ensinou como fugir da ira que está para vir? Produzi, pois, frutos dignos da vossa conver-
são! E não concebais dizer a vós mesmos: ‘Temos por pai Abraão’. Pois eu vos digo que mesmo destas pedras aqui Deus pode suscitar filhos a Abraão!”. São palavras exageradas especialmente porque os destinatários desse discurso de ameaça são, como em Mateus, “fariseus e saduceus”. O privilégio da filiação a Abraão não fundamenta nenhuma salvação automática. Com a invocação a Abraão, as pessoas não podem simplesmente se eximir do dever de produzir “frutos dignos da con versão”. A passagem de Lucas 3,10-14 expõe o que se deve entender aqui: trata-se da justiça social, que exige uma ação com foco e engajamento. Depois de o Batista, logo no início, ter dado ao seu público o título pouco lisonjeiro “crias de víboras”, ele o insulta mais uma vez no final com palavras duras: Deus não tem necessidade de se contentar com duvidosos “filhos de Abraão”. Ele pode a todo momento recrutar outros candidatos — até mesmo das primeiras pedras à disposição, ele pode suscitá-los! Isso não é apenas uma fala grosseiramente hostil; ao contrário, ela tem uma agudeza teológica, pois diz concisamente: o privilégio da filiação a Abraão não é medido apenas com base na sucessão biológica. Ao contrário, trata-se de confiar em Deus tal como Abraão, e vivificar essa confiança cotidianamente. Com isso, o Batista mostra que ele entende a dignidade da filiação a Abraão ante um horizonte muito mais vasto do que o faz seu público. 2.2.2. A querela sobre a filiação a Abraão O conflito mais difícil do cristianismo primitivo, que preparou o terreno para os 2000 anos seguintes de sua história, pode ser concebido como o conflito em torno da compreensão de “ filiação a Abraão”. Ele é travado argumentativamente sobretudo por Paulo — até onde podemos reconhecer. O que está em jogo não é nada menos que a questão de saber se a comunidade cristã segue sendo um movimento de renovação intrajudaico ou se ela se desenvolve para uma comunidade mundial de judeus e não judeus. No centro está a questão sobre como não judeus podem encontrar acesso a Deus. Essa não é, por exemplo, teoricamente formulada e academicamente discutida. Ela se impõe por si mesma na ordem do dia no curso do anúncio do Evangelho. Inicialmente, os mensageiros do Evangelho, ainda tal como o próprio Jesus, se movem exclusiva-
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mente no contexto da piedade judaica. Como judeus religiosamente maduros, eles utilizam o direito de participar da leitura e da interpretação da Torá no serviço na sinagoga. Mas nas interpretações eles então desenvolvem a mensagem da ressurreição e, assim, tornam a sinagoga o pódio de sua pregação missionária. No entanto, eles não atingem apenas um público judeu nesse lugar. Desde sempre a sinagoga foi e é — diferentemente do templo jerosolomitano — um lugar a que os não judeus têm acesso desimpedido. O serviço na sinagoga ocorre numa esfera profana, que não exclui ninguém. Muitos, principalmente as pessoas instruídas, acham isso especialmente atraente e frequentam a sinagoga com prazer. Nisto, eles se deixam impressionar pelo monoteísmo claro e pela ética rigorosa de seus cocidadãos judeus. No entanto, eles hesitam em se converter totalmente ao judaísmo, pois isso, entre outras coisas, exige — no caso dos homens — a circuncisão. Assim, eles permanecem unidos à comunidade judaica “como tementes a Deus”, sem poder ser membros plenos. Evidentemente a pregação cristã encontra inúmeros adeptos entre esses “tementes a Deus”. Eles se deixam batizar e se tornam membros da comunidade cristã. Isso ocorre principalmente fora de Jerusalém, em comunidades como Cesareia e Antioquia. Portanto, o anúncio do Evangelho cria fatos consumados, sem que antes se esclareça que status realmente têm esses “gentio-cristãos”. Por meio de seu batismo eles são membros plenos da comunidade cristã ou ainda era necessária aqui uma “completação” pela circuncisão e conversão ao povo de Deus, Israel? Essa pergunta ameaça dividir o jovem cristianismo. Enquanto os jerosolomitanos insistem veementemente na circuncisão como sinal da aliança ou como a marca de identidade mais importante da confissão judaica, os antioquenses e outros não fazem questão disso. No assim chamado Concílio dos Apóstolos (Gl 2/At 15), os porta-vozes dos antioquenses se reúnem com os da comunidade de Jerusalém e chegam a uma decisão pragmática: “nada de condições!” — isto é, renúncia à exigência da circuncisão! Mas esse consenso logo se revela frágil. A parte derrotada em Jerusalém simplesmente não se contenta com a decisão e começa, por seu lado, a pressionar os gentio-cristãos à circuncisão na comunidade paulina. Paulo precisa se confrontar com eles. Na carta aos Gálatas, testemunhamos a controvérsia que Paulo conduz com grande agudeza e intransigência. Ao mesmo tempo, de vemos a essa situação o fato de Paulo, no curso de sua argumentação
agora fortemente teológica, formular aquelas visões que nós, desde então, chamamos de “doutrina da justificação” paulina. Para seu discurso apaixonado em defesa de que os não judeus também têm acesso a Deus por causa de sua fé em Cristo e se tornam membros plenos da comunidade cristã, Paulo se refere preferencialmente a Abraão. Ele faz da história do patriarca o ponto de Arquimedes em que sua argumentação começa. 2.2.2.1. Filiação a Abraão/ filiação a Deus: Gálatas 3,1-18
Um dos objetivos mais importantes de Paulo na carta aos Gálatas consiste em rechaçar a exigência de circuncisão dos agitadores em sua comunidade. Por isso em Gálatas 2 ele também relata tão detalhadamente sobre aquele “Concílio dos Apóstolos” de Jerusalém. Pois lá essa questão foi mais uma vez fundamental e decidida na presença das autoridades dirigentes. Mas como o problema, ao que tudo indica, continua causando inquietação, ele agora complementa teologicamente em Gálatas 3: a fé em Cristo não é de ficiente sem a circuncisão, ela não precisa de retoques nem aperfeiçoamento. Por essa razão, quem exige a circuncisão solapa a mensagem de Jesus Cristo. E isso já se pode aprender com Abraão. Em sua argumentação, Paulo vai direto ao ponto. A breve abertura desemboca numa pergunta: “Aquele que vos concede o Espírito e opera milagres entre nós, acaso o faz em virtude dos preceitos da Torá ou porque escutastes a mensagem da fé?”. A pergunta invoca a experiência dos gálatas. É uma pergunta retórica que Paulo nem sequer se dá o trabalho de responder. Pois imediatamente ele prossegue: “Como Abraão: ele teve fé em Deus e isso lhe foi tido em conta de justiça”. A conclusão é evidente: “Sabei, pois, que os que são da fé, esses são filhos de Abraão”. Visto que os gentio-cristãos, em virtude de sua fé em Cristo, chegaram a Deus, eles são então filhos de Abraão, mesmo sem uma relação genealógica direta e também sem conversão, incluindo a circuncisão. De resto, isso se aplica de igual modo aos judeu-cristãos na comunidade, cuja identidade religiosa também se funda primordialmente na fé em Cristo. Com isso, a fé de Abraão se torna o modelo do acesso dos não judeus a Deus: “Aliás, a Escritura, prevendo que Deus justificaria os pagãos pela fé, anunciou de antemão a Abraão esta
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boa-nova: todas as nações serão abençoadas em ti. Assim, pois, aqueles que creem são abençoados com Abraão, o crente”. Até aqui tudo bem. Mas agora surge para Paulo um problema de peso teológico bastante considerável, pois a circuncisão não signi fica algo de menor importância, que se poderia regular pragmaticamente. Em todo caso, ela é ordenada na Torá, a instrução de Deus. É considerada o sinal da aliança, que Deus em Gênesis 17 firmou novamente com Abraão. No Sinai, ela se manifesta pela entrega da Torá mais uma vez como uma marca de identidade eminente do povo de Deus. Na véspera da rebelião dos macabeus (meados do século II a.C.), muitos pios sofrem o martírio, porque insistem na circuncisão de seus filhos. Com razão os contemporâneos judeus reagem com grande suscetibilidade quando um fariseu como Paulo, de repente, começa a relativizar o significado da circuncisão! Ele não está com isso pondo em questão a validade da Torá? Há aqui necessidade de um esclarecimento. Como se posiciona a Torá em relação à promessa de Deus a Abraão? Paulo resolve esse problema com auxílio de um esquema histórico-salvífico, em que ele tem em mente o princípio muito difundido na Antiguidade de que “o mais antigo é melhor”. Ao mesmo tempo ele se serve das ideias de herança e execução de testamento. A promessa a Abraão seria então o testamento que garante o acesso das nações a Deus. Ela foi escrita em Abraão e “suas sementes/descendentes”. Habitualmente, “semente”, tanto em hebraico quanto em grego, atua como conceito coletivo, que abarca toda a descendência. No entanto, é de modo totalmente consciente que Paulo usa o conceito no singular: “Foi a Abraão que as promessas foram feitas, e à sua descendência. Não se disse: e às descendências, como se se tratasse de muitas, mas é de uma só que se trata: é à tua descendência — isto é, Cristo”. Essa é, portanto, exatamente aquela linha que a árvore genealógica de Jesus também traça no evangelho de Mateus. Só que Paulo a intensi ficou mais nitidamente: toda a história do povo de Deus corre desde Abraão até aquele descendente já mirado por Deus: isto é, Cristo. Com ele o testamento — a promessa da bênção para as nações — é executado. Mas qual papel ainda resta para a Torá? No tempo entre Abraão e Cristo, Paulo lhe pode atribuir apenas a função de regulamentação transicional. Com auxílio dos dados numéricos na Escritura, ele faz as contas: a Torá foi revelada apenas 430 anos após Abraão! Além disso — e aqui ele se refere a tradições judaicas de sua época — ela foi trans-
mitida a Moisés por anjos. Ela não pode competir com a promessa de Abraão em idade e imediatez, ou seja, em dignidade e categoria: “Eis, portanto, meu pensamento: um testamento em regra foi primeiro firmado por Deus (a saber, a promessa). A Torá, vinda quatrocentos e trinta anos mais tarde, não o invalida, de modo que ela (a Torá) tornasse inoperante a promessa”. Um pouco mais tarde (Gl 3,23-26), Paulo ainda descreve a Torá como um “pedagogo”, que vigia e conduz o menor, até que ele atinja a idade necessária para tomar posse de sua herança e poder agir com responsabilidade própria. “Assim a Torá se tornou nosso pedagogo, para nos conduzir a Cristo”. O novo acesso a Deus constitui-se na pertença a Cristo, que tem no batismo sua origem biograficamente determinável. Na seção seguinte, Paulo trata disso de maneira a fiada. No batismo a perspectiva da “filiação a Abraão” se estende à “ filiação a Deus” que é franqueada por Cristo a todos os homens: “Pois todos vós sois, pela fé, filhos de Deus, em Jesus Cristo. Sim, vós todos que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo. Não há mais nem judeu nem grego; já não há mais nem escravo nem homem livre, já não há mais o homem e a mulher; pois todos vós sois um só em Jesus Cristo. E se pertenceis a Cristo, é porque sois a descendência de Abraão; segundo a promessa, vós sois herdeiros” (Gl 3,26-29). A relação imediata de Abraão com seu Deus também beneficia todos aqueles que por meio de Cristo encontram o caminho ao Deus de Abraão. Nesse contexto também se relativizam os tons críticos à Torá, que desempenha um papel fundamental na crença e na vida de Israel e à qual Paulo se atém radicalmente! Não importa para Paulo jogar a Torá contra a promessa de Abraão. Seu argumento é crítico apenas porque seus adversários na Galácia a firmam que um mandamento da Torá (a circuncisão) deve ser cumprido como uma precondição para o acesso a Deus. Mas o cumprimento de instruções divinas jamais foi condição para a salvação! Deus se volta espontaneamente para todo o mundo das nações. Ele funda uma aliança com Israel e revela-se para todos os homens em Jesus Cristo. Esses são os eventos salvíficos decisivos. É isso que Paulo tem em vista — ainda que ele ocasionalmente, no calor da batalha, jogue fora a criança com a água do banho. O fato de os teólogos da Igreja Antiga terem pensado que podiam encontrar em Paulo uma rejeição por princípio da Torá já é parte da história de sua recepção e são “outros quinhentos”.
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2.2.2.2. Abraão e suas duas mulheres: Gálatas 4,21-31
Se Paulo iniciou a principal parte da carta aos Gálatas com a exposição da “doutrina da justificação” (Gl 3,1–4,31) com auxílio da história bíblica de Abraão, ele a conclui também com uma minuciosa referência a Abraão. Dessa vez, ele retoma a história de Hagar e Sara, como também dos filhos delas, Ismael e Isaac (Gn 16,1-16 e 21,1-21). Com esse novo documento bíblico, Paulo pretende enfrentar seus oponentes na Galácia em seu próprio terreno — isto é, uma referência à Torá. Paulo começa com uma fórmula citacional: “Pois está escrito que Abraão teve dois filhos. Um da escrava, um da mulher livre”. Já nessa abertura fica claro que Paulo trata muito seletivamente seu texto de referência. Pois, em todo caso, ficamos sabendo em Gênesis 25,1 que Abraão se casa outra vez depois da morte de Sara — com Qeturá, que lhe dá ainda seis filhos. Mas esses filhos permanecem excluídos da herança de seu pai. Segundo Gênesis 25,6, eles são compensados com presentes e mandados embora. Nesse sentido, todo o interesse se volta, com razão, para aqueles dois primeiros filhos, havia muito desejados e influenciados pela disputa das mães. O status social de Hagar, uma egípcia, é, segundo o texto-base, o de um contrato de serviço e não necessariamente o da escravidão no sentido legal estrito. Mas para Paulo o par de opostos “liberdade/escravidão” é uma chave decisiva para a compreensão da história. Ele ainda retomará esse par de opostos para a última seção da carta aos Gálatas, que contém instruções ético-morais. Contudo, inicialmente, o status legal diferenciado das duas mulheres serve para ilustrar mais uma vez a relação entre promessa e Torá. “Mas o filho da escrava nascera segundo a carne, enquanto o filho da mulher livre o era em virtude da promessa.” Nessa a firmação ressoam diferentes tons. Isaac, o filho de Sara, a esposa legítima, é o descendente já desde muito prometido por Deus. Ismael, ao contrário, foi gerado porque Sara quis ajudar um pouco a promessa de Deus por meio de sua criada. Portanto, confiança, de um lado, e impaciência e administração independente, de outro, marcam os dois meninos, como se se tratasse de um “ranqueamento”. A contraposição entre a expressão “nascera segundo a carne” (ou seja, da maneira biológica normal) e “em virtude da promessa” insinua que as condições de nascimento de Isaac foram sobrenaturais? Perto do final da seção, Paulo diz novamente que Ismael nasceu “segundo a carne”, mas agora diz que Isaac
nasceu “segundo o Espírito”. Assim, não pode haver dúvida quanto à hierarquia dos filhos. Apenas Isaac, o filho da promessa, nascido da mulher principal ou da esposa legítima, isto é, da mulher livre, é também o portador da promessa e herdeiro de Abraão. Na segunda seção, Paulo presta contas de seu acesso ao texto do ponto de vista metodológico. “Mas isso é dito alegoricamente. Pois essas duas mulheres são as duas alianças…”. Ele usa o método da exegese alegórica que foi desenvolvida até a máxima maestria pelo filósofo religioso judeu Fílon de Alexandria e já tinha sido testada na interpretação da Torá (incluindo a história de Abraão). Desde o início, portanto, não se trata de deduzir da história conexões historicamente corretas, genealogicamente exatas. Ao contrário, se Paulo interpreta Hagar como símbolo do judaísmo atual, mas Sara como símbolo da comunidade cristã, ele vira de ponta-cabeça as relações genealógicas! Todavia, isso não é incomum para a interpretação alegórica. Ela pressupõe que o texto signi fique uma coisa diferente do que quer dizer literalmente na primeira leitura. Na história não se trata, portanto, do conflito de duas mulheres, nem de suas esperanças e seus desesperos, de sua rivalidade e suas humilhações mútuas. Não se trata da disputa legal sobre quem é o herdeiro legítimo. Ao contrário, tudo é narrado apenas para apresentar duas alianças diferentes por meio das duas mulheres. Sara representa a aliança da promessa, que Deus firma com Abraão. Hagar representa a aliança do Sinai, cujo certificado se encontra na Torá. Paulo dá continuidade a esse simbolismo das duas alianças. À aliança do Sinai corresponde a Jerusalém atual, que vive em escravidão com seus filhos. À aliança da promessa corresponde a “Jerusalém do alto”, cuja característica mais eminente é a “liberdade”. As fundamentações não podem ser totalmente convincentes nem mesmo na estrutura da interpretação alegórica. Mas a linha básica é clara: a aliança da promessa de Deus com Abraão vale para todos os homens, sem precondições, enquanto a aliança do Sinai recua para trás desse cuidado primário, fundamental da parte de Deus. O fato de isso colar uma etiqueta da “escravidão” na Torá soa totalmente insuportável para a compreensão judaica, pois os sábios de Israel sempre salientaram: “não há nenhum indivíduo livre além daquele que se ocupa com o estudo da Torá!” ( mAv 6,2). Mas nessa interpretação é preciso lembrar-se do ponto de partida: trata-se do acesso dos não judeus a Deus — e apenas por causa desse
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interesse Paulo põe a Torá na segunda posição para que o signi ficado da promessa a Abraão sobressaia com muito mais clareza. Na última seção, Paulo mais uma vez lança mão de um recurso totalmente diferente, deixando claro que ele conhece a fundo a tradição exegética judaica de sua época. Depois de dirigir palavras de consolo a seus destinatários (“E vós irmãos, como Isaac, sois filhos da promessa!”) ele prossegue: “Mas, assim como então, o que nascera segundo a carne perseguia o que nascera segundo o Espírito, assim acontece ainda agora”. O ponto que ancora essa informação surpreendente é Gênesis 21,9: “E Sara viu brincar o filho que Hagar, a egípcia, dera a Abraão”. No texto hebraico não se pode ainda falar de perseguição. Mas a Septuaginta grega efetua uma pequena ampliação e escreve: “brincar com Isaac”. Portanto, Ismael não aparece mais simplesmente como uma criança ativa, mas também envolve Isaac, quatro anos mais novo, em suas brincadeiras animadas. Por isso, na tradição exegética judaica encontra-se cada vez mais a visão de que isso deve ser entendido no sentido de uma agressão contra Isaac. Na literatura rabínica posterior, o verbo “brincar”, por causa da comparação com outras ocorrências da palavra, é até mesmo interpretado como “praticar idolatria”, “cometer violência” ou “derramar sangue”. Se Sara, então, exige de Abraão que expulse Hagar e seu filho, isso aparece, à luz dessa interpretação, como preocupação justificada de uma mãe que gostaria de evitar a ameaça de uma desgraça. Na narrativa original, só se fala do ciúme de Sara, que teme pelos privilégios de seu filho, o que também, compreensivelmente, “irritou muito” a Abraão segundo Gênesis 21,11. Paulo, no entanto, usa aquela interpretação que constrói um conflito, para capturar nele a atual experiência de sua comunidade gálata. Se ele cita as palavras de Sara de Gênesis 21,10 (“Expulsa a escrava e o filho dela!”), isso também se lê, no sentido figurado, como uma instrução para a ação: expulsai aqueles que brincam em vossas comunidades com a exigência da circuncisão! Paulo foi bastante censurado por causa de sua interpretação alegórica de Gênesis 16 e 21. Ninguém menos do que Nietzsche a chamou de “uma inaudita farsa filológica em torno do Antigo Testamento”, falou-se de uma “inversão arbitrária da condição de progenitora” ou de um “caótico midrash de especulação helenística” e a firmou-se que um judeu só poderia balançar a cabeça para isso, mas a credulidade dos leitores seria gravemente desgastada nisso etc. Mas esses julgamen-
tos, que pretendem aplicar nossos critérios modernos para a formação intelectual de autores antigos, não fazem justiça aos interesses de Paulo. Naturalmente, não podemos hoje, no diálogo judaico-cristão, lidar com a história de Abraão tal como Paulo. É a própria experiência pessoal de fé que inicialmente determina o acesso a um texto, e as tradições existentes sempre interagem com a respectiva realidade da fé — isso se aplica igualmente à exegese bíblica tanto judaica quanto cristã. E, assim como Paulo justamente em Gálatas 4,30 se encontra com seus colegas exegetas judeus, há também hoje, num diferente espectro de métodos, não menos contatos entre a exegese judaica e a cristã. 2.2.2.3. Abraão como pai dos crentes: Romanos 4,1-24
Quando Paulo escreveu a carta aos Romanos, as lutas com os adversários gálatas já tinham terminado. O apóstolo encontra-se em Corinto e espera o fim do inverno, até que se reiniciem as viagens marítimas e ele possa entregar pessoalmente em Jerusalém o produto de suas coletas das comunidades gregas e da Ásia Menor. Mas então ele também quer finalmente viajar para Roma. Com a epístola à comunidade ele já prepara essa próxima etapa. Como ninguém lá o conhece, a carta tem inicialmente a função de apresentação. Ao mesmo tempo, porém, Paulo, na tranquilidade de seus aposentos de inverno em Corinto, faz um balanço sobre as lutas e experiências anteriores. O que ele havia escrito aos gálatas com paixão e intensificação polêmica é agora examinado a fundo com a distância e a visão de conjunto. Objetivamente, portanto, a carta aos Romanos se liga estreitamente à carta aos Gálatas. Mas na formulação de sua “doutrina da justificação” Paulo usa aqui um tom bem mais moderado. O problema básico em relação à comunidade em Roma permanece, contudo, o mesmo: como os não judeus encontram acesso a Deus? Além do batismo, eles também precisam da circuncisão? Baseando-se no método bem-sucedido, Paulo recorre mais uma vez à história de Abraão. Em Romanos 3,29, Paulo resume as reflexões feitas até então numa única pergunta, a que ele mesmo imediatamente responde: “Ou então Deus seria somente o Deus dos judeus? Porventura não é ele também o Deus das nações? Sim, também das nações!”. Para ambos os grupos, os circuncisos e os incircuncisos, ou Israel e as nações, a fé é o critério
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decisivo de sua relação com Deus. Com isso surge inevitavelmente o problema já conhecido: como fica a autoridade da Torá? A história de Abraão continua fornecendo o melhor exemplo para responder a essa questão. Inicialmente, Paulo repete apenas os argumentos conhecidos de Gálatas 3. A respeito da justiça de Abraão, Gênesis 15,6 (que agora já se tornou clássica) nos oferece a seguinte informação: “Abraão teve fé no Senhor, e isso lhe foi levado em conta de justiça”. Em seguida, Paulo explica que apenas a fé corresponde à misericórdia de Deus, mas não as obras. Em Salmos 32,1 (“Feliz o homem cujo pecado o Senhor não leva em conta!”) ele reencontra essa misericórdia de Deus e continua a perguntar: “Porventura essa bem-aventurança só concerne aos circuncisos ou também aos incircuncisos?”. Nessa passagem entra em cena uma nova referência à história de Abraão, ainda que Paulo retome o esquema histórico-salvífico que já foi tomado como base em Gálatas 3. Se ele lá tinha argumentado com a precedência cronológica (e, portanto, objetiva) da promessa de Abraão em relação à entrega da Torá no Sinai, agora ele o faz tendo em vista a circuncisão de Abraão. A justiça em virtude da fé já é atestada para Abraão em Gênesis 15 — mas apenas dois capítulos depois, em Gênesis 17, fala-se da circuncisão de Abraão. Por isso, Paulo entende a circuncisão sobretudo como uma confirmação visível, posterior, daquilo que fora prometido a Abraão muito tempo atrás: “Depois, o sinal da circuncisão lhe foi dado como sinete da justiça recebida pela fé, quando ele era incircunciso…”. Disso Paulo deriva uma referência direta ao status dos não judeus na comunidade cristã. Isso tudo tem sentido no fato de “que ele (Abraão) se tornou, ao mesmo tempo, pai de todos os crentes incircuncisos, para que lhes fosse atribuída a justiça, e pai dos circuncisos, dos que não só pertencem ao povo dos circuncisos, mas também caminham nas pegadas da fé de nosso pai Abraão, antes de sua circuncisão”. O ponto de ancoragem para judeus e não judeus igualmente é, portanto, Gênesis 15; e quem segue a fé, que Abraão tinha ainda antes da aliança da circuncisão, pode também entender a circuncisão como um sinal ou selo significativos e valiosos. Com isso se diz o que há de mais importante. As re flexões seguintes apenas variam mais uma vez o tema da promessa e da Torá. Mas a linha básica continua: a promessa a Abraão e a “cada descendente” vale para todos os crentes — ou seja, “não só para os que se
escudam na lei, mas também para os que se escudam na fé de Abraão, que é o pai de todos nós”. Num último passo argumentativo, Paulo reflete mais uma vez sobre a analogia entre a crença de Abraão na promessa de Deus e a crença da comunidade cristã no Cristo ressuscitado. Mas aqui ele vai além das explanações efetuadas na carta aos Gálatas. O iniciador da argumentação é a citação de Gênesis 17,5: “Eu fiz de ti o pai de um grande número de nações”, o que um pouco mais tarde é ainda salientado por Gênesis 15,5: “Sua descendência será tão numerosa (quanto as estrelas no céu)”. Com forte contundência, Paulo salienta: “Ele não fraquejou na fé, ao considerar o seu corpo — era quase centenário — e o seio materno de Sara, ambos já atingidos pela morte”. Em face da fertilidade quase extinta, tanto a dele quanto a de Sara, Abraão con fia na força criadora de Deus, isto é, no Deus “que faz viver os mortos e chama à existência o que não existe”. É exatamente essa fé que Paulo no final também atesta para os romanos como os “que creem naquele que, dentre os mortos, ressuscitou Jesus, nosso Senhor, o qual foi entregue por nossas faltas e ressuscitado para nossa justi ficação”. Segundo essas explanações, “ filhos de Abraão” são todos os que creem no Deus de Abraão como pai de Jesus Cristo. Paulo visa, com isso, aos gentio-cristãos e aos judeu-cristãos na comunidade cristã. Ambos os grupos têm o mesmo status diante de Deus. Os gentiocristãos não ficam em nada atrás dos cristãos judeus. Não se deve lhes impor exigências adicionais. Ambos são “ filhos de Abraão” por causa de sua fé comum. Mas como ficam os judeus que não confessam Cristo como Messias e Kyrios? Paulo trata dessa questão em Romanos 9–11. 2.2.2.4. “nem todos … são filhos”: Romanos 9,7.
Os capítulos 9–11 da carta aos Romanos são algo como uma pedra de toque para aquilo que Paulo desenvolveu até então para a justi ficação do homem perante Deus. Se o caminho para Deus passa, indiferenciadamente para todas as pessoas, pela crença em Cristo, então Israel, fora da comunidade cristã, não estaria separado de Deus? Eis uma contradição que se deixa resolver facilmente. Pois uma coisa está fora de questão: a eleição de Israel continua vigente (Rm 9,4-5): “eles que são
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os israelitas, a quem pertencem a adoção, a glória, as alianças, a lei, o culto, as promessas e os pais, eles en fim dos quais descende o Cristo”. Deus não repudiou seu povo nem anulou sua aliança. No entanto, a fé em Jesus Cristo não só une judeus e cristãos, mas também quão dolorosamente os separa! Como entender isso? Paulo não tem à mão nenhuma solução fácil nesses três capítulos. Tudo o que ele faz é tentar descrever os caminhos inconcebíveis de Deus e, pelo menos, aproximar-se tanto quanto possível da relação entre eleição e revelação de Cristo. Ele o faz em três investidas. Em Romanos 9,6-29 ele pergunta pela relação entre Israel e as promessas de Deus: a eleição é um ato livre e soberano. A segunda in vestida em Romanos 9,30–10,21 volta o foco para a posição de Israel e das nações perante Deus: entre os dois grupos não há nenhuma diferença fundamental. Por fim, Paulo pergunta em Romanos 11,132 pelo destino de Israel e pelo acesso das nações à salvação: há uma conexão interna entre a rejeição da revelação de Cristo e sua aceitação? No final, muita coisa foi considerada, mas muita coisa também permanece em suspenso. Paulo termina com um hino em Romanos 11,33-36: há coisas que ultrapassam nossa compreensão. A primeira investida começa com uma tese que tem, contudo, caráter apenas provisório: “Nem todos de Israel são Israel” (Rm 9,6). Isso significaria: aqui é preciso mais uma vez diferenciar. As promessas de Deus não se fi xam simplesmente numa grandeza genealogicamente definida. Portanto, apenas aquela parte que confessa Cristo seria então o “verdadeiro Israel”? Paulo novamente recorre à história de Abraão para ilustrar sua intenção: “nem por serem descendência de Abraão são todos (seus) filhos. Mas: ‘Em Isaac será chamada a tua descendência’ (Gn 21,12). Isto é, não são os filhos da carne que são filhos de Deus; mas os filhos da promessa são contados como descendência”. Esse argumento conduz a uma espécie de espiritualização do conceito de Israel. Em Abraão, na sequência de gerações colocada claramente antes de seu neto Jacó/Israel, está o critério para estabelecer quem pertence a Israel. “Israel” se torna símbolo da pegada da promessa de Deus na história. Há também um tipo de conclusão inversa? Numa intensi ficação ousada Paulo aponta a continuação da narrativa dos patriarcas: Rebeca, a mulher de Isaac, o filho da promessa, fica grávida de gêmeos. Já no seio materno, os dois lutam entre si. Em seguida, Deus comunica à mãe: “O mais velho servirá o menor!” (Gn 25,23), o que Paulo comenta com a palavra de um profeta: “Pois amei Jacó (o mais jovem) e
odiei Esaú (o mais velho)” (Ml 1,2-3). Então o reverso da eleição significa rejeição? A salvação para as nações signi fica, por exemplo, desgraça para Israel? Aqui Paulo anda num terreno delicado! No capítulo 11 ele salientará expressamente que a eleição de Deus é irrevogável e que todo o Israel será salvo. Mas por causa dos não judeus, ele exagera o fator da eleição, ela é assunto exclusivo de Deus, que não se deixa por nada, nem mesmo pela aliança com Israel, limitar-se em sua liberdade de considerar justa a fé dos povos em Cristo. Ao mesmo tempo, Paulo experimenta toda a força da realidade da separação atual — e sofre com ela. Essa realidade não pode ser minimizada nem eliminada com interpretações. Ele começou toda a passagem em Romanos 9,2 com as palavras: “Trago no coração uma grande tristeza e uma dor incessante. Sim, eu desejaria ser anátema, ser eu mesmo separado do Cristo, por amor de meus irmãos, os da minha raça segundo a carne”. Nisto fica claro: não se trata aqui de meros jogos intelectuais. Para aqueles que encontram o caminho para Deus pela fé em Cristo a relação com Israel é um problema existencial. Foilhes dado lutar pela determinação dessa relação — e em última análise deixar para Deus a solução. Qualquer resposta de finitiva, seja na delimitação ou no apagamento dos limites, seria uma redução inaceitável. No auge desse capítulo, Paulo desenvolve uma imagem impressionante (Rm 11,17-24). O povo de Deus se assemelha a uma velha oliveira em que são enxertados ramos de um exemplar selvagem. Não importa se a imagem é correta em termos de horticultura — todo o interesse repousa nesses ramos outrora selvagens (as nações). Esses ramos ganham agora parte “na raiz e na seiva da velha oliveira”. Mas a quem ou ao que se refere essa raiz? Evidentemente Paulo está pensando de novo na promessa que foi dada a Abraão. Então ele sai da imagem e fala diretamente aos gentio-cristãos em Roma: “Mas se te gloriares: não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz a ti”. Mas a última palavra ainda não foi dita sobre aqueles ramos hereditários, que por um momento tiveram de dar lugar aos novos ramos. Por isso, permanece decisivo apenas o agradecimento dos ramos silvestres por seu “enobrecimento”. Tudo o mais não é assunto seu. Abraão, em todo caso, não serve como advogado para critérios de exclusão, ainda que seu exemplo não signi fique nada menos que o apagamento de diferenças na atitude em relação a Deus. Paulo luta pela aceitação da ampliação do círculo dos filhos de Abraão com Cristo. Ele se conforma com o fato de essa ampliação também causar
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nossas delimitações. Mas ele se guarda de desenvolver disso um sistema. A tônica está não sobre o julgamento dos outros, mas sobre o agradecimento pela experiência própria. 2.2.3. Filiações de Abraão e outras filiações A comunidade do evangelho de João encontra-se numa situação afliti va. Por volta do final do primeiro século, possivelmente no ambiente sírio, seu caminho se separou definitivamente do caminho de sua comunidade materna judaica. A expressão “exclusão da sinagoga” ocorre três vezes no evangelho. Ela sinaliza um conflito atual, que também se reproduz no nível narrativo. Paulo já insere a forte polêmica de ambos os lados na narrativa da história de Jesus. Agora os “judeus”, que ao mesmo tempo são representantes “do mundo”, aparecem como ad versários de Jesus. A aceitação e a rejeição do Evangelho são capturadas numa imagem em preto e branco, em que há pouco espaço para nuanças. Nessa situação Abraão se torna uma figura de contraste. João 8,31-59 apresenta uma disputa, cuidadosamente formulada, de Jesus com “os judeus”. Ela começa com muito boa disposição (“os judeus que acreditaram nele”) e termina com uma confrontação (“Então eles colheram pedras para atirá-las contra ele…”). O que já havia ressoado na pregação do Batista ou, em Paulo, no tema da “filiação de Abraão” retorna ainda em forma agravada. Durante o diálogo ocorre uma mudança que não se poderia considerar uma situação conversacional real — mas que é bastante compreensível para a condensada experiência da comunidade joanina: os judeus crentes do início tornam-se, de repente, aqueles que não dão espaço à palavra de Jesus, não entendem seus discursos e até mesmo tentam matá-lo. Nesse diálogo fracassado, o evangelista reproduz a relação fracassada da comunidade cristã com seus contemporâneos judeus. Tudo começa com um dos célebres mal-entendidos joaninos. Jesus fala da verdade, que liberta e consiste em sua palavra (Jo 14,6, “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”). Mas seus interlocutores contrapõem: “Nós somos a descendência de Abraão e nunca ninguém nos reduziu à servidão; como podes tu pretender que nós venhamos a nos tornar homens livres?”. Com efeito, a liberdade é uma das experiências básicas na crença de Israel em Deus. Na medida em que Deus
escolheu seu povo para si, ele o libertou de todas as amarras de uma vez por todas. Com sua objeção os judeus podem, com razão, se referir a isso. Seu mal-entendido encontra-se em outro nível. A resposta de Jesus conduz a ele: “Aquele que comete o pecado é escravo do pecado”. O pecado e, portanto, o distanciar-se de Deus são sempre concretos. E a “liberdade” não é uma abstração, mas também deve ser uma experiência relacionada a uma situação. O momento é agora de finido pela experiência de uma controvérsia hostil, que separa de Deus. “Eu sei que sois a descendência de Abraão. Mas procurais me fazer morrer … E vós fazeis o que ouvistes junto do vosso pai.” A rejeição, indo até a ameaça de morte, não pode ser de Deus. Mas o apelo não é ouvido. Os interlocutores, imperturbáveis, insistem: “O nosso pai é Abraão”. Mas agora eles devem ouvir a contraposição: “Se sois filhos de Abraão, fazei, então, as obras de Abraão!”. As “obras” de Abraão? Em que se está pensando aqui? Trata-se de sua firmeza nas provações (Gn 22), ou sua confiança (Gn 15) é entendida como uma espécie de obra? Nem uma coisa nem outra — pois para o evangelista se trata apenas de um fato: cumpre conhecer a “verdade” (e, com isso, o próprio Cristo), e nisto Abraão é modelo. Abraão conheceu o que Deus queria dele. Os adversários, no entanto, não compreendem as palavras de Jesus e o rechaçam. Jesus replica: “Mas vós fazeis as obras do vosso pai!”. Agora a situação se torna hostil. Os atacados se defendem: “Nós não nascemos da prostituição! Temos um só pai, Deus!”. Imperceptivelmente, a conversa escalou para uma brusquidão cada vez maior e agora atinge seu ponto alto: “Se Deus fosse o vosso pai, vós me teríeis amado … O vosso pai é o diabo, e vós estais determinados a realizar os desejos do vosso pai!”. A referência à filiação de Abraão vê-se repentinamente confrontada com a acusação da filiação ao diabo! Nesse ponto a disputa muda de direção. Se até agora Jesus se encontrava na ofensiva, e seus adversários na posição de defesa, estes agora invertem a lança e empurram Jesus para a defensiva. Pois sua acusação foi grave. No plano da história de sua recepção, ela teve consequências desastrosas e, durante séculos, foi sempre instrumentalizada como expressão barata para demonizar concidadãos judeus. Mas, no contexto de nosso texto, essa expressão está bem longe de qualquer generalização. Ela nasce da situação de um con flito atual, doloroso e deve simplesmente explicar a origem dessa veemente re jeição, incluindo a intenção de morte. Ela é a tentativa desesperada
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e infeliz de encontrar motivos de uma parte ser causa de derrota da outra. De acordo com isso, a rejeição que Jesus sofre não sucede por responsabilidade própria. No pano de fundo está um poder que determina as decisões humanas. Para João, o mundo apresenta uma estrutura dualista: luz e trevas, vida e morte, verdade e mentira, Deus e diabo. Se a verdade vem de Deus, então a mentira só pode proceder do diabo. “Desde o princípio ele foi um homicida e não se manteve na verdade, porque nele não existe verdade… porque é mentiroso e pai da mentira”. Essa imagem em preto e branco, exposta polemicamente, pode talvez explicar a experiência atual, dolorosa. Ela, contudo, permanece limitada a isso e não deve ser generalizada. Só uma ideia é generalizada em João: a filiação de Abraão é, por coerência, cristologicamente determinada. Abraão conhece “a verdade” — e essa verdade de Deus revela-se agora em Jesus Cristo. Com isso se aborda a ideia principal da segunda parte dessa con versa, em que Jesus deve se defender contra uma incompreensão crescente. Seu ataque polêmico, em que se falou da filiação ao diabo, retorna imediatamente para ele: “Não dizemos com razão que és samaritano e que tens demônio?”. A resposta, segundo a qual quem guarda a palavra de Jesus “jamais verá a morte”, somente agrava a acusação de possessão. Em todo caso, Abraão e os profetas, ou seja, comprovados homens de Deus, estão mortos! “Serás tu maior do que nosso pai Abraão, que morreu? … Quem pretendes tu ser?”. Os interlocutores podem avaliar as palavras de Jesus apenas como grotesca superestimação de si mesmo. Eles o fazem justamente porque não veem nele o logos ou o “filho de Deus”, que vem do pai e retorna ao pai. Jesus tem apenas essa meta. De fato, ele é mais do que Abraão, pelo que ele não se glorifica a si mesmo, mas é glorificado por Deus. “Abraão, vosso pai, exultou na esperança de ver o meu dia. Ele o contemplou e ficou cheio de alegria.” Agora a indignação é completa: “Nem sequer tens cinquenta anos e viste Abraão?”. Como Abraão poderia ter “visto” o dia de Cristo? Na narrativa bíblica, foram-lhe feitas promessas que apontam longe no futuro. Os escritos sobre Abraão do cristianismo primitivo dotam o patriarca de dons proféticos ou o fazem ter, como visionário, um vislumbre do mundo de Deus. Provavelmente é nisso que se pensa aqui. Os patriarcas já contemplam a salvação do tempo vindouro. Jesus, porém, que nem cinquenta anos tem — como ele pretende saber isso? Sua resposta ocorre num tom de convicção e grande autoridade: “Em verdade, em verdade, eu vos digo, antes que
Abraão existisse, eu sou”. Isso está certo se vemos em Jesus não só o pregador peregrino da Galileia, mas “a palavra”, que já estava junto de Deus “no início” (Jo 1,1). Com isso, num nível teologicamente denso, se pressupõe a preexistência de Jesus — o que os interlocutores (que já se tornaram adversários) só podem compreender como blasfêmia. Em seguida a isso, voam as primeiras pedras. Em Abraão se torna visível não apenas a atenção de Deus para com o mundo das nações. Em suas “obras”, isto é, em seu conhecimento de Deus, também se dividem as opiniões. João não pensa em categorias de um “ranqueamento”, mas na forma de oposições. Isso corresponde à sua experiência cotidiana. Mas tal experiência se modifica com o tempo. O que os judeus e cristãos vivenciaram em faltas mútuas resulta hoje numa percepção totalmente nova da misericórdia de Deus, que vale para todos os filhos de Abraão e não está sujeita a nenhuma censura humana.
2.3. A BRAÃO E O MISTÉRIO DA FÉ Judeus e cristãos são unânimes no seguinte: em Abraão se mede o que significa “fé”. No entanto é controverso o que se entende sob o conceito de “fé” — e isso repercute na interpretação da história de Abraão. Trata-se da postura de confiança ou do tomar-por-verdadeiro um determinado estado de coisas? Trata-se de um posicionamento ou de uma confiança concreta? O texto hebraico de Gênesis 15,6 permanece aqui em suspenso e abre certo espaço de manobra para a interpretação: Abraão concede a si mesmo a fé ou é Deus que lhe “credita” a fé? A tradução grega torna a questão inequívoca: Deus é o sujeito agente. Mas a abertura continua a existir em relação à questão de saber se essa passagem se refere ao ato concreto ou à con fiança constante, aberta ao futuro. Aqui as interpretações tomam caminhos diferentes, mesmo nos escritos do Novo Testamento. 2.3.1. Critérios da fé Sempre chamou a atenção o fato de a carta de Tiago avaliar a fé de Abraão de modo totalmente diferente de Paulo. Será que com isso
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ele tenta até mesmo se opor a Paulo ou pelo menos a um mal-entendido de Paulo? Tiago 2,14-26 trata do amor ativo ao próximo. De que vale a fé que se esgota em meras palavras? O exemplo aduzido se iguala a uma caricatura: “Se um irmão ou irmã não têm com que se vestir e o que comer todos os dias, e um de vós lhes disser: ‘Ide em paz, aquecei vos, bom apetite!’, sem, porém, lhes dar o necessário para subsistir, de que adiantaria? Do mesmo modo, a fé que não tivesse obras estaria morta em si mesma”. Palavras sem a ação auxiliadora são puro cinismo e não têm nada a ver com a fé. Mais uma vez, Abraão serve de exemplo. Agora, porém, o interesse do autor se volta para o comportamento de Abraão e, por isso, recorre obrigatoriamente a Gênesis 22: “Abraão, nosso pai, não foi justi ficado pelas obras, quando ofereceu sobre o altar seu filho Isaac?”. Visto que sua fé agiu juntamente com suas obras ou “foi completada pelas obras”, isso lhe foi creditado como justiça. Vê-se que a ênfase é totalmente diferente daquela de Paulo: Gênesis 22 aqui — Gênesis 15 lá, a firmação na provação —, confiança contra toda a aparência. As duas referências não se excluem mutuamente? O que Paulo diria sobre isso? Paulo supostamente não teria nada a objetar contra o trecho em Tiago 2,21-23! Pois o desejo de Tiago é inteiramente distinto do problema do apóstolo. Paulo voltase veementemente contra tornar as “obras (isto é, preceitos) da Torá” a precondição do acesso a Deus — e por isso as põe como alternativa em relação à “fé”. Tiago, em vez disso, polemiza contra palavras vazias. Sua alternativa signi fica “fé viva ou fé morta”. Para ele não se trata de precondições, mas de determinações para execução. A fé não é um evento racional, mas algo que abrange a pessoa toda e marca toda a sua vida. E também Paulo naturalmente concorda com isso, quando fala em Gálatas 5,6 da “fé que opera pelo amor”. Por isso, o exemplo em Tiago 2 tem sua razão de ser. O comportamento de Abraão mostra que sua fé é essa fé viva, que opera pelo amor. 2.3.2. Abraão entre os modelos de fé Com sua referência a Abraão, Tiago 2,21-23 segue uma tradição que foi muito difundida no judaísmo primitivo. Para fins de instrução
os modelos do passado são alinhados nas assim chamadas séries de paradigmas, em que Abraão é sempre citado com sua “resistência na provação” (Gn 22). Sirácida 44,19-21, por exemplo, salienta em seu “elogio dos antepassados” (44–50): “E na prova ele foi encontrado fiel”. Mais nítido ainda é o contexto em 1 Macabeus 2,52: “Não foi Abraão fiel na prova, e não lhe foi isso imputado como justiça?”. Isso é seguido por Tiago 2,21-23: “Porventura não foi pelas obras que nosso pai Abraão foi justificado quando ofereceu sobre o altar seu filho Isaac?… e se cumpriu a escritura que diz: E creu Abraão em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça (Gn 15,6) e ele foi chamado ‘amigo de Deus’”. Não se pode imaginar uma distinção maior do que essa! No entanto, o título “amigo” não se origina da própria narrativa bíblica sobre Abraão. É apenas em retrospecto que ele é atribuído a Abraão em diversos contextos (Is 41,8; 2Cr 20,7). Na literatura do judaísmo primitivo, “Abraão, o amigo de Deus” já tinha se tornado uma fórmula fi xa. Aqui, portanto, Tiago 2,23 está seguindo um uso linguístico difundido. E a carta aos Hebreus retoma essa linha. Sua grande série de paradigmas para a fé dos ancestrais, resumida sob a expressão “nuvem de testemunhas” (Hb 11,1–12,3), inclui Abraão e Sara em Hebreus 11,8-19. São salientadas sua saída para um lugar incerto, a con fiança na promessa da descendência apesar da idade avançada e a sua resistência na provação. A explicação no início da série (Hb 11,1) sobre o que é a fé parece ter sido obtida com Abraão: “a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se veem”. O exemplo detalhado de Abraão atinge o ponto alto com a referência a Gênesis 22: “Pela fé, Abraão, posto à prova, ofereceu Isaac; oferecia o filho único, embora houvesse recebido as promessas e lhe houvessem dito: É por Isaac que te será garantida uma descendência. Mesmo a um morto, pensava ele, Deus é capaz de ressuscitar; por isso, numa espécie de pre figuração ele também o recobrou”. Essa prefiguração se refere a Cristo. Portanto, a fé de Abraão é usada diretamente como modelo da fé na ressurreição de Jesus. Na assim chamada Primeira epístola de Clemente , uma carta da comunidade cristã de Roma para a comunidade cristã em Corinto (cerca de 96), há uma série de paradigmas (1Clemente 9,2–12,8), que apresenta os servos perfeitos de Deus. Mais uma vez, Abraão ganha amplo espaço (1Clemente 10,1-7). Inicialmente se trata de sua obe-
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diência, da saída de sua pátria e de sua con fiança. O ponto alto é no vamente o atamento de Isaac: “Por sua fé e sua hospitalidade foi-lhe concedido um filho em sua velhice. E em obediência ele o ofereceu a Deus em sacrifício num dos montes que Ele lhe mostrou”. O fato de a hospitalidade (para com os três mensageiros de Deus) ser também louvada é um efeito secundário didaticamente hábil e sublinha: entre todos os modelos na fé, Abraão ocupa a primeira posição.
2.4. A BRAÃO E O FILHO DE D EUS No Novo Testamento há entre Abraão e Cristo uma ligação que vai além da analogia da fé. Em Cristo se cumpre o que foi prometido a Abraão. Por isso, a história de Abraão é sempre posta sob a luz desse cumprimento futuro. Paulo recorre — como já foi dito — à estrutura do direito sucessório para representar Cristo como o herdeiro legítimo da promessa da Abraão (Gl 3,15-18). Visto que essa promessa excede em muito o tempo de vida de Abraão, ela só pode ser cumprida num momento posterior. Mas quando? Ela se esgota na vida do povo de Deus, Israel? Dificilmente, pois ela inclui justamente a bênção para as nações. Se, porém, o Cristo ressuscitado atua como multiplicador da atenção de Deus para dentro do mundo das nações, então a promessa da bênção se cumpre. Cristo, portanto, toma posse da “herança” dei xada por Abraão. Nesse sentido, é verdade que, filologicamente, não é correto que Paulo em Gálatas 3,16 interprete a promessa a Abraão e “sua descendência” exclusivamente no sentido de um singular. Mas objetivamente ele tem razão, pois o evento de Cristo abre para as promessas a Abraão uma nova dimensão. É muito mais enigmática a referência a Cristo em João 8,56: “Abraão, vosso pai, exultou na esperança de ver o meu dia. Ele o contemplou e ficou cheio de alegria”. Na história bíblica de Abraão não há nenhum ponto de apoio para essa afirmação. Ocasionalmente se pensou aqui em Gênesis 17,17, quando Abraão, em face da renovada promessa do filho feita por Deus a ele, que era centenário, “ri” ou “se alegra”. Mas aí a referência a Isaac é muito clara para que possamos relacionar a alegria de Abraão a um futuro tão longínquo. Resta, portanto, aquela explicação que também é encon-
trada na exegese do judaísmo primitivo e em seguida, sobretudo, na rabínica: Abraão, tal como os patriarcas em geral, é dotado de dons proféticos. Como Abraão já teve uma visão do tempo salví fico, ele vê também “o dia” do messias. Aqui se retoma a tradição judaica, que é vinculada à cristologia. Ele pertence, como patriarca na fé, à comunidade do povo de Deus de Israel e ao mundo das nações. Ele não é nem um “pagão santo” nem “justo na antessala”, mas já uma testemunha de Cristo.
2.5. A BRAÃO E UMA NOVA HISTÓRIA DE ESPERANÇA Os dons proféticos que João 8,56 pressupõe em Abraão não o ligam apenas com “o dia” do Messias Jesus. Eles também fazem de Abraão um portador da esperança para o tempo do cumprimento salví fico. Assim como ele desempenha um papel decisivo no começo da história da fé e da esperança do povo de Deus, ele também estará junto dos justos no tempo salvífico. 2.5.1. Testemunhas da ressurreição — a questão dos saduceus O evangelista Lucas, no quadro da disputa jerosolomitana, transmite um debate de pungência especial, no qual é tratada a questão da ressurreição (Lc 20,27-40). As opiniões a respeito são divididas, porque as asserções bíblicas também não têm uma conclusão inequívoca. Nos escritos e camadas mais antigos da Bíblia hebraica procura-se em vão a esperança numa nova vida em Deus. Até mesmo os justos como Abraão são apenas “reunidos com seus pais”, de modo que descansam separados de Deus numa espécie de reino das sombras. No entanto, não se pode falar de vida aí. Apenas aos poucos irrompe a esperança na ressurreição dos mortos para uma nova vida junto a Deus no caminho da fé de Israel — ainda contida e vaga nos Profetas, mas clara e inequívoca pela primeira vez em Daniel 12,2-3. No judaísmo da época de Jesus, essa esperança havia, nesse meio-tempo, encontrado ampla difusão, mas também é criticada. Os saduceus, por exemplo, que aceitam como “Escritura” exclusivamente a Torá
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na forma dos cinco livros de Moisés, também consequentemente contestam a esperança da ressurreição sobre essa base textual. São os saduceus que, naquela memorável disputa segundo Lucas 20,27, se aproximam de Jesus e lhe dirigem uma pergunta capciosa. A coisa começa como uma conversa entre pessoas instruídas, e é habilmente urdida. Como ponto de partida, os saduceus escolhem um mandamento da Torá que concerne ao assim chamado “levirato” (Dt 25,5-6). Se um homem morre sem deixar filhos, seu irmão deve tomar como esposa a viúva, ou seja, sua cunhada. O primeiro filho que ele gerar com ela é legalmente considerado descendente do falecido. Agora, os saduceus constroem um exemplo ilustrativo: era uma vez sete irmãos. Depois que o primeiro morreu sem filhos, um após o outro casaram-se com a viúva — e todos tiveram o mesmo destino. Por fim, morreu também a mulher. Isso gerou o seguinte problema: se há uma ressurreição — de quem ela será mulher “na ressurreição”? O caso é claro: os saduceus, com essa história, querem levar a esperança da ressurreição ad absurdum! A resposta de Jesus é dupla. Em primeiro lugar, ele diz que “a vida na ressurreição” não é uma repetição nem uma prolongação indefinida da vida até agora. Ao contrário, os ressuscitados alcançam uma nova forma de existência, em que, como a morte já não desempenha papel algum, não há mais reprodução. Mas, em seguida, ele evoca Abraão como testemunho de que os falecidos não estão simplesmente “no pó” ou “no túmulo” separados de Deus e de toda vida, mas vivem de outra maneira: “Mas que os mortos hão de ressurgir, o próprio Moisés o mostrou, na passagem a respeito da sarça, quando chama ao Senhor ‘Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó’ (Ex 3,6). Mas Deus não é um Deus dos mortos, mas dos vivos. Pois todos têm por ele a vida”. Certo embaraço se espalha entre os adversários. Alguns confessam: “Mestre, disseste bem”. Os outros “não ousavam perguntar-lhe mais coisa alguma”. Nessa época, a fórmula “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó (ou de Israel)” é há muito um componente fi xo da fala teológica cotidiana. O próprio Deus se apresenta desse modo (Ex 3,6.15.16; 4,5). O profeta Elias lhe dirige a palavra dessa maneira (1Rs 18,36). Ela também aparece numa proclamação do rei Ezequias (2Cr 30,6). Também Pedro (At 3,13) e Estêvão (At 7,32) a utilizam, para falar do Deus único. Não seria macabro “de finir” Deus justamente por
meio de três patriarcas de um passado distante, que há muito foram irrevogavelmente reduzidos ao pó? A fórmula, empregada argumentativamente por Jesus em Lucas 20,37-38 tem outro sentido. Ela, de um lado, exprime a fidelidade de Deus, que fica ao lado de seu povo e não se despede secreta e silenciosamente da história. De outro, ela torna os patriarcas as primeiras e mais eminentes testemunhas da esperança na ressurreição. A eles, e sobretudo a Abraão, os justos portanto reencontrarão! 2.5.2. Advogado dos sofredores — Lázaro no “seio de Abraão” Uma semelhante imagem de esperança com Abraão é descrita pela história exemplar em Lucas 16,19-31. Jesus narra um conto de fadas: “Era uma vez um homem rico…”. O material desse conto, originário do Egito, é já bastante conhecido em sua época. No entanto, como bom narrador, que sabe sempre encontrar um tom popular, Jesus ainda confere uma forma totalmente nova à história. O conto narra uma inesperada inversão do destino, vivenciada pelo protagonista. Um homem rico passa a vida toda no luxo. Mas ele não faz caso do pobre Lázaro, que vive na miséria diante do portão de sua casa. Quando ambos morrem, eles novamente se encontram em posições trocadas: o rico é atormentado no Hades, enquanto Lázaro é levado por anjos para “o seio de Abraão”. Em seguida, o rico se volta para Abraão: “Pai Abraão, tem misericórdia de mim, e envia-me Lázaro, para que molhe na água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama!”. O lugar de Abraão encontra-se, pois, ao alcance da vista e da audição do Hades? Abraão rejeita o pedido do homem rico. Em primeiro lugar, este já recebeu as boas coisas durante a vida e desperdiçou a chance de propiciar o bem para os outros. E, em segundo, “entre nós e vós está posto um grande abismo, de sorte que os que quisessem passar daqui para vós não poderiam, nem os de lá passar para nós”. Em vista disso, o rico gostaria de pelo menos advertir seus irmãos ainda vivos e pede novamente a Abraão que envie Lázaro até eles no papel de mensageiro. Mas o patriarca continua inexorável: “Eles têm Moisés e os profetas; ouçam-nos!”. E nada avança além disso. Lázaro, que em
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toda a história não disse uma palavra sequer, mas tem em compensação — diferentemente do homem rico — um nome signi ficativo (“Deus ajuda”), continua a desfrutar da companhia de Abraão. O que Abraão no mundo de Deus tem a ver com os justos? A história cria a impressão de que ele, como uma espécie de advogado, faz justiça aos humildes e ofendidos. “No seio de Abraão” é aqui uma melhor tradução do que “no regaço de Abraão”, o que também corresponde ao significado básico da palavra grega kolpos. Pois Lázaro não é acariciado como uma criancinha sobre os joelhos de alguém — ele ocupa, antes, um lugar junto ao peito de Abraão. Isso nos faz pensar na disposição de um banquete antigo, em que os participantes, apoiados de lado, ficam deitados numa espécie de divã. Portanto, está ocorrendo um banquete aqui! Abraão atua como o an fitrião, e Lázaro, que precisou passar fome junto ao portão do homem rico, regala-se agora no lugar de honra. Não devemos tentar inferir dessa história informações sobre a “topografia do Além”. Jesus usa aqui apenas um material popular, já difundido. Sua dimensão teológica consiste apenas em atuar como lembrete da justiça social com uma referência a Moisés e Abraão — antes que seja tarde demais. Hades e Paraíso são grandezas para as quais não há, nem pode haver, mapas na tradição bíblica. E seria rematado absurdo considerar Abraão um campo de recepção dos mortos. Ao menos é digna de nota a importante função que o patriarca adquire nessa história. No mundo de Deus, ele não desempenha um papel secundário. Não haveria outros candidatos que poderiam ser pensados como figura-símbolo para a nova comunidade na ressurreição? Abraão talvez seja especialmente quali ficado para isso por causa de seu papel de an fitrião para os mensageiros de Deus em Gênesis 18,1-33? Em todo caso, ele parece ser uma grandeza fi xa para o banquete do tempo salví fico também em outras tradições. 2.5.3. Comensais do tempo da salvação — banquete do final dos tempos A imagem da “peregrinação das nações a Sião” (Is 2,1-5/Mq 4,1-4; Is 60,1-22) está profundamente enraizada na história da esperança judaico-veterotestamentária: chega um tempo em que as nações re-
conhecem o Deus único, o criador do céu e da terra. Elas farão a paz com Israel e afluirão para Sião, a fim de adorar o Deus único, que têm em comum, como também levarão consigo ricos presentes. E, como não poderia ser diferente, com essa imagem do início do tempo da salvação já logo se vincula também a imagem de um grande banquete em comum (Is 25,6). Na época do Novo Testamento, são antes alusões que conferem os primeiros contornos a esse quadro de esperança. E tanto mais fortes são as cores com que ele é pintado na literatura rabínica. Mais uma vez, os patriarcas aparecem como o “núcleo duro” dessa mesa-redonda do final dos tempos. Isso só pode ter um sentido: eles são considerados as figuras-símbolo da esperança numa humanidade unida na fé em Deus! Os evangelistas Mateus e Lucas vêm a falar disso, usando quase as mesmas palavras, mas em contextos diferentes. Mateus insere a correspondente palavra de Jesus na parte final da história sobre o centurião de Cafarnaum (Mt 8,513): “Em verdade vos digo que a ninguém encontrei em Israel com tamanha fé. Também vos digo que muitos virão do oriente e do ocidente, e reclinar-se-ão à mesa de Abraão, Isaac e Jacó, no reino dos céus; mas os filhos do reino serão lançados nas trevas exteriores; ali haverá choro e ranger de dentes!” (Mt 8,10-12). Lucas conclui de modo semelhante uma passagem que começa pela pergunta sobre quantas pessoas serão salvas (Lc 13,22-30): “Ali haverá choro e ranger de dentes quando virdes Abraão, Isaac, Jacó e todos os profetas no reino de Deus, e vós lançados fora. Muitos virão do oriente e do ocidente, do norte e do sul, e reclinar-se-ão à mesa no reino de Deus. E assim, há últimos que serão primeiros, e há primeiros que serão últimos” (Lc 13,28-30). Inconfundivelmente, a mensagem, que projeta uma grande imagem de esperança, se move para o horizonte das ameaças do julgamento. O acesso de uns está em contraste com a exclusão de outros. Ao menos, a sequência se inverte, tal como em Lucas. A humanidade unida, afluindo dos quatro pontos cardeais, não é, portanto, uma assembleia completa. Ela só é unida sob a pro fissão de fé conjunta no Deus único. E quem não compartilha essa profissão de fé não é cobrado disso nem generosamente ignorado. Não se trata de uma conciliação universal que é pintada aqui. A pertença também tem um lado inverso. Em todo caso, os pais, com Abraão no topo, não repre-
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sentam o grande nivelamento, mas o grande convite. Eles mantêm a porta aberta tanto quanto possível. Mas ninguém é obrigado a entrar. E, por isso, o banquete da humanidade unida no final dos tempos, presidido pelos patriarcas, segue sendo uma imagem de esperança até que a confissão do Deus único se torne consensual entre as nações.
3 A BRAÃO NA TRADIÇÃO CRISTÃ 3.1. A CESSOS EXEGÉTICOS Enquanto os autores do Novo Testamento recorriam sempre de modo seletivo à “Escritura” como uma referência determinante, começou-se a estabelecer na teologia cristã a partir dos séculos II/ III d.C. uma ocupação superficial com todo o texto do agora chamado “Antigo Testamento”. O surgimento do gênero “comentário” contribuiu para esse desenvolvimento. Mas também em sermões ou tratados temáticos unidades textuais cada vez maiores eram seguidas por uma explicação. Para a história de Abraão em Gênesis 12–25, essas interpretações da época dos Padres da Igreja já foram minuciosamente reunidas e revisadas por Theresia Heither e Christiane Reemts (ver Bibliografia), de modo que basta aqui citar alguns dos aspectos mais importantes. Sem exceção, os Padres leem a história de Abraão com base no evento crístico. Orígenes (Comentário de João 20,10) fornece uma expressão precisa disso: “Toda história de Abraão deve ser compreendida alegoricamente, e o que ele fez deve ser reconstruído intelectualmente por nós”. Nessa perspectiva, até mesmo os menores detalhes da narrativa bíblica recebem um sentido novo, às vezes totalmente surpreendente. Com uma passagem pelo trecho Gênesis 12–25 apresentaremos a seguir os interesses mais importantes dos Padres. A história da partida não relata apenas uma mudança real de lugar. Como já o fez Fílon de Alexandria, os Padres veem nisso principalmente um movimento espiritual, a partida de uma pessoa justa das certezas de sua vida, a renúncia a bens e vínculos, para se orientar por coisas maiores e futuras. A promessa de Deus para ele — a saber,
a bênção para as nações — é vista pelos Padres como realizada pela difusão do Evangelho no Imperium Romanum. Agostinho escreve (Sermões 130,3): “A promessa dada a Abraão está cumprida. E daquilo que vemos haurimos a fé naquilo que não vemos”. Um problema difícil é representado pela história de Abraão e Sara no Egito. Abraão, por exemplo, mentiu quando fez Sara passar por sua irmã? Então, com muitos argumentos, segue-se a tentativa de reabilitar Abraão — especialmente por Agostinho, que, de resto, em sua ética rejeita categoricamente toda forma de mentira. A riqueza com que Abraão retorna do Egito demonstra ambiguidade. Ele, ao partir, não tinha justamente se desligado de todos os vínculos materiais? Por isso, sua nova riqueza não é apenas expressão da bênção divina, mas também causa da separação de Lot. Mas aqui os exegetas utilizam, ao mesmo tempo, a oportunidade de louvar a humildade de Abraão, que deixa para Lot a melhor parte da terra. É interessante o recurso alegórico à história da guerra dos reis em que Lot se enreda: porque abandona a virtude de Abraão, ele cai na licenciosidade de Sodoma; os quatro reis agressores representam os prazeres da vida, os cinco reis atacados representam os cinco sentidos humanos; o fato de Abraão reunir 318 servos para a ação de salvamento indica, numa simbologia numérica, a cruz de Cristo; mais tarde, os 318 Padres do Concílio de Niceia (325) são relacionados aos 318 servos de Abraão, pois eles ajudam na vitória da fé contra a heresia. Grande interesse desperta a figura de Melquisedeque, que, como tipo de Cristo, já oferece, num sentido sacramental, o pão e o vinho. No que diz respeito à aliança de Deus com Abraão, os Padres estão amplamente de acordo com Paulo, que enfatiza Gênesis 15,6. Outro problema moral aparece com a figura de Hagar; novamente é necessário um grande dispêndio argumentativo para defender Abraão contra a acusação de dúvida ou devassidão: “Ele se serviu dela para gerar descendentes, não pela luxúria; com isso, não foi injusto para com sua mulher, mas, antes, lhe obedeceu”, observa Agostinho (Cidade de Deus 16,25). E Ambrósio ( Sobre Abraão 1,3) acrescenta: “Não esqueçamos que Abraão viveu antes do período da lei mosaica e do Evangelho: o adultério ainda não parecia ser proibido”. De resto, predomina a leitura da história paulina em Gálatas 4. Os Padres compreendem a aliança da circuncisão como reforço adicional da aliança da promessa e ao mesmo tempo estabelecem uma referência tipológica ao batismo cristão como “a circun-
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cisão não feita por mãos”. O riso de Abraão e Sara é interpretado positivamente; Ambrósio (Sobre Abraão 2,11) está seguro: “O riso exprime a alegria do justo […]. Esse riso não foi o riso de uma pessoa em dúvida, mas de um crente”. O sacrifício de Isaac ganha o caráter de uma previsão do autossacrifício de Cristo, e aí se discute sobretudo a questão de como devemos entender a tentação por parte de Deus: o demônio tenta o homem para destruir sua fé; Deus, porém, o tenta para fortalecer sua fé. As asserções sobre Abraão no Novo Testamento também passam por uma ampla interpretação, que, seguindo o exemplo de Paulo, coloca no centro a relação entre Abraão e Cristo. Aqui, rapidamente se infiltra uma polêmica fortemente antijudaica na interpretação dos Padres. A bênção para as nações é ligada a uma rejeição de Israel; a Igreja de judeus e não judeus entra no lugar do povo de Deus, Israel. Aqui foi primeiramente necessária a dolorosa experiência de um desencontro de 2000 anos para ver em Abraão não o acusador de Israel, mas redescobrir nele o progenitor comum na fé de judeus e cristãos.
3.2. P ERFIS TEOLÓGICOS Os títulos de honra e predicações que são atribuídos a Abraão na teologia cristã derivam, em parte, da tradição judaica, mas, em parte, também colocam novas ênfases. O significado fundamental cabe ao per fil de Abraão como o de “quem busca Deus”. No contexto das interpretações do judaísmo primitivo, os teólogos cristãos também refletem sobre a libertação de Abraão dos ídolos de seus pais. Por pensamento e busca próprios, ele chega ao conhecimento do Deus único verdadeiro, o que o torna imagem de todos os que estão em busca de Deus. A recepção cristã vincula o título honorífico “amigo de Deus”, que em Tiago 2,23 foi adotado do uso judaico-veterotestamentário, a todas aquelas asserções em que Jesus chama os seus de “amigos” sem intencionar com isso uma espécie de democratização da amizade di vina. A grandeza dessa distinção segue inconteste e é compreendida como o grau máximo na relação multiforme entre Deus e homem. O fato de Abraão ser considerado um “sábio” não só por seu conhecimento de Deus, mas também em vista das ciências no ju-
daísmo, fornece um bem-vindo tema de discussão para a teologia cristã. O indivíduo, em seu esforço próprio de formular a fé cristã nas categorias do pensamento filosófico, pode se referir gratamente a Abraão. Parece inusual aquela visão do patriarca que o apresenta como “atleta do amor divino”. No contexto, encontra-se aí o pensamento da vida cristã como uma competição (1Cor 9,25-26). Basílio de Selêucia (Orationes 7) desenvolve essa comparação em relação a Abraão: “A competição da fé fez o bebê vir ao mundo e ao amor de Deus abriu o estádio”. Mas é a descrição de Abraão sob o título de “pai” que ocupa o maior espaço. Ao mesmo tempo, esse espaço designa o campo vasto e conflituoso da pergunta sobre quem poderia ser considerado “ filho” legítimo daquele “pai”. A fórmula concisa “Abraão, pai de todos nós” (Rm 4,16) carrega não apenas a ideia do convite, mas também a de pretensões rivais. Em todo caso, a Igreja dos primeiros tempos não seguiu a exigência de um Marcião, que queria ver o Deus de Abraão e o Pai de Jesus Cristo radicalmente separados um do outro. Ireneu (Contra as heresias IV 8,1) escreve a respeito: “Quem contesta a salvação de Abraão e cria para si outro Deus além daquele que deu a promessa a Abraão está fora do reino de Deus e destituído da herança da imperecibilidade”.
3.3. DOUTRINAS MORAIS Os Padres recomendavam de bom grado Abraão como um modelo moral. Ele é descrito como um homem perfeito, ao qual cumpre emular na vida cotidiana. Gregório de Nazianzo escreve (Sobre minha vida 53): “Eu tive um pai excelente. Ele já era idoso, de natureza simples. Uma norma de sua vida era ser um patriarca, ser um segundo Abraão”. Seja qual for a virtude, é possível descobri-la em Abraão. Sua obediência, sua humildade, sua liberdade, sua hospitalidade ou sua paciência desempenham aqui um papel especial. Na sequência dos três patriarcas podemos então também divisar uma relação de virtudes preferidas. Em Ambrósio ( Sobre José 1,1) ela tem a seguinte forma: “É conveniente que possais aprender com Abraão a infatigável entrega da fé, com Isaac a pureza e a integridade de suas convicções, com Jacó a paciência singular em suportar tribulações”.
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3.4. INTERESSES TRINITÁRIOS Mas, dos episódios da história de Abraão, nenhum outro se impôs na teologia cristã como o encontro de Abraão com os três mensageiros em Gênesis 18,1-22. O próprio texto dá o impulso decisivo para isso: numa notável indeterminação, a fala e a forma de tratamento dos hóspedes oscilam entre o singular e o plural. No início se diz que “o Senhor” (sing.) apareceu a Abraão. Quando Abraão ergue os olhos, ele vê os três homens. Vai ao encontro deles, inclina-se e diz: “Meu Senhor (sing.), se pude encontrar graça a teus olhos […]”. Em seguida se diz: “Que se traga um pouco de água para lavar-vos os pés […]”. E assim continua. O diálogo decisivo é desencadeado pelos três, mas então “o Senhor” fala (sing.). Esse dado notável pede explicação. Orígenes ( Homilias sobre Gênesis 4,2) é o primeiro que chama a atenção para isto: “Não passa despercebido ao sábio quem ele [Abraão] acolhe. Ele vai ao encontro de três, mas adora a um só […]”. Ambrósio ( Sobre Abraão 1,6) tira a seguinte conclusão: “A quem Deus resplandece, este vê a trindade”. Mas isso já provoca uma série de problemas, que leva direto à discussão sobre o dogma cristológico e trinitário. O primeiro concerne à pergunta se o filho já poderia se manifestar antes mesmo de sua encarnação. Os primeiros Padres são bastante confiantes e consideram as aparições divinas do Antigo Testamento como aparições do Filho. Por isso, o júbilo de Abraão sobre o fato de ver o dia de Cristo (Jo 8,56) não significa para eles senão o riso de Abraão no encontro em Mamrê. Pois um dos três é Cristo, que aparece na companhia de dois anjos ou na companhia de Moisés ou Elias como o porta-voz (sing.). No entanto, depois do Concílio de Niceia (325) defendeuse uma posição mais reservada quanto a isso. Para que a divindade do Filho seja coerentemente preservada, ele não pode se tornar visível antes da encarnação. Portanto, os três anjos devem ser compreendidos como anjos, que apontam simbolicamente para o Deus trino. Agostinho se torna o mais in fluente defensor dessa interpretação, que rechaça categoricamente uma visão de Deus por Abraão no bosque Mamrê. Os três homens são mensageiros de Deus. É Deus que fala por meio deles. Seu número indica a trindade de Deus, que é simbólica em sua aparição. Mas não passa disso. O fato de tratarse apenas de anjos é fundamentado pela referência a Hebreus 13,2:
“Não vos esqueçais da hospitalidade, porque por meio dela alguns, sem o saberem, hospedaram anjos”. Essa história se tornou um dos pontos de apoio bíblicos mais importantes para a teologia da Trindade dos séculos posteriores. É uma peça de teologia narrativa da Trindade que os Padres “descobrem” aqui. Com isso Abraão é chamado como testemunha, para conceber a unidade de Deus na trindade.
3.5. INSERÇÕES LITÚRGICAS A liturgia se tornou na cristandade um lugar predileto para interiorizar histórias bíblicas. Abraão aparece aí não apenas graças a uma sequência ordenada de leituras da Bíblia. Ele também é mencionado em orações e cânticos. Na missa romana, as palavras ditas imediatamente após a transubstanciação ocupam a posição mais proeminente: “Recebe estes dons benignamente, como outrora recebeste benignamente […] os dons de nosso patriarca Abraão”. No Evangelisches Gottesdienstbuch estão previstas as leituras da história de Abraão no Domingo da Paixão, ou seja, no quinto domingo da Quaresma (Gn 22,1-13: atamento de Isaac), como também no quinto domingo após o Domingo da Trindade (Gn 12,1-4: promessa e partida). Enquanto na Quaresma a leitura de Gênesis 22 é relacionada à autoentrega de Jesus a Deus e aos homens, a partida de Abraão no segundo caso corresponde à leitura do Evangelho sobre o chamamento de Pedro (Lc 5,1-11). Um formulário especial do serviço divino que tematiza a relação entre cristãos e judeus encontra-se sob o versículo retirado de Salmos 105,8-9: “O Senhor se lembra perpetuamente do seu pacto, da palavra que ordenou para mil gerações; do pacto que fez com Abraão, e do seu juramento a Isaac”. Intercessões e fórmulas de orações retomam a promessa de Abraão e fi xam nela uma nova percepção da “eleição permanente de Israel”. Os poetas do cancioneiro protestante gostaram especialmente de retomar Abraão. O uso da filiação de Abraão é formulado, por exemplo, por Erasmo Alber (1553) com uma firmeza reformatória em EG 308,10: “A Abraão também juraste,/para que não nos perdêssemos,/a nós prometeste o reino do céu/e a nossos filhos eternamente”. Martin
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Schalling (1569) extrai da imagem do “seio de Abraão” consolação e esperança em EG 397,3: “Ah, Senhor, faz teu anjinho/quando chegar meu fim/levar minha alma ao seio de Abraão. /…”. Numa das canções mais belas e populares, Joachim Neander (1680) canta em EG 317,5 a comunidade com Israel: “Louva o Senhor, o que há em mim, louva o nome. /Tudo o que tem alento/louva com a semente de Abraão./…”. Por fim, Abraão é novamente considerado por Philipp Spitta (1833) em EG 137,3 com a dupla referência a Gênesis 15 e 22: “Dá-nos a certeza/ sólida e firme de Abraão/que vence todas as dúvidas/e todos os obstáculos;/que não confia só na aliança da graça/alegre e imóvel,/ mas a toda hora /põe o amado aos pés de Deus”. No entanto, não são acionadas aí mais do que lembranças pontuais da figura bíblica de Abraão. O Abraão exemplarmente pio serve para admonição e para a confirmação da autoimagem da comunidade cristã. Como modelo da fé, Abraão (como muitos outros justos do Antigo Testamento) também entra então na série dos “santos”. Diversos calendários cristãos indicam dias em que se deve lembrar dele. Encontramos aí, por exemplo, os dias 8 ou 9 de outubro, o 20 de dezembro, o terceiro domingo de Advento ou o segundo domingo antes da festa da Trans figuração.
3.6. R EPRESENTAÇÕES PICTÓRICAS Ao contrário dos judeus e muçulmanos, o cristianismo desenvolveu uma rica iconografia. As representações dos textos bíblicos também devem ser entendidas como uma parte da história de sua recepção e sua exegese. A representação mais antiga existente de Abraão encontra-se entre os afrescos da sinagoga de Dura Europos (meados do século III). Na tradição pictórica cristã Abraão aparece já nos séculos IV/V, inicialmente ainda como um jovem imberbe, mais tarde sempre como ancião de cabelos brancos. No centro de todo interesse se encontra aquela cena que sobressai a todas as demais, a do atamento de Isaac (Gn 22). Os artistas se ocuparam dela em muitas variantes, entre as quais predomina um arranjo dramático, que busca realismo. Em contrapartida, é relativamente rara a representação do encontro entre Abraão e Melquisedeque (Gn 14,18-20), em que o rei sacerdote de
Salém oferece pão e vinho. Como foi entendida como um tipo da eucaristia, essa cena pelo menos recebeu certa atenção. À parte isso, a história de Abraão é sempre ilustrada, em manuscritos bíblicos, por ciclos pictóricos, que podem abranger de 3 a 18 cenas. Além disso, é popular a figura de Abraão como uma figura sentada, que segura em seu seio as almas dos justos no paraíso (Lucas 16,22-23). Mas a maior difusão coube, mais precisamente no Oriente, à “ filoxenia”, a cena da hospitalidade de Abraão (Gn 18). Como os Padres veem nos mensageiros de Deus uma aparição do Deus trino, esse tipo pictórico desenvolveu-se para se tornar a maneira preferida de representar figurativamente a Trindade — o que, em face da regra de que o Deus Pai não deve ser reproduzido, ofereceu uma possibilidade bem aceita de realização iconográfica. Aqui Abraão e Sara entram em segundo plano ou desaparecem por completo da cena. Tudo se concentra apenas na sutil interação dos três anjos como uma reprodução da comunicação intradivina.
4 PERSPECTIVA : A CESSOS COMUNS A A BRAÃO Se judeus, cristãos e muçulmanos buscam o diálogo, eles hoje no vamente se referem de bom grado a Abraão, pois sob seu patronato pode-se encontrar muitos pontos de partida para uma nova percepção mútua. O encontro no nome de Abraão não é, contudo, uma invenção de nossos dias. O historiador da igreja Sozomenos (século IV) fala de uma festa “multirreligiosa” no lugar do terebinto na Palestina, onde se procura o bíblico “bosque Mamrê” (Gn 18), e se lembra do patriarca Abraão: Ainda hoje os nativos e os palestinos, fenícios e árabes que moram longe festejam ali, todo ano durante o verão, uma festa suntuosa: muitos também se reúnem ali por causa do comércio, a fim de vender e comprar. Para todos a festa é muito importante, para os judeus, porque eles se vangloriam de Abraão como seu progenitor, para os helenos por causa da chegada dos anjos, para os cristãos,
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porque nessa época já apareceu ao homem temente a Deus aquele mesmo que mais tarde se fez manifestar por meio da virgem para a salvação da raça humana. Conforme a religião, eles honram esse lugar, uns rezando ao Deus do universo, outros invocando os anjos, com oferendas de vinho e incenso ou com sacrifícios de um boi, um bode, uma ovelha ou um galo […] ( Kirchengeschichte II 4,1-3)
O imperador Constantino, ao saber disso, tem algo a objetar contra a coexistência inter-religiosa. Para ele, que gostaria de elevar o jovem cristianismo a religião unificadora de seu Império, todos os outros cultos são um grande incômodo. Então ele não só proíbe seus sacrifícios e manda arrasar seus templos, como também não permite aquela festa no bosque Mamrê perto de Hebron. Os bispos responsáveis são exortados pelo imperador “a projetar no mesmo lugar, depois da total destruição do altar de lá e da queima das estátuas cultuais, uma igreja que seja adequada à antiga dignidade do lugar e cuidar para que no futuro ela permaneça livre de oferendas e sacrifícios, para que ali ocorra apenas a adoração de Deus segundo os costumes eclesiásticos […]” ( Kirchengeschichte II 4,7). Mas com o tempo as coisas parecem ter relaxado um pouco no vamente. Por volta de 570, um peregrino viaja de Piacenza pela Terra Santa e fala, entre outras coisas, de uma visita aos túmulos dos patriarcas em Hebron: “Há uma basílica erguida com quatro colunas, descoberta no átrio central: no meio corre uma cancela; de um lado entram os cristãos, de outro os judeus, e trazem muito incenso […]” ( Reisebeschreibung 30). No ano 639, esse edifício passa para a administração mulçumana. No nível da discussão teológica, a referência a Abraão se con figura de modo menos pacífico. O apologista e mártir Justino (meados do século II) fornece um dos primeiros exemplos disso. Em seu Diálogo com o judeu Trifão , ele apresenta Abraão inicialmente como testemunha principal de uma religião universal, como figura paterna da confissão monoteísta: Trifão, nunca haverá outro Deus, nem jamais houve desde a eternidade outro Deus senão aquele que fez e ordenou este universo. Além disso, cremos que nosso Deus não é diferente do vosso, que Ele é, antes, o mesmíssimo que conduziu vossos pais para fora do
Egito “com mão forte e braço estendido”. Também não depositamos nossa esperança em nenhum outro Deus — não há outro —, mas no mesmo que vós, no Deus de Abraão, Isaac e Jacó (11,1).
Então ocorre a mudança decisiva. Para Justino, essa perspecti va universal significa não apenas o acesso das nações a Deus, mas também a exclusão de Israel da salvação. “Vós vos enganais se pensais que, porque descendeis de Abraão segundo a carne, herdareis de qualquer maneira o bem […]” (44,1). “Também a respeito dos descendentes de Abraão, que vivem segundo a lei e que até a morte não creem em nosso Cristo, eu contesto que sejam bem-aventurados […]” (47,5). Nisso se baseia o que na Igreja antiga encontra ampla difusão como “doutrina da deserdação”: “O Israel verdadeiro, espiritual … este somos nós …” (11,5). A Igreja reivindica afastar Israel e entrar em seu lugar como novo povo de Deus. Com o tempo se desenvolve um gênero de tratados teológicos que sob o título “Contra os judeus” defendem polemicamente essa reivindicação. Mas esses textos dispostos como diálogos fictícios estão longe de uma “con versa”! Seu resultado está estabelecido de antemão. Abraão se torna acusador do “interlocutor” judeu. Um diálogo digno desse nome começa apenas 1800 anos após Justino ter dado seus primeiros passos hesitantes. Foi preciso primeiramente o susto da Shoah para aprender a ler a tradição bíblica com outros olhos e despedir-se de finitivamente da velha doutrina da deserdação. Com a resolução sinodal da Igreja Evangélica na Renânia “Para a renovação da relação entre cristãos e judeus”, de 1980, começa uma série de pronunciamentos eclesiais oficiais em que a “a eleição permanente de Israel” serve como ponto de partida para uma nova percepção do judaísmo. É inequívoco o despertar para uma con versa que tem novamente como patrono o pai Abraão. Em setembro de 2006 ocorreu em Schwerin um congresso das duas Igrejas Evangélicas de Mecklenburg e Vorpommern. O lema era: “e Abraão riu”. Durante os preparativos, houve uma acalorada discussão sobre a escolha precisamente desse lema, em que os críticos diziam: a situação das pessoas em nosso Estado realmente é apropriada para proclamar alegria? E de resto Abraão (segundo Gn 17,17) não ri apenas porque a promessa de Deus de algum modo parece risível a ele, um homem de cem anos? Esse riso não tem sobretudo o tom de ceticismo? A equipe de preparação acrescentou então ao
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lema uma espécie de subtítulo: “A vida no vento contrário”. Mas se manteve o riso de Abraão contra as reservas e objeções. E por que não? A confiança diante de situações difíceis é uma coisa séria, sem alegria? Só podemos enfrentar o vento contrário com uma face rai vosa? E Abraão, com um semblante imperturbável, teria reagido melhor àquilo que lhe pareceu difícil compreender? O riso de Abraão mais uma vez o qualifica como modelo — justamente um modelo de acordo entre judeus, cristãos e muçulmanos. A situação aqui há muito já é suficientemente séria e obstinada. Mas quem sabe um riso — mesmo que não esteja carregado de incerteza oscilante como no caso de Abraão e Sara — possa nivelar o caminho das nações e das religiões umas para as outras com mais e ficácia do que todos os manifestos de conteúdos sérios? Abraão, o pai na confiança em Deus, é também um pai em questões de alegria serena!
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Friedmann Eissler
ABRAÃO no islamismo
1 INTRODUÇÃO:
COMO O ISLAMISMO NARRA SOBRE A BRAÃO Abraão, aquele “que busca Deus” ( Hanif ), o “amigo de Deus” ( Khalil Allah), primeiro muçulmano e construtor do santuário de Meca, a Caaba, fundador do rito islâmico da peregrinação ( Hajj) e profeta de Deus — uma riqueza de imagens e histórias vem à mente de um muçulmano quando ouve o nome Abraão — Ibrahim em árabe. Mais uma vez, de modo totalmente diferente dos judeus e cristãos, os muçulmanos se referem ao “ancestral de todos os monoteístas”. E eles se veem até hoje na tradição de Abraão, pois a série de profetas em que um muçulmano crê e que ele, como amiúde se salienta, adora sem distinções vai de Adão a Maomé passando por Abraão, Moisés e Jesus. O islamismo conhece não apenas o profeta Abraão, mas também se apresenta como “religião de Abraão” ( millat Ibrahim), e esta é a “religião em Deus”, o que lhe confere um signi ficado universal (Sura 2,135-137; 3,19.95). Experiências básicas essenciais da fé são vinculadas a Abraão. Isso começa na mensagem corânica, saída da boca do profeta Maomé, e continua pela posterior interpretação do Alcorão e pelas Tradições do Profeta ( Hadith), como também pela assim chama-
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da Biografia profética (Sira), indo até a historiografia islâmica clássica e as populares “Histórias dos profetas” ( Qisas al-anbiya). A partir disso, Abraão marca consciente e inconscientemente não só doutrinas centrais do islamismo, mas também a vida dos muçulmanos no dia a dia. A seguir vamos explorar a riqueza dessas fontes bastante heterogêneas, para nos aproximarmos do que Abraão signi fica no islamismo. Para isso será antes de tudo necessário re fletir sobre a singularidade das fontes, para, partindo disso, entender melhor a compreensão de revelação e história que está na base dos textos e das concepções deles derivadas.
1.1. A LCORÃO — E VANGELHO — TORÁ : A REVELAÇÃO NAS REVELAÇÕES O Alcorão não é um texto teológico sistemático, mas primeiramente e sobretudo anunciação escrita. Maomé, por volta do ano 610 d.C., com a idade de 40 anos, recebeu numa caverna no monte Hira a primeira revelação, que ele atribuiu ao anjo Gabriel. Segundo testemunhos concordantes, essa revelação foi preservada na Sura 96,1-5: Lê em nome de teu Senhor que criou; criou o homem de um coágulo. Lê, e teu Senhor é generosíssimo, que ensinou (a escrita) através do cálamo, ensinou ao homem o que este não sabia.
Lê! Desde o início o Alcorão é algo lido, é recitação; a palavra árabe Qur’an não significa outra coisa. Isso é significativo, pois só se pode ler o que foi escrito, ou, em todo caso, o que está dado numa forma que possibilita a apresentação viva como recitação. Maomé não seguiu sua própria intuição, não divisava nada do que tinha a apresentar a seus compatriotas, isto é, a mensagem teológica. Em vez disso, ele recebeu por intermédio do anjo Gabriel o que profetas chamados por Deus sempre já haviam recebido e que, na condição de “mensageiros da alegria” e “avisadores” — a dupla função do profeta segundo a Sura 2,213; 4,165 —, eles tinham a anunciar a seu povo. É a única mensagem do Deus único, que desde tempos primevos é passada à humanidade e
deve ser sempre ouvida e seguida. Adão e, com ele, toda a humanidade já haviam haviam se compro comprometido metido a isso isso (Sura 7,172 7,172), ), Noé també também m a anunanunciou, como Abraão, Moisés e igualmente Jesus e Maomé, que não trazem nada de novo, mas a con fi firmação da mesma mensagem (Sura 5,44-49). A parte pessoal do profeta tende a zero, pois ele é apenas um ser humano e sua tarefa, comparável a um porta-voz, não é nada mais do que a “transmissão” (Sura 18,110; 3,20). A unidade da revelação revelação é garantida pela concepção de um “escri“escrito original no céu” junto a Deus (umm al-kitab , Sura 43,4), do qual, como quintessência da vontade de Deus e de sua correta orientação, porções, por assim dizer, foram “enviadas para baixo” (ou: descidas) aos profetas, como diz o termo para o processo da revelação ( tan zil, nuzul). As situações históricas especiais desempenham um papel aqui, na medida em que elas determinam diferentemente o ensejo e os destinatários. Mas a reação notavelmente uniforme dos homens abordados na maioria dos casos e a peculiar retrorreferência à unidade de conteúdo da revelação se fazem sentir até na organização formal das histórias proféticas no Alcorão, que podem aparecer em círculos quase esquemáticos (por exemplo, Sura 7,59-137). Então, segundo a visão islâmica, não há apenas um parentesco, por assim dizer, histórico-genético entre as chamadas religiões abraâmicas, mas também se deve pressupor a identidade essencial de seus conteúdos centrais! O que a Torá de Moisés é para os “ filhos de Israel” e o que continha o Saltério de David (Zabur), o Evangelho (sempre no singular, Indschil) o traz por meio de Jesus para os cristãos; e o Alcorão árabe (Sura 12,2; 43,3) — revelado a Maomé — anuncia a mesma velha mensagem em linguagem árabe para a nação dos árabes. A compre compreensão ensão da unidad unidadee original das “relig “religiões iões abraâm abraâmicas” icas” tem por consequência o fato de o profeta Maomé já ser exortado por Deus no Alcorão a, no caso de uma dúvida sobre a revelação, indagar àqueles “que leem a Escritura antes de ti” (Sura 10,94), ou seja, aos judeus e cristãos. cristãos. Indiquem Indiquemos os apenas apenas de modo marginal marginal que que esse fato notável naturalmente também lança uma luz sobre os conhecimentos prévios dos destinatários: o anúncio corânico ocorre em constante retrorreferência às revelações anteriores e pressupõe, nas frequentes formulações “Menciona no Livro … (Maria, Abraão, Moisés etc.)” (Sura 19,16.41.51) ou “Notaste a história de …?” (Sura 20,9; 51,24; 79,15), um substancial saber prévio dos conteúdos subsequentes.
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O fundamental reconhecimento das revelações anteriores deve, portanto, ser levado em conta em todos os trabalhos hermenêuticos sobre o Alcorão; ele encontra sucinta expressão teológica na a firmação da Sura 29,46: Nosso Deus e vosso Deus são um ( wahidun), e a Ele nos submetemos (muslimuna).
No entanto, a unidade da mensagem, partindo do “original” junto a Deus, nunca impediu a pluralidade das religiões e as orientações da fé (Sura 2,62; 22,17), o que, de um lado, tem a ver com a vontade de Deus (Sura 5,48; 11,118; 16,93), mas, de outro, outr o, se deve sobretudo à rebelião e à discórdia dos homens (Sura 2,213; 21,93; 42,13-14). O julgamento sobre isso cabe apenas a Deus, que em sua justiça soberana provará a natureza provisória de todas as cisões na imposição do verdadeiro islamismo (Sura 21,92-93; 3,83.85; 48,28). Mas aqui e agora as religiões têm “objetivos” concorrentes, em vista dos quais seus representantes são conclamados a produzir resultados práticos de uma boa convivência: Então competi vós pelas boas coisas! (Sura 2,148). Contudo, na medida em que o antagonismo factual das prévias religiões reveladas contra princípios islâmicos fundamentais veio à luz, essa compreensão da revelação esboçada teve de cogitar uma consequência que, partindo do Alcorão na tradição como “falsificação da Escritura” ( tahrif ), ), “ocultamento” (kitman) ou “troca, alteração” (tadbil) de partes da Escritura por judeus e cristãos, foi bastante discutida (partindo da Sura 2,75; 4,46; 5,13; 2,159; 2,59.181; 7,162). Se o homem, conforme sua “disposição natural” ( fi fitra, Sura 30,30) é um submisso a Deus, um muçulmano, então os desvios do culto original e da confissão unitária (tauhid) no judaísmo e cristianismo, por exemplo, devem ser imputados a ele e remetidos, por princípio, ao descuido, ao autointeresse e, em última análise, à corrupção no trato com a verdade revelada no curso da transmissão da “Torá” e do “Evangelho”. Em suma: o que na Bíblia hebraica e no Novo Testamento é contrário ao conteúdo do Alcorão como revelação válida de Deus, e portanto não a con firma (Sura 2,97; 5,48; 10,37), só pode ser atribuído a esse “extravio” (Sura 1,7; 5,60.77). Ainda outro aspecto merece nossa no ssa atenção: a concepção da teologia da revelação não poderia deixar de influenciar a compreensão
islâmica da história, na medida em que o progresso histórico, no fundo, pode consistir apenas no regresso ao “acordo de compromisso” feito já na criação entre Deus e homem (Sura 7,172). A total dedicação de Deus ao homem já está presente na criação; o homem foi criado “na melhor forma” (Sura 95,4) e, como governador de Deus na terra (khalifa, Sura 2,30), provido de uma posição que ele não pode perder. Podem ocorrer fraquezas e extravios e há, de fato, inúmeras “quedas em pecado”, como já mostra a falta de Adão (Sura (Sur a 2,36-38), mas não o pecado original que tivesse acarretado um enredamento fundamental na culpa e, com isso, tornado necessária “uma história da salvação”. Deus sempre se volta misericordiosamente para os penitentes, essa correta orientação poupa uma “redenção”. Por isso, é coerente que as missões proféticas sejam, na visão islâmica, retornos da dedicação de Deus, que de novo chamam o homem para o “caminho reto” e devem, assim, reparar os danos caucau sados. Trata-se, de certo modo, de medidas individuais, que, sem dúvida, têm suas consequências históricas, mas que, no total, não se deixam integrar numa história da revelação global, voltada para um propósito. Por causa das faltas humanas, há uma série de história s, que sempre devem ser remontadas a uma só ordem de tempos prime vos. Por isso, a história não n ão é pensada em categoria como “promessa e cumprimento”, mas é atualizada como anunciação em histórias exemplares de revelações anteriores e missões proféticas. Exempla em vez de historia — assim se explica o conspícuo desinteresse do Alcorão pelos contextos históricos, para não falar das localizações, por exemplo, das narrativas proféticas na história da revelação. Isso não contradiz o fato de o próprio Maomé como “selo dos profetas” cumprir uma função profética (Sura 33,40), nem o fato de sua vinda, com base na Sura 61,6, ser considerada cumprimento de um anúncio de Jesus (que está tradi tradiciona cionalment lmentee local localizado izado no evang evangelho elho de João: Jo 14,26; 15,26-27). 15,26-27). Pois ambas as coisas não são mais, nem diferentes, do que a “religião” (din) original posta na criação; pelo contrário: esta é restaurada pelo modelo perfeito e infalível de Maomé. LCORÃO 1.2. A(S) HISTÓRIA (S) BÍBLICA (S) NO A LCORÃO
Portanto, o Alcorão, caracteristicamente, acolhe a(s) história(s) bíblica(s) de modo tal que não é (são) narrada(s) como história(s) fecha-
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da(s) em si ou cronologicamente estruturada(s), mas serve(m) como ilustração moral-didática e confirmação precedente da pregação de Maomé. Antecipação, anunciação, legitimação — essa é a função das narrativas proféticas. Para isso os contextos narrativos são despidos de sua “moldura histórica”, fragmentados e, seguindo a lógica do contexto de anunciação do Alcorão, acolhidos conforme a necessidade da situação. O arranjo — frequente no período médio das Suras de Meca das revelações corânicas — de toda uma série de narrativas proféticas em forma de ciclos também aponta para essa orientação homilética, pautada pela pregação (Sura 37,75-148; 26,10-191; 19,1-57; 38,1785 passim). O que interessa não é o desenvolvimento histórico, mas muito mais o argumento do profetismo como tal, a sucessão profética (Sura 2,136-137; 3,84; 4,163-165), em cuja linha Maomé se “descobre” e na qual ele se apoia nessa fase depois do evidente insucesso da primeira pregação (do julgamento) impulsivo-existencial, para ganhar os incrédulos sobre a base mais ampla das antigas tradições. Assim se realiza uma peculiar querigmatização e des-historização das tradições judaicas e cristãs, que, a despeito de toda continuidade, distingue o Alcorão — como reconstituição independente, sustentada por premissas próprias, da revelação divina — das anteriores narrativas da revelação; e isso é palpável no fato de que a Bíblia cristã naturalmente contém, é verdade, a Bíblia hebraica como “Antigo Testamento” e se edifica sobre ela, mas o Alcorão se desligou dela e se apresentou como “palavra decisiva” (Sura 86,13).
1.3. A BRAÃO NO A LCORÃO E NOSSA PERSPECTIVA (SOBRE O MODO DE PROCEDIMENTO) Nesse sentido — e isso nos leva de volta a Abraão — devemos, de antemão, esperar que Abraão apareça no Alcorão não como figura histórica com um lugar eminente na história da origem do povo Israel ou como pai da fé para os cristãos, mas sim como testemunho exemplar do documento único no interesse do presente, portanto como muçulmano paradigmático . Assim Abraão entra, de fato, sem indicações de tempo e lugar no espaço da revelação corânica. Ele simplesmente está lá, a-histórico, mas pleno de luminosidade simbólico-integrativa para a fé nova e velha do modelo profético doravante selado.
Fragmentos da história de Abraão encontram-se dispersos nos textos dos períodos de revelação do Alcorão. As notícias corânicas sobre Abraão — ele é citado pelo nome 69 vezes (contra 300 na Bíblia) em 220 versos — não desenvolvem uma imagem sistemática de Abraão, mas querigmática, portanto correspondente às situações de anunciação nas quais se encontrava o próprio Maomé e nas quais ele devia se afirmar como profeta enviado por Deus. Nisto é palpável a viva dinâmica do debate oral, que está documentado numa abundância de instantâneos fi xados por escrito de situações conversacionais concretas. Eles mostram — ainda que naturalmente, via de regra, esteja preservada apenas uma metade do discurso, enquanto a outra metade deva ser, se necessário, reconstruída — o próprio Maomé no processo do debate. Ele reage a ataques, acolhe argumentos, ajusta a direção do ataque discursivo e, além disso, traz para o campo de batalha os protagonistas proféticos como modelos e precursores dele mesmo. Há uma dependência mútua, uma relação de influência entre profeta e destinatário, entre Maomé e seu público ouvinte, o que pode ser provado no trabalho exegético minucioso e pode ser percebido, por alto, no desenvolvimento das histórias proféticas corânicas. Está claro que, sob essas circunstâncias, a biografia do profeta ganha importância especial para a interpretação dos textos. Quem tem intenção de compreender o Alcorão deve ter ao seu lado a Sira, nome dado à biografia do profeta. A quem se dirigia o anúncio e em que situação? Quem eram os primeiros ouvintes, quais eram a circunstâncias de cada revelação? Essas questões não são insigni ficantes se levamos em conta que Maomé, sem dúvida, tratou os politeístas de Meca de modo diferente de como tratou os judeus de Medina ou os primeiros fiéis da comunidade mulçumana em rápido crescimento. Não podemos aqui recontar a biografia de Maomé. Mas a presente exposição tenta incluir considerações biográ fico-políticas sobretudo com vistas à gênese provável ou possível dos textos. Portanto, ela não fornece, como se tem tentado até aqui, uma sinopse de todos os textos de Abraão do Alcorão, para assim narrar algo como uma história islâmica fechada de Abraão. (Recomendamos a quem busca isso começar pela seção 3, em que são recontados os episódios mais importantes da narrativa sobre Abraão pós-Alcorão das “Histórias dos Profetas”.) Escolhemos, antes, a variante mais trabalhosa — e, por isso, raramente e também apenas rudimentarmente empreen-
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dida — de nos orientarmos pelo desenvolvimento histórico provável dos textos. Quanto aos paralelos, selecionamos, via de regra, a versão mais produtiva para nossos propósitos, mas mantendo no campo de visão as outras versões, sem, em todo caso, fazer divisões precisas ou buscar uma comparação exegética detalhada. As revelações, dirigidas a Maomé e fi xadas no Alcorão, foram di vididas por critérios de forma e conteúdo; e considerando o desenvol vimento histórico conhecido se chegou a quatro períodos: três períodos de Meca e um de Medina. Há diferentes avaliações da complexa história da gênese do Alcorão. Mas não parece errôneo tomar como base para a sequência das Suras a cronologia de Theodor Nöldeke (Geschichte des Qorans), que continua valendo como importante referência. Segundo ela, a Sura 1, por exemplo, não se encontra no início das revelações, mas sim a Sura 96, seguidas pela 74 e 111; a primeira Sura do período de Medina é a Sura 2; as Suras reveladas por último seriam a Sura 9 e a 5. As indicações tradicionais no texto corânico, por exemplo, da gênese de uma Sura de Meca ou Medina também desempenham um papel no sentido de uma cronologia relativa, mas não são, sozinhas, decisivas. Tentamos, portanto, reconstruir como as revelações sobre Abraão
podem ter se desenvolvido. O que era e o que não era importante para Maomé. Como Abraão ganha forma e per fil, na interação e na contraposição com as revelações anteriores. Com o ponto de vista escolhido aqui, não deveremos aplicar nenhum critério estranho à nossa questão; ao contrário, a esse ponto de vista se liga a intenção de levar a sério o homem e o profeta Maomé em seu desenvolvimento pessoal e, justamente com isso, de nos aproximarmos tanto quanto possível da autocompreensão islâmica na diversificação das tradições de Abraão. O objetivo é a apresentação da imagem islâmica de Abraão, apreendida da abundância de tradições, que seja sensível ao entrelaçamento com os prévios escritos de revelação anteriores. Aqui nos concentramos na tradição sunita. Além do Alcorão, comentários sobre o Alcorão devem ser le vados em contra. Um dos mais importantes é o comentário em três volumes de Abu Dschafar Muhammad at-Tabari (morto em 923), que resume os primeiros trezentos anos de exegese do Alcorão num compêndio que é considerado o ponto alto e, ao mesmo tempo, o término do período formativo clássico da exegese corânica ( Dschami
al-bayan an ta’wil ay al-Qur’an ). Apenas partes menores da opulenta obra foram traduzidas do árabe para o alemão ou francês. Deve ser datada num período anterior a assim chamada Biografia do Profeta, a Sira an-nabawiya de Ibn Ishaq (morto em 768) na recensão de Ibn Hischam (morto em 833), que é acessível em edições populares. Ela é a principal fonte para a vida de Maomé. Nas seis coletâneas canônicas sunitas das Tradições sobre o Profeta (coletâneas de Hadith; al-kutub as-sitta) a recepção do Alcorão islâmica está, por assim dizer, documentada em todas suas rami ficações. Há um rico material sobre todos os âmbitos da vida religiosa, interpretado e legitimado por asserções e ações de Maomé. Tematicamente divididos em “livros”, os ditos e as cenas em geral curtas da vida do profeta — que para sua autenticação são introduzidos pelos nomes de quem os transmite — constituem a forma básica da Sunna. As compilações, consideradas obrigatórias ao lado do Alcorão para os sunitas, derivam essencialmente do século IX; formas iniciais podem ser datadas no final do século VIII, portanto sempre ainda cerca de 150 anos após a morte do Profeta. Apenas partes delas foram traduzidas para o inglês e apenas algumas seleções foram traduzidas para o alemão. Fontes extracorânicas também foram acolhidas em grande quantidade na historiografia islâmica, que, por exemplo, nos “Anais” do já citado Tabari (em 38 volumes, também publicados e comentados em inglês), pela primeira vez localizam geográfica e temporalmente a história de Abraão. As “Histórias dos profetas” (Qisas al-anbiya) populares e até hoje bastante apreciadas, que remontam ao “contador de histórias” do islamismo primitivo e transmitem instrução na forma de histórias exemplares, trazem num contexto mais ou menos sistemático os episódios corânicos dispersos juntamente com tradições extracorânicas, na maioria judaicas e cristãs. As figuras dos profetas, como modelos morais e modelos do próprio Maomé, se tornam temas de piedade popular e se aproximam dos ouvintes de modo divertido e com alegria narrativa. Talvez a mais conhecida coletânea desse tipo, com certeza a mais difundida, sejam as Ara’is al-madschalis (“As noivas das reuniões” ou “Sermões edificantes, como noivas adornadas para as núpcias”) do persa Ahmad b. Muhammad an-Naisaburi de Nischapur, chamado ath-Tha’labi (morto em 1035). Cumpre ainda fazer algumas observações formais. Os nomes e conceitos árabes são empregados como se costuma usá-los em alemão
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ou são reproduzidos numa escrita bastante simpli ficada. A tradução do Alcorão segue — com pequenas exceções que levam em conta nuanças especiais do texto, mas não são marcadas separadamente — a versão de A. F. Bubenheim e N. Elyas Der edle Qur’an und die Überset zung seiner Bedeutungen in die deutsche Sprache (2002), mas com a substituição de Allah por “Deus” e a adaptação das formas dos nomes. (Vale lembrar: no Alcorão, Deus normalmente fala na 1ª pessoa do plural, “Nós”.) No final há uma seleção de indicações bibliográficas. Para uma leitura mais fluida, abrimos mão das eulogias habituais no islamismo (bênçãos que são acrescentadas cada vez que se diz o nome de Deus ou de um profeta, por exemplo, “Deus o abençoe e lhe dê salvação” para Maomé). Citamos as Suras seguindo o modo de citação habitual entre nós, de acordo com sua numeração, ainda que no islamismo os nomes das Suras sejam usados. (A Sura 2 é citada como al-Baqara, “A vaca”; assim, há também, é verdade, uma Sura “Ibrahim”, a Sura 14, que, entretanto, não tem apenas Abraão como tema e, de fato, nem mesmo pertence aos textos mais importantes sobre Abraão no Alcorão.)
2 A BRAÃO NO A LCORÃO 2.1. INÍCIOS CORÂNICOS Primeiro ouvimos uma informação sucinta sobre as “folhas de Abraão” (Sura 87,18-19; 53,36-37): Em verdade, isto se acha nas folhas anteriores, nas folhas de Abraão e Moisés.
Isso não é assim por acaso. Não importa o que concebamos por “folhas”, trata-se de coisas escritas. Portanto, a prioridade da palavra dada, do escrito revelado é evidente. Então há notícias sobre o profeta, e o decisivo é que ele pode apresentar uma revelação escrita. Isso é documentado aqui no período de Meca inicial. O profeta individual recua para trás da mensagem que, é verdade, deve ser sempre transmitida de novo, mas nunca se modifica.
O conteúdo da mensagem é deduzido das Suras anteriores. O tema predominante de Maomé no período de Meca foi chamar os homens para a conversão ao Deus único, verdadeiro. Afastar-se dos deuses falsos, voltar-se para o Deus único e, com isso, ao mesmo tempo, despertar da indiferença egoísta e da injustiça social: esse deve ter sido o conteúdo de sua pregação arrebatadora, que foi, antes de tudo, uma pregação sobre o julgamento. Esse também deve ter sido, como pensam os exegetas posteriores, o conteúdo das “folhas”, que além de Abraão também foram dadas a Moisés. Nelas também devia estar contida sabedoria prática, como diz Qurtubi: Um homem sábio deve ter três horas: uma hora em que fala com seu Senhor; uma hora em que presta contas a si mesmo e medita sobre a criação de Deus; e uma hora que ele emprega para comer e beber.
Segundo Suyuti, o conteúdo das folhas se acha na Sura 53,38-56.
2.2. HÓSPEDE DE A BRAÃO: ANÚNCIO DO FILHO A cena dos “hóspedes honoráveis” (Sura 51,24-30) ou dos “enviados” (Sura 11,69-73), que desfrutam a hospitalidade de Abraão, aparece numa série de histórias missionárias: Noé, Hud e Salih (dois dos profetas genuinamente árabes), Abraão, em seguida Shu’aib e Moisés — como se vê na Sura 11 do período de Meca. Ela chama a atenção nesse contexto porque não fala de um julgamento punitivo, mas de uma promessa divina. Apesar da idade avançada, Abraão e sua mulher (sem nome) deverão, por ordem maravilhosa de Deus, ganhar um filho, o que, para o casal sem filhos, é um sinal da misericórdia e das bênçãos de Deus. Apenas a exegese posterior sabe que os enviados são anjos, mais precisamente Gabriel, Miguel e Israfil. Eles são recebidos com um bezerro assado. Como os hóspedes negligenciaram costumes elementares de hospitalidade — eles não tocam na refeição solene! —, Abraão fica inseguro e se enche de medo. Especulou-se que os hóspedes provaram ser anjos justamente pelo fato de não comerem como os humanos. Em todo caso, eles imediatamente tranquilizam Abraão: Não temas!. Sua mensagem é dupla: o julgamento sobre o povo de Lot e o anúncio da descendência. A mulher de Abraão ri. Mas falta no árabe a
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relação que se pode ouvir em hebraico entre “rir” e “Isaac” (hebraico: ele ri, cf. Gn 18,12; 21,6). Então não fica claro por que ela ri. Na Sura paralela 51,29 ela, chocada, bate no próprio rosto. Isaac é anunciado, “e, depois de Isaac, Jacó”. Uma descendência do nada! Essa “coisa espantosa” (11,72) pode ter impressionado Maomé de modo especial, pois ela toca numa aflição pessoal do profeta: provavelmente três filhos de Chadisha (a primeira esposa de Maomé, que morreu em 619 em Meca) morreram ainda crianças. A esperança no primogênito (masculino) tinha desaparecido na época da revelação das duas Suras. Mais tarde, em Medina, morreu-lhe também o único filho que, nessa época, Maomé tinha além de algumas filhas. Era o filho de uma copta, Maryam, e se chamava certamente não por acaso Ibrahim.
2.3. CONTRA OS ÍDOLOS: EM CONFLITO COM O CLÃ E O POVO Agora surge o principal tema do período inicial. A questão central do período de Meca: Deus ou os deuses!. A luta pelo Deus único é o interesse primordial de Maomé, e essa luta signi fica, ao mesmo tempo, rejeição de tudo o que, de algum modo, possa pôr em risco a unidade e a unicidade de Deus ( tauhid). O debate é dramático não só por causa da seriedade do julgamento que está por trás, mas também e especialmente por causa da consternação pessoal no círculo mais íntimo da família e do clã. A divisão entre a falsa e a verdadeira adoração de Deus também ameaça os laços mais estreitos, aqueles entre pai e filho. Numa sociedade em que a família e a lealdade tribal estão em posição suprema, isso não é insignificante. Só no segundo período de Meca a disputa de Abraão com seu pai é cinco vezes tema (Sura 37,83-98; 26,69-104; 19,41-50; 43,26-28; 21,51-73). Maomé entra na discussão com os politeístas de Meca no paradigma de Abraão. Por exemplo, na Sura 21,51-67: (51) Anteriormente já concedemos a Abraão a sua prudência, porque estávamos cientes dele. (52) Ao perguntar ao seu pai e ao seu povo: “Que significam essas esculturas, às quais vos devotais?”, (53) eles responderam: “Nós (já) encontramos nossos pais a adorá-las”. (54) Ele disse: “Sem dúvida que vós e os vossos pais estais em evidente
erro”. (55) Eles disseram: “Trouxeste-nos a verdade, ou tu és um dos tantos trocistas?”. (56) Respondeu-lhes: “Não! Vosso Senhor é o Senhor dos céus e da terra, os quais criou, e eu sou um dos testemunhadores disso. (57) Por Deus que certamente tenho um plano contra vossos ídolos, logo que tiverdes partido…”. (58) E os reduziu a fragmentos, menos um grande entre eles, para que pudessem se voltar para ele. (59) Perguntaram, então: “Quem fez isto com os nossos deuses? Ele deve ser um dos iníquos”. (60) Disseram: “Ouvimos um jovem a mencioná-los (de modo depreciativo); é chamado Abraão”. (61) Disseram: “Trazei-o à presença do povo, para que testemunhem”. (62) Perguntaram: “Foste tu, ó Abraão, que fizeste isso aos nossos deuses?” (63) Respondeu: “Não! Foi aquele grande entre eles. Interrogai-os, pois, se é que podem falar”. (64) E confabularam, dizendo entre si: “Em verdade, vós sois os injustos”. (65) Logo voltaram às velhas ideias: “Tu bem sabes que eles não falam”. (66) Ele disse: “Porventura adorareis, em vez de Deus, quem não pode beneficiar-vos ou prejudicar-vos em nada? (67) Que vergonha para vós e para o que adorais, em vez de Deus! Não compreendeis?”.
A prudência de Abraão, enviada por Deus, ruschd em árabe, ainda nos ocupará (ver infra 2.7.). Como entendimento racional, como conhecimento natural de Deus, ela é a base para a disputa de Abraão. Aqui Abraão já adquiriu seu posicionamento interior — o que o clã e o povo veneram não podem ser senão “esculturas” sem vida —, mas as pessoas ainda não alcançaram a mensagem. Após o implícito apelo à razão, os abordados referem-se à tradição dos pais. É realmente um argumento forte, superior, especialmente na sociedade tribal de Meca, mas ele logo se mostra fraco, pois os pais se encontravam “em evidente erro”. Assim o con flito segue seu curso. Com a contraposição entre tradição e discernimento, prepara-se o terreno para o desligamento das velhas tradições tribais em favor de uma fé nova em Deus, que se orienta pela razão e deixa para trás os velhos laços. Abraão atesta isso pelo contraste que não poderia ser mais agudo: assim como um jogo desumano está longe da verdade, o “Senhor dos céus e da terra” está igualmente acima dos ídolos, que pertencem ao âmbito das coisas criadas. Em tudo isso, o texto do Alcorão reflete de modo claríssimo a situação do próprio Maomé no conflito das gerações e da tradição.
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A discussão, inicialmente verbal, com os próximos é conduzida por Abraão num tom que busca angariá-los e, de fato, num tom quase suplicante, o que fica nítido especialmente na Sura 19,42-45, em que o profeta dirige-se a seu pai, Azar, dizendo “Ó meu querido pai”. (O nome Azar para o bíblico Terach vem, mais provavelmente, de Eliézer, Gênesis 15,2, em que a sílaba “El-” é concebida como artigo árabe.) Mas a reação esperada não ocorre. Então Abraão parte para a ação. A mensagem não se extingue, os ídolos caem vítimas da iconoclastia. Essa é a consequência da persistência na incredulidade. Aqui a observação não é irrelevante: o profeta age contra os ídolos, não contra aqueles que os servem. Estes devem ser conquistados, convencidos. É verdade, a drástica ironia da cena, em comparação com seu modelo na literatura rabínica (midrash Bereschit Rabba 38,13, também no Apocalipse de Abraão), não é totalmente conservada, mas ainda é suficientemente expressa. Fizeste isso, ó Abraão? Ó não, por quê?, foi aquele grande ali! (Se isso não fosse tão sério, teria sido possível ver Abraão piscar.) — Os deuses não só são ridiculamente impotentes; eles também se dilaceram uns aos outros numa concorrência estúpida (na fonte judaica eles brigam por uma terrina de comida de sacrifício). O vazio e a fragilidade da velha crença são completamente desmascarados pela confissão tão surpreendente quanto discreta, apresentada como uma obviedade: sabes que eles não podem falar. Tu sabes — exatamente como nós o sabemos! Isso pode, no plano islâmico, ser ligado com a concepção do “contrato original”, do acordo vinculante de Deus com os homens (Sura 7,172): se os idólatras e os incrédulos confessassem, se, de fato, eles se servissem apenas do bom senso, eles deveriam confessar: Ora, tu sabes … Seria detestável se, nessas circunstâncias, alguém ainda obstinadamente adorasse alguma coisa “em vez de Deus” — onde é uma questão de ratio, de razão ( aql — “Não compreendeis?”), aceitar a realidade do único Deus verdadeiro.
2.4. INCOLUMIDADE PARA A BRAÃO: A SALVAÇÃO DA FORNALHA
Uma cena na Sura 21,68-70 se conecta diretamente com essa passagem do Alcorão que citamos por último. O caráter dramático da cena se oculta por trás de poucas palavras secas:
(68): Disseram: “Queimai-o e auxiliai os vossos deuses, se quereis fazer alguma coisa”. (69) Nós dissemos: “Ó fogo, sê frescor e incolumidade para Abraão!”. (70) Intentaram conspirar contra ele, mas Nós os fizemos os maiores perdedores.
Abraão deve expiar por sua ação destrutiva, que, em nome do Deus único, almejava não apenas sintomas, mas foi até as raízes, pondo em questão os laços familiares e a tradição dos pais. A Sura paralela 37,97 cita uma “construção”, que é erguida para levar a cabo a punição — uma fogueira, ou antes, uma fornalha antiga, encravada na terra. Não se revela muito mais do que isso. A representação tem por único objetivo que Deus salve seu profeta do fogo. O poder de Deus, em contraste com os “maiores perdedores”, é o tema, a superioridade do auxílio divino em oposição aos esforços vãos dos inimigos do profeta. Por isso, apenas a ordem de Deus. Em vista disso, tudo o mais entra totalmente em segundo plano. Quando ouvem o termo “fornalha”, os cristãos pensam primeiramente nos “três homens na fornalha”, relatados pelo Livro de Daniel no terceiro capítulo (que também se refere a um quarto homem, Dn 3,24-28). No entanto, o fato de Abraão ter sido outrora salvo de uma fornalha não foi importante apenas para os judeus, cujos escritos falam mais de uma vez sobre isso ( midrash Bemidbar Rabba 2,12; Talmude babilônico, Pesachim 118a; ver Speyer, 142-144). Em todo caso, os cristãos sírios até mesmo haviam dedicado o 25 de janeiro à memória daquela salvação do patriarca bíblico. Como foi possível vincular Abraão à fornalha? O midrash ( Bereschit Rabba 38,3; cf. 44,13 e Livro dos jubileus 12,12-14) oferece uma explicação baseada na sonoridade semítica: Abraão era originário de Ur na Caldeia, e “Ur(a)” não signi fica outra coisa senão “chama, fogo(fornalha)”; Abraão veio direto do lago de fogo da idolatria caldeia! E ele escapa dele, deixa-o para trás seguindo sua vocação e sua missão divina, para partir em direção da terra prometida.
2.5. O ATAMENTO DO FILHO No judaísmo, o Akedat Jitzchak, o atamento de Isaac, tal como o “sacrifício de Isaac” (Gn 22) no cristianismo, pertence àqueles textos
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elementares que se elevam como um rochedo, sobre o qual séculos de esforços intelectuais, como também abalo existencial e dúvida em Deus na busca da certeza da fé, se lançaram e fizeram dele um ponto de referência historicamente signi ficante para a compreensão que cada um tem de si. Também no islamismo a história encontrou seu lugar de relevo e atuou, a seu modo, para a criação de identidade. Estamos falando do atamento do filho, porque o sacrifício do filho de fato não ocorre por causa do resgate por um animal sacrifical e, além disso, o nome do filho a ser sacrificado por ordem de Deus não é citado no Alcorão. No entanto, foi especialmente a identificação do filho que inflamou discussões enérgicas no âmbito de todas as três religiões. Portanto, ela evidentemente desempenha um papel importante na autointerpretação de cada uma. A narrativa se encontra apenas na Sura 37, logo no início do segundo período de Meca das revelações corânicas; depois não ocorre nem mais uma vez sequer. Podemos apenas especular por que Maomé não a retomou na discussão posterior, por exemplo, com os judeus em Medina e não a atualizou com novas ênfases. Essa impressionante narrativa teve importância para Maomé, sobretudo no contexto de sua esperança pessoal numa descendência masculina? Isso seria apoiado pela posição cronológica da Sura 37 entre os textos de Abraão das Suras 51 e 15, que com suas predições sobre um filho (51,28; 15,53) devem ser lidas no contexto da morte dos filhos de Chadidscha como promessa de Deus de que Ele não deixará seu profeta sem a recompensa da descendência masculina nem irá expô-lo ao escárnio dos incrédulos. De acordo com isso, estaríamos lidando aqui com a esperançosa história da perda de um filho que é impedida pelo próprio Deus e, no final, ligada à renovada promessa de um filho. Ouçamos a versão corânica do sacrifício realizado por Abraão, que na Sura 37,99-113 vem imediatamente depois do con flito com o pai e o povo, como também da concisa alusão à salvação para fora do fogo (v. 83-96.97-98): (99) Ele (Abraão) disse: “Vou para o meu Senhor; Ele me guiará. (100) Ó meu Senhor, agracia-me com um filho que figure entre os virtuosos!”. (101) E lhe anunciamos o nascimento de um menino dócil. (102) E quando este chegou à idade em que podia correr com ele, seu pai lhe disse: “Ó filho meu, vejo em sonho que te oferecia
em sacrifício; que opinas?”. Respondeu-lhe: “Ó meu pai, faze o que te foi ordenado! Encontrar-me-ás, se Deus quiser, entre os perseverantes”. (103) E quando ambos haviam se submetido ( aslama¯) e ele o havia deitado sobre o lado da testa, (104) então Nós o chamamos: “Ó Abraão, (105) já realizaste a visão!”. Em verdade, assim recompensamos os benfeitores. (106) Certamente que esta foi a prova clara. (107) E o resgatamos com outro grandioso animal de sacrifício. (108) E fizemos sua história passar para a posteridade. (109) “Que a paz esteja com Abraão!” (110) Assim recompensamos os benfeitores. (111) Porque é um dos Nossos servos fiéis. (112) E ainda lhe anunciamos Isaac como um profeta entre os virtuosos. (113) E o abençoamos, a ele e a Isaac. Entre os seus descendentes há benfeitores, e outros que são verdadeiros iníquos para consigo mesmos.
Se estamos vindo dos textos bíblicos, talvez nos acostumemos apenas pouco a pouco com outro estilo. O raciocínio tem o efeito, quase sempre, de algo condensado, decantado, às vezes quase estenográ fico. Inserções reflexivas mantêm o leigo, ou melhor, o ouvinte em relativa distância dos acontecimentos. A representação tem traços mais hagiográficos do que dramáticos, parecendo-se muito mais com uma biografia de um santo da Idade Média do que com um drama existencial. A introdução lembra vagamente a partida de Abraão, que conhecemos de Gênesis 12,1-3. Mas não sejamos precipitados em complementar o que não é expresso aqui: quem é Abraão, de onde vem e por quem é chamado? Aqui se fala de Abraão sem tempo e sem lugar, como também não se diz que Deus o chama. Abraão é a-historicamente soberano, sublime. Realmente aqui também poderia se tratar de sua própria decisão, ou de uma simples constatação: Vede, vou para o Senhor — o que também, segundo a forma linguística, poderia ser traduzido como: Sou aquele que está no caminho para o Senhor — como é o caminho do homem (Sura 96,8; 2,156). Isso poderia ser pura e simplesmente um pressentimento da morte iminente. Então não teria nada a ver com uma decisão ou o abandono da pátria. Há todas essas interpretações; a história foi lida de diversas maneiras. É claro que com essa ida de Abraão não foram associados nenhum ponto de virada na história da salvação e muito menos o início da história da salvação de Israel . O evento histórico particular do início da história da promessa de Deus com seu povo Israel não está em primei-
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ro plano; ele absolutamente não ocorre no Alcorão. A saída do contexto de vida atual, da velhice não é — quando voltamos nossa atenção para isso — um êxodo como modelo da saída israelita do Egito, mas, no máximo, a antecipação da hégira de Maomé, isto é, da partida do profeta de Meca para Medina. Ela se concentra totalmente no “Senhor” (duas vezes “meu Senhor”) e na “orientação” como conceito central quando se trata da salvação, da redenção do homem. Essa história do profeta tem a ver com confiança incondicional na direção de Deus. Nesse sentido, trata-se, de fato, de uma decisão, mais precisamente da pré-decisão de tal con fiança. Isso não exclui o pedido. O profeta sem filho se apropria do pedido pelo filho há muito desejado. E aqui tudo parece andar muito rápido. Abraão pede um filho “virtuoso”. No final da história, no verso 112, Isaac é anunciado como tal. No início, porém, não se fala disso, mas sim de um “menino dócil”. Bom, clemente, longânime são outras traduções para essa palavra ( halim), que no Alcorão aparece normalmente como propriedade de Deus e, por isso, se inclui nos 99 mais belos nomes de Deus (por exemplo, Sura 2,225; 3,155; de Abraão 9,114 e 11,75). O filho — cujo nome não é, como dissemos, inicialmente citado — cresce. Segundo dados diversos, ele, nos eventos subsequentes, deveria ter entre 7 e 13 anos, ou também 37, em todo caso, uma idade em que pode “acompanhar e ajudar” ou “dar uma mão (para Abraão)”. “Correr” aqui foi naturalmente também entendido no sentido literal. Num olhar retrospectivo, ressoa aqui sobretudo a corrida prescrita entre as duas colinas Safa e Marwa, que se tornou parte integrante dos ritos do Hajj para lembrar a errância de Hagar e Ismael em busca de água. (Isso é para nós uma primeira indicação indireta das estreitas relações da história de Abraão com o santuário de Meca; ainda voltaremos a isso.) A prova tem início num sonho, que desde sempre foi um veículo para a revelação divina. Aqui duas coisas imediatamente chamam a atenção: enquanto a narrativa inteira é encenada como fala de Deus, na forma do pluralis majestatis (Deus fala na forma do “nós”) predominante no Alcorão, isso não se aplica à ordem decisiva de Deus, que deve ser deduzida apenas indiretamente da fala de Abraão. Abraão comunica a seu filho: “Vejo (ou: vi) em sonho que te oferecia em sacrifício”. O modo como o pai diz isso e como pede uma avaliação disso ao filho tem para nós um tom escandalosamente sóbrio, quase impessoal. No Alcorão não sentimos nada daquele abismo desesperado da
narrativa do Gênesis, aberto pela ameaça de aniquilação da promessa pelo próprio Deus que faz promessas. No entanto, a promessa não é o tema, é uma peça de aprendizado da obediência con fiante. E se havia provas na vida de Abraão, elas há muito parecem superadas pela confiança inabalável em Deus. Seu brilho superior ofusca o drama que se oculta por baixo. Mas não só o pai é soberano e já purificado. O filho, por assim dizer, com direitos iguais, é incluído nessa categoria. E isso é a outra coisa que logo chama a atenção. O filho aparece como uma pessoa religiosamente madura; desde o início, é decisão sua oferecerse como vítima, como a tradição rabínica já o havia sublinhado. Bem ponderado e humilde, ele se submete à vontade de Deus: “Ó meu pai, faze o que te foi ordenado” (v. 102). Sua pia serenidade também não é perturbada nem posta em dúvida pela monstruosidade da exigência de Deus; ao contrário, ambos, pai e filho, “haviam se submetido” (v. 103). A palavra árabe ( aslama¯) aponta para o que mais tarde foi interpretado pelo islamismo: o pai, como o filho, seguiram a orientação correta — essa é contraparte teológica do v. 99 inicial —, submeteram-se à vontade de Deus e, assim, se tornaram “muçulmanos”. Abraão deita o filho com a testa sobre o chão — não preso a um altar, mas sobre o chão como o animal sacri fical na grande festa do sacrifício —, realizando assim a visão do sonho. O atamento do filho começa aqui a se tornar protótipo do id al-adha, a festa do sacrifício islâmica, que é celebrada no décimo dia do mês Dhu ’I-Hiddscha no final dos ritos de peregrinação em Meca e nos arredores. Isso se torna especialmente nítido na ligação com a tradição posterior, por exemplo, no historiador Wadih al-Ya’qubi no século IX. Isso também retira toda relevância do “ Darhöhung” (“ofertar para o alto”), como Buber e Rosenzweig traduzem a expressão para o holocausto bíblico (’ola), que no relato bíblico é um importante leitmotiv. Pela queima, o holocausto transporta o animal totalmente para a esfera divina e, no texto hebraico de Gênesis 22, põe no centro a relação entre Abraão e Deus no tema da entrega do filho. Aqui está tudo em jogo, todo o lado material passa para segundo plano na “oferta” global, perfeita, irreversível “ao alto” para Deus, mesmo daquilo de concretamente carnal que tinha sido graciosamente concedido. Nada mais resta. Mas então tudo é dado. O Alcorão foca muito mais no ato de obediência, na efetuação, na realização do que foi ordenado na revelação onírica. Abraão “reali-
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zou”, e essa ação correta é recompensada. Deus intervém e impede o sacrifício do filho, ao resgatá-lo com um “grande (grandioso) animal de sacrifício”. O Alcorão não o diz, mas devia se tratar de um carneiro branco, com chifres, grandes olhos e lã fina. O atributo “grandioso” refere-se à qualidade do animal sacri fical. Este é sacri ficado em troca do filho, como compensação, por assim dizer, como é geralmente entendida a palavra árabe fada, que foi usada pelos cristãos para a “redenção”. (Embora o resgate seja aqui formulado na fala de Deus, o termo “redentor” não entrou na lista dos 99 nomes de Deus.) Assim, Abraão passa na prova, juntamente com seu filho que atingiu a maioridade e sacrificou seu “si mesmo” voluntariamente, e é ricamente recompensado. A honra de seu nome permanecerá por várias gerações, o desejo de paz vale para o “servo fiel”, ele é abençoado com Isaac. Isaac — ou Ismael? Isso nos leva de novo à questão: de quem se tratava?
2.6. A DESCENDÊNCIA — ISMAEL E ISAAC Nós já vimos: no contexto do atamento do filho na Sura 37, o nome de Isaac ocorre apenas nos versos 112-113: (112) E ainda lhe anunciamos Isaac como um profeta entre os virtuosos. (113) E o abençoamos, a ele e a Isaac.
Isso deu margem a explicações bastante diversas. Inicialmente, em consonância com a narrativa do Gênesis, parecia óbvio ver Isaac no “sacrificado”, como ele é chamado. Ele é o filho desejado por Abraão e “anunciado” no começo por Deus. Segundo a Sura 11,71, o filho anunciado se refere expressamente a Isaac. Sem dúvida, essa Sura foi revelada mais tarde do que a Sura 37, mas a Sura paralela 51,24-30 (ver supra 2.2.), do período inicial, fala da esposa idosa de Abraão, a qual deve se referir a Sara, o que, por isso, nos faz pensar apenas em Isaac como filho. Por outro lado, o nome de Isaac só é mencionado na história propriamente dita depois da prova bem-sucedida. Então se impõe partir do atamento de Ismael, o primogênito. Isso parece ser realmente corroborado pela naturalidade com que aqui se fala de filho e
não de uma escolha entre dois, o que também já tinha dado dor de cabeça aos rabinos em vista de Gênesis 22. E a indicação da “corrida” evocou associações com os ritos de peregrinação, que são constituti vamente relacionados a Abraão e Ismael (Sura 2,124-128; 3,95-97; a esse respeito, cf. também 2.8.2.). Ademais, isso foi apoiado por uma ligação corânica de palavras-chave, que partindo da Sura 21,85 (revelada mais tarde) permitiu ver no “perseverante” do v. 102 ninguém menos do que Ismael. Se aí Ismael foi designado como alguém que pode suportar muito, como um homem paciente, então o emprego da mesma palavra aqui fará referência à mesma pessoa. Diante disso o outro lado pôde dizer que Isaac foi chamado de “virtuoso” no v. 112 e que isso corresponde ao pedido de Abraão no v. 100, portanto outra associação de palavras-chave, constituindo nesse caso até mesmo uma moldura para toda a história. Aqui foi especialmente importante o argumento de que o tom no v. 112 não está sobre o nome Isaac, mas sobre o acusativo de estado “(nós o anunciamos) como um profeta”. Isso significa que aqui não é de modo algum anunciado o nascimento de Isaac, mas sim que a este é prometido o profetismo como recompensa por sua obediência! Isso poderia ser comparado à Sura 19,53, em que Aarão é prometido ou dado a Moisés como profeta — o que não pode ser um anúncio de nascimento, já que Aarão era o mais velho dos dois. De acordo com essa interpretação, Isaac é apreciado e honrado por sua paciência e sua perseverança na prova. Seja como for, não se pode dizer claramente de que filho se trata. Nos primeiros trezentos anos da história islâmica, a maioria dos eruditos, em concordância com a Bíblia, foi da opinião de que o “sacrificado” se refere a Isaac (assim, por exemplo, Tabari, morto em 923). Mas há muito a identi ficação com Ismael se tornou tão natural que o mero questionamento a respeito provoca estranheza. Não se pode ignorar que uma delimitação polêmica em relação aos judeus desempenha um papel considerável nesse tópico. Os judeus mentem — uma frase estereotipada da literatura de comentários. E isso fala em favor de Ismael como “sacrificado”. A preferência por Ismael está historicamente ligada à transformação por que passou o material bíblico e que se manifesta especialmente nas narrativas sobre Abraão. As tradições de fundo judaico e cristão, as assim chamadas Isra’iliyyat, foram cada vez mais rejeitadas no decorrer do tempo e expulsas da memória coletiva, em que especialmente os muitos pri-
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meiros convertidos as haviam inscrito; as tradições árabe-islâmicas, centradas em Meca, ganharam peso cada vez maior. Independentemente dessa questão de detalhe — que, contudo, obteve significado considerável na reconstrução da identidade própria e depois na polêmica mútua —, a seguinte observação é importante para nossa compreensão do desenvolvimento: No período inicial, Ismael tem importância escassa, ou nula, para Maomé, pelo menos como filho de Abraão. Isso é mostrado por sua aparição relativamente tardia no segundo período de Meca das revelações corânicas, e de modo bastante casual como “enviado e profeta” na Sura 19,54. Ele é citado em diferentes combinações ao lado de uma série de figuras bíblicas, mas, em todo o período de Meca, permanece sem ligação com Abraão: Isaac e Jacó são normalmente citados como sua descendência, de modo análogo à tradição bíblica (Sura 19,49; 38,45; 11,71 passim). Portanto, tudo se passa quase como se Maomé conhecesse, sim, o nome Ismael, mas não tivesse uma concepção clara de sua posição. É apenas no contato mais estreito com judeus que as relações familiares vêm a se esclarecer, por exemplo a de que Ismael é filho de Abraão e irmão de Isaac. Em Medina ocorre uma modificação característica. Se em Meca a fórmula dos pais ainda era “meus pais Abraão, Isaac e Jacó” (como na Sura de José 12,38), em Medina ela é reformulada para “Deus de teus pais Abraão, Ismael e Isaac” (Sura 2,133) e em todas as passagens subsequentes ampliada para “Abraão, Ismael, Isaac, Jacó e as tribos (a saber, de Israel)”. (Só) agora Ismael é posto antes de Isaac como primogênito de Abraão e move-se assim para o primeiro lugar da descendência de Abraão. Nessa sequência se espelha a hierarquia que, por sua vez, revela a concepção teológica da história. É evidente a conexão com o desenvolvimento negativo da relação entre Maomé e os portadores da Escritura, sobretudo os judeus, que não é constatada apenas numa fase pós-Alcorão (palavra-chave: Isra’iliyyat), mas marcou fortemente a transição de Meca para Medina. Justamente no filho expulso de Abraão Maomé pôde tematizar o elemento separador na consciência da união simultânea. (Só em época recente se [re-]descobriu que Ismael também foi abençoado do ponto de vista bíblico — Gênesis 17,20; 21,17-20). Isso a flora agudamente na citação exclusiva de Abraão e Ismael no texto de fundação para a Caaba e os ritos de peregrinação na Sura 2. Ambos representam aqui o voltar-se para Meca,
constitutivo do islamismo — contra Jerusalém, pela fé pura e original em Deus — contra o judaísmo e o cristianismo. Abraão e Ismael aparecem nessa exclusividade apenas na Sura 2 (principalmente v. 124-129) no início do período de Meca, não aparecendo antes nem jamais depois. Ismael se encontra, portanto, no contexto de uma confrontação histórica dramática de modo especial para a islamização da tradição bíblica; alguns até mesmo viram aqui — evidentemente da perspectiva “ocidental” — um tipo de sacrifício de Isaac: Maomé, em sua reinterpretação da história bíblico-judaica, “sacrifica” Isaac por causa de Ismael, que ele, em seus textos, por assim dizer, busca da expulsão e, com isso, delineia o islamismo como legítima restauração da fé original em Deus desconsiderando judeus e cristãos. A partir disso, a construção genealógica da linha Abraão-Ismaelárabes foi obrigatória do ponto de vista islâmico. Mas ela ainda não foi coisa da primeira geração. Aqui, à pretensão judaico-cristã à descendência de Abraão opôs-se o argumento estritamente não genealógico de que tal pretensão não existe por causa da descendência, mas sim por causa da fé, de quem emula seu modelo (ver Sura 3,68; cf. Jo 8,39). No entanto, isso poderia atestar justamente o peso do desenvolvimento interior de Maomé e da esboçada instrumentalização do primeiro filho de Abraão, pois chama a atenção o fato de Ismael originalmente não se encontrar em vínculo algum com uma tribo árabe, nem mesmo na forma, por exemplo, de nomes de profeta do árabe antigo. Ismael — um nome de origem não árabe e incomum na época pré-islamismo — é, como ouvimos, citado juntamente com figuras bíblicas. Isso faz pensar. Se Ismael foi visto como progenitor dos árabes pelos parentes de Maomé e pelo próprio Profeta, ele, com certeza, deveria ter recebido uma descrição totalmente diferente, mais eminente, já nas primeiras Suras. Mas até hoje não se apresentou nem um único registro préislâmico de emprego árabe do nome. De resto, só dois “Ibrahim” se tornaram conhecidos — ambos eram cristãos.
2.7. SOL , LUA E ESTRELAS: COMO A BRAÃO ADQUIRIU FÉ A questão acerca dos filhos de Abraão já nos conduziu para além do período de Meca, o que era inevitável tendo em vista Ismael. No
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desdobramento corânico da imagem de Abraão, estávamos no atamento do filho na Sura 37, do início período médio de Meca. Nós o retomamos quando nos lembramos de que na Sura 37 os temas abordados nas seções 2.3. e 2.4. (combate aos ídolos; salvamento do fogo) aparecem diretamente antes da narrativa do atamento (v. 8396.97-98). No entanto, a confrontação com o pai e o povo por causa da idolatria não havia esclarecido como o próprio Abraão adquiriu o saber a respeito da correta adoração de Deus. No período médio de Meca isso é apenas insinuado (19,43), tornando-se um tema próprio na Sura 6,74-79, no final do período de Meca, pouco antes da expulsão de Maomé de sua cidade natal: (74) Quando Abraão disse a Azar, seu pai: “Tomas os ídolos por deuses? Eis que te vejo a ti e a teu povo em evidente erro”. (75) E assim Nós mostramos a Abraão o reino dos céus e da terra — para que ele se contasse entre os persuadidos. (76) Quando a noite o en volveu, viu uma estrela. Ele disse: “Eis aqui meu Senhor!”. Porém, quando esta desapareceu, disse: “Não adoro os que desaparecem”. (77) Quando viu despontar a lua, disse: “Eis aqui meu Senhor!”. Porém, quando esta desapareceu, disse: “Se meu Senhor não me guiar, contar-me-ei entre os extraviados”. (78) E quando viu despontar o sol, exclamou: “Eis aqui meu Senhor! Este é maior!”. Porém, quando este se pôs, disse: “Ó povo meu, não faço parte da vossa idolatria! (79) Eu volto minha face a Quem criou os céus e a terra, como adepto da fé verdadeira e não me conto entre os idólatras”.
Segundo o Alcorão, portanto, o conhecimento sobre Deus não está no início das histórias de Abraão, como talvez fosse de esperar; e aqui também a cena parece curiosamente inserida numa disputa teológica com o pai, que é inicialmente interrompida e então, a partir do v. 80, inclui também “seu povo”. É possível que isso espelhe a situação de Maomé pouco antes da Hégira. Na confrontação, cada vez mais intensa, entre ele e a crença nos deuses de Meca, o novo profeta vinha indicando sempre mais os profetas anteriores, tinha descoberto, por assim dizer, sozinho sua(s) história(s). Em detalhados ciclos dos profetas, ele descreveu vividamente a confrontação dos primeiros enviados por Deus com suas respectivas tribos e povos, para esclarecer, fundamentar e legitimar sua própria missão. No entanto, não ocorreu o “sucesso” esperado. Assim, o recurso aos primeiros
passos de Abraão na fé aparece como um ponto de virada na pregação de Meca, como um retorno, por assim dizer, à biografia espiritual do profeta, para a partir daí introduzir no conflito argumentos novos com uma pretensão mais fortemente racional. Quem não seguiu a palavra deve agora ser conquistado por motivos racionais. A seção contém três passos. Em primeiro lugar, há a disputa, depois a iniciativa de Deus (“E assim Nós mostramos”) e, em terceiro, o caminho de Abraão até o conhecimento sobre Deus. Segundo essa inserção, o próprio Deus prepara o conhecimento “natural” sobre Deus, de modo que Abraão mais segue as instruções de Deus do que seu próprio impulso. Num interessante cruzamento, o conhecimento com base na criação e na direção divina é, portanto, interrelacionado. Agora Abraão, novamente em três passos, é conduzido ao objetivo que, por fim, por convicção própria, o torna um “adepto da fé verdadeira” ( hanif ). Do curso dos astros ele deduz a verdade da fé no Deus único; a busca vai de uma estrela, passa pela lua e chega ao sol. Um dado realmente emocionante aqui é o sobe e desce não só dos astros, mas também do caminho da fé de Abraão. Ele inicialmente reconhece, a respeito da estrela, e depois dos astros sempre mais claros, impressionantes e com brilho mais forte: “Eis aqui meu Senhor!”. No entanto, a percepção da inconstância e da efemeridade desses pretensos “Senhores” o incomoda, a ele que busca a Deus; então Abraão, depois da primeira decepção, é tomado por uma incerteza, que resulta na renúncia à crença nos astros mantida por seu próprio povo. Abraão não era incólume à dúvida, o que mais tarde é novamente mostrado na pergunta que Deus lhe dirige (Sura 2,260): “Acaso ainda não crês?”, ao que o profeta responde: “Sim, mas (eu pergunto) para tranquilizar meu coração”. Abraão encontra essa tranquilidade na Sura 6, quando, ao observar a “natureza” das coisas, reconhece que por trás de todos os fenômenos mundanos oculta-se a atividade criadora do Deus único. Nada que é criado, nem mesmo o sol, pode agir por si só, manterse e, por isso, reivindicar poder. Não faz sentido, sendo até mesmo “contra a natureza”, prestar honras às coisas criadas, honras que cabem exclusivamente ao criador, sem cuja vontade nada acontece. Por isso, Abraão resolve voltar sua face totalmente a quem criou os céus e a terra. Esse é um estado de coisas essencial. Pois esta é a única consequência possível, e ao mesmo tempo necessária, que o
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homem pode tirar tanto do fato de ser Deus o criador quanto de seu domínio sobre cada momento: que ele se volte para Ele e apenas para Ele e lhe preste todas as honras. Contemplar Deus e nada mais, esse é o modo de ser da criatura e o sentido da existência. Essa é mensagem primeira do islamismo. E que isso seja óbvio e realmente possa, com a razão, ser inferido da marcha das coisas — sem a necessidade de uma intermediação salvífica —, também isso permanecerá importante para o islamismo. Justamente isso é resumido na expressão “voltar sua face”: na medida em que o homem conhece e reconhece isso, ele volta sua face exclusivamente para Deus. Isso tem uma expressão linguística concreta em várias passagens do Alcorão, na língua árabe: aslama wadschhahu “voltar sua face (para Deus)” — por exemplo, na Sura 2,112; 4,125. É mais frequente, porém, que apareça resumidamente apenas “ aslama”, com omissão do termo “face” “voltar (a face totalmente a Deus)” (por exemplo, Sura 2,131; 3,83-85; 9,30-31). O substantivo para isso é islam. E sua tradução como “devoção; submissão (à vontade de Deus); entrega” e outros conceitos semelhantes já interpreta o uso linguístico mais antigo com base no recheio de conteúdo posterior. Se aqui na Sura 6,79 se trata de uma decisão de Abraão, a isso corresponde na Sura 2,131 a exortação divina a Abraão: “Quando seu Senhor lhe disse: ‘Volta (tua face a Deus, aslim)!’ E ele respondeu: ‘Eu volto (a face, aslamtu) ao Senhor dos mundos!’”. Aqui geralmente se traduz: “Sê submisso (a mim)!”, pois o particípio ativo do verbo é muslim. Por isso, muitas vezes também encontramos aqui a tradução: “Torna-te muslim!”. Portanto, aqui também se dá o cruzamento de decisão e vontade de Deus. Essa “transformação em muslim”, antropologicamente fundamental, não é um assunto puramente espiritual, mas se cumpre, antes de mais nada, na execução dos ritos dados por Deus — mas ainda voltaremos a falar disso. Na Sura 4,125, resume-se: E quem se distingue por uma melhor fé praticada ( din) do que quem volta (totalmente) sua face a Deus ( aslama wadschhahu li-llah) e é praticante do bem e segue a comunidade de Abraão, que é um buscador de Deus ( hanif )? Deus elegeu Abraão como amigo.
Ao voltar-se para Deus, Abraão chega à confissão, que é formulada do seguinte modo na passagem paralela, a Sura 26,78-82:
(O Senhor do Universo), Que me criou e me guia, Que me dá de comer e beber. Que, se eu adoecer, me curará. Que me dará a morte e então me ressuscitará. E Que, espero, perdoará as minhas faltas, no Dia do Juízo.
Ao atestar isso, Abraão revela ser um “homem verdadeiro e profeta” (Sura 19,41). Mas como Abraão chegou à fé? Como precondição pessoal, ele trazia consigo um “coração íntegro” (Sura 37,84), o que é interpretado como receptividade às instruções de Deus. Seu caminho até a fé engloba investigação racional, revelação divina (direção, exortação “Torna-te muslim!” 2,131) e a atestação da direção, o que encontra sua forma adequada na instituição do culto islâmico. Abraão é realmente digno de que a “religião correta” a partir de agora tenha um nome em sua homenagem: a religião é a millat Ibrahim, a orientação de fé de Abraão (Sura 6,159-164); a expressão hanif , “buscador de Deus”, torna-se sinônima de monoteísta em contraposição ao muschrik, que “agrega” alguma coisa a Deus. Desenha-se o arco “histórico-salvífico” do amigo de Deus ( Khalil Allah) até Maomé como “o primeiro dos submissos a Deus” (Sura 6,163). Tudo isso precisou entrar em oposição cada vez mais intensa com as concepções de fé recebida do clã próprio, com a tradição dos pais. O desligamento interior de Maomé de Meca e de seu politeísmo traçou pegadas cada vez mais profundas, enquanto o desligamento externo teve de acabar após pouco tempo na Hégira. Justamente em face dessa perfeição, a contradição restante devia ser desconcertante: a livre atuação da razão podia levar ao conhecimento da verdade? E até que ponto estavam previstas aí tentativas errôneas? Ainda mais: um profeta, e até mesmo um profeta do per fil de Abraão, pode errar desse modo, ainda que provisoriamente? Houve um tempo em que Abraão não creu — Abraão foi um pagão?! Não é de admirar que se tenha especulado em várias direções. Para a exegese antiga, esses pensamentos ousados não eram tabu de modo nenhum; ao contrário, eles estavam no texto. Contudo, para outra linha interpretativa o caso era claro: é totalmente impossível que Deus envie um profeta que não o conheça imediatamente e recuse claramente toda falsa adoração divina. A clara pro fissão de fé é realmente um pressuposto para a eleição como profeta. Se Abraão, portanto, alguma vez precisou exprimir algo diferente, ele não o fez
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pela busca da verdade, mas, no melhor dos casos, ironicamente, com intenção pedagógica, por assim dizer, para mostrar ao seu povo in fiel o que eles realmente faziam em sua idolatria.
2.8. A BRAÃO EM M ECA : PAI DO NOVO TEMPO (SURA 2) O corte causado pela Hégira (622 d.C.) foi em muitos aspectos tão sério para a primeira comunidade mulçumana que o traslado de Meca para Yathrib — chamada mais tarde Medina, “ a cidade” (do profeta) — se tornou o ano zero da era islâmica. Com efeito, o ponto de virada decisivo na biogra fia de Maomé marca, em retrospecto, a virada das eras dessa religião mundial incipiente. No início isso não foi previsível, pois a situação de Maomé era tudo menos promissora. O que geralmente é chamado de expulsão foi, sim, o processo absolutamente doloroso em que um pregador insultado, perseguido se desligou de todos os laços que lhe eram familiares; no fundo, foi o rompimento trágico com a obra de toda sua vida até então. O fato de Maomé ter encontrado em Yathrib/Medina outras circunstâncias, essencialmente mais favoráveis para sua causa, foi possibilitado pelo desenvolvimento de uma religião politicamente bem-sucedida e que se apoiava não mais na origem tribal, mas na identidade religiosa. O arauto escarnecido do Juízo iminente no ambiente do politeísmo de Meca tornou-se a autoridade religiosa e também, cada vez mais, política de uma comunidade em rápido crescimento na confrontação com o judaísmo predominante em Medina. O novo tempo tornou possíveis e necessárias novas ênfases na pregação, mas a mensagem continua, no cerne, a mesma. O discurso sobre o Juízo com suas imagens apocalípticas entra em segundo plano no horizonte de no vas exigências políticas e sociais. O arranjo da vida privada e pública da crescente umma (a comunidade dos muçulmanos) exige cada vez mais regulamentos legais, o que se expressa no caráter e nos conteúdos das revelações de Medina. A “encarnação” do islamismo num “Estado” acarretou ataques cada vez mais claramente formulados contra aqueles que eram adversários reais ou percebidos como tais. A figura de Abraão exerce um papel fundamental nesse processo da identificação e da imagem político-religiosas. Se os primeiros aproximadamente dezoito meses em Medina passaram totalmente
sem revelações, elas recomeçam com a Sura 2 no ano 624 com uma abundância de instruções legais, teológicas e cultuais para a jovem comunidade, entre outras coisas com algumas perícopes sobre Abraão, que constituem o núcleo da Sura mais longa do Alcorão. Uma observação prévia lança uma luz sobre a situação alterada depois do ano 622: em Meca, Abraão representava o con flito com o povo e o desligamento do que era velho, simbolizado na Hégira, na separação física de Meca. Em Medina, o patriarca, inversamente, representa mais e mais o renovado movimento de voltar-se para Meca, a resoluta rememoração de uma encenação islâmica da religião centrada no santuário da Caaba, em face de — e desconsiderando — judeus e cristãos. 2.8.1. Abraão é o modelo para os homens A primeira parte da segunda Sura dedica-se, além do tema criação e da relação com outras religiões (também revelação, falsificação, abrogação), predominantemente à confrontação de Maomé com os judeus. Isso correspondia à situação real em Medina. Em face da preferência que os “filhos de Israel” experienciaram pelo favor de Deus (v. 47 e 122), a ingratidão dos judeus e sua transgressão do mandamento (profanadores do sábado, v. 65) são confrontadas com a exortação de reconhecer a direção de Deus. Um exemplo especialmente luminoso para isso é a fé de Abraão: (124) E (lembrai) quando Abraão foi testado por seu Senhor com certos mandamentos, que ele observou. Ele (Deus) disse: “Farei de ti um modelo ( imam) para os homens”. Ele (Abraão) perguntou: “E também o serão os meus descendentes?”. Ele disse: “Minha promessa não se estende aos injustos”.
Com a obediência pela fé, Abraão é bem-sucedido na prova. Enquanto é isso que soa para nossos ouvidos imediatamente após o sacrifício de Isaac ou o atamento do filho — que, no Alcorão, também é expressamente chamado de “clara prova” (Sura 37,106, cf. supra 2.5) —, para a maioria dos comentadores muçulmanos do Alcorão algo diferente se oculta por trás dessas palavras. Trata-se das trinta leis que Abraão observou, ou dos deveres do islamismo, dos precei-
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tos da peregrinação, ou da circuncisão. A circunstância com a estrela, a lua e o sol (Sura 6; ver supra 2.7.) também é chamada de prova de Abraão. Então, um pouco mais à margem também está a prova “pelo sacrifício de seu filho”. O importante é que Abraão foi totalmente obediente em todos os pontos. Por isso, Abraão é um modelo para todos os homens. A pala vra imam vem de “estar à frente”, “diretor, guia”, mais tarde ressoa aí aquele que recita a oração, o líder da comunidade. Com base no Alcorão, muitos veem nisso sobretudo o cargo de profeta (cf. Sura 21,73) e, depois, os califas. Abraão é o modelo religioso e moral em suas orações, no modo de vida, em sua obediência na fé (cf., no entanto, infra, 2.10). Este é agora, e isso é decisivo, destituído da relação exclusiva profeta-povo e se torna um modelo universal, que vale para todas as pessoas. Enquanto os profetas normalmente são en viados para seu próprio povo, Abraão é o epítome da dissolução das barreiras nacionais, étnicas. Isso naturalmente também signi fica que Abraão é desligado de seu vínculo histórico com judeus e cristãos, especialmente com o povo Israel. Talvez, por isso, a pergunta, ou pedido, que se segue no texto do Alcorão, “E também o serão meus descendentes?”, deva ser entendida como um corretivo. A descendência de Abraão não se beneficia automaticamente da posição eminente do grande modelo. Não é importante a origem carnal, mas a fé, a aquisição pessoal do modelo moral, para além de fronteiras nacionais e outros limites. Por isso: a aliança não se estende aos injustos. A aliança consiste em Abraão se tornar um exemplo para os homens, que todos, tementes a Deus, devem emular (Sura 3,76). O conceito de aliança, que, de resto, absolutamente não tem tanta carga teológica como os contextos bíblicos, orienta-se fortemente pelo compromisso dos homens (cf. Sura 2,63-66.83-85). 2.8.2. A peregrinação islâmica como encenação ritual da fé de Abraão 2.8.2.1. A Caaba como a “casa de Deus” erguida por Abraão
A peregrinação, juntamente com a pro fissão de fé, a oração, o jejum e a doação de esmolas, como cinco “pilares”, pertence aos deveres
principais do islamismo. Ela está fundamentada em várias passagens no Alcorão, a começar pela Sura 2,125 ss.: (125) Nós estabelecemos a Casa como parada e local de segurança para os homens e (dissemos): “Adotai a Estância de Abraão por oratório!”. E estipulamos a Abraão e a Ismael, dizendo-lhes: “Puri ficai Minha Casa para os que a contornam e que (lá) se recolhem para adoração e se curvam (perante Deus) e se prostram”. (126) E quando Abraão disse: “Ó Senhor meu, faze que esta cidade seja de paz, e agracia com frutos os seus habitantes que creem em Deus e no Dia do Juízo Final!”. Ele (Deus) disse: “Darei aos incrédulos um desfrutar transitório e depois os condenarei ao fogo (do inferno). Que funesto destino!”. (127) E quando Abraão e Ismael levantaram os alicerces da Casa (exclamaram): “Ó Senhor nosso, aceita-a de nós. Pois Tu és Oniouvinte, Onisciente. (128) Ó Senhor nosso, permite que sejamos submissos ( muslimina) a Ti e que surja, da nossa descendência, uma comunidade submissa a Ti ( umma muslima). Ensina-nos os nossos ritos e absolve-nos, pois Tu és o Remissório, o Misericordioso. (129) Ó Senhor nosso, faze surgir, dentre eles, um Mensageiro, que lhes transmita as Tuas leis e lhes ensine o Livro, e a sabedoria, e os purifique. Pois Tu és o Todo-Poderoso, o Sapientíssimo”.
“A Casa” é a Caaba em Meca, uma construção de pedra cúbica, que está sempre coberta por um nobre brocado preto, a kiswa, que é adornada com caracteres bordados em ouro e renovada anualmente. No canto sudeste da estrutura de 12 11 13 m, encontra-se a legendária Pedra Negra de cerca de 1 m de altura envolta numa moldura de prata, que é especialmente desejável tocar ou até mesmo beijar, pois ela representa o objeto mais sagrado de todo o complexo. A Caaba é um lugar de parada ou “ponto de reunião”, pois as pessoas se juntam ali para os ritos da peregrinação. Como isso caía nos quatro meses sagrados, em que imperava uma paz geral (Sura 9,2.36), fala va-se também de lugar de segurança. Trata-se do santuário central do islamismo, que, no tempo pré-islâmico, era dedicado aos deuses das tribos do Hejaz. Maomé o devolveu à veneração do Deus único. Isso foi preparado por revelações como a citada aqui, que vincula o lugar cultual a Abraão numa “genial intuição” (M. Eliade). Não está claro o que e onde é exatamente a “estância de Abraão” ( maqam ×
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Ibrahim). Devia ser uma pedra que hoje, na vizinhança imediata da Caaba, está coberta por uma bela e pequena cúpula. Em todo caso, Abraão esteve ali, e com ele seu filho Ismael, que aqui pela primeira vez — e depois não mais no Alcorão — é citado diretamente em conexão com a Caaba. Ambos têm em comum uma importante função no que tange à inicialização cultual, que é circunscrita por puri ficação e fundação. A sequência — primeiro puri ficar, depois construir? — não deve nos causar problemas, especialmente porque o “levantar os alicerces” também pode ser entendido no sentido de que o lugar é “elevado” pela puri ficação religioso-espiritual, por assim dizer, é alçado a um novo nível. Por causa dessa passagem, Abraão e, com ele, Ismael são considerados os construtores da Caaba. Em todo caso: se a purificação é ressaltada (ver Sura 22,26), então se pressupõe que o lugar já era um santuário antes de Abraão, de sorte que não surpreendem as tradições islâmicas que remetem a fundação da Caaba a Adão. Talvez inicialmente Maomé fosse da opinião de que Abraão construiu a Caaba, mas depois tenha reconhecido que devia se tratar de sua purificação no sentido do restabelecimento do verdadeiro culto. Isso corresponde mais ao seu papel de libertar o lugar de Abraão da idolatria dos pagãos e reconduzi-lo ao monoteísmo. São citados os rituais mais importantes do Hajj, sendo descritos mais detalhadamente na Sura posterior, 22,26-33:
(26) E quando indicamos a Abraão o local da Casa, dizendo: “Não Me atribuas parceiros, mas Puri fica Minha Casa para os circungirantes, para os que permanecem em pé e para os que se curvam e se prostram. (27) E proclama a peregrinação ( haddsch) às pessoas; elas virão a ti a pé e montando muitas exaustas (cavalgaduras), dos mais longínquos lugares, (28) para testemunhar os seus benefícios e proferir o nome de Deus nos dias conhecidos pelo gado com que Ele os agraciou. — Comei, pois, dele, e alimentai o indigente e o pobre. (29) Que logo se higienizem, que cumpram os seus votos e que circungirem a antiga Casa”. (30) Assim (será). Quanto àquele que enaltecer os ritos sagrados de Deus, terá feito o melhor para ele, aos olhos do seu Senhor. É-vos permitido o gado, exceto o que já vos foi estipulado. Evitai, pois, a abominação da adoração dos ídolos e evitai o perjúrio, (31) consagrando-vos a Deus; e não Lhe atribuais parceiros, porque aquele que atribuir parceiros
a Deus, será como se houvesse caído do céu, como se tivesse sido apanhado pelas aves, ou como se o vento o lançasse a um lugar longínquo. (32) Tal será. Contudo, quem enaltecer os ritos de Deus, saiba que isso exprime a piedade no coração. (33) Neles (os animais) tendes benefícios, até um tempo prefi xado; então, seu lugar de destino será a antiga Casa.
Aqui são citadas as sete voltas em torno da Caaba, a assim chamada tawaf , como também diferentes posturas assumidas na oração. (A posição de pé possivelmente se refere também à permanência de um dia na planície do Arafat junto ao “monte da misericórdia”.) O sacrifício da grande Festa do Sacrifício deve também bene ficiar os pobres. A higienização indica o estado de sacralidade ihram, em que os peregrinos devem entrar no início do Hajj e que inclui a renúncia aos cuidados corporais no sentido mais amplo, como também a proibição de matar animais e de manter relações sexuais. O ihram no sentido mais estrito é a própria roupa branca e simples do peregrino, que muitas vezes é também guardada como mortalha e assim vincula a bênção da peregrinação com a lembrança do Juízo Final. 2.8.2.2. Abraão e a peregrinação
O desenrolar da Hajj é até hoje intimamente entrelaçado com a história de Abraão. Com base na Sura 3,96-97, em que se trata da observância da fé de Abraão, a peregrinação é um dever individual de cada fiel ( fard al-ain). Há, além dos ritos abrangentes da Hajj, a forma mais curta da “peregrinação de visitação” (umra). Antes de iniciar, os fiéis devem assumir o propósito de cumprir seus deveres. Depois da ablução ritual, veste-se a roupa da peregrinação. As mulheres deixam descobertas a face e as mãos; a igualdade e a solidariedade de todos os peregrinos são exteriormente simbolizadas numa comunidade única e universal e têm grande força espiritual. Sob cânticos da Labbaika (“Eis-me, aqui, ó Deus! Vós não tendes parceiros…”), que então acompanharão todo o ritual, as pessoas entram no espaço do distrito sagrado da mesquita. Ali, no centro, são executadas as sete voltas em torno da Caaba (tawaf ), e faz-se uma oração na estância de Abraão (Sura 2,124-125).
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A “corrida” ( sa’y) entre as colinas Safa e Marwa, distantes apenas 400 m uma da outra, também deve ser feita sete vezes. No nível histórico-religioso, essa corrida, como a maioria dos ritos do Hajj, remonta ao culto dos ídolos pré-islâmicos. No entanto, do ponto de vista da teologia islâmica, aqui se perfaz ritual e emocionalmente a corrida de Hagar e Ismael, que, expulsos por Abraão e atormentados pela sede, devem ter corrido de um lado para o outro entre as duas colinas (Sura 2,158; 37,102). Com auxílio do anjo Gabriel, nasceu uma fonte para a criança sedenta e sua mãe (cf. Gn 21,17-19), o poço de Zamzam, que até hoje fornece sua água curativa aos peregrinos. Quem pode trazer para casa uma garra finha de água desse poço tem uma bênção especial para si e sua família. No oitavo dia do mês de Haddsch, as pessoas se dirigem para Arafat, uma planície que fica a cerca de 20 km a leste de Meca. O pernoite ocorre num acampamento hoje gigantesco em Mina, de modo que no dia seguinte as pessoas podem permanecem no Arafat, para, próximo ao Dschabal ar-rahma, a montanha da misericórdia, ouvir pregações e orar. A comunidade mundial de muçulmanos acompanha esse dia com um jejum. Depois do pôr do sol, voltam para Muzdalifa, que fica entre a planície Arafat e Mina. Ao amanhecer do dia 10 do mês Dhu ’l-Hiddscha, os peregrinos partem para Mina, para lá chegarem antes do nascer do sol. Em memória da tentação de Abraão e de Ismael por Satã e como presentificação ritual da resistência a essa tentação, as pedras de seixo são lançadas na estela Dschamrat al-aqaba como apedrejamento simbólico de Satã. A umma islâmica está com Abraão a caminho da execução do sacrifício e fica ao seu lado na tentação de desobedecer ao comando de Deus. O estado de sacralidade ihram termina quando se faz a barba e se cortam os cabelos. Agora os peregrinos estão prontos para a grande Festa do Sacrifício, que ocorre no décimo dia do mês. O sacrifício é feito para lembrar a prontidão de Abraão e de seu filho para o sacrifício e seu resgate pelo animal substituto (Sura 37,103). Uma ovelha, uma cabra ou outro animal de sacrifício apropriado é — voltado para Meca — abatido: com um corte preciso pela carótida e pela traqueia. A maior parte da carne é dividida entre vizinhos e necessitados, e se celebra apenas com a menor parte. A centralidade da história do sacrifício no processo todo mostra que o texto da Sura 37, embora não seja mais retomado no Alcorão (ver 2.5.), representa um aspecto
altamente significativo da teologia islâmica. De modo análogo aos textos correspondentes no judaísmo e no cristianismo, ele pertence aos textos fulcrais da autocompreensão islâmica, que se manifesta especialmente na interpretação essencialmente ritual, menos espiritual, dessa narrativa. O Hajj é concluído com outra breve estada em Meca e o retorno para Mina, onde os peregrinos, segundo a maneira prescrita, em três dias seguidos, devem executar o apedrejamento das três “estelas do diabo” ao pôr do sol. A visita ao túmulo do profeta em Medina, logo depois das cerimônias em Meca, é, às vezes, desaprovada por ortodoxos rigorosos, mas a maioria dos peregrinos não quer perder a chance de extrair força nova e inspiração espiritual da proximidade do profeta. 2.8.2.3. Maomé como o enviado solicitado por Abraão
A construção ou a purificação da Caaba é concluída com uma oração, que foi uma vez transmitida como oração de Abraão (2,126), e então, no verso seguinte, como oração comum de Abraão e Ismael (cf. também Sura 14,35-41). Esta culmina no pedido por “um mensageiro entre eles”, que conheça o Livro e a sabedoria e faça a purificação da fé. Todos os exegetas concordam que esse pedido na boca de Abraão, que lembra fortemente a promessa do profeta em Deuteronômio 18,15, almeja Maomé. Ele é um “entre eles”, os de Meca, e ele é o enviado por Deus. Mais tarde, foi posta na boca de Maomé a autoconfissão: “Eu sou o pedido de meu pai Abraão e a boa-nova de Jesus” (Tabari). Essa orientação pelo novo centro, tal como a ênfase sobre a idade da Caaba, aponta para o vasto arco Abraão-Maomé, pelo qual o jovem Islã ganha seu santuário, que é mais velho do que Jerusalém. Sob esse aspecto, é o momento de avançar de novo e citar já aqui a Sura 3,95-97: (95) Dize: Deus disse a verdade. Segui, pois, a religião de Abraão, o adepto da fé verdadeira ( hanif ), que jamais se contou entre os idólatras. (96) A primeira Casa (de Deus), erigida para os homens, é verdadeiramente aquela em Bakka, onde reside a bênção servindo
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de orientação à humanidade. (97) Nela residem sinais evidentes; (ela é) a Estância de Abraão. E quem quer que nela entre estará em segurança. A peregrinação à Casa é um dever para com Deus, por parte de todos os seres humanos — que estão em condições de empreendê-la. Quanto aos que não creem, Deus pode prescindir de toda a humanidade.
A “velha Casa” é a primeira casa que foi construída para o serviço ao Deus verdadeiro. Trata-se da Caaba. Bakka representa Mekka (em árabe, Makka), possivelmente pela troca de M por B, para impedir má influência pela pronúncia do nome (função apotropaica). A peregrinação é um dever de todo fiel. O interessante é a formulação desse dever como “dever de Deus”, como se vê, pelo menos, na tradução de Bubenheim e Elyas (Khoury: Deus impôs aos homens o dever da peregrinação para casa). Em várias brochuras muçulmanas, destinadas, por exemplo, à educação, indica-se: não há apenas direitos e deveres dos homens, mas também direitos de Deus. 2.8.3. De Abraão a Maomé A continuação na Sura 2 reflete a confrontação de Maomé com os judeus (e cristãos), que escolheram sua religião e a preferiram ao islamismo, como Tabari explica. Diante desse desvio da millat Ibrahim, vale reconquistar o contato com a religião abraâmica original, que foi eleita como a religião por Deus. (130) E quem rejeitaria o credo de Abraão ( millat Ibrahim) a não ser o insensato? Já o escolhemos (Abraão) neste mundo e no outro contar-se-á ele entre os virtuosos. (131) E quando o seu Senhor lhe disse: “Submete-te a Mim!” [tradução de Bubenheim e Elyas: “Torna-te muçulmano”] Ele respondeu: “Eu me submeti ( aslamtu) ao Senhor do Universo!” (132) Abraão exortou seus filhos a fazer o mesmo, (ele) e Jacó: “Ó filhos meus, Deus vos escolheu esta religião para vós; não morrais sem serdes submissos (a Deus) ( muslimuna)!”. (133) Estáveis, acaso, presentes, quando a morte se apresentou a Jacó, que perguntou aos seus filhos: “A quem servireis após a minha morte?”. Responderam-lhe: “Serviremos a teu Deus
e o de teus pais: Abraão, Ismael e Isaac; o Deus Único, a Ele somos submissos ( muslimuna)”. (134) Aquela é uma nação que já passou; colherá o que mereceu e vós colhereis o que merecerdes, e não sereis responsabilizados pelo que eles costumavam fazer.
A tradução de Bubenheim e Elyas “Torna-te muçulmano!” é, do ponto de vista do texto corânico, uma redução inaceitável. No ano 624 o verbo aslama não podia ainda ser entendido como expressão fi xa no sentido de “associar-se à religião do Islã”, mas sim em seu signi ficado original “voltar (a face para Deus)” (ver supra 2.7.). Mas a vinculação desse conceito islâmico central, que se torna a designação da religião pura e simplesmente, a Abraão por quatro vezes em três versos não deixou de exercer seu efeito. Na análoga repetição da estrutura no plano humano mostra como a fé tem continuidade: Abraão exorta a obediência a seus descendentes, que reagem de modo correspondente: “a Ele somos submissos”. Fazer parte dessa umma é meritório. Nos versos seguintes, a religião abraâmica, agora claramente delineada, é confrontada expressamente com o judaísmo e o cristianismo (Sura 2,135-141):
(135) Eles dizem: “Tornai-vos judeus ou cristãos, que sereis guiados”. Responde-lhes: Qual! Seguimos o credo de Abraão ( millat Ibrahim), adepto da fé verdadeira (hanif ), que jamais se contou entre os idólatras (136). Dizei: “Cremos em Deus, no que nos tem sido revelado, no que foi revelado a Abraão, a Ismael, a Isaac, a Jacó e às tribos; no que foi concedido a Moisés e a Jesus e no que foi dado aos profetas por seu Senhor; não fazemos distinção alguma entre eles, e somos submissos a Ele”. (137) Se crerem no que vós credes, então eles serão guiados; se se recusarem, estarão em cisma. Deus ser-vos-á suficiente contra eles, e Ele é o Oniouvinte, o Onisciente. (138) Eis a característica de Deus! [Bubenheim e Elyas: coloração; também: caracterização, ou: batismo] — e quem tem melhor característica do que a de Deus! Somente a Ele adoramos! (139) Pergunta-lhes: Discutireis conosco sobre Deus. Apesar de ser o nosso e o vosso Senhor? Somos responsáveis por nossas ações assim como vós por vossas, e somos sinceros para com Ele. (140) Podeis acaso afirmar que Abraão, Ismael, Isaac, Jacó e as tribos eram judeus ou cristãos? — Dize: Acaso sabeis melhor do que
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Deus? Haverá alguém mais iníquo do que aquele que oculta um testemunho recebido de Deus? Sabei que Deus não está desatento a quanto fazeis. (141) Aquela é uma nação que já passou; colherá o que mereceu, vós colhereis o que merecerdes, e não sereis responsabilizados pelo que eles costumavam fazer.
A formulação do credo no v. 136 (cf. Sura 3,84; 4,63-165) reconhece a unidade de toda profecia e toda revelação dadas por Deus, ilustrada aqui exemplarmente numa série de Abraão até Maomé. Essas listas de profetas foram importantes para Maomé, que está sempre se referindo à autoridade dos homens escolhidos por Deus, que ele vê como herdeiros da Escritura e anunciadores da mensagem do Deus único: 3,84; 4,163, em forma mais breve já no período de Meca em 87,19; analogamente também em 6,84-86. Os profetas indistintamente anunciaram a religião de Abraão. Mas evidentemente o judaísmo e o cristianismo se desviaram dela, o que se mostra especialmente no fato de que não mantiveram puro o monoteísmo (ver Sura 9,30). Assim ocorreram o reconhecimento das revelações dessa religião e ao mesmo tempo o distanciamento de seus desenvolvimentos históricos concretos. 2.8.4. Qibla — a direção da oração A primeira comunidade voltava-se para Jerusalém ao orar, mais precisamente — como é de supor — por mais de dez anos. Se essa norma concebida como divina é alterada, isso precisa de uma motivação especial. A retirada da permissão, que vigorou por pouco tempo, de invocar as três deusas pré-islâmicas (Sura 53,19-20) repousava na explicação de que se tratava de uma in fluência satânica. O Alcorão a tematiza do seguinte modo: (142) Os néscios dentre os humanos perguntarão: “Que foi que os desviou da direção da oração, que (até hoje) mantiveram?”. Dizelhes: Só a Deus pertencem o levante e o poente. Ele encaminhará à senda reta a quem Lhe apraz. (143) E, deste modo, fizemos de vós uma comunidade do meio, para que sejais testemunhas dos (outros) homens e o Mensageiro o seja de vós. Nós estabelecemos a direção de oração que tu observas apenas para saber quem segue o Men-
sageiro e quem deserta. Foi um teste realmente difícil, salvo para os que Deus orientou. E Deus não permite que vossa fé se perca, porque é Compassivo e Misericordioso para a humanidade. (144) Vimos-te voltar o rosto para o céu; portanto, queremos fornecer-te uma direção de oração que te satisfaça. Volta teu rosto na direção dos lugares de oração protegidos (tradução de Paret: dos lugares de culto sagrados) ( al-masdschid al-haram)! E vós, onde quer que vos encontreis, voltai vosso rosto nessa direção. Aqueles que receberam a Escritura bem sabem que isto é a verdade de seu Senhor; e Deus não está desatento a quanto fazem. (145) Ainda que apresentes quaisquer sinais para aqueles que receberam a Escritura, jamais adotarão tua direção de oração; nem adotarás a deles; nem tampouco eles seguirão a direção de oração de cada um mutuamente. Se te rendesses aos seus desejos, apesar do conhecimento que tens recebido, contar-te-ias realmente entre os iníquos. (146) Aqueles a quem concedemos a Escritura, conhecem-no [= o Livro, o Alcorão] como conhecem a seus próprios filhos. Mas uma parte deles oculta a verdade, embora (a) saibam. (147) (Esta é a) Verdade emanada de teu Senhor. Não sejas um daqueles que dela duvidam! (148) Cada qual tem um objetivo para o qual se dirige. Então disputais pelas boas coisas! Onde quer que vos acheis, Deus vos fará comparecer, a todos, perante Ele, porque Deus é Onipotente. (149) Para onde quer que vás, orienta teu rosto para os lugares de oração protegidos, porque isto é a verdade do teu Senhor e Deus não está desatento a quanto fazeis. (150) Para onde quer que vás, orienta teu rosto para os lugares de oração protegidos. Onde quer que estejais, voltai vossos rostos na direção deles, para que ninguém, salvo os iníquos, tenha argumento contra vós. — Não temais! Temei a Mim, a fim de que Eu complete meu favor a vós, para que sejais guiados.
O movimento de afastar-se de Jerusalém e voltar-se para Meca reflete, por assim dizer, uma virada de 180 graus em termos geográficos e teológicos; ele documenta o rompimento com os judeus (e de outra maneira também com os cristãos). Ele é, em última análise, fundamentado pela soberania de Deus de, numa nova situação, também dar nova instrução. A Sura 2,106 é o fundamento da clássica concepção da teoria de que Deus, em dado momento, pode revogar asserções de revelações mais antigas (ver também 2,75.146; 16,101; 13,39):
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(106) Não ab-rogamos nenhum versículo, nem fazemos que seja esquecido, sem substituí-lo por outro melhor ou semelhante. Ignoras, por acaso, que Deus é Onipotente?
Isso não deveria ser interpretado como arbitrariedade ou como mudança da vontade divina. Deus não se contradiz por uma ordem oposta, pois Deus não pode mentir. Isso pode ser, antes, interpretado como revelação dinâmica, como instrução, que corresponde justamente ao que constitui a situação dos fiéis ou ao modo como eles devem se comportar numa determinada situação. Maomé enfrenta assim o escárnio a ser esperado e as censuras dos adversários, como também a incerteza de seu próprio povo, que se preocupa com as consequências dessa inconstância. Na tradição islâmica, Jerusalém tem grande importância como “a primeira das duas direções de oração, o segundo dos lugares de oração, o terceiro (depois) dos dois distritos sagrados” ( ula l-qiblatain — thani al-masdschidain — thalith al-haramain ). Todos os profetas se voltaram em oração na direção de Jerusalém, e, de acordo com a Sura 17,1, vê-se na expressão ali usada — “o mais longínquo local de oração” ( al-masdschid al-aqsa) — Jerusalém, onde até hoje se pode encontrar a Mesquita al-Aqsa, que, depois do local de oração em Meca, ocupa a segunda posição. Os distritos sagrados Meca, Medina e Jerusalém foram finalmente contados nessa sequência. — Os comentadores do Alcorão estão sempre salientando que Maomé inicialmente escolheu Jerusalém como direção da oração a fim de ganhar para o islamismo os judeus, que in fluenciavam a vida em Medina. Ao que tudo indica, o sucesso esperado não ocorreu. Com a Sura 2,142 ss., a Qibla Jerusalém é ab-rogada e substituída pela direção para Meca. Desde então, uma indicação dessa seção, por exemplo, o verso 144, adorna inúmeros nichos de oração (mihrab) nas mesquitas do mundo. A orientação pelo santuário em Meca foi já cedo vinculada a Abraão como o construtor da Caaba e denominada qiblat Ibrahim. Ele, que foi intimamente associado ao monte Moriá, o qual foi identi ficado já na Bíblia com o monte do templo em Jerusalém (Gn 22,2; 2Cr 3,1), ganha no Alcorão pela única narrativa corânica (de Abraão), que é nitidamente localizável, um novo posicionamento: uma vez que Abraão transforma o centro antiquíssimo da idolatria politeísta no centro da nova comunidade muçulmana, esse santuário assume o primeiro lugar, à frente de Jerusalém com sua história do Gólgota e do templo
de Moriá. O lugar da Akeda, que como lugar de oração de David marca externa e conteudisticamente o centro do templo de Salomão, torna-se na apropriação religiosa dos muçulmanos — como rocha no centro do Haram asch-scharif de Jerusalém — o lugar da subida de Maomé ao céu. Pois aqui, no umbigo do mundo, se completará a história do mundo e terá início o evento escatológico. Ao mesmo tempo, no entanto, Jerusalém, como o “terceiro dos distritos sagrados”, é posta depois dos dois santuários em Meca e Medina, pois a salvação agora não vem mais de Sião ou “dos judeus” (Jo 4,22). O atamento do filho como evento em Meca torna-se um evento constitutivo, a lenda de fundação da autocompreensão islâmica, que vê na execução dos ritos que presenti ficam esse evento o cumprimento da existência e da adoração divina numa só coisa. No tempo de Meca, Maomé e seus fiéis seguidores puderam juntar as duas direções de oração, ou seja, orar ao mesmo tempo voltados para a Caaba e, por assim dizer, na prolongação, para Jerusalém. Isso em Medina já não era possível geogra ficamente, pois as pessoas deviam se voltar para o norte ou para o sul. Assim, no signo de Abraão foi realizado o afastamento teológico de Abraão e, com isso, ao mesmo tempo o Islã foi apresentado independentemente do judaísmo e do cristianismo como a religião da revelação original. O complexo do haram atual mostra quanto a decisão teológica também foi influenciada pela topografia de Meca: se as pessoas, partindo das duas entradas “Portão de Abraão” e “Portão do Profeta”, situados diretamente em frente um do outro, se dirigem umas às outras, elas se encontram na Caaba. O pensado eixo pelos dois portões se encontra perpendicularmente à direção para Jerusalém. Essa é a única disposição arquitetônica possível que deixa Jerusalém totalmente fora de consideração — uma asserção teológica esculpida em pedra (H. Josua). Seu significado também pode ser notado no fato de que os muçulmanos, já na época pré-islâmica, eram chamados ahl al-qibla, “as pessoas da direção de oração (para a Caaba)”. O próprio Maomé deve ter marcado a qibla com um tronco de palmeira ou uma pedra; depois de sua morte, seu cajado, com o mesmo propósito, foi enfiado no muro da mesquita. Assim, a Caaba se encontra no centro do movimento infinito de círculos concêntricos daqueles que, cinco vezes ao dia em todo o mundo, se inclinam em direção a Meca e voltam seu olhar em oração para esse centro.
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2.9. A RGUMENTUM PAULINUM : A BRAÃO COMO ADEPTO DA FÉ VERDADEIRA ( HANIF) E AMIGO DE D EUS ( KHALIL). Abraão era um hanif . Essa expressão — em última análise não explicada — aparece pela primeira vez apenas no último período de Meca e se encontra em oito das doze passagens em conexão com Abraão. Por nove vezes, segue-se imediatamente o esclarecimento de que isso se refere a alguém que não adere ao politeísmo difundido no árabe antigo. Entre os eremitas conhecidos dessa época, eram chamados hanifs aqueles que estavam em busca religiosa e se afastavam, é verdade, do politeísmo, mas não haviam se voltado para o monoteísmo judaico ou cristão. A palavra pode ser derivada de “inclinar-se, curvar-se” e então “desviar-se”. Ela possivelmente também veio do sírio, em que, com o significado de “pagão”, era usada para aqueles que não professavam a religião cristã nem a judaica. Na Sura 2,135 (ver supra 2.8.3.) e na Sura 3,67, a condição de hanif é claramente distinguida dessas duas religiões. No período pré-islâmico, a palavra hanif , que é frequentemente traduzida como “ortodoxo” ou “seguidor da fé pura”, jamais é associada a Abraão. Sura 3,65-68: (65) Ó adeptos do Livro, por que discutis acerca de Abraão, se a Torá e o Evangelho só foram revelados depois dele? Não raciocinais? (66) Vá lá que discutais sobre o que conheceis. Por que discutis, então, sobre coisas das quais não tendes conhecimento algum? Deus sabe, e vós ignorais. (67) Abraão jamais foi judeu ou cristão, mas sim um seguidor da fé verdadeira ( hanif ), um que se submeteu ( muslim) a Deus e nunca se contou entre os idólatras ( muschrikun). (68) Os mais próximos de Abraão são aqueles que o seguiram, assim como este Profeta e os que creram (com ele). E Deus é Protetor dos fiéis.
Pela condição de hanif , Abraão é separado do judaísmo e do cristianismo, descrito como muslim original, e, com isso, a millat Ibrahim é atestada como o Islã restabelecido por Maomé, como venerável “religião em Deus” (verso 67; basta cf. a Sura 3,19.83.85.102; 5,3 e, supra , a seção 2.8., especialmente a Sura 3,95-97). Isso lembra, de certo modo, a referência, tal como já pode ser encontrada no apóstolo Paulo, que vê a fé (abraâmica) completada em Cristo, e isso justamente sem
levar em conta “a obediência à lei” (Gl 3; Rm 4; 2Cor 1,20). Cristo é o telos (fim, meta) da lei (Rm 10,4), a qual foi “acrescentada” e, por assim dizer, interveio (Gl 3,19). Isso poderia ser chamado o argumentum paulinum, que Maomé retoma a seu modo. No entanto, devemos ver que a analogia não tem longo alcance. Os documentos do assim chamado Antigo Testamento são submetidos a uma releitura cristã, mas Paulo, como também os outros autores neotestamentários estavam certos de que as próprias Escrituras não caem, numa crítica fundamental, sob o julgamento geral de falsidade ou corrupção, mas que, ao contrário, é preciso se ater a elas e lutar por uma interpretação. Por isso, nas extraordinárias ênfases neotestamentárias da recepção de Abraão se incluem, além da reivindicação do patriarca no sentido de protótipo e modelo da fé cristã, a consciência e a re flexão da ligação histórica e teológica com Israel (cf. Rm 9–11). O “Antigo Testamento” foi e seguiu sendo a Sagrada Escritura da Igreja em crescimento, enquanto a Bíblia, a despeito de todo reconhecimento histórico-re velacional, se tornou teologicamente supérflua para o Alcorão, justamente pela “islamização” de Abraão (ver supra 2.8.). Supôs-se que Maomé no período tardio de Meca identi ficou sua fé cada vez mais intensamente com a fé do hanif Abraão e, por isso, lhe conferiu o termo hanif , hani fi yy, antes de usar em Medina o conceito de “Islã” para isso, um conceito que tivera inicialmente um significado essencialmente diferente. Na Sura 4,125 eles se fundem (cf. também supra 2.7.): E quem teria melhor religião (din) do que quem se submete a Deus, é praticante do bem e segue o credo de Abraão ( millat Ibrahim), (como) seguidor da fé verdadeira ( hanif )? (O Próprio) Deus elegeu Abraão por fiel amigo ( khalil).
É nessa passagem que também se apoia o título de honra de Abraão, segundo o qual ele é o amigo de Deus, como é preponderantemente chamado na tradição. No islamismo esses títulos de honra se tornaram comuns para alguns profetas. Assim, Adão é chamado Sa fi y Allah, “o amigo puro de Allah”, Maomé é chamado Habib Allah, “amado de Deus”, mas sobretudo Khatam al-anbiya, “selo dos profetas”, e, por fim, Moisés é o Kalim Allah , “aquele com quem Deus falou”. O nome de honra de Abraão já é ouvido na Bíblia, mais precisamente em 2 Crônicas 20,7, Isaías 41,8 e Tiago 2,23. Khalil, a palavra
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árabe que representa amigo, é desde sempre o nome árabe da cidade de Hebron na Terra Santa, o lugar em que Abraão e Sara foram enterrados e até hoje são venerados.
2.10. N ENHUM MODELO: A INTERCESSÃO DE A BRAÃO A tradição mais tardia diz que Abraão é o “melhor de toda a criação”; nós o conhecemos como modelo para toda a humanidade (Sura 2,124, ver 2.8.1.). Numa passagem, contudo, a ação de Abraão não é modelar: ele intercedeu em favor de seu pai incrédulo. Na Sura 26,86 ficamos sabendo que Abraão pediu perdão por seu pai, com quem ele se encontrava em forte oposição por causa da idolatria: Perdoa meu pai, porque é um dos extraviados.
E na Sura 19,47 (sobre o contexto, ver supra 2.3.): Ele (Abraão) disse-lhe: “Que a paz esteja contigo! Implorarei, para ti, o perdão do meu Senhor, porque é muito cortês para comigo”.
Na Sura tardia 60,4 lemos que se trata da exceção do “bom exemplo”: Tivestes um excelente exemplo em Abraão e naqueles que o seguiram, quando disseram ao seu povo: “Em verdade, não somos responsáveis por vossos atos e por tudo quando adorais, em lugar de Deus. Renegamos-vos, e iniciar-se-ão inimizade e ódio duradouros entre nós e vós, a menos que creiais unicamente em Deus!” Todavia, as palavras de Abraão para o pai: — “Implorarei o perdão para ti, embora eu nada venha a obter de Deus em teu favor” — foram uma exceção. “Nosso Senhor, a Ti nos encomendamos e a Ti nos voltamos contritos, porque para Ti será o retorno.”
Abraão é mostrado aos crentes como modelo, com esta exceção: não devem, como Abraão, interceder pelos incrédulos; ao contrário, os inimigos de Deus deverão enfrentar inimizade e ódio. O exegeta Mudschahid diz expressamente: “Em tudo Abraão é exemplo, menos ao pedir perdão para seu pai”. Abraão é muito bondoso? Ele é, de fato, caracterizado dessa maneira na Sura 11,75:
Sabei que Abraão era tolerante, bondoso e contrito.
Por conseguinte, Abraão poderia ser desculpado por isso, pois ele provavelmente devia saber — conforme o Hadith — que “nenhuma alma deve carregar o favor de outra” (Sura 53,38; cf. 17,15; 35,18; 39,7; 6,164; 2,48), como se encontra no escrito de revelação de Abraão, nas “folhas de Abraão”. (A tradição estava convicta de que as Suras 53,3856 se encontravam escritas nas “folhas de Abraão e Moisés”.) A discussão é ainda mais drástica na Sura 9, que foi a penúltima a ser revelada. Vejamos a Sura 9,113-114: (113) É inadmissível que o Profeta e os fiéis implorem perdão para os idólatras, ainda que estes sejam seus parentes carnais, ao descobrirem que são companheiros do fogo. (114) Abraão implorava perdão para seu pai, somente por causa de uma promessa que lhe havia feito; mas, quando se certi ficou de que este era o inimigo de Deus, renegou-o. Sabei que Abraão era realmente bondoso e tolerante.
Ao fim de sua vida, numa situação de triunfo — Meca foi tomada em 630 pelos muçulmanos e o culto da Caaba foi “purificado” —, Maomé exprime a proibição de finitiva de intercessão para aqueles que morreram como idólatras. Os laços tribais da Arábia antiga são cortados; o que conta é a fé individual. A inimizade contra Deus é tão pesada que deve ser energicamente combatida (o assim chamado “verso da espada” se encontra na mesma Sura 9,5), e onde isso não é possível a inimizade continua para além da morte, não importa se são parentes, ou até mesmo o pai. Assim, as notícias corânicas sobre Abraão terminam num tom bastante sombrio.
3 A BRAÃO NA TRADIÇÃO PÓS-A LCORÃO Vamos ver — em linhas bastante gerais — como a tradição islâmica pós-corânica narrou a história de Abraão. Há inúmeras variações numa abundância de tradições sobre Abraão, sejam registros individuais, coletâneas ou obras narrativas inteiras dedicadas às biogra fias dos profetas. Nós nos atemos às célebres e bastante populares Qisas
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al-anbiya (Histórias dos profetas), que sob o nome Ara’Is al-madschalis (“Sermões edi ficantes, como noivas adornadas para as núpcias”) foram escritas pelo persa Ahmad b. Muhammad an-Naisaburi, chamado de ath-Tha’labi (morto em 1035). Faremos uma seleção das diversas variações que Tha’labi reúne como as estações importantes da vida de Abraão — e cuja grande parte foi transmitida no judaísmo. Vamos nos limitar a passar uma impressão geral de quais aspectos da vida de Abraão desempenham aí um papel de destaque e quais ênfases são colocadas em termos de conteúdo para fortalecer os conteúdos corânicos ou também para complementá-los. Veremos aqui, portanto, os episódios mais importantes — sem a pretensão de reproduzir o original de modo adequado do ponto de vista linguístico-retórico, mas na sequência tradicional. As passagens corânicas que já foram abordadas na seção 2 não são literalmente reproduzidas aqui, mas apenas com suas indicações.
3.1. O NASCIMENTO DE A BRAÃO E O CONHECIMENTO DE D EUS Abraão deve ter nascido na Mesopotâmia na época do rei incrédulo e tirano Nimrod (Namrud em árabe; cf. Gn 10,8-12). Nimrod era arrogante e exigia ser adorado por seu povo. Quando seus sábios explicaram que em um ano nasceria um menino que modificaria a religião dos habitantes da terra, ele procurou por todos os meios impedir novos nascimentos. Ele separou os homens de suas esposas, enviou homens para a guerra e até mesmo ordenou matar todos os meninos pequenos. Quando a mãe de Abraão engravidou, o pai, Azar, escondeu-a numa caverna e forneceu-lhe ocultamente tudo de que ela necessitava. Abraão nasceu numa caverna e cresceu milagrosamente, de sorte que depois de pouco tempo já parecia bem mais velho e pôde retornar sem precisar se preocupar com os infanticídios. Já na caverna Abraão tinha pensamentos sobre Deus e o mundo. A criação devia ter um Senhor. Assim, depois de algumas re flexões, ele chegou ao conhecimento: “Aquele que me criou, que cuidou de minha subsistência e me deu de comer e beber, é certamente meu Senhor. Além dele, não tenho nenhum outro Deus”. Depois disso vem a cena que é descrita na Sura 6,76-79 (ver 2.7.).
3.2. L UTA CONTRA A IDOLATRIA : A BRAÃO E NIMROD O pai Azar construía imagens de ídolos; ele era, por assim dizer, um comerciante de objetos sagrados. O jovem Abraão devia entrar no negócio e vender ídolos, mas ficou pouco entusiasmado com essa perspectiva. Por isso, ele costumava pegá-los e dizer: “Quem compra o que não prejudica nem beneficia?”. Isso naturalmente não atraía muitos compradores, de modo que a mercadoria ficava encalhada. Ele ridiculariza as figuras e as pessoas que se aferravam ao seu engano. Ele discutia com as pessoas e chamava seu pai para sua própria religião, como está relatado na Sura 6,80-83 e 19,42-48. O pai não seguiu o chamado. Em seguida, Abraão tornou pública sua religião e a pregou, tal como lemos na Sura 26,75-83. Esses eventos não puderam permanecer ocultos ao poderoso Nimrod, razão pela qual intimou Abraão. Ele o fez explicar que tipo de Deus é esse que deve ser adorado acima de todos. “Ele é meu Senhor, que dá a vida e a morte”, respondeu Abraão, a que o governante respondeu: “Eu dou a vida e a morte!”. A resposta de Abraão foi simples (Sura 2,258): “Deus traz o sol do Oriente; então traze-o do Ocidente!”. Em seguida o Alcorão diz que esse regente, que era incrédulo, ficou estupefato. Abraão deve ter vivenciado seu chamamento, que é vinculado à confrontação com Nimrod, aos 40 anos de idade — como todos os outros profetas. Assim relata al-Kisa’i em suas Histórias dos profetas . Apenas Jesus recebeu sua revelação divina já quando criança e depois aos 30 anos. Biblicamente, o número 40 simboliza sobretudo o tempo da espera e da preparação. Em termos do Alcorão, essa é a idade da plena maturidade e da autorre flexão (Sura 46,15). Assim Maomé também foi chamado aos 40 anos, como também al-Ghazali e Dschalal ad-Din Rumi devem ter experimentado a virada em suas vidas aos 40 anos de idade (H. Josua).
3.3. A BRAÃO NO FOGO Nimrod e o povo concordaram em queimar Abraão. Ele foi encarcerado, a melhor lenha foi empilhada de tal forma que o calor do fogo
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subiu a um nível imensurável. As aves caíram mortas do céu, e para poder lançar Abraão ao fogo os homens se serviram — seguindo o conselho do diabo — de uma catapulta, à qual o profeta foi preso. O céu se revoltou, todos os anjos queriam vir em socorro do homem de Deus. Abraão agradeceu, mas rejeitou todas as ofertas, pois confiava apenas em seu Senhor, o Deus do céu e da terra. Relata-se que Abraão foi salvo apenas por causa de sua palavra “Deus me basta, que excelente defensor!”. Quando Abraão estava no fogo, notou-se um segundo homem, que tomou a cabeça de Abraão em seu seio e lhe enxugou o suor. Este foi o “anjo das sombras” — como é relatado. Com a ordem de Deus, todos os fogos na terra se apagaram, pois todos eles se assustaram e cada um achou que essa ordem se referia a si. De fato, Deus até mesmo precisou tornar inofensivo o frio que se seguiu, pois, do contrário, Abraão teria sucumbido. Por isso se diz no Alcorão: “ó fogo, sê fresco e inofensivo para Abraão” (Sura 21,69). O rei Nimrod observou tudo isso, viu a onipotência de Deus e chamou Abraão para fora do fogo: “Abraão! Oferecerei um sacrifício a teu Deus, pois vi sua onipotência e força em tudo que fez”.
3.4. A BRAÃO EMIGRA PARA A TERRA DE SCHAM (SÍRIA /P ALESTINA ) Não poucos homens de seu povo seguiram Abraão e sua fé por causa da salvação milagrosa. Entre eles estavam Lot, Haran, Nahor, Betuel e alguns outros; também Sara se encontrava entre eles. Diz-se que Abraão fez a Hégira para seu Senhor. Passando por Haran e Egito, ele entrou na Terra Santa. Essa região é chamada Scham em árabe. Abraão casou-se com Sara e a fez passar por sua irmã no Egito, para salvar a própria vida. Em outros contextos, por exemplo, na coletânea do Hadith de Buchari, isso é narrado como uma das “três mentiras de Abraão”: o profeta Abraão nunca mentiu, a não ser em três ocasiões: duas vezes num assunto de Deus, a saber, na Sura 37,89, quando numa controvérsia sobre a idolatria a firmou “Estou doente”, e na Sura 21,63, quando ele — ironicamente — imputou a destruição dos ídolos ao
maior dentre eles. E então nessa situação, em que Abraão quis se proteger a si mesmo, pois sua mulher se incluía “entre as mais belas de todas as pessoas”.
Pela intercessão de Deus e pela oração de Abraão, Sara foi protegida da agressão do tirano egípcio. Este, por fim, até mesmo lhe enviou Hagar, uma escrava copta de belas feições. Uma vez que Sara permanecia sem filhos até sua velhice, ela deu a escrava para Abraão: “Talvez Deus envie para ela um filho teu”. Hagar engravidou e gerou Ismael para Abraão. Um dia chegaram hóspedes que ao profeta anunciaram Isaac e Jacó como seus descendentes — como se narra no Alcorão na Sura 11,69-73 (v. 2.2.). Sara riu, pois ela estava com 90 anos, e Abraão com 120. Sara engravidou e gerou Isaac. Muitos diziam que Isaac e Ismael nasceram ao mesmo tempo.
3.5. H AGAR E ISMAEL EM M ECA Os meninos cresceram juntos e competiam em várias áreas. Sara ficou irada e enciumada e, por fim, ordenou a Abraão que expulsassem Ismael e sua mãe. Apoiado por uma revelação de Deus, o profeta levou sua concubina e o filho para Meca. No lugar do Hidschr — ha via ali na época um morro vermelho —, ele lhes preparou um acampamento. Hagar ficou encarregada de construir uma cabana. Quando Abraão estava prestes a deixá-los, ela perguntou: “Em quem confias?”. Ele não respondeu. Então ela perguntou: “Foi Deus que ordenou isso?”. Ele disse: “Sim”. Ela retrucou: “Então ele não nos abandonará”. Em seguida, Abraão retornou para Scham. Hagar ficou com Ismael e com um único odre de água na região desértica. Arbustos espinhentos, acácias, sem água. Em pouco tempo ambos esta vam passando sede. Hagar subiu numa colina próxima, para procurar água, uma pessoa ou algum tipo de consolo. Era o rochedo Safa, sobre o qual ela se pôs de pé. Sons de animais selvagens fizeram-na voltar correndo para ficar ao lado de Ismael. Uma voz vinda de outra direção a fez correr para o monte Marwa. Portanto, ela foi a primeira pessoa a fazer a corrida entre Safa e Marwa. (No Hadith se acrescenta que ela repetiu isso sete vezes.) Ali ela invocou o nome “ El” para
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pedir socorro a Deus. Então o anjo Gabriel apareceu para eles e os levou para o lugar do poço de Zamzam. Gabriel bateu com o pé no chão, do qual jorrou uma fonte. Então eles foram salvos e desfrutaram água fresca, que todos os hóspedes de Deus, como os peregrinos são chamados, desfrutam e avaliam como terapêutica. Gabriel anunciou a construção da casa de Deus pelo filho e seu pai. Assim os dois, Hagar e Ismael, permaneceram ali, e a tribo de Dschurhum da Arábia antiga se estabeleceu. Eles foram os primeiros habitantes de Meca, de cujo seio Ismael escolheu uma esposa, depois da morte de Hagar. Assim Ismael se tornou árabe e pai dos árabes.
3.6. A C AABA Abraão pediu permissão a Sara para visitar seu filho. Quando ele chegou, Hagar já havia morrido. A mulher de Ismael o recebeu e lhe lavou a cabeça e os cabelos. Para isso, ela trouxe a pedra Maqam (que até hoje marca o “lugar de Abraão”) e a colocou uma vez à direita dele, uma vez à esquerda, para que ele apoiasse o pé. Nisto, as pegadas do patriarca ficaram gravadas profunda e permanentemente na pedra. A Caaba era, inicialmente, um tesouro celeste, uma das pedras preciosas do Paraíso. Setenta mil anjos entravam e saíam diariamente. Quando Adão foi lançado fora do Paraíso, ele tocou justamente a terra onde hoje se encontra a Caaba. Justamente ali também foi baixada a Pedra Negra, cintilante como uma pérola branca (ela só se tornou preta mais tarde). Adão já devia realizar a peregrinação aqui, e, a seu pedido, Deus lhe prometeu que tomaria como amigo um profeta de sua descendência e lhe incumbiria tudo o que dizia respeito aos lugares de adoração e a seus ritos. Depois desses primórdios na época de Adão, a Caaba foi salva do dilúvio ao ser elevada ao quarto céu. Desde então o lugar esteve vazio, até os dias de Abraão. Deus lhe inspirou: “Constrói uma casa para mim na terra!”. E ele lhe enviou uma nuvem no tamanho da Caaba, que foi na frente dele, até conduzi-lo ao lugar da casa. Assim Abraão começou a construir a casa, e Ismael lhe passava as pedras para isso (cf. Sura 2,125-129; ver supra 2.8.2.1.). Embora Abraão fosse hebreu e Ismael árabe, eles podiam se fazer entender. Os dois construíram a Caaba com pedras de cinco montes: o Sinai (lugar da
revelação a Moisés), o Monte das Oliveiras (Jerusalém), o Líbano e o Dschudi; os fundamentos foram construídos com pedras do monte Hira, o lugar da primeira revelação a Maomé. Com a Pedra Negra como “sinal para os homens”, a construção foi concluída. A pedido dos dois, Deus lhes mostrou os ritos enviando Gabriel, que os instruiu em todos os detalhes. Por causa da importância dos ritos, citamos aqui o texto das Histórias dos profetas de Tha’labi: No dia de dar de beber [no 8º dia do mês Dhu ’l-Hiddscha], ele [Gabriel] os conduziu até Mina e orou lá com eles as orações do meio-dia, da tarde, do fim da tarde e da noite. Então ele pernoitou com eles ali até de manhã e orou com eles a oração matutina. Pouco depois, ele foi com eles de manhã para Arafat e permaneceu de pé com eles, até que o sol se inclinou. Nisto ele juntou a oração do meio-dia com a oração da tarde. Depois foi embora do Arafat com eles até o ponto de parada e parou no lugar onde hoje as pessoas ainda param. Depois do pôr do sol, ele os guiou até Muzdalifa e juntou a oração do fim da tarde com a oração da noite. Então passou a noite com eles até o início da aurora. Em seguida orou com eles a oração matutina, permaneceu de pé com eles no monte Quzah, e quando a aurora ganhou toda claridade ele correu com eles para Mina e mostrou-lhes como se jogam pedras nas colunas. Então ele lhes ordenou o abate (do animal de sacrifício), mostrou-lhes o lugar do abate em Mina e ordenou-lhes que cortassem os cabelos. Então correu com eles para a casa [ou: então circundou a casa juntamente com eles]. E Deus revelou ao nosso profeta Maomé que seguisse a religião de Abraão, um hanif , ele não era um idólatra (cf. Sura 3,67; 4,125).
A Casa de Deus permaneceu como Abraão a construiu até cinco anos antes do chamamento de Maomé para ser profeta. Nessa época os coraixitas demoliram a Caaba e a reconstruíram, porque ela lhes parecia muito baixa e certamente indigna. Por causa da sacralidade do local, essa não foi uma tarefa livre de problemas, mas finalmente foi possível — especialmente com o auxílio de uma arbitragem de Maomé — efetuar uma nova construção sobre a Pedra Negra. A Caaba se manteve nessa forma até o ano 64 depois da Hégira. Mas ainda seriam registradas várias iniquidades, a mais grave das quais foi
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certamente a de que a Pedra Negra, após seu sequestro pelos qarmatas, passou mais de vinte anos no exílio a leste da península árabe (provavelmente no período 930-951), até que pôde ser devolvida em bom estado ao seu velho lugar.
3.7. A ORDEM DE D EUS A A BRAÃO PARA MATAR SEU FILHO Os estudiosos não chegaram a um acordo sobre a qual dos dois filhos se referia a ordem de Deus. A exposição das diferentes opiniões exige muito espaço. Tha’labi reconhece que os textos falam em favor de Isaac como o “sacrificado”, mas ele próprio prefere Ismael. E isso por causa dos chifres do carneiro, que, é verdade, não são citados no Alcorão — e sim na tradição judaica —, mas deviam estar dependurados na Caaba ainda cinquenta anos após a morte de Maomé (até um incêndio da Caaba no ano 683/84). Então hoje, em geral, se supõe que tenha sido Ismael o filho sacrificado. Saindo da região de Scham, Abraão fez várias visitas a Hagar e Ismael. Normalmente ele era levado pelo cavalo Buraq (no qual Maomé também fez suas viagens noturna e celeste), partia de manhã, ao meio-dia estava em Meca e retornava ao fim da tarde, para passar a noite novamente com a família em Scham. Quando Ismael cresceu, Abraão esperou que o jovem revelasse ser um servo de Deus e filho obediente. Nessa época, Abraão recebeu em sonho aquela revelação que exigia algo terrível (Sura 37,102): “Ó filho meu, vejo em sonho que te oferecia em sacrifício”. Ismael está pronto: “Meu pai! Amarrame firme, para que eu não estremeça com violência, e prende tuas roupas no alto, para que meu sangue não respingue nelas e meu pagamento se torne menor, ou minha mãe o veja e fique triste. A fia a lâmina de tua faca e atravessa-a com rapidez por minha garganta, para que a morte me seja mais leve, pois ela é realmente pesada. E, depois, quando fores ter com minha mãe, cumprimente-a por mim! E se julgares apropriado entregar-lhe minha túnica, faze-o. Seria um consolo para ela”. Em seguida, Abraão lhe disse: “Que assim seja. O auxílio de Deus virá, se tu te conduzires conforme a ordem de Deus”. O pai dá um beijo no filho. Depois, chorando, amarra o jovem, que também chora, as lágrimas correm-lhe pelas bochechas. Sem
hesitar, ele põe a faca em sua garganta. Mas a faca não pode fazer nada — uma placa de cobre protege a garganta de Ismael! Então o filho diz: “Ó meu pai, joga-me na pedra, pois quando vês meu rosto tens compaixão de mim e és tomado pela bondade de coração; então isso te impede de executar a ordem de Deus”. Abraão faz como está escrito na Sura 37,103: “Quando ambos haviam se submetido e ele o tinha baixado sobre a testa”. Mais uma vez Abraão posiciona a faca, dessa vez sobre a nuca, mas ela escorrega e vira tão rápido como um raio, com a lâmina para cima. Então o chamado de Deus irrompe no meio do horror: “Abraão, já realizaste a visão!” (Sura 37,105). Deus diz a palavra redentora: “Vê, aqui está teu animal para o abate, um resgate para teu filho. Sacrifica-o no lugar dele”. Então Abraão ergue o olhar, e ali está Gabriel com um carneiro, de grandes olhos, branco e com chifres. O carneiro louva a Deus: “Deus é grande!”, e Abraão e seu filho também dizem: “Deus é grande!”. O verso na Sura é: “E o resgatamos com um grandioso animal de sacrifício” (Sura 37,107). Abraão solta seu filho, pega o carneiro, leva-o ao lugar do abate em Mina e o sacri fica. Este é o início do islamismo. Mas a cabeça do carneiro é dependurada com os chifres na calha da Caaba, onde ela seca. Depois se relata que Satã tenta várias vezes afastar os dois de sua obediência a Deus. Assumindo a forma de um homem, ele aparece primeiramente para a mãe do jovem e lhe explica que os dois não foram de modo algum juntar lenha como ela supõe. Quando percebe que Deus ordenou algo inconcebível, ela, no entanto, não se deixa persuadir: “Se isso lhe foi ordenado, ele fez bem em se curvar à ordem de seu Senhor e se submeter a Ele”. Depois desse primeiro fracasso, Satã corre ao encontro do jo vem, alcança-o e também lhe comunica numa troca de palavras que o pai não quer juntar lenha, mas sacri ficá-lo. “Por quê?”, pergunta Ismael. “Ele afirma que Deus lhe ordenou isso”. Então diz o jovem: “Que ele, então, faça o que Deus ordenou. Eu ouço e obedeço à ordem de Deus”. Por fim, Satã se acerca do pai: “Onde pretendes ir, mestre?”. Ele diz: “Pretendo descer nesse des filadeiro, para executar uma tarefa”. Satã retruca: “Por Deus! Eu vi que Satã apareceu para ti em sonho e lhe ordenou que sacrificasse teu filho”.
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Então Abraão o reconhece e diz: “Afasta-te de mim, amaldiçoado! Por Deus, vou cumprir a ordem de meu Senhor”. Então o diabo — maldito seja! — dá meia-volta, sem ter alcançado o que queria com Abraão e sua família. Eles se esquivaram dele com o auxílio e o apoio de Deus. Outra tradição relata que o diabo se mostrou a Abraão no lugar de reunião sagrado (isto é, Muzdalifa) e tentou ultrapassá-lo. Mas Abraão foi mais rápido. Quando ele chegou à primeira pilha de pedras, o diabo bloqueou-lhe o caminho. Então ele jogou sete pedras neles, de modo que ele desapareceu. Depois, junto à pilha de pedras intermediária, ele bloqueou o caminho. Mas, de novo, Abraão jogou sete pedras nele, até que ele foi embora. Então o diabo o alcançou na pilha de pedras maior de todas, e Abraão, de novo, lançou sete pedras neles até que ele desapareceu. Em seguida, Abraão partiu para realizar a ordem de Deus.
3.8. A MORTE DE S ARA E A BRAÃO Sara morreu com a idade de 127 anos em Hebron na terra de Canaã, num campo que Abraão tinha comprado. Ali foi enterrada. Hagar já tinha morrido antes disso, sendo enterrada junto à Caaba no Hidschr . Depois da morte de Sara, Abraão se casou com Qeturá, a filha de Joktan, e ainda tomou para si uma segunda mulher, uma árabe chamada Hadschun. Com Isaac e Ismael, Abraão teve ao todo treze filhos. Quando Abraão estava com duzentos anos, o anjo da morte veio até ele na forma de um velho. Como sempre foi generoso em sua hospitalidade, Abraão o convidou para entrar. Por essa visita, Abraão ficou sabendo dos sofrimentos do velho e desejou morrer. Então o velho ficou de pé e arrebatou a alma de Abraão. Ele foi sepultado ao lado de Sara no campo de Hebron.
3.9. DISTINÇÕES DE A BRAÃO Num minucioso capítulo à parte são elogiadas as qualidades especiais de Abraão. Citemos uma seleção de uma série de 46 méritos:
Abraão é o amigo do misericordioso. Deus diz: “Deus escolheu Abraão como amigo” (Sura 4,125). Ele é o pai da hospitalidade. Ele só fazia as refeições matutina e noturna juntamente com um hóspede. Às vezes ele andava duas milhas ou mais para encontrar um hóspede. Sua hospitalidade continuará até o Dia da Ressurreição. Ele é aquele a quem foi dada orientação correta antes de atingir a maturidade. Ele é o capitão (imam) dos que confessam o Deus único. Ele recebeu uma imbatível capacidade para argumentar em favor do monoteísmo. Por isso, ele chamava os homens para a verdade com argumentos (racionais) desde sua juventude até a velhice (Sura 6,83). Ele foi o primeiro que Deus chamou hanif e muslim (Sura 3,67). Abraão foi o primeiro a ser circuncidado. Alguns transmitem a idade de 120 anos quando Abraão se circuncidou a si próprio com o machado. Foi o primeiro cujos cabelos embranqueceram. Foi o primeiro que realizou os ritos de peregrino, pois foi ouvido quando pediu: “Mostra-nos nossos ritos” (Sura 2,128). Ele foi o primeiro a oferecer o sacrifício animal junto à Caaba ao fim da festa da peregrinação. Ele é aquele que no dia da ressurreição está vestido com uma túnica branca, e um púlpito ( minbar ) é colocado para ele à direita do trono do Misericordioso. Ele foi o primeiro que aparou o bigode, cortou as unhas, raspou os pelos pubianos, arrancou os pelos das axilas, usou um palito de dentes, penteou os cabelos, enxaguou a boca, passou água pelo nariz e lavou com água as partes privadas do corpo depois de evacuar. Ele foi o primeiro a emigrar por causa de Deus. Deus tornou seu maqam (lugar) a direção de oração ( qibla) para os homens (Sura 2,125). Deus o instituiu como imã da humanidade (Sura 2,124; 60,4). Por isso Deus ordenou a Maomé, o melhor de todos os profetas, e à sua comunidade (umma), a melhor de todas as comunidades, seguir a religião de Abraão (Sura 16,123; 2,135). Deus o chamou de brando, penitente e sensível (Sura 11,75). Brando é aquele que controla sua ira. Sensível é aquele que suspira fundo, quando se fala de pecados. Penitente é aquele que busca refúgio com o coração em seu Senhor.
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4 UMA PERSPECTIVA :
ECUMENISMO ABRAÂMICO? A história das inter-relações entre cristãos, judeus e muçulmanos dei xou pegadas de desprezo e opressão, ódio e sofrimento ao longo dos séculos. Muitíssimas vezes são rastros de sangue, e com bastante frequência os cristãos foram forças motrizes nesse processo. Em face de enredamentos culposos na história e do início apenas tardio do processamento autocrítico de suas repercussões, é compreensível que muitas pessoas hoje tentem enfrentar os desa fios impostos pelo fundamentalismo religioso e a violência religiosamente legitimada enfatizando os pontos em comum das religiões e os elementos de seu parentesco. Não é apenas compreensível, mas também necessário que o diálogo com outros credos procure o elemento conector na percepção da comum responsabilidade por uma convivência pacífica e justa na sociedade. Isso vale tanto para aqui como para os países de origem de nossos interlocutores no diálogo. Nesse esforço, contudo, coisas contraditórias ou conflitantes não devem ser marginalizadas ou minimizadas. A concorrência das religiões em questões de verdade não pode ser eliminada com discussões; ela não é uma mancha super ficial, que possa ser removida, mas sim expressão de sua natureza vinculativa, que é constitutiva de cada uma. Por isso, as diferenças não podem ser superadas pela redução teológica — nem podem ser instrumentalizadas numa autoafirmação pomposa —, mas devem, sim, ser respeitadas. Por isso, o diálogo inter-religioso abre o campo de aprendizagem totalmente prático para o trato construtivo (também) com as diferenças. Abraão também pode servir para isso. Na busca de uma base comum de judaísmo, cristianismo e islamismo, nenhuma outra figura assume um lugar tão proeminente como Abraão. Para as três religiões monoteístas ele é o “pai da fé”, o paradigma da con fiança em Deus, Abraão faz que as pessoas narrem histórias como parte de uma grande história familiar. A origem de uma raiz comum deve fortalecer a comunidade; de fato, o patriarca é visto como uma fonte de paz na origem comum, que sempre foi e é protegida contra o totalitarismo e o extremismo. Para formar a paz, apenas seria preciso, portanto, des-cobrir o que está oculto. Fala-se do “espírito abraâmico”, até
mesmo de “uma espiritualidade de Abraão”, que respiram o espírito da solidariedade e se exprimem na “entrega a Deus”. A realidade das diferentes imagens de Abraão, que são expressão de compreensões fundamentais da fé, pode carregar os fardos de um “ecumenismo abraâmico” que reúna e concentre em si todos esses aspectos? A ideia de um ecumenismo abraâmico é relativamente nova. Ela está estreitamente relacionada à vida e à obra do orientalista e grande místico francês Louis Massignon. Louis Massignon nasceu em 1883 em Nogent-sur-Marne na proximidade de Paris, seu pai era artista e médico. Em maio de 1908, o talentoso jovem vivenciou no Tigre, no atual Iraque, uma virada em sua vida. Na viagem de volta de um empreendimento arqueológico, ele foi detido pela polícia turca, pois carregava fotografias bastante comprometedoras. Ele sabia que podia ser condenado à morte. Preso novamente depois de uma tentativa de fuga, ele pegou malária. Tudo parecia perdido. Então ele vivenciou o que mais tarde seria chamado de a “visita do estranho”, uma intensa experiência espiritual-mística, que lhe inspirou nova confiança, lhe deu novamente coragem e o fez retornar à fé (católico-romana). Ele foi salvo pela intervenção de amigos árabes, que o acolheram em casa e temiam por sua vida por causa da doença. Eles oraram por ele; ele ficou são. A experiência dessa dedicação dos amigos muçulmanos por ele, da hospitalidade, que ele vivenciou com eles, e a alegria da nova dádiva da vida — tudo isso se aglutinou na vida de Massignon formando um chão de raízes para a ideia de um ecumenismo abraâmico. A mediação que o islamismo exerceu para o francês em relação à sua descoberta da identidade pessoal como cristão católico tornou-se, mais tarde, uma constante básica do pensamento de Massignon, mais precisamente nas duas direções. No início, portanto, uma vivência totalmente pessoal, individual. Massignon escreveu mais tarde uma obra pioneira sobre o misticismo islâmico. Isso não causa admiração, pois ele procurou e também pessoalmente trilhou o caminho místico da unidade, do amor. Aí não se trata primordialmente de doutrina, mas do amor cristão mediador, vicário; trata-se da oração intercessora pelos muçulmanos. Massignon falava, nesse contexto, da vicariedade que os cristãos poderiam e de veriam assumir, para amar os muçulmanos “levando-os para casa”. Para ele, “Para casa” significa de volta aos braços de Deus.
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Louis Massignon se tornou um célebre e apaixonado islamita, sendo, ao mesmo tempo, um homem profundamente pio com boas ligações com a hierarquia católica. Sua relação de amizade com monsenhor Giovanni Battista Montini (1897-1978) teve consequências que marcaram época na história eclesial, quando este, como Paulo VI durante o Concílio Vaticano II, em junho de 1963, assumiu o papado na sucessão de João XXIII, de modo que o “ecumenismo abraâmico” pôde ganhar um peso próprio nos textos do Concílio. Surgiram asserções que até então são singulares na história da Igreja católica: O desígnio salví fico engloba também aqueles que reconhecem o criador, entre eles especialmente os muçulmanos, que professam seguir a fé de Abraão e conosco adoram o Deus único, o misericordioso, que julgará os homens no último dia.
Assim formula o Vaticano na constituição dogmática sobre a Igreja Lumen gentium. E na explicação sobre a relação com as religiões não cristãs Nostra aetate: Ela olha com “sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que, embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela própria [a Igreja] segue e propõe, todavia re fletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens”.
Essas declarações marcam uma virada na teologia e na Igreja católicas. Sem Massignon isso seria impensável. E com elas começa, a partir de meados da década de 1960, a rápida carreira da ideia de um ecumenismo abraâmico para além de limites de con fissão e religião, em que o judaísmo só é incluído mais tarde. Nesse meio-tempo, uma pluralidade de iniciativas, foros sobre Abraão, realizações de sociedades cristão-islâmicas e de esforços por um “triálogo” refletem a importância da metáfora de Abraão para o processo dialógico. Se neste livro observamos a reunião de complexos de tradições e convicções de crença, que se desenvolveram nas recepções judaica, cristã e islâmica de Abraão, não é, contudo, fácil descrever um ou o “espírito abraâmico”, nem conceber com mais precisão a “entrega a Deus” do que como ânimo para partir e, com con fiança em Deus, deixar para trás as coisas familiares para ousar algo novo. (E essa for-
mulação é — do ponto de vista do Islã — menos universalmente acessível do que era a intenção; ao contrário, ela tem uma coloração perceptivelmente cristã.) Olaf Schumann o expressa concisamente de modo tal que seria impossível encontrar formulação mais apropriada: “É difícil pretender buscar pontos em comum no nome Abraão que unam o judaísmo, o cristianismo e o islamismo caso não queiramos nos contentar com o símbolo de um mero monoteísmo, atrás do qual o olhar do crente que busca não encontra senão vazio”. — Ele continua dizendo que a pesquisa histórico-tradicional mostrou que “sob referência a Abraão, cada uma das três religiões surge com a pretensão de ser a única que guia à fé ‘verdadeira’. Diante da pergunta sobre o conteúdo específico do que é entendido por ‘fé’, as respostas foram, entretanto, fundamentalmente diferentes. Em que sentido Abraão é então o ‘pai da fé’?” (Schumann, 54). A referenciação das três grandes tradições religiosas a Abraão é, evidentemente, tão diversificada que a afirmação de um ponto comum fundamental é ou apenas um invólucro sem conteúdo ou, em nome de uma figura-símbolo comum, necessita de uma nova construção própria, para além do que está vigente em cada uma das comunidades de fé. Fica nítido que o conceito de um ecumenismo abraâmico deve sempre, de um modo ou de outro, proceder com reducionismo e eurocentrismo, isto é, ele será essencialmente marcado por uma interpretação bíblica crítico-histórica moderna e de orientação ainda existencialista. Pois aqui, de uma maneira ou de outra, um Abraão despido de todos os adornos aparentemente casuais ou incômodos é posto num lugar de verdade original, que, todavia, não é histórico nem também verificável como tal nas histórias de fé das comunidades religiosas vitais. Ao contrário, ele é abstrato na medida em que aquela “verdade original” é não só diferente de suas diversas manifestações, mas também é separada delas de tal modo que a diferença e a oposição concretas das tradições são compreendidas como meras formas de expressão de uma única e mesma transcendência divina. A concorrência factual das pretensões de verdade inerentes às religiões concretamente vividas por cristãos, judeus e muçulmanos é, mediante uma a firmada convergência de linhas enunciativas tão diferentes, não só relativizada, como também simplesmente negada, porque deve harmonizar o que não pode oferecer oposição. O objetivo é, portanto, uma harmonização no nível supraordenado, para assim supostamente fomentar o diálogo
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no nível das diferenças, que é visto como externo e temporário. Abraão pode representar aquilo que, de antemão, é considerado aceitável nos planos religioso, moral, ético e humano. Abraão é instrumentalizado. Com isso se aceita uma monopolização radical (porque inclui a transcendência) do Outro, pois se postula um islamismo comum que só então é interpretado diferentemente. Mal se pode negar que a con vergência prometida só pode ser atingida pela a firmação de um denominador comum — que residiria na transcendência (“ Deus semper maior ”, Deus é sempre maior!). E isso ao preço de esvaziar conteúdos essenciais de enunciados centrais tanto de um credo quanto do outro e neutralizá-los como irrelevâncias, por assim dizer, no caminho da diferenciação, até mesmo separação de forma e conteúdo, que é insustentável no plano antropológico-cognitivo como também no plano teológico. Aqui podemos lembrar apenas da constituição trinitária da fé cristã adiante da profetologia islâmica sob o signo do tauhid, a confissão do Deus único (Sura 112 como texto final). Que Deus se revele em Jesus Cristo e esteja presente no Espírito Santo criando vida e fé é um fato atestado no Novo Testamento de modo tão claro quanto é contestado no Alcorão. Neste não há mediação, nem mesmo na transcendência, que alguns gostam de buscar para isso. Naturalmente, em vista de nossas possibilidades de conhecimento, vale a compreensão da grandeza intangível de Deus, mas em nenhum lugar se exprime a incognoscibilidade por princípio de Deus, que faria atribuir um conteúdo central da fé cristã — a autoinclusão de Deus em Jesus Cristo — à interpretação humana, por assim dizer. A fé existencialmente persuasiva e, por isso, vinculativa exclui, como tal, a relativização de sua convicção como sendo uma construção mental humana. Por certo, a imagem do elefante que é apalpado pelo cego — e por essa razão só pode ser percebido sempre parcialmente, e jamais diretamente como um todo — é bastante popular justamente no diálogo inter-religioso, para ilustrar a suposição de um fundamento de todas as religiões ou de uma unidade da fé por trás das ou sobre as religiões concretas. Mas essa visão da unidade pressupõe um ponto de vista que — como ponto de vista daquele que vê — deveria ficar fora das religiões (e por isso simplesmente não está dado!). Além disso, nessa visão as outras religiões são integradas ao sistema próprio numa peculiar “mescla de tolerância e intolerância doutrinária” (P. Hacker), sendo interpretadas como verdades parciais e como caminhos para o mesmo absoluto. No entanto, as religiões formam perspectivas totais
para a realidade, que são certamente inconstantes, mas, como tais, não são conversíveis e por isso naturalmente vão (devem) entrar em concorrência umas com as outras. Portanto, o que se comporta como aberto e tolerante age, muito ao contrário, como uma espécie de “fria uniformização”, como se expressou Gebhard Löhr. Tudo isso corrobora a tese de que a tolerância inter-religiosa teria justamente de se mostrar no fato de não submeter a religião do outro à cama de Procusto de pontos em comum que só podem ser alcançados com redução e abstração, mas de aceitá-la e respeitá-la como modo de crença e de vida essencial. E isso no intuito de buscar e formar caminhos da exitosa convivência social que se constroem justamente sobre essa aceitação e esse respeito! Isso exclui escancarar velhos fossos e cimentar muros existentes. Não se pode tratar de autoafirmação; pede-se, antes, uma audição aberta, pede-se que o outro tenha permissão de falar, para perceber a autêntica compreensão que ele tem de si próprio, que, em grande medida, não é apenas um re flexo de meu modo de crença apenas numa forma diferente ou inusual. Não se trata de menos, mas de mais respeito. O respeito deve, com vistas à posicionalidade da interpretação religiosa da vida, ir além do que a ideia de um ecumenismo abraâmico até agora conseguiu exprimir. Com Abraão é possível exercitar isso, pois Abraão, é verdade, dificilmente se presta ao ecumenismo inter-religioso, mas ele inaugura um espaço de hospitalidade e abrigo, que é aberto de diferentes lados. Ele fornece espaço para o encontro humano em estima recíproca, para a conversa atenciosa, para a exploração amistosa no terreno próprio e no alheio, para o impulso engajado da percepção da responsabilidade conjunta na superação das tarefas que estão diante de nós. “O Rabi Abbahu disse: a tenda de nosso pai Abraão tinha acessos abertos de todos os lados” ( midrash Bereschit Rabba 48,9).
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