A passagem do mito aà filosofia Marly Netto Peres1 Todo texto é um pretexto e um objeto mágico do qual o olho do leitor pode fazer surgir um mundo ! filosofia" ao contrário do que se pensa" n#o trata tr ata obrigatoriamente de assuntos dif$ceis" complicados !final" foi ela que moldou o perfil ocidental de ser e entender o mundo ! lista de descobertas e in%en&'es práticas oriundas da (récia !ntiga é extensa )la %ai da concepo esférica da Terra no centro e as estrelas no ponto mais afastado" ao sistema de circulao do sangue no corpo e pre%is#o de eclipses
A passagem do mito à razão * ser humano sempre sentiu necessidade de entender o mundo e suas mani manife fest sta& a&'e 'es s +e" +e" até até dete determ rmin inad ado o mome moment nto" o" o mito mito era era a expl explic ica& ao #o suficiente suficiente"" a e%oluo e%oluo natural natural passou a n#o mais responde responderr aos anseios anseios de entendimento do homem ,omo se deu essa passagem- Na (récia !ntiga" a explicao religiosa de mundo .por n/s chamada de mito0 declina quando os primeiros sábios p'em em discuss#o a ordem humana e a traduzem em f/rmulas acess$%eis intelig2ncia dos homens Mas por que e como isso aconteceMito é o conjunto de explica&'es reunidas em narrati%as que buscam dar um sentido realidade 3oje parece fácil" mas há cerca de 45 séculos" entender o que está por trás dos fen6menos meteorol/gicos" por exemplo" n#o era nada /b%io * mito é sempre uma explicao simb/lica em todos os po%os * mito grego tem uma especificidade7 possui alegorias inteligentes e razoá%eis
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rofessora de filosofia filosofia e mitologia mitologia grega com p/s8graduao p/s8graduao em 9ilosofia 9ilosofia pela 9aculdade 9aculdade de P rofessora 9ilosofia e :etras da ;ni%ersidade de +#o Paulo e especializao pela ;ni%ersidade Paul
A função da religião >e acordo com o fil/sofo ingl2s ?ertrand @ussel" no caso das outras ci%iliza&'es ancestrais" Aa funo da religi#o n#o conduziu ao exerc$cio da a%entura intelectualB e por isso s/ a grega fez escola Nelas impera%a uma grande preocupao com a %ida ap/s a morte )sse é um dos ingredientes da especificidade grega7 ela n#o é m$stica e isso parece ter fa%orecido o aparecimento do pensamento inquisiti%o" ou seja" a filosofia )la n#o tem dogma" textos sagrados nem de%oo A!s práticas religiosas dos gregos eram" em geral" ligadas aos costumes estabelecidos nas %árias cidades8estadosB" continua o fil/sofo ! religi#o grega é" na %erdade" pol$tica Csso equi%ale a dizer que o que mantinha as pessoas unidas eram seus interesses comuns" com um arcabou&o de alegorias que simboliza%a determinados %alores Csso é completamente diferente de uma religi#o na qual o que une as pessoas é uma cren&a compartilhada e n#o os costumes estabelecidos" principalmente se essa cren&a ti%er a pretens#o de ser estatuto de %erdade
Nova interpretação ;m significati%o nDmero de elementos já está presente no mito e no esp$rito do homem pré8filos/fico ! religi#o grega foi uma preparao para o pensamento racional que incorporou muitos deles Eá existia no discurso m$tico a relao de pares opostos a se misturar e gerar no%as formas de %ida" como o céu quente e brilhante" a terra seca e o mar Dmido etc * que muda é a abordagem e a forma que o discurso assume ,omo o pensamento racional resume8se desmistificao" ele s/ deseja mostrar a tranquilizadora banalidade dos fen6menos ;m dos aspectos que fazem a mitologia grega ser especial é que seus deuses s#o antropom/rficos e mo%idos por paix'es N#o s#o nem monstruosos" nem %agos esp$ritos !té porque no pensamento grego" o mundo é que cria os deuses e n#o o contrário )ssa é a raz#o pela qual suas hist/rias t2m papel garantido até hoje no imaginário ocidental e s#o nossa base cultural
À imagem e semelhança do humano * pensamento racional é espelho da atitude de um po%o que fez a tra%essia de doze séculos de transio entre a %ida com a figura central do monarca e uma sociedade que precisa%a cuidar de si mesma ,om o desaparecimento dessa entidade considerada di%ina" os homens tomaram consci2ncia de um presente separado do passado e diferente dele * homem sabe que esse tempo n#o %oltará )ntende também que está sozinho e que terá de encontrar as pr/prias solu&'es e sa$das ! filosofia nascente é uma primeira forma de sabedoria humana ! interpretao astrol/gica do mundo e a resoluo de problemas passam a ser colocadas em no%os termos ,omo o rei já n#o centraliza todos os poderes" a fragmentao das fun&'es na cidade gera problemas de equil$brio N#o existe hoje a figura que denominamos social e que encarna todas as %irtudes !s ati%idades humanas que se opunham e eram integradas pela figura do soberano perderam essa unidade que as representa +erá preciso encontrar outra e descobrir o que permanece" apesar de todas as mudan&as .o princ$pio regulador0 ,omo é poss$%el aparecer algo t#o no%o e t#o transformador- Fual é o moti%o do corte- ! resposta é simples7 n#o hou%e um corte abrupto
Política +e a emerg2ncia da filosofia ocorre seis séculos antes de nossa era" o processo que permitiu essa eclos#o é muito mais antigo e culmina no momento em que os gregos assumem que o *limpo n#o %ai resol%er seus problemas" pois a %ida pol$tica é assunto humano Plat#o" por exemplo" em seus A>iálogosB" recorre muitas %ezes a mitos que ele mesmo cria +intoma de sua época" a preocupao de Plat#o na A@epDblicaB é discutir qual o melhor regime a ser instaurado na polis @epDblica é a express#o latina que corresponde politeia" do mundo grego Plat#o nos dirá que n#o adianta discutir o regime sem antes in%estigar a natureza humana para saber qual é o mais adequado 9ica claro ent#o que a heran&a mitol/gica n#o foi desperdi&ada" pois os deuses representam
justamente a natureza humana !ntropom/rficos" s#o mo%idos pelas mesmas paix'es que nos animam" como rai%a" ciDme" amor" amizade" curiosidade e do&ura
Sistema de valores >urante esse processo de transio e de crise" hou%e uma discuss#o do sistema de %alores" com decorrentes reformas no dom$nio do direito" da pol$tica" da ética e dos costumes Muitos conceitos se manti%eram até hoje7 equil$brio" medida" excesso" recusa da tirania" ordem" igualdade e reciprocidade Tal%ez alguém se pergunte como e por que emergem %alores rele%antes em um agrupamento humano espec$fico +erá que algum deus brincalh#o decidiu que assim seria e pri%ilegiaria esse po%o- Parece impro%á%el * que os registros hist/ricos nos mostram é que a %ida se faz pouco a pouco" nos detalhes 9oi no rastro da recusa racional de que os deuses pudessem determinar os destinos humanos que os gregos promo%eram um momento hist/rico que deixou frutos )ssa heran&a incorpora o passado do mito" presente num edif$cio espiritual no qual as cren&as simbolizam %alores e explicam a relao e a insero do ser humano na natureza e" ao mesmo tempo" na esfera comum" em que é cidad#o +omos todos iguais por natureza e a diferen&a se fará na polis * homem é um animal pol$tico por natureza G no dom$nio do humano que a %erdadeira natureza humana floresce
Sócrates e a herança trágica * que chamamos de passagem do mito raz#o é a construo progressi%a da pessoa +e os gregos discutiram seus %alores" se fizeram essa reflex#o de caráter laico ao deixar os deuses na soleira" n#o significa que os desprezaram G importante obser%ar que o discurso que procura dar sentido ao mundo em que %i%emos n#o surge no pensamento racional" mas" sim" no mito ,omo também é nele em que a tr$ade harmonia8justeza8medida" t#o cara ao pensamento ocidental" figura pela primeira %ez !o humano cabe o ef2mero" ele é mortal e a isso de%e se conformar" pois" do contrário" incorrerá em faltas
gra%es7 o descomedimento . hybris0" a falta de moderao e a temperan&a .sophrosyne 0 ;m exemplo interessante da transio do mito raz#o tem +/crates como protagonista )xatamente como numa tragédia" o protagonista ocupa o lugar de destaque Fuanto ao pano de fundo" é o uni%erso do mito ! trama é a luta muda que se instaura entre a polis conser%adora e a filosofia nascente" simbolizada e le%ada até o fim pela morte de +/crates" que tem consci2ncia do momento trágico que %i%e" recusa o ostracismo e escolhe morrer em nome do que defende * trágico n#o tem soluo e é destinado ao hero$smo" pois a posteridade cabe ao guerreiro que se destaca +/crates é coerente Tal postura confirma a dupla acusao de corromper a ju%entude e desrespeitar os deuses que lhe é feita por !tenas em certa medida ainda respaldada no mito e em seus deuses ao recusar a no%a discuss#o laica * debate entre luz e sombra" entre o que sempre foi e o que será" +/crates reafirma" desnuda com seu gesto extremo de decidir tomar a cicuta >ali em diante" Heus" o poderoso" e com ele todo o *limpo" passam a ter outro papel ! filosofia os deixa para sempre na soleira da porta
Do mito ao loógos: a descoberta da filosofia 54=5I=J51J por :uciene 9élix J * renomado historiador Eean8Pierre ata7 século iferente de ?urnet" ,ornford diz que a f$sica j6nia n#o corresponde ao que denominamos ci2ncia" pois n#o é produto da obser%ao e tampouco faz experimentos" mas na %erdade OTransp'e" numa forma laicizada e em um plano de pensamento mais abstrato" o sistema de representao que a religi#o elaborouO G sobre essa transposio do mito ao l/gos que %ersaremos ,onsiderando que o pensamento %erdadeiro n#o poderia ter outra origem sen#o ele pr/prio"
J
>ispon$%el no endere&o http7==cartaforensecombr=conteudo=colunas=do8mito8ao8 logos8a8descoberta8da8filosofia=QR4L
externamente distinta ao mesmo tipo de pergunta7 como pode emergir do caos Sápeiron um mundo ordenado)nquanto o mundo dos aedos .poetas0 é ordenado atra%és da partilha dos dom$nios das instUncias da natureza entre os deuses .Heus" o 9ogo 3ades" o !r Poseidon" a Vgua e (aia" a Terra0" o cosmos dos j6nios organiza8 se Osegundo uma di%is#o das pro%$ncias" uma partilha das esta&'es entre for&as opostas que se equilibram reciprocamenteO N#o nomeiam di%indades
)ros" esclarece esta unidade primordial emergem" por segregao" pares de opostos7 quente e frio seco e Dmido" que %#o diferenciar no espa&o quatro pro%$ncias7 o céu de fogo" o ar frio" a terra seca" o mar Dmido 4 *s opostos unem8se e interferem" cada um triunfando por sua %ez sobre os outros" segundo um ciclo indefinidamente reno%ado" no nascimento e na morte de todo ser %i%o .plantas" animais e homens0" na sucess#o das esta&'es do ano" enfim" de todo fen6meno e tal sorte que" atra%és da sua demonstrao" se tem por %ezes o sentido de que os fil/sofos se contentam em repetir" em uma linguagem diferente" o que já dizia o mitoO @esta agora" n#o mais buscarmos na filosofia o que há de mais antigo" mas de destacar o que há de %erdadeiramente no%o7 Oaquilo que fez precisamente com que a filosofia deixe de ser mito para se tornar filosofiaO 9az surgir um pensamento atrelado a uma no%a gramática" com amplitude" limites e condi&'es di%ersas +e o conhecimento das coisas" na mitologia" é poeticamente inspirado pelas musas" na filosofia ele é pro%ocado pela racionalizao" ou seja" toma a forma de um problema a ser resol%ido * conhecimento de saberes que o mito explicita está dado na filosofia" de%e ser buscado ! cosmologia .ordenamento do l/gos" portanto l/gico0 dos primeiros fil/sofos re%ela que suas no&'es fundamentais .segregao a partir da unidade
primordial" luta e uni#o incessante dos opostos" mudan&a c$clica e eterna0 emergiram de um pensamento m$tico" cosmog6nico7 O*s fil/sofos n#o precisaram in%entar um sistema de explicao do mundo7 acharam8no já prontoO * portentoso abismo entre o ,éu .*uran/s0 e a Terra .(aia0" amainado pelo mito foi aberto pelos pré8socráticos >a agonia" nos consolam melhor os deuses W a%entura" nos inquieta mais a filosofia