W. K. C. Guthrie: Os Sof ofiistas. stas. São Paulo: Paulus, 2007 Trad. João Rezende Costa (livro originalmente publicado em inglês em 1991)
O CONTRATO SOCIAL1
Diferem as opiniões até que ponto a teoria do contrato social, tal como se entendeu nos sécs. XVII e XVIII d.C., foi antecipada neste período do pensamento grego, e as diferenças nascem em larga medida dos sentidos diferentes que os estudiosos deram à frase. Veremos primeiro a documen tação (brevemente nos casos em que já se tocou), e em seguida poderemos ver, se for o caso, como as concepções gregas estavam próximas das concepções européias posteriores. Uma crença antiga sobre a lei atribuía-a em última instância aos deuses. O legislador ou criador humano da constituição (ctga existência não se negava) era apenas o canal pelo qual os mandamentos do céu se tornavam conhecidos e eficazes. No poema de Tirteu (séc. VII, fr. 3 Diehl), a constituição de Licurgo para Esparta foi ditada em detalhe por Apoio em Delfos. Mais tarde, tendeu-se a dizer que Licurgo fez a constituição, mas foi a Delfos para ter a segurança de que o deus a aprovava (Xen. Rep. Lac. 8. 5). Herodoto ( 1.65) encontra lado a lado duas versões, a tradicional que fala 1Mais comumente conhecido como a “teoria do contrato social", em larga medida por influência do Contrat social de Rousseau, embora também Hume tenha escrito sobre The original eontract. Mas tanto Rousseau como Hume usam termos mais gerais como ‘ compact* e “pact” indiferentemente, e como Peter Laslett frisa (Locke’» Two Treatises, 112). Locke raramente aplica a palavra “contract" a assuntos políticos absolutamente; é o “compact* ou “acordo* que cria uma sociedade. Ao falar doa gregos, pelo menos, o termo menos especifico e legal se deve provavelmente preferir. Não i preciso dizer que havia diferenças na situação histórica. Aqueles que estavam descobrindo sua identidade e determinando o lugar da monarquia depois das guerras de religião e da Reforma estavam em posição muito diversa da dos sofistas. Uma coisa que ambos têm em comum é a passagem de visão religiosa de lei a secular, da atividade de Deus à do homem. Kaerst frisou acertadamente ( Ztschr. f. Pol. 1909,606) que a teoria do contrato tem dois elementos que devem ser mantidos distintos, embora estejam combinados em algumas formulações modernas. Estes elementos são (a) a doutrina de um contrato social propriamente dito, isto é, um acordo de associação entre iguais (b) o pactum subiectionis, pelo qual o cidadão comum se liga na siyeição a uma autoridade ou soberania mais alta. Só o primeiro tem sua origem na especulação grega. (Para a história do conceito do mundo antigo em diante v. o artigo de Kaerts; M. D’Addio, L'idea dei contralto sociale dai Sofisti alla Rifbrma; J. W. Gough, The social contract).
O contrato social
He origem religiosa para as leis, e a racionalista— baseada na semelhança de leis espartanas e cretenses — que diz que Licurgo copiou a constituição de Creta. As leis cretenses por sua vez foram, como se disse, obra de Zeus (Platão, Leis, no iníc.). Mesmo Clêistenes, fazendo suas reformas democrá ticas no fim do séc. VI, recebeu os nomes de suas novas tribos de Pítia (Artist. Ath. Pol. 21-6), e, portanto, provavelmente buscou a ratificação do oráculo para todo o seu esquema.2 Pelo séc. V, uma natureza impessoal tinha substituído nas mentes de alguns homens os deuses como o poder universal que produziu a ordem inteira de que os homens são uma parte. Para outros, como Hípias, ambos podem existir confortavelmente lado a lado, e Eurípedes, quando fala em linguagem pré-socrática da “ordem perene da natureza imortal”,3e alhures em sua poesia, manifesta o desejo de vê-los unidos. Quando, pois, como vimos, ganhava terreno a idéia de que a lei é instituição meramente humana visando a ir ao encontro de necessidades determinadas, com nada de permanente ou sagrado em si, ela pôde ser contraposta ou à ordem divina ou à ordem natural ou a ambas. Dentro desta contraposição, costuma-se dizer que o ato de legislação resultou de um acordo ou contrato C syntheke) entre os membros da comunidade, que “puseramjuntos”, compuse ram, ou entraram em acordo sobre certos artigos.4 Os relatos de Protágoras não contêm a palavra “contrato”, mas, quando os deuses são afastados de sua parábola (como em vista de seu agnosticismo devem ser), descrevem-se os homens perecendo por lhes faltar a arte de viver juntos em cidades e aprendendo por dura experiência a agir justamente e respeitar os direitos dos outros, e fundando assim comunidades políticas. Trata-se de questão de "autodomínio e justiça” (Prot. 322e). Protágoras, disse Emest Barker, não era “nenhum crente na doutrina de contrato social”. Em parte se o deve à convicção errônea de Barker ter “concebido o Estado como ordenação de Deus, existindo jure * Veja mais em Guthrie, Gk*. and their Goda, 184-9. *athonotou physeos kosmon agero, fr. 910 N. Bumet (EGP, 10, n. 3) diz que agero é genitivo, que embora seja tautológico, poderia ser correto. Anaximandro B 2 tem aidion kai agero, que, sugerindo que a tautologia poderia ae reconduzir ao próprio Anaximandro, também mostra que a forma agero poderse-ia usar para o acusativo, como também se manifesta de exemplos em LSJ. Nauck altera-o arbitrariamente para ageron para decidir o assunto. 4O prefixo syn- em verbos compostos tem dois usos: (a) objetivo, como em syntithemi (at.), para pôr duas ou mais coisas juntas, construindo assim um todo composto; (6) subjetivo, para fazer alguma coisa em coqjunto ou em harmonia com outrem, como em tymphemi, que não significa dizer duas ou mais coisas juntas, mas dizer alguma coisa em uníssono com outra pessoa, isto é, concordar com ela. A voz média de tyntithemi era usada nas duas maneiras. Significava, primeiramente, *pôrjuntos para si mesmo’ , ou organizar, e também ouvir e entender (“pôr dois e dois juntos*); em segundo lugar, concordar com outros, e (com infinitivo) concordar em fazer algo. Quando o objeto eram leis, um tratado e semelhantes, é provável que ambos os sentidos estivessem presentes: os artigos da constituição são compostos ou postos juntos, e se concordam mutuamente (com a presença da força reflexiva da voz média).
Protágoras
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divino, antes do que como criação do homem, existindo ex contradu", e em
parte porque “um contrato que resulta numa unidade artificial mantida por leis artificiais logo se romperia ao se formar. Aquilo de que se precisa e é tudo, é... uma mente comum para perseguir um propósito comum de vida boa”. Isto é verdade, mas implicar-se-á na teoria do contrato esta artificialidade? Não estará certo Popper quando afirma que "a palavra ‘contrato’ sugere... talvez mais do que toda outra teoria, que a força das leis está na prontidão do indivíduo a aceitar e obedecer a elas”?5As virtudes morais que tornavam possível uma vida em comum (aidos, dike, sophrosyne) eram pré-condições necessárias para a fundação de uma polis, mas, uma vez que Protágoras não acreditava que as leis eram obras da natureza ou dos deuses, deve ter crido, como outros pensadores contemporâneos progressis tas, que foram formuladas como resultado de um consenso de opinião entre os cidadãos que desde então se consideravam por elas vinculados. Na “defesa de Protágoras”, empreendida por Sócrates no Teeteto (167c), encontramos uma teoria que só se refere às condições presentes, embora não seja discordante com uma crença num contrato original no passado. “Quaisquer atos que possam parecer justos e convenientes a determinado Estado, são-no para este Estado enquanto neles crê; mas quando em caso particular eles são onerosos para os cidadãos, o sábio os substitui por outros que parecem ser benéficos”. Este dito segue da doutrina de Protágoras do “homem como medida” (pp. 173ss abaixo), e, como diz Salomon, é um dito de fato e não normativo: aquilo sobre que uma cidade concorda, é justo para a cidade enquanto continuar a considerá-lo válido (nomitze — aceita-o como nomos). O contrato tornou justo e certo para os cidadãos observar as leis até que sejam alteradas, ainda que a cidade possa prosperar mais sob leis diferentes. De modo semelhante, Aristóteles, mais tarde, distinguindo entrejustiça natural e legal, equipara esta última com “justiça por acordo”.®As primeiras palavras de Antífon fr. 44 A (“Digo que justiça consiste em não transgredir as leis e usos do seu próprio Estado”) e a identificação de justo com legal por Sócrates em Xenofonte (A íem. 4.4.12, p. 106 acima) sugerem que esta concepção legal de justiça estava em voga entre os pensadores progressistas da época, e as várias conclusões tiradas dela estavam sob vívida discussão. Deixava 1 As citações são de Gr. Pol. Theory de Barker (publicado pela primeira vez em 19X8), 63, e Pol. Thought ofP . and A. (publicado pela primeira ve* em 1906), 73; e Popper, Open Soc. 115. A censura de Barker pode ser válida de Hobbes, mas não de Rousseau ou outros que falaram de contrato social. Também aqui se vê como é desorientador falar de “a teoria do contrato social” (p. 133, n. 14, abaixo). O que disse de Barker aplica-se igualmente a numerosos críticos que partiram da admissão de que Protágoras acreditava que as instituições políticas e as leis são dons de Deus ou da “natureza*, por exemplo Loenen. P. and Gk. Comm., 50s, 65ss; Mewaldt, Kulturkampf 11. EN 1134b32, nomikon kai syntheke. A passagem de Teeteto é tratada com amplidão nas pp. • 172ss, abaixo. S. Os sofistas
""130 p-s:
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áberta aquestão sejustiça assim definida era ou não “benéfica” ( sympheron). Em todo caso, podemos seguramente inserir Protágoras entre os que explicavam o surgimento de comunidades políticas em termos de contrato ou acordo. Hípias, para quem lei e natureza estavam em forte contraste (Platão, Prot. 337d), definiu leis explicitamente como “alianças feitas pelos cidadãos pelas quais eles promulgaram por escrito o que devia ou não fazer” (linguagem que lembra Ántífon, pp. 103s acima), e indicou a rapidez com que podem ser mudadas como motivo para não levá-las muito a sério (p. 113). Antífon, no mesmo contexto de oposição entre natureza e lei, também chama as leis de resultados de acordo, que para ele (diversamente de Protágoras) justifica ignorá-las em favor dos preceitos da natureza. Untersteiner percebeu a idéia do contrato social também nas palavras “nem infligir nem sofrer injúria”, que constituía o conteúdo do contrato segundo Gláucon naRepública.’’ Algo semelhante, como disse Dodds (Gorg. 266), está também implícito no Sísifo de Crítias, onde leis e suas sanções são instituídas pelos homens para controlar a selvageria do estado de natureza. De autores pouco mais tardios, vimos (pp. 75s acima) como o autor do discurso contra Aristógeiton combina, de maneira natural na época, mas impossível antes e até então, as concepções de lei como contrato humano e como dom da divina providência. Mas por alguma razão sempre se atri buíram as honras a Licófron, conhecido por Aristóteles como sofista e de quem se pensava ter sidodiscípulo de Górgias. E até se afirmou ter sido o fundador da teoria do contrato social em suai forma mais primitiva, embora, uma vez que provavelmente não escreveu antes do séc. IV, a documentação já examinada tome isso impossível.8Nossa autoridade é Aristóteles em sua Política (1280b 10). Discutindo a perene questão da relação centre lei e moral, ele afirma que a meta e alvo do Estado é promover a vida boa e, portanto, ele tem direito e dever de se interessar pela bondade moral de seus cidadãos. “De outraiforma”, continua
H ípi as, L i cófr on e out r os
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As únicas palavras que Aristóteles atribui aí a Licófron como descrição de lei são “uma garantia dos direitos recíprocos dos homens*,* e não o nome “contrato”, embora sem dúvida siga sua natureza contratual e sua definição se aproxime da mencionada por Gláucon na República como comumente mantida. A limitação da lei ao papel negativo de proteger os cidadãos uns contra os outros foi proclamada antes como um ideal por Hipódamo, o célebre planejador de cidades e teórico político que viveu em Atenas em meados do séc. V, reconstruiu o Pireu com o plano de uma grade e ocupouse com a nova cidade colonial de Thurii para Péricles. Em seu Estado ideal, admitiria apenas três ofensas passíveis de sanção penal, que se podem traduzir por insulto, injúria (a pessoa ou propriedade) e assassínio.10De mais a mais, foi o primeiro a propor um supremo tribunal de apelo contra julgamentos errôneos. As passagens são sobretudo interessantes enquanto mostram como foi vívida no mundo grego uma controvérsia que recebe tanta atenção de importantes autoridades sobre jurisprudência nos dias de hoje, ou seja, a controvérsia referente ao grau em que a moralidade deva ser urgida pela lei. Licófron e Hipódamo teriam concordado com J. S. Mill que o único propósito pelo qual a lei podia ser justamente imposta contra um membro da comunidade era prevenir danos a outros; seu próprio bem, físico ou moral, não era garantia suficiente. Ao ver de Aristóteles, isto ignora o real propósito da associação política, que era assegurar não só a vida, mas vida boa. Ele teria estado do lado de Lord Simons, que em 1962 declarou ser “o propósito supremo e fundamental da lei era a manter não só a segurança e a ordem, mas também o bem-estar moral do Estado”, e sua concepção geral se aproximaria da de Lord Devlin, segundo o qual “o que faz uma sociedade é uma comunidade de idéias, não só idéias políticas, mas também idéias acerca da maneira como seus membros devem se comportar e governar suas vidas”.“ No Crito de Platão, Sócrates expõe na cela de sua prisão a doutrina de um acordo entre ele mesmo e as leis de sua cidade como argumento contra a tentativa de escapar do julgamento que aquelas leis proferiram contra ele. Ele não diz nada sobre a origem da lei, mas não há nenhuma sugestão de que fosse divina. A argumentação é que, umaivez que seus pais foram casados sob as leis de Atenas, Sócrates deveu seu nascimento, sua educação * eggyetes allelois ton dikaion. A brevidade e nitidez dá definição de Licófron, antes que qualquer originalidade, pode ser o que levou Aristóteles a escolhê-la para citação. whybris blabe thanatos. Nossa autoridadeéde novo Aristóteles, Pol. 1267b37ss. Sobre Hipódamo v. as referências em Bignone, Studi, 43, e o relato breve mas lücido sobre ele em Barlter, Pol. Theory ofP . and A. 44-6. 11V. Devlin, Enforcement o fmorais, 86 e 88, e cf. p. 111, n. 133, acima. Do lado de Aristóteles está também o pseudo-Dem. 25 (In Aristog.), 16-17: as leis visam não só to dikaion, mas também to kalon kai to sympheron. São dupla meta, impedir a injustiça e pela punição dos transgressores “tornar os outros melhores”. Para a idéia de Demócrito v. voLII, 496 (fr. 245).
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efieéu-meio de vida àquelas leis. De mais a mais, elas lhe deram liberdade, se ele achasse qualquer coisa de objetável nelas, para deixar Atenas com toda sua propriedade e ir morar alhures. Uma vez que não escolhera deixála, deve agora considerar-se seu filho e seu servo. Era “justo” para ele aguardar suas decisões, e, assim como tinha arriscado sua vida na batalha sob seu comando, assim também devia entregá-la agora que a exigiam dele. Este era o acordo entre eles (50c, 52d), e era necessário para a própria existência do Estado. Se indivíduos privados desprezassem osjulgamentos da lei por seu próprio capricho, abalar-se-ia todo o fundamento da vida da cidade. Nas obras de Platão vimos também a concepção de lei como con trato exposto por testemunhas hostis a ela, Cálicles e os “eles” de Gláucon (pp. 99ss acima). Os que promulgaram as leis, diz Cálicles, são a maioria fraca; e também a justiça e o autocontrole e tudo o que milita contra uma vida de desregramento e licença são “acordos humanos contrários à natureza”. Contra elas Cálicles exalta o super-homem que estourará seus laços e viverá uma vida de tirano auto-indulgente. “Eles”, de outro la do — a massa da humanidade enquanto pintada por Gláucon — não entretém nenhuma destas idéias heróicas. Eles aceitam a existência do contrato como segundo bem melhor de preferência a ser capaz de fazer exatamente o que se quer, uma vez que para todos se comportarem assim é uma impossibilidade prática. O comportamento egoísta limita-se a escapar da lei quando se pode dela escapar sem medo de ser percebido. O próprio Platão é com certeza advogado do nomos, como o manifesta Crito, e em seus anos posteriores montou vigoroso ataque contra os que susten tavam que ele podia ser de alguma forma oposto a physis. Opõe-se, portanto, tanto ao ideal do super-homem que sendo lei para si mesmo segue a “justiça da natureza”, como à idéia mais comum de que as leis se devem aceitar como mal necessário, mas se devem transgredir sempre que se possa fazê-lo com segurança.12 Podemos dizer até que ponto a teoria foi na Grécia uma teoria “historicista”, afirmando ou implicando que no passado remoto as primei ras leis tomaram forma em algo semelhante a um contrato formal entre os membros de uma original comunidade política? Barker escreveu que a teoria do contrato social, “que não é apenas a de Gláucon, mas também a de escritores modernos como Hobbes, foi recebida por pensadores moder nos ponto por ponto. Em primeiro lugar, nunca houve qualquer ‘contrato’ real ou explícito: há e sempre haverá uma situação de coisas, que é uma “ Ver-se-á que não sigo a Popper quando ele vê “completa mudança de fronte” em Platão entre o Górgias e a República. V. Popper, O.S. 116.
Era historicista a teoria grega ?
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condição de contrato tácito e implícito”.13Popper, de outro lado, afirma que esta objeção não se pode aplicar à teoria de Licófron porque ela não tomou forma histórica. As teorias mencionadas no Górgias e na República devem ser identificadas com a de Licófron, mas esta forma lhe foi dada por Platão. Cross e Woozley, cujo critério para uma teoria do contrato social é que deve expressar uma obrigação moral de obedecer às leis conseqüente à promessa do indivíduo de fazê-lo, e que qualquer fato supostamente histórico sobre a origem da lei é irrelevante a ela, insistem que o que Gláucon propõe não é “a teoria do contrato social”, pela razão mesma que levou Barker a afirmar que era, ou seja, que “a ênfase recai inteiramente na proposição fatual, ou supostamente histórica, que pretende dar-se conta do que induziu os homens a emergir de um estado de natureza para a organização de uma comunidade social”.14 Talvez a primeira coisa a se notar é a aceitação difusa nesta época da teoria histórica da evolução da sociedade desde um estado em que cada um se valia por si mesmo, até que as fatais conseqüências de tal “vida desorganizada e bruta” obrigaram os homens a sujeitar seus instintos selvagens no interesse da defesa comum contra a natureza hostil. Já consideramos isto, e à primeira vista pareceria, se não compelir a uma teoria de um contrato social histórico, pelo menos fornecer uma situação muito condutiva a ele.15Como observamos, acompanhou teorias científicas pré-socráticas sobre a origem da vida física, constituindo uma reação contra relatos míticos mais antigos de degeneração humana. Protágoras e 13G. P. T. 160. Pode ser relevante mencionar a posição pessoal de Barker, que é uma reconciliação de physis e nomos, pelo menos no plano humano. O governo é para ele “atributo essencial da sociedade política, que por sua vez é essencial atributo da natureza humana’ . Para ser honesto com Barker, deve-se acrescentar que em sua introdução a Nat. Law de Gierke (1934), ele foi mais cauteloso em sua expressão. Ele disse aí (p. xlix): “Pensadores da lei natural foram capazes de falar de um a-histórico ‘estado de natureza’ e de um ato histórico de contrato pelo qual os homens saíram dele... de outro lado... pensadores da lei natural não tratavam realmente dos antecedentes históricos do Estado: estavam interessados por suas pressuposições lógicas; e ainda existe uma questão a propor quanto &visão de que o Estado, enquanto distinto da sociedade, é associação legal que repousa fundamentalmente na pressuposição do contrato''. 14Comm. on Rep. 71ss. Como definida aí, a teoria certamente excluiria o relato de Gláucon, mas não é desorientador falar de “a teoria do contrato social?" (grifei). O que os autores mesmos dizem de Hobbes Locke e Rousseau, todos tidos por eles como contratualistas, mostra que é antes uma questão desta ou daquela teoria do filósofo de um contrato social, cada uma sustentando-a de uma forma um tanto diferente; e dificilmente se pode negar que a de Gláucon seja uma teoria contratualista (359a synthesthai allelois... nomous tithesthai kai synthekas). Dizer que a única teoria do contrato social é teoria que não se apoia em afirmação histórica, e por isso está imune das objeçôes levantadas contra ela naquela forma, é certamente tomar uma questão como provada. Parece mais proveitoso começar com o fato de que há duas formas principais da teoria, como Popper o faz quando distingue a forma teórica, interessada somente pelo fim do Estado (que ele mesmo vê em Licófron), da “tradicional teoria historicista do contrato social” (O.S. 114). 15Para esta teoria veja pp. 60ss e Apêndice p. 78, acima. Também (Sófocles no coro d eAntígona (355) menciona a regulamentação legal da vida social como algo que o homem “desenvolveu para o seu próprio benefício, por seus próprios esforços”. (Assim Jebb explica edidaxato).
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Skftias ambos sustentaram esta teoria, e ambos acreditaram no contrato ff»yinl como um fato histórico. Ás idéias de Antífon e (tais como relatadas) de Hípias não fazem nenhuma referência explícita a origens históricas, nr«« também não realizam as condições de Cross-Woozley para “a teoria do contrato social” afirmando uma obrigação moral de obedecer à lei. No seu modo de ver, o fato de que as leis não são naturais, mas meramente acordos livra o cidadão do dever de lhes obedecer em todas as circunstâncias. No séc. IV, o autor do discurso contra Aristógeiton tirou a moral oposta: as leis seriam instituídas contra a natureza porque a natureza é “desordenada” e a lei introduz imparcialidade e justiça igual para todos. Como decisões de homens sábios guiados pelos deuses, foram aceitas por comum acordo e devem-se-lhes obediência. A documentação para Licófron é pouca, mas, ao chamar as leis de “uma garantia de direitos recíprocos”, deve ter tido em mente modo semelhante de considerar. Se aceitarmos como marca essencial de uma teoria do contrato social que não faça nenhuma afirmação histórica sobre a origem da lei, porém mantenha que todo membro de um Estado tem obrigação moral de obedecer às suas leis porque ele mesmo entrou em acordo e comprometeu-se, pelo menos implicitamente, a fazê-lo, então um seguidor indiscutível dela neste período é Sócrates.16Dificilmente se pode duvidar que o Crito seja fiel a suas convicções, de que Platão partilhou quando o escreveu. Ele sustentou que toda a sua vida, como a de todo outro cidadão, tinha sido a execução de um contrato ou acordo segundo o qual, em retorno por seus benefícios, ele estava sob a obrigação de considerar as leis como suas amas a lhes obedecer. A transgressão deste princípio partiria todo o edifício da sociedade. Existe outra possibilidade a ser considerada, a de que um filósofo pode propor sua teoria em forma histórica sem querer que seja entendida literalmente. Ele pode apenas querer apresentar uma “definição genética”, uma análise de um estado de coisas em seus elementos constitutivos, acreditando que a melhor forma de tornar clara sua estrutura é representála como sendo construída peça por peça dos elementos sem implicar que tal processo de construção tenha tomado alguma vez forma temporal.17Um geômetra pode explicar a estrutura de um cubo em termos da construção de MHume notou-o chamando o Crito de “a única passagem que encontrei na antiguidade em que a obrigação de obediência ao governo se adscreve a uma promessa’’. ‘‘Assim”, comenta ele, ‘ ele [Sócrates] constrói uma conseqüência Tory de obediência passiva sobre um fundamento Whig do contrato original*. (Oftheoriginal contract, adfin. W.C. p. 236). A atribuição a Sócrates é, sem dúvida, histórica. Como De Strycker frisou justamente ( Mélanges Grégoires, 208), sua atitude t confirmada não só pela maneira de sua morte, mas também pela defesa solitária da lei contra um demos furioso no caso dos generais depois de Arginusas ( Sócrates, pp. 59s). 17A natureza e o valor de definições genéticas são expostas lucidamente por Cassirer em P. ofE . 253ss.
Historicismo
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um quadrado desde quatro linhas retas e depois um cubo desde seis quadrados sem significar que linhas retas existiam antes no tempo de figuras planas, nem figuras antes de sólidos. Dos discípulos imediatos de Platão em diante, comentadores disputaram se ele quis que sua cosmogonia fosse entendida desta forma, ou se acreditou num processo literal de criação. A idéia de definição genética foi estendida da física para a teoria política por Hobbes. Em geral, “se alguém quer ‘saber’ de algo, deve ele mesmo constituí-lo; deve fazê-lo desenvolver de seus elementos indivi duais”. Ubigeneratio nulla... ibi nullaph.ilosoph.ia intelligitur.18 Todavia, lendo os escritos dos teóricos do contrato social, descobrimos que a distinção entre uso literal e instrutivo de exposição genética não é absolutamente preciso. Afirmando, de um lado, que a proposição histórica, de que antes do contrato os homens viveram num estado de natureza, é irrelevante para sua teoria, parecem todavia ansiosos de lhe darem todo fundamento histórico que podem. Assim o próprio Hobbes: “Talvez se possa pensar que nunca houve tal tempo ou condição de guerra como este; e penso que nunca se passou assim geralmente no mundo, mas há muitos lugares onde eles vivem assim agora”; e ele passa a dar exemplos. Rousseau no prefácio no Discurso sobre a origem da desigualdade chama o estado de natureza de um estado que “talvez nunca existiu, e provavelmente nunca vai existir; e todavia é necessário ter idéias verdadeiras dele, para formar umjuízo adequado do nosso estado presente”. Ele diz que fatos não atacam a questão, e que suas pesquisas “não se devem considerar como verdades históricas, mas apenas como meros raciocínios condicionais e hipotéticos, antes calculados para explicar a natureza de coisas do que apurar sua origem real”. Este parece um exemplo perfeito de definição genética, e no Contrato social achamos o seguinte: “Eu admito, por causa da argumenta ção, que foi alcançado um ponto na história da humanidade...” e “pelo contrato social entregamos a vida e a existência ao corpo político” (o grifo é meu). Todavia mais tarde, em A origem da desigualdade ele escreve: “Tal foi, ou pode ter sido, a origem da sociedade”, e, na página seguinte, depois de repetir que a causa real originadora das sociedades políticas é indiferen te a esta argumentação, ele passa a dar razões pelas quais a que ele expôs é “a mais natural” e a defendê-la contra outras. De modo semelhante a Locke, Cross e Woozley dizem (sem dar nenhuma referência) que “como Locke viu mais claramente do que Hobbes, a proposição de fato, mesmo que fosse verdadeira, não forneceria nenhum apoio à teoria”. Todavia os § § 99s do Segundo tratado mostra claramente que para Locke era fato histórico. Ele não só faz a afirmação inequívoca: “Isto, e somente isto, deu ou pôde dar “ Hobbes, De corpore, pt I, c. 1, § 8, como parafraseado e citado porCassirer, loc. cit.
m*
O contrato social
a todo governo legal no mundo”, mas também continua mencionan do e rebatendo a objeção de que nenhum exemplo histórico se pode citar do estabelecimento de um governo desta maneira. A recordação da história, frisa ele, só pode começar quando a sociedade civil já começou a existir há muito tempo para permitir o desenvolvimento do lazer literário.19 Dos teóricos gregos, parece mais provável que foi Protágoras que deu uma definição genética. Sua intenção não é fazer um relato histórico da origem da civilização, e sim responder à pergunta de Sócrates se a virtude política pode ser ensinada; e lhe é indiferente dar esta resposta na forma de argumento arrazoado ou de narrativa. Ademais, quando vem a narra tiva ela tem sabor de conto de fada20e muitos elementos míticos. Todavia ela assume tanto de teorias seriamente sustentadas da história, que, como seus sucessores do pós-renascimento, provavelmente manteve um pé nos dois campos.21 Quanto aos outros que consideramos, Hípias, Antífon e Licófron, nossa documentação, na medida de seu alcance, não dá nenhum indício de propor uma teoria histórica da origem da lei, o que também não se manifesta no discurso contra Aristógeiton ou no Cálicles de Platão.22A doutrina de Sócrates enfaticamente não é uma doutrina historicista. Somente Gláucon na Rep. 2 pretende dar relato histórico. Finalmente, ao perguntar se os gregos acreditavam na teoria do contrato social, estamos lhes propondo uma pergunta que eles mesmos não se propuseram. A pergunta que propuseram era se “justo” era a mesma coisa que “legal”. As respostas eram de dois tipos, normativas e fatuais. Ou a justiça retinha seu sentido de ideal ético, e este ideal era equiparado com observar as leis, ou se pretendia que, ao usarem os homens a palavra altamente sonora “justiça”, tudo o que queriam dizer por ela era observân cia das leis existentes, o que podia de fato ser uma conduta imprudente ou danosa. Em Protágoras, apresenta-se em primeira linha Protágoras: a justiça, que é elemento essencial da “excelência humana” em seu conjunto (325a), identifica-se com “excelência política”, o respeito pela lei que levantou o homem do estado de selvageria e sem a qual a sociedade pode sofrer colapso. No Teeteto, parece que ele adota a segunda interpretação, a fatual, como sua teoria do “homem como medida” exige: o que é justo é " Referências para este parágrafo: Hobbes, Leviathan, pt. I, c. 13 (ed. Walter, p. 85); Rousseau, Origin o f inequality, trad. Cole (Everyman), 169, 175s, 221s, (W.C. ed.), 254. Cross e Woozley, P.’s Rep. 72. *>O começo, en gar pote chronos (era tuna vez), ecoa segundo os poetas legendários Lino e Orfeu e foi usado de novo por Critias e Mósquion. (Referências em Kern, Orph. Fr. p. 303). u Tudo o que ele diz sobre o assunto no logos que segue o mythos é: “O Estado estabelece as leis, que são invenção dos bons legisladores de tempos antigos, e compele os cidadãos a governar e ser governados em conformidade com elas’ (326d). **Popper (O.S. 116) diz que Platão põe ai a teoria em forma historicista, mas não o acho. Em Górg. 483b usa-se o tempo presente do começo ao fim.
A questão em termos gregos
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somente o que o próprio Estado declara ser justo. O Estado pode ser persuadido de que errou e a emendar suas leis, pelo que o conteúdo da ação justa neste Estado será alterado. Mas ele ainda afirmaria que a observân cia daquelas leis defeituosas, até serem alteradas por processos constitu cionais adequados, era moralmente correta como alternativa ao caos que seguiria se todo cidadão se sentisse livre para desconsiderá-las. Antífon e Hípias de outro lado sustentavam que, uma vez que tudo o que se queria dizer comjust iça era conformidade ao nomos, ela não acarretava nenhuma obrigação moral e se poderia fazer melhor seguindo os preceitos contrários da physis. Tal crença podia, se bem que não precisasse, levar ao egoísmo brutal exemplificado por Cálicles. Sócrates concordava com Protágoras que era justo (no sentido de moralmente obrigatório) obedecer às leis ou então fazê-las mudar por persuasão pacífica (esta alternativa é mencionada no Crito), e que a omissão de fazê-io destruiria a sociedade. Mas dois outros pontos podem se notar. Primeiramente, existe uma alusão no Crito a algo que não ocorre alhures, ou seja, uma distinção entre as leis mesmas e sua administração. Na conversa imaginária de Sócrates com as leis de Atenas, estas dizem que, se ele se conformar com a decisão do tribunal e concordar em ser executado em vez de tentar escapar, “tu serás a vítima de uma injustiça feita a ti, não por nós, mas por teus compatriotas”. Se, por outro lado, ele fugir, ele estará se comportando desonestamente por transgredir seus acordos e contratos com as próprias leis. Em outras palavras, uma vez que se deu legalmente o veredicto, não existe alternativa legal à sua execução. Sócrates nada viu de errado nisto mesmo no caso de sua própria sentença de morte, mas parece que havia espaço para a proposta de Hipódamo de um tribunal de apelo. Em segundo lugar, ao dizer que “justo” era idêntico com “legal”, Sócrates inseria as leis não-escritas universais e divinas e levava em conta o julgamento na vida futura bem como nesta vida. Para as leis não-escritas temos a documentação de Xenofonte, e, no Crito, as leis continuam, imediatamente a partir do ponto já mencionado, a dizer que as leis no mundo futuro não o receberão com cortesia se elas sabem que ele tentou destruir seus irmãos nesta vida.23
“ Disputa-se se Sócratesacreditava numa vida futura (v. Sócrates, pp. 147ss abaixo). Para a idéia de julgamento seguindo o homem deste mundo até o próximo cf. Esqu. Suppl. 228-31.