Conhecemos análises sobre o nazismo. Lemos livros de história. Temos relatos de sobreviventes de campos de concen tração. Vemos filmes sobre episódios da Segunda Guerra Mundial. Mas não sabe mos como era o cotidiano nas cidades alemãs nessa época: a atmosfera que a sociedade respirava, o teor das conversas entre pessoas comuns, os tipos humanos, as esperanças e medos, os heroísmos anônimos, as pequenas covardias. O filólogo Victor Klemperer registrou tudo isso. Judeu alemão assimilado, con vertido ao protestantismo, sem militân cia pelítica, assistiu com perplexidade ao que lhe parecia inverossímil: a ascensão da barbárie no coração da Europa. Per deu a cidadania do país que amava, quando a doutrina racial tornou-se lei. Foi afastado da cátedra, das bibliotecas e do convívio normal com os demais. Teve a casa confiscada. Viu amigos e conheci dos - e até o próprio filho adotivo aderirem ao regime que o discriminava. Forçado a usar a estrela de Davi sobre a roupa, como forma de identificação, conheceu todas as humilhações. Escapou dos campos de concentração graças à mulher, Eva Klemperer, uma "ariana" para usarmos o termo da época - que se recusou a abandoná-lo, acompanhan do-o nas Judenhauser [casas de judeus] como fiadora da sua sobrevivência. Du rante a guerra, Victor foi enviado como trabalhador manual para as fábricas ca rentes de mão de obra. O desespero e a morte rondaram, du rante anos, a vida dos dois. A vingança foi escrever um diário. Victor acordava às 3:30h da manhã para registrar tudo, clandestinamente. Eva contrabandeava as observações para a casa de uma amiga
fiel. Elas descrevem, vistas de dentro, a ascensão do nazismo, a glória do regime, a adesão das massas, a onipresença de um poder totalitário, as perseguições, a guerra e, finalmente, a derrota. Mostram muitos aspectos desse processo, mas têm um fio condutor, o estudo da linguagem: "O nazismo se embrenhou na carne e no sangue das massas por meio de palavras, expressões ou frases, impostas pela repe tição, milhares de vezes, e aceitas mecani camente. [... ] Palavras podem ser como minúsculas doses de arsênico: são engoli das de maneira despercebida e aparen tam ser inofensivas; passado um tempo, o efeito do veneno se faz notar:' O nazismo se consolidou quando do minou a linguagem, eis a tese do livro. O filólogo mostra como as palavras apa recem e desaparecem, mudam de senti do e de ênfase, se encadeiam de diver sas formas, emitem mensagens diferentes ao longo do tempo. Vê, estarrecido, que até mesmo as vítimas usam a linguagem do Terceiro Reich. Percebe que o poder se exerce, em larga medida, por meio de mecanismos inconscientes: quem con trola as maneiras como nos expressa mos também controla as maneiras como pensamos. Depois da guerra, Victor usou os diá rios para escrever este livro com um obje tivo educacional, pois a linguagem nazis ta ainda predominava na Alemanha que tentava se afastar desse passado. Mas não é de um passado alemão que estamos falando, é de nós mesmos. César Benjamin
Imagem da capa: Cartaz de propaganda nazista exaltando a dedicação da Alemanha ao trabalho.
LTI A LINGUAGEM DO TERCEIRO REICH
Victor Klemperer
LTI A LINGUAGEM DO TERCEIRO REICH
T R A D U ÇÃO, A P R E S E N TA ÇÃO E N OT A S
Miriam Bettina Paulina Oelsner Laboratório de Estudos sobre a Intolerância Módulo Holocausto - Universidade de São Paulo
COnTRAPODTO
© Reclam Verlag Leipzig, 2002
Título original: LTI: Notizbuch eines Philologen Direitos adquiridos pela Contraponto Editora para a língua portuguesa. Vedada, nos termos da lei, a reprodução total ou parcial deste livro, por quaisquer meios, sem a autorização da Editora. Contraponto Editora Ltda. Caixa Postal 56066 -
CEP 22292-970
Rio de Janeiro, RJ - Brasil Telefax: (21) 2544-020612215-6148 Site: www.contrapontoeditora.com.br E-mail:
[email protected] 1• edição: agosto de 2009 T iragem: 3.000 exemplares Pesquisa de edições estrangeiras de LTI
Ivanilze Estácio Revisão de tradução
César Benjamin Revisão tipográfica
Tereza da Rocha Projeto gráfico
Regina Ferraz
CIP-BRASIL CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ K721
Klemperer, V ictor, 1881-1960 LTI : a linguagem do Terceiro Reich
I V ictor Klemperer ; tradu
ção, apresentação e notas Miriam Bettina Paulina Oelsner. - Rio de Janeiro : Contraponto, 2009. Tradução de: LTI: Notizbuch eines Philologen
ISBN 978-85-7866-016-1 1. Lingua alemã. 2. Nazismo. 3. Lingua alemã - Aspectos políti cos. 4. Lingua alemã - Séc. XX. 5. Lingua alemã - Semântica. 6. Pro paganda alemã.
1. Oelsner, Miriam Bettina Paulina. II. Título. CDD438.24
09-3252
CDU 811.11'243
Para minha mulher, Eva Klemperer Há vinte anos, querida Eva, em uma colettlnea de ensaios, eu te escrevia que seria impossível fazer-te uma dedicatória, no sentido convencional de uma oferenda, pois tu és coautora de meus livros, que resultam de uma comunhão intelectual. Isso permanece até hoje. Agora, porém, a situação difere de todos os meus trabalhos anteriores. Desta vez tenho muito menos o direito e muito mais a obrigação de te fazer uma dedicatória do que em outros tempos, quando o nosso interesse principal era a filologia. Sem ti este livro não estaria aqui, muito menos o seu autor. Na verdade, teriam sido necessárias muito mais páginas, abordando assuntos nossos, se eu quisesse esclarecer cada detalhe. Aceita, pois, em vez de uma dedicatória, uma reflexão do filólogo e do pedagogo na introdução destas linhas. Tu sabes em quem penso quando, dirigindo-me aos meus leitores, falo de heroísmo. Até mesmo um cego seria capaz de perceber a quem me refiro. Dresden, Natal de 1946 Victor Klemperer
A
linguagem é mais do que sangue Franz Rosenzweig
SUMÃRIO
Apresentação . . .. . . .
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Cronologia de Victor Klemperer . . . .. .
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Heroísmo (em vez de um prefácio) 1 . LTI
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2. Prelúdio
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3. Característica principal: pobreza...................................................
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4. Partenau .
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7. Aufziehen...........................................................................................................
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5. Fragmentos do diário do primeiro ano ...
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6. As três primeiras palavras nazistas .. . 8. Dez anos de fascismo .
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9. Fanático ..... .. .. . ..
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1 0. Criação espontânea .
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14. Kohlenklau .... . .
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1 5. Knif ... .. ......... .... ..
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1 1 . Limites mal definidos 1 3 . Nomes .
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1 2. Pontuação .
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16. Em um único dia de trabalho .. ... ........ .. .. . ........... .. ...... .. .. . .
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1 7. Sistema e organização
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19. Anúncios de família ..... . . . ... . . . . . .. . .. . . . .. ... . ... ... ....
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20. O que resta? ... ..
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2 1 . A raiz alemã .
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18. Nele eu acredito! . .. . . .
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22. Alegre Weltanschauung (por leitura casual)
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23. Quando duas pessoas fazem o mesmo 24. Café Europa 25. A estrela
26. A guerra judaica
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27. Os óculos judeus
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28. A linguagem do vencedor 29. Sion
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295
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311
30. A maldição do superlativo
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3 1 . Interromper o impulso ao movimento 32. Boxear
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341
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33. Gefolgschaft
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34. Uma única sílaba 35. Ducha escocesa
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36. A prova dos nove
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Posfácio: Wejen Ausdrücken
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389 421
APRESENTAÇÃO Miriam Bettina Paulina Oelsner
A língua conduz o meu sentimento, dirige a minha mente, de forma tão mais natural quanto mais inconscientemente eu me entregar a ela. O que acontece se a língua culta tiver sido cons tituída ou for portadora de elementos venenosos? Palavras po dem ser como minúsculas doses de arsênico: são engolidas de maneira despercebida e aparentam ser inofensivas; passado um tempo, o efeito do veneno se faz notar.
Victor Klemperer,
LTI
Depois da Segunda Guerra Mundial, relatos de vida nos cam pos de concentração e de extermínio delinearam um mosaico com cenas de violência, crueldade e extremo sofrimento, mos trando ao mundo o que o holocausto, ou shoá, * significou para cada uma das vítimas e continua significando para a hu manidade. Alguns já são bem conhecidos e comentados, como os testemunhos de Simon Wiesenthal, Elie Wiesel, Primo Levi, Imre Kértezs, Ruth Klüger e também a poesia de Paul Celan e parte da literatura de Bruno Bettelheim. No Brasil, memórias de sobreviventes têm sido publicadas por iniciativa dos pró prios autores e de suas famílias. O objetivo é não perder o re gistro dos fatos vividos e deixar para filhos, netos e outras ge rações uma mensagem positiva de vida, apesar do sofrimento. Eles estiveram lá e sobreviveram por uma "falha do sistema': Resolveram não deixar apenas nas mãos dos historiadores *
Termo adotado por Elie Wiesel. É uma palavra do Levítico, terceiro dos cinco livros de Moisés no Antigo Testamento. Significa "desfazer-se em fumaça", aqui em referência aos corpos carbonizados nos campos de concentração e de extermínio nazistas. 11
LT I - A L I N G U AG E M DO T E R C E I R O R E I C H
contar o que aconteceu. Com essas narrativas, cada sobrevi vente torna-se uma fonte histórica. As memórias de Victor Klemperer - os Diários e este LTI - são exceção, assim como as de Anne Frank, por serem tes temunhos sobre o nazismo escritos com uma visão de fora dos campos de concentração. Esse raro tipo de narrativa nos permite conhecer outras perspectivas, elementos novos, deta lhes e olhares próximos à realidade vivida pelos judeus no ambiente urbano. Os diários de uma jovem, de Anne Frank, foram descober. tos no imediato após-guerra e publicados por decisão do pai, o único sobrevivente da família. Relatam os dois anos em que Anne e a família permaneceram escondidos em Amsterdã, até serem denunciados em agosto de 1 944 e enviados para o cam po de concentração Bergen-Belsen. Anne morreu nesse cam po dois meses antes do fim da guerra. Seus Diários, bem como É isto um homem?, de Primo Levi, Extraído do vocabulário do monstro, de D. Sternberger, G. Storz e W. E. Süskind, e LTI, de Victor Klemperer, foram publicados em 1 947. Inauguraram a literatura que se seguiu à shoá, "literatura de teor testemu nhal': referente ao período nazista. Shoá designa não somente o extermínio de 6 milhões de judeus, mas também dos demais povos e "grupos diferentes" - homossexuais, ciganos, tes temunhas de Jeová, opositores políticos - perseguidos pela intolerância nazista. Também em 1 947 Thomas Mann publi cou Doutor Fausto, que trata, entre outros temas, da sedução da Alemanha pelo nazismo e da passividade dos alemães dian te do regime de Hitler. Esse romance, de certa forma, se soma à "literatura de teor testemunhal': LTI
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Lingua Tertii lmperii: a linguagem do Terceiro Reich
Originalmente, os textos que compõem este livro faziam par te dos Diários de Victor Klemperer para o período nazista, 1 933 - 1 945. O autor referia-se a eles como "minha vara de 12
A P R E S E N TAÇÃO
equilibrista": buscava estabilidade emocional na escrita, na qual encontrava refúgio contra o terror. À medida que o cer co aos judeus se estreitava, ele registrava tudo com mais em penho, às vezes de forma obsessiva. Escrever tornara-se uma necessidade imperiosa para a sobrevivência física e mental diante da agressão contra os judeus, dirigida principalmente por Hitler e Goebbels. Caso não tivesse usado esse recurso, provavelmente teria sucumbido ao desespero. Ele mesmo re lata como conviveu com vários casos de suicídios individuais e de casais para fugir dos carrascos da Gestapo.* No após-guerra, o casal Klemperer conseguiu reaver sua casa em Dõlzschen, nos arredores de Dresden, bem como os Diários que estavam escondidos na casa da amiga Annema rie Kõhler. O editor Wengler, também de Dresden, procurou Klemperer para publicá-los. Após algumas hesitações, ele de cidiu escrever LTI, em vez de publicar os Diários do período 1 933- 1 945, apesar de eles já estarem prontos. Se essa é a intenção da minha publicação, por que não repro duzo completo o Caderno de anotações do filólogo, resgatan do-o de meu diário mais particular e mais geral, escrito nos anos difíceis? Por que algumas coisas estão resumidas em um esboço? Por que a perspectiva daquele tempo se soma à pers pectiva de hoje, a primeira hora após-Hitler? Quero respon der a essa questão de maneira precisa. Além da razão cientí fica, há uma tese em jogo, pois também estou empenhado em atingir um objetivo educacional.
Klemperer mostra o desejo de transmitir a alunos e leito res a experiência vivida e de propor alterações no sistema edu cacional dos jovens que haviam sofrido a lavagem cerebral nazista. Trata-se de mais um exemplo da atitude judaica atá vica, em relação à história, na qual se insere a questão Zakhor *
Acrónimo de Geheime Staatspolizei, a polícia secreta nazista. 13
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- lembra-te!, em hebraico. Título de um dos livros do histo riador Yerushalmi, * significa registrar o passado, a todo cus to, para conhecimento das gerações futuras. "Lembra-te do dia do descanso! " - assim começa o quarto mandamento de Moisés. No mesmo parágrafo, Klemperer instiga os leitores a ten tar compreender o fenômeno mais brutal do século XX, o na zismo: Há muito trabalho a fazer nas mais diversas áreas, conside rando germanistas e latinistas, anglicistas e eslavistas, histo riadores e economistas, advogados e teólogos, engenheiros e cientistas. Todos terão de desvendar as especificidades dos di versos temas, por meio de ensaios ou de teses, antes que haja condições para que uma mente ousada e aberta apresente a Lingua Tertii lmperii em sua totalidade, abarcando desde sua absoluta pobreza de espírito até sua abundância exuberante.
Deve-se levar em conta que Klemperer tem dara noção de que este livro representa um dos marcos iniciais na tentativa de procurar entender não somente o que foi o nazismo, mas como ele se instalou: Não, o efeito mais forte não foi provocado por discursos iso lados, nem por artigos ou panfletos, cartazes ou bandeiras. O efeito não foi obtido por meio de nada que se tenha sido forçado a registrar com o pensamento ou a percepção cons cientes. O nazismo se embrenhou na carne e no sangue das massas por meio de palavras, expressões e frases que foram impostas pela repetição, milhares de vezes, e foram aceitas in consciente e mecanicamente. [... ] Se, por longo tempo, alguém emprega o termo "fanático" no lugar de "heroico" e "virtuoso", ele acaba acreditando que * Yosef Haym Yerushalmi, Zakhor. Rio de Janeiro: Imago, 1 992. Tradução de Lina G. Ferreira da Silva. 14
A P R E S E N TAÇÃO
um "fanático" é mesmo um herói virtuoso e que sem fana tismo não é possível ser herói. As palavras fanático e fanatis mo não foram criadas pelo Terceiro Reich, mas seu sentido foi adulterado; em um só dia elas eram empregadas mais do que em qualquer outra época.
Para escrever LTI, Klemperer desmonta os Diários, quebra a sequência de datas e organiza o livro por temas que refle tem vivências. Estrutura-o basicamente em duas partes: antes e depois de 19 de setembro de 1 94 1 , dia em que o uso da es trela amarela com a insígnia Jude passou a ser obrigatório para todos os judeus, como castigo pelos reveses sofridos pe los alemães na Rússia a partir de junho daquele ano. Até o ca pítulo 24, "Café Europa", descreve como a linguagem nazista fora estruturada e como se infiltrara na mente do povo ale mão. Do capítulo 25, ''A estrela': até o 35, "Ducha escocesa': descreve o comportamento e as estratégias de sobrevivência dos judeus, agora já discriminados como o grupo dos porta dores da estrela. "Esse foi o pior dia de todo o período nazista" - o dia em que deixou de ser um judeu anônimo para se tornar um ju deu identificado pelos inimigos. O uso obrigatório da estrela foi pior do que a perda da casa um ano antes; foi pior do que ter sido preterido pelo filho adotivo, que em 1 933 abraçou a ideologia nazista. A partir dessa obrigatoriedade, a situação ficou mais dura: quem era pego sem a estrela era enviado para um campo de concentração. ''Agora, com a introdução da es trela amarela, [ ... ] cada judeu carregava consigo seu próprio gueto como o caracol carrega sua casinha:' No capítulo 36, ''A prova dos nove': empreende a fuga de Dresden, onde ficara confinado durante os doze anos do regi me, e passa por outras localidades. Constata, então, que sua análise da linguagem do Terceiro Reich estava certa, mesmo tendo permanecido relativamente isolado durante tanto tem15
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po. Todos falam a mesma língua, manipulada, adulterada, po bre e vazia de conteúdo. Escreve com pesar sobre jornalistas de seu tempo de juventude. Como Fausto, eles tinham vendido a alma ao diabo para viver com tranquilidade durante o regime. Entre os traidores encontrei até um antigo conhecido da Pri meira Guerra Mundial, Paul Harms. [... ] No verão seguinte eu soube que falecera poucos dias antes da entrada dos rus sos em Zehlendorf. Senti quase um alívio. Ele fora salvo pelo gongo, subtraído da justiça dos homens, como diz a expres são religiosa.
"Será alemã ou não a raiz do nazismo?", eis outra questão que permeia o livro. Klemperer trava um colóquio consigo mesmo. O irracionalismo conduz à destruição da razão. É a combinação perfeita da racionalidade diabólica a serviço da máxima irracionalidade. No capítulo 2 1 , ''A raiz alemã", faz uma autocrítica contundente: Como era possível um contraste tão grande entre o momento atual da Alemanha e todas, realmente todas, as épocas an teriores? Em meus trabalhos, sempre realcei e tratei como verdadeira a existência dos traits éternels, como os franceses denominam os traços eternos do caráter de um povo. Será que isso era uma grande mentira? Ou tinham razão os adeptos de Hitler quando reivindicavam a herança do humanista Herder? Existiria alguma conexão entre o pensamento dos alemães da época de Goethe e o povo de Adolf Hitler?
Klemperer revela sua perplexidade e procura dissecar essa problemática destacando duas correntes contraditórias, o comportamento romântico e o espírito de organização. Pois o estudo da Bildung [formação] alemã permite perceber um continuum na história alemã, do qual o nazismo pode ter sido um desfecho. Depois, quando vi a maneira infame como os nazistas trans mitiam uma história da civilização completamente falsifica16
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da, fazendo com que o povo alemão se sentisse superior aos demais, "por vontade divina e de direito", como Herrenmen schen [super-homens] em detrimento dos demais povos, sen ti vergonha, quase desespero, por ter participado disso.
A tradução Esta tradução de LTI Lingua Tertii Imperii: anotações de um filólogo foi feita a partir da edição de 1 996 da editora Redam Verlag de Leipzig ( reedição de 1 975 ) . Denominada afetiva mente LTI, é uma refinada análise da manipulação da lingua gem pelo regime nazista e um estudo profundo da situação sociopolítica e cultural da época. Aborda o nazismo sob a óp tica da vida urbana e investiga detalhadamente uma série de vocábulos e conceitos cujos sentidos foram deturpados pela ideologia nazista, tendo em vista, principalmente, disseminar o antissemitismo no povo alemão. Por meio de um estudo minucioso e metódico, Klemperer demonstra como o sentido dos conceitos foi sendo abandona do, de modo a empobrecê-los de propósito: o significado das palavras foi desvirtuado; o preparo físico foi valorizado em detrimento da capacidade intelectual; a camada social culta e instruída foi desvalorizada, estimulando o desinteresse cultu ral; o significado da palavra filosofia foi esvaziado por causa do perigo que o exercício do livre-pensar poderia suscitar. Ele estuda também a repetição sistemática de mentiras condicionadas aos interesses do regime. Explica como, a par tir de um processo duplo de sedução e terror, os nazistas transformaram graves anomalias em normalidade, induzindo a sociedade a aceitar tudo como "natural". Tornou-se "natu ral" que todas as judias e todos os judeus fossem obrigados a acrescentar Sara ou Israel aos nomes, sob pena de serem enviados aos campos de extermínio. Essa obrigatoriedade os identificava compulsoriamente. Alguns alemães também tive-
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ram problemas com essa situação. No capítulo 1 3, "Nomes'', Klemperer descreve o empenho de um alemão não judeu, ve reador e professor universitário, com sobrenome Israel, que tentava retornar ao sobrenome original da família, Oesterhelt, para evitar o estigma judaico. Esse novo uso das palavras se inseria em um contexto de "normalidade" que se estendia ao comportamento das pes soas. Tornou-se "normal" aderir ao boicote às lojas e aos pro fissionais liberais judeus. "Normal" era votar na lista parla mentar única, imposta pelo governo, e também aprovar a política econômica de Hitler no plebiscito de novembro de 1 933. "Normal" era essa lista única ser vitoriosa até mesmo nos campos de concentração. Klemperer comenta a falta de credibilidade dessas eleições, pois somente o risco de vida for çaria alguém a votar em Hitler, sendo prisioneiro. A palavra Transport, por exemplo, aparece sempre entre aspas, denotando ironia e pavor. Muitas palavras corriqueiras acobertavam o significado de prisão, assassinatos coletivos, eliminação de doentes físicos e mentais. Nesse caso, o signifi cante não queria dizer "transporte'', mas sim "ser buscado na calada da noite e transportado para um campo de extermínio, como gado para o matadouro".* Outro exemplo é a palavra Heroismus [heroísmo ] , que dei xa de ter um sentido de grandeza e abnegação para represen tar os que se entregavam de corpo e alma à ideologia nazista, os que matavam mais, os que obtinham mais medalhas nas competições esportivas, entre outros. Heroísmo, diz Klempe rer, foi o que algumas poucas mulheres viveram, dedicando se incondicionalmente aos maridos, sem a encenação teatral e vazia do nazismo, que só valorizava a aparência. * Houve casos de não judeus que também foram buscados "na calada da noite" para integrar o Exército. 18
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Já Privilegiert [privilegiado ] , uma das poucas expressões criadas pelo nazismo, referia-se ao judeu assimilado, que até mesmo na educação dos filhos se mantinha pretensamente "ariano': Os privilegierten não precisavam usar a estrela ama rela com a insígnia Jude. Havia casos em que eram filhos de casamentos mistos e amiúde tinham de se alistar no Exército. Mas o status de "privilegiados" foi cancelado após o atentado contra Hitler em 20 de julho de 1 944. A partir dessa data, pas saram a ser assassinados como os demais judeus.* No capítulo 28, ''A linguagem do vencedor", Klemperer comprova como a nova linguagem, muito bem engendrada, induz a maior parte da população a empregá-la inadverti damente. Analisa expressões idiomáticas, bem como jargões dos moradores da Judenhaus onde ele mesmo e sua esposa, a pianista Eva Schlemmer, viveram de 1 940 em diante. Nessa casa moravam os mais variados tipos humanos, descritos a partir das respectivas expressões idiomáticas, comentadas no contexto das dificuldades e conflitos do convívio forçado. Klemperer mostra como a linguagem nazista era capaz de contaminar as pessoas, sendo usada até mesmo pelos próprios judeus. A linguagem militar, que sempre fora poderosa e au tônoma, não escapou dessa "epidemia" - termo usado por Klemperer para designar a adesão à "novilíngua", conforme a expressão de George Orwell no livro 1984. Há também um grande número de palavras com conota ção de movimento acelerado. A ideia é de que todos - a ser viço do partido - fossem pessoas extremamente ocupadas e sempre em movimento, empenhadas em sanear o sangue aria no pelo aniquilamento do sangue judeu, impuro, como apa rece no capítulo 3 1 , "Interromper o impulso ao movimento': * Ver Os soldados de Hitler, de Bryan Mark Rigg. Rio de Janeiro: Ima go, 2003. Tradução de Marcos Santarrita. Esse livro cita LTI como re ferência. 19
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Um símbolo marcante escolhido para incorporar a men sagem nazista foi a letra S, copiada das runas germânicas, sim bolizando a pureza dos ancestrais nórdicos, que deu origem à sigla SS da palavra Schutzstafel, esquadrão protetor, represen tada por dois raios paralelos que remetem à ideia de perigo, como nos fios de alta tensão. Os dois raios, símbolos das SS, eram tão fortes que o sentido original da palavra caiu no es quecimento, como se verifica no capítulo 1 1 , "Limites mal definidos': Nesse capítulo Klemperer mostra como o nazismo soube se aproveitar de um caractere, um sinal da escola ex pressionista, de vanguarda na época, e passá-lo para a polícia de elite, de maior eficácia assassina, que tinha o poder de um Estado dentro do Estado. Era a polícia dos campos de concen tração desde 1 934. As SS assumiram a responsabilidade pela "solução final", a eliminação dos judeus, decidida em uma reunião realizada em janeiro de 1 942 em Wannsee.
Victor Klemperer (1881-1960) Alemão de origem judaica, convertido ao luteranismo, Klem perer começou a registrar suas memórias em diários em 1 898, quando tinha dezesseis anos. Desenvolveu dessa forma o ta lento literário, tornando-se escritor, pesquisador da literatura francesa, crítico literário e um filólogo dedicado. Com a guer ra, foi obrigado a mudar de atividade. Sua vida foi toda re gistrada, num total de mais de 4 mil páginas. Peter Gay o con sidera o melhor escritor de diários em língua alemã. Quando o regime nazista ascendeu ao poder, Klemperer já escrevia o diário havia 36 anos. Esgotadas as possibilidades de se ater ao que sempre fize ra, embrenha-se em uma análise clandestina da linguagem do Terceiro Reich. Anota tudo que vivencia, já na condição de perseguido. Torna-se de tal forma dependente do hábito de escrever diários que só considerava completas as suas vivên20
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cias depois de devidamente registradas. É único no estudo da filologia nazista, desvendando, durante o próprio nazismo, questões cruciais para compreender a adesão do povo à nova ideologia e analisando textos de propaganda, um dos princi pais instrumentos de manipulação ideológica. Durante os estudos universitários em Munique, Genebra, Berlim, Roma e Paris, antes de o nazismo chegar ao poder, Klemperer se identificou com os textos de Montesquieu, Vol taire e Diderot, optando pelas letras latinas, com ênfase no Iluminismo francês. Passou dois anos pesquisando em Paris e em 1 9 1 4 defendeu tese de livre-docência sobre Montesquieu, na Universidade de Munique, sob orientação do próprio rei tor, Karl Vossler, que teve grande influência em sua formação. Vemos ecos dessa formação no capítulo 23, "Quando duas pessoas fazem o mesmo": a língua seria uma atividade cria dora perene, mas também expressão e conteúdo de uma cul tura histórica. A citação do dístico de Schiller, empregada amiúde por Klemperer em LTI, foi retirada da obra de Vossler, Linguística baseada no idealismo crítico, publicada em 1 905: Weil ein Vers dir gelingt in einer gebildeten Sprache, die für dich dichtet und denkt, glaubst Du schon Dichter zu sein [ Já que consegues versejar em uma língua culta, que pensa e poetiza por ti, supõe já seres um poeta] . A língua também conduz o meu sentimento, dirige a minha mente, de forma tão mais natural quanto mais eu me entre gar a ela inconscientemente. [.. .] O que acontece se a língua culta tiver sido constituída ou for portadora de elementos venenosos?
Em 1 920, já um conceituado crítico da literatura francesa, Klemperer obtém a cátedra de letras latinas na Universidade de Dresden. Em 1 923 publica Moderne franz0sische Prosa, o que lhe confere um verbete na Enciclopédia Brockhaus, edi ção de 1 925. Vem ladeado de dois outros verbetes: um para o 21
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irmão George, cirurgião e professor, e outro para o primo Otto, maestro. Entre 1 925 e 1 93 1 publica Literatura francesa de Napoleão até a atualidade, em cinco volumes. Suas outras publicações são do após-guerra: História da literatura france sa do século XVIII, v. 1, 1 954, v. II, 1 966. Publica LTI em 1 947 em Berlim, pela editora Autbauverlag. Até a reunificação ale mã haviam sido vendidos mais de 300 mil exemplares do li vro. Foram publicados postumamente Curriculum Vitae, em 1 989, e Os "Diários" de Victor Klemperer 1933-1945, em 1 995.* Os Diários dos períodos 1 9 1 9- 1 932 e 1 945- 1 959 ainda não fo ram traduzidos para o português. Klemperer ocupou a cátedra de letras latinas em Dresden até 1 5 de setembro de 1 935, quando perdeu o cargo por causa das leis raciais de Nuremberg, que pretendiam "preservar a pureza do sangue e da raça alemães". Em LTI menciona a falta de material para prosseguir os estudos, pois a partir de 1 938 os judeus foram proibidos de frequentar bibliotecas. Somente no após-guerra retomará a análise da literatura francesa do século XVIII. Estas Anotações de um filólogo só se tornaram possíveis porque Klemperer optou por não emigrar quando o regime nazista se instalou na Alemanha, divergindo de grande parte dos judeus e intelectuais perseguidos. A maioria emigrou de pois da Kristallnacht [ noite dos cristais] , em 9 de novembro de 1 938,** quando ficou claro que o governo procuraria eli minar os judeus. Klemperer admite que chegou a sentir inve ja de colegas que tiveram a coragem de emigrar para terras desconhecidas. Na verdade, as famílias judaicas não tinham * Edição brasileira, São Paulo: Companhia das Letras, 1 999. Tradução de Irene Aron. ,.,. Nessa noite foram quebradas as janelas das sinagogas e de lojas per tencentes a judeus, em toda a Alemanha. Por isso o nome "noite dos cristais". Muitos judeus foram presos e alguns desapareceram. 22
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opção. Mas algumas pessoas que viviam em "casamento mis to': como Klemperer, ousaram correr o risco de ficar. No ca pítulo 24, "Café Europa': referindo-se aos amigos emigrantes, ele diz: Nesse ínterim já devem ter chegado a Lima. A carta, enviada das Bermudas, me deixa com certo mau humor. Eu os invejo porque são livres, seu horiwnte é mais amplo que o meu, e invejo-os pela possibilidade de influenciar pessoas.
Klemperer esclarece também que um dos motivos para não abandonar a Alemanha foi o medo de não saber lecionar em língua estrangeira, pois, apesar de ser catedrático de letras latinas, tinha pouco domínio da língua inglesa e só se comu nicava bem em alemão. Mas, sobretudo, apesar de perceber a virulência do novo sistema político, ele não acreditava que o regime nazista pudesse optar pelo extermínio industrializado de seres humanos, muitos pela simples razão de terem origem judaica, outros por serem opositores. Como judeu assimilado - como eram chamados os judeus formados na cultura ale mã e praticantes de um judaísmo laico -, pensava ser aceito pela sociedade local. Além de convertido ao luteranismo, ca sara-se em 1 906 com a pianista alemã Eva Schlemmer ( 1 8821 95 1 ) , uma "ariana': para usar a linguagem nazista. O casa mento não só o protegeu de ser enviado a um campo de concentração, mas em especial possibilitou a preservação dos Diários, que sua mulher levava periodicamente à casa da dra. Kõhler, uma amiga que se prontificara a escondê-los. Klemperer era assimilado, segundo o conceito desenvol vido pelo historiador judeu alemão George Lachmann Moss, no que diz respeito à Bildung [ formação ] . Ser culto e ter boa formação eram características que se alinhavam com sua vi são de judaicidade. Jamais lhe ocorrera que a origem judaica fosse se tornar um empecilho para preservar o status de cida dão. Jamais lhe ocorrera que a Alemanha do século XX viesse 23
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a se tornar um país totalitário, com leis raciais promulgadas para exterminar pessoas. Imaginava que, após a experiência da Inquisição espanhola, não haveria mais perseguições re ligiosas ou direcionadas contra o sangue judeu na Europa. Essa é a razão de iniciar LTI com a frase: ''A linguagem é mais do que sangue'� do pensador judeu alemão Franz Rosenzweig ( 1 886- 1 929). Além disso, Klemperer achava que abandonar a Alemanha para se proteger do nazismo prejudicaria mais sua mulher, que, segundo Peter Gay, sofria de forte depressão nervosa. Ele dedica LTI ao heroísmo de Eva, símbolo de solidariedade ir restrita: ela nunca pensou em abandoná-lo; se o fizesse, ele se ria enviado para um campo de concentração. Segundo a Enciclopédia Brockhaus de 1 995, "LTI, de 1 947, consta como sua [de Klemperer] obra mais importante. Essas Anotações de um filólogo esclarecem as estruturas mentais fas cistas por meio de observação e análise da linguagem." Em 1 995 a obra de Victor Klemperer recebeu postuma mente o prêmio de literatura alemã Geschwister Scholl. * No discurso de homenagem, o escritor e crítico social Martin Walser declarou: Klemperer deve estar presente em toda parte e se tornar uma importante fonte de informação daquela época da história alemã. Não conheço outra comunicação que nos transmita de maneira mais clara a verdade sobre a ditadura nacional socialista do que a prosa de Victor Klemperer.
Segundo Steven E. Aschheim, * * Klemperer é o analista mais arguto da linguagem totalitária. Afirma que Hannah * Hans e Sophie Scholl, militantes antinazistas do grupo Die WeiBe Rose, foram assassinados pela polícia em 1 943. ** S. E. Aschheim, Klemperer: intimate chronicles in turbulent times. Bloomington: Indiana University Press; Cincinnati. Coedição com o Hebrew Union College, Jewish Institute of Religion, 200 1 . 24
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Arendt ( 1 906- 1 975) não o menciona em Origens do totalita rismo* porque não teve oportunidade de conhecer seu traba lho. Segundo Arendt, a introdução do horror absoluto facilita sua repetição, tornando-o banal. O horror passou para o in ventário da história da humanidade. O texto de Klemperer funda uma literatura de não ficção sobre um horror que a hu manidade nunca experimentara. Outro estudioso da linguagem, George Steiner, ** comenta: A linguagem [nazista] deixa de estimular o pensamento, ape nas o confunde. Em vez de carregar cada expressão com a maior energia e ausência de rodeios disponível, afrouxa e dis persa a intensidade do sentimento. A linguagem deixa de ser uma aventura (e uma linguagem viva é a maior aventura de que o cérebro humano é capaz). Em suma, a linguagem não é mais vivida; é apenas falada. [...] Ao republicar esse ensaio faço-o também porque acredito na validade de seu argumento. Quando o escrevi, não conhe cia o notável livro de Victor Klemperer, Anotações de um filó logo, publicado em Berlim Oriental em 1947. [... ] De modo muito mais detalhado do que eu, Klemperer, linguista pro fissional, traça a submissão do alemão ao jargão nazista e os antecedentes linguístico-históricos dessa submissão.
Essa reflexão de Steiner vem ao encontro da explicação de Klemperer sobre a pobreza proposital da linguagem nazista. Klemperer esclarece como a linguagem foi talhada para dirigir o pensamento do povo de acordo com a intenção do regime. A linguagem oral e a escrita se assemelham. A fala é em tom de declamação, fácil de decorar e oca de conteúdo. O governo * Edição brasileira, São Paulo: Companhia das Letras, 1 989. Tradução de Roberto Raposo. ** Capítulo "O milagre vazio" em Linguagem e silêncio: ensaio sobre a cri se da palavra. 1 0• ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1 988, p. 1 34. Tradução de Gilda Stuart e Felipe Rajabally. 25
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deixa claro: "Tu não és nada, teu povo é tudo:' Todos repetem o que for conveniente para o governo. Hoje, imersos em bombardeio de mensagens dos vários meios - eletrônicos, impressos, visuais, auditivos -, mais do que nunca é necessário analisar o discurso e suas mensagens subliminares. Esta tradução pretende ajudar a tornar conhecida a obra de Victor Klemperer, possibilitando novos estudos por inte ressados e especialistas de várias áreas - sociologia, histó ria, linguística, educação, política, propaganda e várias outras. Esta era a intenção do autor, um dos precursores na análise do discurso totalitário, que deixou este registro logo após a guerra: "Hoje sei que não conseguirei transformar minhas ob servações, reflexões e questões sobre a linguagem do Terceiro Reich, apenas esboçadas, em uma obra científica acabada:' Klemperer estabeleceu um pacto consigo mesmo: deixar seu testemunho para que as gerações seguintes se conscienti zassem do que foi a experiência nazista - impensável e irre presentável -, pelo mal absoluto que significou, e registrar uma análise objetiva de como o nazismo se instalou na Ale manha. Para que a shoá não se repita. A atenção com esse tema precisa ser redobrada, considerando que ainda existem regimes ditatoriais e sanguinários. Esta publicação será também uma contribuição para o res gate do papel histórico de Victor Klemperer, especialmente no que se refere às fontes de referência para os estudos da shoá.
Agradecimentos Quero agradecer a César Benjamin, da editora Contraponto, por confiar-me a importante tarefa da tradução e por sua pa ciência. O texto é extremamente erudito, marcado por forte hermetismo, e exigiu pesquisa refinada sobre vários temas da história da filosofia, do pensamento, da Europa em geral. 26
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Quero agradecer a George Bernard Sperber, cuja orienta ção permitiu que LTI se me tornasse familiar. Alfred Keller merece um agradecimento especial. Esta tra dução não teria sido possível sem sua prestimosa ajuda no es clarecimento de certas expressões. A Ivanilze Estácio, a Mazinha Rodrigues e ao dr. Renato Mezan pela colaboração atenciosa. Agradeço também, carinhosamente, o apoio irrestrito de Rubens, Daniel, Débora e de toda a familia.
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CRONOLOGIA DE VICTOR KLEMPERER
1881 Nasce em 9 de outubro em Landsberg, junto do rio Warthe. O pai, dr. Wilhelm Klemperer, era rabino. A mãe cha mava-se Henriette Klemperer, nascida Franke. 1884 A família se muda para Bromberg. 1890 A família se transfere para Berlim. O pai se torna o se gundo orador da Sinagoga Reformista de Berlim. 1893 Victor ingressa no Ginásio Francês de Berlim. 1896 Ingressa no Ginásio Friedrich-Werdersch. 1897 Faz estágio comercial na Lõwenstein & Hecht, empresa exportadora de miudezas e bijuterias, em Berlim, onde perma nece até 1 899. 1900-1902 Faz o curso secundário em Landsberg. É bem-su cedido no Abitur, o exame final. 1903 Converte-se ao luteranismo. Mesmo sendo filho de rabi no, é agnóstico. Considera que a conversão é importante para se tornar um alemão "normal': 1902-1905 Curso universitário: filosofia, filologia latina e ger mânica. Estuda em Munique, Genebra, Paris e Berlim, com uma curta permanência em Roma. 1905-1912 Estabelece-se como jornalista e escritor em Berlim. 1906 Casa-se com Eva Schlemmer, pianista alemã, não judia. Escreve diversos textos e narrativas. 1907-1912 Escreve uma monografia sobre Paul Heise, um es tudo sobre a obra de Adolph Wilbrandt e vários estudos sobre a história da literatura alemã. 29
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1912 Muda-se para Munique e retoma as atividades acadêmi cas. Morre o pai. 1913 Faz o doutoramento com Franz Muncker e Hermann Paul, escrevendo a tese Os antecessores de Friedrich Spielhagen. Estudos sobre Montesquieu para a livre-docência levam-no a uma segunda estada em Paris. 1914 Faz a livre-docência com Karl Vossler, reitor da Universi dade de Munique. Começa a Primeira Guerra Mundial. 1914-1915 É professor-visitante na Universidade de Nápoles. Publica Montesquieu, em dois volumes. 1915 Voluntário na Primeira Guerra Mundial, serve no front de novembro de 1 9 1 5 a março de 1 9 16. 1916-1918 Trabalha na seção de imprensa do governo militar na Lituânia, em Kovno e em Leipzig. 1918 Retorna a Leipzig em novembro. 1919 Torna-se professor na Universidade de Munique. 1920-1935 Torna-se professor titular na Escola Técnica Supe rior de Dresden. Publica Introdução ao francês medieval: do sé culo XIII ao século XVII. 1923 Publica Prosa francesa moderna:
1870-1920.
1924 Publica Literaturas românicas: do Renascimento à Revolu ção Francesa. 1925 É classificado pela Enciclopédia Brockhaus como profun do conhecedor da literatura francesa. 1925-1931 Publica Literatura francesa: de Napoleão à época con temporânea, em cinco volumes. A obra será reeditada em 1956 com o título História da literatura francesa nos séculos XIX e XX. 1926 Publica Especialidade românica. Estudos filosóficos. 30
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1928 Publica Literaturas românicas. Léxico da história da lite ratura. 1929 Publica História idealista da literatura. Estudos básicos e aplicados. 1933 Publica Pierre Corneille. Em 30 de janeiro, Paul voo Hin denburg, presidente da Alemanha, nomeia Hitler para o cargo de chanceler do Reich, incumbindo-o de formar um novo go verno. Na noite de 27 de fevereiro, um incêndio criminoso des trói o Reichstag, o parlamento alemão, em Berlim. O jovem co munista holandês Marinus van de Lubbe será condenado à morte pelo crime, na verdade praticado pelos nazistas. 1934 Em 30 de junho ocorre a Nacht der langen Messer [noi te das facas longas] , quando tropas das SS, comandadas por Himmler, assassinam o general Ernst Rõhm, chefe das SA, e cerca de 1 .200 correligionários seus, com a aprovação de Hi tler. Poucas semanas depois morre o presidente Hindenburg. Hitler se proclama chanceler e presidente plenipotenciário da Alemanha, o Führer. 1935 Victor Klemperer é afastado do serviço público por ser judeu, no contexto da "purificação" nazista do Estado alemão. 1936 Olimpíadas em Berlim durante julho e agosto. Qualquer vestígio de antissemitismo permanece ocultado. 1938 Em 13 de março Hitler anexa a Áustria à Alemanha: é o Anschluft (ver capítulo 1 8 ) . Judeus são proibidos de frequentar bibliotecas públicas na Alemanha. Em 9 de novembro ocorre a Kristallnacht [ noite dos cristais] , com ataques generalizados contra judeus e sinagogas. 1939 Em 1° de setembro o Exército alemão invade a Polônia. Começa a Segunda Guerra Mundial. 1940 O casal Klemperer é obrigado a ceder a própria casa para outra família. Os Diários passam a ser escritos em segredo e 31
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entregues à médica Annemarie Kõhler, que os esconde em sua casa em Pirna. O casal é obrigado a morar nas Judenhiiuser [ ca sas dos judeus] , residências coletivas, isoladas do restante da sociedade. Quando tinham sorte, esses judeus conseguiam trabalho não remunerado em fábricas, postergando assim o "transporte" para campos de concentração. Os judeus de Dresden, em geral, iam primeiro para Hellerberg e depois para Auschwitz e Theresienstadt.
1941 Victor Klemperer fica preso durante oito dias nas depen dências da Polícia de Dresden: fora delatado por ter esquecido de apagar a luz durante um alarme de ataque aéreo. A partir de 19 de setembro todos os judeus são obrigados a portar a es trela amarela na roupa. 1942 Em 8 de janeiro, Klemperer fica uma tarde detido nas dependências da Gestapo. É enviado para outra ]udenhaus. 1943 Em 3 1 de janeiro o VI Exército Alemão, sob o comando do marechal Friedrich von Paulus, se rende em Stalingrado, momento decisivo da guerra. Nessa época, Klemperer faz tra balho forçado nas firmas Willy Schlüter, de chás, Adolf Bauer, de cartolinas e envelopes, e Thiemig & Mõbius, de reaproveita mento de papel. É removido para a última ]udenhaus, onde permanece até 1 3 de fevereiro de 1 945. 1944 Em 20 de julho, o general Claus Schenk, Conde von Stauffenberg, tenta matar Hitler, levando uma bomba para uma reunião com o Führer. O atentado falha e os cinco envol vidos são enforcados. 1945 Em 1 3 de fevereiro ocorre um pesado bombardeio dos aliados sobre Dresden, com mais de 50 mil vítimas. A ]uden haus vem abaixo, matando todos os que estavam nela. Por aca so, Klemperer e a esposa estavam na rua. No meio do caos, Victor falsifica seus documentos e se desfaz da estrela amarela, passando a esconder a ascendência judaica. O casal começa 32
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uma fuga a pé para Falkenstein e depois para Unterbernbach. Acossado pela chegada do Exército Vermelho a Berlim, Hitler se suicida em 29 de abril, designando Goebbels como seu su cessor. Este se suicida no dia seguinte, junto com a maior parte dos principais assessores. A Alemanha se rende em 8 de maio. Os Klemperer recuperam a casa em 10 de junho. Victor torna se novamente professor na Escola Técnica Superior de Dres den. Filia-se ao Partido Comunista Alemão (KPD). Recupera os manuscritos dos Diários e inicia a redação de Lingua Tertii Imperii: anotações de um filólogo.
1947 Publica o livro LTI pela editora Aufbauverlag, de Berlim. Seguem-se muitas edições, totalizando 3 1 8 mil exemplares ven didos na Alemanha nesse período. 1948 Torna-se professor na Universidade Greifswald. Nova edição de LTI em Berlim pela Aufbauverlag. 1949 A República Federal Alemã (Alemanha Ocidental) e a República Democrática Alemã (Alemanha Oriental) são pro clamadas oficialmente. 1948-1960 Klemperer torna-se professor na Universidade Halle. 1950 É eleito representante na Câmara Popular da República Democrática Alemã. 1951 Recebe o título de doutor em pedagogia na Escola Téc nica Superior de Dresden. Eva Klemperer morre em 8 de julho. 1951-1954 É professor na Universidade Berlim. 1952 Casa-se com Hadwig Kirchner. Recebe o Prêmio Nacio nal da RDA para Arte e Literatura. 1953 É eleito para a Academia de Ciências da Alemanha. 1954 Publica o primeiro volume de História da literatura fran cesa do século XVIII: o século de Voltaire. 33
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1956 Publica o livro de artigos Antes de 33 após 45. É agra ciado na RDA com a Ordem de Prata de Reconhecimento da Pátria. -
1960 Morre em 1 1 de fevereiro. É enterrado em Dõlzschen e recebe postumamente o prêmio F. C. Weiskopf da Academia de Artes de Berlim. 1966 É publicado o segundo volume de História da literatura francesa do século XVIII: o século de Rousseau. Sai uma edição alemã de LTI com outro nome: Die unbewiiltigte Sprache: Aus dem Notizbuch eines Philologen [A linguagem não resolvida: do caderno de anotações de um filólogo ] , Darmstadt, Melsen. O livro também é reeditado pela Reclamverlag, de Leipzig. 1969 Outras edições de LTI em Munique pela Deutscher Ta schenbuch Verlag. 1975 Outras edições de Rõderberg Verlag.
LTI
em Frankfurt am Main pela
1983 Primeira edição polonesa de two Literackie.
LTI:
Cracóvia, Wydawnic
1984 Edição húngara: Budapeste, Tõmegkommunikációs Ku tatókõzpont. 1987 Nova edição em alemão: Colônia, Rõderberg. 1989 Cai o Muro de Berlim. É publicado Curriculum Vitae. Re cordações de um filólogo:18 81a11 9 8 (escrito durante o perío do nazista, em que não podia frequentar bibliotecas públicas) . 1990 A Alemanha é reunificada e m 3 de outubro. 1992 Nova edição polonesa de Wydawniczy w Kanadzie.
LTI:
Toronto, Polski Fundusz
1995 É publicado Quero prestar testemunho até o fim, nome dado aos diários do período 1 933- 1 945. Klemperer recebe o 34
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prêmio póstumo Geschwister Scholl em Munique. A Enciclo pédia Brockhaus insere um verbete sobre a importância de LTI.
1996 Saem Und so ist alies schwankend, os diários de junho a dezembro de 1 945, e Leben sammeln, nicht fragen wozu und warum, os diários de 1 9 1 8 e 1 932. Edição francesa de LTI, pela Albin Michel. 1997 Edição em inglês de Mellen Press.
LTI:
Lewiston, Nova York, Edwin
1998 Edição italiana: Firenze, Giuntina. Edição russa: Moscou, Progress-Tradicija. 1999 Edição brasileira dos Diários do período 1 933- 1 945. São Paulo, Companhia das Letras, tradução de Irene Aron. 2000 Edição holandesa de LTI: Amsterdam, Antuérpia, Uitg. Outra edição em inglês: Londres, Nova York, The Athlone Press. 2001 Edição espanhola: Barcelona, Editorial Minúscula. 2003 Edição tcheca: Jinoany, H & H. Nova edição francesa: Pa ris, Pocket. 2004 Edição em letão: Riga, AGB. 2005 Vigésima primeira edição alemã pela Reclamverlag de Leipzig. Outra edição espanhola: Barcelona, Círculo de Lectores. 2006 Edição em sueco: Gotemburgo, Glãnta. Edição em sérvio: Belgrado, Tanjug. Nova edição em inglês: Londres e Nova York, Continuum. 2007 Nova edição alemã pela Ditzingen Reclam.
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HERO(SMO (EM VEZ DE UM PREFÁCIO)
Necessidades novas fizeram a linguagem do Terceiro Reich ampliar o uso do prefixo ent [ des] , que indica distanciamento; ele passou a ser acrescentado a alguns termos (se bem que, quando é usado, não se consegue saber se é um neologismo ou se a linguagem comum o tomou emprestado de expres sões já conhecidas nos círculos especializados) . Quando havia o risco de bombardeio aéreo, as janelas das casas tinham de ser escurecidas, no que resultava depois a incumbência diá ria de entdunkeln [ des-escurecer] . No caso de o teto pegar fogo, o sótão das casas tinha de estar livre das tralhas habi tuais, para que as pessoas encarregadas de apagar o incêndio pudessem agir; ou seja, o caminho tinha de estar entrümpelt [ des-entulhado ] . Como era necessário encontrar novos ali mentos, a maneira de tirar o sabor amargo da castanha cha mava-se entbittern [ des-amargar] ... Para caracterizar uma das tarefas atuais mais urgentes, in troduziu-se na linguagem corrente um termo que se formou de maneira análoga. O período nazista levou a Alemanha à bancarrota. Entnazifizierung [ des-nazificação] é o nome que vem sendo dado ao esforço para livrá-la dessa doença fatal. Não desejo nem acredito que esta palavra hedionda possa per durar muito tempo; assim que tiver cumprido a sua missão, desaparecerá e ficará somente na memória. A Segunda Guerra mostrou-nos várias vezes este fenôme no: certos termos tiveram presença marcante durante o regi me nazista e parecia que nunca seriam extirpados, mas acaba ram sumindo como se por encanto. Desapareciam junto com a situação que os tinha feito surgir. É provável que alguma vez um desses termos reapareça, mas como um testemunho 37
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fossilizado. Foi o que aconteceu com a expressão Blitzkrieg [guerra relâmpago] e com o adjetivo correspondente schlagar tig [ fulminante] . Pode-se dizer o mesmo das Vernichtungs schlachten [batalhas de aniquilação ] e da situação correlata, que era eingekesselt sein [ estar cercado] , bem como .da wand erden Kessel [linha de frente móvel ] , 1 expressão que agora exi ge uma explicação: na verdade, referia-se à tentativa deses perada que as divisões sitiadas faziam para bater em retirada. Pode-se falar também da Nervenkrieg [guerra de nervos] e até mesmo da Endsieg [vitória final] . O termo Landekopf [cabeça de ponte] existiu do início de 1 944 até meados do verão do mesmo ano, quando, pela extensão, já tomara contornos dis formes. Quando Paris caiu, quando a França inteira passou a ser uma só "cabeça de ponte'� o termo desapareceu de repente e só deverá ressurgir no futuro, fossilizado, no contexto das aulas de História. O mesmo deverá ocorrer com a palavra mais importante e decisiva de todas - "desnazificação" -, que desaparecerá quando deixar de existir a situação a que se refere. Ainda le vará tempo. Não apenas a ação nazista terá de desaparecer, mas também a mentalidade nazista, o hábito de pensar nazista e justamente o seu solo mais fértil, a linguagem nazista. Quantos conceitos e sentimentos ela violentou e envene nou! No curso noturno da Universidade Popular de Dresden e nos debates promovidos pelo Kulturbund2 [União Cultural] em conjunto com a Freie Deutsche Jugend3 [ Juventude Livre Alemã] , diversas vezes vi como jovens inocentes e sinceros se apegavam ao modo nazista de pensar para suprir erros e Literalmente, "caldeirão migratório': "Liga cultural para a renovação democrática da Alemanha': Criada em agosto de 1 945 na zona de ocupação soviética, visava a desenvolver uma "cultura socialista nacional", estabelecendo relações entre a classe ope rária e os intelectuais. 3 Também criada na zona de ocupação soviética a partir de 1 945. 1
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H E ROISMO
lacunas de sua formação, que deixava muito a desejar. Sem perceber, estavam confundidos e seduzidos pela linguagem de uma época que deixou de existir. Conversávamos sobre o sentido da cultura, humanismo, democracia. Algo me levava a crer que uma luz iria clarear essas mentes bem-intencio nadas - mas eis que, de maneira natural e óbvia, algum alu no se referia ao comportamento heroico, à resistência heroica ou ao heroísmo em geral. Quando conceitos assim vinham à tona, dissipava-se a lucidez imaginada. Voltávamos ao ne buloso pensamento nazista. Os rapazes que haviam retorna do dos campos de batalha ou das prisões, com pouca festa e sem exaltações, não eram os únicos imbuídos dessa duvido sa concepção de heroísmo; além deles, também havia as mo ças, que não tinham servido no Exército. É impossível formar uma noção clara do verdadeiro sentido de humanismo, de cultura e de democracia se as pessoas pensarem dessa forma sobre o heroísmo, ou, para ser mais claro, se não refletirem sobre essa ideia. Em que contexto a palavra "heroico" e todas as outras pa lavras desse mesmo Sippe [ clã ] 4 foram apresentadas a essa geração, cuja alfabetização começou em torno de 1 933? A res posta é que esse heroísmo sempre vestiu uniformes, três uni formes diferentes, sem jamais ter usado trajes civis. Em Mein Kampf, 5 Hitler, ao tratar de educação, coloca o preparo físico em primeiríssimo lugar. Sua expressão predileta é korpeliche Ertüchtigung [ capacitação física] , que ele tomou emprestada do léxico dos conservadores de Weimar. Ele valo riza o Exército do imperador Guilherme como a única orga nização saudável e vital de um Volkskorper [ corpo do povo] Do clã ancestral, dentro do conceito nazista de coletivo, de raça nórdi ca ariana alemã. 5 Minha luta, título do único livro que Hitler escreveu, quando esteve preso em 1 924. Tornou-se a bíblia do nacional-socialismo.
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apodrecido. Vê no serviço militar, sobretudo ou exclusiva mente, uma educação para o desempenho físico. A formação do caráter é uma questão nitidamente menor: dominar o cor po é mais importante do que receber educação. Nesse progra ma pedagógico, a formação intelectual e seu conteúdo cientí fico ficam por último, sendo admitidos a contragosto, com desconfiança e desprezo. A todo momento se expressa o temor diante do ser pensante e o ódio contra o pensar. Quando Hi tler fala de sua própria ascensão, das primeiras grandes mani festações e de seu enorme poder de oratória, ele elogia tam bém a capacidade de combate dos homens que formam sua guarda, aquele pequeno grupo que deu origem às SA.6 Essas braunen Sturmabteilungen [ tropas de assalto marrons] tinham uma função meramente braçal: atacar e enxotar os opositores. Esses são seus cúmplices verdadeiros, ao lado dos quais dis puta o coração do povo; são seus primeiros heróis, autênticos exemplos do heroísmo demonstrado nas lutas: mesmo banha dos de sangue, são capazes de vencer adversários mais nume rosos. Nos relatos de Goebbels sobre a luta por Berlim encon tramos as mesmas descrições, a mesma forma de pensar e o mesmo vocabulário. Não é o espírito que será vencedor. Não se trata nem de convencer nem de burilar a retórica da nova doutrina, pois o que conta é o heroísmo dos antigos comba tentes, "os primeiros homens das SA': Para mim, os relatos de Hitler e de Goebbels se comple mentam, como observou uma amiga. Naquela época, ela era médica no hospital de Pirna, vilarejo industrial na Saxônia. "Quando, à noite, depois das manifestações, recebíamos os feridos", ela contava amiúde, "eu sabia imediatamente qual o partido de cada um, mesmo se o paciente já estivesse des pido no leito: os nazistas eram aqueles que estavam com a 6 SA significa Sturm Abteilung [ divisão de assalto) e SS, Schutzstaffel [ tro pa de proteção] . 40
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cabeça ferida, por suas bebedeiras ou porque tinham brigado usando cadeiras, e os comunistas eram aqueles com os pul mões perfurados por golpes de estilete." Quanto à fama, a his tória das SA reproduziu a literatura italiana: só se conseguiu alcançar o esplendor nos estágios iniciais; aquele brilho in tenso, nunca mais. Em termos cronológicos, o segundo uniforme com o qual o heroísmo nazista se disfarçou foi a indumentária do piloto de automóvel de corrida, como se fosse uma armadura, com capacete, óculos de proteção e luvas grossas. O nazismo culti vou todos os esportes, mas o boxe foi o que mais influenciou a linguagem, mais do que todas as outras modalidades juntas. Mesmo assim, em meados da década de 1 930, a imagem que mais transmitiu o espírito de heroísmo foi a do corredor de automóveis. Após o acidente fatal, Bernd Rosemeyer7 alcan çou quase tanta fama no imaginário popular quanto Horst Wessel.8 (Anotação para meus colegas professores da univer sidade; sugestão para tema de seminário: é possível traçar considerações muito interessantes sobre a relação de recipro cidade entre o estilo de Goebbels e o livro de memórias de Elly Beinhorn:9 Meu marido, o corredor de automóveis.) Du rante certo tempo, o vencedor de corridas internacionais era o herói mais fotografado, sentado junto ao volante do carro, apoiado nele ou até mesmo sepultado sob ele. Se um jovem rapaz não escolhesse como modelo de herói o combatente de tronco nu e musculoso das figuras das SA, que recheavam os 7 Marido de Elly Beinhorn e principal corredor de automóveis da es cuderia alemã Auto-Union ( 1 909- 1 938). 8 Chefe das SA de Berlim em 1 929, Horst Wessel ( 1 907- 1 930) compôs um hino que após sua morte se tornou o segundo hino nacional-socialista, o Horst- Wessel-Lied. Morto em um confronto com os comunistas, tor nou-se o primeiro mártir do nazismo. 9 Viúva do corredor de automóveis Bernd Rosemeyer, ela mesma uma corredora. 41
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cartazes ou medalhas daquela época, sua escolha certamente recairia sobre o corredor de automóveis. Ambos os tipos de herói tinham em comum o olhar fixo e determinado, de quem quer conquistar. A partir de 1 939, o carro de corrida foi substituído pelo tanque, e o corredor de automóveis foi substituído pelo Pan zerfahrer [ motorista dos tanques ] . (Esse era o nome que o soldado raso dava não somente ao motorista, mas também aos artilheiros dos tanques. ) Desde o primeiro dia de guerra até a queda do Terceiro Reich, todo heroísmo em terra, mar e ar usou uniforme militar. Na Primeira Guerra ainda existia um heroísmo civil por trás da linha do front. E agora? Até quando haveria algum heroísmo ali? Por quanto tempo ainda haveria vida civil? A doutrina da guerra total se voltava con tra os seus criadores de maneira terrível: tudo é espetáculo bélico, o heroísmo militar pode ser encontrado em qualquer fábrica, em qualquer porão. Crianças, mulheres e idosos mor rem a mesma morte heroica, como se estivessem em campo de batalha, com frequência usando o mesmo uniforme dese nhado para jovens soldados no front. Durante doze anos, o conceito e o vocabulário linguísti co do heroísmo estiveram entre os termos prediletos, usados com maior intensidade e seletividade, visando a uma coragem belicista, a uma atitude arrojada de destemor diante de qual quer morte em combate. Não foi em vão que uma das pala vras prediletas da linguagem nazista foi o adjetivo kiimpferisch [combativo, agressivo, beligerante] , que era novo e pouco usa do, típico dos estetas neorromânticos. Kriegerisch [guerreiro ] tinha um significado muito limitado, fazia pensar somente em assuntos de Krieg [ guerra] . Era também um adjetivo claro e franco, que denunciava a vontade de brigar, a disposição agressiva e a sede de conquista. Kiimpferisch é outra coisa! Re flete de maneira mais generalizada uma atitude de ânimo e de vontade que em qualquer circunstância visa à autoafirmação 42
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por meio de defesa e ataque, e não aceita renúncia. O abuso da palavra kiimpferisch corresponde ao uso excessivo, errado e impróprio do conceito de heroísmo. - O senhor está sendo muito injusto conosco, professor! Quando digo "conosco", não penso nos nazistas, pois não sou nazista. Sim, estive no campo de batalha todos esses anos, sal vo algumas interrupções. Não é natural falar bastante em he roísmo em tempos de guerra? Por que esse heroísmo tem de ser considerado falso? - Para ser herói não basta ter coragem e arriscar a vida. Para isso serve qualquer arruaceiro, qualquer criminoso. Em sua origem, o heros [herói] é uma pessoa que realiza atos que estimulam o melhor da humanidade. Uma guerra de conquis ta, como a guerra de Hitler, conduzida de maneira tão atroz, nada tem a ver com heroísmo. - Muitos dos meus camaradas não participaram de atro cidades e estavam convencidos de que fazíamos uma guerra defensiva, mesmo que às vezes tivéssemos de recorrer a agres sões e conquistas. Pois nunca recebemos explicações. Se ven cêssemos, salvaríamos o mundo. Só depois viemos a perceber a verdadeira situação, quando já era tarde demais ... E o senhor não crê que no esporte também haja um heroísmo autêntico que possa trazer benefícios para a humanidade? - Sim, seguramente. É provável que na Alemanha nazista tenha havido casos de heroísmo autêntico entre soldados e esportistas. Mas, a bem da verdade, olho para essas duas ca tegorias com ceticismo. Em ambos os casos há muita osten tação, muito interesse no lucro, muita vaidade pessoal, para serem autênticos. Esses corredores de automóveis eram, lite ralmente, cavaleiros da indústria automobilística. Suas corri das arriscadas eram úteis para a indústria alemã e, portanto, para a pátria. Talvez trouxessem benefícios para todos, já que contribuíam para o crescimento da produção de automóveis. Mas o que estava em jogo eram a vaidade extrema e o exibi43
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cionismo de gladiadores. As guirlandas e os prêmios equiva lem às condecorações e às promoções dos soldados. Acredito, sim, em heroísmo, mas em casos raros. Não ponho fé quando se faz muito alarde, quando há boa remuneração, quando se é bem-sucedido. O heroísmo é muito mais puro e significati vo quanto mais discreto for, quanto menos público cultivar, quanto menores rendimentos trouxer para o próprio herói e quanto menos espalhafato alcançar. O que critico no conceito nazista de heroísmo é que ele depende do aspecto promo cional. Apresenta-se com soberba. O nazismo não conheceu oficialmente qualquer heroísmo honesto e autêntico. Ele o desvirtuou e o levou ao descrédito. - O senhor afirma que nos anos do hitlerismo não houve nenhum tipo de heroísmo puro e silencioso? - Nos anos do hitlerismo, ao contrário, o heroísmo au têntico foi aperfeiçoado, só que pelo lado contrário, por assim dizer. Penso em todas as pessoas corajosas nos campos de concentração, todos os que se sujeitaram a viver na ilegali dade. Para eles, os riscos de vida e o sofrimento foram incom paravelmente piores do que no front, sem a auréola do pres tígio! O que se tinha em mente não era a "morte gloriosa no campo de honra", mas, no melhor dos casos, a guilhotina. Sem exibicionismos, esses heróis verdadeiros possuíam uma fonte de força e de bem-estar interior. Também se sentiam inte grantes de um exército, acreditavam que sua causa, no fim, seria vitoriosa. Podiam levar para o túmulo um orgulho ver dadeiro: quanto mais ignominioso fosse o seu assassinato, tanto mais o seu nome receberia um dia as devidas honras ... Mas eu conheço um heroísmo mais desesperado, mais silen cioso, desprovido de qualquer apoio, de qualquer vínculo com um exército ou um grupo político, sem qualquer esperança de algum brilho no futuro, um heroísmo que podia contar no máximo consigo mesmo. Falo das poucas mulheres arianas - de fato, poucas - que se mantiveram firmes contra toda 44
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pressão a que estavam sujeitas para que se separassem dos maridos judeus. O que não foi o cotidiano dessas mulheres! Quantos xingamentos aguentaram, quantas ameaças, pan cadas e cusparadas. Quanto despojamento, ao compartilhar com os maridos os cartões da alimentação racionada, pois eles recebiam rações abaixo do normal, enquanto os colegas arianos na fábrica recebiam um suplemento alimentar para compensar o trabalho pesado. Que energia tinham de reu nir para continuar no mundo dos vivos, quando tanta humi lhação e penúria as derrubavam doentes nas camas, quando tantos suicídios em volta eram tão tentadores, pois conduziam ao descanso eterno, distante da Gestapo! Elas sabiam que, se morressem, seus cadáveres ainda quentes seriam arrancados dos maridos, os quais seriam transportados para o exílio fa tídico. Que estoicismo, que autodisciplina conseguiram en contrar, dia após dia, para apoiar maridos desgastados, mi nados, desesperados. Sob o fogo das granadas do campo de batalha, sob os escombros do abrigo antiaéreo danificado, que se encontrava na iminência de ruir, mesmo sob a visão da forca, acontecia o momento patético que lhes dava coragem. Diante do cotidiano nauseabundo e asqueroso, ao qual se se guiam outros cotidianos nauseabundos e asquerosos, o que podia nos manter de cabeça erguida? Pois elas mantiveram-se fortes, tão fortes a ponto de ser capazes de influenciar conti nuamente o outro, convencê-lo de que era obrigação aguar dar a hora, que haveria de chegar. Manter-se tão forte, saben do que só podemos contar conosco; perceber como somos solitários, pois os moradores da Judenhaus [ casa de judeus] não constituíam um grupo, apesar do inimigo comum, do destino comum, da língua comum - eis aí o verdadeiro he roísmo, acima de qualquer outro. Nos anos de Hitler, sincera mente, não faltou heroísmo. Mas no verdadeiro hitlerismo, na comunidade dos hitlerianos, houve somente heroísmo exter nalizado, deformado, envenenado. Pensamos em taças cheias, 45
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com suntuosidade e ostentação, em condecorações tilintando, pensamos na ênfase dos elogios inúteis, nos assassinatos sem misericórdia ... Será que a familia das palavras formadas a partir de heroís mo faria parte da LTI? De certa forma, sim, pois essas palavras foram muito disseminadas e caracterizaram a falsidade e a brutalidade especificamente nazistas. Encontravam-se tam bém muito próximas da exaltação dos alemães como raça eleita: o heroísmo era uma prerrogativa da raça. Mas, na ver dade, não: toda essa fraseologia cheia de deformações e des virtuamentos já tinha sido bastante empregada antes do Ter ceiro Reich. Razão pela qual é aqui mencionada somente à margem, na introdução. Preciso registrar uma expressão como especificamente na zista, pelo mero consolo que dela emana. Em dezembro de 1 94 1 , Paul K. chegou uma vez radiante do trabalho porque lera o boletim do Exército no caminho de casa: - Na África, eles estão em situação difícil. Perguntei se eles mesmos reconheciam isso, pois no res tante do tempo só falavam em vitórias. - Esteja certo: se eles escreveram "nossas tropas lutam de maneira heroica': é porque o momento requer necrológios. Depois disso, muitas e muitas vezes a palavra "heroico" soou como necrológio nos boletins e jamais nos enganou.
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LTI
Havia o BDM, a HJ, o DAF e um sem-número de outras abre viaturas. 1 0 Inicialmente, como que parodiando essas siglas, mas logo em seguida como uma lembrança fugaz para a memória, como uma espécie de nó no lenço, e pouco depois, durante todos os anos de sofrimentos e agruras, como um pedido de socorro, gritava dentro de mim a sigla LTI, que aparece em meu diário. Garant era uma daquelas palavras estrangeiras, sonoras e eruditas que o Terceiro Reich de tempos em tempos adorava usar. Sendo uma palavra francesa, soava melhor que o alemão Bürge. Ambas significam "fiador". Outra palavra, diffamieren [difamar] , também era mais imponente do que schlechtma chen [ falar mal] . (Além disso, por serem de origem estran geira, talvez muita gente não as entendesse, sentindo-se mais impactadas justamente porque não compreendiam bem o significado.) 1 0 BDM: Bund Deutscher Miidel [Liga das Meninas Alemãs] , para meni nas entre 14 e 2 1 anos. HJ: Hitler Jugend [Juventude Hitlerista] , ramo do Partido Nazista fundado em 1 922 para a juventude, reformado em 1 926; no fim, tornou-se uma organização guarda-chuva, comportan do todos os grupos juvenis nazistas, com quase 10 milhões de jovens; a cada ano, na data do aniversário de Hitler, todas as crianças que ha viam feito dez anos entravam automaticamente para a organização. DAF: Deutsche Arbeitsfront [ Frente de Trabalho Alemã] , organização nazista criada em 1 933 para substituir todos os sindicatos e associa ções de classe da antiga República de Weimar; visava a organizar o tra balho (física e mentalmente) e a treinar todos os "verdadeiros alemães" no serviço comunitário. 47
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LTI: Língua Tertii Imperii, linguagem do Terceiro Reich. Frequentemente eu me lembrava de uma anedota da Berlim de outrora. É provável que essa piada estivesse em meu lin do Glassbrenner, o humorista da Revolução de Março. 1 1 Mas onde estará minha biblioteca, na qual eu podia esclarecer as dúvidas? Será que valeria a pena informar-me com a Ges tapo? . . . Um menininho no circo pergunta ao pai: "Por que o homem que está sobre a corda segura aquela vara?" "Seu bobinho, é a vara do equilibrista. É nela que ele se firma." "Mas, papai, e se ele a soltar?" "Seu bobinho, eu já lhe disse, ele não vai soltá-la, está apoiado nela com toda a força!" Naqueles anos, meu diário foi minha vara de equilibrista, sem a qual eu teria me arrebentado inúmeras vezes. Nas ho ras de amargura e desespero, no vazio torturante do trabalho mecânico da fábrica, ao lado da cama de doentes e moribun dos, quando me sentia mortificado nos momentos de extre ma humilhação - sempre me ajudou essa motivação que me impus a mim mesmo: "Observe, estude, grave na memória o que está acontecendo agora, pois amanhã as coisas já não se rão assim, amanhã você perceberá tudo de outra maneira; guarde este momento na memória, perceba como as coisas acontecem e o influenciam agora:' Essa exortação para que eu superasse as situações e mantivesse a liberdade interior logo se cristalizou em uma fórmula secreta e eficaz: LTI, LTI ! Mesmo que e u quisesse publicar integralmente o s diários daquela época, incluindo as vivências cotidianas, o que não é o caso, 12 o título também teria sido LTI, que poderia ser entendi do metaforicamente. É voz corrente dizer que a linguagem é a expressão de uma época. Da mesma forma pode-se dizer que é 11
Adolf Glassbrenner ( 1 8 10- 1 876) foi um escritor e jornalista alemão, e Revolução de Março é uma referência à Revolução de 1 848. 12 Os Diários foram publicados pela primeira vez em 1 995. Edição brasi leira: Os diários de Victor Klemperer. São Paulo: Companhia das Letras, 1 999. Tradução de Irene Aron. 48
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o retrato de um tempo e de um país. O Terceiro Reich se ex pressa de modo terrivelmente uniforme, em todas as suas ma nifestações e em todo o legado que nos deixa, na ostentação desmesurada das edificações faustosas, nos escombros, no tipo dos soldados, dos homens das SA e das SS, definidos como fi guras ideais em cartazes sempre renovados mas sempre muito parecidos uns com os outros, nas autoestradas e nas valas co muns. Tudo isso é a linguagem do Terceiro Reich, da qual tra taremos aqui. Eu, que durante décadas exerci uma profissão prazerosa, acabei impregnado por ela, mais do que por qual quer outra coisa. Agarrei firmemente a linguagem do Terceiro Reich, não em sentido figurado, mas literal e filológico. Essa minha vara de equilibrista me prestou enorme ajuda para su portar o vazio durante as dez horas de trabalho na fábrica, o pavor nas buscas domiciliares, as prisões, os maus-tratos. Muitos repetem a frase de Talleyrand: a linguagem existe para ocultar o pensamento do diplomata (ou de uma pessoa ardilosa e suspeita) . Mas o que é certo é o contrário. A lingua gem sempre revela o que uma pessoa tem dentro de si e dese ja encobrir, de si ou dos outros, ou que conserva inconscien temente. Este também é, sem dúvida, o significado da frase Le style c'est l'homme [o estilo é o homem] . Uma pessoa pode fazer declarações mentirosas, mas o estilo deixará as mentiras expostas. Algo aconteceu comigo por causa dessa linguagem própria (no sentido filológico) do Terceiro Reich. Bem no começo, enquanto ainda sofria pouca ou quase nenhuma perseguição, eu tentava evitar qualquer contato com ela. Sentia-me agredi do pelas frases das vitrines e dos cartazes, pelos uniformes marrons, as bandeiras, o braço estendido na saudação nazista e os bigodes aparados no estilo de Hitler. Fugia de tudo isso, absorvido em minha profissão. Ministrava meus cursos e fa zia um esforço doentio para não perceber que as salas de aula na universidade estavam cada vez mais vazias. Com rigor cada 49
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vez maior, aprofundava os estudos sobre a literatura francesa do século XVIII. 13 Para que azedar minha vida ainda mais a situação geral, por si só, já era bastante azeda -, lendo tex tos nazistas? Se, por acaso ou engano, um livro nazista me caía nas mãos, eu o colocava de lado logo depois do primeiro pa rágrafo. Se a voz estridente do Führer ou de seu ministro da Propaganda ecoava pelas ruas, eu dava uma grande volta para me distanciar do alto-falante. Quando lia um jornal, esfor çava-me para selecionar o que havia de objetivo no caldo re pugnante dos discursos, dos comentários e dos artigos; a rea lidade nua já era um grande desconsolo. Quando os cargos públicos foram "saneados" e eu perdi minha cátedra, 14 mais do que nunca procurei me abstrair do presente. Os filóso fos do Iluminismo, como Voltaire, Montesquieu e Diderot, os meus prediletos, estavam completamente fora de moda, pos tos de lado por qualquer pessoa que se considerasse impor tante. Eu podia dedicar todo o tempo e toda a energia à obra que já estava bem avançada. No que dizia respeito ao século XVIII, a biblioteca do Palácio Japonês de Dresden me servia tão bem que nela eu me sentia no paraíso. Talvez nem mesmo a Biblioteca Nacional de Paris pudesse me abastecer melhor. Então fui pego pela proibição de frequentar bibliotecas. 1 5 Arrancaram-me das mãos a obra d a minha vida. Seguiu-se a expulsão da minha própria casa. 16 Depois veio todo o restan te, a cada dia uma coisa nova. A vara do equilibrista passou a ser o meu objeto imprescindível, e a linguagem da época tor nou-se o meu principal interesse. 1 3 História da literatura francesa no século XVIII, de Klemperer, foi publi cado em dois tomos, em 1 954 e em 1 966. 1 4 Isso aconteceu após as leis raciais de Nuremberg, decretadas em 15 de setembro de 1 935. 1 5 A partir de outubro de 1 938, o regime nazista proibiu que judeus fre quentassem bibliotecas. 16 A casa dos Klemperer foi confiscada em 1 940. 50
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Eu observava com atenção redobrada como os operários conversavam na fábrica, como os brutamontes da Gestapo fa lavam e como entre nós, no jardim zoológico dos judeus en jaulados, as pessoas se expressavam. Não se notavam grandes diferenças; para ser sincero, nenhuma. Adeptos e opositores, beneficiários e vítimas, todos seguiam os mesmos modelos. Eu tentava entender esses modelos. De certa forma, era fácil. Pois tudo o que se dizia e se imprimia na Alemanha seguia as normas oficiais do partido. O que se desviasse dos modelos não chegava ao público. Livros, jornais, formulários e escritos oficiais de qualquer posto de serviço - tudo isso boiava no mesmo molho marrom, e a partir dessa uniformi dade absoluta da linguagem escrita explicava-se a uniformida de da fala. Para milhai;es de outras pessoas, a tentativa de compreen der esses modelos talvez fosse uma brincadeira pueril. Para mim era extremamente difícil, sempre perigosa, às vezes im possível. Os portadores da estrela amarela estavam proibidos de adquirir ou pegar emprestado qualquer tipo de livro, re vista ou jornal.17 O que estivesse escondido em casa representava enorme perigo e era ocultado sob armários e tapetes, em cima dos fo gões e no alto das cortinas, ou era guardado como material de aquecimento junto à provisão de carvão. Medidas desse tipo só funcionaram para os que tiveram muita sorte. Em toda a minha vida, nunca um livro me causou tanta tontura quanto O mito, de Rosenberg. 18 Não porque fosse 1 7 A partir de 19 de setembro de 1 94 1 , todos os judeus foram obrigados, sob risco de morte, a portar a estrela de Davi, em cor amarela, de for ma nítida na lapela das roupas. 18 Trata-se de O mito do século XX, principal obra de Alfred Rosenberg ( 1 893- 1 946), considerado o maior teórico do nazismo. Foi ministro encarregado dos territórios da Europa Oriental, de onde deportou cen tenas de milhares de pessoas para o extermínio, principalmente judeus. 51
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uma leitura excepcionalmente profunda, de compreensão di fícil, ou porque tivesse me causado um abalo moral, mas por que Clemens ficou martelando o exemplar em minha cabeça durante longos minutos. (Clemens e Weser foram os tortura dores dos judeus de Dresden; eram chamados der Schlager und der Spucker [ aquele que bate e aquele que cospe] . ) Cle mens berrava: "Como pode você, porco judeu, ter a audácia de ler um livro desses?" Era como se eu estivesse cometendo o pecado da profanação da hóstia. "Como você ousa ter em casa um livro da biblioteca?" Fui salvo de ser enviado a um campo de concentração ao comprovar que o livro havia sido retirado em nome da minha esposa ariana e pelo fato de que ele ras gou as minhas anotações sem procurar entendê-las. A aquisição de qualquer tipo de material tinha de ser sub reptícia, e ele só podia ser manuseado em segredo. Quanta coisa faltava! Quando procurava ir à raiz de uma questão, quando precisava de material científico específico, as biblio tecas não me emprestavam mais, eu já estava na lista dos ex cluídos das bibliotecas públicas. Há quem possa pensar que um colega de profissão ou um aluno antigo que nesse ínterim tivesse alcançado um cargo melhor poderia ter me ajudado nessa situação precária, inter cedendo em meu favor junto às bibliotecas. Deus do céu! Isso teria sido um gesto de coragem, com risco pessoal. Existe um belo verso em francês antigo que eu frequentemente citava da cátedra mas cujo significado só entendi mais tarde, quando já perdera a cátedra. Um poeta que caíra em desgraça se recorda com melancolia do grande número de "amis que vent emporte, et il ventait devant ma porte", ou "amigos que o vento enxota, e ventava diante de minha porta". Não quero ser injusto: en contrei amigos fiéis e corajosos, mas entre eles não havia co legas da minha especialidade, tampouco de áreas afins. São dessa época anotações e fichas como estas: "Verificar mais tarde!..:: "Completar mais tarde!..:: "Responder mais tar52
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de! ...". Quando já era menor a esperança de estar vivo até esse "mais tarde" chegar, encontro frases assim: "Isso deveria ser esclarecido mais tarde.. :' Hoje, quando esse "mais tarde" ainda não chegou total mente - mas em breve há de chegar, já que os livros estão emergindo dos escombros e as bibliotecas precisam retomar suas funções (e já se pode retornar aos estudos sem a cons ciência pesada de estar deixando de lado a vita activa comu nitária da reconstrução) -, hoje sei que não conseguirei transformar minhas observações, reflexões e questões sobre a linguagem do Terceiro Reich, apenas esboçadas, em uma obra científica acabada. Para tanto seriam necessários mais conhecimentos, bem como mais tempo de vida do que disponho ou qualquer outra pessoa dispõe neste momento. Pois há muito trabalho a fazer nas mais diversas áreas, considerando germanistas e romanis tas, anglicistas e eslavistas, historiadores e economistas, advo gados e teólogos, engenheiros e cientistas. Todos terão de des vendar as especificidades dos diversos temas, por meio de ensaios ou de teses, antes que haja condições para que uma mente ousada e aberta apresente a Lingua Tertii Imperii na totalidade, abarcando desde sua absoluta pobreza de espírito até sua abundância exuberante. Porém, tatear e questionar coisas que ainda não podemos determinar, pois se encontram em um estágio de amadurecimento, realizar o "trabalho da primeira hora': como os franceses dizem, sempre ajuda os ver dadeiros pesquisadores que vêm depois. Acho que eles apre ciarão ver o seu objeto de estudo em processo de metamor fose, a meio caminho entre um relato concreto da própria experiência e uma conceituação acadêmica. Se essa é a intenção da minha publicação, por que não re produzo na íntegra o Caderno de anotações do fil6logo, resga tando-o de meu diário mais particular e mais geral, escrito nos anos difíceis? Por que algumas coisas estão resumidas em 53
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forma de esboço? Por que a perspectiva daquele tempo se jun ta à perspectiva de hoje, a primeira hora após-Hitler? Quero responder a essa questão de maneira precisa. Há uma tese em jogo: além de um fim científico, também busco um objetivo educacional. Fala-se muito em extirpar a men talidade fascista, e muita coisa vem sendo feita nesse sentido. Os criminosos de guerra estão sendo julgados, os pequenos Pgs19 (linguagem do Quarto Reich! ) são afastados de cargos, livros nacional-socialistas estão sendo retirados de circulação, as "praças Hitler" e as "ruas Gõring" vêm sendo renomeadas. Mas a linguagem do Terceiro Reich sobrevive em muitas ex pressões típicas, a tal ponto impregnadas que parecem ter-se tornado permanentes na língua alemã. Quantas vezes, por exemplo, eu ouvi, desde maio de 1 945,2º em discursos no rá dio ou em manifestações marcadamente antifascistas, pala vras como qualidades charakterlich [ características] ou espí rito kiimpferich [ combativo] da democracia! São expressões centrais da LTI. O Terceiro Reich diria que são Wesensmitte [ do âmago do ser] . Quando percebo questões desse tipo, será por pedantismo? Será que aflora o mestre-escola que, como dizem, está escondido em cada filólogo? Vou tentar a responder a essa questão por meio de outra questão. Qual foi o meio de propaganda mais intenso do período nazista? Qual o meio de propaganda mais poderoso dessa época? Foram os discursos de Hitler e de Goebbels, suas de clarações sobre esse ou aquele assunto, seu rancor contra o judaísmo e o bolchevismo? É claro que não. Ou a massa não compreendia bem essas coisas ou simplesmente se entediava com as repetições in1 9 Abreviatura de Parteigenossen, ou seja, membro sem importância no Partido Nazista. 20 Mês em que terminou a Segunda Guerra Mundial. 54
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findáveis. Quantas vezes em um restaurante (quando eu ain da podia entrar em um restaurante, antes de ser usuário da estrela) , quantas vezes depois, na fábrica, durante um alarme aéreo (quando os arianos permaneciam em uma sala exclu siva, com rádio, aquecimento e comida, e os judeus em outra sala exclusiva, vazia) - quantas vezes, enquanto o Führer ou um de seus paladinos fazia discursos extensos, eu ouvia o ba rulho das cartas de baralho sobre a mesa e as conversas em voz alta sobre rações de carne e tabaco, ou sobre cinema, para depois ler nos jornais que todo o povo os havia escutado aten tamente? Não, o efeito mais forte não foi provocado por discursos isolados, nem por artigos ou panfletos, cartazes ou bandei ras. O efeito não foi obtido por meio de nada que se tenha sido forçado a registrar com o pensamento ou a percepção conscientes. O nazismo se embrenhou na carne e no sangue das massas por meio de palavras, expressões e frases impostas pela repe tição, milhares de vezes, e aceitas inconsciente e mecanica mente. Costuma-se considerar como meramente estética e inofensiva a citação de Schiller sobre von der gebildeten Spra che, die für dich dichtet und denkt [ a língua culta, que poetiza e pensa por ti] . Um verso bem redigido, em uma "língua cul ta': não pode ser aceito como prova suficiente da força poé tica do autor. Em uma língua assim, não é difícil adotar uma aura de poeta ou de pensador. Mas a língua não se contenta em poetizar e pensar por mim. Também conduz o meu sentimento, dirige a minha mente, de forma tão mais natural quanto mais eu me entre gar a ela inconscientemente. O que acontece se a língua culta tiver sido constituída ou for portadora de elementos vene nosos? Palavras podem ser como minúsculas doses de arsêni co: são engolidas de maneira despercebida e parecem ser ino fensivas; passado um tempo, o efeito do veneno se faz notar. 55
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Se, por longo tempo, alguém emprega o termo "fanático" no lugar de "heroico e virtuoso", ele acaba acreditando que um fanático é mesmo um herói virtuoso, e que sem fanatismo não é possível ser herói. As palavras fanático e fanatismo não foram criadas pelo Terceiro Reich, mas ele lhes adulterou o sentido; em um só dia elas eram empregadas mais do que em qualquer outra época. Poucas palavras foram cunhadas pelo Terceiro Reich, talvez nenhuma. A linguagem nazista usa empréstimos do estrangei ro e absorve muito do alemão pré-hitlerista. Mas altera o sen tido das palavras e a frequência de seu uso. Transforma pala vras que pertenciam a uma pessoa ou a um pequeno grupo em propriedade de todos, requisita para o partido o que an tes era propriedade comum e, dessa forma, envenena palavras e formas sintáticas. Adapta a língua ao seu sistema terrível e, com ela, conquista o meio de propaganda mais poderoso, ao mesmo tempo o mais público e o mais secreto. Mostrar cla ramente o veneno da LTI e advertir as pessoas contra ele pa rece-me mais do que uma mera mania de professor. Para um judeu ortodoxo, quando o preparo de um alimento escapa às normas preestabelecidas, tornando-o impuro, a purificação consiste em enterrá-lo. Deveríamos enterrar muitas palavras da linguagem nazista na vala comum por longo tempo. Algu mas, talvez, para sempre.
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CAPIT U LO 2
PRELÜ DIO
Conforme está anotado e m meu diário, e m 8 d e junho de 1 932 assistimos ao filme sonoro O Anjo Azu� já considera do "quase um clássico': Um texto concebido e realizado em estilo épico, quando transposto para o teatro e agora para o cinema, sempre será grosseiramente sensacionalista. Professor Unrat [ Professor Lixo ] , de Heinrich Mann, é uma obra literá ria maior do que o filme.21 Mas a atuação dos artistas fez dele realmente uma obra-prima. Os papéis principais couberam a Jannings, Marlene Dietrich e Rosa Valetti. Mesmo os se cundários também foram representados com mestria. Ainda assim, não consegui prestar atenção no que a tela exibia. A todo instante vinha-me à mente uma cena do noticiário se manal que fora exibido antes do filme. Diante de mim, eu ain da via o Tambor dançando, literalmente, às vezes na frente, às vezes no meio dos artistas de O Anjo Azul. A cena ocorria depois da posse do governo Papen e se cha mava Dia da Batalha de Skagerrak. A guarda da Marinha do palácio presidencial atravessa o Portão de Brandemburgo. 22 21
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Der blaue Enge� 1 930, direção de Josef von Sternberg, roteiro de Robert Liebmann, Karl Zuckmayer e Karl Vollmoeller. O nome do professor era Rath, mas para humilhá-lo Heinrich Mann o denomina Unrat. Franz Von Papen ( 1 879- 1 969} antecedeu Hitler na chefia do governo alemão. Revogou a proibição às SA e convocou as eleições parlamenta res nas quais o Partido Nazista obteve maioria relativa, preparando-se para tomar o poder. A "batalha de Skagerrak" é uma referência à bata lha naval de Jutland, em 1 9 16, no sul da Noruega, entre a Alemanha e a Inglaterra. O Portão de Brandemburgo, o único remanescente de uma série de outras entradas de Berlim, é uma espécie de "arco do triunfo" da capital alemã. 57
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Já vi muitos desfiles, ao vivo ou no cinema. Conheço o significado de "acertar o passo" na parada prussiana, pois quando treinamos no Oberwiesenfeld,23 em Munique, recebe mos a instrução: "O passo tem de ser no mínimo tão bem dado quanto em Berlim! " É preciso acertar o passo, nunca antes e, mais importante, nunca depois. Apesar de todas as paradas diante do Führer e de todos os desfiles militares em Nuremberg, eu nunca vira o que vi naquela noite. Os homens jogavam as pernas para o alto de tal forma que as pontas das botas pareciam soltas, mais altas que os respectivos narizes. Estavam todos no mesmo movimento, como se fossem uma só perna. Todos esses corpos - não, esse único corpo -, as sim como os rostos, bastante crispados, mostravam uma ten são convulsiva, enrijecida pelo ritmo. A tropa dava a estranha impressão de ausência de vida combinada com extremo fre nesi. Não tive tempo, ou melhor, não tive capacidade emocio nal para desfazer o mistério dessa tropa, pois ela era apenas o pano de fundo para a figura dominante: o Tambor. 24 O homem que marchava à frente apertava os dedos da mão esquerda bem espalmada no quadril e inclinava o corpo para o mesmo lado, em busca de equilíbrio, apoiando-se nes sa mão, enquanto o braço direito golpeava o ar com o bastão e a perna lançava a ponta da bota para o alto, como se tentas se alcançar o bastão. Pairava oblíquo no vazio, como um mo numento sem pedestal, misteriosamente mantido ereto por uma convulsão que o esticava dos pés à cabeça. A apresenta ção não era um mero exercício, mas uma dança arcaica e uma marcha militar. O homem era, ao mesmo tempo, faquir e gra23 24
Klemperer serviu no Exército alemão na Primeira Guerra Mundial. No início da carreira política, Hitler se fazia chamar de Tambor. De pois da frustrada revolta na cervejaria em Munique, em 9 de novem bro de 1 923, ele foi preso e declarou no tribunal: "Não é por modéstia que eu quero me tornar o Tambor, pois isso é o que há de mais nobre, o resto não passa de ninharia." 58
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nadeiro. Na época, essa crispação e desarticulação convulsiva podia ser vista em esculturas expressionistas, podia ser ouvida em poesias, mas na vida nua e crua, como ela é, no realismo da cidade, seu impacto me atingiu com a força de uma novi dade absoluta. Aos gritos, pessoas pressionavam para se ache gar bem perto da tropa. Os braços selvagemente estendidos pareciam querer agarrar algo, e os olhos de um jovem, como duas labaredas, revelavam um estado de êxtase religioso. O Tambor foi meu primeiro contato - assustador - com o nacional-socialismo. Apesar de já bastante disseminado, até aquele momento parecia-me que tudo não passava de uma aberração passageira de uma minoria descontente. Foi a pri meira vez que me defrontei com o fanatismo em formato es pecificamente nacional-socialista. Essa figura muda provocou meu primeiro embate com a linguagem do Terceiro Reich.
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CAPIT U LO 3
CARACTERÍSTICA PRI NCI PAL: POBREZA
A pobreza da LTI é gritante. Ela é pobre por princípio, como se cumprisse um voto de pobreza. Mein Kampf, a bíblia do nacional-socialismo, começou a circular em 1 925. A partir desse ano as principais característi cas da linguagem nazista foram fixadas literalmente. Em 1 933, com a Machtübernahme [ tomada do poder] pelo partido, a linguagem desse grupelho se transformou em linguagem po pular, ou seja, se apoderou de todos os setores da vida pública e privada: da política, da justiça, da economia, da arte, das ciências, da escola, dos esportes, da família, dos jardins de in fância e até mesmo do quarto das crianças. (Até então, a lin guagem de um grupo só abarcava o âmbito específico que era importante para sua coesão; não se estendia à vida como um todo.) A LTI se apoderou também - aliás, energicamente da linguagem do Exército. Estabeleceu-se uma relação de re ciprocidade entre ambas: primeiro a LTI foi influenciada pela linguagem militar, depois corrompeu essa linguagem. Por isso faço questão de explicar como a LTI se alastrou. O Reich 2 5 cir culou quase até o último dia da guerra, já em 1 945, e nessa época ainda se publicava enorme quantidade de textos na zistas: panfletos, jornais, revistas, livros escolares, obras cien tíficas e literárias. Tudo isso quando a Alemanha já era um monte de escombros e Berlim estava cercada. Não obstante a longa existência e a grande divulgação, a LTI permaneceu pobre e monótona. O termo "monótono" deve ser considerado literalmente. Conforme minhas possibi lidades de leitura - frequentemente eu as comparava com 25
Jornal fundado por Goebbels em 1 940, publicado aos sábados. 61
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uma viagem em voo livre de balão, levado ao sabor dos ven tos, sem poder determinar a direção -, estudei O mito do século XX, o Anuário de bolso do pequeno comerciante, uma revista jurídica, outra farmacêutica, romances e poesias, tudo que tivesse sido autorizado a ser publicado naqueles anos. Ouvia as conversas de varredores de rua ou de operários na fábrica, junto às máquinas; era sempre o mesmo chavão e o mesmo tom de voz, na linguagem escrita ou falada, entre pes soas cultas ou incultas. A LTI imperava por toda parte, tão po derosa quanto pobre de espírito - poderosa justamente por ser pobre de espírito -, até mesmo entre os judeus, as maio res vítimas do nacional-socialismo, necessariamente seus ini migos mortais, em cartas, conversas e livros, enquanto ainda tinham autorização para publicar. Conheci três períodos da história alemã: a época do impe rador Guilherme II, a República de Weimar e o nazismo. A República liberou, de forma suicida, a palavra escrita e falada. Os nacional-socialistas, por sua vez, com sarcasmo e despudor, afirmavam que só faziam o que a Constituição26 permitia, enquanto atacavam as instituições e as diretrizes do Estado e se lançavam furiosamente contra livros e jornais, sa tirizando tudo, fazendo sermões exaltados. As artes, as ciên cias, a estética e a filosofia não sofriam qualquer restrição. Ninguém estava preso a algum dogma moral ou estético es pecífico. Imperava a livre escolha. Essa liberdade cultural mul tifacetada era elogiada como um imenso e decisivo avanço, em contraposição à época do Império. Será que na época do imperador Guilherme II a liberdade tinha mesmo sido menor? Os estudos sobre o Iluminismo francês chamavam minha atenção para uma semelhança marcante entre as últimas déca das do Ancien Régime e a época de Guilherme II. É certo que 26
Trata-se da Constituição de Weimar. 62
CAPÍT U LO 3 1 CARACT E R I S T I C A P R I N C I PA L : P O B R EZA
sob Luís XV e Luís XVI havia censura, havia a Bastilha e até mesmo carrascos para os inimigos dos reis e os ateus. O julga mento destes era severo, mas nem tanto, se considerarmos o período como um todo. Pois não houve muitos julgamentos. Cada vez mais, os iluministas conseguiram publicar e difun dir seus textos quase sem restrições. A cada punição aplicada, mais a literatura insurgente se espalhava e era divulgada. De maneira muito semelhante, um rigor moral e absolu tista imperava oficialmente sob Guilherme II. As vezes havia processos por crime de lesa-majestade, por blasfêmia ou por atentado aos bons costumes, mas quem dominava a opinião pública era a Simplicissimus. 27 Ludwig Fulda deixou de ganhar o Prêmio Schiller, que seria conferido a seu livro Talisman, por causa de um veto imperial; mas o teatro, a imprensa e as re vistas de humor faziam inúmeras críticas. As mais mordazes dirigiam-se à ordem estabelecida e ultrapassavam muito o dócil texto do Talisman. Sob Guilherme II ninguém estava impedido de absorver qualquer corrente intelectual estran geira ou realizar experimentações em literatura, filosofia ou artes. A censura só apareceu nos últimos anos do Império, pela premência da guerra. Eu mesmo, quando recebi alta do hospi tal militar de campanha, trabalhei como especialista para o ór gão de censura de livros na região do Ober-Ost. Nessa grande circunscrição administrativa, a produção literária destinada a civis e militares era examinada pelas disposições da censura especial, na qual os critérios eram um pouco mais rígidos do que nas comissões de censura domésticas. Mas procedíamos de maneira muito generosa! Raramente havia uma proibição. 2 7 Revista satírica fundada em Munique em 1 896, usando o nome de um herói de um romance de Grimmelshausen, de 1 669. Depois de ter reu nido a vanguarda artística e literária (Thomas Mann colaborava para ela), a revista apoiou o nacionalismo em 1 9 1 4 e no fim aderiu ao na zismo. Foi fechada em 1 944. 63
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Em ambas as épocas que conheci houve ampla liberdade. Os poucos casos em que alguém foi silenciado podem ser con siderados exceções. O resultado disso foi que os grandes cam pos da língua, oral e escrita, se desenvolveram livremente no jornalismo, na ciência e na poesia. Não havia somente as cor rentes literárias universais, como o naturalismo e o neorro mantismo, o impressionismo e o expressionismo. Em todas as áreas estilos linguísticos individuais tinham liberdade. É preciso reconhecer essa riqueza - florescente até 1 933 e logo em seguida, repentinamente, moribunda - para que se possa perceber a pobreza de espírito dessa escravidão unifor mizada, a principal característica da LTI. A razão da pobreza parece evidente. Com um sistema tirâ nico extremamente invasivo, tudo era vigiado nos mínimos detalhes para que a doutrina nacional-socialista permaneces se intacta, sem falsificações em cada um de seus aspectos, in cluindo a linguagem. Baseando-se no modelo de censura ecle siástica, os seguintes dizeres constavam na página de rosto dos livros: "O NSDAP 28 não se opõe à publicação deste texto. As sinado pelo presidente da 'comissão oficial de censura' de pro teção ao nacional-socialismo." Só quem fosse membro da Câ mara de Letras do Reich tinha permissão para se manifestar. A imprensa só podia publicar o que fosse liberado pelo "ór gão central da censura'� No máximo, podia fazer pequenas va riações nos textos obrigatórios, da forma mais modesta pos sível, variações que se referiam à aparência externa permitida para os clichês. Nos anos finais do Terceiro Reich, às sextas-feiras à noite, instituiu-se o hábito de se ler na Rádio de Berlim o artigo mais recente de Goebbels, que seria publicado no Reich do dia seguinte. O conteúdo era liberado para que a imprensa o di28 NSDAP:
Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei [ Partido Nacio nal-Socialista dos Trabalhadores Alemães] , o Partido Nazista. 64
CAPIT U LO 3 1 CARACT E R IS T I C A P R I N C I PA L : P O B R EZA
fundisse em toda a área de influência do nazismo. Assim, um pequeno grupo determinava o modelo linguístico permiti do para a coletividade como um todo. Em última instância, Goebbels era o único a definir a linguagem permitida, pois sua vantagem em relação a Hitler era que, além de ter ideias mais claras, também se expressava de forma mais organizada que o Führer, que se calava cada vez mais, como se desejasse manter o silêncio da divindade muda ou porque não lhe res tava mais nada decisivo a dizer. Caso houvesse alguma opinião de Gõring ou de Rosenberg, o ministro de Propaganda a in cluía no texto do próprio discurso. O domínio absoluto que esse pequeno grupo - ou me lhor, que esse homem - exerceu na normatização da lingua gem se estendia por todo o âmbito da língua alemã, levando se em conta que a LTI não fazia distinção entre linguagem oral e escrita. Para ela, tudo era discurso, arenga, alocução, invo cação, incitamento. O estilo do ministro da Propaganda não distinguia a linguagem do discurso e a linguagem dos textos, razão pela qual era tão fácil declamá-los. Deklamieren [ decla mar] significa literalmente falar alto sem prestar atenção ao que se diz. Vociferar. O estilo obrigatório para todos era ber rar como um agitador berra na multidão. Surge aqui uma nova explicação, bem mais profunda, para a pobreza da LTI. Ela não era pobre só porque todos se viam forçados a obedecer a um único padrão de linguagem, mas es pecialmente porque, por meio de uma limitação autoimposta, só permitia expor um lado da natureza humana. Se puder se expressar com liberdade, qualquer língua con segue dar conta de todos os anseios humanos. Elas se prestam à razão e ao sentimento, são comunicação, diálogo e monólo go, oração e súplica, ordem e invocação. A LTI só se prestava à invocação. O tema podia ser da esfera pública ou privada não, isso é falso, pois a LTI mal conhecia o domínio privado, confundindo-o com a esfera pública, assim como confundia as 65
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linguagens escrita e oral -, não importa, tudo era discurso e publicidade. "Tu não és nada, teu povo é tudo': pregava. O que significa que nunca estás sozinho, contigo mesmo, nunca estás a sós com os teus, estás sempre exposto. Seria também enganoso se eu dissesse que, em todos os setores, a LTI dirige-se exclusivamente à vontade. Pois quem apela para a vontade apela sempre para o indivíduo, mesmo que se dirija a uma coletividade, a um público. A LTI preten de privar cada pessoa da sua individualidade, anestesiando as personalidades, fazendo do indivíduo peça de um rebanho conduzido em determinada direção, sem vontade e sem ideias próprias, tornando-o um átomo de uma enorme pedra rolan te. A LTI é a linguagem do fanatismo de massas. Dirige-se ao indivíduo - não somente à sua vontade, mas também ao seu pensamento -, é doutrina, ensina os meios de fanatizar e as técnicas de sugestionar as massas. O Iluminismo francês do século XVIII tem duas expres sões, dois temas e dois bodes expiatórios prediletos: a im postura sacerdotal e o fanatismo. Não confia nas convicções religiosas do clero, pois considera qualquer culto uma farsa que pretende tornar fanática uma comunidade e explorar os fanatizados. Jamais um livro de pregação clerical foi escrito de maneira tão vil e desavergonhada quanto Mein Kampf, de Hitler. Com uma ressalva: em vez de "impostura clerical': a LTI diz "propa ganda': A maior incógnita do Terceiro Reich, para mim, é en tender como esse livro conseguiu penetrar na opinião pública, como permitiu que Hitler dominasse como dominou, e como foi possível que essa dominação tenha durado doze anos, ape sar da bíblia do nacional-socialismo ter sido lançada muitos anos antes da tomada do poder. Durante todo o século XVIII francês nunca, jamais, a palavra fanatismo, com seu adjetivo correspondente, ocupou um lugar tão importante, nem foi tão desvirtuada, quanto nos doze anos do Terceiro Reich. 66
CAPIT U LO 4
PARTENAU
Na segunda metade da década de 1 920, conheci um jovem que acabara de se alistar para ser aspirante a oficial no Exér cito. A mulher de seu tio, já falecido, meu antigo colega na universidade, era uma pessoa que se situava politicamente muito à esquerda e admirava a Rússia soviética. Um dia, em visita à nossa casa, ela trouxe o sobrinho. Querendo se des culpar, afirmou que esse rapaz de boa índole escolhera a car reira militar de coração puro, sem pensamentos chauvinistas, sem laivos de crueldade. Naquela família, era hábito de várias gerações que filhos homens seguissem ou a carreira eclesiásti ca ou a militar. O pai dele, já falecido, fora pastor. O irmão mais velho seguia estudos teológicos, de forma que ele, Geor ge, ótimo ginasta mas péssimo estudante de latim, vira no Exército o lugar ideal. Os soldados tinham futuro assegurado. Estivemos diversas vezes com George M. e pareceu-nos que a tia fizera um julgamento justo. Ele ainda mostrava uma honestidade real, inocente e espontânea, quando ao seu redor as pessoas estavam deixando a integridade de lado. Vindo de Stettin, onde sua guarnição estava aquartelada, aguardan do promoção a tenente, George M. nos fez várias visitas em Heringsdorf, apesar da intensa propagação das ideias nacional-socialistas. Oficiais e acadêmicos precavidos evita vam frequentar grupos de pessoas de esquerda, principalmen te judeus. Pouco depois, já como tenente, M. foi transferido para o regimento de Kõnigsberg. Durante muitos anos não ouvimos falar nele. Uma vez sua tia nos contou que frequentava um curso para tornar-se piloto de aviação, atividade que, como esportista, lhe trazia muita satisfação. 67
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No primeiro ano do regime de Hitler, quando eu ainda exercia meu cargo e me esforçava para evitar textos nazistas, tive em mãos Partenau, primeira obra de Max René Hesse, de 1 929. Não sei se na capa ou somente na orelha constava Der Roman der Reichswehr [ romance do Exército do Reich] . Seja como for, fixei na memória esse nome simples. Do ponto de vista literário, era um livro fraco. Romance em tom de nove la, típico de quem ainda não domina a linguagem, número excessivo de personagens mal definidos em torno das duas figuras principais, uma profusão de planos estratégicos de talhados que só poderiam interessar ao especialista da área, membro do estado-maior; em suma, uma obra pouco har moniosa. Fiquei estarrecido com o conteúdo, que pretendia descrever como era o Exército. Mais tarde, amiúde, o livro me voltava à memória. Tratava-se da amizade entre o primeiro tenente Partenau e o jovem junker 2 9 Kiebold. O primeiro-te nente era um militar exímio, patriota obstinado e homosse xual. Mas o junker queria ser somente seu discípulo, não seu amante, e por isso o primeiro-tenente comete suicídio com um tiro de revólver. Ele é concebido como uma figura trági ca: a aberração sexual é glorificada como amizade masculina autêntica, e seu patriotismo frustrado deve bem remeter a Heinrich von Kleist.30 Toda a obra está escrita no estilo ex pressionista, por vezes rebuscado e enigmático, dos anos da guerra e dos primeiros anos da República de Weimar, mais ou menos na linguagem de Fritz von Unruh.31 Só que Unruh e os expressionistas alemães daquela época valorizavam a paz, 2 9 Denominação dada na Alemanha aos latifundiários, especialmente os aristocratas dos territórios a leste do rio Elba. Hoje, quase sempre, a palavra tem conotação pejorativa. 30 Bernd Heinrich Wilhelm von Kleist ( 1 777- 1 8 1 1 ) , poeta, romancista, dramaturgo e contista alemão. 3 1 Fritz Von Unruh ( 1 885- 1 970) , teatrólogo, poeta e romancista do ex pressionismo alemão. 68
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tinham uma visão humanista e, embora amassem a pátria, respiravam ares cosmopolitas. Partenau, em contrapartida, dominado pelo expressionismo alemão, cheio de ideias revan chistas, tinha planos que não eram meras elucubrações men tais. Referia-se a "províncias clandestinas" já existentes, à se creta construção de "células organizadas". A única coisa que faltava era um chefe supremo, um Führer. "Só um homem que fosse mais que um guerreiro ou um simples organizador poderia transformar essa força secreta, adormecida, em um instrumento vivo, poderoso e flexível." Se esse líder genial fos se encontrado, ele haveria de criar um novo espaço territorial para os alemães, enviando para a Sibéria 35 milhões de tche cos e outros povos não germânicos. O espaço europeu ficaria liberado para o povo alemão, que o merecia por direito, dada a superioridade que possui, apesar do sangue "infestado pelo cristianismo" há 2 mil anos ... O junker Kiebold sente entusiasmo pelas ideias do tenente e declara: "Pelos sonhos e as ideias de Partenau poderei mor rer amanhã." Em seguida, para o próprio Partenau: "Você foi a primeira pessoa a quem pude perguntar com tranquilidade se consciência, arrependimento e moral têm algum significa do diante das noções de povo e nação; nós dois balançamos a cabeça juntos, sem compreender." Como eu disse, esse livro já existia em 1 929. Que ante cipação da linguagem e das convicções do Terceiro Reich! Naquela altura, quando anotava as frases mais significativas no diário, eu só podia ter uma leve intuição! Considerei im possível que essas convicções se transformassem em atos, que a ideia de "consciência, arrependimento e moral" pudesse ser eliminada de todo um exército, de todo um povo. Tudo me parecia uma fantasia desenfreada .de um desequilibrado. É provável que esta tenha sido uma impressão geral. Caso contrário, teria sido incompreensível que um texto com esse teor panfletário pudesse ser publicado durante a República. . . 69
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Passei o livro para nossa amiga simpatizante dos soviéti cos. Ela acabara de retornar de férias na casa de campo de pa rentes. Passados alguns dias, nos trouxe o livro sem demons trar espanto: estava familiarizada com o estilo e o conteúdo; o autor devia ter observado com a maior exatidão todos os detalhes ao seu redor. "Georg", ela disse, "o rapaz tão inofensi vo, tão avesso à literatura, há muito tempo escreve dessa ma neira, brinca com essas mesmas ideias." Com que ingenuidade os tipos medíocres se adaptam ao ambiente! Mais tarde recordei corno o rapaz de tão boa índo le, já em Heringsdorf, falara sobre urna "guerra arejada e des contraída'� Àquela época consideramos que se tratasse de um chavão repetido irrefletidamente. Mas os chavões nos domi nam. "Urna língua que poetiza e pensa por ti..." Várias vezes a tia nos falou da evolução do sobrinho. O fato de ter se tornado oficial da aviação fizera dele um grande se nhor. Perdulário inescrupuloso, fazia prevalecer seus direitos de patrão e herói. Ostentava luxo em botas, roupas e vinhos. Encarregado de encomendar as refeições de um regimento, sempre sobrava para ele alguma coisinha, conhecida como propina em ambientes menos sofisticados. Escreveu: "Merece mos boa vida, pois colocamos a nossa em risco todos os dias." Mas não colocava em risco só a sua vida: o rapaz "tão bon zinho" também arriscava a dos outros. Agia com tamanha ir responsabilidade que se tornou um empecilho para os profes sores. Corno chefe de urna esquadrilha, permitira que três de seus homens fizessem um voo de treinamento exaustivo e pe rigoso, em condições meteorológicas desfavoráveis, provocan do a morte deles. Dois aviões caros haviam sido destruídos no acidente, e o caso terminou com um processo contra ele, ago ra já capitão. O tribunal decidiu afastá-lo do Exército. Pouco depois eclodiu a guerra; não sei o que aconteceu com M., mas é provável que tenha sido reintegrado à tropa. 70
CAPIT U LO 4 1 PA R TENA U
A história da literatura fará poucas referências a Partenau. Em contrapartida, um papel mais importante lhe estará reser vado na história do pensamento. Uma das raízes mais profun das da LTI é o rancor e a ambição dos Landsknechten [ solda dos profissionais] decepcionados, que gerações mais jovens veneravam como se tivessem sido heróis trágicos. Trata-se de Landsknechten tipicamente alemães. Antes da Primeira Guerra Mundial circulou em muitas rodas uma pia da sobre a psicologia dos povos: representantes de diversos povos deveriam discutir como tema livre "o elefante': O ame ricano redige o texto "Como abati meu milésimo elefante", en quanto o alemão relata "Sobre o uso dos elefantes na Segunda Guerra Púnica': A LTI está repleta de americanismos e de ou tros componentes estrangeiros. São tantos que na verdade, vez por outra, poderiam até fazer a essência alemã passar desper cebida. Entretanto, ela existe de maneira terrivelmente decisi va. Ninguém pode dizer, em sã consciência, que a LTI foi uma infecção vinda do exterior. O soldado profissional Partenau não é um personagem de ficção, mas a pintura clássica, típica entre muitos colegas e compatriotas, do homem instruído que se sente à vontade não somente no estado-maior alemão, mas também lendo Chamberlain, 32 Nietzsche, a Renaissance de Burkhardt33 etc. etc.
3 2 Houston Stewart Chamberlain ( 1 855- 1 927), inglês naturalizado ale mão, genro de Wagner. Seu livro Os fundamentos do século XIX, escri to em alemão em 1 899, é uma das obras fundadoras da teoria racial nazista. 33 Jakob Burkhardt ( 1 8 1 8 - 1 897), historiador suíço de língua alemã. Es creveu A civilização do Renascimento na Itália ( 1 860}. 71
CAPIT U LO 5
FRAGMENTOS DO DIÁRIO DO PRI MEIRO ANO
Algumas páginas para mostrar como tudo isso, aos poucos, mas de maneira inexorável, começou a permear minha vida. Até aqui, a política, vita publica, o mais das vezes não apare ceu em meu diário. Desde que me tornei catedrático em Dres den passei a recomendar a mim mesmo: "Agora que encon traste a tua vocação, agora que estás inserido na ciência do teu saber, não te deixes desviar do teu caminho, concentra-te! " Mas eis que:
21 de março de 1933. Hoje vai haver Staatsakt [ ato de Estado, cerimônia oficial ] 34 em Potsdam. Como vou trabalhar sem prestar atenção em um fato desses? Sinto-me como o Franz no Gõtz:35 "O mundo, nem sei como, me faz prestar atenção nele." No meu caso, porém, eu sei como. Foi nomeada uma comissão em Leipzig para "nacionalizar" a universidade. Co locaram um texto, em letras grandes, no quadro de avisos da nossa faculdade (o mesmo texto deve ter sido posto nos qua dros de todas as outras universidades alemãs) : "Quando o ju deu escreve em alemão, está mentindo:' Mais adiante, quan do publicarem livros em língua alemã, judeus serão obrigados a declarar: "Tradução do hebraico': Foi anunciado um con gresso de psicólogos aqui em Dresden em abril. O Freiheits kampf3 6 publicou um texto incendiário: "Onde foi parar a ciência de Wilhelm Wundt?37 [ ] Que judaização! [ ... ] Fora •••
34 Alusão à cerimônia de abertura do primeiro Reichstag do Terceiro Reich. 35 Gotz von Berlichingen, drama em cinco atos de Goethe. 36 Jornal do Partido Nazista. 37 Wilhelm Wundt ( 1 832- 1 9 10}, filósofo e psicólogo alemão. 73
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com eles! " Tendo em vista "evitar constrangimentos para al guns participantes': cancelaram o congresso.
27 de março. Surgem novas palavras, palavras antigas ganham um sentido especial, há rearranjos com palavras novas que logo se consolidam como estereótipos. As SA, em linguagem culta, que agora é de rigueur, passam a chamar-se "exército marrom", porque hoje é importante demonstrar entusiasmo, "fica bem': Judeus estrangeiros, especialmente franceses, in gleses e americanos, passam a ser chamados de Weltjuden [ju deus do mundo] . Também se usa com frequência a expressão Internationales ]udentum [judaísmo internacional] . Weltjude [judeu do mundo ] e Weltjudentum [judaísmo mundial] são versões germanizadas, bastante inquietantes. Em qualquer parte do mundo há judeus, mas agora eles só existem fora da Alemanha? Dentro da Alemanha, onde ficam? Os Weltjuden praticam Greuelpropaganda [propaganda que difunde atroci dades] e criam Greuelmiirchen [ atrocidades inventadas] . Se contarmos para alguém o mínimo do que está acontecendo aqui, dia após dia, seremos punidos por "divulgar atrocida des". Nesse ínterim prepara-se o boicote contra lojas de judeus e médicos judeus. O tema dominante no momento é o que se entende por "ariano" e "não ariano". Dava bem para criar um léxico dessa nova linguagem. Em uma loja de brinquedos vi um balão com a suástica. Será que o balão deveria constar do novo léxico? (Logo a seguir, o governo determinou uma "lei de prote ção aos símbolos nacionais" contra esse tipo de brinquedo e contra essas "bobagens". Mas minha ocupação permanente é entender até onde se estendem os limites da LTI.) 10 de abril. Uma pessoa é considerada artfremd [ estranha à espécie] se tiver menos de 25% de "sangue ariano". Caso haja dúvidas, estas serão dirimidas por um "especialista em pes74
CAPIT U LO 5 I FRAG M E N TOS DO D I Á R I O DO P R I M E I R O A N O
quisa racial': Limpieza de la sangre, como na Espanha do sé culo XVI. A única diferença é que naquela época a discussão versava sobre fé, enquanto hoje versa sobre "zoologia + negó cios': Aliás, a Espanha me remete a uma ironia: uma universi dade espanhola convidou ostensivamente o "judeu Einstein'� e ele aceitou. Parece-me uma boutade da história universal.
20 de abril. Uma nova oportunidade para festejos, um novo feriado: o aniversário de Hitler. A palavra Volk [povo ] vem sendo empregada nos discursos e nos textos com a mesma naturalidade com que se coloca uma pitada de sal na comida. Tudo tem de levar uma pitada de "povo": Volksfest [ festa po pular] ; Volksgenosse [concidadão, compatriota, conterrâneo ] ; Volksgemeinschaft [ comunidade do povo ] ; volksnah [ próxi mo do povo, popular] ; volksfremd [ estranho ao povo] ; volks entstammt [provindo do povo] ... É lamentável o que ocorreu no Congresso de Médicos em Wiesbaden! Agradeceram a Hitler várias vezes, com muito entusiasmo, por ser o "salvador da Alemanha", "apesar de" a questão racial ainda não estar bem esclarecida e "apesar de" grandes descobertas terem sido realizadas por cientistas "es trangeiros'� como Wassermann, Ehrlich e Neisser. 38 Em meu círculo mais próximo de Rassegenossen [ concidadãos de raça] , o mais lamentável é que muitas pessoas consideram esse du plo "apesar de" um ato de extrema coragem. Não, o pior é per der tanto tempo com essa loucura da diferença racial entre quem é semita e quem é ariano, deparar-se com esse apavo rante obscurantismo que domina a Alemanha: quem é judeu? Isso me parece uma vitória pessoal do hitlerismo contra mim. Não quero lhes dar o gosto dessa vitória. 38 August von Wassermann ( 1 866- 1 925) e Albert Neisser ( 1 855- 1 9 16), médicos judeus alemães que descobriram o tratamento para a gonor reia. Paul Ehrlich ( 1 845- 1 9 1 5) , também médico judeu alemão, ganha dor do Prêmio Nobel de medicina em 1 908. 75
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1 7 de junho. Afinal, qual será a nacionalidade de Jan Kie pura? 39 Outro dia não permitiram um recital seu em Berlim, pois estaria sendo visto como o "j udeu Kiepura". Depois, quando participou de um filme produzido pelo consórcio Hugenberg,40 ele já era o "famoso tenor do Scala de Milão': Quando se assobiava em Praga a música Heute Nacht oder nie! [ Esta noite ou nunca! ] , ele era o cantor alemão Kiepura. Mui to tempo depois fiquei sabendo que, na verdade, era polonês ... 9 de julho. Há poucas semanas Hugenberg renunciou e seu partido "se dissolveu". Desde então noto que, em vez do ter mo nationale Erhebung [levante nacional] , diz-se agora natio nalsozialistische Revolution [ revolução nacional-socialista] e que Hitler, cada vez mais, vem sendo chamado Volkskanzler [ chanceler do povo ] . É comum ouvir falar em totaler Staat [ Estado total] . 28 de julho. Cerimônia junto ao túmulo dos "matadores de Rathenau':41 Quanto desdém, quanta amoralidade, ou melhor, quanta moralidade do dominador prepotente está nesse subs tantivo que valoriza o crime como categoria profissional! Quanta segurança alguém deve sentir para se expressar desse modo! Será que as pessoas se sentem seguras? Há muita histeria nas ações e nas palavras do governo. Seria preciso estudar al guma vez, de maneira muito especial, a histeria da linguagem. 39 Tenor polonês ( 1 902- 1 966) . 40 Paul Hugenberg ( 1 865- 1 95 1 ), líder do Partido Nacional-Popular Ale mão de 1 928 a 1 933. Magnata da imprensa e do cinema, ajudou Hitler financeiramente e foi nomeado ministro da Economia em 1 933. Em junho desse ano, porém, foi demitido e seu partido se dissolveu. 4 1 Walther Rathenau ( 1 867- 1 922), industrial, economista, político e es critor. Assassinado por oficiais antissemitas pertencentes a uma orga nização de extrema direita.
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Essa ameaça constante da pena de morte! Outro dia proibiram a circulação de todos os meios de transporte das 1 2 :00h às 1 2:40h "para ver se encontravam, por toda a Alemanha, paco tes e material impresso dos inimigos do Estado': Trata-se de um medo meio direto e meio indireto. Quero dizer que esse truque para criar tensão, imitando filmes e romances sensa cionalistas americanos, é um eficaz recurso de propaganda, mas também é fruto da insegurança. Só apela para esse tipo de propaganda quem precisa dela ou, simplesmente, tem medo. Para que servem as matérias jornalísticas que contam re petidamente a vitória na luta pelo emprego na Prússia Orien tal? A repetição parece ser a característica principal dessa linguagem. Ninguém deve notar que tudo é uma réplica da battaglia dei grano [batalha do grão ] dos fascistas. Mas até a pessoa mais tola percebe que nessas regiões o desemprego sempre cai na época da colheita. Essa queda, sazonal na Prús sia Oriental, não quer dizer que o desemprego esteja dimi nuindo de modo geral e constante. O sintoma mais agudo de insegurança é a atitude de Hi tler. O documentário de ontem era um filme sonoro: o Führer pronuncia algumas frases diante de uma grande assembleia. Cerra o punho, contorce o rosto, sua fala lembra mais o urro de um animal, está mais para um acesso de cólera do que para um discurso. "Em 30 de janeiro eles riram de mim [é óbvio que se refere aos judeus] . Mas o riso haverá de deixar o seu rosto .. . ! " Hitler aparenta ser o todo-poderoso, e talvez seja; nesse documentário, porém, a impotência de seu ódio apare ce nos gestos e no timbre da voz. Alguém anunciaria assim, tão reiteradamente, um reinado milenar e a eliminação dos opositores, caso se sentisse seguro quanto à duração desse rei nado e ao extermínio dos opositores? Saí do cinema vislum brando alguma esperança.
22 de agosto. As mais diversas camadas sociais emitem sinais de que se cansam de Hitler. O professor iniciante Fl., um rapaz 77
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esforçado, nada brilhante, me aborda na rua em trajes civis: "O senhor não estranhe se me vir com o uniforme dos Stahl helm 42 [capacetes de aço] e com a braçadeira com a suástica. Sou obrigado, mas o fato de estar sendo coagido não vai mu dar nada entre nós. Stahlhelm continuarão sendo Stahlhelm, sempre um pouco melhores do que as SA. É de nós, naciona listas alemães, que virá a solução! " A sra. Krappmann, que está substituindo a nossa empregada, casada com um funcionário dos Correios, me disse: "Senhor professor, em 1° de outubro a Associação dos Funcionários dos Correios do setor A 19 será gleichgeschaltet [equiparada] . Mas os nazistas não terão acesso aos bens da Associação; será oferecida uma mesa de frios aos cavalheiros, seguida de uma mesa de café com bolos para as senhoras." Annemarie, usando como sempre um linguajar mé dico despojado, explica sem rodeios por que um colega usava a suástica em uma braçadeira: "O que podemos fazer? É como se fosse a flor que as senhoras usam na lapela:'43 E Kuske, o verdureiro, refere-se à mais nova oração noturna: "Lieber Gott, mach mich stumm, dafl ich nicht nach Hohnstein kumm" [Meu Deus, me faça ficar mudo, para que eu nunca seja levado para Hohnstein] ... 44 Será que estou me iludindo quando sinto espe rança ao ouvir tudo isso? Esse desvario absoluto não pode per durar! Quando a embriaguez do povo vai passar? Quando co meçará a ressaca do dia seguinte?
25 de agosto. Para que servem os sintomas do cansaço? Todos estão apavorados. Tinha sido combinado com Quelle & Meyer que meu ensaio "Uma visão alemã da França" seria publicado 42 Organização dos veteranos da Primeira Guerra Mundial. A partir de 1 933 seus membros foram incorporados às SS. 43 Jogo de palavras entre Armbinde [braçadeira] , Cameliabinde [camélia na lapela] e Damenbinde [ absorvente higiênico ] . 4 4 Nome d e u m dos campos d e concentração. 78
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inicialmente na Revista Mensal de Filologia Moderna., dirigida pelo professor Hubner, pedagogo trabalhador e moderado. Há algumas semanas ele me escreveu, muito aflito, pergun tando se eu não concordaria em aguardar pelo menos até que novas orientações sejam definidas, pois Betriebszellen [células de empresa] (palavra estranha, que liga o orgânico ao mecâ nico - ah! essa nova língua!) estavam ocupando a editora; ele gostaria de manter essa revista especializada, mas os dirigen tes políticos não davam valor a ela ... Em vista disso, procurei a editora Diesterweg, para a qual o meu trabalho, redigido com objetividade e bem fundamentado, devia ser um ótimo presente. Foi recusado de pronto; disseram que o texto era "absolutamente retrógrado" e "não incluía pontos de vista vol kisch [ raciais] ':45 As possibilidades de publicação estavam blo queadas - quando, então, vão "calar meu bico"? No verão, o fato de ter sido Frontsoldat [ soldado do front] me protegeu, mas por quanto tempo ainda terei esse salvo-conduto?
28 de agosto. Não posso perder a coragem de jeito nenhum; o povo não vai ser conivente por muito tempo. Comenta-se que Hitler se apoiou especialmente na pequena burguesia, o que é verdade. Participamos de uma "excursão sem destino': Dois ônibus lotados, cerca de oitenta pessoas do que se poderia chamar de pequena burguesia, muito entrosadas entre si, grupo homo gêneo que não se detém em pensamentos sobre a classe ope rária nem em reflexões sobre a liberdade. Houve uma parada em Lübau para um café e para assistirmos a um número de cabaré preparado pelos organizadores, como é comum nesse tipo de passeio. O apresentador começa com uma patética 45 O conceito nazista volkisch baseava-se na oposição entre "arianos" e "semitas". Embora formado pelo radical Volk [povo ] , tinha, pois, um sentido claramente racial. 79
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poesia para o Führer, salvador da Alemanha, para a nova co munidade do povo etc. etc. Repete todo o rosário nazista. As pessoas ouvem quietas e apáticas, e no final, pela forma de aplaudir, percebe-se que não houve empatia. Em seguida o homem conta uma piada que se passava em um cabeleireiro. Uma senhora judia queria fazer permanente. "Lamento, mi nha senhora, mas não estou autorizado à fazê-lo." "O senhor não tem permissão?" "Impossível! Quando o boicote contra os judeus foi decretado, o Führer afirmou solenemente que não se pode fazer permanente nos cabelos de nenhum judeu na Alemanha. A ordem ainda está em vigor. A despeito de to das as atrocidades que se contam, não vamos tocar em um fio de cabelo de um judeu." Risos e aplausos durante muitos mi nutos. Não teria eu o direito de tirar conclusões? A piada e sua boa acolhida não seriam temas importantes para uma pesqui sa de cunho sociológico e político?
19 de setembro. No cinema, cenas da convenção do partido em Nuremberg. Hitler abençoa os novos estandartes das SA, desfraldando a Blutfahne [bandeira de sangue] de 1 923. Quan do aparecem as bandeiras ouve-se o estrondo de um canhão. Se isso não é direção que mistura teatro e religião! Mesmo dei xando de lado o exibicionismo teatral, o nome "bandeira de sangue'� por si só, já é uma pândega. "Honrados irmãos, ve jam: nós somos os mártires do sangue!" Com esta expressão, o nacional-socialismo passa da esfera política para a religiosa. A palavra mexe com as pessoas, que continuam entregues ao fervor religioso. Não se ouve qualquer barulho, nem espirro nem tosse, não se ouve o ruido de papel de embrulho sendo amassado. O congresso do partido é um assunto cultural, e o nacional-socialismo é uma religião - e eu estava tentando me convencer de que suas raízes são fracas e superficiais? 10 de outubro. O colega Robert Wilbrandt veio nos visitar. Per guntou se poderíamos receber um hóspede que o Estado con80
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sidera perigoso. Ele fora demitido de repente. "Politicamente não confiável': eis a fórmula para o extermínio. Em Marburg recebera solidariedade do pacifista Gumbel,46 e o caso fora relembrado agora. Além disso, escrevera um livrinho sobre Marx. Quer partir para o sul da Alemanha, esconder-se em al gum lugarejo isolado para poder trabalhar... Ah, se eu tam bém pudesse fazer isso! A tirania e a insegurança crescem dia a dia. Demissões dos colegas cientistas do círculo judaico. Olschki em Heidelberg, Friedmann em Leipzig, Spitzer em Marburg. Lerch, 1 00% ariano, em Münster, porque "vive em concubinato com uma judia".47 Hatzfeld,48 o louro de olhos azuis, católico fervoroso, perguntou-me, receoso, se eu ainda ocupo o meu cargo. Respondi perguntando por que ele estava preocupado, já que é 1 00% não semita. Ele me enviou a se parata de um estudo em que, sob o seu nome, alguém escreve ra: "Cordiais Saudações 25%". O jargão do Terceiro Reich transita com tanta facilidade pelas revistas especializadas de filologia, assim como pela revista dos professores universi tários, que cada página provoca ânsia de vômito: "A vassou ra de ferro de Hitler", "Ciência em base nacional-socialista': "O espírito judaico", "Os novembristas': denominação pejora tiva dada pela direita aos revolucionários de 1 9 1 8.49 -
46 Emil Julius Gumbel ( 1 89 1 - 1 966), professor alemão que publicou vá rias obras denunciando assassinatos políticos perpetrados pela direita radical ainda no período da República de Weimar. 47 Leonardo Olschki, filólogo alemão. Wilhelm Friedmann, latinista nas cido em Viena, que se suicidou no exílio em 1 942. Leo Spitzer, latinista alemão que emigrou em 1 933. Eugen Lerch, latinista alemão que na década de 1 920 publicou, com Victor Klemperer, Les Annales de phi lologie idéaliste. 48 Helmut Hatzfeld, latinista alemão que em 1 925 publicou, com Victor Klemperer, Die romanischen Literaturen von der Renaissance bis zur Gegenwart [ Literaturas latinas do Renascimento aos nossos dias ] . 49 Referência à fracassada insurreição d a Liga Espartaquista, d e esquerda, liderada por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. 81
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23 de outubro. Houve um desconto no meu salário, que cha maram de "auxílio voluntário de inverno"; não me consulta ram para saber se eu concordava. Supõe-se que seja um novo imposto, do qual não podemos nos eximir, como os demais. O termo "voluntário" significa que se pode pagar um valor maior do que o estipulado, e mesmo esse "poder pagar mais", para muitos, já é uma imposição disfarçada. Mas, abstraindo se esse adjetivo mentiroso, não seria o próprio substantivo uma forma de dissimular a coerção, uma solicitação, um ape lo ao sentimento? Ajuda em vez de imposto: isso faz parte da Volksgemeinschaft [ comunidade do povo ] . O jargão do Tercei ro Reich apela ao sentimentalismo, o que é sempre suspeito. 29 de outubro. De uma hora para outra, uma grande confusão. Foi decretada uma mudança no rumo da vida universitária: às terças à tarde não haverá aulas, pois nesse horário todos os es tudantes praticarão Wehrsport [ esportes militares] . Logo me deparo com o mesmo nome em uma caixa de cigarros da mar ca Wehrsport. Tudo meio encoberto, meio desvelado. O serviço militar obrigatório está proibido pelo Tratado de Versalhes, mas o esporte está autorizado. Oficialmente não fazemos nada proibido, só um "pouquinho". Fazemos assim uma pequena ameaça, estamos sempre com os punhos cerrados, mesmo que estejam escondidos nos bolsos. Será que algum dia descobrirei uma palavra verdadeiramente honesta nesse regime? Ontem à noite Gusti W. esteve aqui em casa, na volta de Turõ, onde passou quatro meses com a irmã Maria Strind berg50 na casa de Karin Michaelis.51 Parece que lá se formou um pequeno grupo de emigrantes comunistas. Gusti nos rela tou coisas terríveis. Tidas como "atrocidades inventadas", só podem ser sussurradas em segredo no ouvido do outro. Falou 50 Maria Lazar-Strindberg, escritora austríaca. 5 1 Escritora dinamarquesa ( 1 872 - 1 950) que acolheu em sua casa muitos emigrantes alemães. 82
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especialmente sobre a desgraça que atingiu Erich Mühsam,52 agora sexagenário, enviado a um campo de concentração par ticularmente perverso. Poderíamos inverter o provérbio e di zer: o pior é amigo do ruim. Estou começando a considerar o governo Mussolini quase humano e europeu. Pergunto-me se "emigrantes" e "campos de concentração" são palavras que caberiam em um dicionário da linguagem de Hitler. Emigrantes: designação internacional aos fugitivos da grande Revolução Francesa. Brandes53 denominou um dos tomos de sua História da literatura europeia "Literatura dos Emigrantes': Depois houve os emigrantes da Revolução Russa. E agora o termo refere-se a um grupo de emigrantes alemães que está em um Lager [ campo de concentração] na própria Alemanha! Emigrantenmentalitiit [ mentalidade de emigrante] me faz indagar se no futuro essa expressão carregará consigo o mau cheiro da canalhice do Terceiro Reich. Campo de concen tração, com certeza, há de ter. Ouvi essa expressão quando era menino. Naquele tempo, ela remetia ao exótico-colonial, não tendo nada a ver com a Alemanha. Durante a Guerra dos Bôe res falava-se muito dos compounds, ou campos de concen tração, pois os ingleses colocavam neles os prisioneiros bôeres. A palavra desapareceu do linguajar alemão para então ressur gir de repente, descrevendo uma instituição alemã que se vol ta contra alemães em tempos de paz, em solo europeu. Não é uma medida temporária em período de guerra, contra inimi gos. Parece-me que no futuro, quando se falar em "campo de concentração", a referência será, exclusivamente, à Alemanha de Hitler, somente à Alemanha de Hitler... Por que me interesso cada vez mais pela filologia dessa tra gédia? Será falta de sensibilidade ou pedantismo canhestro de 52 Escritor alemão ( 1 878- 1 934) assassinado no campo de concentração de Oranienburg. 53 Georg Brandes ( 1 842- 1 927), dinamarquês, importante historiador da literatura. 83
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professor com mania de corrigir tudo? O que me diz a cons ciência? Não. É uma questão de autopreservação.
9 de novembro. Hoje, meu seminário sobre Corneille só atraiu dois participantes: Lore Isakowitz, com a identificação amare la dos judeus, e o estudante Hirschowicz, não ariano, filho de pai turco, com a identificação azul dos apátridas; os estudan tes alemães "autênticos" têm identificação marrom. (Nova mente a questão da delimitação: será que isso mostra a lingua gem do Terceiro Reich?) Por que o número de meus ouvintes diminui de maneira tão drástica? O francês, como matéria optativa, deixou de ser apreciado pelos estudantes; consta co mo antipatriótico, ainda mais literatura francesa ministrada por um judeu! É necessário até mesmo um pouco de coragem para assistir às minhas aulas. Além disso, os alunos têm tido baixa presença em todos os cursos: estão muito ocupados com os "esportes militares': além de uma dezena de outras ativida des. Justamente agora, nesses dias, todos estão sendo convoca dos para ajudar na propaganda eleitoral, para participar de desfiles e reuniões etc. etc. Eis a maior festa carnavalesca organizada por Goebbels que já presenciei. Nem consigo imaginar que isso possa vir a se in tensificar. Refiro-me ao plebiscito para a política do Führer e da Einheitsliste [ lista única] para o Reichstag [parlamento] . Tudo me parece muito agressivo e atrapalhado para ser imagi nável. Plebiscito: para quem conhece (e quem não conhece há de procurar explicação para saber do que se trata) , plebiscito é uma palavra que remete a Napoleão III, e Hitler faria muito bem se não se aproximasse dele. E "lista única" demonstra claramente que o Reichstag, como parlamento, está com os dias contados. A propaganda, de modo geral, é um verdadeiro Barnum.54 As pessoas usam um "sim" na lapela dos mantôs. 54 Primeiro desfile de carros alegóricos em Nova York, cujo nome vem do pioneiro do circo, Phineas Taylor Bamum ( 1 8 1 0- 1 89 1 ) . 84
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Quem não compra esses broches levànta a suspeita dos vende dores. Tanto abuso contra o povo deveria surtir um efeito con trário do pretendido ... Até aqui, na verdade, tenho me enganado sempre. Avalio como um intelectual, enquanto o senhor Goebbels tem a seu favor, de um lado, uma massa entorpecida e, de outro, pessoas cultas amedrontadas. Sobretudo porque ninguém acredita que o sigilo eleitoral seja preservado. Ele já conseguiu uma grande vitória contra os judeus. No domingo aconteceu uma cena horrorosa aqui em casa com o casal K., que tivemos que convidar para um café. Fomos obrigados, pois o esnobismo da sra. K. nos dava nos nervos, a ambos. Ela não tem o menor senso crítico e repete tudo que ouve; mas o marido, apesar de se achar o sábio Nathan, 55 parecia-me razoavelmente consciencioso. Entretanto, no do mingo ele vem e começa a dizer que votaria "sim" no plebis cito, com "dor no coração': assim como a Associação Central dos Cidadãos Judeus. Sua mulher acrescenta que o sistema de Weimar se revelou impossível, de modo que era necessário "manter o senso de realismo': Perdi o controle. Esmurrei a mesa com tanta força que as xícaras tilintaram. Interpelei o homem, diversas vezes, se não considerava criminosa a polí tica desse governo. Mantendo a dignidade, ele disse que eu não estava autorizado a tratar dessa questão e ainda pergun tou, com sarcasmo, por que eu permanecia em meu cargo. Respondi que não obtivera o cargo no governo Hitler e tam pouco servia ao governo. O que mais desejava era sobreviver a ele. A sra. K. ainda reforçou que o Führer - ela disse efeti vamente "o Führer" - era uma personalidade genial, que era impossível não reconhecer sua enorme eficiência ... Hoje eu quase gostaria de me desculpar com o casal K. pela veemên55 Personagem principal de Nathan der Weise [ Natan, o sábio] , de Lessing. 85
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eia naquela tarde. De lá para cá, ouvi opiniões semelhantes vindas de todo tipo de judeus do nosso meio, até dos mais intelectualizados, pessoas ponderadas, que sabem pensar de maneira independente ... Vivemos sob ofuscação.
10 de novembro, à noite. Ouvi o ponto alto da propaganda hoje à tarde pelo rádio de Dember (nosso físico judeu, já de mitido, que realiza tratativas para obter um lugar de professor na Turquia). O próprio Goebbels conduziu a cerimônia com muita mestria. Primeiro, o barulho das sirenes soava como um uivo por toda a Alemanha; depois o minuto de silêncio, também em todo o país, coisas aprendidas da América e tam bém nas comemorações de paz no final da Guerra Mundial. 56 Em seguida, sem grande originalidade ( cf. a Itália) mas reali zado com perfeição, vinha tudo que era necessário para criar uma moldura para o discurso de Hitler. Em uma fábrica Sie mens, durante minutos, barulho ensurdecedor da empresa, marteladas, ruídos em geral, alvoroço retumbante, assobios e rangidos. Ouve-se então a sirene, o canto e o silenciar grada tivo das rodas, que vão parando. Emergindo do silêncio, a voz grave de Goebbels anuncia a mensagem. Somente então sur ge Hitler, durante três quartos de hora. Foi a primeira vez que ouvi um discurso completo dele; minha opinião, no essencial, não mudou. Na maior parte a voz soava muito agitada, es ganiçada, às vezes rouca. Só que dessa vez muitas passagens foram pronunciadas em tom de lamúria, como se ele fosse o pregador de uma seita. Prega a paz, elogia a paz, quer o "sim" da Alemanha, não por ambição pessoal, mas para poder pre servar a paz, repelindo os ataques de uma cambada interna cional de negocistas desenraizados que, em nome dos lucros, de maneira inescrupulosa, atiçam povos uns contra os outros, milhões de pessoas ... 56 Trata-se d a Primeira Guerra Mundial. 86
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Tudo isso, inclusive o estudado tom de voz, as interrupções calculadas para enfatizar ( "os judeus ! " ) , tudo eu já conhecia de longa data. Mas, a despeito do caráter repisado e da hipo crisia evidente, que até mesmo um surdo perceberia, o ritual tinha uma eficácia renovada por causa da originalidade de detalhes bem concebidos, que foi o que me marcou mais e me pareceu decisivo. Todos os meios de comunicação tinham anunciado: "Cerimônia das 1 3 às 14 horas. Na décima ter ceira hora Hitler comparecerá para encontrar os trabalhado res:' Qualquer um compreende esse modelo: é a linguagem do Evangelho. O Senhor, o Salvador vem para os pobres e para os que perderam o rumo. A esperteza aparece até mesmo ao se fixar a hora - treze horas, não: décima terceira hora! Soa como muito tarde, mas ele realizará o milagre; para ele não existe tarde demais. "Bandeira de sangue na convenção do partido" - é a mesma linguagem. Dessa vez, porém, o aca nhamento da cerimônia religiosa fica para trás, despe-se a ve lha roupagem. O imaginário cristão é transposto para o pre sente. Adolf Hitler, o salvador, aparece para os trabalhadores na Siemensstadt [cidade de Siemens] .
14 de novembro. Por que critico K. S. e os outros? Ontem o go verno anunciou a vitória: 93% para Hitler, 40 milhões de vo tos para o "sim", 2 milhões para o "não", 39 milhões para a fa mosa lista única do Reichstag, 3 milhões "inválidos': Fiquei perplexo, como todos. Eu poderia dizer para mim mesmo que o resultado fora forçado, que inexistia controle, que houve um misto de fraude e chantagem. Tudo isso devia estar por trás da notícia proveniente de Londres, onde se estranhava a vitó ria do "sim" até mesmo nos campos de concentração. Ainda assim, esse triunfo de Hitler me deixa pasmo até hoje. Não consigo parar de pensar em uma travessia que fizemos há 25 anos de Bornholm a Copenhague. Naquela noite, um temporal e o enjoo dominaram o ambiente no barco. Na ma87
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nhã seguinte estávamos sentados no tombadilho, tomando sol, na expectativa do café. Aí, na ponta de um longo banco, uma menininha se levanta, se debruça no convés e vomita. Passado um segundo, a mãe, que estava sentada ao lado, tam bém se levanta e vomita. Logo a seguir o homem que estava sentado ao lado dela faz o mesmo. Depois um rapaz, e de pois ... um movimento contínuo e rápido prosseguiu ao longo de todo o banco. Ninguém conseguiu evitar o vômito. Em nossa extremidade do banco ainda estávamos a salvo. Obser vávamos com interesse o que estava acontecendo, achávamos engraçado, havia quem fizesse gracinhas, até que o vômito se aproximou, o riso silenciou e a corrida ao convés também co meçou do nosso lado. Eu analisava atentamente o que ocorria à minha volta e dentro de mim. Dizia a mim mesmo: existe uma observação objetiva, que conheço bem; tenho uma von tade firme e aguardo ansioso o café da manhã - nesse mo mento chega a minha vez na fileira, e a ânsia me pega da mes ma forma que aos demais. Reuni aqui o que anotei em meu diário, nos primeiros me ses do nazismo, sobre a nova condição e a nova linguagem. Naquele tempo, o estado das coisas era incomparavelmente melhor do que o que veio depois. Eu ainda ocupava meu car go, vivia em minha própria casa, era um observador ainda não molestado. Por outro lado, era uma pessoa pouco atuan te, acreditava que vivia em um Estado de Direito e já conside rava como o mais terrível dos infernos o que estava aconte cendo. Mais tarde tudo me pareceu como se aquele tempo não passasse do preâmbulo, como o limbo de Dante. Porém, por mais grave que fosse a situação, tudo o que veio reforçar as convicções, as ações e a linguagem nazistas, tudo já podia ser entrevisto naqueles meses iniciais.
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AS TRtS
PRI MEIRAS PALAVRAS NAZISTAS
A primeiríssima palavra especificamente nazista - não pela forma, mas pela alteração do significado - que me atingiu como um golpe está associada à amargura da perda do pri meiro amigo por culpa do Terceiro Reich. Nós e T. chegamos à Universidade Técnica de Dresden na mesma época, treze anos antes.57 Eu como professor e ele como aluno princi piante, quase uma criança prodígio. Crianças prodígio cau sam decepções com frequência. Ele, entretanto, dava a impres são de ter passado incólume por essa idade difícil. Oriundo da pequena burguesia e de família muito pobre, foi descoberto durante a guerra de forma um tanto novelesca. Um famoso professor estrangeiro pediu que lhe demonstrassem o fun cionamento de uma máquina nova na bancada de testes de uma fábrica em Leipzig. Por causa da quantidade de homens convocados para o serviço militar, a fábrica contava com pou cos engenheiros. O assistente de montagem, que estava sozi nho e conhecia a máquina precariamente, deixou o professor irritado. Porém, meio escondido sob a máquina estava um aprendiz sujo de graxa, dotado de conhecimentos suficientes para dar as informações desejadas. Estava a par do assunto graças ao seu vasto interesse por tudo, mesmo por coisas que não lhe diziam respeito. Estudava sozinho à noite. Em segui da, o professor interveio em seu favor, e esse acontecimento fez com que sua extraordinária energia crescesse ainda mais. Pouco tempo depois, no mesmo dia, esse aluno do ensino fundamental passou no Abitur 58 e no exame para oficial de 57 Ou seja, em 1 920. 58 Exame final do colegial na Alemanha, que equivale ao ingresso no en sino superior. 89
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serralheria. Logo a seguir teve a oportunidade de ganhar a vida em uma profissão técnica sem abrir mão dos estudos. Seus dotes técnico-matemáticos se comprovaram rapidamen te. Assumiu um cargo de alto nível ainda bem jovem, antes de ter obtido o diploma oficial de engenheiro. Seu extraordinário empenho em aprender e sua capacida de de raciocínio o aproximaram de mim, pouco versado em questões técnico-matemáticas. Instalou-se em nossa casa, e de inquilino passou a filho adotivo. Um pouco por meiguice, um pouco a sério, chamava-nos de pai e mãe. Participávamos de sua formação. Ele se casou cedo, e a relação afetuosa que reinava entre nós quatro manteve-se intacta. Nunca imagina mos que alguma divergência política pudesse vir a perturbar o nosso relacionamento. Eis que o nacional-socialismo irrompe na Saxônia e eu co meço a perceber em T. os primeiros sintomas de uma mudan ça de mentalidade. Pergunto-lhe como pode nutrir simpatia por aquela gente. - No fundo, a intenção deles não difere do pensamento dos socialistas. Eles também são um partido de trabalhadores. - Você não percebe que eles querem a guerra? - No máximo, uma guerra de libertação que será para o bem de todos, inclusive dos trabalhadores e das pessoas hu mildes ... Comecei a duvidar de sua capacidade de raciocínio e de seu poder de discernimento. Tentei chamar sua atenção de outra forma, para que ele pudesse refletir: - Você morou em minha casa durante anos, conhece meu modo de pensar. Muitas vezes, disse que aprendeu muito co nosco e que seus valores morais se assemelham aos nossos. Depois de tudo isso, como você pode estar de acordo com um partido que me rejeita por causa da minha origem, me impe de de ser alemão e nega até mesmo minha condição humana? - Você leva isso muito a sério, Baba. [No dialeto saxão, Baba, em vez de papai, servia para tornar a conversa mais 90
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amena e mais íntima. ] Esse barulho em torno dos judeus é só propaganda. Você vai ver, quando Hitler assumir o comando ele vai ter mais a fazer do que importunar os judeus ... A agitação nazista penetrara profundamente - deixara embaralhadas até mesmo as ideias do nosso filho adotivo. Al gum tempo depois eu lhe perguntei sobre um rapaz que co nhecia. Ele deu de ombros: - Está na AEG, você sabe o que isso significa, não é? Não? Alies Echte Germanen [Todos Germanos Autênticos] . Ele sorriu e estranhou que eu não acompanhasse o sorriso. Depois de um tempo sem vê-lo, ele telefona e nos convida para jantar em sua casa, logo em seguida à posse de Hitler. - Como vão as coisas na fábrica? - perguntei. - Tudo bem! Ontem foi um dia memorável. Havia uns comunistas descarados em Okrilla, de modo que promove mos uma Strafexpedition [ expedição punitiva] . - O que vocês fizeram? - Fizemos com que passassem por um corredor, onde os surrávamos com cassetetes de borracha. Além de um pouco de óleo de rícino ... Nada de muito sangue, mas alcançamos o nosso objetivo. Tudo não passou de uma Strafexpedition. Strafexpedition foi a primeira palavra que anotei como es pecificamente nazista. Foi a primeira da minha LTI e a derra deira que ouvi da boca de T. Desliguei o telefone sem sequer recusar o convite. Strafexpedition condensava tudo que podia encarnar arro gância, violência e desprezo contra pessoas diferentes. Soava tão colonial que era possível visualizar uma aldeia africana e ouvir o estalido do chicote de couro de hipopótamo. Mais tar de, felizmente não para sempre, essa amarga recordação me fazia lembrar com certo consolo a expressão "um pouco de óleo de rícino". Para mim, a Strafexpedition imitava as práti cas fascistas dos italianos, pois na época eu achava que o na zismo como um todo não passava de mera infecção italiana. Mas o consolo se desvanecia diante da verdade que se desve91
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lava como a neblina da manhã se dissipa no ar: o pecado ori ginal e mortal do nazismo era alemão, não italiano. A recordação dessa palavra nazista (ou fascista), Strafexpe dition, teria esmaecido, como aconteceu para milhares de ou tras pessoas, se não estivesse associada a esse acontecimento pessoal, pois a expressão só circulou nos primeiros anos do nazismo. Quando o regime se firmou, ela logo se tornou ob soleta e caiu em desuso, da mesma forma que a bomba su plantou a flecha ... As "expedições punitivas'', semiprivadas e realizadas aos domingos por amadores, foram substituídas pela ação da polícia oficial. O óleo de rícino foi substituído pelo campo de concentração. E, seis anos após o início do Terceiro Reich, as "expedições punitivas" dentro da Alemanha foram substituídas pelo furor da Segunda Guerra Mundial, concebida por seus iniciadores como uma espécie de "expe dição punitiva" contra povos menosprezados. Palavras desa parecem assim. Em contrapartida, outras, que designavam o polo oposto Du bist nichts, und ich bin alies! [Tu não és nada e eu sou tudo ! ] -, ficam gravadas na memória sem a necessidade de lembrança pessoal. Elas permanecerão até o fim e serão mencionadas em todos os compêndios que forem escritos sobre a história da LTI. A anotação linguística seguinte em meu diário é Staatsakt [ ato de Estado, cerimônia oficial] . Goebbels dá início às "ceri mônias oficiais". A primeira de uma série inumerável, na Igre ja da Guarnição de Potsdam, foi em 2 1 de março de 1 933.59 (É intrigante a falta de senso de ridículo e de constrangimento dos nazistas; seria muito bom poder acreditar na sua inocên cia subjetiva!) Usaram o som do carrilhão dos sinos da guar nição - "Seja sempre fiel e leal!" - como vinheta para a Rá-
59 Foi a cerimônia de instalação do primeiro parlamento do Terceiro Reich. Em 1 8 7 1 , nesse mesmo dia, Bismarck havia instalado o primei ro parlamento do Segundo Reich. 92
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dio Berlim e escolheram a Krolloper, uma sala de teatro, como local para as reuniões de um Parlamento fictício, mera farsa. É este o lugar apropriado na LTI para se empregar o verbo aufziehen [dar corda, atiçar, mecanizar, estimular em excesso, preparar] : a trama da "cerimônia oficial" era aufgezogen [pre parada] seguindo sempre o mesmo modelo, que existia em duas versões: com caixão no centro e sem caixão. Mantinha-se a mesma suntuosidade das bandeiras, das paradas militares, das guirlandas, das fanfarras e dos coros, sempre inspirada no modelo de Mussolini. Durante a guerra, cada vez mais, o cai xão passou a ser colocado no centro. Esse meio de propaganda já perdera a força de atração e a aura, mas recuperava a eficá cia sempre que pairava no ar um cheiro de escândalo. Quando um general morria, em batalha ou em acidente, seu funeral se guia todas as pompas, enquanto as pessoas sussurravam que ele caíra em desgraça junto ao Führer e fora eliminado. O fato de surgirem boatos desse tipo, verdadeiros ou não, testemunha quanta verdade e quanta mentira se atribuía à LTI. A maior de todas, pelo menos nessa fase, foi a encenação do funeral do VI Exército e de seu marechal.60 A ideia era tirar vantagem da derrota para incentivar o heroísmo futuro, atribuindo uma re sistência fiel, até a morte, àqueles que se tinham deixado fazer prisioneiros para não serem trucidados em nome de uma cau sa absurda e criminosa. Plivier61 consegue ridicularizar essas encenações das "cerimônias oficiais" no livro Stalingrad, ob tendo um efeito satírico cheio de sensibilidade. 60 Trata-se do marechal Friedrich von Paulus, comandante do VI Exérci to, que, cercado em Stalingrado, capitulou em 1 943, quando ainda contava com 200 mil homens. Depois da capitulação, Goebbels profe riu um discurso fúnebre, como se von Paulus tivesse morrido. O ma rechal ficou preso na Rússia até 1 953, quando foi libertado. 61 Theodor Plivier ( 1 897- 1 955), um dos escritores alemães que emigra ram durante o período nazista e se fixaram na Alemanha Oriental no após-guerra. Stalingrad foi publicado em 1 945. 93
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Sob o ponto de vista meramente linguístico, a expressão Staatsakt possui dois significados. De um lado, indica e confir ma um dado verídico: as honrarias conferidas pelo nacional socialismo são homenagens do Estado, que abarcam a máxi ma do Absolutismo - L'État c'est moi. 62 Mas essa afirmação embute a pretensão de que a cerimônia pertence à história na cional e deve ser preservada viva na memória do povo. O sig nificado "histórico" do Staatsakt é especialmente solene. Aqui aparece a palavra que o nacional-socialismo usou do início ao fim da maneira mais pródiga. Ele se considerava tão importante, sentia-se tão seguro da perenidade de suas insti tuições - ou melhor, desejava mostrar aos outros que estava tão seguro - que qualquer insignificância que servisse aos propósitos do regime passava a ser um ato "histórico': Qual quer discurso que o Führer proferisse tornava-se "histórico': mesmo que ele repetisse cem vezes a mesma coisa. Qualquer encontro do Führer com o Duce era "histórico': mesmo que não mudasse nada. Eram "históricas" a vitória de um automó vel de corrida e a inauguração de uma estrada, de cada estrada e de cada trecho de cada estrada. "Histórica" era a festa de ação de graças por cada colheita, era cada reunião do Parlamento ou do partido. "Histórico" era cada feriado, fosse qual fosse o motivo. E, como o Terceiro Reich só conhecia feriados - pois ele sofria de uma letal falta de um cotidiano normal, da mes ma forma que o corpo pode ficar mortalmente doente pelo pouco uso de sal -, ele considerava "históricos" todos os dias. Em quantas manchetes de jornal, editoriais e discursos essa palavra foi aviltada! Será preciso poupá-la, para que se resta beleça do abuso de que foi vítima. Desnecessário advertir con tra o emprego frequente do termo Staatsakt, já que não temos mais Estado [ Staat] . 62
"O Estado sou eu", frase atribuída a Luís XIV, que a teria pronunciado em 1 3 de abril de 1 655 como resposta a um pedido de que o Parla mento pudesse homologar as decisões do rei. 94
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AUFZIEHEN 63
Eu dou corda [ aufziehen] em um relógio, puxo [ aufziehen] a corrente de um tear, aciono [ aufziehen] a manivela de um brinquedo: em cada caso considera-se uma atividade mecâni ca exercida em relação a um objeto inanimado que não opõe resistência. Partindo do brinquedo, de "dar corda" no pião ou no bi chinho que abana a cabeça e anda, chega-se à expressão me tafórica: dou corda em alguém, atiço uma pessoa, estimulo alguém a um papel grotesco. Ou seja, caçoo de alguém, co loco-o em uma situação ridícula, faço dele um personagem risível, uma marionete. Quando Bergson explica o sentido cômico de pessoas que passam a se comportar como autô matos, trata-se de um processo que se confirma pelo uso da linguagem. Mesmo nesse sentido inofensivo, aufziehen é pejorativo. (Para o filólogo, qualquer significado que piora ou ridiculari za o sentido de um termo é pejorativo, como é o caso do im perador Augusto, o Sublime, que se torna Augusto, o Palhaço. ) Nos tempos modernos, aufziehen adquiriu u m sentido es pecial. Pode louvar ou achincalhar. Em publicidade, diz-se que um cartaz é gross aufgezogen [ exagerado ] ; reconhece-se assim a sua capacidade comercial e publicitária, mas ao mes mo tempo se alude à sua forma descomedida, enganosa, que não corresponde ao produto oferecido. Quando um crítico teatral escrevia que um autor tinha gross aufgezogen nessa ou naquela cena, o sentido do verbo era claramente pejorativo; 63 Abrir puxando, atiçar, dar corda, educar, elevar-se, mecanizar, montar, provocar, zombar. 95
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queria dizer que ele empregara meios para seduzir o público, mas não era um poeta honesto. Bem no início do Terceiro Reich pareceu que a LTI que ria assumir essa crítica metafórica. Os jornais nazistas valo rizaram o gesto patriótico dos estudantes por terem agido de maneira correta ao destruírem o instituto wissenschaftlich aufgezogen [pretensamente científico) para pesquisas sexuais do professor Magnus Hirschfeld.64 Como Hirschfeld era ju deu, era óbvio que seu instituto jamais poderia ser considera do como verdadeiramente científico, mas só "pretensamente científico". Poucos dias depois, no entanto, ficou claro que esse verbo, per se, não tinha mais nada de pejorativo. Em 30 de junho de 1 933, Goebbels declarou na Escola Superior de Política que o Partido Nazista havia aufgezogen [ montado J "uma organiza ção gigantesca para milhões de pessoas, em que tudo estava incluído, desde teatro e jogos populares, até turismo esporti vo, caminhadas e canto; ela seria sustentada pelo Estado com todos os meios necessários". Aufziehen passara a ser um verbo respeitado. Quando o governo, de maneira triunfal, prestou contas da propaganda que antecedeu a votação sobre a região do Saar,65 falou de uma gross aufgezogene Aktion [ação con duzida em grande estilo J . Ninguém mais vê nessa expressão qualquer referência a propaganda. Em 1 935 aparece na Ale manha um livro traduzido do inglês, Autobiografia de Seiji 64 Magnus Hirschfeld ( 1 868- 1 935), diretor do Instituto de Sexologia de Berlim, precursor da liberdade de opção sexual. Pesquisou a opção se xual entre operários e militares alemães, apresentando a estatística de 1 ,5% a 2% de homossexuais declarados no início do século XX. De fendeu a ideia de que a pessoa já nasce homossexual. 65 Trata-se da região que, na França, é conhecida como Sarre. Foi dis putada historicamente entre a Alemanha e a França, passando a ser governada pela Liga das Nações depois da Primeira Guerra Mundial. Em 1 935, um plebiscito devolveu a região à Alemanha. 96
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Noma, "rei do jornalismo" japonês, publicado por Holle & Co. Em determinado ponto o autor afirma com satisfação: ''Agora me decidi a aufziehen [ montar] uma organização modelar para formar futuros oradores." O sentido mecânico desse verbo ficou obscurecido pelo fato de, em geral, ele ser usado para se referir a uma organiza ção. Aqui aparece uma contradição da LTI. Ela valoriza tudo que é orgânico e se desenvolve de acordo com a natureza, mas ao mesmo tempo está atulhada de expressões mecânicas. Não percebe a ruptura de estilo e a indignidade expressas no ter mo aufgezogene Organisation [ uma organização montada] . 66 "Resta saber se podemos responsabilizar os nazistas pelo emprego de aufziehen", disse-me F. certo dia. Trabalhávamos juntos no turno da noite no verão de 1 943, no mesmo tam bor para preparar a mistura dos chás alemães. O trabalho era muito puxado, especialmente no calor, pois tínhamos de manter o rosto e a cabeça cobertos, como se fôssemos cirur giões, para nos proteger do terrível pó. Nos intervalos, tiráva mos os óculos, a boina e o pano que protegia a boca. F. usava seu antigo barrete de juiz, pois fora membro do Tribunal da Justiça do Estado. Ficávamos sentados em um caixote, conver sando sobre a psicologia dos povos ou analisando a situação da guerra. Como todos os demais moradores da Judenhaus, na ruela estreita que era a Sporergasse, onde vivíamos, ele tam bém morreu na noite de 13 para 14 de fevereiro de 1 945.67 Ele tinha certeza de que por volta de 1 920 já ouvira e lera o termo aufziehen com um significado totalmente neutro, "jun to com plakatieren': 68 Eu retruquei dizendo que não me lem66 Nesse sentido, aufziehen significa "organizar". Ou seja, a expressão se ria algo como "organizar uma organização"; aufziehen seria referente à natureza e organização, à mecânica. 67 Data do grande bombardeio de Dresden pela aviação aliada. 68 Plakat significa fixar cartaz, ou comunicar-se por meio de cartaz. O advérbio plakativ significa ostensivo. 97
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brava do aufziehen daquele tempo, com significado neutro, e que a associação que ele fazia com fixar cartaz ou "comunicar se por meio de cartaz", do verbo plakatieren, me evocava uma conotação pejorativa. Além disso, em qualquer reflexão desse tipo, por uma questão de princípio, não me parece impor tante verificar a primeira vez que uma palavra foi proferida com um certo conteúdo linguístico, pois isso seria impossível. Quando pensamos ter encontrado o primeiro caso, sempre aparecerá um anterior. Bastou F. pesquisar no Büchmann69 a origem de Obermensch [ super-homem] para constatar que o termo já existia na Antiguidade. E eu mesmo encontrei recentemente no Stechlin do · velho Fontane 70 a palavra Untermensch [ sub-homem] , da qual os nazistas tanto se orgulham, para poder subjugar judeus, co munistas e todas as categorias associadas à Untermenschentum [ sub-humanidade] . Eles que se orgulhem, da mesma forma que Nietzsche pôde se orgulhar de seu Obermensch, apesar de ter sido antecedido por tantos autores ilustres. Pois um termo, uma conotação ou um valor linguístico só adquire vida dentro de uma língua, só existe, de fato, quando seu sentido consegue se inserir na linguagem de um grupo ou de uma coletividade, nela adquirindo identidade própria. Nesse sentido, sem dúvida Obermensch é uma criação de Nietzsche, enquanto Untermensch e aufziehen, neutros e sem sarcasmo, devem ser creditados na conta do Terceiro Reich. Será que sua vida útil se encerrará juntamente com o período de vida do nazismo? Eu me empenho para isso, mas mantenho uma dose de ceticismo. 69 Autor de Máximas, um conjunto de citações com os respectivos auto res. A edição de 1 907 foi dedicada a Guilherme II. 70 Theodor Fontane ( 1 8 1 9- 1 898). O seu romance Der Stechlin foi publi cado postumamente, em 1 899. 98
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Em janeiro de 1 946, escrevi esta nota: No dia seguinte, a União Cultural de Dresden71 se reuniu. Entre os participantes havia uma dúzia de pessoas que, escolhidas por seu nível cul tural, deveriam servir de exemplo. O assunto em pauta era a organização de uma dessas semanas culturais que vêm sendo realizadas em muitos lugares, e em especial a preparação de uma exposição artística. Um dos senhores disse que alguns dos quadros doados em nome da Volkssolidaritiit [solidarieda de do povo ] , e que deveriam constar da exposição, tinham baixo valor artístico. Ao que logo contestaram: "Impossível! Quando fazemos uma exposição de arte aqui em Dresden, te mos de fazê-la gross aufgezogen:'
7 1 Dresdner Kulturbund: liga cultural para a renovação democrática em Dresden. A cidade ficou na antiga Alemanha Oriental entre o fim da Segunda Guerra Mundial e a Reunificação da Alemanha. 99
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DEZ ANOS DE FASCISMO
Convite do Consulado Italiano em Dresden para assistirmos à projeção de Dez anos de fascismo no domingo de manhã, 23 de outubro de 1 932, um film sonoro (dizem assim, pois ain da existem filmes mudos) . (Cabe abrir u m parêntese, pois nessa época o termo já es tava germanizado: escrevia-se Faschismus com sch em vez de se. Quatorze anos depois, perguntei a um aluno, durante a prova do Abitur,7 2 em uma escola de ciências humanas, o sig nificado da palavra. Ele respondeu sem titubear: "Vem de fax, die Fackel [tocha] ." 73 Era um rapaz inteligente, devia ter sido membro da juventude hitlerista e com certeza coleciona selos. Conhece o emblema do fascismo italiano, que aparece nos se los da época de Mussolini: um feixe de varas com um macha do no meio, que os lictores carregavam à frente de certos ma gistrados romanos. De mais a mais, ele já devia ter encontrado essa palavra em seus tantos anos de latim. Mas não conhecia o significado da palavra "fascismo". Os colegas ajudaram-no: "Vem de 'fascis' [ feixe] ''. Quantos outros devem desconhecer o verdadeiro significado dessa palavra, se um estudante de ensino médio, educado no sistema nazista, não o conhece?... O tempo todo, de todos os lados, sou acometido pela mesma 72 Conforme explicado na nota 58, trata-se do exame final do colegial na Alemanha. 73 O aluno inexperiente confunde o latim fax/facis (a tocha, em alemão die Fackel) com fascis (o feixe) e especialmente com fasees (os feixes de vergas de onde emergia o ferro de um machado que os condutores le vavam na frente dos altos magistrados de Roma) , termo que foi intro duzido no alemão ( die Faszes) . Os fasci (feixes de combate) foram cria dos por Mussolini em 1 9 1 9. 101
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dúvida: será que se pode afirmar com segurança alguma coisa sobre o saber e o pensar, sobre o estado de alma e de espírito de um povo?) É a primeira vez que ouço e vejo o Duce falar. O filme é uma obra-prima. Mussolini discursa do alto do balcão do pa lácio de Nápoles para a multidão espalhada no chão; imagens do povo e grandes imagens do orador se alternam, apresen tando as palavras de Mussolini e a aclamação da multidão à qual se dirige. Pode-se ver como o Duce, relaxando depois de cada pequena pausa, volta a dar à face e ao corpo uma expres são de energia máxima e de tensão. A exaltação do pregador aparece no tom de voz de ritual eclesiástico, lançando frases curtas, como fragmentos litúrgicos, diante das quais obtém reações emocionadas de todos, sem qualquer esforço mental, mesmo que não captem o sentido das palavras, ou justamen te por não terem capacidade para captá-lo. A boca é gigantesca. De vez em quando faz gestos tipi camente italianos com os dedos. A massa, exultante, grita en tusiasmada. Assobia de maneira alvoroçada, especialmente quando o nome de algum inimigo é mencionado. Repete o gesto da saudação fascista, o braço estendido para o alto. Mas tudo isso já vimos e ouvimos milhares de vezes, com pequenas diferenças aqui e acolá, em gravações do congresso do partido em Nurembe �g ou no Jardim Lustgarten de Ber lim, ou ainda na Feldherrnhalle de Munique etc. O filme so bre Mussolini nos parece uma situação corriqueira. Führer é a tradução alemã de Duce, a camisa marrom é uma variação da camisa negra italiana, a saudação alemã é uma imitação da saudação fascista. Da mesma forma que to das as demais cenas do filme, a própria cena do discurso do Führer diante do povo reunido copia o modelo de propagan da italiano. Em ambos os casos a intenção é aproximar o che fe e o povo - o povo todo, não somente seus representantes. 102
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Retrocedendo nessa linha de raciocínio, é preciso fazer uma parada inevitável em Rousseau, em especial no Contrato social. Redigindo como cidadão de Genebra e defrontando-se com o exemplo dessa cidade-Estado, sua reflexão restitui a po lítica à forma antiga e a mantém nos limites da urbe. Não é voz corrente que a política é a arte de governar a pólis, a cida de? Para Rousseau, o estadista é a pessoa que discursa para o povo, para as pessoas reunidas no mercado. Para ele, com petições esportivas e artísticas, das quais o povo participa, são instituições políticas e meios de propaganda. Esta foi a grande ideia da Rússia soviética - graças às novas invenções tecnoló gicas, como o rádio e o cinema -, que expandiu o método dos antigos e de Rousseau a um espaço ilimitado e permitiu que o estadista, também governante, se dirigisse "a todos", realmente a cada um, mesmo que esses "todos" sejam milhões de pessoas separadas por milhares de quilômetros. O discurso, uma das ferramentas e compromissos do estadista, reconquis tou ou até ampliou o status que tinha em Atenas, pois agora o orador, em vez de se dirigir somente a Atenas, dirige-se a um país inteiro, e na verdade a muito mais do que um só país. Agora, o discurso ocupa uma posição mais importante, e sua essência mudou. Dirigido a todos, não apenas a represen tantes do povo, precisa ser compreensível a todos, isto é, pre cisa ser mais popular. O que é mais popular é mais concreto. Quanto mais o discurso se dirige aos sentimentos, quanto menos se dirige ao intelecto, mais popular ele é. Quando deli beradamente começa a deixar de lado a inteligência, entorpe cendo-a, ultrapassa a fronteira e se transforma em demagogia ou sedução. Em certo sentido, pode-se considerar que a praça em que o discurso é proferido, o salão ou a arena de onde se fala à multidão, locais sempre decorados com estandartes e bandei rolas, são parte do discurso ou até mesmo o próprio corpo do discurso que é inserido ou encenado dentro desse quadro. 103
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Todo ele é uma obra de arte que deve ser vista tanto quanto ouvida. A audição é duplicada, pois os brados do público, os aplausos e os protestos atingem intensa e energicamente cada ouvinte, são no mínimo tão fortes quanto o discurso em si. A encenação, por sua vez, também influencia o tom das pala vras e lhes proporciona um colorido mais vivo. O filme sonoro transmite integralmente essa obra de arte total. O rádio substitui o espetáculo visual por uma apresen tação que corresponde ao antigo relato do mensageiro, mas reproduz com fidelidade e eficácia a resposta spontan [ espon tânea] da massa, excitada pelo duplo efeito sonoro. ( Spontan é uma das palavras prediletas da LTI; ainda falaremos mais sobre ela. ) Na língua alemã, a partir das palavras Rede [ discurso] e reden [ falar] pode-se formar o adjetivo rednerisch [ discursa dor, eloquente] , que não tem boa fama. Discursar é sempre uma atividade suspeita, uma daquelas em que alguém "quer tirar vantagem': Poderíamos quase falar de uma aversão con gênita dos alemães ao orador. As línguas latinas, em contrapartida, são muito cautelosas com essa questão; valorizam o orador e distinguem cuidado samente a oratória e a retórica. Para essas línguas, o Orator [orador] é o homem honesto que se empenha em convencer as pessoas com a clareza da palavra, dirigindo-se aos corações e às mentes dos ouvintes. A oratória é um elogio que os fran ceses fazem a um Bossuet ou a um Corneille, grandes clássicos do púlpito e do teatro. A língua alemã também teve oradores desse porte, como Martinho Lutero e Schiller. O Ocidente en controu um adjetivo especial para o orador de gênero decla matório e duvidoso: "retórico': Ele nos remete à sofística da Grécia Antiga e à época de sua decadência, pois elabora frases capciosas, feitas com intenção de enganar.74 74 Dai vem o termo sofisticar. 104
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Será Mussolini um Orator ou um Rhetor [ retórico] de seu povo? É certo que se aproxima mais daqueles que usam a re tórica do que do orador. No decorrer de sua funesta evolução, decaiu por completo para o gênero da retórica. Mas algumas palavras que ao ouvido alemão soam como de um rednerisch na língua italiana soam como normais, pois passam pela tin tura da eloquência. Na festa de aniversário do fascismo, a arenga era Popolo di Napoli! Povo de Nápoles! Para o ouvinte alemão soaria como arcaico e enfático. Mas eis que me lem brei de uma propaganda que um distribuidor de folhetos em Scanno pôs em minhas mãos pouco antes da Primeira Guer ra Mundial. Scanno é um lugarejo que fica nos Abrúzios. Seus habitantes se orgulham da força física e da ousadia. Uma loja recém-inaugurada fazia propaganda, e o discurso apregoava: Forte e gentile popolazione di Scanno! Forte e nobre população de Scanno! Comparada a isso, com que singeleza soava a alo cução do Duce ao dizer: Popolo di Napoli! Quatro meses após ter escutado a voz de Mussolini, ouvi pela primeira vez a voz de Hitler. (Nunca o vi, nunca o vi fa lar ao vivo, pois isso era proibido aos judeus; no início ouvi sua voz algumas vezes no cinema falado, mas depois que tam bém fui proibido de ir ao cinema, assim como de ter um rá dio, passei a ouvir seus discursos, ou fragmentos deles, pelos alto-falantes instalados nas ruas e na fábrica.) Em 30 de janei ro de 1 933 ele se tornou chanceler, em 5 de março deveriam ocorrer eleições que o confirmariam no cargo e lhe assegura riam um parlamento dócil. Os preparativos para as eleições foram conduzidos em grande escala, incluindo o incêndio do Parlamento, o que também não deixou de ser LTI. Não havia qualquer dúvida sobre o sucesso de Hitler; ele falou direta mente de Kõnigsberg demonstrando certeza da vitória. Com parei o discurso de Mussolini em Nápoles com o de Hitler, apesar da invisibilidade deste, que estava longe. Diante da fa chada iluminada do hotel da estação principal de Dresden, de 105
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onde um alto-falante transmitia o discurso, uma multidão delirante se apertava. Os balcões estavam ocupados por ho mens das SA, de pé, segurando grandes bandeiras com a suás tica. Da Praça Bismarck vinha um cortejo empunhando ar chotes. Só consegui captar fragmentos do discurso, na verdade mais vozeio do que frases. Não obstante, naquela época eu já tinha exatamente a mesma impressão que me acompa nhou até o fim. Que diferença havia em relação ao modelo de Mussolini! Era visível o esforço físico que o Duce fazia para imprimir energia às frases, o empenho para manter a massa aos seus pés, mas em sua língua materna ele se expressava livremente, a ela se entregava, apesar do desejo de dominar. Mesmo tro peçando entre a oratória e a retórica, o Duce permanecia um orador, sem contorções nem convulsões. Hitler queria sempre aparecer, ou como bajulador ou cheio de sarcasmo - dois re gistros pelos quais gostava de transitar. Hitler falava, ou me lhor, gritava em convulsões. Até mesmo no máximo da exal tação é possível manter certa dignidade e algum bem-estar interior, um sentimento de autoconfiança e de estar em har monia consigo mesmo e com os demais. Esses aspectos falta vam a Hitler, que desde o começo era um retórico consciente, retórico por principio. Não se sentia seguro nem mesmo em uma situação de triunfo, fustigava com seu linguajar os adver sários e as ideias contrárias. Não tinha compostura, sua voz não possuía musicalidade, o ritmo de suas frases açoitava a si mesmo e aos demais. Sua trajetória, pelo menos durante os anos de guerra, transitou de agente provocador a vitima de provocações, de fanático convulsivo a alguém que ia às raias do desespero, demonstrando uma raiva impotente. Nunca fui capaz de compreender como conseguiu conquistar as massas, cativá-las e mantê-las presas sob seu jugo por tanto tempo com uma voz desafinada e esganiçada, com frases mal cons106
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truídas na sintaxe alemã, empregando uma retórica claramen te contrária ao caráter da língua alemã. Por mais que se acredite no efeito continuado de uma su gestão lançada na mente das pessoas e na eficácia de uma ti rania sem escrúpulos e de um medo aterrorizante - Eh ick mir hi:ingen lasse, jloob ick an den Sieg [Antes que me enfor quem, prefiro acreditar na vitória] , costumavam zombar os berlinenses nessa época -, permanece de pé o fato assombro so de que essa sugestão conseguiu impor-se e conservar-se atuante na cabeça de milhões até o último momento, apesar dos horrores. No Natal de 1 944 eu conversava com um companheiro de infortúnio sobre o ambiente que reinava no país. A última ofensiva alemã no front ocidental fracassara, e não havia mais dúvida de que a guerra estava perdida. Os trabalhadores com que eu cruzava no caminho para a fábrica e para casa me sus surravam, às vezes nem tão baixinho assim: "Cabeça erguida, camarada! Não há de demorar muito mais .. :' O companheiro de infortúnio era um comerciante de Munique. Pelo perfil, era muito mais um morador de Munique do que um judeu: sen sato, cético, desprovido de qualquer romantismo. Contei-lhe a respeito das frequentes palavras de consolo que eu recebia. Com ele acontecia o mesmo, disse-me, mas não dava impor tância a isso. Em sua opinião, a multidão continuava fazendo as mesmas juras pelo Führer. - Mesmo que aqui entre nós haja uns poucos opositores, quando ele fizer um discurso, todos vão apoiá-lo de novo, todos! No início eu o escutei falar diversas vezes em Muni que, quando no norte da Alemanha ninguém o conhecia. Ninguém se opunha a ele. Nem mesmo eu. Não dá para se contrapor a ele. Eu perguntei a Stühler onde Hitler teria encontrado essa forma tão cativante de ser. Respondeu sem titubear: 107
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- Não sei, mas basta Hitler destilar um de seus discursos carismáticos e toda a população estará de novo em suas mãos. Não há como se contrapor a ele. Em abril de 1 945 o mais cego dos cegos sabia que tudo estava perdido. Na aldeia na Baviera, para onde tínhamos con seguido fugir, todos rogavam pragas contra Hitler, e a corren te desordenada dos soldados em fuga não tinha fim. Porém, sempre aparecia alguém entre essas pessoas cansadas de guer ra, decepcionadas e amarguradas que, mesmo assim, com os olhos arregalados e os lábios cheios de fé, assegurava que em 20 de abril, aniversário de Hitler, aconteceria "a grande vira da", a grande ofensiva da vitória alemã. O Führer tinha dito, e o Führer não mentia. Acreditava-se mais nele do que em pro postas ajuizadas. Como se pode explicar esse milagre? Existe uma explica ção psiquiátrica bastante difundida, com a qual estou de acor do, mas quero completá-la com outra, de caráter filológico. Naquela noite do discurso do Führer em Kõnigsberg, um colega que já tinha visto e ouvido Hitler diversas vezes disse me que ele terminaria em uma espécie de insanidade religiosa. Também creio que ele desejava tornar-se o novo salvador do povo alemão. Havia nele o conflito permanente entre a exal tação megalômana de um César e a mania persecutória, esta dos patológicos que se reforçavam mutuamente. Essa doença infectou o corpo do povo alemão, enfraquecido e psiquica mente destruído pela Primeira Guerra Mundial. Falando como filólogo, acredito que o efeito da retórica desavergonhada de Hitler foi tão avassalador justamente por que atingiu uma língua que até então fora poupada dessa retórica, a qual se disseminou com a virulência de uma epi demia desconhecida. Na essência, ela era tão pouco alemã quanto o braço estendido e o uniforme fascista - substituir a camisa preta pela marrom não é uma invenção muito origi1 08
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nal -, bem como a decoração e os adornos das manifestações populares. Mesmo assim, o que o nazismo absorveu dos dez anos de fascismo que o precederam, ainda que tenha sido causado por corpos estranhos, não se compara à ignóbil intoxicação espe cificamente nazista: o nazismo tornou-se uma doença especi ficamente alemã, uma degeneração virulenta da carne alemã. Reinfectado a partir da própria Alemanha, o fascismo - cer tamente criminoso, mas não tão bestial - sucumbiu junto com o nazismo.
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FANÁTICO
Quando eu era estudante, fiquei irritado com um anglicista porque ele contou quantas vezes na obra de Shakespeare se ouve bater tambores, soprar flautas e tocar outros tipos de música guerreira. Incapaz de entendê-lo, eu o qualifiquei de pedante ... Mas em meus diários do período nazista, em 1 940, escrevi: "Tema para seminário - mandar pesquisar quantas vezes os termos fanatisch [ fanático] e Fanatismus [ fanatismo] aparecem em comunicações oficiais e quantas vezes em publi cações não diretamente ligadas à política, como por exemplo os novos romances alemães ou traduzidos de línguas estran geiras." Três anos depois, repassando esse trecho, eis que me deparo com um "Impossível! A palavra 'fanático' aparece uma quantidade absurda de vezes, mais do que 'os sons de uma harpa' ou 'a areia do mar'. Entretanto, mais importante do que sua frequência foi a mudança em seu sentido. Já escrevi uma vez sobre isso em meu estudo sobre o século XVIII, 75 quando citei um trecho bastante curioso de Rousseau, provavelmente um dos menos conhecidos. Se ao menos este manuscrito con seguisse sobreviver..." Ele sobreviveu. Ei-lo. Os iluministas sempre recriminaram os termos fanatique [fanático] e fanatisme [fanatismo] por uma dupla razão. A raiz de "fanático" vem de fanum, santuário, templo. No início, o termo significava pessoa em estado de êxtase, em êxtase reli gioso. Ora, os iluministas lutavam contra tudo que pudesse perturbar a capacidade de pensar. Sendo inimigos da Igreja, 75 Klemperer escreveu História da literatura francesa do século dois tomos, publicados em 1 954 e em 1 966. 111
XVIII
em
lT I - A L I N G U AG E M DO T E R C E I R O R E I C H
combatiam com rigor todo tipo de superstição religiosa. Para eles, o fanático é, por excelência, inimigo dos racionalistas. Ravaillac,76 por exemplo, é o protótipo do fanatique, pois as sassinou o bom rei Henrique IV por fanatismo religioso. Quando, por sua vez, os adversários denunciam o fanatismo dos próprios iluministas, eles contestam, argumentando que seu zelo é apenas uma batalha contra os inimigos da razão, na qual usam os meios que a razão fornece. Onde quer que o pensamento iluminista penetre, sempre haverá um sentimento de crítica e aversão contra o fanatismo. Como os outros iluministas, seus "companheiros de par tido", como os "filósofos" e os "enciclopedistas'', antes que ele começasse a odiá-los e se tornasse um cavaleiro solitário, Rousseau também usara o termo fanatismo com conotação pejorativa. Na profissão de fé do vigário de Savoia, em que Cristo aparece entre os zelotes judeus, consta a inscrição: "Do centro do fanatismo mais enfurecido emerge a voz da sabe doria máxima:'77 Mas, logo a seguir, quando o vigário, como porta-voz de Jean-Jacques, se opõe à intolerância dos enciclo pedistas, de forma quase mais violenta do que contra a into lerância da própria Igreja, lê-se uma longa anotação: "Bayle78 conseguiu provar muito bem que o fanatismo é mais perni cioso que o ateísmo, fato inconteste. Mas ele guardou para si uma verdade não menos importante: o fanatismo, mesmo que sanguinário e cruel, é uma paixão intensa e forte, que inflama os corações das pessoas, capacitando-as a desprezar a morte, mas também lhes confere muita vitalidade. Quando bem guiado, é possível extrair dele as mais sublimes virtudes. Por outro lado, o ateísmo e todo o afã iluminista, com suas suti76 François Ravaillac assassinou o rei Henrique IV, da França, em 14 de maio de 1 6 1 0, e por isso foi executado poucos dias depois. 77 Da obra de J. J. Rousseau, Emílio, ou sobre a educação. 78 Pierre Bayle ( 1 64 7- 1 706) , filósofo francês, filho de um pastor hugue note, combatia todo tipo de dogmatismo na filosofia. 112
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lezas, levam em geral ao apego à vida, ao acovardamento, à mesquinhez, canalizando paixões para servir a interesses par ticulares prosaicos, ao egoísmo condenável, aniquilando sub repticiamente as verdadeiras bases de qualquer sociedade."79 Aqui já aparece a transformação do fanatismo em virtu de. Mas, a despeito da fama internacional de Rousseau, essa transformação não surtiu efeito nenhum. Permaneceu escon dida nessa anotação. O que o romantismo ganhou de Rous seau foi a glorificação, não do fanatismo, mas da paixão, em todos os seus aspectos e em relação a qualquer causa. Em Pa ris, perto do Louvre, há um pequeno e gracioso monumento: um tamborileiro ainda jovem irrompe esquina afora, repre sentando o entusiasmo da Revolução Francesa e do século se guinte. Seu toque é para chamar as tropas, despertar os âni mos. Mas somente em 1 932 a figura distorcida de seu irmão, o fanatismo, cruza o Portão de Brandemburgo. Apesar daquele elogio discreto, o fanatismo permanecerá até então uma qua lidade mal vista, algo a meio caminho entre crime e doença. A língua alemã não possui um termo equivalente e apro priado para Fanatismus, palavra estrangeira, nem mesmo quando liberada do sentido original, restrito ao campo do ritual. O verbo eifern [sentir fervor] é mais inofensivo. Ima gina-se mais facilmente um Eiferer como um pregador arreba tado do que como alguém disposto a manifestar-se com vio lência. Besessenheit [obsessão] denota mais um estado doentio, que merece pena, sendo passível de ser desculpado, do que alguém que promova ações que constituam risco público. O som de Schwiirmer [entusiasta] é claro e límpido. É sabido que Lessing, em sua luta por clareza, foi conhecido pelo en tusiasmo. Mas, para ele, deve-se desconfiar até mesmo do Schwarmer. Em Natan, o Sábio 80 ele escreve: "Não o entregues 79 Nova citação de J. J. Rousseau, Emílio, ou sobre a educação. 80 Natan, der Weise [Natan, o Sábio ] , de G. E. Lessing. 113
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à plebe entusiasta:' Indaguemos o seguinte: se invertêssemos os epítetos de algumas combinações desgastadas, como Düste rer Fanatiker [fanático sombrio] ou liebenswürdiger Schwãrmer [entusiasta amável] , haveria a possibilidade de se falar de um "entusiasta sombrio" e de um "fanático amável"? A recusa vi ria da própria sensibilidade linguística. Um Schwãrmer não é um teimoso obstinado; ao contrário, prefere soltar-se da terra firme, não enxergar as condições reais e dirigir a atenção aos céus. Felipe II, rei da Espanha, profundamente comovido, vê em Posa81 um sonderbarer Schwãrmer [pessoa especialmente entusiasta] . Não há como traduzir nem como substituir a palavra "fa nático" na língua alemã. Quando usada como juízo de valor, é sempre vista com forte carga negativa, com conotação de ameaça e repulsa. Ocasionalmente, quando lemos o necro lógio de um pesquisador ou um artista apontando que ele fora o estereótipo do fanático em sua ciência ou sua arte, esse elogio traz consigo a percepção de que se tratava de uma pessoa inacessível, voltada somente para si. Antes do Terceiro Reich ninguém poderia ter pensado em valorizar positiva mente o termo "fanático". E a conotação negativa está asso ciada de forma tão indelével à palavra que a própria LTI, vez por outra, a usa com sentido negativo. Em Mein Kampf, Hi tler fala com desdém dos Objektivitãtsfanatiker [fanáticos da objetividade] . No período áureo do Terceiro Reich surgiu uma monografia enaltecedora, escrita por Erich Gritzbach,82 cha mada Hermann Goring, obra e personalidade, totalmente ali nhada aos clichês da linguagem nazista, na qual constava que 81 Marquês R. de Posa, personagem do drama Don Carlos ( 1 787), de Schiller. Ele representa os valores humanitários e do desinteresse. Feli pe II procura em vão ganhar a sua confiança. 8 2 Conselheiro do líder nazista Hermano Gõring ( 1 893- 1 946), que foi comandante da Força Aérea e, por muito tempo, o segundo homem na hierarquia do Terceiro Reich. 114
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a mais indigna das heresias, o comunismo, provou ser capaz de educar o povo para que ele se tornasse mais fanático. Esse caso é um deslize quase cômico, uma impossível recaída no emprego da linguagem de outrora. Aconteceu, em casos isola dos, até com o próprio mestre da LTI. Em dezembro de 1 944, certamente tendo como modelo o pronunciamento de Hitler, Goebbels ainda fala no "fanatismo confuso de alguns alemães incorrigíveis': Eu chamo isso de estranha recaída, já que o nacional socialismo se baseou no fanatismo e seu sistema de educação usou todos os meios possíveis para treinar para o fanatismo. Durante todo o Terceiro Reich essa palavra foi muito reco nhecida. Tratava-se de supervalorizar conceitos como valentia, dedicação, abnegação, tenacidade ou, mais precisamente, fazer um enunciado global que associava de maneira gloriosa todas essas virtudes. Qualquer conotação pejorativa, mesmo a mais discreta, desaparecia no uso corrente que a LTI fazia dessa pa lavra. Em datas solenes, como nos aniversários de Hitler ou da tomada do poder, em qualquer artigo de jornal, em qual quer mensagem de congratulações, em qualquer manifestação a alguma tropa ou alguma organização, estava sempre presen te um fanatisches GelObnis [ elogio fanático] , ou um fanatisches Bekenntnis [ reconhecimento fanático] para testemunhar a fa natischen Glauben an die ewige Dauer des Hitlerreiches [ fé fa nática na duração eterna do Reich de Hitler] . Isso durante a guerra, quando não se podia mais disfarçar as derrotas! Quanto mais tenebrosa ficou a situação, tanto mais se falava em fanatischen Glauben an dem Endsieg [ fé fanática na vitória final] , no Führer, no povo ou no fanatismo do povo, como se a virtude da fé fosse essencialmente alemã. O termo foi usado mais intensamente nos jornais após o atentado contra Hitler, em 20 de julho de 1 944. Constou lite ralmente em cada um dos inúmeros votos de fidelidade ao Führer. 115
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Essa frequência da palavra no domínio da política a proje tou para outras áreas, graças aos escritores ou à conversa diá ria. Onde antes se dizia ou escrevia leidenschaftlich [ apaixona do] , passou-se a dizer "fanático': Para que isso acontecesse foi necessário submeter o conceito a um certo enfraquecimento, uma espécie de banalização, uma perda de dignidade. Na ci tada monografia sobre Gõring, o marechal do Reich é celebra do, entre outras coisas, como "amigo fanático dos animais" (nesse caso, a conotação crítica inerente à expressão "artista fanático" deixa de existir, pois Gõring é apresentado repetida mente como a pessoa mais afável e mais sociável que se possa imaginar) . Resta saber s e o enfraquecimento do conceito implicou também uma perda de virulência. Seria possível afirmar isso com a justificativa de que o termo "fanático" estava assumin do um novo sentido, passando a significar uma feliz mescla de coragem e entrega apaixonada. Mas não é esse o caso. Spra che, die für dich dichtet und denkt [ Língua que poetiza e pensa por ti] , Gift, das du unbewusst eintrinkst und das seine Wirkung tut [Veneno que bebes sem perceber e que age sobre ti] - por mais que se repitam essas frases infinitas vezes, nunca terá sido o suficiente. Entretanto, para a cabeça que comandava a linguagem do Terceiro Reich, a pessoa que se empenhava para que o pode roso veneno fosse plenamente eficaz, o desgaste do termo o enfraquecia. E assim Goebbels se viu compelido ao absurdo de tentar valorizar o que não podia mais ser valorizado. No Reich de 1 3 de novembro de 1 944 ele escreveu que a situação só poderia ser salva por meio de um "fanatismo violento". Como se a violência não fosse o estado inerente aos fanáticos, como se pudesse existir fanatismo tranquilo. Essa passagem marca o revés da palavra. Quatro meses antes ocorrera seu maior triunfo: ela fora abençoada com a honra suprema que o Terceiro Reich podia 116
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oferecer, a honra militar. Seria uma tarefa especial observar como a objetividade tradicional e a sobriedade quase elegante da linguagem militar oficial, em especial dos boletins diários, foram sendo gradativamente envolvidas pelo estilo empolado da propaganda de Goebbels. Em 26 de julho de 1 944 o termo "fanático" foi empregado pela primeira vez no boletim militar com sentido elogioso, referindo-se a algum regimento alemão. "Nossas tropas estão combatendo fanaticamente na Norman dia." A distância que separa a atitude militar na Primeira e na Segunda Guerra Mundial nunca foi tão grande como aqui. Um ano depois do colapso do Terceiro Reich é possível apresentar uma prova de que o termo fanatisch, palavra-cha ve do nazismo, nunca perdeu seu aspecto maléfico original, apesar do uso abusivo: enquanto por toda parte restos da LTI são assimilados pela linguagem atual, a palavra fanatisch de sapareceu. O que nos permite concluir que, na consciência popular, a verdade se manteve viva: um estado de espírito confuso, próximo da doença e do crime, havia sido conside rado como virtude suprema durante doze anos.
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CAPIT U LO 1 0
CRIAÇÃO ESPONTÂN EA
Por mais que tenha me afastado da temática dos meus estudos durante os anos de horror, algumas vezes me recordava, como se fosse realidade, do rosto irônico de Joseph Bédier.83 Faz parte do ofício de um estudioso de história da literatura pes quisar as origens de um tema, de uma fábula, de uma lenda, e às vezes esse trabalho se transforma em verdadeira mania, em obsessão: os assuntos pesquisados devem ter origens remotas, no tempo e no espaço. Quanto mais remota for a origem, tan to mais se revela a sabedoria do pesquisador que a descobriu. As raízes não devem jamais proceder do próprio local em que o tema veio à luz. Ainda sinto a ironia na voz de Bédier quan do, do alto da cátedra do College de France, descrevia uma pretensa raiz oriental ou "druida" de uma comédia ou de uma história com fundo moral, ou sabe-se lá de qual assunto lite rário. Bédier sempre observava que determinadas situações e impressões podiam se manifestar de maneiras semelhantes em épocas e regiões diferentes, afastadas entre si, pois o com portamento humano se repete no tempo e no espaço. A primeira vez que me lembrei de Bédier foi em dezembro de 1 936, durante o processo contra o assassino de Gustloff,84 8 3 Crítico francês ( 1 864- 1 938), professor do College de France. Defendia a origem puramente francesa de certos contos da Idade Média ( Les Fabliaux, 1 893) . 84 Chefe regional d o Partido Nazista assassinado e m Davos, e m 4 d e fe vereiro d e 1 936, por David Frankfurter, estudante judeu que buscou dessa forma vingar seus companheiros perseguidos. Diferentemente de seu pai, assassinado em um campo de concentração em 1 94 1 , David Frankfurter ficou preso na Suíça até 1 945, quando foi libertado e emi grou para Israel. 1 19
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uma autoridade nazista no exterior. Uma tragédia francesa, escrita em meados do século XIX, manteve durante muito tempo renome internacional e foi lida nas escolas alemãs por longo período. Depois caiu em um injusto esquecimento. É o livro Charlotte Corday, de Ponsard, 85 que trata da morte de Marat. A autora do atentado toca a campainha da casa de Marat, planejando matar aquele que ela considerava um cão sanguinário, um monstro desprovido de consciência e de la ços humanos. Uma mulher abre a porta, e ela recua apavora da: "Meu Deus, é a mulher dele, há quem o ame - grand Dieu, sa femme, on l'aime! " Mas, ao ouvi-lo dizer o nome de uma pessoa de quem gostava, condenando-a "à guilhotina", ela o apunhala. É como se essa cena tivesse sido transposta para a época atual, mantendo os mesmos pontos essenciais e significativos, pois foi assim que soou o depoimento de Frankfurter, o judeu acusado, diante do tribunal de Chur. Ele estava decidido a matar Gustloff, esse ser sanguinário, mas a sra. Gustloff abriu a porta e ele vacilou - um homem ca sado, "grand Dieu, on l'aime". Mas eis que ouve Gustloff dizer ao telefone diese Schweinejuden! [ esses judeus imundos! ] e desfere o tiro ... Devo supor que Frankfurter tivesse lido Char lotte Corday? Em meu próximo seminário sobre Ponsard, pre firo usar o processo em Chur para demonstrar a autenticidade humana do drama francês. As considerações de Bédier concernem menos à área da literatura pura e mais ao âmbito primitivo do folclore, e é justamente nesse ponto que se incluem outros fatos que me remetem a ele. No outono de 1 94 1 , quando já se sabia que a guerra não terminaria logo, ouvi falar amiúde a respeito dos acessos de ódio de Hitler. Inicialmente teriam sido assomos de fúria, em 8 5 François Ponsard, poeta francês ( 1 8 1 4- 1 867). A peça Charlotte Corday foi representada pela primeira vez em 1 850 pela Comédie Française, em Paris. 120
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seguida ímpetos de cólera. Dizia-se que o Führer mordia len ços e travesseiros, e que teria até mesmo se atirado no chão para morder o tapete. As historietas provinham sempre de gente simples do nos so círculo, como operários, vendedores ambulantes e cartei ros imprudentes. Enfim, dizia-se que ele tinha devorado as "franjas do tapete", e por ter adotado esse hábito recebeu o apelido de Teppichfresser [ devorador de tapetes] . Será preciso remontar aqui a origens bíblicas, até chegar a Nabucodono sor, 86 conhecido como "devorador de grama"? O epíteto Teppichfresser pode ter sido o embrião de uma lenda. Mas o Terceiro Reich criou também lendas verdadeiras. Ouvi uma delas contada por um conhecido muito sério, não dado a fantasias, pouco antes do começo da guerra, no auge do poder de Hitler. Naquela época ainda tínhamos a casinha no alto da cidade, mas já estávamos bastante isolados e vigiados. Era preciso ter alguma coragem para aparecer lá. Um comerciante de Dres den, de quem fôramos clientes nos bons tempos, permanecia fiel e nos trazia semanalmente o que necessitávamos. Sempre nos contava algo, procurando nos consolar, dizendo coisas apropriadas para reerguer nosso moral. Não era político, mas estava aborrecido com a economia, sabidamente mal adminis trada sob a tirania e a injustiça nacional-socialista. Via tudo sob o prisma do cotidiano e do raciocínio prático. Não era es pecialmente instruído, seu campo de interesses não era sufi cientemente amplo para abarcar filosofia ou religião. Tanto antes quanto depois do que relatarei, jamais o ouvi falar so bre assuntos pertinentes à Igreja ou ao além. Era apenas um comerciante pequeno-burguês que se distinguia dos milhares 86 Nabucodonosor II, rei da Babilônia, conquistou o reino de Judá em 586-578 a.C., destruiu Jerusalém e levou grande parte dos judeus ao exílio na Babilônia, na assim chamada primeira diáspora. 121
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de outros cidadãos, pura e simplesmente, porque não se dei xava embriagar pelas mentiras deslavadas do governo. Em geral entretinha-nos com algum escândalo que fora descober to dentro do partido porém acobertado, com uma bancarro ta fraudulenta ou com casos de suborno ou extorsão. Depois do suicídio do nosso administrador regional, irremediavel mente comprometido - primeiro o homem foi forçado a suicidar-se para depois receber um funeral que mais parecia um Staatsakt [ cerimônia oficial] en miniature -, ouvimos V. dizer um sem-número de vezes: "Calma, vocês sobrevive ram a Kálix. 87 Também hão de sobreviver a Mutschmann88 e a Adolf! " Esse homem objetivo, por sinal protestante, que em sua infância não tinha sofrido influência de histórias de san tos ou de mártires, contou-nos o que passo a relatar com a mesmíssima boa-fé que demonstrava quando falava das pe quenas infâmias de Kálix e das grandes de Mutschmann. Um Obersturmführer89 em Halle ou Jena - ele precisava com exatidão o local e as pessoas, tudo lhe fora "assegurado" por "fonte fidedigna" -, um oficial de alta patente das SS, levou a mulher a uma maternidade particular para dar à luz. Examinou o quarto em que ela ia ficar; na parede, em cima da cama, havia uma imagem de Jesus Cristo. Exigiu da enfer meira: "Tire esse quadro da parede, não quero que meu filho veja, ao nascer, esse menino judeu:' Amedrontada, a enfermei ra disse que transmitiria o pedido à madre superiora. O ho mem reiterou a ordem e se retirou. Na manhã seguinte a ma dre superiora lhe telefona: "O senhor ganhou um filho, senhor Obersturmführer, sua esposa passa bem, também a criança, que é forte. Mas, saiba, seu desejo foi plenamente atendido: a criança veio cega ao mundo ..." 8 7 O referido prefeito de Dõlzschen, lugarejo vizinho de Dresden. 88 Martin Mutschmann, interventor do Reich na Universidade Técnica de Dresden. Morreu em 1 945. 89 Comandante de uma unidade das SS. 122
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Quantas vezes, na época do Terceiro Reich, foi difamada a inteligência dos judeus, considerada cética e descrente! Mas o próprio judeu criou sua lenda e acreditou nela. Em fins de 1 943, após o primeiro bombardeio aéreo maciço sobre Leip zig, contou-se muitas vezes na ]udenhaus: "Em 1 938, às 4: 1 5h da madrugada, os judeus, escorraçados das camas, foram le vados para o campo de concentração. Há pouco, noutro dia, durante o bombardeio, todos os relógios da cidade pararam exatamente às 4: 1 5h." Sete meses antes, arianos e não arianos acreditavam nas mesmas lendas. O álamo de Babisnau cresceu isolado, de mo do que se pode reconhecê-lo a partir de diversos lugares, so bressaindo de forma pujante e expressiva no cume mais alto no sudeste de Dresden. No começo de maio, minha mulher contou pela primeira vez que nos bondes ouviam-se menções ao álamo, mas ela não sabia ao que as pessoas se referiam. Poucos dias depois, na fábrica, falava-se de novo no álamo de Babisnau! Eu perguntei: por quê? A resposta foi clara: porque ele estava em flor. Coisa rara! Houve uma florada em 1 9 1 8, e nesse mesmo ano fez-se a paz. Uma operária corrigiu de pron to: não somente em 1 9 1 8, mas também em 1 8 7 1 . "E nas outras guerras também'� acrescentou um capataz. E o criado esclare ceu, generalizando: "Sempre que ele floriu, a paz foi selada:' Na segunda-feira seguinte, Feder disse: "O que se viu on tem foi incrível, uma verdadeira migração até o álamo de Ba bisnau. Sua florada é um espetáculo deslumbrante. Talvez haja mesmo paz ... as superstições do povo nunca devem ser igno radas:' Justamente Feder,90 com a estrela de judeu e o boné para se proteger do pó, que ele adaptara de seu antigo barrete de juiz.
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Não confundir com o outro Feder, Gottfried, ideólogo do Partido Na zista. 123
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LIMITES MAL DEFI N I DOS
Não existem limites fixos entre os reinos da natureza: qual quer aluno do primário sabe isso. Mas, no campo da estética, os limites, além de não serem bem definidos, são menos co nhecidos e menos aceitos. Na classificação da pintura e da literatura modernas nessa ordem, pois tudo começou com a pintura, a literatura veio depois - usa-se o binômio impressionismo-expressio nismo; nesse caso, a tesoura conceituai precisa cortar e divi dir com precisão máxima, pois são conceitos opostos. Deixando-se ficar à mercê da impressão que abstrai das coisas, o impressionista reproduz aquilo que capta. É passivo, em cada instante se deixa influenciar pelo que percebe, em cada momento deixa de ser o mesmo. Sua alma não possui um centro estável, homogêneo, consistente, duradouro, seu eu passa por constante mutação. Já o expressionista parte de si mesmo. Não reconhece o poder das coisas, mas lhes imprime sua marca, sua vontade. É ele quem se expressa nelas e por meio delas, molda-as de acordo com sua própria natureza. É ativo, suas ações são dirigidas por uma consciência segura de si, com um eu estável e permanente. O impressionista não pretende apresentar uma imagem objetiva da realidade. Quer mostrar o que viu e como viu as coisas. Não reproduz a árvore com todas as folhas, nem cada folha com sua forma específica, nem o verde ou o amarelo da coloração em si, tampouco a tonalidade da luz de uma deter minada hora do dia ou de uma época do ano, nem de uma determinada condição do tempo. Seu olhar capta o amontoa do de folhas que se embaralham, com a cor e a luz que cor respondem ao seu estado de ânimo naquele momento; impõe 125
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sua intimidade à realidade das coisas. Pode-se, então, consi derar sua atitude como passiva? Do ponto de vista da estética, ele é tão ativo, tão artista da expressão quanto o seu oposto, o expressionista. A oposição reside pura e simplesmente no campo da ética: o expressionista consciente impõe a si e aos contemporâneos normas rígidas, tem senso de responsabili dade. O impressionista inconstante, alterando-se a cada ins tante, reivindica para si e os demais o direito de assumir uma conduta amoral para a sua própria falta de responsabilidade. Mesmo aqui, portanto, os limites são nebulosos. Partindo do sentimento de desamparo do indivíduo, o impressionista chega à comiseração social e se engaja a favor dos oprimidos e das criaturas perdidas, sem rumo. Não há diferença entre um Zola e os irmãos Goncourt, do lado impressionista, e Toller, Unruh e Becher, do lado expressionista.91 Não, eu não confio em considerações meramente estéticas no que diz respeito à história das ideias, da literatura, da arte ou da linguagem. É necessário partir de posturas humanas básicas. Os meios de expressão podem ser iguais e almejar objetivos opostos. Isso vale particularmente para o expressionismo. Toller, que o nacional-socialismo matou, e Johst, que foi presiden te da Academia de Letras do Terceiro Reich, pertenceram ao movimento expressionista. A LTI guarda heranças do expressionismo, ou pelo menos compartilha com ele formas de enfatizar a vontade e o stür91
Ernst Toller, dramaturgo e lírico expressionista. Nasceu em 1 893 em Bromberg e suicidou-se em Nova York, em 1 939. Socialista, foi um dos dirigentes da República dos Conselhos Operários de Munique em 1 9 1 9 e ficou preso durante cinco anos. Obras principais: Die Wandlung, 1 9 1 9; Das Schwalbenbuch, 1 923, durante os anos de prisão; e o roman ce biográfico Eine Jugend in Deutschland, 1 933. Fritz voo Unruh ( 1 8851 970), poeta e pacifista alemão. J. R. Becher ( 1 89 1 - 1 958), escritor ale mão que passou do expressionismo para o realismo socialista. 126
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misches Vorwartsdrangen [ impulso do elã vital ] .92 Die Aktion [A ação] e Der Sturm [O assalto] eram os nomes das revistas dos jovens expressionistas que lutavam por reconhecimento. Em Berlim, representavam a ala mais à esquerda, a boemia mais faminta do meio artístico, e seu ponto de encontro era o Café Áustria, perto da Postdamer Brücke ( alguns também frequentavam o Café des Westens, mais conhecido e mais ele gante, onde proliferavam mais "tendências"; mas os que iam lá já tinham vencido) , e, em Munique, o Café Stephanie. Tudo isso acontecia nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial. Na noite das eleições de 1 9 1 2 ficamos esperando no Áustria pela chegada dos telegramas da imprensa e, eufóricos, lançamos gritos de alegria quando a centésima vitória social democrata foi anunciada. Acreditávamos que as portas da paz e da liberdade haviam sido escancaradas para sempre ... As palavras Aktion e Sturm migraram em 1 920 do café das senhoras para a cervejaria dos homens. Aktion, termo que não se germanizou, permaneceu estrangeiro do início ao fim e se tornou imprescindível à LTI: estava ligado às recordações do início heroico, com as imagens das lutas em que os estudantes brigavam usando cadeiras. Sturm passou a designar um gru po de combate na hierarquia militar alemã, como, por exem plo, o centésimo Sturm ou Reitersturm das SS,93 mesmo que também houvesse a tendência de germanizar termos e estabe lecer nexos com a tradição. O sentido mais difundido do termo Sturm é ao mesmo tempo o mais oculto, pois quem há de se lembrar ainda hoje, 92 Alusão ao Sturm und Drang, nome de uma peça de Max Klinger, que gerou esse movimento literário alemão { 1 770- 1 775), nascido em rea ção ao racionalismo e ao clacissismo do Iluminismo. Sturm significa assalto e tempestade. Drang corresponde a ímpeto e, no contexto da guerra, lembra o Drang nach Osten [ ímpeto para o Leste] dos nazistas. 93 Após 1 933, Himmler anexou às SS diversas associações, inclusive dos Reiter [cavaleiros] das regiões de criadores tradicionais de cavalos. 127
LTI
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ou quem sabia no período áureo do nazismo, que SA signifi cava Sturmabteilung [ divisão de assalto] ? SA e SS - Schutz staffel [ esquadrão de proteção ] , a guarda de elite ou guarda pretoriana de Hitler - tornaram-se abreviaturas impregna das de tanta prepotência que deixaram de representar siglas. Passaram a ser palavras com sentido próprio. Seu significado original desapareceu. Estou escrevendo aqui SS com a linha sinuosa dos carac teres normais de imprensa, premido pela necessidade práti ca. No tempo de Hitler, o SS das caixas tipográficas e do tecla do das máquinas de escrever, usadas nas repartições públicas, era uma tecla especial com ângulos agudos que correspon diam à Siegrune [ runa germânica da vitória] , concebida em sua honra. Além disso, tinha também afinidade com o ex pressionismo. Entre as expressões usadas pelos soldados na Primeira Guerra Mundial constava o adjetivo zackig.94 Zackig pode as sociar-se a um cumprimento estritamente militar, uma ordem ou até um discurso; qualquer coisa que transmita a sensação de gasto de energia disciplinado. Também designa uma for ma de expressão essencial à pintura e à linguagem poética do expressionismo. O adjetivo zackig é seguramente a primeira coisa que vem à mente de alguém sem formação filológica ao ver o SS nazista. Mas há mais. Muito antes de o SS nazista existir, esse símbolo aparecia em vermelho nas caixas dos transformadores de voltagem, com a frase de advertência: "Perigo, alta tensão! " Nesse caso, era óbvio que o S dentado representava um raio estilizado. Pela energia e a rapidez, o raio era um símbolo caro ao nazis mo, de modo que se podia supor que o sinal gráfico SS era uma materialização, uma imagem pictórica do raio. A linha 94
Em sentido estrito, dentado, anguloso. Em sentido figurado pode sig nificar brioso, enérgico, mordaz. 128
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dupla podia representar força redobrada, pois as bandeirinhas pretas das formações das crianças só tinham um S, ou seja, meio SS. É comum que vários fatores concorram para a formação de algo, sem que o próprio criador esteja consciente disso. Pa rece-me que é o caso: SS é, ao mesmo tempo, imagem e sinal gráfico abstrato, é transposição de fronteira para o lado pic tórico, é retrocesso ao aspecto visual dos hieroglifos. Porém, os primeiros artistas que na modernidade usaram esse meio de expressão, transpondo fronteiras, foram justa mente os mais duros opositores dos expressionistas e dos ar rogantes nacional-socialistas. Foram os céticos, os desagrega dores da ideia do "eu" e da moral, os "decadentes". Guillaume Apollinaire, poeta e literato experimentador, de origem polo nes�, nascido em Roma, de coração ardentemente francês, de senha palavras conforme a disposição das letras. A frase un cigare allumé qui fume [um charuto aceso, cuja fumaça sobe] é impressa como a curva da fumaça que sobe, formada pelas letr�s correspondentes, iniciando-se exatamente na linha que acompanha a palavra "charuto". Para mim o formato especial zackig [ dentado, anguloso ] do SS na LTI representa o elo de ligação entre a linguagem vi sual da propaganda e a linguagem em sentido mais estrito. Existe outro elo de ligação do mesmo tipo, a tocha, que tam bém se apresenta em formato dentado vertical. A runa do florescer e a runa do murchar: virada para baixo, representa va a morte, substituindo a cruz dos anúncios fúnebres cris tãos; virada para cima, substituía a estrela e anunciava os nas cimentos. Constava também nos emblemas dos farmacêuticos e dos padeiros. Era de supor que ambas as runas penetrassem na linguagem comum, pelo menos como o símbolo SS, já que seu uso também era estimulado pela dupla tendência à sensi bilidade e ao teutonismo. Mas não foi o que aconteceu. 129
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De tempos em tempos eu anotava estatísticas, que recolhia durante algumas semanas, para saber a proporção de runas em relação a cada cruz e a cada estrela, respectivamente. Ape sar de não termos o direito de fazer assinaturas nem de ter exemplares no quarto, eu acompanhava com regularidade um dos jornais neutros de Dresden, pois, de um jeito ou de ou tro, algum acabava entrando na "casa dos judeus': Era uma publicação que procurava ser neutra tanto quanto algum jor nal podia ser, ou seja, somente no sentido comparativo com alguma outra que fosse explicitamente do partido. Eu acom panhava o Freiheitskampf [Luta pela Liberdade] , jornal nazista de Dresden, e também o Deutsche Allgemeine Zeitung (DAZ), que pretendia ter um nível mais elevado, já que devia repre sentar o país no exterior, sobretudo depois que o Frankfarter Zeitung95 fora silenciado. Pude notar que as runas apareciam mais frequentemente em jornais que pertenciam explicita mente ao partido do que nos demais. Constatei também que os círculos especificamente cristãos publicavam seus anúncios mais no DAZ. Todavia, o excesso de runas que eu encontrava no Freiheitskampf, em comparação com os outros jornais, não era muito maior. A frequência máxima apareceu após as pri meiras baixas pesadas, em especial após Stalingrado, pois na quele tempo o partido exercia forte pressão sobre a opinião pública. Mesmo que os necrológios diários dos soldados mor tos chegassem a duas dúzias, o número de anúncios com runa representava no máximo a metade e muitas vezes mal chega va a um terço. Mas o que me pareceu mais estranho foi per ceber que o tipo de anúncio que se pretendia mais nazista mantinha-se fiel à cruz e à estrela. O mesmo ocorria com a comunicação dos nascimentos: menos da metade, ou até bem menos, trazia o emblema da runa, e os mais nazistas eram os 95 Jornal diário alemão de renome internacional, órgão do Partido Social democrata. Foi proibido em 1 943. 1 30
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que mais a omitiam, pois havia uma estilística própria da LTI para anúncios de família. É fácil explicar por que a runa da vida, positiva e negativa, não conseguiu ser aceita nem assimilada como a imagem do SS, que se impôs com vigor. SS era uma designação totalmente nova para uma instituição totalmente nova, o símbolo SS não estava lá para desalojar nada. Por outro lado, há quase 2 mil anos os símbolos de nascimento e morte (as mais antigas e imutáveis instituições da humanidade) são a cruz e a estrela, símbolos profundamente arraigados no imaginário popular. Era impossível eliminá-los. E se as runas da vida tivessem conseguido se impor a pon to de dominar sozinhas durante o hitlerismo - será que eu teria dificuldade de identificar as causas! De modo algum! Nesse caso, teria escrito, como fiz acima, com a mesma cons ciência tranquila, que isso era perfeitamente compreensível, pois a tendência geral da LTI era tornar as coisas mais palpá veis, resultado que podia ser obtido recorrendo-se à tradição germânica, à runa. Com sua forma pontiaguda, a runa da vida era associada à imagem do SS; como símbolo de uma Welt anschauung [visão de mundo] , pertenceria aos raios da roda do Sol, uma das pernas da cruz gamada. Por esses motivos, seria a coisa mais natural do mundo que as runas da vida desbancassem por completo a cruz e a estrela. Se posso descrever, com as mesmas boas razões, o que não aconteceu mas poderia ter acontecido, o que posso dizer da quilo que aconteceu? O que, então, de fato comprovei e des mistifiquei? Também nesse caso os limites se confundem, surgem insegurança, hesitação e dúvida. Ponto de vista de Montaigne: Que sais-je, o que sei? Ponto de vista de Renan: o ponto de interrogação é o mais importante de todos os si nais de pontuação. É a posição de extremo antagonismo à tei mosia e à autoconfiança nazistas. 131
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O pêndulo da humanidade oscila entre ambos os extre mos, procurando o ponto de equilíbrio. Antes de Hitler e du rante o período de Hitler afirmou-se inúmeras vezes que todo progresso se deve aos obstinados e todos os empecilhos se de vem aos simpatizantes do ponto de interrogação.96 Não se pode afirmar isso com certeza. Mas se pode afirmar, com cer teza, que mãos sujas de sangue são sempre de obstinados.
96 Ou seja, àqueles que questionam. 132
CAPIT U LO 1 2
PONTUAÇÃO
Pode-se notar que pessoas ou grupos de pessoas preferem esse ou aquele sinal de pontuação. Os eruditos amam o ponto e vírgula; seu anseio pelo raciocínio lógico exige um sinal de se paração mais preciso que a vírgula, mas menos absoluto que o ponto. Renan, o cético, afirmou que nunca se chegaria a usar uma quantidade suficiente de pontos de interrogação. O movimento Sturm und Drang97 abusa dos pontos de excla mação. Nos primórdios, os naturalistas na Alemanha gosta vam de usar o travessão: nas frases, as sequências de ideias não seguem uma lógica de trabalho escrupulosa, elas param de repente, fazem alusões, permanecem incompletas, são de na tureza associativa, fugaz e descontínua, de acordo com as cir cunstâncias em que surgem, como se seguissem um monólo go interior ou um diálogo acalorado, sobretudo entre pessoas pouco acostumadas ao pensamento sistemático. Poderíamos supor que a LTI, essencialmente retórica e sempre dirigida ao sentimento, deveria se valer mais dos pon tos de exclamação, como o Sturm und Drang. Não é isso que se vê; ela usa esse sinal com bastante parcimônia. É como se a LTI, ao transformar tudo em apelo e exclamação, tornasse inú til o recurso a um sinal de pontuação específico para denotar isso. Pois, na realidade, onde se encontram na LTI afirmações simples e singelas que a exclamação pudesse destacar? Em compensação, a LTI usa ad nauseam o que podemos chamar de aspas irônicas. As aspas simples e primárias indicam tão somente uma reprodução literal de algo que alguém disse ou escreveu. As aspas irônicas não se restringem a uma citação neutra. Colo97 Ver nota 92, capítulo 1 1 . 133
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cam em dúvida a veracidade do que foi dito, qualificando por si mesmas essa afirmação como mentirosa. Levando em con ta que um orador pode manifestar seu desprezo com uma mera entonação na voz, pode-se afirmar que as aspas irônicas estão estreitamente ligadas ao caráter retórico da LTI. É óbvio que elas não foram inventadas pela LTI. Durante a Primeira Guerra Mundial, quando os alemães se vangloriavam de uma superioridade cultural e olhavam para a civilização ocidental com desprezo, como se fosse uma conquista super ficial e menor, os franceses nunca omitiam as aspas irônicas ao mencionarem a "culture allemande". É provável que o uso delas tenha se iniciado na mesma época em que as aspas co muns foram inventadas. Na LTI, porém, o emprego irônico predomina largamente sobre o neutro, pois ela odeia a neutra lidade. Precisa ter sempre um adversário a ser rebaixado. As vitórias dos revolucionários espanhóis eram sempre "vitórias" vermelhas. Os oficiais eram "oficiais" vermelhos, o estado maior era um "estado-maior" vermelho. Mais tarde passa a ocorrer o mesmo com a "estratégia" russa, com o "marechal" Tito dos iugoslavos. Por meio das aspas irônicas, Chamberlain, Churchill e Roosevelt sempre foram chamados de "estadistas': Einstein de "pesquisador': Rathenau de "alemão" e Heine de "poeta" alemão. Não há um único artigo de jornal, uma única transcrição de discurso que não esteja cheia de aspas irônicas, que também estão presentes em estudos mais precisos, elabo rados com mais serenidade. Elas estão na LTI impressa, tanto quanto na entonação de Hitler e de Goebbels. No meu último ano na escola, em 1 900, tive de fazer uma redação sobre monumentos. Uma das frases dizia: "Após a guerra de 1 870, em quase todas as praças das cidades alemãs havia uma Germânia vitoriosa, empunhando bandeira e es pada. 9 8 Posso citar uma centena delas." Cético, o professor 98 Figura de mulher simbolizando o antigo império alemão. Após 1 850, passou a ser representada na forma de uma valquíria. 134
CAPIT U LO 1 2 1 P O N T U AÇÃO
escreveu na margem, com tinta vermelha: "Na próxima aula traga uma dúzia desses exemplos!" Encontrei somente nove e me curei da mania de encher a boca com números. Apesar disso, e já que em minhas considerações a respeito da LTI te nho muito a dizer sobre o abuso de números, eu poderia es crever com a consciência tranquila sobre o uso indevido das aspas irônicas: "Quanto a isso sou capaz de citar mil exem plos:' Um desses mil, em geral muito semelhantes entre si, diz: "Faz-se distinção entre gatos alemães e gatos 'de luxo'."99
99 É provável que Klemperer tenha tirado esse exemplo do boletim da Associação Protetora de Animais, da qual fora sócio. Ele relata o seu protesto contra o tratamento dado aos animais de estimação dos ju deus durante o nazismo. Seu gato e seu canário tiveram de ser sacrifi cados, pois judeus não podiam ter esses bichinhos. 135
CAPIT U LO 1 3
NOMES
Havia uma anedota antiga de colégio, transmitida de geração em geração (agora que poucas escolas ensinam grego, é possí vel que a anedota não exista mais) . Era assim: como a palavra Fuchs [ raposa] surgiu da palavra alopex do grego? Na seguinte ordem: alopex, lopex, pex, pix, pax, pucks, Fuchs. Desde que me formei na universidade, e lá se vão uns trinta anos, não tinha mais pensado nela. Entretanto, em 1 3 de janeiro de 1 934 ela me veio à cabeça de repente, como se a tivesse contado na vés pera. Nessa ocasião, eu estava lendo a circular semestral n° 72, na qual o magnífico reitor informava que um professor cha mado Israel, que também era vereador nazista, "fora autoriza do pelo ministério" a retomar o antigo nome de família. "No século XVI chamavam-se Oesterhelt, que ficava em Lausitz; de pois o nome evoluiu para Uesterhelt, Isterhal (também Ister heil e Osterheil) , Istrael, Isserel e, por engano, chegou a Israel:' Foi assim que imaginei pela primeira vez que na LTI deve ria haver um capítulo sobre nomes. Depois disso, cada vez que passava diante da nova placa onde reluzia o nome Oesterhelt, em um portão de jardim no bairro suíço, eu me recriminava por enquadrar esse assunto sub specie Judaeorum [no tema ju daico] , pois ele não se esgota na temática judaica e também não é um capítulo que deva pertencer exclusivamente à LTI. Toda revolução - social, política, artística ou literária contém duas tendências: há, em primeiro lugar, o anseio pelo novo, em que se reforça o contraste com o que prevalecia até o presente; em seguida, no entanto, torna-se necessário esta belecer um elo com o passado, com uma tradição que a legi time. Nada é completamente novo. Há um retorno aos valo res da época que se pretendeu negar, à humanidade, à nação, 137
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à moral, à verdadeira essência da arte etc. etc. Ambas as ten dências aparecem claramente nas maneiras como se atribuem ou se alteram os nomes. O hábito de dar a um recém-nascido, ou a alguém que se deseja rebatizar, o nome e o sobrenome de um campeão da nova ordem é uma prática que se restringe essencialmente à América, especialmente à América negra. A Revolução Ingle sa, puritana, difundiu nomes do Antigo Testamento, que eram reforçados com citações bíblicas ( Josué, "louve o Senhor, alma minha") . A Revolução Francesa buscou seus personagens na Antiguidade clássica, particularmente a romana, de modo que cada tribuno do povo tomou para si e seus filhos os dignos nomes de Tácito e Cícero. Da mesma maneira, um nacional socialista que se preze apregoa, alto e bom som, sua ascendên cia de sangue e de alma com os germanos e os deuses do Nor te. Quando Hitler surgiu, o terreno já fora preparado pela popularidade de Wagner e por um nacionalismo antigo; ha via um número razoável de Horst, Sieglinde e outros. Talvez a influência do Movimento Juvenil Wandervõgel'ºº tenha sido mais forte que o culto a Wagner. O Terceiro Reich tornou quase uma obrigação o que até então havia sido moda ou hábito. Se o chefe da juventude hitlerista se chamava Baldur, 1 01 então como ficar atrás? Já em 1 944, entre nove anúncios de nascimento que encontrei em um jornal de Dresden, seis tinham nomes tipicamente ger mânicos: Dieter, Detlev, Uwe, Margit, Ingrid, Uta. Nomes du plos, ligados por hífen, como Bernd-Dietmar, Bernd-Walter, Dietmar-Gerhard, tornaram-se muito apreciados, pela sono ridade, pela dupla profissão de fé, pelo caráter retórico, po dendo-se depreender neles a intenção de pertencer à LTI. Ou1 00 101
Agremiação criada no fim do século XIX em Berlim, tendo em vista arregimentar jovens para a prática de caminhadas e do canto coral. Baldur von Schirach ( 1 907- 1 974) tornou-se líder da Hitler Jugend em 193 1 . 1 38
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tra característica da LTI são os diminutivos: Klein-Karin [pe quena Karin] , Klein-Harald [ pequeno Harald] . Adiciona-se uma pitada de meiguice ao nome do herói de uma antiga ba lada e eis que surge uma sedução encantadora. Estarei exagerando ao falar em um padrão imposto? Acho que não, pois vários nomes tradicionais tornaram-se passí veis de desconfiança e alguns foram proibidos. Nomes cristãos eram muito mal vistos. Seus portadores eram suspeitos de oposicionismo. Acho que em 5 de fevereiro de 1 945, pouco antes da catástrofe de Dresden, 102 veio parar em minhas mãos, como papel de embrulho, um número do jornal Illustrierter Beobachter [Observador Ilustrado] que continha um espanto so artigo intitulado "Heidrun". Espantoso porque vinha no suplemento Volkischer Beobachter [ Observador do Povo] , jor nal oficial nazista. No decorrer desses anos lembrei-me diversas vezes de uma estranha cena do último ato de Der Traum, ein Leben [O so nho, uma vida] , de Grillparzer. 103 Não há mais como salvar o jovem herói do crime de sangue em que se envolvera; ele pre cisa se penitenciar. Ouve, então, o soar de um relógio e mur mura: "Escuta! Soa a hora! São três da madrugada I Dentro em breve tudo terá terminado:' Semiacordado por um segun do, percebe que o tormento não passara de um sonho, um sonho instrutivo, uma visão de seu potencial não realizado: "Fantasmas, visões noturnas; / Delírio de uma mente enfer ma, se preferirdes, I E nós os vemos [os fantasmas] , pois nossa alucinação se deve ao estado febril." Algumas vezes, mas jamais com tanta clareza como nesse artigo tardio, "Heidrun", foi possível perceber nas publicações 102 103
Bombardeio aliado sobre Dresden em 13 de fevereiro de 1945, que des truiu praticamente toda a cidade. Franz Grillparzer ( 1 79 1 - 1 872), escritor e poeta dramático nascido na Áustria. Suas fontes de inspiração iam da Antiguidade às mitologias do Império Austro-Húngaro, passando por Goethe e Calderón de la Barca. 139
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dos adeptos de Hitler sua percepção semiconsciente de culpa, como ao soar das "três da madrugada". Quando eles acorda ram era tarde demais. O frenesi mórbido não pôde se desfa zer como mera alucinação; eles realmente tinham assassina do. Em "Heidrun" o autor ridiculariza duplamente os Pgs, 104 seus colegas de partido. Escreve, por exemplo, que se os pais, antes de se afastarem da Igreja (passo obrigatório para os SS e outros nazistas mais ortodoxos) , tivessem tido uma fase "menos alemã" em suas vidas e cometido o deslize de bati zar a primogênita de Christa, poderiam remediar o erro cor rigindo a ortografia do nome da pobre criatura, consertando esse nome semioriental para Krista, com a letra inicial K, do alemão. Para expiar completamente o pecado, deveriam dar à segunda filha o nome Heidrun, tipicamente germânico e pagão, que de acordo com Müller & Schulze seria uma ger manização de Érika. 1 05 Na verdade, Heidrun era a "cabra ce lestial" da Edda, 106 que corria atrás do bode cheia de desejo, com as tetas carregadas de Met. 1 07 Ou seja, um nome nórdico, mas nada apropriado para uma menina ... Teria a advertência do artigo servido para preservar alguma criança de ter esse nome? Foi publicado tardiamente, menos de três meses antes do colapso. Há poucos dias ouvi procurarem uma Heidrun na Silésia pelo serviço radiofônico de busca ... 1 08 1 04
Abreviatura de Parteigenosse, membro sem importância no Partido Nazista. 105 Em latim, significa flores do campo, mas também quer dizer Heide [pagão ] . 1 06 Coleção de poemas em norueguês antigo. É a fonte de informação mais importante sobre a mitologia nórdica e os heróis germânicos lendários. 107 Hidromel, bebida da mitologia germânica, semelhante ao néctar do Olimpo grego. 1 08 Logo após o fim da guerra começou a busca de familiares perdidos, inclusive pelo rádio. 1 40
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Enquanto nomes como Christa levantam suspeita ao. se rem apresentados nos cartórios do registro civil, nomes do Antigo Testamento estão terminantemente proibidos: nenhu ma criança alemã pode chamar-se Lea ou Sara. Se algum pas tor desavisado registrar um desses nomes, o oficial do cartó rio recusará o registro e as instâncias superiores rejeitarão com indignação a eventual queixa. " Procurava-se poupar o Volksgenosse109 [ camarada do povo] desses nomes. Em setembro de 1 940 vi uma propaganda des se tipo, anunciando uma apresentação musical em uma igre ja: "Herói de um povo, oratório de Handel': Embaixo vinha es crito com letras bem pequenas, entre parênteses, revelando o temor do editor: "Judas, o macabeu, nova versão". Nessa época li um romance histórico traduzido do inglês: The Chrimicle of Aaron Kane. A editora Rütten & Loenig, a mesma que lan çara a monumental biografia de Beaumarchais escrita pelo judeu vienense Anton Bettelheim, se desculpava na primeira página por não ter podido mudar os nomes bíblicos dos per sonagens, pois correspondiam ao puritanismo e aos hábitos do local e da época da narrativa. Outro livro traduzido do inglês, cujo autor não lembro, foi Geliebte Sohne [Queridos filhos] ; na contracapa constava em letra miúda o título ori ginal: ó Absalão! 1 10 O nome de Einstein desapareceu dos cur sos de física, e a unidade de frequência, o hertz, 1 1 1 não podia mais ser designada com esse nome judaico. 1 09 Membro da unidade mística da raça de sangue ariano. 1 1 0 Talvez seja o livro de William Faulkner. Segundo o Antigo Testamen to, Absalão foi o terceiro filho do rei Davi, que era admirado por sua beleza e que tentou usurpar o trono do pai. 1 1 1 O físico judeu alemão Heinrich Rudolf Hertz ( 1 857- 1 894) deu im portantes contribuições ao estudo do eletromagnetismo. Seu sobre nome passou a designar a unidade de frequência das ondas elétromag néticas. 141
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O Volksgenosse tinha de ficar distante não só dos nomes judaicos, mas especialmente dos indivíduos judeus, os quais foram isolados. Um dos recursos mais eficazes para provo car o isolamento foi identificar os judeus pelo nome. Quem não tinha um nome explicitamente judaico, como Baruch ou Recha, ou tinha um nome que não fosse de uso comum na Alemanha, teve de acrescentar Israel ou Sara ao próprio no me. O judeu era obrigado a informar ao banco e ao cartó rio o nome acrescentado e não podia omiti-lo, nem por es quecimento, quando assinasse algum papel. Tinha de avisar a todos que não esquecessem de adicionar esse nome quando lhe enviassem qualquer correspondência. Se fosse casado com uma mulher ariana e não tivesse filhos com ela, tinha de usar a estrela amarela. A palavra Jude [judeu] dentro da estrela, em caracteres semelhantes ao alfabeto hebraico, equivalia a um nome estampado no peito. Na porta do nosso quarto ha via duas placas. Sob o meu nome constava a estrela e sob o nome da minha mulher, a palavra "ariana': Na minha carteira de racionamento havia inicialmente um J. Depois o J passou a ser impresso em diagonal sobre a carteira, e por fim a pa lavra "judeu" constava por extenso em cada cuponzinho, re petindo-se umas sessenta vezes na cartela. Quando se falava de mim oficialmente, eu era "o judeu Klemperer': Ao me apre sentar à Gestapo, eu levaria uma surra se não dissesse em tom suficientemente zackig [ enérgico ] : ''Aqui está o judeu Klem perer". A humilhação aumentava com o uso da apóstrofe, substituindo-se assim uma frase afirmativa por uma frase de desprezo, como li em um jornal sobre meu primo Otto Klem perer, músico, que conseguira emigrar para Los Angeles: "Jud' [ em vez de Jude] Klemperer, fugitivo e condenado". Quando se falava sobre os odiados Kremljuden [judeus do Kremlin] Trotsky e Litinov, eles eram sempre denominados Trotzki Bronstein e Litinow- Finkelstein. Quando se falava sobre o 142
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igualmente odiado prefeito de Nova York, era o "judeu La guardia" ou, pelo menos, o "meio judeu Laguardia': Quando, apesar da tormenta, um casal judaico trazia um filho ao mundo, então os pais não deviam dar nomes alemães à "cria" - ainda posso ouvir o agente da Gestapo berrando com uma senhora delicada: "Tua cria nos escapou, judia por ca. Vamos acabar contigo!"; dito e feito: na manhã seguinte ela não acordou mais de uma overdose forçada de verona!. Os pais estavam proibidos de dar nomes alemães aos filhos para que não induzissem a erro; o governo nacional-socialista lhes ofe recia uma série de estranhos prenomes judaicos, que rara mente tinham a dignidade dos nomes do Antigo Testamento. Em artigos denominados Halbasien [ Quase-Ásia] , Karl Emil Franzos1 12 conta como os judeus da Galícia receberam nomes no século XVIII. José II, por conta do Iluminismo e de um sentimento humanitário, deliberou que os judeus tinham de ter sobrenomes. Por fidelidade à ortodoxia, muitos se opu seram a isso, fazendo com que funcionários subalternos, por escárnio, os forçassem a adotar sobrenomes ridículos e cons trangedores. O escárnio daquela época, usado contra a in tenção do legislador, foi empregado deliberadamente pelo go verno nazista, que, não contente em marginalizar os judeus, queria também difamá-los. Para isso, foi-lhes oferecido o yidisch, 1 1 3 considerado pelos alemães uma distorção, grosseira e feia, da língua alemã. Só 112
Escritor e jornalista nascido n a România, antiga Galicia, e m 1 848. Seus relatos de viagem ao leste do Império Austro-húngaro a serviço do jornal Neue Freie Presse, de Viena, entre 1 874 e 1 876, resultaram na coletânea Aus Halb-Asien [ Da Quase-Ásia] , mencionada por Klem perer, em que retrata a vida dos judeus de lá. Defendia que os ju deus deveriam se aproximar da "cultura alemã". Morreu em Berlim em 1 904, deixando vasta obra literária. 1 1 3 Língua falada pelos judeus da Europa Central, especialmente os as quenasitas. Teve origem no sudoeste da Alemanha, na Idade Média. 143
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os germanistas profissionais sabiam que esse dialeto prova va justamente há quantos séculos os judeus estavam ligados à Alemanha e que sua pronúncia coincidia quase perfeita mente com a de Walter von der Vogelweide1 14 e de Wolfran von Eschenbach. 1 15 Eu gostaria de saber qual professor de ger manística chamou a atenção dos estudantes para isso durante o nazismo! Os nomes que restaram aos judeus eram os que soavam inconvenientes e ridículos ao ouvido alemão, como Võgele, Mendele, diminutivos carinhosos em yidisch. Na última Judenhaus em que vivemos, eu passava diaria mente diante de uma placa diferente, presa em uma porta. Constavam lado a lado os nomes de pai e filho: Baruch Levin e Horst Levin. O pai não precisara acrescentar Israel ao no me, pois Baruch já era suficientemente judaico, procedente de uma região polonesa de judeus ortodoxos. Ao filho, por sua vez, não carecia acrescentar Israel ao nome porque era Mischling [ meio judeu] , pois o pai, aspirando à germanidade, contraíra casamento misto. Houve uma geração judaica de Horst, cujos pais fizeram de tudo para comprovar seu gosto pelo Teutschtum [ teutonismo ] . Esses Horst foram menos mal tratados pelos nazistas do que os pais - falo espiritualmente, pois na hora de serem enviados aos campos de concentração e às câmaras de gás não houve qualquer distinção de geração: judeu era judeu. Mas os Baruch sentiam-se escorraçados da _ terra que amavam, a pátria alemã. Havia muitos Horst e Sieg fried que, sendo Volljucien [ totalmente judeus ] , eram obri gados a acrescentar Israel. Ocorre que os mais jovens era.m indiferentes à germanidade, e uma parte considerável deles era até mesmo hostil à Alemanha. Criados na atmosfera na zista de um romantismo pervertido, eram sionistas ... 1 14 1 15
Walter von der Vogelweide, poeta austríaco ( 1 1 70- 1 230). Wolfran von Eschenbach, poeta alemão ( 1 1 70- 1 220). 144
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Eis que de novo me prendo a questões judaicas. É minha culpa ou do tema deste livro? Ele deveria conter também pá ginas não judaicas. E contém. Na escolha de nomes, o desejo de valorizar a tradição atin giu até mesmo pessoas esclarecidas, que de maneira geral mantinham-se distantes do nazismo. Um diretor de escola que preferira se aposentar a se filiar ao partido gostava de me contar as proezas do netinho Isbrand Wilderich. Perguntei como tinham escolhido o nome do menino, e ele respondeu: "Assim se chamava um homem do nosso Sippe [ clã] , que veio da Holanda no século XVII..." Ao usar a palavra Sippe esse di retor de escola, protegido da sedução hitlerista pelo catolicis mo fervoroso, denunciava como sua forma de expressão fora infectada pelo nazismo. Na linguagem antiga, Sippe era uma palavra neutra que significava parentesco, em sentido de fa mília extensa. Decaíra para um sentido pejorativo para depois retornar, solenemente dignificada, sob o nazismo. Sippenfor schung [ pesquisar seu clã ] tornou-se um dever moral dos "camaradas do povo". Em contrapartida, a tradição é posta de lado, sem escrú pulos, quando entra em jogo uma característica, tipicamente alemã, ridicularizada e considerada pedante: Gründlichkeit, ou seja, ir a fundo nas coisas, com minúcia. Grande parte da Ale manha foi povoada por eslavos, e os nomes das localidades correspondem a esse fato histórico. Mas repugnava ao princí pio nacionalista e ao orgulho racial do Terceiro Reich tolerar nomes não alemães para as localidades. A geografia foi purifi cada até os mínimos detalhes. Ao ler o artigo "Nomes alemães em localidades no Leste" no Dresdner Zeitung de 1 5 de no vembro de 1 942, anotei quantos nomes haviam sido altera dos em cada região. Em Mecklenburg a terminação Wendisch [vêndico] 1 16 foi excluída em muitas aldeias; nomes de outras 1 16
Relativo aos vênedos, antigo povo eslavo que habitava do Vístula ao Volga. 145
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aldeias foram germanizados: 1 20 na Pomerânia, 1 75 em Bran denburgo, especialmente na região do vale do Spreewald. Na Silésia houve 2.700 germanizações. No distrito governamen tal de Gumbinnen, 1 1 7 onde as terminações da "raça inferior" lituana incomodavam, locais como Berninglauken viraram Berningen, que soava mais nórdico. Nesse distrito, de um to tal de 1 .8 5 1 comunidades, 1 . 1 46 foram renomeadas. O desejo de preservar a tradição manifesta-se mesmo quando se trata de renomear ruas como deutschtümelnd [ho menagem ao teutonismo] . Os mais antigos e desconhecidos conselheiros, prefeitos e professores são desenterrados e seus . nomes são meticulosamente escritos nas placas das ruas. Aqui em Dresden, na parte sul da cidade alta, há uma nova rua chamada Tirmannstrasse. Podemos ler sob o nome: "Mestre Nikolaus Tirmann, prefeito, falecido em 1 437"; de forma se melhante pode-se ler em outras placas dos subúrbios: "Con selheiro municipal no século XIV" ou "Escreveu uma crônica sobre a cidade no século xv·: Será que Joseph foi considerado um nome muito católico ou queriam apenas criar espaço para um pintor romântico, ou seja, tipicamente alemão? Seja como for, o nome da rua Joseph-Strasse, em Dresden, foi alterado para Caspar-David Friedrich-Strasse, uma dor de cabeça e tanto para os correios. Quando vivemos em uma Judenhaus nessa rua, era frt:quente recebermos correspondência endereçada assim: Casa do Se nhor Caspar David, na Friedrichstrasse. Uma mescla de amor pelas corporações da Idade Média e publicidade moderna aparece nos carimbos postais, em que os nomes das cidades são seguidos por complementos que lhes atribuem uma especificidade. "Leipzig, cidade das feiras" é uma expressão antiga, não nazista. Novidade nazista, entre tanto, é o carimbo "Cleve, fábrica dos bons sapatos infantis". 1 17
Na Prússia Oriental. 146
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Anotei o seguinte em meu diário: "'Cidade da fábrica da Volkswagen em Fallensleben', onde o carimbo postal incorpo ra não somente informação sobre o comércio local e propa ganda industrial, mas também uma mensagem política - as sinala o complexo industrial preferido do Führer, onde se fabrica o Volkswagen [ carro do povo ] ." A montagem dessa fá brica foi uma impostur�, pois desde o início o projeto tinha em vista um veículo bélico, mas o nome induziu o povo a subvencionar a construção da fábrica. 1 18 Houve carimbos notáveis, inescrupulosamente políticos: "Munique, cidade do �ovimento" e "Nuremberg, cidade do congresso do partido", situada no Traditionsgau [ distrito da tradição ] , justamente onde se localizavam os gloriosos primórdios do nacional socialismo. Substituir Provinz [ Estado] por Gau foi outro vín culo com temáticas teutônicas. Considerando que o Warten gau incluía territórios totalmente poloneses, o acréscimo da palavra Gau foi a maneira encontrada pelos alemães para legalizar regiões anexadas. As regiões fronteiriças receberam o aposto Mark. O nome Ostmark foi uma forma de facilitar a anexação da Áustria à G rande Alemanha, da mesma for _ ma que a Holanda foi anexada como Westmark. A sede de . conquista mostrou-se mai� desavergonhada ao se retirar o no me da cidade polonesa de Lodz, transformando-a em Litz mannstadt, em homenagem ao seu conquistador durante a Primeira Guerra Mundial. Enquanto escrevo esses nomes, vejo diante de mim um ca rimbo muito especial: Litzmannstadt-Getto [ gueto de Litz1 18
Hitler prometeu aos alemães que cada qual teria seu próprio carro. Ele decretou que o Estado venderia a unidade por 990 marcos, um preço baixo. O projeto foi confiado à Frente de Trabalho, que elaborou um plano: o capital deveria ser depositado em um sistema de crédito cha mado "pagar antes de receber". Os alemães depositaram o dinheiro, mas nunca receberam veícutos. Quando a guerra começou, a Volks wagen passou a produzir para o Exército. 147
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mannstadt] . Apresento aqui nomes que vieram compor a geo grafia do inferno da história universal: Theresensienstadt, Buchenwald, Auschwitz etc. Ao lado deles surge um nome que ' pouquíssima gente conhece, pois dizia respeito somente a nós, moradores de Dresden, tendo sido mortos todos aqueles a quem mais dizia respeito: o campo de concentração Heller berg. No outono de 1 942 foram levados para lá os judeus re manescentes de Dresden, que ficaram em barracas miseráveis, mais miseráveis que as destinadas aos prisioneiros russos. Poucas semanas depois, eles seguiram para as câmaras de gás de Auschwitz. Alguns poucos de nós, que vivíamos em casa mentos mistos, fomos poupados. Eis que retorno à questã� judaica. É minha culpa? Não, a culpa é do nazismo, só dele. Acabei vindo parar nesse tema (por assim dizer) de patrio tismo local, suficientemente amplo e excelente para escrever uma dissertação de doutorado, mas tive de me contentar com notícias tomadas ao acaso e com alusões casuais (talvez uma agência dos correios pudesse completar o material) . Preciso contar uma pequena falsificação de documento que me diz respeito e ajudou na minha salvação. Estou certo de que não fui o único. A LTI foi uma linguagem de cárcere (tanto do car cereiro quanto do encarcerado) . Uma linguagem assim neces sita, por legítima defesa, de palavras secretas, que conduzem a ambiguidades falaciosas, a falsificações etc. Nosso amigo Waldmann estava em melhores condições que nós, depois de escaparmos do extermínio de Dresden e fugirmos da base aérea de Klotzsche. Arrancamos a estrela amarela judaica, deixamos o perímetro urbano, sentamos com arianos no mesmo vagão - em uma palavra, cometemos uma série de pecados mortais, cada um dos quais nos teria . conduzido à forca se tivéssemos caído nas mãos da Gestapo. Waldmann dizia: "Na lista telefônica de Dresden há oito Waldmanns, e eu sou o único judeu entre eles - como meu 148
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nome poderia dar na vista?" Meu caso era diferente. Do outro lado da fronteira da Boêmia, Klemperer é um nome judaico muito conhecido. Klemperer não tem nada a ver com Klemp ner [ mestre do estanho] , e sim com Klopfer, aquele que, na comunidade judaica, bate nas janelas para acordar todos para a oração matinal. Em Dresden havia poucos com esse nome, todos conhecidos. Depois de tantos anos de horror, eu era o único que permanecia. Dizer que eu tinha perdido todos os documentos poderia levantar suspeita. E era impossível não fazer contato com as autoridades: precisávamos de cartões de racionamento, bilhetes de transporte - ainda éramos muito civilizados e acreditávamos na necessidade de obter tudo isso... Então nos lembramos de um vidrinho de farmácia, de um remédio que havia sido prescrito para mim. Na receita, rabiscada por um médico, meu sobrenome estava errado em dois lugares, de forma que seria possível alterá-lo. Um ponto já bastaria para fazer do m um in, e um tracinho milimétrico alterou o primeiro r para um t. Assim, Klemperer tornou-se Kleinpeter. Era difícil que uma agência de correios fosse capaz de computar quantos Kleinpeter havia no Terceiro Reich.
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CAPIT U LO 1 4
KOHLENKLAU 1 19
No começo de 1 943, o Departamento de Trabalho enviou-me como operário não qualificado para a fábrica de chás e plan tas medicinais Willy Schlüter, que crescera muito por causa das encomendas de guerra. 12º Comecei como empacotador de chá pronto, que eu colocava em caixas de cartolina. Era um trabalho sem graça mas fisicamente leve, de forma que logo foi destinado só às mulheres. Puseram-me, então, nos locais de preparação propriamente ditos, onde ficavam os tambores de mistura e as máquinas de cortar. Recebíamos uma enor me quantidade de matéria-prima. Nós, judeus, tínhamos de ajudar na descarga e no armazenamento. A situação do chá Schlüter podia ser comparada à dos regimentos militares: so mente o nome permanecia o mesmo, o conteúdo mugava sem parar. Aliás, era o que acontecia com todos os chás: enfiava-se na embalagem tudo ·que fosse possível encontrar. Em uma tarde de mai.o eu estava no porão amplo e are jado, o único local que ocupava uma ala inteira do edifício. Com exceção de uns pequenos nichos e de passagens estreitas, esse enorme depósito estava abarrotado de sacos até o teto. Chegavam cada vez mais sacos com todo tipo de ervas e chás, 1 19 O título deste capítulo, "o que furta carvão", ou "surrupiador de car vão': é uma expressão que foi criada para desencorajar o roubo de car vão nos trens parados, o que às vezes acontecia com a cumplicidade dos maquinistas. 12º Essa fábrica foi importante para os Klemperer, mesmo depois da guer ra. O proprietário, Willy Schlüter, sempre respeitou os judeus. Tendo ganhado muito dinheiro com a venda da fábrica após a guerra, distri buiu parte dele entre os"antigos funcionários que ainda viviam. Victor Klemperer recebeu 500 marcos em 1 945. 151
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como espinheiros brancos, flores de tília, urzes, hortelã e man jericão, que eram empilhados uns sobre os outros. A cada nova remessa, os sacos trazidos do pátio eram jogados janela adentro, deslizando rampa abaixo e amontoando-se mais ra pidamente do que conseguíamos arrastá-los para os respecti vos lugares. Eu ajudava a separar e selecionar os sacos, que ti nham rolado uns sobre os outros, e admirava os carregadores que subiam as rampas com as cargas pesadas e volumosas nas costas para encaixá-las nos poucos lugares ainda desocupados. Uma funcionária do escritório, que acabara de descer com uma encomenda, começou a sorrir ao meu lado: "Kohlenklau [ furtador de carvão ] está demais, pode trabalhar em qualquer circo." Eu perguntei a um companheiro a quem ela se referia e a resposta veio com uma ponta de condescendência por mi nha ignorância, pois qualquer um que não fosse surdo ou cego tinha de saber: "É óbvio que ela está falando do Otto. Todos o chamam de Kohlenklau." Olhei para a figura que me mostravam. Tinha queixo du plo. Observei como ele, encurvado mas com passos rápidos em direção ao monte de sacos, encaixava um por um nas fres tas que ainda havia na pilha lateral embutida na parede, com os braços estendidos, passando-os por cima da cabeça, em um movimento de costas, ombros e cabeça, como se fosse uma la garta. Mas também parecia um gorila; sua figura tinha algo de fantástico, de conto de fadas: braços de macaco, tronco largo sobre coxas grossas e curtas, pernas formando um "O'', pés calçados em sapatos bem rasos, grudados ao piso irregular como se fossem tentáculos de um polvo. Quando se virou, percebi que o rosto lembrava o de um sapo e os cabelos escu ros lhe caíam sobre a testa estreita e os olhos pequenos. Nas propagandas colocadas em postes e muros das ruas, várias ve zes eu vira uma figura semelhante, com o mesmo porte e o mesmo rosto, mas nunca havia parado para observar melhor. 1 52
CAPIT U LO 1 4 I KOHLENKLA U
Os cartazes nazistas se pareciam uns com os outros. O que se via era sempre o mesmo tipo de guerreiro bruto e ades trado, empunhando uma bandeira, um fuzil ou uma espada, usando uniforme das SA, das SS ou do Exército, ou mesmo com o tronco nu. Sempre a mesma combinação de força física, intenso fanatismo, musculatura, cenho duro e ausência de si nais de atividade mental. Eram essas as características da pro paganda que lidava com o esporte, a guerra e a subserviência à vontade do Führer. Em uma assembleia de professores de filo logia de Dresden, realizada logo após a ascensão de Hitler, eu ouvira uma afirmação patética: "Somos os servos do Führer." Depois desse episódio, a frase soava em meus ouvidos sempre que eu via um anúncio ou escutava uma vinheta do Terceiro Reich. E, quando se falava das mulheres, eram sempre as he roicas mulheres nórdicas dos heróis nórdicos. É realmente desculpável que eu olhasse somente de soslaio para esses pai néis: desde que passara a ser usuário da estrela,121 minha in tenção era chegar em casa o mais cedo possível, pois a rua me deixava com medo de sofrer as ofensas habituais, e os gestos de comiseração eram ainda mais constrangedores. Esses painéis de heroísmo, tão pobres de espírito, coloca vam em signos gráficos os elementos mais monótonos da LTI, ela mesma muito sem graça, sem enriquecê-la. Nesses dese nhos, apresentados às pencas, tampouco havia qualquer elo capaz de aproximar imagem gráfica e texto, de modo a gerar algum elo recíproco entre ambos. "Führer, ordene que obede ceremos!" ou "Nossas bandeiras serão vitoriosas! " eram slogans que se infiltravam nas mentes. Não vi nenhum caso em que uma frase ou palavra se encaixasse nesses desenhos. Também nunca conheci qualquer personagem de propaganda do Ter121 A partir de 19 de setembro de 1 94 1 todos os judeus foram obrigados a portar uma estrela amarela visível na lapela com a insígnia Jude [ju deu] em caracteres hebraicos. 1 53
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ceiro Reich que tivesse ganhado tanta vida como o Kohlenklau, que penetrou e dominou o cotidiano de todo o pessoal de uma fábrica. Passei a observar essa propaganda com mais atenção. De fato, ela oferecia algo novo. Parecia saída de um conto de fa das, de uma lenda cheia de visões fantasmagóricas, apelando para a fantasia. Em Versalhes há uma fonte inspirada na Me tamorfose de Ovídio: as personagens que estão na margem já foram meio afetadas pela poção mágica, sua figura humana vai se desfazendo e se transformando em uma forma animal. É assim que vejo Kohlenklau. Os pés estão mais para a con dição de anffüio, a bainha do paletó, que virou um coto, lem bra um rabicho, e a figura se assemelha ao ladrão que se es quiva encurvado, parecendo já um quadrúpede. A impressão de conto de fadas, que se sobressai nessa imagem, era ainda mais reforçada pela bem-sucedida escolha do nome popu lar Kohlenklau - palavra da linguagem coloquial, graças ao termo Klau [ furtador] , em vez de Dieb [ladrão] , mas ao mes mo tempo poética e elevada, acima do nível trivial, por causa da aliteração e da audácia no emprego do substantivo com posto ( compare com Fürsprech ! [ aquele que intervém] , em que, como em Kohlenklau, a segunda parte do substantivo composto é na verdade um verbo) . 122 A simbiose entre pala vra e imagem fixou-se na memória com muita força, como no caso do nome e das letras impressas SS. Tentou-se recriar algumas vezes um efeito semelhante, sem jamais tê-lo alcançado. Para mostrar algum esbanjamento de dinheiro - e não é à toa que não consigo me lembrar em quê - falava-se de um Groschengrab [lugar onde se desperdiça di nheiro ] ; a aliteração é boa, mas menos consistente do que Kohlenklau e o desenho, menos envolvente. Depois houve o Frostgespenst [ fantasma enregelado ] , que subia janela adentro, 122
Fürsprech!, verbo sprechen [ falar] ; Kohlenklau, verbo klauen [furtar] . 1 54
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todo encharcado, prenunciando mau agouro; mas nesse caso faltou a palavra apropriada para penetrar nas mentes. A ima _ gem do Lauscher [espreitador] foi a que mais se aproximou do Kohlenklau. Sua figura ficou exposta meses a fio em vitri nes, caixas de fósforos e cantos de jornal como advertência contra espiões. Mas a expressão que o acompanhava, Feind hort mit [ inimigo na espreita] , desconcertante para o ouvido alemão por causa do anglicismo de omitir artigos, já estava desgastada quando surgiu o Lauscher. Esses termos tinham aparecido em figuras novelescas: o inimigo pérfido sentado em um café fica atento às conversas desprevenidas da mesa ao lado, meio escondido l' ela leitura casual de um jornal. A eficácia da expressão Kohlenklau fez surgir variantes como Stundenklau [ladrão de horas de trabalho do outro] e Minenklau [barco para retirar minas] . O Reich publicou uma foto, denominada Polenklau, contra a política da União Sovié tica na Polônia. Kohlenklau reapareceu também na moldura de um espelhinho de mão. Na parte inferior dizia: "Olha bem para o espelho, és tu ou não és tu?" E, frequentemente, quan do alguém se esquecia de fechar a porta de uma sala aquecida, outro gritava: "Kohlenklau chegou!" O que mais evidencia tudo isso - mais, até mesmo, que o apelido do empregado Otto - e comprova o efeito desse anúncio quando comparado aos milhares de outros, é uma pequena cena na rua ocorrida em 1 944, época em que a aura do Kohlenklau já se esvaíra. Uma jovem senhora lutava em vão contra a teimosia do filhinho. O menino conseguia soltar-se repetidamente de sua mão na rua e, chorando, recusava-se a caminhar. Um senhor de idade, que assistia à cena, como eu, se aproxima do menininho, põe a mão em seu ombro e, com toda a calma do mundo, diz: "Queres ficar bonzinho junto de tua mãe e seguir com ela para casa, sim ou não? Se não, te levo para o Kohlenklau!" O menino olhou espantado para o senhor por um instante. Irrompeu em soluços, tomado de pavor, cor155
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reu para a mãe, agarrou-se à saia dela e começou a berrar: "Vamos para casa, mamãe, vamos para casa, mamãe! " Uma história d e Anatole France d á o que pensar. Acho que se chama "O jardineiro Putois". Putois é apresentado às crian ças de uma família como um personagem ameaçador, como "o homem negro", e com esse nome se fixa na memória delas. Ele adentra a pedagogia da geração seguinte e gradativamen te alcança as dimensões de um deus da família, uma divin dade por excelência. Kohlenklau, surgido pela ligação de pala vra e imagem, teria tido toda a chance de se tornar essa figura mítica, como Putois, caso o Terceiro Reich tivesse durado mais tempo.
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KNIF
Ouvi Knif pela primeira vez dois anos antes de a guerra co meçar. Berthold M. viera para cá fechar seus últimos negócios antes de emigrar para os Estados Unidos. "Por que devo me deixar estrangular aos poucos? Em alguns anos haveremos de nos rever! " Quando perguntei se ele achava que o regime du raria muito tempo, respondeu com um Knif O sarcasmo e a indiferença não escondiam a amargura que procurava dissi mular, pois o bushido 12 3 berlinense determinava que fosse as sim. Pouco à vontade, acrescentou com mais ênfase: Kakfif Ao meu olhar de interrogação respondeu com certa condescen dência: eu me tornara um provinciano que não entendia mais nada dos assuntos de Berlim. "Essa expressão é muito usada lá." Knif! - ou kommt nicht in Frage! [nem pensar! ] e Kakfif! - ou kommt auf keinen Fali in Frage! [ de jeito nenhum! ] . Os berlinenses sempre se destacaram pela sensibilidade pa ra captar o lado duvidoso das coisas e por um humor cáustico que enxerga o lado mordaz (por isso nunca entendi como o nazismo conseguiu se instalar em Berlim) . Em meados da década de 1 930 os berlinenses já haviam captado o aspecto ca ricato das abreviaturas. E, quanto mais inconveniente fosse a piada, melhor. Assim, nas noites de bombardeios passadas nos porões de Berlim, como antídoto para o cumprimento "boa noite!", surgiu a fórmula Popo, a partir de Penne ohne Pause oben! [ dormir direto, sem acordar] . 124 Em março de 1 944 houve uma advertência pública e oficial contra o empre1 2 3 "Caminho do combatente", em japonês. Foi o código de honra da cas ta guerreira na Idade Média. 1 24 Nesse caso, a gíria quer dizer: sem precisar descer para o abrigo an tiaéreo. 157
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go abusivo dessas Stümmelwõrter [ palavras aleijões] , nome dado às abreviaturas. O Dresdner Allgemeine Zeitung, impor tante jornal de Dresden conhecido como DAZ, às vezes pu . blicava temas linguísticos na seção Unsere Meinung [Nossa opinião ] . Dessa vez a matéria era sobre um decreto gover namental que pretendia se contrapor ao efeito · funesto das abreviaturas que "desfiguram a língua". O governo queria des fazer por decreto o seu próprio hábito de abusar de abrevia turas, cujo avanço, segundo ele, precisava ser detido. Havia dúvida se o conjunto de fonemas do t ipo Hersta der Wigru ainda fazia parte da língua alemã. A expressão constava de um dicionário de economia com o significado Herstellungsan weisung der Wirtschaftsgruppe [ instrução para a produção de um grupo econômico] . Cronologicamente situado entre o chiste popular de Ber lim e a observação no DAZ surgiu algo que se assemelha a má consciência e à pretensão de encobrir sentimentos de cul pa. Uma matéria publicada no Reich de 8 de agosto de 1 943, denominada "Hang und Zwang zur Kürze" [Vocação e gos to para abreviar] , responsabilizava o bolchevismo por essas "monstruosidades linguísticas", "um atentado contra o senso de humor alemão". Havia, é claro, abreviaturas bem-suce didas, e essas ( obviamente! ) tinham sido criadas pelo povo alemão, como Ari para "artilharia", muit_o usada na Primeira Guerra Mundial. Nesse artigo, o questionamento já vinha mal formulado: abreviaturas são criações muito artificiais, que se encontram tão afastadas do povo quanto o esperanto. Quase sempre, o povo se limita a imitações engraçadas. Criações como Ari são exceções. E a crítica à autoria russa das "monstruosidades ver bais" não consegue se sustentar com bom senso. Além disso, a matéria remetia a outro artigo que aparecera no Reich três me ses antes, em 7 de maio, em que se comentava o ensino da lín gua russa no sul da Itália, onde o fascismo já havia sido depos1 58
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to: "Os bolcheviques enterraram a língua russa, impondo uma torrente de abreviaturas e palavras artificiais dissonantes. [ ... ] O que se ensina aos alunos no sul da Itália não passa de gíria." Mesmo que o nazismo, ppr intermédio do fascismo italia no, tenha copiado coisas do bolchevismo (tornando mentira tudo que tocava, como se fosse o "Midas da mentira") , não seria preciso copiar a ideia de criar abreviaturas, pois elas exis tiam desde o início do século XX e estavam em voga desde a Primeira Guerra Mundial na Alemanha, nos países europeus e no mundo todo. Em Berlim já havia a KDW, Kaufhaus des Westens, a "grande loja do Ocidente". Mais antiga ainda era a Hapag, ou Ham burg-Amerikanische-Packetfahrt-Actien-Gesellschaft. 125 Havia um belo romance francês chamado Mitsou, 126 a abreviatura de um empreendimento industrial e ao mesmo tempo o nome da amante do proprietário. Essa conotação erótica era a prova de que as abreviaturas haviam sido aceitas na França. As abreviaturas italianas tinham um toque artístico, sendo possível dividi-las em três categorias. A mais primitiva junta simplesmente as iniciais, algo como BDM. 127 A segunda cria um grupo fonético que pode ser pronunciado como uma pa lavra. A terceira forma uma palavra que já existe na língua e possui alguma conexão com o significado da palavra abre viada. Fiat, palavra da criação bíblica que significa "faça-se! '', designa um carro famoso da Fabbricche Italiane Automobili Torino [ Fábrica Italiana de Automóveis Torino] . O noticiário semanal do cinema na Itália fascista chamava-se Luce [ luz] , acróstico da Lega Universale di Cinematografia Educativa [ Liga Universal de Cinema Educativo ] . Para incrementar o trabalho industrial, Goebbels criou a abreviatura Hib-Aktion, na qual 125
Instituição fundada em 1 847. Mitsou, ou Comment l'esprit vient aux filies ( 1 9 1 9) , de Colette. 1 27 BDM: Bund Deutscher Mãdel [Liga das Meninas Alemãs ] , para meni nas entre 14 e 2 1 anos. 126
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Hib são as iniciais de Hinein in die Betriebe! [todos às fábri cas! ] . Apesar de muito eficaz na linguagem oral, 128 ela é des provida de rigor ortográfico. Sabia-se que, no Japão, um jovem e uma jovem que se vestissem e se comportassem à moda americana ou europeia eram denominados, respectivamente, Mobo e Mogo, ou seja, modern boy [ rapaz moderno] e modern girl [ moça moderna] . Em paralelo à extensão geográfica das abreviaturas existe também uma dimensão histórica. De fato, não é Ichtys [pei xe] o símbolo e o sinal de reconhecimento das mais antigas comunidades cristãs? É uma abreviatura desse tipo, pois con tém não somente a palavra. Ichtys é também o acróstico for mado com as palavras gregas "Jesus Cristo, Filho de Deus, o Salvador': Pois bem: se a abreviatura está presente no tempo e no es paço, até que ponto ela pode ser considerada uma caracterís tica particular ou um defeito particular da LTI? Para responder, examinarei as funções das abreviaturas an tes do nazismo. Ichtys, o peixe, é o símbolo de uma associação secreta de caráter religioso à qual se atribui um duplo encanto, seja pelo pacto secreto, seja pela força mística. Hapag tem a concisão necessária dos negócios e dos endereços telegráficos. Levan do-se em conta o período enorme em que uma sigla é usada no campo das ideias, dos sentimentos e da transcendência, pergunto se é possível concluir que a necessidade de expres são religiosa encontrou sua forma bem antes da necessidade de expressão prática ( sou cético diante de conclusões assim em questões de linguagem e poesia). Talvez a expressão do solene tenha obtido antes da expressão do cotidiano a honra de ser preservada em forma figurada. 128
Na expressão oral percebe-se a relação com a palavra Hieb [golpe, pancada, surra ] . 1 60
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Observando-se melhor, percebe-se que os limites entre o sentimento e a realidade são bastante imprecisos. Quem sou ber identificar um produto industrial por sua sigla ou por seu endereço telegráfico 129 sentirá a confortadora sensação, cons ciente ou não, de pertencer ao grupo de pessoas que domi nam aquele conhecimento, pelo saber ou por contatos pri vilegiados, destacando-se da massa como um iniciado que faz parte de uma comunidade exclusiva. Aqueles que criam essas siglas conhecem o impacto emocional que elas têm e lhe atribuem grande importância. A demanda geral por abrevia turas, nos dias de hoje, surgiu da necessidade dos negócios na indústria e no comércio. Não é possível definir com clareza onde passa a linha divisória entre as abreviaturas industriais e as científicas. O ponto de partida da nova onda de abreviaturas prova velmente ocorreu nos países campeões no comércio e na in dústria, a Inglaterra e os Estados Unidos, além, sem dúvida o que explicaria o ataque contra as "monstruosidades verbais" russas -, da Rússia soviética, que demonstrou uma inclina ção especial para as abreviaturas, pois Lênin considerava o avanço técnico do país um importante postulado, adotando assim o modelo dos Estados Unidos ... Caderno de anotações do filólogo! Quantos temas para seminários e teses aparecem nestas poucas linhas, quantas reflexões sobre a história da linguagem e da civilização poderiam ser aproveitadas daqui! . .. A abreviatura moderna não se desenvolveu apenas no domí nio técnico-econômico, mas também no domínio político econômico e ainda no político propriamente dito. Em qual quer assunto ligado a um sindicato, a uma organização, a um partido, há sempre uma abreviatura. Nessa situação eviden cia-se claramente o valor iniciático da designação especial. Pa rece-me fora de propósito querer atribuir a essa categoria de 1 29
Hoje seria
um
endereço eletrônico. 161
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abreviaturas uma origem americana; não sei se a sigla SPD13º se apoiou em um modelo estrangeiro. Porém, é possível que a extraordinária difusão dessas formas abreviadas na Alemanha se deva a imitações vindas do exterior. Ao mesmo tempo, aparece algo tipicamente alemão. A or ganização mais poderosa da Alemanha imperial foi o Exérci to. A partir da Primeira Guerra Mundial concentraram-se na linguagem militar abreviaturas de todos os tipos e temáticas, desde a denominação abreviada do grupamento e da apare lhagem técnica até a palavra cifrada que servia como prote ção contra o exterior e fator de coesão interna. Se me perguntarem agora se e por que as abreviaturas devem constar entre as principais características da LTI, a resposta é clara. Nenhum estilo linguístico anterior empre gou-as de maneira tão exagerada como o alemão de Hitler. A abreviatura moderna está inserida em qualquer lugar onde há tecnicismo e organização. Ora, a aspiração totalitária do nazismo impõe o tecnicismo e organiza tudo. Eis a razão da grande quantidade de abreviaturas. Como tenta também, em nome dessa mesma exigência de totalidade, se apoderar de toda vida interior, pois pretende se tornar religião, com a suástica por toda parte, cada uma dessas abreviaturas é apa rentada ao antigo "peixe" cristão: Kradschütze oder Mannschaft am MG (Maschinengewehr), Glied der HJ oder DAF - man ist immer "verschworene Gemeinschaft" [ Seja a infantaria mon tada, seja equipes armadas, seja membros da HJ ( Juventude Hitlerista) ou da DAF ( Frente Alemã de Trabalho) - cada um está sempre inserido em "uma comunidade de conjurados" ] .
130 Sozialdemokratische Partei Deutschlands [ Partido Socialdemocrata da Alemanha) . Fundado em 1 848, é o partido político mais antigo da Alemanha. A abreviatura SPD surgiu em 1 890, depois de o partido usar várias outras siglas. 162
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EM U M Ü N ICO DIA DE TRABALHO
O veneno corre solto por toda parte, se alastra pela água da LTI e não poupa ninguém. Na fábrica de envelopes e sacolas de papel Thiemig & Mõ bius o ambiente nem era particularmente nazista. O chefe, apesar de fazer parte das SS, proporcionava aos "seus judeus" tudo que pudesse, falava-lhes com cordialidade e às vezes mandava vir algum quitute da cantina. Não sei se o que me agradava mais era um restinho de salame de cavalo ou ser chamado de sr. Klemperer, às vezes até mesmo de prof. Dr. Klemperer. Nós, portadores da estrela, trabalhávamos disper sos, misturados com os operários arianos. Só ficávamos efe tivamente separados nas refeições e nos abrigos contra ata ques aéreos. Durante o trabalho, os operários já ignoravam a proibição de falar conosco e de se apartar de nós, pois no in verno de 1 943- 1 944 não mais se deixavam dominar pelo es pírito nazista. Temíamos o supervisor de pessoal, além de duas ou três mulheres que considerávamos capazes de nos de latar. Quando um deles aparecia, fazíamos sinais de advertên cia uns para os outros, por meio de olhares e de cutucões. Mas bastava eles saírem de cena que voltava a reinar um ambiente de franca camaradagem. A mais gentil de todas, Frieda, a corcunda, tinha me ensi nado as instruções iniciais e continuava a me ajudar quando eu me atrapalhava com as máquinas dos envelopes. Ela traba lhava na fábrica havia mais de trinta anos e não se deixava in timidar nem mesmo pelo supervisor de pessoal. Sempre me dirigia uma palavra gentil, dizendo a ele no meio do barulho das máquinas: "Não me venha com amolações! Eu nem falei com ele, só passei instruções sobre o uso da máquina de co163
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lar!" Frieda sabia que minha mulher estava de cama, em casa. De manhã, eis que vejo uma maçã grande, bem em cima da minha máquina. Olhei para o seu local de trabalho e ela me confirmou com um aceno de cabeça. Um segundo mais tarde, já ao meu lado, disse: "Para a mamãe, com um grande abra ço:' Logo em seguida acrescentou, entre curiosa e espantada: "Albert disse que sua mulher é alemã. É verdade mesmo?" Desapareceu o prazer de ter recebido a maçã de presente. Aquela alma caridosa, simples e ingênua, com forte sensibili dade antinazista, apesar de muito humana, estava infectada pelo elemento principal do veneno nazista; identificava "ale mão" com o conceito mágico de "ariano"; soava-lhe quase inadmissível que uma "alemã" pudesse ser casada comigo, um estranho, um ser de outra categoria no reino animal. Ela ou vira repetidamente frases do tipo artfremd [estranho à espé cie ] , deutschblütig [ de sangue alemão ] , niederrassig [ de raça inferior] , nordisch [ nórdico ] , Rassenschande [desonra racial] . É certo que ela própria não tinha uma ideia clara dessas ex pressões, mas era incapaz de assimilar que minha mulher pu desse ser "alemã". O tal Albert, que a punha a par das coisas, tinha um ra ciocínio mais arguto que o dela. Tecia suas próprias conje turas políticas, nada favoráveis ao governo, tampouco milita ristas. Ele perdera um irmão no front e a cada exame médico do Exército era dispensado porque sofria de uma úlcera gra ve. A cada dia ouvia-se o seu "por enquanto'� como em "por enquanto ainda estou livre - contanto que esta guerra suja acabe antes que consigam me pegar! ". Naquele dia da maçã, em que se noticiou veladamente que os Aliados tinham ob tido uma vitória em algum lugar da Itália, ele conversou com um colega, um pouco mais do que de costume, sobre seu te ma habitual. Eu, que estava bem ao lado, empurrando um carrinho com papel empilhado na direção da minha máqui na, ouvi-o dizer: 164
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- Contanto que essa guerra suja acabe antes que consi gam me pegar! - Mas como a guerra pode acabar se ninguém quer ceder? - Pois isso está claro: eles têm de perceber que somos invencíveis e que não nos intimidam. Afinal, somos prima orga nisiert [muito bem organizados] . Muito bem organizados - lá vinha de novo a expressão que parecia um narcótico, que alucinava o espírito daquela gente. Uma hora depois o contramestre manda me chamar para que eu o ajude a etiquetar as caixas de cartolina que estavam prontas. Ele próprio preenchia as etiquetas conforme a fatura de expedição e eu as colava nas caixas empilhadas, que nos isolavam do restante do pessoal da sala como se fossem uma parede. Esse isolamento estimulou a loquacidade do ancião. Ele já estava perto dos setenta anos e ainda trabalhava. Suspi rando, dizia que não tinha imaginado uma velhice assim. Mas agora não restava alternativa a não ser trabalhar como escra vo, até o fim da vida, até esticar as canelas. - O que vai ser de meus netos se os rapazes não retorna rem da guerra? Erhard, que está em Murmansk, não dá sinal de vida há meses. O pequeno está hospitalizado na Itália. Se ao menos houvesse paz ... Mas não é isso que os americanos querem. Não tinham nada a fazer aqui, conosco ... Mas a ver dade é que eles enriquecem às custas da guerra, esses judeus sujos. É bem a guerra judaica! São eles de novo! Sua fala foi interrompida pelo uivo da sirene; era comum o alarme de perigo iminente soar direto, pois nessa época o alarme preparatório, apesar de frequente, já não era mais res peitado; ele não nos fazia interromper o trabalho. Embaixo, no porão imenso, ficavam sentados os judeus, apertados em torno de uma coluna, separados do restante dos arianos por uma demarcação. Mas a distância entre nós e os bancos dos arianos era tão pequena que podíamos ouvir 165
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as conversas, ao menos as das primeiras filas. A cada dois ou três minutos o alto-falante transmitia um relatório da situa ção: "Os aviões se desviaram para o Sudeste . . . Novo grupo de aviões se aproxima do Norte. Risco de bombardeio sobre Dresden." As conversas se interrompem por alguns momentos, quan do uma gorda senhora, sentada na primeira fileira, operária esforçada e habilidosa que manejava a máquina grande de "envelopes com janela': diz sorrindo, tranquila e segura: - Eles não virão, Dresden será poupada. - Por quê? - pergunta a colega ao lado. - Você também acredita na besteira de que querem fazer de Dresden a capital da Tchecoslováquia? - Oh, não. Tenho inclusive um motivo melhor para me sentir segura. - Qual? A resposta veio com um sorriso entusiasmado, que caía de forma estranha naquele semblante rude e pouco expressivo. - Nós três vimos nitidamente. No último domingo à tar de, perto da igreja Annnenkirche, o céu estava limpo, havia poucas nuvens. De repente uma dessas nuvens vem e se ali nha de tal forma que mostrava um rosto, um perfil único [ela disse exatamente "único" ! ] . Nós três reconhecemos logo. Meu marido foi quem disse primeiro: "Mas esse é o Alte Fritz,13 1 igualzinho como o vemos nos quadros!" - Bem, e daí? - Como, e daí? - O que isso tem a ver com a segurança de Dresden? - Que pergunta mais boba. Você há de convir que o quadro que nós três vimos, meu marido, meu cunhado e eu, é uma prova de que o Alte Fritz está protegendo Dresden. 1 31 Designação carinhosa do imperador Frederico, o Grande, da Prússia ( 1 7 1 2- 1 786). 1 66
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- O que pode acontecer com uma cidade que ele protege? - Você não percebe? O alarme terminou, podemos subir de volta. Foi excepcional, é claro, que quatro manifestações do esta do de espírito reinante aparecessem em um único dia. Entre tanto, ele não se restringia a esse único dia, tampouco a essas quatro pessoas. Nenhuma delas era um verdadeiro nazista. À noite era meu turno de vigília. O caminho para o local de vigília ariano passava a poucos metros de distância de onde eu ficava sentado. Enquanto eu lia um livro, a admiradora do "Fredericus" me cumprimentou com um sonoro "Heil Hi tler! ': Na manhã seguinte ela veio até a mim e disse com mui ta cordialidade: - Desculpe meu "Heil Hitler! " ontem à noite. Eu estava apressada e confundi o senhor com outra pessoa, a quem sou obrigada a cumprimentar dessa forma. Nenhum deles era nazista, mas o veneno infectara todos.
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CAPfT U LO 1 7
SISTEMA E ORGAN IZAÇÃO
Há o sistema de Copérnico, há sistemas filosóficos e sistemas políticos. Mas, quando o nacional-socialista diz "o System'', ele se refere especificamente ao sistema da Constituição de Wei mar. O termo, com esse uso particular na LTI, logo se tornou conhecido - na verdade, o uso ampliou-se para designar todo o período de 1 9 1 8 a 1 933. A palavra tornou-se rapida mente muito mais popular do que a designação de uma épo ca, como o Renascimento. Já no verão de 1 935 um carpinteiro que arrumava o portão do jardim me disse: ''Ah, estou suan do em bicas! Bom mesmo era o tempo do System, em que se usavam os Schillerkragen [ colarinhos "estilo Schiller" ] , desa botoados, que deixavam o pescoço livre. Hoje isso nem existe mais, tudo já vem apertado e às vezes até engomado." O ho mem não desconfiava que sua frase era um lamento pela li berdade tolhida; ao mesmo tempo, usando uma alegoria, de monstrava desprezo pelo momento presente. Não é necessário enfatizar que Schillerkragen simbolizava perfeitamente a liber dade. Difícil de entender é que o termo "sistema" contenha uma censura metafórica. Para os nazistas, o sistema de governo da República de Weimar era pura e simplesmente o System, contra o qual eles estavam em conflito permanente. Consideravam-no a pior forma de governo, alimentando contra ele uma oposição fe roz, em contraposição à afinidade que sentiam, por exemplo, em relação à monarquia. Criticavam o efeito paralisante que a pulverização de um sem-número de partidos teria produzi do durante a República de Weimar. Depois da primeira farsa democrática - uma sessão do Reichstag sob o chicote de Hi tler, na qual não se discutiu nada e todas as medidas do go1 69
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vemo foram aprovadas por unanimidade -, os jornais do partido, em tom triunfalista, publicaram que em meia hora de sessão os novos parlamentares tinham produzido mais do que o parlamentarismo do System em meio ano. Do ponto de vista linguístico-conceitual, por trás da rejei ção ao termo System se esconde muito mais do que exclusiva mente a significação de "parlamentarismo de Weimar'� Um System é algo "elaborado", construído, executado pelas mãos e as ferramentas das pessoas, conforme os ditames da razão. Justamente nesse sentido concreto e "construtivo", até hoje falamos de um sistema ferroviário ou de um sistema de ca nais, por exemplo. Com maior frequência, entretanto, o ter mo é empregado quase unicamente em sentido abstrato (pois em outros casos usamos mais "malha" ou "rede" ferroviária). O sistema kantiano é uma rede de conceitos entrelaçados de maneira lógica, visando a captar a complexidade do mundo. Para Kant, para o filósofo, por assim dizer, qualificado, filoso far significa pensar de maneira sistemática. Mas é isso que o nacional-socialista rejeita profundamente, pois, por instinto de preservação, ele precisa execrar o pensamento sistemático. Quem pensa não quer ser persuadido, mas sim convenci do; é bem mais difícil convencer quem está habituado a pen sar sistematicamente. Por isso a LTI detesta a palavra filosofia, mais ainda do que a palavra sistema. A LTI dá uma conotação nociva ao termo "sistema", mas o emprega com frequência; não pronuncia jamais a palavra filosofia, sempre substituída por Weltanschauung13 2 [visão de mundo ] . Anschauen [ "ver" por intuição ] não faz parte do pensar, pois o pensador faz exatamente o contrário: abstrai, consegue afastar seus sentidos e o objeto. Anschauen nunca se refere 1 32 A LTI distorce o sentido do conceito. O termo foi criado por Wilhelm Dilthey no século XIX em sua Teoria das concepções do mundo (ver ca pítulo 22 deste livro). 1 70
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somente a órgãos dos sentidos. O olho está limitado a ver. Mas ao verbo alemão Anschauen reservou-se, não sei dizer se uma "ação" ou um "estado" mais precioso, mais solene, no qual se consegue pressentir algo de maneira vaga. Não sei pre cisar se denota um "ver" que mobiliza a essência do observa dor ou se denota um "ver" que enxerga mais do que somente o lado externo do objeto, conseguindo captar os mistérios da essência do outro, sua alma. Weltanschauung, termo bastante difundido antes mesmo do nazismo, perdeu o encanto domi nical quando a LTI passou a empregá-lo em detrimento de filosofia, caindo na trivialidade dos afazeres cotidianos. Schau [ponto de vista, visão] , vocábulo sagrado no circulo de Stefan se eu escre George, 133 também é uma palavra culta na LTI vesse este caderno de anotações em forma de léxico, no estilo da minha querida Enciclopédia, 134 seguramente indicaria aqui o verbete Barnum135 , enquanto System encabeça a lista das palavras abomináveis, junto com Intelligenz e Objektivitiit. Se System é um termo proibido, então como se chama o sistema de governo dos próprios nazistas? Pois os nazistas, é claro, possuem um sistema de governo e sentem orgulho de que ele esteja na origem de cada manifestação e de cada situa ção de vida, razão pela qual Totalitiit é um dos pilares da LTI. Eles não possuem um "sistema", e sim uma organização. Não sistematizam com a razão, mas ficam na espreita, tentan do captar os segredos do organisch [ orgânico] . Tenho de começar com o adjetivo organisch, único dessa Sippe [ família, clã] de palavras que conseguiu preservar sua beleza e glória do primeiro dia, diferentemente dos substan-
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133 Poeta lírico alemão { 1 866- 1 933) que teve um grupo de seguidores muito conhecido, o Círculo de George. 134 Obra de Klemperer sobre a literatura francesa, que abarca o período que vai do século XIII até 1 920. 1 35 Primeiro desfile de carros alegóricos em Nova York, cujo nome vem do pioneiro do circo, Phineas Taylor Barnum ( 1 8 10- 1 89 1 ) . 171
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tivos Organ [órgão ] e Organisation [organização] e do verbo organisieren [organizar] . (Mas quando foi esse primeiro dia? Sem dúvida, foi na aurora do romantismo. Mas cuidado: em pregamos "sem dúvida" exatamente quando temos dúvidas; essa questão terá de ser tratada em uma reflexão à parte.) Durante a incursão da Gestapo em minha casa na Caspar David-Friedrich-Strasse, quando Clemens136 bateu em mi nha cabeça com O mito do século XX, de Rosenberg, e rasgou minhas notas sobre esse livro (felizmente, sem que as enten desse) , eu já havia comentado no diário a teoria délfica de Rosenberg sobre a "verdade orgânica". Já naquela época, antes da invasão da Rússia, eu escrevera: "Toda essa fraseologia teria sido ridícula se não tivesse trazido consequências tão funestas e assassinas! " Segundo Rosenberg, o s filósofos profissionais costumam cometer um duplo erro. Em primeiro lugar põem-se "à pro cura da verdade pretensamente única e eterna". Em segundo lugar sua busca se faz "pela via do raciocínio puramente lógi co, extraindo deduções a partir de axiomas propostos pela ra zão". Se, em vez disso, tomarmos o sentido místico que Alfred Rosenberg quer dar à sua visão de mundo não filosófica, en tão "todo esse monte de lixo intelectualizado e anêmico, de nominado System, haverá de desaparecer" de uma só vez. Es sas citações contêm o principal motivo da aversão da LTI à palavra e ao conceito System. Logo a seguir, nas últimas páginas de O mito, a palavra Organisch é entronizada definitivamente; em grego, ela signi fica expandir, germinar como uma planta que cresce incons cientemente. Wuchschaft [brotar, evoluir] é a forma alemã pa ra organisch. Em vez daquela verdade generalista, que serviria para uma sociedade imaginária, surge a organische Wahrheit [verdade orgânica] que emana de forma autêntica do sangue 1 36
Um dos agentes da Gestapo em Dresden. 172
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de uma raça e serve somente para essa raça. Essa verdade or gânica não faz parte nem do saber nem do intelecto, não apa rece elaborada em um pensamento consciente, mas está "no centro misterioso da alma do povo e da raça': corre no sangue nórdico desde os tempos imemoriais: "O saber derradeiro de uma raça já está contido em seu primeiro mito religioso." Nem que eu tivesse juntado todas as citações, elas não es clareceriam mais nada, pois a intenção do próprio Rosenberg não era torná-las mais esclarecedoras. Pensar exige clareza de ideias, enquanto magia se pratica sob o domínio do obscuran tismo. Cingido pela glória dessa magia e envolto pelo odor anestesiante do sangue, esse discurso enigmático sobre o or gânico perde seu conteúdo linguístico, por assim dizer, ao se fazer a transposição do adjetivo para o substantivo e para o verbo. Bem antes da existência do NSDAP 1 37 já havia os ter mos políticos Parteiorgane [órgãos do partido] e Organisatio nen [organizações] . Apareceram na década de 1 890, quando ouvi falar de política pela primeira vez. Era comum dizer-se em Berlim, quando um trabalhador era membro do Partido Social-democrata, que ele era um Organisierter [pessoa orga nizada] ou organisiert [organizado] . Porém, um Parteiorgan não é criado por forças místicas que correm pela corrente sanguínea, mas a partir de ações cal culadas. E uma Organisation não é gerada como um fruto, e sim construída com empenho. Os nazistas diziam aufgezo gen 1 3 8 [atiçado] . Eu mesmo cheguei a me deparar com autores (antes da Primeira Guerra Mundial; em meus diários constava entre parênteses "verificar onde e quando! ': mas essa questão de verificar, mesmo agora, um ano após a rendição, 1 39 ainda apresenta dificuldades) que viam na própria Organisation os 137
Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei [ Partido Nacional-so cialista dos Trabalhadores Alemães] , o Partido Nazista. 1 38 Para uma tradução mais completa do termo, ver o capítulo 7. 1 39 Klemperer refere-se ao fim da guerra. 173
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meios para suprimir o que era Organisch [orgânico] , de modo a entseelen [ desespiritualizar] para que a Organisation pudesse tornar-se algo mecânico. Entre os próprios nacional-socialis tas, no romance de Dwinger140 sobre o Kapp-Putsch, Auf hal bem Wege [A meio caminho] , de 1 939, encontrei a coesão "la mentável" da organização, considerada artificial, em contraste com a coesão "autêntica" que se desenvolve na natureza. É que Dwinger só aos poucos foi descambando para o nazismo. De qualquer forma, Organisation permaneceu um termo honrado e respeitado na LTI, conseguindo até mesmo passar por um refinamento que nunca tinha experimentado antes de 1 933, apesar de usos especializados, esporádicos e isolados. A vontade totalitária criou um enorme número de organi zações, descendo na escala até o nível dos Pimpfe [meninos] , não, o nível dos gatos: eu não tinha mais o direito de pagar à Sociedade Protetora dos Animais minha contribuição para os gatos, pois a Deutsches Katzenwesen [ Entidade dos Gatos Ale mães] - era assim que constava no boletim informativo tornara-se um órgão do partido e não havia mais lugar para artvergessene Kreaturen [ criaturas racialmente perdidas] , que viviam com judeus. Depois, tiraram e mataram nossos ani mais domésticos - gatos, cachorros e até mesmo canários. Não foi um caso isolado, uma infâmia, mas uma intervenção oficial e sistemática. Essa é uma das crueldades não relatadas em nenhum dos processos de Nuremberg. Para puni-la, se eu tivesse esse poder, construiria a forca mais alta possível, nem que isso me custasse a salvação eterna. Essa temática não me afastou muito da LTI, apesar das apa rências, pois justamente a Entidade dos Gatos Alemães per1 40 Escritor alemão ( 1 898- 1 98 1 ) cujas obras glorificavam a guerra e o an ticomunismo. O romance citado faz alusão à primeira tentativa da ex trema direita alemã de derrubar a jovem República de Weimar em 1 920, denominada "Putsch de Kapp': A segunda, também frustrada, foi liderada por Hitler em 1 923. 1 74
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mitiu popularizar e ridicularizar essa nova criação linguística. Dada a sua mania de tudo organizar e de tudo centralizar, os nazistas criaram "organizações unificadas" a partir de organi zações específicas. Por ocasião do primeiro carnaval do Ter ceiro Reich, o número especial do jornal Münchner Neuesten Nachrichten, de Munique, que acreditava que ainda se podia permitir alguma esperteza - em seguida ele se tornou sub misso, para dois ou três anos depois calar-se compulsoria mente -, trouxe uma notícia sobre a Dachorganisation des Deutschen Katzenwesens [ Organização Central das Entidades dos Gatos Alemães] . Essa pilhéria foi um caso isolado, sem difusão. A alma do povo, porém, desenvolveu uma crítica não irônica, totalmen te inconsciente, à mania nazista de organizar tudo. Para ex pressar de forma menos romântica: a crítica emergiu de uma só vez, de vários pontos, de maneira natural. Sua causa é a mesma que consta no início do meu "caderno de anotações": Sprache, die für uns dichtet und denkt [língua que pensa e poe tiza por nós] . Observei essa crítica inconsciente em duas fases de seu desenvolvimento. Em 1 936, trabalhando sozinho, um jovem mecânico con seguiu dar conta de um conserto complicado e urgente em meu carburador e disse: Habe ich das nicht fein organisiert? [Organizei isso bem, não é? ] . As palavras "organização" e "or ganizar" estavam de tal forma enfronhadas em seu ouvido, ele se encontrava de tal forma impregnado da ideia de que qual quer trabalho tinha de ser organizado, ou seja, distribuído por um chefe para um grupo, que não lhe ocorriam expressões comuns como "trabalhar'� "resolver", "executar" ou simples mente "fazer': Pude observar pela primeira vez a segunda fase, decisiva, do desenvolvimento dessa crítica nos dias de Stalingrado e depois. Perguntei se ainda era possível adquirir sabonete de qualidade, ao que me responderam: "Não é possível comprar, 175
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será necessário organizá-lo:' A palavra gerava suspeita, chei rava a negócios ilícitos, a mercado negro. Exalava odor igual ao das organizações nazistas oficiais. Entretanto, as pessoas que falavam daquilo que "organizavam" não tinham nenhu ma intenção de realizar negociações ilícitas. Organisieren era um termo benigno, que se encontrava em voga por toda par te, era a definição óbvia de uma ação óbvia ... Mas quem, ainda ontem, disse Ich muss mir ein bisschen Tabak organisieren [preciso organizar um pouco de tabaco para mim ] ? Desconfio que tenha sido eu mesmo.
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NELE EU ACREDITO!
Quando penso naqueles que tinham fé em Adolf Hitler, a imagem que me vem primeiro à mente é sempre a da Friiulein Paula von B. 141 com seus grandes olhos cinzentos arregalados, em um rosto não mais tão jovem, mas que ainda se manti nha delicado, gentil e inteligente. Ela era assistente de Oskar Walzel 142 na cátedra de filologia alemã da nossa universidade. Orientou grande número de futuros professores dos níveis fundamental e médio, indicando livros, passando e corrigin do trabalhos etc. É preciso ressaltar que Walzel às vezes se distanciava um pouco da estética, por sua preferência pelo que havia de mais moderno, expondo-se ao risco de cair no esnobismo. Duran te suas famosas conferências, prestava atenção exagerada no numeroso público feminino, o assim chamado grupo do "chá das cinco". Apesar de tudo, seus livros revelam um erudito, com pensamentos construtivos, a quem a teoria literária deve muito. Pelas convicções gerais e a postura social, ele se inseria na ala esquerda da burguesia. Seus adversários diziam que era um jüdischer Feuilletonist [ cronista literário judeu] . Surpreen deu a todos quando, já em Bonn, no final da carreira acadê mica, não foi capaz de manter a integridade: solicitou e obte ve o certificado que lhe dava status de ariano, exigido por Hitler. Tanto para sua mulher como para seu círculo de ami141
Na verdade, a personagem chamava-se Gertrud von Rüdinger. Em 6 de agosto de 1 945 Klemperer soube que ela havia sido demitida da universidade por causa do passado nazista. 142 Oskar Walzel ( 1 864- 1 944), escritor alemão, superior de Klemperer na Universidade Técnica de Dresden. 177
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gos esse certificado de absolvição, imposto pelas leis de Nu remberg, foi algo inimaginável. 143 Friiulein von B. trabalhava feliz da vida sob a chefia desse professor, e os amigos dele eram também os seus. Aparente mente, conquistei sua simpatia por nunca ter duvidado das qualidades de Walzel, apesar das pequenas fraquezas externas. Mais tarde, quando o sucessor de Walzel em Dresden substi tuiu o estilo de salão por outro de maior densidade filosófica - a cátedra de teoria literária não funciona sem um pouco de charme, essa parece ser uma consequência inevitável da profissão -, Friiulein von B. adaptou-se satisfeita ao modo de ser do novo chefe; culta e inteligente, pôde nadar também nessa corrente. Descendente da antiga nobreza militar, seu pai morrera como general aposentado; seu irmão retornou da Primeira Guerra Mundial como major e foi admitido depois em um cargo de confiança e prestígio em uma grande firma judaica. Se me tivessem perguntado antes de 1 933 sobre a posição po lítica de Paula von B., provavelmente eu teria respondido com toda a certeza que ela era alemã, e com a mesma obviedade que era europeia e liberal, apesar de sentir nostalgia do tem po esplendoroso do Império. Mas é mais provável que eu ti vesse respondido que, para ela, não existia política, que seus interesses eram puramente intelectuais e que as exigências do cargo na universidade a tinham preservado do perigo de se perder no puro intelectualismo ou em charlatanices. Eis que chega 1 933. Paula von B. precisava buscar um livro em meu departamento. Em geral muito séria, aproximou-se de mim com expressão alegre e movimentos ágeis e vivazes. - Por que tanta alegria? A senhorita está esfuziante. Al gum acontecimento particular e especial? 1 43 Trata-se das leis raciais de Nuremberg, de 15 de setembro de 1935, que pretendiam proteger "o sangue e a honra alemães". 1 78
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- Particular! Não preciso mais disso ... Rejuvenesci dez anos. Não, dezenove: desde 1 9 1 4 não me sinto tão bem! - A senhorita vem dizer isso justo a mim? Não sabe como pessoas que até então lhe eram bem próximas vêm sendo de nunciadas? Obras que a senhorita até há pouco reconhecia como de muito valor estão sendo condenadas. Renuncia-se à vida do espírito que a senhorita valorizava ... Ela me interrompeu um pouco consternada, mas afetuosa: - Querido professor, não contava com seu nervosismo. O senhor deve tirar algumas semanas de férias e não ler jor nais. Vai ficar doente ... Não está percebendo a realidade e se deixa desviar por pequenos percalços e constrangimentos que não há como evitar em revoluções tão importantes. Logo o se nhor haverá de julgar de maneira diferente. Poderei em breve fazer-lhes uma visita, não é? Com um "lembranças à família", saiu pela porta, saltitante como uma adolescente, antes que eu pudesse responder qual quer coisa. O "em breve" se estendeu por vários meses, durante os quais a perfídia generalizada do novo regime e sua brutalida de, em especial contra a "inteligência judaica", se manifesta vam a cada dia de maneira mais evidente. Achei que a inge nuidade de Paula von B. talvez tivesse sofrido um abalo. Não nos víamos mais na universidade. Não sei se ela me evitava de propósito. Certo dia, eis que aparece lá em casa. Era seu Deutsche Pflicht [ dever alemão] , disse, informar os amigos de suas no vas convicções políticas, esperando que continuássemos a aceitá-la como amiga. - Deutsche Pflicht é um termo que a senhorita não teria usado antes do nazismo - eu disse, interrompendo-a. O que tem a ver o fato de "ser ou não ser alemão" com ques tões que são tão individuais e ao mesmo tempo tão universal179
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mente humanas? Ou a senhorita veio aqui com a intenção de nos politizar? - Alemão ou não alemão, essa é a questão, isso é o es sencial. Veja o senhor, isso eu aprendi, aprendemos todos, com o Führer, aprendemos de novo o que estava esquecido. Er hat uns nach Hause zurückgeführt! [ Ele nos deu nosso lar de volta! ] - A troco do que a senhorita vem aqui para nos dizer isso? - O senhor tem de admitir, terá de compreender que ago ra pertenço totalmente ao Führer, e nem por isso serei menos sua amiga ... - Como se pode conciliar esses dois sentimentos? O que o Führer diz do honrado mestre Walzel, seu antigo chefe? Co mo harmonizar tudo isso com o humanismo de Lessing, 1 44 tema de trabalhos que a senhorita orientava nas aulas? E co mo ... mas não adianta continuar perguntando ... A cada uma das minhas frases ela sacudia a cabeça. Rola vam lágrimas de seus olhos. - Parece realmente inútil, pois tudo o que o senhor me pergunta emana da razão, e os sentimentos que se escondem atrás dela trazem uma amargura über Unwesentliches [ sobre o que não é essencial] . - De onde devem partir minhas perguntas, se não da ra zão? O que seria então das Wesentliche [o essencial] ? - Já lhe expliquei, fomos reconduzidos para casa, retor namos ao lar! O senhor tem de sentir isso, tem de entregar-se a esse sentimento. Para não sofrer esse Unzutraglichkeit [ abor recimento ] , do qual é vítima agora, o senhor precisa com preender a grandeza do Führer... E nossos clássicos? Não acre144 Gotthold Ephraim Lessing ( 1 729- 1 78 1 ) , escritor e crítico alemão. Hu manista e livre-pensador. Criticou o teatro neoclássico francês e exal tou Shakespeare; suas obras Minna von Barnhelm e Emília Galotti assentaram as bases do moderno teatro burguês alemão. 180
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dito de jeito nenhum que eles o contradigam, basta lê-los da maneira correta. Herder, por exemplo, mesmo ele . . . é certo que eles [os clássicos] se permitiriam ser persuadidos! - De onde a senhorita retirou tanta certeza? - De onde a certeza plena pode provir: da fé. Se tudo isso não lhe diz nada, então, pois então o nosso Führer tem toda a razão quando fala contra os ... [ ela engole rapidamente a pala vra "judeus" e continua] ... contra a inteligência estéril. Pois eu creio nele. Precisava dizer-lhe que creio nele. - Então, prezada senhorita Paula von B., é melhor sus pendermos nossa amizade e nossas conversas por tempo in determinado ... Ela partiu. Durante o pouco tempo que ainda permaneci na universidade conseguimos não nos ver. Depois disso, a vi somente uma vez e ouvi falar dela em uma conversa. Voltei a vê-la em um dos momentos históricos do Terceiro Reich, em 1 3 de março de 1 938. Nesse dia, quando abri a por ta de uma agência do Banco do Estado, sem pensar em nada em especial, tive um sobressalto e dei um passo atrás, sufi ciente para que a porta semiaberta me ocultasse um pouco. Lá dentro, todos permaneciam de pé, tanto as pessoas defron te dos guichês quanto as detrás, em posição rígida, com o bra ço estendido, ouvindo uma voz que falava no rádio em tom declamatório. A voz anunciava a lei que anexava a Áustria à ''Alemanha de Hitler", o Anschluss. Permaneci em meu semies conderijo para não ser obrigado a fazer a saudação nazista. Na frente de todos estava Paula von B. Tudo nela era êxtase. Seus olhos brilhavam, a rigidez de sua postura e de sua saudação era diferente do "estar atento" dos demais. Transmitia a ima gem de um espasmo, um deslumbramento. Alguns anos depois, por acaso, chegou à ]udenhaus uma notícia dos antigos colegas da universidade. Alguém falou em tom de chacota que Paula von B. era a seguidora mais incon dicional do Führer, mas a menos perigosa, pois não denun181
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ciava pessoas nem cometia ações torpes. Nela havia só entu siasmo. Justamente nessa época, andava exibindo para todos uma foto que conseguira tirar. Em viagem de férias observara de longe o Obersalzberg. 145 Não vira o Führer em pessoa, mas seu cão, sim, do qual tirara uma foto maravilhosa. Quando minha mulher soube, comentou: - Eu já tinha lhe dito em 1 933 que essa von B. é uma ve lha solteirona histérica, que vê no Führer o redentor. Hitler se apoia, ou se apoiou, nessas solteironas até conseguir tomar o poder. - E eu respondo, repetindo o mesmo que disse naquela altura: pode ser que você esteja certa quanto a essa questão das velhas solteironas, mas o assunto não se resume a isso, e hoje menos do que nunca [já era depois de Stalingrado] , in dependentemente dessa crueldade tirana. É evidente que ele deve suscitar uma fé que se espalha também entre outras pes soas, e não só entre velhas solteironas. A própria Friiulein von B. não é uma solteirona clássica. Durante anos, nos quais já havia risco, a conhecemos como uma mulher de bom senso, de boa formação. Não só tem uma profissão, mas a exerce com eficiência. Criou-se em um ambiente sóbrio e trabalha dor, viveu durante anos em uma atmosfera de horizontes am plos, e tudo isso deveria torná-la mais impermeável a esse tipo de psicose religiosa ... Eu levo muito a sério quando ela diz: "Nele eu acredito! " Na fase final d a guerra, quando a evidência d a derrota ab soluta e irremediável se impunha a todos, quando o desfecho estava à vista, deparei-me com esse "credo" duas vezes segui das em curto espaço de tempo. Em ambos os casos não se tra tava de solteironas. 145
Região montanhosa e escarpada nos Alpes, situada entre a Alemanha e a Áustria. Ali ficava a mansão onde Hitler recebia seu círculo mais íntimo de colaboradores. 182
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A primeira vez foi em um bosque perto de Pfaffenhofen no início de abril de 1 945. Nossa fuga pela Baviera estava dando certo. Tínhamos documentos que nos permitiriam encontrar alojamento em qualquer parte, mas cada município nos en caminhava para o próximo. íamos a pé, carregados e exaus tos. Um soldado nos alcançou, sem proferir palavra, pegou a parte mais pesada do nosso fardo e caminhou conosco. Devia estar no início dos seus vinte anos. Tinha uma expressão fran ca e amável, parecia forte e saudável, mas a manga esquerda do uniforme balançava vazia. Começou dizendo que percebe ra que tínhamos dificuldade em carregar nossos pertences, e por que ele não haveria de ajudar Volksgenossen [ camaradas do povo ] ? Certamente, estávamos seguindo o mesmo cami nho até Pfaffenhofen. Começou então a falar de si, esponta neamente. Fora ferido e aprisionado no litoral do Atlântico. Vivera em um acampamento americano antes de ser recam biado por causa da amputação. Era camponês da Pomerânia e queria voltar para casa assim que sua região fosse libertada do inimigo. - Libertada do inimigo? Você conta com isso? Os russos estão às portas de Berlim, e os ingleses e os americanos ... - Eu sei, eu sei. Muita gente dá a guerra como perdida. - Você mesmo, não acha? Você, que viu tanta coisa, também deve ter ouvido muitas notícias no exterior... - Ah!, mas o que se ouve no exterior é tudo mentira. - Mas os inimigos já estão dentro da Alemanha e nossos recursos se esgotaram. - O senhor não pode dizer isso. Aguarde os próximos quinze dias. - O que há de acontecer? - Muitos afirmam que começará a contraofensiva. Permitimos ao inimigo penetrar tanto para que possamos aniquilá lo com maior vigor. - Você acredita nisso? 183
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- Eu sou um reles cabo, não entendo de estratégia o sufi ciente para poder julgar. Mas há poucos dias o Führer disse que seguramente haveremos de vencer, que a vitória é certa. Ele nunca mentiu. Eu acredito em Hitler. Deus jamais o aban donaria. Eu acredito em Hitler. O rapaz, tão loquaz até o momento em que acabava de pronunciar a última frase, manteve o olhar fixo no chão e calou-se, talvez um pouco mais pensativo. Eu não sabia o que responder. Fiquei feliz quando se despediu poucos mi nutos depois, assim que alcançamos as primeiras casas de Pfaffenhofen. A outra vez, logo em seguida, foi na pequena aldeia de Unterbernbach, onde finalmente encontramos abrigo e que pouco depois foi tomada pelos americanos. Do front, que fi cava próximo, os soldados chegavam sozinhos ou em bandos, batendo em retirada de seus regimentos desintegrados. O co lapso do Exército era total. Todos sabiam que o fim estava próximo, ninguém queria cair prisioneiro. A maior parte amaldiçoava a guerra, a única coisa que desejavam era paz, indiferentes a tudo o mais. Alguns maldiziam Hitler, outros o regime, assegurando que o Führer tinha planejado tudo mui to bem e que outras pessoas eram responsáveis pelo colapso. Conversamos com muita gente, pois nosso anfitrião era a pessoa mais generosa do mundo. Sempre conseguia ofere cer um naco de pão ou uma colher de sopa para cada fugi tivo. À noitinha, quatro soldados de regimentos diferentes es tavam sentados em volta da mesa e mais tarde iriam dormir no celeiro. Dois eram estudantes do norte da Alemanha e os outros dois eram mais velhos, um carpinteiro da Baviera e um velho seleiro de Storkow. O bávaro falava de Hitler com mui ta amargura e os estudantes concordavam com ele. Então o seleiro, tomado de fúria, esmurra a mesa: - Vocês têm é de se envergonhar. Parece até que perde mos a guerra só porque os americanos chegaram aqui... 184
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- E os russos? ... E os ingleses ... os franceses? Caíram sobre ele de todos os lados. Era óbvio que tudo acabara, até uma criança percebia isso. - Não interessa perceber, o que interessa agora é acredi tar! O Führer não vai desistir, e o Führer não pode ser derro tado. Ele sempre descobriu um caminho quando os outros supunham que não havia saída. Não, com os diabos, não! Não interessa compreender, temos é de acreditar! Ich glaube an den Führer [eu acredito no Führer] . Assim, ouvi profissões de fé em Hitler vindas de duas ca madas sociais, a intelectual e a popular, em duas épocas dis tintas, no começo e no fim. Em ambos os casos elas vinham do coração, de corações devotos, não eram somente da boca para fora. Além disso, estava e estou convencido, depois de fa zer as devidas verificações, de que essas pessoas tinham o que se considera uma inteligência média, sem sombra de dúvida. É evidente que a LTI, nos momentos culminantes, é uma linguagem de fé, já que visa ao fanatismo. Mas o estranho é que, sendo uma linguagem de fé, esteja estreitamente ligada ao cristianismo, ou, mais exatamente, ao catolicismo, apesar de o nacional-socialismo combater o cristianismo e, em espe cial, a Igreja Católica. Esse combate se dá às vezes de maneira aberta, às vezes de maneira velada, às vezes de maneira teóri ca, às vezes de maneira prática, mas ocorre desde o começo. Em teoria, o nacional-socialismo ressalta as raízes hebraicas, ou, segundo a expressão técnica da LTI, as raízes "sírias" 146 do cristianismo para destruí-lo. Em termos práticos, o nacional socialismo pressiona os homens das SS, bem como os pro fessores das escolas primárias, a abandonar a Igreja. Movem processos contra professores de escolas católicas, que acusam 1 46
Termo da Idade Média para designar o que vem do Oriente Médio. 185
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de homossexuais, enviando os assim chamados sacerdotes po líticos para a prisão e os Lager147 [ campos de concentração] . Mas para os primeiros heróis do partido, os dezesseis que tombaram defronte à Feldherrnhalle, 148 criaram-se um culto e uma linguagem reservadas somente aos mártires cristãos. A bandeira conduzida à frente do séquito desses dezesseis cha ma-se Blutfahne [bandeira de sangue ] , com a qual se consa gram as novas insígnias das SA e das SS. E no sem-número de discursos e artigos correspondentes não falta a expressão "tes temunhas de sangue': Mesmo quem já tivesse participado des sas cerimônias indiretamente, ou as tivesse visto no cinema, 149 ficava inebriado só de respirar o cheiro de sangue que essas manifestações religiosas exalavam. O primeiro Natal após a anexação da Áustria, chamado de Grossdeutsche Weihnacht [Natal da Grande Alemanha] , de 1 938, foi totalmente descristianizado pela imprensa. O que se celebra é exclusivamente a Fest der deutschen Seele [ festa da alma alemã] e a Auferstehung des Grossdeutschen Reiches [ ressurreição do Reich da Grande Alemanha] , ao mesmo tem po que o renascimento da luz, graças à qual o olhar se orien ta para a Sonnenrad [ roda de Sol] e a Hakenkreuz [suástica] . O judeu Jesus não entra em cena. Pouco depois, quando se institui a Ordem do Sangue para comemorar o aniversário de Himmler, passa-se a dizer Orden des nordischen Blutes [Ordem do sangue nórdico ] . Em todo esse conjunto, no entanto, as palavras que ficam gravadas na mente apontam para a transcendência cristã: a mística do Natal, o martírio, a ressurreição e a consagração 147 Sobre essa atitude anticristã, ver também É isso um homem?, de Pri mo Levi (2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1 997). 148 Edifício na Praça Odeon, em Munique, onde terminou a tentativa de golpe chefiada por Hitler em 9 de novembro de 1 923, que se iniciara na cervejaria Bürgerbrãu. 149 Ver capítulo 8, "Dez anos de fascismo': 186
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de alguma ordem de cavaleiros, apesar de pagã, se articulam como as representações católicas, ou por assim dizer persiva lianas, 1 50 plenamente vinculadas às ações do Führer e de seu partido. E die ewige Wache der Blutzeugen [a eterna vigília das testemunhas de sangue] conduz a imaginação em uma dire ção semelhante. Aqui cabe destacar a enorme importância da palavra ewig [eterno ] . É uma daquelas palavras do léxico da LTI cujo as pecto especificamente nazista decorre de um uso despudo rado: na LTI, tudo é historisch [ histórico] , einmalig [ único] e ewig. Podemos considerar que ewig ocupa o mais alto grau da longa escada de superlativos nazistas. Atingindo-se esse está gio mais alto, pode-se entrar no céu. O atributo ewig está rela cionado somente com o divino; quando qualifico algo como ewig, elevo-o à esfera do religioso. Na inauguração de uma Hitlerschule1 5 1 [ escola de Hitler] no início de 1 938, Ley 1 5 2 dis se: wir haben den Weg in die Ewigkeit gefunden [ encontramos o caminho para a eternidade] . Nos exames de conclusão de cursos era comum haver a "pegadinha": Was kommt nach dem Dritten Reich? [ o que vem depois do Terceiro Reich?] . Se um ingênuo ou um novato respondesse das vierte Reich [o Quarto Reich] , era eliminado, mesmo que possuísse bons conheci mentos técnicos. A resposta correta era: Nichts kommt dahin ter, das Dritte Reich ist das ewige Reich der Deutschen [Nada, pois o Terceiro Reich é o eterno Reich dos alemães] . Anotei somente uma vez que Hitler denominou a si mes mo "redentor alemão", empregando termos do Novo Testa mento (mas tenho de ressaltar novamente que poucas coi sas chegavam aos meus olhos e ouvidos, e mesmo agora me 1 5º De Persival, personagem casto e redentor da mitologia alemã. 1 51 Escola "melhor" para jovens que se destacavam na Juventude Hitle rista. 1 52 Robert Ley ( 1 890- 1 945) foi o chefe da Deutsche Arbeitsfront [ Frente de Trabalho Alemã] . 187
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dedico pouco a leituras complementares) . Em 9 de novem bro de 1 935, escrevi: "Ele chamou de 'meus apóstolos' os caí dos na Feldherrnhalle. São dezesseis, seguramente ele tem de ter quatro a mais do que seu antecessor [ Jesus Cristo ] . Quan do houve os funerais, eles disseram: Ihr seid auferstanden im Dritten Reich [Vocês ressuscitaram no Terceiro Reich ] ." Mesmo que essa autodivinização direta e essa identificação estilística com o Cristo do Novo Testamento tenham sido ex ceção e ocorrido uma vez só, resta o fato de o Führer ter rei terado o seu relacionamento estreito com a divindade, sua condição especial de eleito e filho de Deus, sua missão religio sa. Na época de sua ascensão triunfal, em junho de 1 937, ele diz em Würzburg: "A Providência nos conduz, agimos con forme a vontade do Onipotente. Ninguém pode fazer a his tória dos povos e do mundo se não contar com a bênção da Providência." Em 1 940, no Heldentag [ dia da recordação dos mortos] da Primeira Guerra Mundial, diz que esperava "hu mildemente a graça da Providência". Durante anos, quase em cada discurso, quase em cada invocação aparece "o escolhido pela Providência Divina': Após o atentado de 20 de julho de 1 944, 153 afirma que foi salvo pelo destino, pois a nação pre cisava dele, o "Fahnentriiger [porta-estandarte] da fé e da es perança': Em 3 1 de dezembro de 1 944, na noite de São Sil vestre, quando desaparecera qualquer esperança de vitória, o "Deus pessoal dos dias do triunfo terá de retornar, pois o Todo-poderoso não privará de vitória a causa justa". Existem referências mais importantes à divindade, mas isoladas. Em 1 0 fevereiro de 1 932, Goebbels anota em seus 153 Nessa data o Conde Stauffenberg ( 1 907- 1 944) , um dos mais desta cados generais alemães, colocou uma bomba sob a mesa de reuniões na "Toca dos Lobos", local onde a cúpula nazista analisava o anda mento da guerra. O artefato explodiu e por pouco não matou Hitler. Stauffenberg e seus colaboradores foram executados no mesmo dia do atentado. 188
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diários Vom Kaiserhofzur Reichskanzelei [ Da corte real à chan celaria do Reich] , referindo-se a um discurso do Führer no Palácio de Esportes: "No final, seu discurso assume um páthos oratório maravilhoso e inacreditável, que termina com um 'amém'. Dá a tudo um ar tão 'natural' que as pessoas se como vem e se sensibilizam profundamente . . . as massas no Palácio de Esportes ficam tomadas por um frenesi .. :' O "amém" mos tra claramente que esse é um discurso de caráter religioso e pastoral. E a frase "dá a tudo um ar tão natural", redigida por um ouvinte mais experiente, permite concluir que Hitler fez muito uso da retórica, conscientemente. Quem se dispuser a ler as receitas para sugestionar as massas, ensinadas pelo pró prio Hitler em Mein Kampf, não terá dúvidas sobre a sedução deliberada, baseada no registro religioso. É comum encontrar um crente fanático ou um demente que desenvolveu grande astúcia, mesmo sendo louco. A experiência tem demonstra do que os maiores e mais duradouros sugestionamentos vêm desses charlatães que enganam especialmente a si mesmos. Os juízes de Nuremberg foram poupados pelo próprio Hitler de decidir se ele deveria ir para a forca ou o manicômio. Aqui não é sua culpa que vem ao caso, e sim como ele foi capaz de ser tão influente. O fato de que culmine em uma dimen são religiosa deve-se, pois, em primeiro lugar, a determinadas expressões linguísticas tomadas especificamente do cristia nismo e também, em grande medida, porque seus discursos assumem o tom e a ênfase de uma prédica. Para ser endeusado, ele se beneficia da colaboração orga nizada de muitos auxiliares qualificados. Algumas páginas após o trecho que citamos, Goebbels menciona com orgulho que virá o "dia do despertar da na ção": "Usaremos toda a nossa capacidade de propaganda com uma força jamais vista ...", tudo "haverá de funcionar às mil maravilhas". Em seguida o Führer discursa em Kõnigsberg. Todos se emocionam profundamente quando no acorde fi189
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nal do discurso ouve-se "a poderosa 'oração de graças' holan desa" 154 cuja última estrofe é coberta pelo repicar dos sinos da Catedral de Kõnigsberg. "Graças ao rádio, esse hino é trans mitido pelo espaço celestial para toda a Alemanha:' Mas o Führer não pode nem deve falar todos os dias. A di vindade tem de ocupar um trono sobre as nuvens, e seus pro nunciamentos devem ser feitos mais pela boca dos sacerdotes do que pela própria. No caso de Hitler, essa é uma vantagem adicional, pois seus amigos e servidores podem erigi-lo em salvador de maneira ainda mais firme e com maior desen voltura, venerando-o ininterruptamente e em coro. De 1 933 a 1 945, até mesmo depois da queda de Berlim, dia após dia houve essa elevação do Führer à categoria divina, essa iden tificação de sua pessoa e suas ações com o salvador e com a Bíblia, e "tudo funcionou sempre às mil maravilhas". Sob a prepotência reinante, ninguém pôde contradizê-lo jamais. No primeiro ano do hitlerismo, o antropólogo Spamer, 155 meu colega, que conhece tão bem a origem e a transmissão de lendas, disse-me uma vez, quando lhe falei horrorizado do estado mental do povo alemão: "Se fosse possível [ naquele tempo ele ainda considerava que essa era uma hipótese ir realizável] impor uma linha única a toda a imprensa e a todo o sistema de ensino, de modo a reiterar que a Guerra Mundial de 1 9 1 4- 1 9 1 8 não existiu, em três anos todos acreditariam que de fato ela não existiu." Em nosso primeiro encontro prolon gado, quando lembrei Spamer dessas palavras, ele me corrigiu: "Sim, me recordo, só que você está enganado. Naquela ocasião eu disse, e agora repito com mais ênfase: em um ano!" 154 Canto holandês criado em 1 626 durante as revoltas contra a Espanha e usado pela propaganda nazista. 155 Adolf Spamer ( 1 883- 1 953), especializado no folclore alemão, fez car reira sob os nazistas como chefe do Reich para o Folclore. Klemperer considerou-o oportunista. 1 90
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Citarei alguns exemplos dos casos absurdos de endeusa mento. Em julho de 1 934, Gõring diz diante da Câmara Mu nicipal de Berlim: Wir alle, vom einfachsten SA-Mann bis zum Ministerpriisidenten, sind von Hitler und durch Hitler [ Todos nós, desde o mais simples membro das SA até o primeiro ministro, somos de Adolf Hitler e por Adolf Hitler] . Na campanha eleitoral de 1 938, por ocasião da votação para confirmar a anexação da Áustria e aprovar a criação da Grande Alemanha, a propaganda qualificava Hitler como "instrumento da Providência". E no estilo do Antigo Testa mento: Die Hand muss verdorren die Nein schreibt [ Que se que a mão que escrever não ] . 156 Baldur von Schirach transfor ma Braunau, cidade natal de Hitler, em local de peregrinação da juventude alemã. Publica também Das Lied der Getreuen [Cântico dos fiéis] , "versos da juventude hitlerista austríaca anônima durante os anos da perseguição de 1 933 a 1 937'', em que consta: Es gibt so viele, die dir nie begegnen und denen trotzdem du der Heiland bist [ Tanta gente que nunca te viu, mas sempre te amou, nosso divino salvador, nós austríacos perseguidos] . Nessa altura, todos invocavam a Providência, não somente aqueles que pela origem social e a formação pudessem ser considerados mais sugestionáveis e que facilmente ficariam deslumbrados. Também Kowalewski, o magnífico reitor da Universidade Técnica de Dresden, conceituado professor de matemática, escreveu: Er ist uns von der Vorsehung gesandt [ Foi-nos enviado pela Divina Providência] . Pouco antes do ataque à Rússia, Goebbels retorna com mais força ao tema do endeusamento. No discurso de votos de felicidades para o 20 de abril de 1 94 1 , 1 57 ele diz: Wir brau chen nicht zu wissen, was der Führer will - will glauben an ihn 156 Corruptela do Salmo 1 37, versículo 5, do Antigo Testamento. 157 Data do aniversário de Hitler. 191
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[ Não precisamos saber o que o Führer deseja - acredita mos nele] . ( Para as gerações futuras, teremos de repetir mui tas vezes que frases como esta não causavam estranhamento algum na opinião pública, nem remotamente.) Na noite de 3 1 de dezembro de 1 944, Goebbels demonstra sua comisera ção pelo Führer e diz que as madeixas brancas em seus cabe los provêm do sofrimento dele em relação ao povo e também em relação à humanidade, que não o compreende. Pois o amor dele se dirige a toda a humanidade, e se esta soubesse disso, "abandonaria neste exato momento os falsos deuses para reverenciá-lo". A veneração religiosa a Hitler e a aura iluminada que o envolve são intensificadas pelo fato de que sempre se recorre a expressões de caráter religioso quando se trata de sua obra, de seu Estado, de sua guerra. Will Vesper, presidente da Câ mara de Publicações do Reich na Saxônia - uma "organi zação total", o que torna real a hipótese irreal de Spamer -, declara em uma "semana do livro" em outubro: "Mein Kampf é o livro sagrado do nacional-socialismo e da nova Alema nha:' Mein Kampf foi considerado sempre e em qualquer lu gar a Bíblia do nacional-socialismo. Para meu próprio uso e consumo pessoal tenho uma prova disso, nem um pouco filológica: não julguei necessário anotá-la em lugar nenhum, pois me parecia óbvia e trivial. É fácil compreender que a guerra destinada a preservar não somente o Reich de Hitler, stricto sensu, mas a área de circunscrição da religião hitleriana se convertesse em "cruzada", em "guerra santa", em "guerra santa do povo'� e que nessa guerra religiosa também houvesse mortos, pessoas que tombaram imbuídas da "fé inabalável no Führer': Ou seja, o Führer é um novo Cristo, um redentor especial alemão. Há uma vasta antologia de poesia e filosofia alemãs denominada Germanenbibel [ Bíblia dos germanos] , que abar192
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ca desde Edda até Mein Kampf. Lutero, Goethe e outros são, no máximo, autores casuais nessa Germanenbibel. Ela é o ver dadeiro evangelho de milhões, e sua guerra de defesa é uma guerra santa. É evidente que o livro e a guerra devem sua san tidade à santidade do seu criador, mesmo que retroativamente reforcem sua aura. Mas como fica a hierarquia sagrada desse Reich anuncia do, criado e defendido por Hitler? Aqui, é ele que recebe a santidade do Reich. i s s A aura da palavra Reich é mais solene e possui uma digni dade religiosa ausente nos termos mais ou menos sinônimos. A res publica é algo comum a todos os cidadãos, comprometi dos com a ordem pública, que a edificaram e a sustentam. Trata-se de uma construção feita pela inteligência, que perten ce exclusivamente a este mundo. É isso que expressa a palavra renascentista "Estado", que designa uma condição durável, uma ordem estável em um domínio delimitado, com um sen tido exclusivamente terrestre e político. Reich, em contrapar tida, quando não aparece em termos compostos - Konigreich [ reino ] , Kaiserreich [ império ] , Gotenreich [ reino gótico ] -, abrange um âmbito mais amplo e se expande em direção ao espiritual, ao transcendente: o "além" cristão é o Himmelreich [ reino dos céus] , e a oração cristã mais comum e mais sim ples suplica no segundo verso: "Venha a nós o Himmelreich:' Um jogo de palavras cruel, com o qual queríamos nos vingar secretamente de Himmler, o cão sanguinário, consistia em di zer que ele enviava suas vítimas para o Himmlersches Reich [ reino de Himmler] . A forma de Estado à qual a Alemanha pertenceu até 1 806 chamava-se Das Heilige Romische Reich Deutscher Nation [ Sacro Império Romano da Nação Alemã] . "Sacro" não consta como atributo meramente decorativo, nem como adjetivo exclamativo. Esse Estado não estava cir158 Contrariamente ao livro e à guerra evocados no parágrafo anterior. 193
LTI
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cunscrito a uma ordem que pertencesse a este mundo; admi nistrava, ao mesmo tempo, o âmbito da transcendência. Quando Hitler deu o primeiro passo para alcançar a alme jada Grande Alemanha, pela anexação da Áustria, imitou mu tatis mutandissimis as viagens à Itália dos imperadores medie vais. Dirigia-se a Roma com muita pompa e grande séquito para tratativas com o Duce. Quando isso ocorria, a imprensa alemã escrevia com estardalhaço sobre Das Heilige Germani sche Reich Deutscher Nation. Os soberanos do Reich medieval eram legitimados ao serem coroados pela Igreja, sinal da gra ça divina, e se consideravam administradores de um sistema religioso e cultural romano-cristão. Ao consolidar um sacro império germânico, Hitler transfere a aura do antigo império para a nova construção, mantendo-se naquele momento fiel à doutrina originária, segundo a qual ele só queria criar um império alemão ou germânico, sem violar a liberdade das ou tras nações. Quando, entretanto, rompe com a palavra dada, quando começam as pilhagens e, depois, quando a guerra relâmpago inicial se converte em uma lenta hemorragia, o jornal Frank furter Zeitung publica no Natal de 1 942 um estudo histórico filosófico com o qual tenta dourar a aura empalidecida do conceito de Reich com pinceladas de cores fortes: "O Reich posto à prova". O ensaio, muito teórico e endereçado a um público culto, parte da ordem, ao mesmo tempo espiritual e secular, do Sacro Império Romano. Dizia: trata-se de uma ordenação europeia supranacional em que diversos povos, de diferentes culturas, estavam subordinados ao Kaiser [ impe rador] alemão. O império se desagregou quando os Estados nacionais se estruturaram. Dentre eles, segundo o autor, a Prússia teria desenvolvido de maneira mais autêntica o con ceito de Estado "com uma postura ética, uma exigência mo ral, criando uma estrutura para a Kleindeutschland [ Peque na Alemanha]". Entretanto, quando se debateu a questão da 194
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Grossdeutschland [ Grande Alemanha] na Paulskirche,159 ficou claro que ela não poderia ser simplesmente um Estado nacio nal, mas deveria assumir responsabilidades europeias supra nacionais. O que os homens da Paulskirche não foram capazes de realizar o Führer realizou, criando o Grossdeutsches Reich [ Império da Grande Alemanha] . Talvez, por um instante quando prometeu que se contentaria com os Sudetos160 -, tenha lhe parecido possível um Estado restrito à nação. Mas a ideia imanente da Grossdeutschland o pressionava para seguir adiante. Grossdeutschland somente pode existir como "núcleo e suporte de um novo Reich; é responsável, perante a história, por uma nova ordem geral e uma nova era para o continente europeu, que possa fazer frente à anarquia; [ . . . ] na guerra, deve provar que está à altura dessa missão': O título desse tre cho final é "Herança e missão': Vê-se como mesmo pessoas cultas são capazes de santificar a guerra mais criminosa a par tir da antiga ideia de Reich, em que se renova a santificação do próprio conceito de Reich. A troca do termo Reich para Terceiro Reich eleva essa san tidade ao terreno místico, em uma mística de uma monstruo sa simplicidade que se insinua no inconsciente de todos. Tam bém aqui, a LTI endeusa Hitler apropriando-se de algo que já encontra pronto, que é a primeira edição de Das Dritte Reich [O Segundo Reich] , de Moeller van den Brucks, de dezembro de 1 922. No prefácio consta: "O Terceiro Reich é um Weltan1 59 Nome da igreja, em Frankfurt am Main, que sediou a assembleia que reunia opositores de Bismark e deveria promulgar a nova Constitui ção da Confederação Germânica em 1 848. 1 60 Nome de uma região situada na fronteira da República Checa, da Po lônia e da Alemanha, parcialmente povoada por populações de ori gem alemã. Hitler ocupou militarmente a região em 1° de outubro de 1 938, sem enfrentar reação das potências europeias. Depois da guer ra, a Checoslováquia recuperou a soberania sobre a área, que hoje per tence à República Checa. 195
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schauungsgedanke [conceito ideológico] que transcende a rea lidade. Não por acaso, as imagens associadas a esse conceito, ao nome Terceiro Reich, são estranhamente nebulosas, senti mentais, etéreas, totalmente relacionadas com o Além." Hans Schwarz, editor da 3ª edição, em 1 930, afirma que "o nacio nal-socialismo acolheu a aspiração do Terceiro Reich, e a Liga Oberland deu esse nome ao seu jornal". Ao mesmo tempo, enfatiza nas primeiras linhas: "O Terceiro Reich possui um poder lendário para aqueles que buscam algo sublime." Em geral, pessoas sem formação cultural e desprovidas de conhecimento de história são mais influenciadas por lendas. Aqui ocorre o contrário. Pessoas com melhor conhecimento de história da literatura e história do cristianismo foram afeta das pela "transcendência" da expressão Terceiro Reich. Pessoas que haviam purificado a Igreja e a religião medieval, pessoas cheias de entusiasmo para reformar a humanidade em épocas seguintes, homens com pontos de vista diversos, todos tinham sonhado com o advento de um Terceiro Reich, uma era perfei ta que sucederia o paganismo e o cristianismo, ou pelo menos o cristianismo contemporâneo, corrompido, que aguardava a chegada do Messias. Reminiscências de Lessing e Ibsen são despertadas. A massa de pessoas que não está a par da riqueza que esse conceito teve no passado - é claro que elas também serão esclarecidas, pois há uma preocupação constante com sua educação ideológica, as tarefas dos ministérios de Goebbels e de Rosenberg foram concebidas com precisão -, de pessoas simples, também se sente imediatamente comovida com a ex pressão Terceiro Reich, como uma elevação religiosa do con ceito de Reich, impregnado de religião. Duas vezes houve um Reich na Alemanha, mas nas duas vezes ele foi imperfeito e desapareceu; agora, porém, existe um Terceiro Reich perfeito, destinado a durar por toda a eternidade. Que seque a mão que não se dispuser a servi-lo, que ousar se opor a ele ... 196
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As múltiplas frases e expressões da LTI que se referem ao transcendente formam uma rede homogênea lançada sobre a fantasia do ouvinte, atraindo-o para o campo da fé. Será que essa rede foi traçada conscientemente? Será que ela se ba seia na impostura, para usar uma expressão do século XVIII? Em parte, sim, seguramente. Não se pode ignorar que certa nostalgia da fé e certa disposição religiosa também desempe nharam um papel importante junto a alguns dos iniciadores da doutrina. Nem sempre é possível ponderar se os artífices iniciais da rede são culpados ou inocentes. Mas o efeito de seu impacto parece-me certo. O nazismo foi aceito como evange lho por milhões de pessoas porque ele usou a linguagem do Evangelho. Foi aceito? Pois não encontrei a expressão "Eu acredito nele! " até nos últimos dias do Reich de Hitler? Ocupo-me no momento de reabilitados, bem como daqueles que desejam ser reabilitados. Essas pessoas, por mais diferentes que sejam entre si, possuem um traço em comum: todas pretendem ser "vítimas do fascismo". Todas afirmam que algum tipo de vio lência as coagiu a entrar no partido, ao qual odiavam desde o início; agiram contra suas convicções; nunca acreditaram no Führer, tampouco no Terceiro Reich. Outro dia encontrei na rua meu antigo aluno L., aquele que eu vira na última vez em que pude ir à biblioteca pública. Naquela ocasião ele apertou minha mão em sinal de simpatia. Senti constrangimento, pois ele já usava a suástica. Dessa vez ele se aproximou com uma expressão contente: - Alegra-me saber que o senhor se salvou e reassumiu seu trabalho! - E você, como vai? - Mal, é claro. Trabalho como pedreiro na construção civil, e o que ganho não dá para sustentar mulher e filho. A lon go prazo, não terei físico para isso. 197
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- Você não está sendo reabilitado? Eu o conheço, sei que nenhum crime pesa na sua consciência. Você ocupou um cargo importante no partido, esteve muito envolvido politi camente? - Que nada. Eu não passava de um insignificante Pg. 161 - Então por que você não está sendo reabilitado? - Porque não solicitei nem posso fazê-lo. - Não entendo. Pausa. Depois, com dificuldade, os olhos baixos: - Não posso negar, eu acreditava nele. - Mas é impossível que continue a acreditar. Você vê no que deu; e, agora, todos os crimes hediondos estão expostos à luz do dia. Pausa ainda mais longa. Então, bem baixinho: - Concordo com tudo o que o senhor diz. Foram os outros que não o compreenderam que o traíram. Mas nele, NELE, eu ainda acredito.
1 6 1 Membro do Partido Nazista sem nenhuma importância. 1 98
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AN Ú NCIOS DE FAM(LIA
Anúncio de nascimento no Dresdner Anzeiger de 2 7 de ju lho de 1 942: "Volker,* nascido em 2 1 .7. 1 942. 162 Na época de maior grandeza da Alemanha, nosso Thorsten ganhou um ir mãozinho. Cheios de satisfação altaneira, Else Hohmann ... Hans-Georg Hohmann, SS- Untersturmführer [ subchefe das SS] . Dresden, rua General-Wever." Nascimento, reprodução, morte: os eventos mais comuns e mais importantes na vida. Como vermes que se instalam em membros de um corpo contaminado, os chavões e as caracte rísticas da LTI infestam, aos montes, os anúncios familiares. Várias coisas que observo em diferentes lugares, sob os mais diversos pontos de vista, encontro concentradas em um só dia nesses anúncios. Vi isso, em abundância, somente depois do início da ofensiva contra a Rússia, quando o conflito já per dera as feições de uma simples guerra-relâmpago. É impor tante precisar a data, pois naquela época artigos nos jornais diziam que anúncios fúnebres que demonstravam dor e eram muito melosos, indicando desconsolo intenso pela perda de um ente querido, caído na guerra, eram considerados indig nos, quase antipatrióticos e hostis ao Estado. Esses comentá rios contribuíram decisivamente para que o tom dos necroló gios dos tombados passasse a ser carregado de heroísmo e estoicismo. O anúncio de nascimento que apresentei no iní cio desta nota agrega um elemento novo, instrutivo e original ao já tradicional tesouro de estereótipos. Que os nomes das duas crianças sejam tomados de empréstimo dos nibelungos ou da mitologia nórdica, que o pai, integrante das SS, acres162 O asterisco substitui a runa da vida. 199
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cente ao seu primeiro nome um outro nome com som teutô nico, ligando ambos por traço de união, que em vez da estrela ou da palavra "nascido" se coloque a runa da vida, tudo isso não passa de uma somatória de fórmulas típicas do nazismo, repetidas em meu caderno de anotações. Que a família resida em uma rua rebatizada com o nome de um general da avia ção hitleriana, morto ainda antes da guerra, é uma casualida de, não pode ser considerado mérito próprio. E a expressão "época de maior grandeza da Alemanha" é um superlativo quase modesto entre os superlativos em voga, que endeusam a era hitleriana. Mas a expressão "satisfação altaneira" é instrutiva e traz algo novo. De que os pais felizes sentem "satisfação altaneira"? Ora, que um casal das SS seja capaz de procriar é uma obvie dade, caso contrário nem teria recebido autorização para con trair núpcias. Também não seria o nascimento do segundo filho um motivo especial para sentir, digamos, "orgulho': Es pera-se que os oficiais das SS forneçam o maior suprimento de carne humana, da mesma forma que se espera isso quando se criam cavalos ou cães de raça. (Igual ao gado marcado com ferro incandescente. ) Então resta a "satisfação altaneira" da "época de maior grandeza". Porém, só se pode sentir orgulho, "satisfação altaneira", de algo em que se participa ativamente. E o nome do pai do bebê, integrante das SS, não vem acom panhado da indicação de seu posto no Exército nem consta a frase de sempre: "No momento, no campo de batalha". De acordo com o código moral do Terceiro Reich, só poderia de monstrar orgulho, a rigor, a mulher que anunciasse a perda de um membro da família caído pelo Führer. Nesse anúncio de nascimento, "satisfação altaneira" é uma expressão infundada. O elemento instrutivo está justamente nessa falta de fun damento. O que se tem aqui é uma analogia com a "dor alta neira" dos anúncios fúnebres. Essas analogias demonstram o prestígio dos chavões, bem como a rapidez e a facilidade com 200
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que são memorizados. Sem pensar, o casal das SS considera natural que um simples anúncio familiar empregue a palavra "altaneira", resultando em "satisfação altaneira': A partir da data que indiquei, em muitos casos considera-se obrigatória a "tristeza altaneira". Às vezes ela vem reforçada, dizendo que, de acordo com a vontade expressa do caído, não se está usan do luto, já que ele caíra em "batalha heroica': O mesmo ocor ria com o adjetivo sonnig [solar] como estereótipo decorati vo, amplamente usado desde o início da guerra, mesmo se o caído fosse idoso. Parece que no império de Hitler cada ale mão é um ser sonnig, assim como os olhos da Hera de Ho mero transmitiam sempre o semblante de gado pachorrento e Carlos Magno sempre ostentava barba branca na Canção de Roland. Sonnig só passou a rarear quando o brilho do Sol hitleriano já esmaecera e o som do epíteto se tornara tragi cômico e obsoleto. Não desapareceu de todo nem no final, quando foi substituído por lebensfroh [ feliz de viver] . Bem no final, um coronel da reserva chegou a anunciar a morte de seu strahlender /unge [filho radioso] . "Solar" caracteriza, por assim dizer, a marca comum a to dos de origem germânica, enquanto "dor altaneira" é a rubri ca do patriota por excelência. O modo especificamente nazis ta de pensar se expressa até mesmo em anúncios fúnebres, mas eles primam pela sutileza, pois há diversos graus de en volvimento com o nazismo. Nuances sutis podem expressar um entusiasmo supremo ou - o que é bem mais difícil mostrar um distanciamento crítico. Durante muito tempo, a maior parte dos caídos tinha dado sua vida für Führer und Vaterland [pelo Führer e pela pátria] . (Essa analogia com o antigo Für Konig und Vaterland [pelo rei e pela pátria] dos prussianos, dada a sua aliteração cativante, foi amplamente difundida desde o primeiro dia de guerra.) No entanto, a tentativa de implantar a data de 20 de abril como Führers Geburtstag [ aniversário do Führer] não 201
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deu certo. É provável que a direção do partido tenha consi derado a analogia com o Konigs Geburtstag [ aniversário do rei] monarquista demais, de forma que se preferiu Geburtstag des Führers; se necessário, podiam usar também a forma Des Führers Geburtstag, mais arcaica. Algumas expressões deixam transparecer graus mais elevados de sentimento nazista: Er fiel für seinen Führer [ ele tombou por seu Führer] e Er starb für seinen geliebten Führer [ ele morreu por seu amado Führer] , que não requeriam o nome da pátria, representada pelo pró prio Adolf Hitler, como o corpo do Senhor é representado pela hóstia sagrada. Colocar Hitler na posição do Salvador é a expressão máxima do ardor nazista: Er fiel im festen Glauben an seinen Führer [caído pela fé absoluta em seu Führer] . Em contraste, quem não concorda com o nacional-socia lismo e deseja desabafar a aversão ou o ódio que sente, sem deixar transparecer os sentimentos, pois a coragem não chega a tanto, pode apresentar essa fórmula: Für das Vaterland fiel unser einziges Kind [Nosso único filho caiu pela pátria] , sem mencionar o Führer. Isso quase equivale à saudação formal colocada no final das correspondências, Mit deutschem Gruss [saudações alemãs] . Nos primeiros anos, quem tinha alguma coragem escrevia nas cartas Mit deutschem Gruss em vez do famigerado Heil Hitler. À medida que o número de vítimas aumentava e as esperanças de vitória diminuíam, começaram a rarear as expressões de devoção ao Führer. Não posso garan tir isso, apesar de ter consultado muitos jornais. Pode ser que a crescente escassez de pessoas e de material tenha contribuído para aumentar o número de anúncios nos jornais, reduzindo o espaço publicado, o que explicaria a ne cessidade de redigir esses anúncios da maneira mais concisa possível ( muitas vezes mutilados por abreviaturas, chegando às raias da incompreensão) . No fim, economizava-se em cada palavra, em cada letra, como se fosse um telegrama dispen202
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dioso. Em 1 939, quando morrer pela pátria ainda era novi dade, um acontecimento fora do cotidiano, quando papel e tipógrafos existiam em abundância, alguns necrológios dos tombados ocupavam um quadrado grande com uma margem larga cheia de tinta preta. Se o herói fosse industrial ou co merciante, o Gefolgschaft [ grupo dos empregados] 163 precisava dedicar-lhe um necrológio. Ao lado do necrológio da viúva, os empregados tinham o dever de acrescentar o seu, e assim a palavra Gefolgschaft, cheia de hipocrisia, também entrou nas minhas anotações. Quando o defunto era mesmo um figurão, um alto funcionário, um conselheiro de diversas sociedades, então sua morte heroica era anunciada três, quatro e até mais vezes, chegando a ocupar meia página de jornal. Naquele tem po havia espaço suficiente para frases longas, quase sem fim. Porém, ultimamente sobravam apenas duas linhas da coluna mais estreita para o anúncio colocado pela própria família. Excluía-se até mesmo o traço que emoldurava o anúncio. Os nomes dos mortos ficavam apertadinhos em um único qua drado, envolto por um só traço negro, como se todos tives sem sido jogados em uma vala comum. Na última fase da guerra, anúncios de nascimento e de ca samento também tiveram de se sujeitar a um espaço menor, mesmo que não tenham sofrido reduções tão consideráveis. Esses anúncios eram pouco numerosos em comparação com a longa lista dos mortos. Havia comunicados, aliás bastante comuns, que causavam estranheza, como os que anunciavam a união póstuma de uma moça com o noivo caído na guerra e cujo nome, no mesmo dia, podia constar também na lista dos mortos. Uma denúncia terrível, pelo material que acumu lou, apareceu em 1 944 em Moscou, publicada por uma edito1 63
Título do capítulo 33. Sob o domínio do nacional-socialismo, essa de nominação referia-se a todos os trabalhadores de uma empresa, com exceção do chefe. 203
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ra de literatura estrangeira: Hitlers Worte und Hitlerstaten [Pa lavras e ações de Hitler] . O autor contrapunha as palavras de Hitler com anúncios do Volkischer Beobachter que enumera vam as Ungeheuerlichkeiten in Hitlerdeutschland [Monstruo sidades na Alemanha de Hitler] : "Anuncio meu casamento póstumo com o sargento e radiotelegrafista Robert Haegele, stud. -ing., Inh. des. EK II [ estudante de engenharia, detentor da Cruz de Honra] , tombado na guerra .. :' Seja qual for o sen tido trágico desses Ferntrauungen [ casamentos post-mortem] , eles não constituem uma característica particular do nazismo, um pecado específico, situado ao lado dos pecados cometidos nessa guerra de conquista, nem uma arrogância particular, como a que se lê em formato religioso: Gefallen im Glauben an Adolf Hitler [ caiu pela fé em Adolf Hitler] . Pois nas entre linhas desses anúncios talvez se possa ler algo que fez muita falta naquela época, em quase toda parte: um sentimento au tenticamente humano, a preocupação pelo porvir de uma criança, quem sabe a fidelidade a um nome amado. Além dis so, as leis que permitiam essas uniões eram anteriores ao Ter ceiro Reich. Voltemos ao âmbito literalmente nazista. No último ano de guerra, como dissemos, até mesmo os jornais enterravam os mortos em vala comum. Para ser mais exato, há dois túmulos a cada vez. Para explicar sem metáfora, há duas molduras: a primeira, mais elegante, destinada aos caídos no campo de honra; nesses casos, a suástica enfeita o lado superior esquer do, onde consta, por exemplo: "Caídos pela Alemanha . .." O se gundo quadro traz os nomes daqueles que morreram como civis, sem que tivessem se empenhado em obter méritos pela pátria. O que chama atenção é que cada vez mais nomes de civis são colocados no primeiro quadro. Homens sobre os quais só consta a profissão, nenhum posto militar, muito ve lhos ou muito jovens para fazer parte do exército de Hitler, 204
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além de mulheres e moças de todas as idades. São os que morreram em bombardeios. Se a morte ocorreu em outra localidade, então é permiti do indicar o lugar: "Durante o bombardeio de Bremen, nossa querida mãe .. :' Mas se a morte ocorreu aqui, não se deve alar mar os vizinhos. Adota-se a fórmula estereotipada da LTI: "Vi timados por destino trágico, perderam a vida .. :' Constam em meu levantamento os anúncios cheios desse eufemismo mentiroso que teve um papel tão importante na estrutura da LTI. O destino dessas vítimas não era mais trági co do que o das lebres abatidas em uma caçada. Depois de certo tempo, uma grossa tarja em diagonal separava os caídos em combate e os demais mortos. Havia agora três categorias de cadáveres. Mas o espírito irônico dos berlinenses insurgiu-se viva mente contra esse desapreço pelas vítimas dos bombardeios. Generalizou-se a pergunta: "Quem é covarde?" Resposta: "Quem pedir para ser enviado ao front, em vez de ficar em Berlim:'
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O QU E RESTA?
"Para depois 'setembrizá-los'." O verso era mais ou menos assim. Em 1 909, quando eu já escrevia muito, mas com pou co profissionalismo, compilei para uma editora popular uma pequena antologia da lírica política alemã do século XIX, pu blicada junto com uma breve introdução. É bem provável que o verso fosse de uma poesia de Herwegh. 164 Alguém, o rei da Prússia ou a reação, que o autor representava alegoricamen te como uma besta, queria asfixiar a liberdade, a revolução e seus simpatizantes "para depois setembrizá-los". Eu desco nhecia a palavra, pois naquela época ainda não me interes sava por filologia. O famoso Tobler 165 acabara com qualquer pretensão minha nesse sentido, e eu ainda não conhecia Vossler. 166 Consultei o pequeno Daniel Sanders, que continha palavras e nomes próprios estrangeiros que faziam parte da cultura geral nos idos de 1 900. Encontrei algo mais ou menos assim: "Matança coletiva de cunho político, como a que foi praticada durante a Grande Revolução Francesa em setembro de 1 792." O verso e a palavra ficaram em minha memória. Lembrei me deles no outono ou inverno de 1 9 1 4, quando já tomara gosto pela linguística. O jornal Neue Presse, de Viena, publicou 164
Georg Herwegh ( 1 8 1 7- 1 875), poeta lírico alemão, participante ativo da Revolução de 1 848. 165 Adolf Tobler, latinista suíço ( 1 835- 1 9 10), professor de Klemperer no início de seus estudos. Dedicou a vida a compilar um dicionário do francês antigo. 166 Karl Vossler ( 1 872- 1 949) , latinista alemão. Partidário da estética na linguagem, posicionou-se na contracorrente das teorias positivistas. 207
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que os russos tinham a intenção de lüttichieren 167 ["liegizar" ] a cidade de Przemysl. 168 Para mim era certo que deveria tra tar-se de um fenômeno análogo ao "setembrizar": um fato his tórico nos marca tão profundamente que acabamos usando a mesma palavra em acontecimentos semelhantes. Em um anti go Sachs- Villatte, 169 de 1 88 1 , encontrei não somente as pala vras francesas setembriseur, setembrisade, setembriser, mas tam bém a versão em alemão Setembrisierer [quem "setembriza" ] . Aparecia uma indicação semelhante modernizada: décembriser e décembriseur, com referência ao famoso golpe de Estado de 2 de dezembro de 1 85 1 , de Napoleão III, cuja forma alemã era dezembrisieren [ "dezembrizar" ] . Encontrei ainda septembrisie ren em um dicionário do início da Primeira Guerra Mundial. A sobrevivência do termo e sua extrapolação para além das fronteiras do país de origem se devem, sem dúvida, ao enor me impacto que os massacres de setembro provocaram no imaginário popular: nada do que veio a acontecer depois con seguiu apagar da memória o horror daquela lembrança. No outono de 1 9 1 4 eu me questionava se lüttichieren, ou "liegizar", teria uma vida mais longa. A palavra não se firmou. Parece-me que nem mesmo chegou a fazer parte do corpo da língua do Reich alemão, seguramente porque logo depois do ataque a Liege houve uma série de ações bélicas mais impres sionantes e mais cruéis do que os horrores daquela matança. Um especialista poderia argumentar que a conquista de Liege exigiu uma ação militar específica, um assalto direto a uma fortaleza moderna, e que essa particularidade criou o novo 1 67 Lüttich, denominação alemã da cidade de Liege, na Bélgica. Ali, uma divisão do Exército belga resistiu entrincheirada, durante dez dias, ao avanço alemão. Surgiu assim o neologismo. 1 68 Cidade no sudeste da Polônia, palco de duros combates entre russos e austríacos em 1 9 14- 1 9 1 5 . 1 69 Nome de um dicionário alemão. 208
CAPÍT U LO 20 1 O Q U E R E STA?
verbo. Porém, para a aceitação de um neologismo o que con ta não é nem a vontade nem a precisão do especialista: um termo é aceito em conformidade com o estado de espírito e o imaginário popular. É provável que septembrisieren ainda esteja na memória de alemães idosos, já que setembriser pertence ao vocabulário fixo da língua francesa. Lüttichieren desapareceu, se é que che gou mesmo a existir, depois do inominável desastre que se se guiu ao ataque a Liege. Uma palavra semelhante surgiu durante a Segunda Guer ra Mundial mas morreu também, apesar de aparentemente ter sido criada para durar para sempre. Veio ao mundo em meio ao estardalhaço da grande imprensa, sendo amplamente di vulgada pela Rádio da Grande Alemanha: o verbo coventrieren [ "coventrizar" ] . Coventry era nada mais que "um centro in glês de fabricação de armas"; segundo consta, apenas milita res viviam ali. Pois, como diziam todos os comunicados, só atacávamos alvos militares. Também fazíamos represálias, pois desde o início os ingleses atacavam como Luftpiraten [piratas aéreos] , bombardeando igrejas e hospitais. Nós nunca come çávamos. Os bombardeiros alemães "tinham demolido a cidade in glesa de Coventry" e agora ameaçavam "coventrizar" as de mais cidades, já que todas serviam a fins militares. Em ou tubro de 1 940, ouvimos que Londres estava submetida a "ataques ininterruptos de represália", suportando "o maior bombardeio da história mundial': comparado a uma "noite de São Bartolomeu". 170 Seria "coventrizada" se não concordasse logo em reconhecer a derrota. 1 70 Episódio sangrento na repressão aos protestantes na França. A ma tança, iniciada em Paris nas primeiras horas da madrugada de 24 de agosto (dia de São Bartolomeu) de 1 572, estendeu-se a outras provín cias e vitimou entre 70 mil e 100 mil protestantes franceses. 209
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O verbo "coventrizar" desapareceu, silenciado por uma propaganda que maldizia diariamente a "pirataria e o gangs terismo" dos inimigos perante a humanidade e a justiça de Deus, e, portanto, precisava silenciar sobre os nossos pró prios atos de banditismo. O verbo está enterrado sob os es combros das cidades alemãs. Lembro-me dele duas a quatro vezes por dia, dependendo se tenho que sair de casa somente pela manhã ou se também à tarde para resolver algum assun to em uma repartição. Sempre que chego à área dos escom bros, a palavra e tudo o mais me vêm à mente. Depois ela me dá um pouco de sossego durante as horas de aulas, conferên cias, monitorias e seminários. Reaparece logo que retomo o caminho de casa, me espreita sob as ruínas. Coventrieren é o que ouço a cada solavanco do bonde ou sob a cadência dos meus passos. Teremos uma nova pintura e uma nova poética das ruínas, mas serão diferentes daquelas do século XVIII, quando os au tores se entregavam de maneira voluptuosa e melancólica à ideia de transitoriedade. Os castelos e mosteiros medievais, assim como os templos e palácios da Antiguidade, já haviam sido destruídos há tantos séculos que a dor por seu destino era uma dor universal, de cunho filosófico, suave, quase agra dável. Mas aqui ... sob essa imensidão de escombros podem estar nossos parentes desaparecidos. Ali... entre aquelas quatro paredes está tudo vazio, tudo foi reduzido a cinzas, o que jun tamos durante décadas jaz irrecuperável: nossos livros, nosso piano de cauda ... Essas ruínas não provocam uma melancolia suave. Quando o olhar amargurado resvala na palavra coven trieren sentimos desconsolo, desolamento. Isso tem nome: cri me e castigo. No meu caso, trata-se de uma obsessão de filólogo. O povo não se lembra mais de Coventry nem de coventrieren. Diante da destruição aérea, ficaram gravadas nas mentes duas outras expressões com sonoridade menos estrangeira. Estou auto210
CAPIT U LO 20 1 O Q U E R E STA?
rizado a falar do povo, pois, ao fugirmos da tragédia de Dres den, atravessamos províncias e na estrada encontramos sol dados e fugitivos de todas as partes e de todos os estratos sociais da Alemanha. Pelas florestas do Vogtland, por onde passamos, os caminhos estavam cobertos de papel-alumínio. Ao longo da via férrea destruída na Baviera, na Universidade de Munique, castigada pelos bombardeios, em mais de cem abrigos antiaéreos, da boca de pessoas do campo e da cidade, de operários e de acadêmicos, cada vez que alguma coisa lem brava um avião ou nas horas monótonas à espera de que o alarme cessasse, alguém lembrava: "E Hermann disse que mu daria seu nome para Meier171 se um único avião inimigo pe netrasse em nossos céus:' Frequentemente essa frase longa era ironicamente abreviada em uma exclamação cheia de sarcas mo: "Hermann Meier! " Quem s e lembrava d a afirmação d e Gõring ainda manti nha certa dose de humor negro. Os mais amargurados re petiam Hitler, quando ele ameaçava ausradieren [ apagar do mapa] as cidades inglesas. Ausradieren e Meier heiften [ chamar-se Meier] : o Führer e o marechal do Reich não mereciam uma caracterização mais precisa e completa do que essa. Um por sua natureza crimi nosa de megalomaníaco, o outro pelo papel de Volkskomiker [palhaço do povo] . Não convém fazer profecias, mas acho que Ausradieren e Meier permanecerão.
171 Expressão idiomática alemã que corresponde aproximadameqtt a: "Não me chamo mais [ ... ] se [ ] acontecer:' O Hermano citado é o marechal Hermano Gõring, comandante da Força Aérea alemã duran te a Segunda Guerra Mundial. ...
211
CAPfT U LO 2 1
A RAIZ ALEMÃ
Pude levar poucos livros para a Judenhaus. Todos eram obras especializadas, relacionadas à minha profissão. Entre elas es tava a História da literatura alemã de Wilhelm Scherer, 172 que tive em mãos pela primeira vez no meu primeiro semestre, quando estudei letras germânicas em Munique, e que passei a manusear desde aquela época. Sempre que a consultava, cres cia minha admiração pela largueza de espírito de Scherer, por sua objetividade e sua excepcional capacidade de síntese, o que me levava a respeitá-lo mais do que no passado, na época em que tais virtudes me pareciam inerentes ao saber de um cientista. Frequentemente eu compreendia de modo novo fra ses e julgamentos que ele fazia. A terrível mudança pela qual a Alemanha passara lançava uma luz diferente sobre as anti gas manifestações do caráter alemão. Como era possível um contraste tão grande entre o mo mento atual da Alemanha e todas as épocas anteriores? Em meus trabalhos, sempre realcei a existência dos traits éternels, como os franceses denominam os traços eternos do caráter de um povo. Será que isso era uma grande mentira? Ou tinham razão os adeptos de Hitler quando reivindicavam a herança do humanista Herder? Existiria alguma conexão entre o pen samento dos alemães contemporâneos de Goethe e o povo de Adolf Hitler? Na época em que me dediquei a estudos de história da ci vilização, Eugen Lerch173 afirmou, brincando, que eu era o 172 Wilhelm Scherer ( 1 84 1 - 1 886), germanista alemão que introduziu o método positivista no estudo da literatura. 173 Eugen Lerch, colega de Klemperer na Universidade Técnica de Dresden. 213
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autor da expressão jocosa Dauerfranzos [ francês em conser va] , que foi muito usada para designar aquilo que resiste ao tempo, como o famoso Dauerwurst [ salame em conserva] . Depois, quando vi a maneira infame como os nazistas trans mitiam uma história da civilização completamente falsificada, fazendo com que o povo alemão se sentisse superior aos de mais, "por vontade divina e direito", como Herrenmenschen [ super-homens] em detrimento dos demais povos, senti ver gonha de ter, de alguma forma, participado disso. Mesmo sendo propenso a autocríticas, minha consciên cia estava limpa: posicionara-me intransigentemente contra aquele livro enorme, pueril e chauvinista, Espírito e mente, de Wechssler, 174 professor titular em Berlim, responsável pela de formação cultural de uma legião de professores. Não estava em jogo a pureza da minha consciência, mas a existência ou não de traços eternos no caráter de um povo. Tácito, 175 autor muito apreciado, citado com frequência durante o nazismo, delineou em sua obra Germania um per fil bastante lisonjeiro dos ancestrais alemães. Descreveu Armí nio 176 e seus soldados de maneira honrosa. A partir deles, os nazistas traçavam uma linha direta até Hitler e suas SA, SS e HJ, 177 passando por Lutero e Frederico, o Grande. Em uma 1 74 Eduard Wechssler ( 1 869- 1 949) , um dos latinistas mais importantes da época da República de Weimar, aderiu ao Partido Nazista em 1 933. O livro Esprit und Geist reúne estereótipos sobre alemães e franceses, concluindo que o entendimento entre os dois povos é impossível. 1 75 Cornelius Tacitus (55- 1 20 d.C. ) , historiador romano. Escreveu Sobre a geografia, do comportamento e dos hábitos das tribos da Germdnia, ou simplesmente Germdnia, XXIV, 8- 1 1 , publicado em 99 d.C. 1 76 Armínio ( e. 1 8 - 1 6 a.C. - 1 9- 2 1 d.C. ) foi o primeiro herói nacional da Alemanha, príncipe da etnia germânica dos queruscos. Venceu os ro manos na floresta de Teutenburg no ano 9 d.C. 1 77 SA, Sturm Abteilung [Divisão de Assalto ] ; SS, Schutzstaffel [Esquadrão Protetor] ; HJ, Hitler /ugend ( Juventude Hitlerista] . 214
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dessas avaliações históricas encontrei a opinião de Scherer so bre Germania. Li um parágrafo que me impressionou e, por assim dizer, me tranquilizou. Scherer diz que, na Alemanha, a ascensão e a queda do espírito são igualmente profundas: podem-se atingir os pon tos mais altos e os abismos mais fundos. ''A maldição de nos sa evolução espitirual repousa nos excessos. Quanto mais alto o nosso voo, maior o nosso tombo. Somos como aquele ger mano que, depois de perder todos os bens em um jogo de da dos, ainda tenta a última rodada, dessa vez apostando a pró pria liberdade. Depois de perdê-la, aceita com submissão ser vendido como escravo. Tácito diz: a tenacidade dos germanos é muito forte, até mesmo para coisas ruins; para eles, teimo sia é sinal de fidelidade." Então me dei conta de que o melhor e o pior no caráter do povo alemão resultam do mesmo traço básico, comum e persistente: há alguma relação entre a ferocidade do regime hitlerista e os excessos fáusticos que se encontram na poe sia clássica e na filosofia idealista alemãs. Cinco anos depois, quando a catástrofe já se consumara, quando a extensão das bestialidades e a profundidade da derrocada alemã jaziam expostas, um fato isolado e um pequeno comentário de Pli vier178 em seu livro Stalingrado me reconduziram àquele tre cho de Tácito. Plivier refere-se a uma placa escrita em alemão em uma es trada na Rússia: "Kalatsch, a 3.200 km de Leipzig': E comenta: "Triunfo estranho. Que tenham sido acrescentados 1 .000 km à distância real, eis uma prova contundente da falta de limites na insensatez:' 1 78 Theodor Plivier ( 1 892- 1 955), escritor alemão, relatou os horrores da guerra em Stalingrado, destacando que não havia heróis, somente mortos. Depois da guerra, optou por viver na extinta República De mocrática Alemã. 215
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Posso apostar que, ao escrever essa frase, o poeta não estava pensando nem em Germania, de Tácito, nem na erudita Histó ria da literatura alemã, de Wilhelm Scherer. Ao procurar os motivos da degeneração atual da Alemanha, ele esbarrou na mesma característica do excesso, do desprezo a qualquer limite. Entgrenzung [ ultrapassar limites] designa a atitude básica do homem romântico, independentemente do âmbito espe cífico em que se expressa a sua natureza romântica, seja no fervor religioso, na criação artística, na filosofia, no cotidiano, na moralidade ou na criminalidade. Durante séculos, mesmo antes de o conceito e a palavra existirem, a vida alemã já vi nha carimbada com o selo do romantismo. Isso é particular mente claro para o filólogo latinista, pois, durante a Idade Média, a França sempre transmitiu temas literários à Alema nha. Mas em cada tema francês a Alemanha extravasava os limites originais do modelo, em um sentido ou em outro. A ingênua observação de Plivier e as reflexões de Scherer, coerentes entre si, estabelecem uma vaga relação entre o Exér cito do Terceiro Reich e os germanos de Armínio. De minha parte, sempre procurei saber se há uma conexão plausível en tre os crimes nazistas, para os quais cai bem o termo Unter menschentum [sub-humanidade] cunhado pela LTI, e a antiga vida espiritual da Alemanha. Poderia me tranquilizar com a ideia de que esses horrores resultavam apenas de imitação, eram trazidos de fora, não passavam de uma doença italiana importada, tão devastadora e virulenta quanto aquela que vie ra da França séculos atrás? 179 Conosco tudo era pior e, além disso, com um conteúdo diferente e mais venenoso do que na Itália. Os fascistas rei vindicavam para si a herança do antigo Império Romano, que pretendiam reconstituir. Porém, não afirmavam que os ha bitantes dos territórios a serem reconquistados eram "zoolo1 79 Klemperer refere-se
à
sífilis. 216
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gicamente inferiores" aos descendentes de Rómulo, nem que eles estavam condenados pelas leis da natureza a permanecer rebaixados para sempre, com as trágicas consequências que isso acarreta. Isso o fascismo não ensinou, pelo menos en quanto esteve livre da influência reversa de seu afilhado, o Ter ceiro Reich. Uma obsessão me perseguiu durante anos: será que eu não superestimava o papel do antissemitismo no sistema nazista, já que essa questão me toca pessoalmente? Não, eu não supe restimava. Hoje percebo que o antissemitismo foi o aspecto central do nazismo, um fator decisivo sob qualquer ponto de vista. Foi o sentimento mais obsessivo de Hitler, um peque no-burguês austríaco rancoroso e depravado, que se formou na época de Schõnerer e de Lueger, 1 80 os principais ideólogos dessa corrente. Do início ao fim, foi a ideia fundamental de sua tacanha política. Foi o meio de propaganda mais eficaz e mais forte do partido, a mais ousada e mais popular mate rialização da doutrina racial, a qual, para a massa alemã, era idêntica ao racismo. O que a massa alemã podia saber sobre "perigos do Verniggerung" [ enegrecimento ] ? 1 8 1 O que podia saber sobre a pretensa inferioridade dos povos do leste e do sul? Mas um judeu, bem, esse qualquer um conhecia. Antisse-· mitismo e doutrina racial tornaram-se sinônimos. E o racis mo científico - ou melhor, pseudocientífico - permitia jus tificar o descomedimento, a conquista, a tirania, a crueldade e o genocídio. 1 8º Karl Lueger ( 1 844- 1 9 10), antissemita declarado, líder do Partido So cial-cristão da Áustria e prefeito de Viena de 1 897 a 1 9 1 0. Georg Ritter von Schõnerer 1 842- 1 92 1 , político austríaco cujas ideias racistas e antissemitas, expostas no Linzer Programm ( 1 88 1 ) , exerceram forte influência sobre o Partido Social-cristão de Lueger e sobre o movi mento nacional-socialista de Hitler. 181 Klemperer menciona esses "perigos do enegrecimento" para citar Go bineau, que aparecerá adiante. 217
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Desde que tomei conhecimento do campo de concen tração de Auschwitz e de suas câmaras de gás, desde que li O mito, de Rosenberg, e Os fundamentos, de Chamberlain, 1 82 não tive mais dúvidas sobre o significado central e decisivo do antissemitismo e do racismo para o nazismo. (Precisaremos analisar com cuidado, caso a caso, para discernir de maneira segura se antissemitismo e racismo se confundem, se o dog ma da raça constitui o verdadeiro ponto de partida do antisse mitismo ou se é somente um pretexto, uma roupagem. ) Se fi casse comprovado tratar-se de um veneno especificamente alemão, abrigado na inteligência alemã, então seria inútil ten tar provar a origem estrangeira dessas expressões, hábitos e medidas políticas. Nesse caso, o nacional-socialismo não se ria uma epidemia importada, mas a perversão da própria es sência alemã, uma mórbida evidência daqueles traits éternels. Como manifestação de aversão social baseada em motivos religiosos e econômicos, o antissemitismo apareceu em diver sas épocas e povos, às vezes de forma mais forte, às vezes me nos. Seria injusto atribuí-lo só aos alemães. Mesmo assim, três elementos fazem do antissemitismo do Terceiro Reich algo novo e sui generis. Em primeiro lugar, a virulência com que a epidemia grassa, mais potente que nun ca, justamente numa época em que ela parecia ter sido debe lada, pelo menos em sua forma mais agressiva. Explico-me: antes de 1 933, havia aqui e ali casos isolados de distúrbios an tissemitas, assim como ocorriam esporadicamente casos de cólera e de peste em portos europeus. Da mesma forma como é possível afirmar, ou pelo menos supor, que o mundo civili zado não voltará a conhecer as epidemias que foram erradi cadas das cidades na Idade Média, parecia inimaginável o re182
O mito do século XX, de Alfred Rosenberg, ideólogo do antissemitis mo, e Os fundamentos do século XIX, escrito em alemão pelo inglês Houston Stewart Chamberlain, genro do músico Richard Wagner. 218
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torno da perseguição aos judeus e da usurpação de seus direi tos em moldes medievais. A segunda característica única desse monstruoso anacro nismo é que o antissemitismo não apareceu com o mesmo formato de antes, mas com um formato moderno; não como levante popular, manifestações de fúria ou massacres espon tâneos (embora no início tenha-se tentado mostrá-lo como algo espontâneo) , mas como expressão de uma organização primorosa: hoje, o extermínio de judeus remete-nos às câma ras de gás de Auschwitz. A terceira inovação é a mais importante: o ódio contra o judeu baseia-se na ideia de raça. Ora, desde tempos imemo riais esse ódio era dirigido a pessoas que estavam fora do âm bito da fé e da sociedade cristãs. A conversão e a aceitação dos costumes locais tinham um efeito compensatório e, pelo me nos para as gerações seguintes, apagavam diferenças. Ao situar no sangue a distinção entre judeus e não judeus, a ideia de raça torna impossível qualquer mediação; a separação é eter na, agora legitimada pela vontade divina. Há uma estreita relação entre essas três inovações. Todas remetem ao traço básico de caráter mencionado por Tácito: "Os germanos são tenazes, mesmo para defender uma causa perversa." Ao se apoiar no sangue, o antissemitismo se tor na obstinado e persistente. Tratado de forma pretensamente científica, deixa de ser anacrônico; ao contrário, condiz per feitamente com o pensamento moderno. Logo, usar meios modernos para atingir seus fins é quase um truísmo, e a cruel dade é coerente çom aquela característica básica, a tenacidade desmedida. No romance O novo Danie� escrito em 1 920, Willy Seidel183 apresenta um alemão idealista e, ao lado dele, a figura do te1 83. Willy
Seidel ( 1 876- 1 945), romancista alemão de tendência nacio nalista. 219
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nente Zuckschwerdt, que representa a camada social que nos fez odiar o estrangeiro e foi combatida em vão, internamente, pelo jornal Simplizissimus. Zuckschwerdt não é um incapaz. Tampouco se pode dizer que seja uma pessoa má, muito me nos um sádico. Mas, tendo recebido a incumbência de afogar alguns gatinhos recém-nascidos, enfiados em um saco, percebe que um deles ainda se mexe quando os retira da água. Então apedreja o saco, transformando-o em um mingau vermelho, e grita enfurecido ao bichinho: "Vou lhe mostrar, seu canalha, o que chamo fazer as coisas com Gründlichkeit [com perfeição] !" Seria de esperar que o autor retratasse esse personagem como representante de uma parte degenerada da população e o mantivesse fiel a essas características até o fim, como em Rolland, 1 84 cujos relatos mostram duas Alemanhas e duas Franças. Mas não. No final desse romance de etnologia com parada, o autor sente pena do assassino impiedoso de gati nhos, desculpando-o e inocentando-o, enquanto os ameri canos são julgados de maneira cada vez mais negativa. Qual a razão desses dois pesos, clemência de um lado e rigor do outro? É que entre os alemães ainda existiria pureza racial, enquanto os americanos são uma raça mista. Os habitantes da cidade de Cincinnati, por exemplo, aparecem como "uma população decadente, por causa de uniões consanguíneas, co lorida pela miscigenação indígena e judaica': Em outro trecho, ele cita e aprova um japonês em viagem pelos Estados Unidos que diz: "That Irish-Dutch-Nigger-Jew-mess" [ Essa confusão irlando-holandesa-negro-judaica] . Já aqui, logo após a Primeira Guerra Mundial, muito antes da primeiríssima vez em que alguém ouviu falar de Adolf Hi tler, tratando-se de um autor autenticamente idealista, que pensa e, em diversas oportunidades, se mostrou imparcial, já 184 Romain Rolland ( 1 866- 1 944), escritor francês vencedor do Prêmio Nobel em 1 9 1 5. 220
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aqui é preciso perguntar se a doutrina racial não é só um pre texto e um disfarce para o sentimento antissemita fundamen tal. É impossível deixar de formular essa questão quando se lê sobre a guerra: enquanto a luta continuava empatada e o resul tado permanecia inalterado, depois de Verdun e de Somme, 185 "o homem neutro, com barba pontuda e olhos semitas bri lhantes, saltita em torno dos dois campos em luta e escreve sua crônica; eis o Journalismus der Welt [jornalismo mundial] ': 186 O que contrapõe o nacional-socialismo às demais formas de fascismo é a exacerbada ideia de raça, nele concentrada no antissemitismo. Dessa ideia ele extrai seu veneno. Tudo vem dela, mesmo quando se trata de povos não semitas. O bolche vismo era "bolchevismo judeu", os franceses eram "enegreci dos" e "judaizados': os ingleses eram os descendentes daquela tribo de judeus bíblicos dada como perdida, e assim por diante. A característica fundamental alemã do excesso, de levar às últimas consequências a transposição dos limites, é um traço que forneceu solo fértil ao desenvolvimento da ideia de raça. Mas será a própria ideia um produto alemão? Se buscarmos suas origens teóricas, uma linha direta conduz do alemão Ro senberg ao francês Gobineau, 187 passando pelo inglês Cham berlain, alemão por escolha. 1 85 Referência a duas grandes batalhas na Primeira Guerra Mundial. Em Verdun, entre fevereiro e dezembro de 1 9 1 6, houve cerca de 700 mil baixas entre alemães e franceses. Depois de inúmeras tentativas de romper as linhas defensivas da França, os alemães recuaram e se en trincheiraram em posições mais favoráveis. A batalha do Somme foi travada entre julho e novembro do mesmo ano. Nesse caso, foi uma ofensiva anglo-francesa que causou mais de 1 milhão de baixas em ambos os lados e, tal como ocorreu em Verdun, terminou sem um cla ro vencedor. 1 86 Expressão antissemita contra os jornalistas judeus. 1 87 Joseph Arthur de Gobineau ( 1 8 1 6- 1 882), diplomata, escritor e filósofo francês, um dos mais destacados defensores do racismo no século XIX. Serviu no Brasil e manteve grande amizade com o imperador Pedro II. 221
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O Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, de Gobi neau, publicado em quatro volumes entre 1 853 e 1 855, é o primeiro a ensinar que a raça ariana é superior e a germani dade não miscigenada é a categoria humana mais elevada. Ela estava ameaçada pelo sangue semita, infiltrado por toda par te, incomparavelmente pior, a ponto de não poder mais ser chamado de humano. Aqui se encontra tudo o que o Terceiro Reich precisou para justificar sua filosofia e sua política. Os desenvolvimentos posteriores e o ensinamento difundido de pois, na época que antecedeu o nazismo, remetem a Gobi neau. Ele é ou parece ser - prefiro manter isso, por ora, em aberto - o autor dessa doutrina racial sanguinária. No último período do Reich de Hitler houve uma tentativa científica de encontrar antecessores alemães para o francês. O Instituto do Reich para a História da Nova Alemanha publi cou um estudo amplo e denso: A ideia de raça no romantismo alemão e suas origens no século XVIII. Hermann Blome, seu or ganizador - tolo porém honesto -, conseguiu provar exata mente o contrário do que pretendia. Queria mostrar que Kant, o século XVIII e os alemães românticos eram precursores e, portanto, cúmplices dos franceses em história natural. Partiu de uma hipótese errada: qualquer um que tivesse estudado a história natural da humanidade, a classificação das raças e seus traços característicos era um precursor de Gobineau. Mas a ideia original de Gobineau não foi dividir a humanidade em raças, mas sim relegar o conceito geral de humanidade a se gundo plano em benefício das raças, as quais passaram a ser autônomas. No interior da raça branca ele enxergou uma raça senhorial germânica, à qual contrapôs uma raça de parasitas semitas. Será que Gobineau teve precursores nesse aspecto? Blome afirma que Buffon, o "naturalista autêntico", e Kant, que funda sua filosofia em "bases naturalistas': usaram o con ceito de raça. Na sequência, outros estudiosos anteriores a Gobineau teriam dado continuidade a esses trabalhos e rea222
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lizado diversas verificações no domínio da pesquisa racial. Não faltaram os que puseram os brancos acima das pessoas de outras cores. Logo no início do livro e ao longo de todo o texto, com pequenas variações, o autor lamenta que o ideal humanista predominante tenha impedido que a teoria das raças fizesse progressos decisiv s (decisivos, naturalmente, no sentido do nazismo! ) durante todo o século XVIII e até meados do sécu lo XIX. Até onde poderia ter chegado Herder - muito sen sível à diversidade dos povos e dotado de uma forte cons ciência germânica, a ponto de a literatura nazista quase tê-lo transformado em um membro do partido -, se "sua visão idealista deformada não o fizesse realçar reiteradamente a unidade do gênero humano acima de toda e qualquer diver sidade"? Ah, essa malfadada 1 1 6ª carta "pela promoção do hu manismo': com "princípios de uma história natural da huma nidade" ! Herder escreveu: "É preciso ser imparcial como o próprio gênio da humanidade; não se deve privilegiar qual quer estirpe, qualquer povo da Terra. [ ... ] O naturalista não pressupõe uma hierarquia entre as criaturas que estuda; todas lhe são dignas, ele quer bem a todas, por igual. O mesmo vale para quem estuda a história natural da humanidade." De que adianta constatar em Alexander von Humboldt188 uma "preferência pela história natural" se, por outro lado, se diz que "a concepção idealista da humanidade, típica de sua época, o impediu de tirar conclusões de ordem racial"? O autor nazista falhou em remeter a doutrina racial do Terceiro Reich a pensadores alemães. Comprovou-se mais uma vez que antes de Gobineau não existiu na Alemanha um antissemitismo baseado no sangue. No estudo sobre ''As ori1 88
Friedrich Heinrich Alexander, Barão de Humboldt ( 1 769- 1 859), no tável naturalista e explorador alemão, com grande influência sobre a ciência de sua época. Sua viagem pela América do Sul, no século XIX, foi um marco no conhecimento do continente. 223
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gens do antissemitismo no pensamento alemão': publicado no Aufbau ( 1 946, volume 2 ) , Arnold Bauer afirma que os Bur schenschaften [ grêmios estudantis] , 189 que pertenciam à ten dência extremada do romantismo alemão, "tinham por prin cípio não excluir os j udeus de seus quadros". Ernst Moritz Arndt190 só aceitava cristãos como membros dos grêmios, mas considerava o judeu batizado como "cristão e cidadão com plenos direitos': Jahn, 191 "patrono da ginástica': considerado excessivamente teutônico, nem sequer colocava o batismo co mo condição necessária para pertencer aos Burschenschaften. E os próprios Burschenschaften, quando da fundação da All gemeine deutsche Burschenschaften [Agremiação Geral dos Es tudantes Alemães ] , recusaram a condição do batismo. Se gundo Bauer - aqui ele compete com os estudantes nazistas quando escrevem suas teses de doutoramento -, isso resul tou do "legado intelectual dos humanistas vocacionados para a tolerância, como Lessing, e do universalismo de Kant': Mantenho a opinião que formei durante os anos terríveis: a delirante doutrina racial inventada para privilegiar o germa nismo e lhe atribuir o monopólio da humanidade, a doutrina que em última instância representou uma autorização para caçar pessoas e praticar os crimes mais hediondos contra a humanidade, tem raízes no romantismo alemão. Por isso este capítulo faz parte da minha LTI, apesar de só recentemente eu ter descoberto Biorne e o estudo de Bauer. Dito de outra for ma, o autor francês foi um simpatizante, um adepto, um cor religionário, consciente ou não, do romantismo alemão. 189 Referência a grêmios estudantis de caráter patriótico e esportivo que se desenvolveram na época das guerras antinapoleónicas. 1 9º Escritor alemão ( 1 769- 1 860) que defendia a ideia de um Estado na cional alemão sob o domínio da Prússia. 1 9 1 Friedrich Ludwig Jahn ( 1 778- 1 852), pedagogo e político alemão. Ini ciou as "sociedades de ginástica", defendendo que elas fossem incluí das na instrução dos jovens. 224
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Em meus primeiros trabalhos, tive contato frequente com a obra de Gobineau, um personagem familiar para mim. Acredito na avaliação de seus colegas de profissão: como cien tista natural, ele estava errado. Não é difícil acreditar nisso, pois Gobineau não tinha espírito de naturalista. Estudou his tória natural por um impulso primário, não por amor às ciên cias. Nele, a história natural sempre esteve a serviço de uma ideia fixa e egoísta, sempre existiu para apoiar uma obsessão. O papel do conde Arthur Gobineau é mais importante na história da literatura francesa do que nas ciências naturais. Mas é sintomático que os alemães tenham reconhecido esse papel antes dos franceses. Em todas as fases da história fran cesa que viveu - ele nasceu em 1 8 1 6 e morreu em 1 882 -, Gobineau sentiu-se espoliado do que acreditava ser seu di reito senhorial, sua nobreza herdada, suas potencialidades individuais; culpava a dominação do dinheiro, da burguesia, da massa ascendente, que ele odiava, a massa que aspirava à igualdade de direitos, ao domínio do que chamava democra cia, na qual ele via a decadência da humanidade. Estava segu ro de que era descendente direto da nobreza feudal francesa e do ancestral franco, sem qualquer miscigenação. A França vivia uma disputa antiga, cheia de consequências, entre duas teorias políticas. A nobreza feudal afirmava: somos os descendentes dos conquistadores francos e temos direitos senhoriais sobre a população galo-romana vencida; mas não somos súditos do nosso rei, já que pelo direito dos francos o rei é somente primus inter pares e não possui nenhum domí nio sobre a nobreza, que tem direitos iguais aos seus. De ou tro lado, os juristas da corte consideravam que o rei absoluto era herdeiro dos césares e a população era sucessora do anti go povo galo-romano. Com a Revolução, a França retornou à antiga forma romana de governo, a República, desembaraçan do-se do ranço opressor dos antigos imperadores, sem deixar lugar para os senhores feudais da linhagem dos francos. 225
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Gobineau era um poeta dotado. Começou na escola do romantismo francês, caracterizada pela tendência medieval e a oposição à banalidade do ambiente burguês. Para ele, tanto fazia ser um aristocrata germano ou franco. Iniciou muito cedo os estudos de cultura alemã e oriental. Nos domínios linguístico e literário, o romantismo alemão vinculou a ger manidade a um longínquo passado indiano. Algumas famílias étnicas europeias teriam uma característica ariana comum. (Scherer, com quem convivi na Judenhaus, citava as obras Lin guagem e sabedoria dos indianos, publicada por Friedrich Schlegel em 1 808, e Sobre o sistema de conjugação do sdnscrito comparado com o grego, o latim, o persa e as linguas germd nicas, publicada por Bopp192 em 1 8 1 6 . ) A construção do ho mem ariano baseia-se na filologia e não na história natural. Gobineau foi decisivamente influenciado - ou melhor, desencaminhado - pelo romantismo alemão. Esse movimen to aspira à falta de limites, ultrapassa e elimina fronteiras, joga com símbolos e também libera a especulação nas ciências na turais. Tudo isso fascina o escritor francês. Ele insiste em sua germanidade eletiva justamente porque ela resulta de uma es colha; o romantismo o inspira e lhe serve de legitimação, por assim dizer, para pôr a especulação a serviço dos fatos cientí ficos ou para interpretá-los filosoficamente, de modo a obter deles o que deseja ver confirmado: a ênfase no germanismo. Gobineau chega a esse sentimento a partir de questões de po lítica interna, ao passo que os românticos alemães chegam como decorrência da agitação napoleônica. Alguns dizem que o ideal humanitário preservou os ro mânticos das consequências lógicas da ideia de um povo ger mânico eleito (ou, como preferem os nazistas, os impediu de desenvolver essa ideia) . Mas, conduzida até o nacionalismo 192
Franz Bopp ( 1 79 1 - 1 829), linguista e conhecedor de sânscrito, fun dador da linguística comparada. 226
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e o chauvinismo, a consciência nacional destrói esse escudo protetor. Perde-se o sentimento de coesão da humanidade: o povo alemão possui tudo o que tem valor real. Quanto aos adversários, os alemães dizem: "Juízo Final: matai-os / O tri bunal do mundo não indagará por quê." 193 Para os poetas alemães das guerras de independência, o inimigo a ser morto é o francês; não faltam motivos para fa lar mal dele. Pode-se considerar sua latinidade como inferior à verdadeira germanidade, mas, mesmo assim, é inadmissível considerá-lo como de outra raça. No momento em que o ro mantismo alemão passa da maior abertura de espírito para a maior estreiteza, ele recusa tudo que é externo e glorifica tudo que é alemão, mas ainda sem qualquer sentimento de supre macia racial. Para Jahn e Arndt o judeu alemão era alemão e, como tal, tinha acesso franqueado às associações estudantis patrióticas e germanófilas. Trinta anos mais tarde, porém, o nacional-socialista Blome cita triunfalmente o mesmo Arndt, que antes fora partidário dos humanistas, e lamenta em seus Discursos e comentários, publicados em 1 848, antes do surgimento do Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas: "Judeus e os demais de sua espécie, batizados e não batizados, trabalham incansavelmen te, em colaboração com a esquerda mais radical, para desagre gar e dissolver tudo o que para nós, alemães, parece mais hu mano e mais sagrado, para destruir e dissolver o amor à pátria e o temor a Deus ... Fiquem atentos e observem ao redor wohin diese giftige Judenhumanitiit mit uns fahren würde [onde o ve nenoso humanismo 194 judeu nos levaria] se não tivéssemos nada de alemão para lhe contrapor... "
1 93 Trecho de Germania an ihre Kinder [ Germânia a seus filhos] , de Hein rich von Kleist ( 1 777- 1 8 1 1 ) , publicado em 1 809. 1 94 Humanitiit refere-se ao sentimento de boa vontade do homem em re lação aos seus semelhantes, enquanto Menschheit designa o conjunto dos seres humanos. Por isso preferimos humanismo nesta tradução. 227
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Não se tratava mais de libertar-se de um inimigo externo, mas de lutar por questões de política interna e de ordem so cial. Os inimigos da germanidade pura foram encontrados: os judeus, batizados ou não. Cada um pode escolher quanto quer ver de antissemitis mo racial nesse antissemitismo que perdura mesmo depois do batismo. Mas é certo que o ideal humanitário foi abandonado: ao ideal da germanidade se contrapõe "o venenoso humanis mo judeu". (Na LTI, mais frequentemente em Rosenberg, mas também em Hitler e Goebbels, a palavra humanismo aparece com aspas irônicas, o mais das vezes acompanhada de adjeti vos cheios de desdém. ) Para tranquilizar minha consciência d e filólogo, durante o período nazista procurei estabelecer a conexão que vai de Go bineau até o romantismo alemão, que hoje reforcei um pou co. Continuo acreditando que há uma forte ligação entre o nazismo e o romantismo alemão. Acho que aquele surgiria deste ainda que Gobineau, alemão por escolha, não tivesse existido. Até porque a veneração dele pelos germanos atrai mais a atenção de escandinavos e ingleses do que de alemães. Pois tudo o que interessa ao nazismo já está contido, em ger me, no romantismo: o destronamento da razão, a animaliza ção do ser humano, a exaltação da ideia de poder, do preda dor, da besta loura ... Não será esta uma acusação terrível contra uma corrente de pensamento que transmitiu tantos valores humanos à lite ratura (no sentido mais amplo do termo) e à arte alemãs? A acusação permanece, apesar de todos os valores criados pelo romantismo. "Quanto mais alto o nosso voo, maior a nossa queda." A característica essencial do movimento cultu ral mais tipicamente alemão é a ausência de limites.
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ALEG RE 195 WELTANSCHAUUNG (POR LEITURA CASUAL)
Nas Judenhiiuser, livros são um bem de grande valor, pois fo mos privados da maior parte deles e não há como adquirir novos. Também não podemos frequentar bibliotecas. Minha mulher, ariana, está inscrita em uma biblioteca, em seu pró prio nome, mas teremos problemas se a Gestapo encontrar em nossa casa um dos livros dela. O menos grave que pode acontecer é que tudo termine em pancadaria. Algumas vezes, só assim consegui escapar do pior. 196 Podemos ter conosco apenas livros judaicos. O conceito é mal definido, e a Gestapo parou de enviar especialistas às nossas casas desde que todas as bibliotecas particulares valiosas foram sichergestellt [ coloca das a salvo] , conforme diz a LTI, pois os encarregados do par tido não roubam nem saqueiam. Nosso apego aos poucos livros que restaram não é muito forte. Alguns deles foram "herdados". Isso significa que fica ram sem dono quando o dono original desapareceu de repen te ao ser "transportado" para Theresienstadt ou Auschwitz. Para o novo dono, esse desaparecimento é um sinal do que poderá lhe acontecer, pois está sujeito à mesma tragédia. So fre todos os dias, em especial à noite, dominado pelo pavor. Assim, os livros vão passando de mão em mão sem que seja necessário fazermos sermões, uns aos outros, sobre a preca riedade dos bens terrenos. Leio tudo que me cai nas mãos. Meu interesse principal é a LTI, mas é estranho perceber quantos livros afastados do 1 95 O termo exato para traduzir Sonnig, que está no título original, seria "solar''. Mas o termo que melhor se ajusta aqui é "alegre". 1 96 Klemperer refere-se à possibilidade de ser enviado a um campo de concentração. 229
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meu objeto, na aparência ou de fato, acabam contribuindo para conhecê-lo melhor. Mais estranho, neste novo contexto, é descobrir coisas novas em obras que eu supunha conhecer profundamente. No verão de 1 944 tive em mãos, de repente, o romance Weg ins Freie [ Caminho para a liberdade] , de Ar thur Schnitzler, 1 97 que reli sem esperanças de encontrar algo que pudesse me interessar. Pois há muito tempo, por volta de 1 9 1 1 , eu escrevera um estudo extenso sobre Schnitzler, e nos últimos anos eu lera, debatera e quebrara a cabeça com o pro blema do sionismo. Lembrava-me bem do conteúdo do livro. Mesmo assim, encontrei um trecho minúsculo, aparentemen te secundário, quase uma anotação à margem, que ficou em minha memória. Um dos personagens principais se irrita com a futilidade dos comentários a respeito do termo Weltanschauung [visão de mundo] , muito em voga naquela época, início do século. Para ele, era lógico que Weltanschauung representasse "o de sejo e a capacidade de enxergar o mundo como ele realmente é, ou seja, contemplar o mundo sem se deixar influenciar por preconceitos, sem a necessidade de retirar de uma experiên cia, rapidamente, uma nova lei ou de inserir essa experiência em alguma lei que exista ... Mas, para as pessoas, Weltanschau ung é uma espécie de Gesinnungstüchtigkeit [ forma superior de apego a convicções] - um apego infinito a convicções, por assim dizer". No capítulo seguinte, pela forma como Heinrich prossegue a reflexão, percebemos como a observação anterior está ligada ao verdadeiro tema desse romance de judeus: "Creia-me, Geor ge, há momentos em que sinto inveja das pessoas que possuem a assim chamada Weltanschauung... Cá entre nós, dependendo do nosso momento psicológico, somos tudo de uma só vez, culpados e inocentes, velhacos e heróis, idiotas e sábios." 1 97 Arthur Schnitzler ( 1 862- 1 93 1 ) , escritor austríaco. 230
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A vontade de interpretar o termo anschauen [ contemplar] sem mistificações, conseguindo ver com clareza o que existe, percebendo como as coisas realmente são, a indignação e a inveja dirigidas àqueles para quem a Weltanschauung é um dogma consolidado, um guia para os momentos ou situações em que o pensamento, o senso crítico e a própria consciência começam a vacilar - tudo isso, segundo Schnitzler, represen ta o espírito judaico e também, sem dúvida, a mentalidade de muitos vienenses, parisienses e da intelligensia europeia em geral na virada do século. O uso abusivo e exagerado, "sem sentido lógico", do termo Weltanschauung pode ser explicado como parte da incipiente oposição à Dekadenz [ decadência] , ao impressionismo, ao ceticismo e à desmoralização da ideia de um eu contínuo e, portanto, responsável. O que me impressionou na leitura desses trechos não foi tanto tentar entender se tudo era um problema de decadência judaica ou geral. Fiquei intrigado ao perceber que ao ler o ro mance pela primeira vez, quando ainda tratava da realidade atual de sua época, quase não prestei atenção ao surgimento do novo termo e ao entusiasmo que ele despertou. A resposta veio rápido: Weltanschauung ainda se restringia ao grupo dos neorromânticos, não penetrara na linguagem corrente. Além disso, pergunto-me como esse termo esotérico da virada do século pôde transformar-se em uma palavra tão importante para a LTI, a ponto de qualquer membro do par tido, qualquer pequeno-burguês, qualquer comerciante in culto usá-la a todo momento para discorrer sobre sua visão de mundo e o comportamento que dela decorre. Além disso, eu me perguntava em que consistiria essa capacidade nazista de se apegar infinitamente a convicções. Devia ser algo fácil de compreender, adequado a todos, útil sob o ponto de vista organizacional, já que certa vez vi nos estatutos da Deutsche Arbeits Front [ Frente Alemã de Trabalho] , uma "organização para todos os operários': como se evitava o termo "pagamen231
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tos de seguro", substituindo-o pela expressão Beitriigen zu ei ner weltanschaulichen Gemeinschaft [ contribuições para uma comunidade de natureza ideológica] . O que levou a LTI a empregar essa palavra não foi o fato de ter percebido que poderia germanizar o termo "filosofia'� de origem estrangeira, pois nem sempre ela fez questão de germanizar palavras. Aqui ela encontrou a maneira mais im portante de expressar sua oposição ao ato de filosofar. Pois filosofar é uma atividade da razão, do raciocínio lógico, que o nazismo considera o pior inimigo. Mas a oposição ao pen samento claro, de que a LTI tem necessidade, não é "enxer gar corretamente'� na forma como Schnitzler define o verbo schauen [ver] , pois esse "ver" também seria um empecilho para a retórica nazista, sempre empenhada em enganar, ludi briar e anestesiar. Ao contrário, a LTI encontra na expressão Weltanschauung justamente a visão interior intimista do subs tantivo Schauen, e em Schau aparece a visão do místico, vol tada para a intuição e o êxtase religioso do Sehen [enxergar] , que é a visão do redentor, do qual emana o princípio vital. Este é o anseio mais profundo de Weltanschauung, tal como aparece na forma original dos neorromânticos, que foi adota da depois pela LTI. Sempre retorno ao mesmo verso e à mes ma expressão: "Em um mesmo torrão de terra tanto brotam flores quanto urtigas .. :' - a raiz alemã do nazismo se chama romantismo. E mais: antes de se amesquinhar em romantismo teutsch [ teutônico] , o romantismo deutsch [ alemão] mantinha íntima relação com o estrangeiro. Se, de um lado, o nazismo valoriza o pensamento nacionalista do romantismo teutônico, de ou tro, assim como o romantismo alemão original, valoriza tam bém tudo o que pode aproveitar do estrangeiro. Transcorridas algumas semanas após a leitura de Schnitz ler, consegui finalmente pegar os diários de Goebbels: Vom Kaiserhof zur Reichskanzelei [ Da corte real à chancelaria do 232
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Reich ] . (Em 1 944 a escassez de livros já atingia também os arianos; mal abastecidas e defasadas, as bibliotecas só acei tavam novos associados por solicitação expressa e recomen dação especial - minha mulher estava inscrita em três dife rentes bibliotecas e sempre carregava consigo minha lista de leituras. ) Essas "páginas de diários" relatam triunfalmente a propaganda bem-sucedida e oferecem propaganda nova. Em 27 de fevereiro de 1 933 Goebbels anotou: ''A grande ação de propaganda prevista para o dia do despertar da nação está de finida nos mínimos detalhes. Será uma Schau [ parada] es plêndida em toda a Alemanha:' Aqui se usa a palavra Schau sem qualquer conotação de sentimentos íntimos ou de mis ticismo, mas no sentido assimilado do show inglês, que signi fica exibição, Schaugepriinge [ espetáculo faustoso ] , que aqui recebe influência do espetáculo circence, o Barnumshow [ car naval] americano. O verbo schauen [contemplar] , do qual falamos aqui, tem tudo e ao mesmo tempo nada a ver com o richtig sehen [ en xergar direito ] no sentido de Schnitzler. Trata-se, nesse caso, de um olho que está sendo manipulado, mecanizado e ofus cado; está cego, não consegue discernir mais nada. Romantis mo e mercado publicitário, Novalis e Barnum, Alemanha e América: a LTI uniu Schau e Weltanschauung de maneira in dissolúvel, assim como mística e pompa se uniram no culto católico. Se agora eu me pergunto com que se parece essa "comuni dade de Weltanschauung" que a Frente Alemã de Trabalho or ganiza, vejo que seu aspecto dominante, mais uma vez, é uma mistura de atributos alemães e americanos. Da mesma forma que fui cativado pelo trecho da Welt anschauung de Schnitzler, um ano antes anotei no diário al gumas frases do livro Memoiren einer Sozialistin [ Memórias de uma socialista] , de Lily Braun, relacionadas ao meu tema. (Esse livro "herdado" ainda guardava de maneira cruel o chei233
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ro da câmara de gás, tal como a imaginamos: "Morto por in suficiência cardíaca em Auschwitz': estava escrito no atestado de óbito do doador involuntário. ) Eis as frases: "Em Münster, Alix teve uma discussão acalorada sobre religião com um pa dre católico: a ideia do cristianismo? A Igreja Católica não tem nada a ver com ela! E é bem isso o que amo e admiro nessa ideia, pois somos pagãos, adoradores do Sol. . . Carlos Magno e seus missionários perceberam isso. Sabiam o que é ter sangue saxão correndo nas veias. Por isso construíram templos para muitos santos nos lugares dos santuários de Wotan, Donar, Baldur e Freya. Por isso, em vez de entroni zarem o Crucificado, elegeram a mãe de Deus, que simboliza a vida criadora. Por isso os seguidores do "homem que não tem onde repousar a cabeça" 198 enfeitaram com ouro e pedras preciosas as roupas, os altares e as igrejas e passaram a usar arte nos cultos. Do ponto de vista de Cristo, os anabatistas tinham feito bem em destruir as imagens dos santos, mas a potência vital de seus Volksgenossen [compatriotas] fora injus ta com eles:' A ideia da incompatibilidade entre Cristo e o espírito eu ropeu, a afirmação de que o germanismo dominou o catoli cismo, a insistência na afirmação da vida, no culto ao Sol e, para coroar tudo, na potência vital do sangue saxão - tudo isso podia constar do Mito, de Rosenberg. O fato de que Lily Braun não era nazista, de maneira nenhuma, nem hostil ao mundo intelectual, tampouco aos judeus, oferece ao nazismo uma base mais sólida do que o fetiche das suásticas como sím bolo germânico, do que a veneração à roda solar e a perma nente ênfase em um germanismo radiante. Sonnig [solar] era um termo muito usado nos necrológios dos soldados caídos no front. 1 99 Eu estava convencido de que ele tinha origem no 1 98 Mateus, 8:20. Lucas, 9:58. 1 99 Ver o capítulo 1 9. 234
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antigo culto germânico, e vinha da antevisão de um blonder Heiland [salvador louro ] . Certo dia, porém, encontrei n a fábrica uma operária de bom coração, que durante o intervalo do café lia atentamen te uma brochura do correio militar. A meu pedido, empres tou-me o exemplar. Tratava-se de um libreto da coleção pue ril Soldaten-Kameraden [ camaradas-soldados] , publicada por Franz Eher, editor de Hitler, distribuída em abundância e que apresentava uma série de pequenas histórias sob o título Der Gurkenbaum [A árvore de pepinos] . Todas me decepcio naram. Em uma publicação da editora Eher, eu esperava en contrar o veneno nazista em dose concentrada ( em outras obras, esse editor já destilara muito veneno no Exército) . Mas Wilhelm Pleyer200 - que conheci mais tarde como romancis ta alemão dos Sudetos, sem que isso alterasse minha impres são sobre ele, para o bem ou para o mal - era apenas um dos mais insignificantes Pgs,201 como escritor e como homem. Der Gurkenbaum consistia de pretensas histórias de hu mor, muito banais e inócuas. Eu já estava pondo a leitura de lado, pois não tinha utilidade para minha pesquisa, quando me deparei com uma história adocicada sobre a felicidade. Tratava-se de uma menininha muito vivaz, lindinha, loura. O texto vinha recheado de cabelo louro, Sol e pessoa solar, sonnig. A pequena tinha uma relação muito especial com os raios de Sol, e seu nome era Wiwiputzi. Como teria recebido esse nome tão estranho? O autor também perguntava isso. Se os três is eram sugestivos de um nome muito luminoso, ou se o início do nome ( vif) se referia ao termo vivaz, em francês, ou a qualquer coisa poética e afirmativa para a vida, de qualquer forma ele respondia a si mesmo: "Seria o termo 200 Escritor alemão, redator de muitas revistas, entre as quais Camaradas soldados, dirigente do Partido Nazista na antiga Tchecoslováquia. 201 Membro do Partido Nazista sem nenhuma importância. 235
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ersonnen [ ensolarar] ? Não, e sim ersonnt [ imaginado, supos to] , 2º 2 com uma conotação espontânea." Ao devolver o livro à colega, perguntei qual história lhe agradara mais. Ela respondeu que todas eram bonitas, mas es pecialmente a de Wiwiputzi. "Se ao menos eu conseguisse descobrir onde o autor en controu o jogo de palavras ensolarado, solar, radiante .. :' A per gunta me saiu assim espontaneamente e logo me arrependi de tê-la formulado. Como uma mulher sem instrução poderia responder? Talvez eu tivesse provocado uma situação embara çosa. Para meu grande espanto, a resposta veio de pronto, com a maior naturalidade: "Ora, ele pensou no Sonny Boy!" 2º3 Eu havia encontrado a verdadeira vox populi. É óbvio que não podia fazer uma enquete, mas naquele momento tive a noção intuitiva, que mantenho ainda hoje, de que o filme Sonny Boy, tanto quanto o culto ao germanismo, contribuiu para a epidemia dos adjetivos ensolarado e radiante. Quem sabe que sonny significa Sohnchen [ filhinho] e não tem nada a ver com sonnig [solar] ?
2º2 Jogo de palavras intraduzível: Sonne [ Sol] e ersonnen [ imaginar, su por ] , cujo particípio passado é ersonnt. 203 Sonny Boy é o titulo de dois filmes americanos realizados em 1 9 1 6 e 1 929. Passou a significar, na Alemanha, um jovem simpático e char moso. Por isso optamos por alegre, em vez de ensolarado, no titulo deste capitulo. 236
CAPITU LO 2 3
QUAN DO DUAS PESSOAS FAZEM O M ESM0 204
Lembro-me perfeitamente do momento e da palavra que am pliaram - ou eu deveria dizer reduziram? - o meu interesse da literatura para a linguística. Repentinamente, o contexto li terário de um texto perde importância e nossa atenção se fixa em uma palavra. Pois é na palavra isolada que se vê a forma de pensar de uma época, o pensamento geral no qual aquele indivíduo se insere, deixando-se influenciar ou mesmo guiar. Mas, dependendo do contexto, a palavra e a expressão, per se, podem ter sentidos opostos. Por isso precisamos retornar ao domínio literário, ao texto como um todo. A palavra isolada e o texto se esclarecem reciprocamente ... Interessei-me pela linguística quando Karl Vossler de monstrou indignação contra a palavra Menschenmaterial [material humano ] . Material, dizia, é o que se entende por pele, ossos e vísceras de um corpo animal; falar de "material humano" significa limitar-se à matéria e desprezar o espírito, justamente o aspecto humano do ser humano. Na época, não concordei inteiramente com meu professor. Isso ocorreu dois anos antes da Primeira Guerra Mundial, quando eu ainda não havia sido confrontado com os horrores da guerra. Não acreditava que fosse possível uma conflagração no coração da Europa, o que me levava a supor que o servi ço militar era apenas uma atividade físico-esportiva bastante inocente. Quando um oficial ou um médico do Exército se re feriam à boa ou à má qualidade do material humano, parecia me o mesmo que um médico civil dizer que ia atender um "caso" antes do almoço ou "dar conta" de uma apendicite. 204 Citação de uma peça de teatro, Les Freres, de Terence. 237
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Não se estava procurando uma aproximação com a alma do recruta Meier, nem com os doentes Müller ou Schulze. Por ra zões profissionais, os esforços se concentravam nos aspectos estritamente físicos da natureza humana. Passada a guerra, percebi melhor a desconfortável semelhança entre "material humano" e "carne de canhão", ou melhor, o mesmo cinismo, consciente aqui, inconsciente lá. Mas ainda não estou conven cido da brutalidade dessa expressão. Por que alguém, mesmo sendo um idealista autêntico, não poderia se referir ao valor material de um indivíduo ou de um grupo no contexto de uma profissão ou de um esporte específico? De maneira aná loga, também não me parece particularmente desumano que na linguagem da administração penitenciária os detentos se jam identificados por números, em vez de por seus próprios nomes. Não se lhes está negando com isso o direito de serem humanos. Estão sendo tratados como objetos de um serviço administrativo, designados por números em uma lista. Por que é diferente agora? Por que vem à tona uma bru talidade inequívoca quando uma vigilante do campo de con centração de Belsen declara diante do tribunal de guerra que em tal dia teve de lidar com sechzehn "Stück" Gefangenen [de zesseis elementos, dezesseis peças] , referindo-se aos prisio neiros? Nos dois casos anteriores abstraía-se o ser humano por razões profissionais. Quando, em contrapartida, se diz "elemento" ou "peça", o que se tem em mente é fazer da pes soa uma coisa. Essa maneira de tratar a pessoa como coisa também aparece, na linguagem oficial, na expressão Kadaver verwertung [ reaproveitamento de cadáveres ] , especialmente quando usada para referir-se a cadáveres humanos: os mor tos dos campos de concentração são transformados em adu bo pelo mesmo processo que se aplica a carcaças de animais. O desejo de reificar, ditado por um ódio visceral, trans parece na expressão estereotipada que os relatórios militares 238
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usam, sobretudo em 1 944, e que já esconde o desespero da in cipiente impotência. Dizia-se de modo cada vez mais insis tente que "gangues armadas" não deviam contar com perdão. Nas referências às ações da Resistência Francesa, que se forta lece, pode-se ler regularmente que pessoas foram "trucidadas'� O verbo niedermachen [trucidar] denota o ódio dos nazistas ao inimigo, o qual, até aqui, era concebido como uma pessoa. Logo em seguida lê-se diariamente que tantos foram liquidiert [liquidados] . "Liquidar" é um termo que provém da lingua gem de negócios; sendo uma palavra emprestada, é um pou co mais fria e impessoal do que a sua correspondente alemã. Um médico liquidiert [ emite] uma fatura pelo valor dos ser viços prestados, um comerciante liquidiert [ fecha] sua firma. No primeiro caso trata-se de quantificar o valor, em dinhei ro, dos serviços prestados; no segundo, é o fim do negócio. Quando se trata de liquidar pessoas, elas são eliminadas, ou seja, seu fim é igual ao dos bens materiais. Já na linguagem específica dos campos de concentração, quando um grupo de prisioneiros era fuzilado ou conduzido às câmaras de gás, constava que eine Gruppe wurde der Endlasung zugeführt [um grupo foi conduzido à solução final] . Deve-se considerar essa reificação da personalidade como uma característica especial da LTI? Acho que não. Pois a LTI se aplicava somente a pessoas às quais o nacional-socialismo negava que pertencessem ao gênero humano, excluindo-as como raça inferior, raça inimiga ou raça de Untermenschen [subumanos] - da verdadeira humanidade, formada pelos germanos e as pessoas com sangue nórdico. No interior desse círculo de humanos, reconhecidos como tal, a LTI atribui um valor decisivo à personalidade. Darei dois exemplos. No âmbito militar, não se fala mais de Leu te [ gente] que compõe uma companhia, mas somente de Miinner [homens] ; cada tenente informa: "Ordenei a meus homens ..." Uma vez 239
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o Reich publicou um necrológio emotivo e patético que um professor universitário idoso dedicara a seus três estudantes prediletos, caídos como oficiais. O texto continha cartas de campanha dos três, e o professor não se cansava de elogiar o espírito alemão de fidelidade masculina, bem como o heroís mo demonstrado pelos oficiais e por seus Mannen. 205 Ele se extasiava com essa palavra de matiz poético, com um tom de alemão arcaico. As cartas dos alunos, entretanto, referiam-se sempre a " unsere Miinner" [nossos homens] , empregando a forma atual com toda a naturalidade - os jovens já não ti nham a sensação de que diziam algo novo ou poético por meio dessa formulação. Em geral, a LTI adotava uma postura ambígua ao se con frontar com o alemão arcaico. Por um lado, não lhe desagra dava a fidelidade à tradição, tampouco a tendência romântica à Idade Média alemã, nem a ligação com a essência de um ar quétipo germânico ainda não falsificado pelos romanos. Por outro, queria ser atual e progressista. No começo, Hitler com batera os nacionalistas alemães do Deutschvolkische Freiheits partei [ Partido da Liberdade da Raça Alemã] , já que os con siderava concorrentes desleais, que gostavam de usar uma linguagem decididamente arcaica. Por exemplo, os nomes ale mães para os meses, divulgados durante algum tempo, não conseguiram se firmar e nunca foram empregados oficial mente. Por outro lado, algumas runas e nomes germânicos obtiveram prestígio, sendo aprovados no cotidiano ... Mais decisivo do que falar de Miinner foi o empenho em valorizar a personalidade por meio de uma reformulação ge ral no estilo burocrático, que degenerou em um ridículo não intencional. Os judeus não possuíam cartões para adquirir vestimentas nem vales para alimentação, não podiam com prar nada novo, só recebiam roupas usadas das Kleider und 20 5 Plural antigo para Miinner [ homens ] . 240
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Wirtschaftskammern [Câmaras de Comércio de Roupas e de Negócios] . No início era relativamente simples obter alguma peça dessas Câmaras de Roupas. Depois, somente por meio de requerimentos que transitavam pelos Rechtskonsulenten, os consultores jurídicos da congregação israelita, passando pelo departamento de judeus da Gestapo até chegar ao Polizeiprasi dium, a chefia da Polícia. Uma vez, recebi um cartão impresso onde constava: "Coloquei à sua disposição uma calça de tra balho usada. Venha retirá-la ... etc. Assinado: Chefe da Polícia." O princípio subjacente era o seguinte: as questões não de vem ser decididas por um funcionário impessoal, mas por um chefe responsável, um Führer. Assim, a burocracia adotou a forma pessoal do "eu" e era dirigida por um deus pessoal: "Eu, o diretor financeiro em pessoa," - e não mais a "Coletoria dos Impostos X" - "intimo Friedrich Schulze a pagar uma multa de mora de três marcos e cinquenta pfennig." "Eu, o Polizeiprasident, expedi uma multa de três marcos." E, final mente: "Eu, o Chefe da Polícia, pessoalmente, destinei uma calça usada ao judeu Klemperer." Tudo isso em majorem glo riam, dentro do Führerprinzip [princípio da liderança e da personalidade] . Não. O nacional-socialismo não quis despersonalizar nem reificar os seres humanos que reconhecia como germanos. Mas um Führer, um comandante, necessita de comandados em cuja obediência possa confiar incondicionalmente. Atente se para quantas vezes a palavra blindlings [cegamente] aparece nas declarações de fidelidade, nos telegramas e nos anúncios de homenagens e de participação nos doze anos do nacional socialismo. Blindling, uma das palavras-chave da LTI, indica a condição ideal da mentalidade nazista em relação ao Führer e ao seu respectivo Unterführer [ comandado ] . Não foi menos empregada do que fanatisch [ fanático] . Entretanto, para exe cutar uma ordem cegamente, não devo pensar sobre ela. O ato de pensar pode ensejar uma demora, um escrúpulo ou até 241
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mesmo estimular o senso crítico, levando à recusa à obediên cia. A essência da educação militar consiste em automatizar movimentos e atividades, de modo que o soldado e o grupo obedeçam à ordem superior sem passar por considerações de foro íntimo, independentemente de qualquer impulso instin tivo, como se fossem máquinas que se põem em movimento quando acionadas por botões. O nacional-socialismo não tem intenção de atacar a perso nalidade. Quer enaltecê-la, o que não exclui (ao contrário! ) torná-la mecanizada: cada u m tem de ser um autômato nas mãos de seu comandante e ao mesmo tempo um Führer, aquele que aciona o botão e faz de seu comandado um autô mato. Essa estrutura oculta confere um ar de normalidade ao processo de escravização e despersonalização do qual provém a multiplicação de termos, na LTI, oriundos da tecnologia, além de uma profusão de palavras mecanizantes. Não me re firo ao aumento de expressões especificamente técnicas que as línguas dos países civilizados experimentam desde o início do século XIX, como consequência da difusão da técnica e da sua crescente importância na vida de todos. Refiro-me à extrapo lação de expressões técnicas para áreas que não são técnicas, nas quais adquirem um efeito mecanizante. Raramente acon teceu algo assim na língua alemã antes de 1 933. A República de Weimar introduziu basicamente duas ex pressões da área técnica na linguagem comum: verankern [ ancorar] e ankurbeln [pôr em marcha com manivela, lançar, fomentar, estimular] , expressões comuns, palavras que estive ram na moda naquela época. Foram empregadas tão repeti damente que logo passaram a ser usadas com ironia, a fim de satirizar pessoas contemporâneas desagradáveis. Como Stefan Zweig escreveu, por exemplo, em sua Kleine Chronik [ Peque na crônica] , no final da década de 1 920: Die Excellenz und der Dekan kurbelten ihre Verbindung krii.ftig an [ Sua Excelência e o Decano deram impulso enérgico à sua relação] . 242
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Falta verificar se podemos considerar "ancorar" como uma metáfora tecnológica. Procedente da navegação e rodeada de certa aura poética, aparece já bem antes de Weimar. Legiti ma-se como palavra da moda graças ao seu emprego exage rado na época. A origem desse uso excessivo deve-se à ampla divulgação de uma declaração oficial: "Foi enfatizado que a Assembleia Nacional desejava se assegurar se a lei dos conse lhos de empresa estava ancorada na Constituição." A partir daí, tudo, em todos os domínios, passou a ser "ancorado". Mas pode ser que o motivo inconsciente do fascínio por essa ima gem venha do anseio profundo pela calmaria: os vagalhões revolucionários haviam provocado muito cansaço. O barco do Estado, metáfora antiquíssima (jluctuat nec mergitur) , 2º6 pre cisava lançar âncora em um porto seguro. Somente o verbo ankurbel provinha da tecnologia, trazen do um sentido mais apropriado e mais moderno. Seu uso teve origem em uma imagem com a qual as pessoas se deparavam o tempo todo nas ruas: os automóveis ainda não dispunham de motor de arranque automático, de modo que era comum ver motoristas tentando acionar o motor dos veículos, empre gando muita força para girar a manivela. Ambas as metáforas, uma semitécnica e outra totalmente técnica, têm em comum o fato de se referir somente a coisas, situações e atividades, nunca a pessoas. Na época da Repúbli ca de Weimar se "colocou em marcha': se "fomentou" ou se "estimulou" toda sorte de ramos comerciais, mas a pessoa do próprio dirigente comercial, jamais. As mais diversas institui ções também "se ancoravam': mas não a pessoa de um diri gente financeiro ou de um ministro. O passo decisivo para a mecanização linguística da vida ocorre quando a metáfora técnica se aplica diretamente a alguém. Uma expressão que 206 "Flutua sem submergir." É a frase que está gravada nos escudos de armas da cidade de Paris. 243
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grassava desde o início do século XX dizia: eingestellt sein [ es tar sintonizado] . Faço um parêntese e me pergunto se eingestellt sein e ter uma Einstellung [ estar imbuído de uma ideia própria a res peito de alguma coisa] - hoje cada dona de casa tem uma Einstellung sobre o uso de adoçantes ou de açúcar, cada rapaz tem uma Einstellung sobre o boxe ou o atletismo - devem constar da rubrica da mecanização linguística. Sim e não. Ori ginariamente, essas expressões indicavam se um telescópio estava bem ajustado para focalizar uma distância específica ou se as rotações de um motor estavam bem reguladas. Mas a primeira transposição desse conceito para outro campo foi semimetafórica: na busca do "pensamento exato", a ciência e a filosofia, especialmente esta última, adotaram a expressão de um modo que sua raiz técnica permanecia visível: o apare lho mental deve focalizar um objeto de maneira precisa, deve eingestellt sein. A linguagem comum servia-se primeiramente de palavras oriundas da filosofia. Considerava-se padrão cul to "ter uma postura", um "ponto de vista'', uma Einstellung diante de questões existenciais importantes. É difícil precisar até que ponto ainda havia consciência, no início da década de 1 920, do significado técnico ou puramente racional dessas ex pressões. Em um filme sonoro, que também era satírico, a principal personagem, uma dondoca, cantava que "sua vida estava eingestellt [ sintonizada, voltada] para o amor da cabeça aos pés",2º7 o que vem a comprovar que já se conhecia o signi ficado básico do termo. Na mesma época, porém, um patrio ta que pretendia ser poeta e é celebrado como tal pelos na zistas proclama com toda a ingenuidade que seus sentimentos estavam plenamente für Deutschland eingestellt [voltados para a Alemanha] . O filme se baseava no romance tragicômico 207 "Ich bin von Kopf bis Fuss auf Liebe eingestellt Dietrich canta em O Anjo Azul. 244
. . .
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Professor Unrat [ Professor Lixo] , de Heinrich Mann, 208 ao pas so que o versejador celebrado pelos nazistas como adepto de primeira hora do regime e antigo voluntário do Freikorps 209 tinha um nome pouco germânico: Boguslav ou Boleslaw. (O que pode fazer um filólogo cujos livros lhe foram rouba dos e parte de suas anotações destruídas?) Característica inconteste da LTI é a flagrante mecanização da própria pessoa. Nesse campo, a criação mais clara e prova velmente a mais precoce é o verbo gleichschalten [sincroniza ção da voltagem na energia elétrica, uniformização de ideias, atitudes e ações, especialmente no que diz respeito a acertar o passo nas paradas militares] . Pode-se ver e ouvir o clique do botão que faz pessoas - não instituições nem administra ções despersonalizadas - adotarem posições e movimentos uniformes e automáticos: professores de diversas instituições, funcionários de serviços jurídicos ou administrativos, mem bros dos Stahlhelm [capacetes de aço] ou das SA etc. etc. sem pre são conduzidos gleichgeschaltet [ em sintonia] , de maneira coordenada. Esse termo representa terrivelmente a mentalidade básica do nazismo. É uma das poucas expressões que o cardeal Faul haber2 1º concedeu a honra de satirizar em seu Sermão do Advento já em fins de 1 933. Segundo ele, entre os povos asiá ticos da Antiguidade, o Estado e a religião estavam gleichge schaltet. Ao mesmo tempo que o alto prelado ridicularizava o uso desse verbo, artistas menores de cabaré também ousavam atribuir-lhe uma conotação cômica. Lembro-me de um ani mador em uma assim chamada Fahrt ins Blaue [ excursão sur208 Heinrich Mano ( 1 87 1 - 1 950), irmão de Thomas Mano. O livro deu origem ao filme O Anjo Azul. 209 Brigadas militares voluntárias, criadas após a Primeira Guerra Mun dial, que desestabilizaram a incipiente República de Weimar. 2 1 0 Michael voo Faulhaber ( 1 869- 1 95 2 ) . Teólogo católico alemão, fez oposição radical ao racismo nazista, defendendo o Antigo Testamento. 245
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presa] da Associação de Excursionistas ter dito na floresta, durante o intervalo para o lanche, que estávamos gleichge schaltet com a natureza, com o que granjeou muitos aplausos. Não há na LTI nenhuma outra apropriação de termos téc nicos que tenha exibido tão claramente a propensão à auto mação e ao mecanicismo como esse gleichschalten. A palavra foi usada ao longo dos doze anos, mais no início que no fim, pela simples razão de que em pouco tempo a sintonização e a automação tornaram-se fatos consumados, passando para o campo das obviedades. O emprego de outras expressões da área eletrotécnica foi menos impactante. Quando se mencionam aqui e acolá Kraft strome [correntes de energia] que nos aproximam da figura de um líder, pela energia que eles emanam, como se lê em diver sos lugares sobre Mussolini e Hitler, essas expressões meta fóricas referem-se tanto ao magnetismo quanto à eletrome cânica. Associam-se, pois, à sensibilidade romântica. Isso foi particularmente notório no caso de Ina Seidel,21 1 que recor reu a essa mesma metáfora da eletrotécnica tanto em suas obras mais puras quanto nas mais pecaminosas - mas Ina Seidel constitui um triste capítulo à parte. Poder-se-ia qualificar de romântico o momento em que Goebbels, visitando cidades bombardeadas no oeste, às quais ele próprio pretendia transmitir energia, repete mentiras co lossais, dizendo pateticamente que se sentia neu aufgeladen [ recarregado] pela valentia inquebrantável dos cidadãos? Não, o que se vê aqui é apenas o hábito de rebaixar o ser humano ao nível das máquinas. Afirmo isso com segurança, pois nas demais metáforas de origem técnica do ministro da Propaganda e de seu círculo há 211
Escritora alemã ( 1 885- 1 974) . Sua prosa, muito apreciada por Hitler, é marcada pela crença no destino. 246
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muitas referências diretas ao domínio da mecânica, mas sem qualquer alusão à corrente elétrica. Pessoas ativas são reitera damente comparadas a motores. Por exemplo, o Reich publica em Hamburgo que o Statthalter 212 [prefeito ] trabalhava como ein immer auf Hochtouren laufender Motor [ motor em rota ção máxima] . Muito mais forte do que essa comparação, que ainda deixa perceber uma separação entre a imagem e o obje to com o qual é comparada, é a seguinte frase de Goebbels, que oferece evidência mais óbvia e mais séria dessa atitude in trinsecamente mecanicista: "Brevemente, em diversas regiões, operaremos em rotação máxima:' Não somos mais compara dos a máquinas; somos as próprias máquinas. Nós: isso é Goebbels, é o governo nazista, é toda a Ale manha hitleriana, à qual se devia infundir coragem, mas que vivia então sob a mais escabrosa penúria e sofria perdas enor mes de energia. Esse eloquente orador não compara a si e seus fiéis a máquinas; identifica a si mesmo e eles com as pró prias máquinas. Impossível conceber forma de pensar mais desumanizada. Quando o uso mecanizante da língua se estende direta mente à pessoa, é claro que esse uso procura alcançar também os objetos mais próximos, mas que estão fora de seu âmbito. Não existe mais nada que não possa ser anlaufen [posto em funcionamento ] , que não possa ser recondicionado, como se faz a revisão de uma máquina depois de um longo período de operação ou de um navio depois de uma longa viagem; não há nada que não se possa hineinschleusen [ introduzir] ou herausschleusen [ extrair] , e naturalmente - oh!, liguagem do Quarto Reich nascente - não há nada que não se possa aufziehen [acionar] . 212
A tradução literal é lugar-tenente. Mas, no vocabulário da LTI, desig nava o prefeito indicado pelo poder central. 247
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Mas, quando se faz necessário exaltar a intrepidez dos ha bitantes de uma cidade bombardeada, então a prova filológi ca que o jornal Reich traz é a linguagem local, seja da região do Reno, seja da Westfália: Es spurt schon wieder [ estamos de novo a postos] . ( Já me explicaram que spuren é do jargão pró prio do setor automobilístico: as rodas do carro foram reco locadas na bitola certa. ) Und warum spurt alies schon wieder? [E por que de novo tudo a postos? ] Porque, graças à boa or ganização geral, a pessoa está voll ausgelastet am Werk [ traba lhando em sua plena capacidade de produção ] . Também voll ausgelastet [plena capacidade] , uma das expressões prediletas de Goebbels nos últimos anos, é uma usurpação da linguagem técnica. Esse termo causa menos impacto do que o motor zu vollen Touren [a pleno vapor] , já que na verdade é possível auslasten [ carregar até o limite, ou sobrecarregar] os ombros de um ser humano, como no caso de um pedreiro. Die Sprache bringt es an den Tag [A linguagem traz à tona, revela o estado das coisas] . Constante invasão pela linguagem técnica, multiplicação das metáforas técnicas: enquanto Wei mar só conheceu o termo Ankurbeln, ou seja, fazer a econo mia girar como uma manivela, a LTI impulsionou o tecnicis mo com a expressão die gut eingespielte Lenkung [marcha (ou direção) bem engatada] , um testemunho do descaso pela per sonalidade aviltada, levando-se em conta a intenção de opri mir o livre-pensar. Essa constatação não perde força diante das numerosas afirmações de que se desejava desenvolver as pes soas, em contraposição ao objetivo marxista da Vermassung [ massificação] , a qual encontraria sua verdadeira apoteose no bolchevismo judaico e asiático. Será que a linguagem coloca mesmo em evidência? Há uma palavra que ouço o tempo todo e que vem rondando mi nhas ideias, justamente agora que tentamos recuperar o nos so sistema de ensino, completamente destruído. É uma cita248
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ção de Lênin: "O professor é o Ingenieur der Seele [ engenheiro da alma] ." Também é uma metáfora técnica, a mais técnica de todas. O engenheiro lida com máquinas. Se é considerado a pessoa certa para cuidar da alma, devo concluir que a alma é equivalente a uma máquina ... Devo mesmo concluir isso? Os nazistas sempre difundi ram que marxismo e materialismo são a mesma coisa, e que o bolchevismo supera a doutrina socialista em materialismo, pois imita de maneira falsificada os métodos industriais ame ricanos, absorvendo seu pensamento e sentimento tecnicista. Que há de verdade nisso? Tudo e nada. É certo que os bolchevistas aprendem com a tecnologia dos americanos e a levam para seu país de maneira apaixona da. Portanto, seus traços mais marcantes serão transmitidos pela linguagem. Mas por que procuram importar a tecnolo gia? Porque poderão oferecer ao povo uma vida mais digna. Reduzindo a pressão do trabalho pesado e proporcionando a todos uma base física mais saudável, estarão contribuindo para sua elevação intelectual. A recente aquisição de expres sões em sua língua comprova exatamente o oposto do que comprova na Alemanha de Hitler: o tecnicismo da Rússia visa a libertar o espírito do povo russo, enquanto na Alemanha a extrapolação da técnica visa à escravização da alma do povo alemão. Quando dois fazem o mesmo ... sabedoria trivial. Mas no meu caderno de anotações faço questão de sublinhar a ver são que interessa à minha profissão: quando dois fazem uso da mesma expressão, isso não significa que tenham a mesma intenção. Justo aqui e agora quero frisar esse ponto novamen te com grande destaque, pois precisamos conhecer melhor o verdadeiro espírito dos povos, daqueles de quem ficamos tan to tempo afastados, sobre os quais durante tanto tempo nos 249
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mentiram. Sobre nenhum povo nos mentiram tanto quanto sobre o povo russo ... Para conhecer a alma de um povo, nada melhor que conhecer sua língua . . . Há a gleichschalten [ unifor mização das ideias] e o Ingenieur der Seele, ambas expressões técnicas. A metáfora alemã aponta para a escravidão, a russa visa à libertação.
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CAFÉ EU ROPA
12 de agosto de 1935. "É isso mesmo: apesar de ficar bem na pontinha - do outro lado já se vê a Asia -, fica na Europa:' Foi o que Dembert disse há dois anos, quando me contou que fora chamado para lecionar em Istambul. Vejo-o agora diante de mim, seu sorriso de alívio, o primeiro após as semanas de amargura que se seguiram à sua demissão, ou melhor, à caça da contra ele. Justo hoje me lembro de como o sorriso e o timbre alegre da voz ressaltavam a palavra "Europa': pois jus to hoje chegaram as primeiras notícias dos Bl. 2 13 desde que partiram. Já devem estar em Lima. A carta, enviada das Ber mudas, me deixa com certo mau humor. Eu os invejo porque são livres, seu horizonte é mais amplo que o meu, e invejo-os por sua possibilidade de influenciar pessoas. Mas, em vez de se alegrarem, eles lamentam o enjoo da viagem de navio e as saudades da Europa. Fiz estes versos, que vou lhes enviar: Agradecei a Deus, a cada dia, Por vos ter levado pelos mares, E vos ter salvado da grande desventura. Já as pequenas, não importam; Vomitar mar adentro Do parapeito de um navio, livre, Dos males não é o pior. Alçai vossos olhos cansados Aos céus, onde está o Cruzeiro do Sul; Essa nave piedosa vos transporta Para longe das agruras dos judeus. 2 1 3 Walter e Grete Blumenfeld, amigos que haviam emigrado para o Peru. 251
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Tendes saudades da Europa? Diante de vós estão os trópicos. Europa nada mais é que um conceito.
13 de agosto de 1935. Walter escreve de Jerusalém: "Por fa vor, de agora em diante remetam as cartas simplesmente para o Café Europa. Não sei por quanto tempo meu endereço atual será o que vocês têm, mas é certo que podem me encontrar sempre nesse Café. Aqui, refiro-me a Jerusalém como um todo e ao Café em particular. Sinto-me melhor do que em Tel Aviv. Lá os judeus convivem entre si e querem permanecer somente judeus. Aqui reina um espírito mais europeu:' Não sei se, sob o impacto da carta de ontem, atribuo im portância ainda maior à que recebi hoje da Palestina; parece me que meu sobrinho, pessoa de pouca cultura, se aproxima mais do conceito "Europa" do que meus colegas eruditos, cuja nostalgia se restringe ao espaço geográfico. 14 de agosto de 1935. O orgulho diante de uma ideia dura no máximo um dia; logo em seguida, quando recordo de onde ela vem, me recolho à insignificância (destino de filólogo ! ) . O conceito Europa é emprestado d e Paul Valéry.214 Para meu consolo posso acrescentar: cf. Moderne franzõzische Prosa [Prosa francesa moderna] , de Klemperer.215 Naquele tempo, e lá se vai uma dúzia de anos, reuni e comentei em um capítulo à parte o pensamento dos franceses sobre a Europa e seu la mento desesperado pela autodestruição do continente durante a Primeira Guerra Mundial; também destaquei como reco nhecem que a essência da ideia de Europa está na criação e di vulgação de uma determinada cultura, uma determinada pos tura espiritual e uma determinada vontade. Em seu discurso 2 14 Paul Valéry ( 1 87 1 - 1 945), escritor, poeta e filósofo francês. 21 5 Titulo de um ensaio que Klemperer publicou em 1 923. 252
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de 1922 em Zurique, Valéry deixa claro que o conceito de es paço europeu é uma abstração. Para ele, a Europa são todos os lugares nos quais a tríade Jerusalém, Atenas e Roma se fez pre sente, ou, como ele mesmo expressa: Grécia, Roma Antiga e Roma cristã, com Jerusalém incluída na Roma cristã. Até mes mo a América não passa de "uma formidável criação da Euro pa': Mas, sempre colocando a Europa na condição de potência hegemônica, acrescenta: "Expresso-me mal, não é a Europa que domina, mas sim o europiiischer Geist [espírito europeu] ." Como se pode ter saudades de uma Europa que não existe mais? A Alemanha não é mais Europa. Por quanto tempo os países vizinhos estarão seguros diante de um país como este? Eu me sentiria mais seguro em Lima do que em Istambul. Quanto a Jerusalém, fica próximo demais de Tel-Aviv, o que se assemelha muito a Miesbach ... (Nota para o leitor d e hoje: e m Miesbach, n a Baviera, surgiu n a épo ca de Weimar um jornal que antecipava em tom e conteúdo o que viria a ser o Stürmer. 216 N.A. )
Depois dessas anotações, a palavra Europa não aparece em meu diário por quase oito anos, apesar de eu ter permaneci do atento a tudo que se me apresentasse como peculiaridade da LTI. Não quero dizer que aqui e ali não houvesse algum material para ler sobre a Europa ou a situação europeia. Isso seria inexato, pois o nazismo, a partir de seu ancestral Cham berlain, trabalha com uma ideia adulterada da Europa, ideia que ocupa papel central no Mito, de Rosenberg, e é repetida por todos os teóricos do partido. Aconteceu com essa ideia o mesmo que os teóricos do ra cismo tentaram fazer com a população alemã: ela foi aufge nordet. 217 Tudo que fosse europeu procedia dos nórdicos, ou 2 16 O Atacante, folhetim nazista totalmente voltado contra os judeus. 2 17 Neologismo cuja tradução seria: "tornada mais nórdica". De acordo com a teoria racial nazista, a "raça" nórdica era considerada a mais valorosa. 253
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dos germano-nórdicos, e todo elemento danoso ou ameaça dor provinha da Síria e da Palestina. Como não havia jeito de recusar as origens gregas e cristãs da cultura europeia, então os helenos e até mesmo Cristo tinham ancestrais germano nórdicos, com olhos azuis e cabelos louros. Tudo o que, no cristianismo, não estivesse de acordo nem com a ética nem com a doutrina do Estado nazista era suprimido como in fluência judaica, síria ou até romana. Mesmo na presença dessas deformações, o conceito e a pa lavra Europa existiam somente para uma elite seleta de pes soas cultas e eram quase tão suspeitos e nefastos como Intelli genz [ inteligência] e Humanitiit [ ideal de humanidade] . Sobre essas palavras pairava sempre o risco de despertarem recorda ções do antigo conceito de Europa que conduziriam à inevitá vel ideia pacifista de uma Europa supranacional e humanista. Por outro lado, se a antiga Germânia se tornasse a fonte de to das as ideias europeias e a única detentora do verdadeiro san gue europeu, então se poderia renunciar ao conceito geral de Europa. Assim, a Alemanha se desvinculava de todo contexto e de todo compromisso com outras culturas, se isolava e passava a gozar de uma primazia divina sobre os demais povos. Era comum ouvir que a Alemanha devia defender a Europa contra o bolchevismo judaico-asiático. Em 2 de maio de 1 938, quan do Hitler parte com grande pompa para a Itália em viagem oficial, a imprensa não para de repetir que o Führer e o Duce estavam empenhados em criar a "Nova Europa': Mas a essa "Europa" internacionalista se contrapunha Das heilige Germa nische Reich deutscher Nation [o Sacro Império Germânico da Nação Alemã] , que aparecia em letras garrafais. Nos anos de paz sob o Terceiro Reich a palavra Europa não foi usada com tanta frequência, nem com algum matiz sentimental tão inten so que fosse possível registrá-la como uma palavra da LTI. Somente depois de iniciada a campanha contra a Rússia e, mais ainda, depois de iniciada a retirada a palavra adquire 254
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um sentido novo, cada vez mais desesperado. Até então, só em situações especiais e solenes se falara em "proteger a Eu ropa do bolchevismo': no meio de considerações gerais sobre a cultura. Agora esse slogan tornou-se corriqueiro, alardeado diariamente em todos os jornais e repetido em diversas maté rias de um mesmo jornal. Goebbels cria a imagem da Ansturm der Steppe [ invasão da estepe] . Incorporando a linguagem téc nica da geografia, ele adverte contra o perigo da Versteppung [transformação em estepe ou desertificação] da Europa. Eu ropa e Steppe começam a aparecer juntas e passam a fazer parte do vocabulário específico da LTI. Eis que, de repente, o conceito de Europa sofre um estra nho retrocesso. No discurso de Valéry, ela estava totalmente desvinculada de seu espaço originário ou até mesmo de qual quer espaço físico; referia-se a qualquer região talhada inte lectualmente por aquela tríade: Jerusalém, Atenas e Roma (ou, em termos mais latinos, uma vez Atenas e duas vezes Roma) . Agora, n o último terço d a era hitleriana, não s e trata mais desse tipo de abstração. Fala-se, é certo, de defender as ideias do Ocidente contra as forças asiáticas. Mas as pessoas não só evitam qualquer referência às ideias do europeísmo nórdico germano, tão presente nos primórdios do nazismo, como não escrevem uma linha sobre o pensamento de Valéry, mais ver dadeiro. Mesmo assim, em sua coloração estritamente lati na e em sua orientação exclusivamente ocidental, seu concei to fica muito limitado para poder ser totalmente verdadeiro. Desde que os textos de Tolstoi e de Dostoievski passaram a exercer influência na Europa (note-se que o Romain russe, de Vogues, foi lançado em 1 866) , desde que o marxismo se tor nou marxismo-leninismo, desde que ele se vinculou à técnica norte-americana, o centro de gravidade do pensamento euro peu se deslocou para Moscou ... Não, a Europa da qual a LTI passou a falar diariamente, como sua nova palavra-chave, deve ser entendida em um sen255
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tido exclusivamente espacial e material; designa um território mais restrito e o considera de um ponto de vista mais con creto do que fazíamos no passado. Agora, a Europa termina onde começa a Rússia inimiga, cujo território, em grande par te, a Alemanha reivindica, considerando-o ilegítimo. Mas essa Europa também se separou da Grã-Bretanha, adotando em relação a ela uma atitude de defesa hostil. No início da guerra era diferente. Dizia-se: England ist kei ne Insel mehr [ Inglaterra deixou de ser uma ilha] . Essa afir mação é bem anterior a Hitler. Encontrei-a no Tancred, de Disraeli,218 e em Rohrbach, aquele político e escritor de via gens que defendia ardentemente a ferrovia entre Bagdá e a Europa Central;2 19 mesmo assim, a frase permanecerá vincu lada a Hitler. Naquela época, inebriada pela dominação da Polônia e da França, a Alemanha de Hitler esperava um de sembarque na Inglaterra. Essa esperança fracassou. Em vez da Inglaterra, as potên cias do Eixo é que foram submetidas a bloqueio e ameaçadas de invasão, e desde então não se fala mais em blockadefeste Europa [ Europa resistente aos bloqueios ] e autarke Europa [ Europa autárquica] ou, como se dizia antes, em "nobre con tinente europeu" traído pela Inglaterra, ameaçado por ameri canos e russos, que visam à sua escravidão e "desespiritualiza ção': Do ponto de vista conceituai, a expressão Festung Europa • [praça-forte Europa] 22º foi determinante para a LTI. Na primavera de 1 943 surgiu o livro de Max Clauss,221 Tat sache Europa [ Realidade Europa] . O título comprova que não 2 1 8 Político inglês ( 1 804- 1 88 1 ) . Em 1 847 escreveu Tancred, que defende a democracia trabalhista. 2 1 9 Construída entre 1 903 e 1 940, essa ferrovia ligou Constantinopla a Bagdá. 22º Durante a fase de construção da atual União Europeia falou-se no pe rigo de uma Festung Europa, em termos de protecionismo econômico. 22 1 Jornalista e romanista alemão ( 1 90 1 - 1 988). Filiou-se ao Partido Na zista em 1 933. 256
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se trata de uma discussão filosófica sobre uma ideia vaga, mas de algo concreto. O livro trata da verdadeira circunscrição da Europa, das neue Europa, das heute marschiert [a nova Euro pa, que está sempre em marcha] . Nessa obra o papel do ver dadeiro inimigo é ocupado pela Inglaterra, muito mais do que pela Rússia. Essa teoria adota como ponto de partida o livro Pan-Europa, de Coudenhove-Kalergi,222 publicado em 1 923, que considera a Inglaterra como a potência hegemónica eu ropeia e a Rússia soviética como um perigo para a democra cia europeia. No que diz respeito à hostilidade aos soviéticos, Coudenhove-Kalergi é um aliado e não um adversário do au tor nazista. Mas aqui não vem ao caso a posição política exata de cada um desses teóricos. Clauss cita a explicação de Cou denhove-Kalergi ao seu símbolo da unificação, "o símbolo sob o qual todos os Estados pan-europeus se unirão, a cruz solar: uma cruz vermelha sobre o Sol dourado, símbolo da huma nidade e da razão': O que importa aqui não é que Coudenhove-Kalergi não compreenda que é justamente a Rússia, que ele exclui, que carrega a tocha do europeísmo, nem sua defesa da hegemonia da Inglaterra. O que vem ao caso é que Coudenhove coloca em posição central a ideia de Europa - ideal humanitário e razão - e não o espaço geográfico. Na capa da publicação na zista, ao contrário, o que se vê é o mapa do continente. O livro Tatsache Europa zomba do "fogo-fátuo da Pan-Europa" e se concentra naquilo que, no início de 1 943, a Alemanha hitle riana considerava oficialmente a única "realidade" perene: a organização do gigantesco espaço continental resgatado dos territórios conquistados no leste, com a liberação de forças poderosas para tornar a Europa absolutamente blockadefest [inexpugnável a um bloqueio] . No centro desse território está 222
Político e escritor austríaco ( 1 894- 1 972 ) , fundador do Movimento Pan-Europeu em 1 923. 257
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a Alemanha como Ordnungsmacht [potência organizadora] . Esse termo também pertence à LTI da fase tardia. O eufemis mo encobre a ideia de "potência dominante", que se impõe com força tanto maior quanto mais fraca for a posição da Itá lia entre os parceiros do Eixo. Não reflete qualquer objetivo ideal separado de uma dimensão espacial. Nos últimos anos, sempre que o nome Europa aparece na imprensa ou em discursos - e isso ocorre de maneira mais enfática e com maior frequência à medida que a situação da Alemanha se torna mais crítica -, seu único conteúdo é este: a Alemanha, "potência organizadora", defende a "fortaleza Europa': Há uma exposição em Salzburgo: "Artistas alemães e as SS". O título de uma matéria no jornal diz: "Da vanguarda do mo vimento às tropas defensoras da Europa". Pouco antes, na pri mavera de 1 944, Goebbels escreveu: "Os povos da Europa de veriam nos agradecer de joelhos pelo fato de lutarmos para defendê-los. Talvez eles nem mereçam tanto." (Anotei literal mente só o início da frase.) No meio de todos aqueles materialistas que só conside ravam a Europa como um bloco de países sob a autoridade da Alemanha de Hitler, uma vez se fez ouvir a voz de um poeta, um idealista. No verão de 1 943, o Reich publicou uma "Ode à Europa" inspirada na métrica antiga. Trata-se de um volume de poesias recém-publicado, que se chama Tod und Leben [ Morte e vida] , e o poeta se chama Wilfried Bade.223 Não sei mais nada do autor, tampouco de sua obra. Ambos podem ter desaparecido. O que chamou minha atenção àque la altura, e de que ainda hoje me lembro sensibilizado, foi a forma límpida e a impetuosidade daquela única ode. A Ale manha seria, por assim dizer, o deus grego travestido no tou223
Poeta e escritor nazista, funcionário do Ministério da Propaganda, au tor de uma biografia de Goebbels. 258
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ro mitológico que seduz a bela Europa, e dela, raptada e enal tecida, se diz: Du bist in einem / Mutter, Geliebte und Tochter auch / im grossen Geheimnis, / das kaum zu ahnen [ Bem em segredo, que mal se pode intuir, você é três em um: mãe, filha e amante] . Mas o jovem idealista, nostálgico da Antiguidade, desiste de seguir a pista do grande mistério ao conhecer um remédio contra as dificuldades do intelecto: Im Glanze jedoch / der Schwerter ist alies einfach, und nichts / ist noch ein Riitsel [Sob o brilho das espadas tudo aparenta simplicidade, o enig ma se esclarece] . Que diferença abissal entre o conceito de Europa que pre valecia na Primeira Guerra Mundial! "Europa, não suporto que sucumbas a essa loucura, Europa, grito nos ouvidos de quem massacra quem tu és! '', escreveu Jules Romain. O poeta da Segunda Guerra Mundial se eleva e se inebria com o res plendor das espadas! A vida admite combinações que nenhum romancista pode se permitir, pois em um romance elas soariam muito nove lescas. Depois de reunir minhas anotações sobre a Europa da época de Hitler, fiquei pensando se estaríamos retornando a um conceito de Europa mais autêntico ou se tínhamos aban donado esse conceito. Pois, a partir do ponto de vista recente de Moscou, com o qual Valéry, o latino, nem contava, o pen samento europeu mais autêntico se refere literalmente a "to dos", pois para Moscou existe o mundo como um todo, e não mais a província Europa em especial. Foi quando recebi uma carta de Jerusalém, de meu sobrinho Walter, seis anos depois da primeira. A carta não fora mais enviada do Café Europa. Nem sei se o Café ainda existe, mas interpretei a falta desse endereço como simbólica, tanto quanto interpretara a sua existência na carta anterior. Pois o conteúdo dessa carta deixa transparecer que o espírito europeu daquela época também 259
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não existe mais. Ele diz: "Você deve ter lido algo nos jornais, mas não pode imaginar o que os nossos nacionalistas estão aprontando aqui. Foi para isso que fugi da Alemanha de Hi tler?" Seguramente, o Café Europa deixou de ser seu refúgio. Mas isso pertence ao capítulo da LTI dedicado aos judeus.
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A ESTRELA
Hoje volto a fazer a pergunta que já fiz uma centena de vezes, a mim e aos outros: qual foi o pior dia para os judeus nos doze anos do inferno nazista? Todos damos a mesma resposta: 1 9 de setembro de 1 94 1 . Nesse dia tornou-se obrigatório o uso da estrela de Davi, de seis pontas, aquele trapo amarelo que até hoje simboliza pes te e quarentena. Na Idade Média, era a cor que identificava os judeus, mas é também a cor da inveja, da bílis com sangue, a cor do mal a ser evitado; esse trapo traz a inscrição em negro: JUDEU. A palavra, emoldurada pelas linhas dos dois triângu los parcialmente sobrepostos, está escrita em letras grossas, maiúsculas. Isoladas e com os traços horizontais realçados, imitam caracteres hebraicos. Minha descrição é muito longa? Ao contrário! Faz-me fal ta a arte de descrever de maneira mais precisa e contundente. Quantas vezes, quando se tinha de costurar uma estrela em uma nova peça de roupa (na verdade, uma roupa velha rece bida do depósito de roupas judaicas), um casaco ou um aven tal de trabalho, quantas vezes eu observava com lupa os grãos da trama desse tecido amarelo, as irregularidades da estampa preta, toda a textura - e isso não teria sido suficiente se eu quisesse relacionar a cada detalhe as torturas sofridas por cau sa da estrela. Na rua deparo-me com um senhor que vem ao meu en contro com ar sério, bonachão, conduzindo um menininho cuidadosamente pela mão. Para a um passo de mim: "Olhe bem para ele, Horst! É o culpado de tudo! " Um senhor dis tinto, de barba branca, atravessa a rua, me cumprimenta e estende a mão: "O senhor não me conhece, mas eu quero lhe 261
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dizer que condeno esses métodos." Só posso embarcar no bonde no compartimento dianteiro, separado do principal, e só se eu estiver a caminho da fábrica, e só se a fábrica ficar a mais de seis quilômetros de distância, e só se o compartimen to dianteiro estiver bem separado do interior do veículo. Que ro embarcar, estou atrasado. Se não chegar pontualmente no trabalho, o capataz pode me denunciar à Gestapo. Alguém me empurra por trás: - Vá a pé, é melhor para você! É um oficial das SS, sem brutalidade, que se diverte como os outros se divertem com um cão ... Minha mulher diz: - Que dia lindo! Justo hoje não tenho nenhuma compra para fazer, não preciso ficar em nenhuma fila, vou acompa nhá-lo um pouco! - Nem pensar! Não quero vê-la sendo ofendida na rua por minha causa. Além do mais, sabe lá de quem você pode levantar suspeita, gente que ainda não a conhece. Quando for levar meus manuscritos, você pode encontrar um deles! Um auxiliar de mudanças, meu conhecido, é de um grupo de gente boa. Todos levam jeito de pertencer ao KPD.224 Ele para de repente diante de mim na Freiberger Strasse, agarra minha mão entre as suas e sussurra, mas de uma forma que dá para ouvir do outro lado da rua: - Vamos, Herr Professor, não se deixe abater! Logo esses malditos vão ter de prestar contas. Pretende ser um consolo, e de fato reconforta a alma; mas, se lá do outro lado da calçada a pessoa certa ouvir, meu con solador será levado ao cárcere e eu, a Auschwitz ... Um carro freia de repente em uma rua vazia, a cabeça de um estranho aparece fora da janela: - Ainda vives, porco desgraçado? Eu deveria passar com o carro por cima da tua barriga! 224 KPD:
Partido Comunista Alemão. Os membros do ser perseguidos de 1 933 em diante. 262
KPD
passaram a
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Não, todos os fiapinhos de tecido não seriam suficientes para indicar a profunda amargura causada a um usuário da estrela amarela. Na área verde da Georgplatz existia uma estatueta de Gutzkow,225 da qual restou somente o pedestal no meio da terra devastada. Havia uma forte ligação entre mim e o bus to. Quem hoje conhece Ritter vom Geist [ Cavaleiros do espí rito ] ? Para o meu doutoramento eu lera os seus nove tomos com prazer. Muito tempo antes, minha mãe me contara que, quando jovem, lera com sofreguidão a então moderníssima e proibida obra. Mas não é no romance que penso primeiro, quando passo na frente do busto de Gutzkow, e sim em Uriel Acosta, 226 cuja encenação assisti pela primeira vez, aos dezes seis anos, na Krolloper. Naquela época, essa peça de Gutzkow quase não fazia mais parte do repertório-padrão. Todo crítico sentia-se na obrigação de chamar atenção para seus pontos fracos e de considerá-la ruim. Mas ela me abalou, e uma de suas frases me acompanhou pelo resto da vida. Nas vezes em que me deparei com experiências antissemitas, parecia-me vivê-la de forma ainda mais intensa. Ela penetrou realmen te em minha vida a partir daquele 19 de setembro de 1 94 1 . O verso dizia: Ins Allgemeine mocht'ich gerne tauchen und mit dem grossen Strom des Lebens gehn! [Ah!, se eu conseguisse desaparecer no Universo e ser levado pela ampla correnteza da vida! ] . Eu havia sido excluído do Universo desde 1 933, bem 225
Karl Gutzkow ( 1 8 1 1 - 1 878), escritor alemão que desempenhou impor tante papel no movimento Jovem Alemanha. Seu romance Os cava leiros do espírito foi publicado entre 1 850 e 1 85 1 . 226 Uriel Acosta ( 1 585- 1 640) foi um filósofo nascido em Portugal, de re ligião judaica, cuja família tinha sido forçada a se converter ao catoli cismo. Uriel convenceu a família a retornar ao judaísmo e, por isso, todos emigraram para a Holanda. Lá, porém, foi perseguido por au toridades judaicas e terminou por cometer suicídio. O drama Uriel Acosta, de Karl Gutzkow, é de 1 847. 263
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como toda a Alemanha. Assim que saía de casa e deixava para trás as ruas onde era conhecido, eu imergia na ampla corren teza geral; mas permanecia a angústia de ser reconhecido a qualquer momento e sofrer os percalços de ações de gente mal-intencionada. Mesmo assim, era uma imersão. Agora o sinal me identificava, me isolava e me deixava proscrito. Justificava-se a medida com o argumento de que era necessário isolar os judeus, cuja crueldade fora comprovada na Rússia. A "guetização" tornara-se absoluta: no início essa palavra só aparecia em selos, como o "Gueto de Litzmann stadt': e era reservada para os países estrangeiros conquistados. Na Alemanha havia algumas "casas de judeus", onde éramos amontoados, e às vezes constava Judenhaus na porta. Mas es sas casas situavam-se em bairros arianos, e mesmo elas não eram habitadas só por judeus. Por isso, defronte a outras resi dências, às vezes constava a informação: "Esta casa está juden rein [purificada de judeus] ': A frase, escrita com letras negras e grossas, permaneceu em muitos muros até que vieram abai xo pela ação dos bombardeios, enquanto letreiros como "Em preendimento arianizado" e vitrines pintadas com as palavras hostis "Loja de judeus! " desapareceram logo, pois perderam a razão de ser: não havia nada mais a arianizar. Com a introdução da estrela amarela, dava tudo na mes ma, estivessem as Judenhiiuser espalhadas ou concentradas em um quarteirão, pois cada judeu carregava consigo o próprio gueto, como o caracol carrega a casinha. Era indiferente se em uma casa viviam somente judeus ou também arianos, pois a estrela tinha de estar colada na porta, acima do nome do mo rador. Se sua mulher fosse ariana, o nome dela deveria cons tar ao lado do nome dele, acrescentando-se: ''Ariana". Pregados nas portas dos corredores, logo começaram a aparecer outros tipos de bilhetes, de arrepiar: ''Aqui viveu o judeu Weil': Então o carteiro sabia que não precisava mais se 264
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preocupar em encontrar o novo endereço; o remetente rece bia a correspondência de volta com o eufemismo: Adressat abgewandert [ Destinatário partiu, emigrou ] . De forma que esse significado particular e cruel de abgewandert consta da LTI, na seção dedicada aos judeus. Essa seção é rica em expressões e frases burocráticas, fre quentemente empregadas por todos a que diziam respeito, e que apareciam amiúde em suas conversas. Tudo começou naturalmente com nichtarisch [ não-ariano] ou arisieren [ aria nizar] . Depois vieram as Nürnberger Gesetze zur Reinhaltung des deutschen Blutes [leis raciais de Nuremberg para manuten ção da pureza do sangue alemão ] . Depois houve os Volljuden ( 1 00% judeus] , os Halbjuden [ meio judeus] , filhos de casa mento misto de primeiro grau, e os Mischlinge ersten Grades [mestiços de primeiro grau] e de outros graus. Depois os Judenstãmmlinge [ descendentes de judeus] e, acima de tudo, os Privilegierten [privilegiados] . Nesse caso, excepcionalmente, não sei se os nazistas tive ram clara consciência do conteúdo diabólico da sua invenção. Só existiam "privilegiados" nos grupos de trabalhadores ju deus nas fábricas. O "privilégio" consistia em não ter de por tar a estrela amarela e não viver na "casa dos judeus". Era "privilegiado" quem tivesse contraído casamento misto e tivesse dado aos filhos desse casamento deutsch erzogen [ edu cação alemã] , ou seja, sem contato com a comunidade ju daica. A interpretação desse dispositivo gerava numerosas dú vidas e sutilezas grotescas. Talvez ele tenha sido criado para proteger partes da população utilizáveis para os fins dos na zistas. Entretanto, nenhuma medida teve efeito tão desintegra dor e desmoralizante quanto essa. Quanta inveja e quanto ódio ela gerou! Poucas frases foram pronunciadas com mais frequência e maior amargor do que esta: "Ele é um privile giado! " O que significava: "Paga menos impostos que nós, não 265
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precisa morar em 'casas de judeus', não usa a estrela amarela, pode passar quase despercebido ..." Quanta arrogância, que deplorável prazer maligno - de plorável, pois, no fim das contas, viviam no mesmo inferno que nós, mesmo que em um círculo mais elevado. No fim, as câmaras de gás também devoraram os Privilegierten. As palavras "sou privilegiado" enfatizavam um distanciamento. Quando agora ouço falar de acusações recíprocas entre ju deus, de vinganças gravíssimas, sempre penso primeiro no conflito geral que existia entre os portadores da estrela e os privilegiados. Naturalmente, houve muitos atritos durante o convívio nas "casas de judeus" - a mesma cozinha, o mesmo banheiro, o mesmo vestíbulo para diversas famílias -, bem como no convívio estreito dos grupinhos de portadores da es trela nas fábricas. Mas entre judeus "privilegiados" e "não pri vilegiados" é que as inimizades mais venenosas se conflagra ram: estava em jogo a estrela, a coisa mais odiada. Encontro em meus diários, repetidas vezes e com poucas variações, frases assim: "Aqui se viam às claras as piores per versidades das pessoas; dava até para se tornar antissemita!" Mas, a partir da segunda "casa de judeus'', de um total de três por que passei depois dessas explosões, sempre encontrei a se guinte nota adicional: "Ainda bem que li o livro Hinter Sta cheldraht [Atrás do arame farpado] , de Dwinger, sobre a vida de alemães arianos puros durante a Primeira Guerra, na Si béria. A população nos compounds [ campos de prisioneiros] siberianos abarrotados não tinha nada a ver com judaísmo, era povo ariano puro, eram militares alemães, oficiais alemães. O que acontecia nesses compounds é igual ao que acontece em nossas Judenhiiuser. Não é raça, não é religião, é o aprisiona mento, a escravatura . :· Privilegiert é a segunda pior palavra d.e meu léxico dedi cado aos judeus. A estrela permanece a pior. As vezes conse guíamos encará-la com humor negro; como piada, se ouvia: .
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"Eu uso a Pour le Sémite." 22 7 Às vezes havia quem afirmasse, não somente diante dos outros, mas até para si mesmo, que sentia orgulho da estrela. No fim, ela transmitia até esperan ça: será nosso álibi! Na maior parte do tempo, porém, aquele amarelo berrante iluminava pensamentos torturantes. A estrela que emite a radiação fosforescente mais venenosa é a "estrela escondida". Segundo as prescrições da Gestapo, a estrela tem de ser usada descoberta, do lado do coração, sobre a jaqueta, o casaco ou o avental de trabalho. É obriga tória em qualquer lugar onde exista a possibilidade de con tato com arianos. Em dias quentes de março, sob o morma ço, quando você abrir o capote de forma que o lado avesso da gola fique sobre o coração, se você carregar com o braço esquerdo uma pasta apertada contra o peito, se você, sendo mulher, estiver usando uma echarpe, então sua estrela estará escondida sem querer, mas quem sabe se por alguns segundos não será por querer, para poder andar nas ruas sem o estig ma? Um funcionário da Gestapo pensará sempre que houve a intenção de esconder a estrela, e a consequência será o campo de concentração. Se o funcionário quiser se mostrar especial mente zeloso e você cruzar de frente com ele na rua levando a pasta no braço ou usando um cachecol que vá até os joelhos, mesmo se o capote estiver bem abotoado, a conclusão dele será que o judeu Lesser ou a judia Winterstein "esconderam a estrela". Três meses depois, no máximo, a comunidade rece berá um atestado de óbito de Ravensbrück ou de Auschwitz. A causa mortis será precisa, com pequenas variações ou até mesmo individualizada: "insuficiência cardíaca", "fuzilamento por tentativa de fuga". A verdadeira causa mortis terá sido a estrela coberta.
227 Parodiando a expressão Pour le Mérite, medalha da Primeira Guerra Mundial. 267
CAPIT U LO 2 6
A GUERRA J U DAICA
O homem ao meu lado no bonde me olha firme e diz em meu ouvido, em voz baixa mas em tom autoritário: "Desça na Esta ção Central e me acompanhe:' É a primeira vez que me deparo com essa situação, mas sei do que se trata pelo relato de outros portadores da estrela. Tudo ocorre sem maiores consequên cias, eles estão aí para se divertir às nossas custas, e eu sou tido como inofensivo. Mas não posso prever tudo isso de antemão. Não é agradável me submeter a gracinhas da Gestapo. Não há como negar que esse contratempo me deixa transtornado. - Quero caçar umas pulgas nele - diz meu laçador de cães ao porteiro. - Deixe-o parado aqui, com a cara voltada para a parede, até que eu o chame. Aguardo uns quinze minutos no saguão, no pé da escada, com o rosto voltado para a parede, enquanto os transeuntes me insultam: - Judeu cachorro, o que está esperando para se enforcar? - Não levou porrada suficiente ainda? Finalmente me chamam: - Suba depressa, com passos rápidos! Abro a porta e fico parado diante da escrivaninha mais próxima. A acolhida é amável: - Você nunca esteve aqui em cima, não é? Sorte sua, ain da tem muito a aprender. . . Aproxime-se até dois passos da escrivaninha, com as mãos na costura lateral das calças, e apresente-se como deve: "Sou o judeu Paul Israel Dreckvieh [porco imundo ] ", ou seja lá qual for o seu nome. Saia agora e entre de novo, rápido. Ai de você se não souber se apresentar zackig [ de maneira enérgica] ! . . . Bem, você não se saiu muito bem, mas para a primeira vez até que serve. Agora vamos às pulgas. Mostre sua carteira de identidade e os outros doeu269
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mentos. Esvazie os bolsos; alguma coisinha afanada, ilícita, vocês sempre têm ... O quê? Você é catedrático? Você pensa que pode nos ensinar alguma coisa? Só por essa pouca-vergonha você já merece acabar em Theresienstadt . . . Não, você ainda está longe dos 65 - então vai acabar na Polônia. Você nem fez 65 e, no entanto, tão pateta e alquebrado, com tanta falta de ar! Deus do céu, você deve ter se divertido muito em sua vida devassa, parece ter 75! O inspetor está bem-humorado. - Teve sorte de não termos encontrado nada proibido. Mas ai de você se na próxima vez encontrarmos algo em seus bolsos; o menor cigarro que seja, e você desaparece, mesmo se tiver três mulheres arianas . . . Suma da minha frente quanto antes! Eu já estava com a mão na maçaneta e ele me chama de volta: - Assim que você chegar em casa vai começar a rezar pela vitória judaica, não é? Não fique me encarando desse jeito nem responda, eu sei que você vai fazer isso. Pois a guerra é de vocês, não é? O quê? Você está sacudindo a cabeça? Então estamos em guerra contra quem? Abra o bico, responda quan do lhe perguntam, afinal você não é catedrático? - Contra a Inglaterra, contra a França, contra a Rússia, contra ... - Pare com isso, é tudo besteira. É contra o judeu que tra vamos a guerra, é a guerra judaica. E se você sacudir a cabeça mais uma vez, vou lhe dar uma surra. Você vai sair voando e parar no dentista. É a guerra judaica, o Führer disse. E o Führer sempre tem razão ... Fora! A guerra judaica! Não é invenção do Führer. Seguramente ele nunca soube quem foi Flavio Josefo. 22 8 Talvez em um jor228
Historiador judeu do século 1 d.C. Entre outros livros, escreveu Bellum Iudaicum [A guerra judaica] e Antiquitates Iudaicae [Antigui dades judaicas] . 270
CAPIT U LO 2 6 1 A G U E R RA J U DA I C A
nal ou na vitrine de uma livraria ele tenha visto o nome do romance que o judeu Feuchtwanger escreveu, Der jüdische Krieg [A guerra judaica] .229 Na verdade, é o mesmo que ocor re com todas as palavras e expressões características da LTI, como "a Inglaterra deixou de ser uma ilha", "massificação", "desertificação'', "singularidade'', "subumanidade" etc. Tudo foi absorvido, mas ao mesmo tempo tudo é novo e foi incorpo rado à LTI para sempre, pois esses termos passaram pelos mais variados âmbitos de uso - o pessoal, o de um grupo ou o científico -, que os assimilaram e os transpuseram para a lin guagem geral, terminando envenenados pelo significado espe cífico que o nazismo lhes atribuiu. A guerra judaica! Diante dessas palavras sacudi a cabeça e enumerei cada um dos adversários da Alemanha. Mesmo assim, do ponto de vista do nazismo, aquela designação é exa ta, em um sentido muito mais amplo do que aquele que foi empregado. Pois a guerra judaica começou com a "tomada do poder" em 30 de janeiro de 1 933, e só em 1° de setembro de 1939230 experimentou uma Kriegserweiterung [escalada bélica] , para usar uma expressão da LTI. Resisti durante muito tempo a aceitar a ideia de que nós - justamente porque eu devia di zer "nós" é que considerava isso uma ilusão mesquinha e fútil - estávamos no centro do nazismo. Mas era exatamente as sim, e a origem dessa situação era evidente: basta ler com aten ção as páginas do capítulo 2 de Mein Kampf, ''Anos de apren dizado e de sofrimento em Viena", nas quais Hitler descreve sua "trajetória em direção ao antissemitismo': Mesmo se levar mos em conta que essas páginas contêm muita coisa truncada e fabricada, algo se impõe como verdadeiro: esse homem in culto, mentalmente desestruturado ao extremo, aprendeu os 229 Publicado na Inglaterra em 1 932 com o título Josephus. 2 30 Data da grande ofensiva alemã contra a Polônia, que levou a Inglater ra e a França a declararem guerra contra a Alemanha, dando início à Segunda Guerra Mundial. 271
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rudimentos da política pelas mãos dos antissemitas austríacos da época, Lueger e Schõnerer,23 1 que ele observa a partir da perspectiva da escória. Da maneira mais primitiva, identifica o judeu, pura e simplesmente - por toda a vida empregará a expressão "povo judeu" -, com a imagem do judeu masca te da Galícia; da maneira mais vil, propaga insultos contra a aparência externa do judeu que usa o kaftan 23 2 preto enseba do; de maneira primária, lança sobre esse personagem - con vertido alegoricamente em "povo judeu" de modo geral - o conjunto das imoralidades com as quais se sente escandaliza do, pois está amargurado com o insucesso de seu período vie nense. Em cada "tumor maligno da vida cultural" ele encontra um Jüdlein [judeuzinho] "como o verme no corpo putrefato': Para ele, a atividade judaica como um todo significa o que há de mais nefasto, "pior que a peste negra de outrora .. :: "Judeuzinho" e "peste negra'', expressões de escárnio e des prezo, mas também de horror e medo angustiado: essas duas formas estilísticas estarão sempre presentes quando Hitler se referir aos judeus em discursos e alocuções. Ele nunca supe rou a visão infantil, inicial e pueril em relação ao judaísmo. Nela reside grande parte de sua força, pois é a partir dela que ele se une à plebe mais embrutecida, que em plena era da in dustrialização nem sequer faz parte do proletariado fabril, a uma parte da população rural e sobretudo à massa pequeno burguesa apinhada nas grandes cidades. Para esses homens e mulheres, a pessoa que se veste de maneira diferente ou fala de outra forma não é uma outra pessoa, e sim um animal de 231 Karl Lueger ( 1 844- 1 9 1 0 ) , líder do Partido Social-cristão da Áustria, antissemita, prefeito de Viena de 1 897 a 1 9 1 0. Georg Ritter voo Schõ nerer ( 1 842- 1 92 1 ) político austríaco. Suas ideias racistas e antissemitas do Linzer Programm ( 1 88 1 ) exerceram forte influência sobre o Partido Social-cristão de Lueger e o movimento nacional-socialista de Hitler. 232 Casaco preto comprido usado pelos remanescentes dos judeus chas sídicos. ,
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outro curral, com o qual não pode haver acordo, que se deve odiar e enxotar a pontapés. Raça, como conceito científico ou pseudocientífico, só pas sou a existir na metade do século XVIII. Mas, como um senti mento instintivo de antagonismo que se opõe a tudo que é es tranho e desperta animosidade tribal, a consciência de raça está alojada no estágio primitivo do desenvolvimento huma no; só será superada quando a horda humana aprender a não mais ver na horda vizinha um bando de animais diferentes. Embora o antissemitismo de Hitler corresponda a um sen timento básico, fundado no primitivismo intelectual, o Führer possui em igual medida, desde o início e no mais alto grau, aquela astúcia calculista que não parece se enquadrar nas ca racterísticas da pessoa incapaz, à qual ele muitas vezes é tão bem associado. Ele sabe que só pode esperar lealdade daqueles que estão no mesmo estágio de primitivismo. O método mais simples e seguro para mantê-los nesse estágio é alimentar, legitimar e glorificar o ódio instintivo contra o judeu. Aqui ele toca na parte mais fraca da mentalidade popular, pois há quanto tempo o judeu emergiu da segregação, do curral es pecial, para ser acolhido na comunidade nacional? A emanci pação remonta ao início do século XIX, mas sua realização plena só ocorre, na Alemanha, a partir de 1 860. Entretanto, na Galícia austríaca uma quantidade significativa de judeus não renunciou a uma existência à parte, dando munição àqueles que os descrevem como um povo não europeu, a "raça asiá tica dos judeus". Justamente quando Hitler desenvolve suas primeiras considerações políticas, os próprios judeus envere dam pelo caminho que lhe facilita as coisas. É a época da as censão do sionismo, ainda pouco notado na Alemanha, mas já perceptível em Viena nos "anos de aprendizado e sofrimen to" de Hitler. Citando Mein Kampf de novo, o sionismo era "um grande movimento, muito abrangente". Apoiando o an tissemitismo na ideia de raça, dá-se a ele não somente um 273
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fundamento pseudocientífico, mas também uma base popu lar que o torna irremovível, pois o ser humano pode trocar sua indumentária, seus costumes, sua cultura e sua fé, mas não o seu sangue. O que se ganha ao se cultivar tamanho ódio contra o ju deu, um ódio irremediável que se entranha no instinto? O ga nho é incalculável. Tão incalculável que não considero o an tissemitismo dos nacional-socialistas uma aplicação particular de sua lei racial geral. Ao contrário: para mim, eles só adota ram e desenvolveram a doutrina racial para dar ao antissemi tismo uma consistência duradoura e consolidá-lo cientifi camente. O judeu é a pessoa mais importante no Estado de Hitler. Ele é o bode expiatório mais popular, o adversário mais notório, o denominador comum mais evidente, o nó que jun ta os mais diversos fatores. Se o Führer tivesse alcançado o almejado extermínio de todos os judeus, então ele precisaria inventar outros. Pois sem o judeu tenebroso, sem o diabo ju daico - "quem não conhece o judeu não conhece o diabo'� constava nos painéis do Stürmer 2 33 -, não existiria a ima gem luminosa do nórdico-germano. Aliás, não teria sido di fícil para Hitler inventar novos judeus. Autores nazistas de signavam os ingleses, repetidamente, como descendentes da tribo judaica desaparecida. A astúcia obsessiva de Hitler revela-se claramente nas pérfi das e desavergonhadas recomendações aos propagandistas do partido. A lei suprema é a seguinte em toda parte: "Não per mitas que teu ouvinte chegue a formular qualquer pensamen to crítico. Trata tudo de forma simplista! Se falares de diversos adversários, alguém poderia ter a ideia de que talvez seja tu que estejas errado. Reduza todos a um denominador, junte-os, crie uma afinidade entre eles! O judeu se presta muitíssimo 2 33 Pasquim alemão totalmente voltado contra os judeus. O titulo signi fica "O atacante': 2 74
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bem a uma operação desse tipo, muito clara e compatível com a mentalidade popular." É preciso destacar o singular que per sonifica e expõe. Mais uma vez, não se trata de uma invenção do Terceiro Reich. As canções populares, as baladas de temáti ca histórica e a linguagem popular da soldadesca da Primeira Guerra Mundial referem-se preferencialmente ao russo, ao bretão, ao francês. Mas, ao se referir ao judeu, a LTI estende o uso do artigo singular, que cria a alegoria, levando-o muito mais longe do que a linguagem do soldado de antigamente. Judeu: na linguagem nazista, esta palavra ocupa um espaço ainda maior que "fanático': Mais frequente do que o substanti vo "judeu" é o adjetivo "judaico': pois com o adjetivo conse gue-se criar um elo que reduz todos os adversários a um único inimigo: a visão de mundo judaico-marxista, a barbárie judai co-bolchevista, o sistema de exploração judaico-capitalista, o interesse dos grupos judaico-ingleses e judaico-americanos na destruição da Alemanha. A partir de 1 933, qualquer rivalidade, de onde quer que venha, passa a conduzir sempre a um único e mesmo inimigo, àquele "verme oculto" sobre o qual Hitler fala, que em momentos de exaltação também é chamado de "Judá" e em momentos patéticos é chamado de Alljuda [ Judá universal] . Qualquer coisa que se faça passa a ser, desde o pri meiro momento, uma medida defensiva contra essa guerra imposta, a guerra judaica. A partir de 1° de setembro de 1 939, "imposta" passa a ser um atributo constante da guerra à qual os alemães "foram forçados': E, no fim das contas, esse 1° de setembro não traz nada de novo: é a continuação dos ataques assassinos dos judeus contra a Alemanha de Hitler. Os nazis tas, amantes da paz, não fazem nada mais do que antes, só se defendem: hoje cedo, por exemplo, o primeiro informativo de guerra anunciou que "revidamos o fogo inimigo': Essa vontade que o sangue judeu tem de machucar não nasce de reflexões e interesses, nem mesmo de uma sede de poder, mas de um instinto inato, um "ódio profundo" da raça 275
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judaica contra a raça nórdico-germânica. O ódio profundo do judeu foi um estereótipo de uso corrente durante os doze anos. 234 Contra um ódio inato não existe outra proteção a não ser eliminar aquele que o sente: assim transita-se logicamente do antissemitismo racial para a necessidade de exterminar o judeu. Hitler falou só uma vez que desejava ausradieren [apa gar do mapa] as cidades inglesas. Foi uma manifestação isola da, que pode ser explicada, assim como todos os seus superla tivos, pela megalomania. Mas ausrotten [ exterminar] é um verbo empregado amiúde, faz parte do vocabulário geral da LTI na seção dedicada aos judeus, indica um objetivo ardente mente desejado. O antissemitismo racial, que na origem era um sentimen to compatível com o primitivismo de Hitler, é a questão cen tral do nazismo, aperfeiçoada e desenvolvida nos mínimos de talhes até constituir um sistema. No livro Kampf um Berlin [ Combate por Berlim] , de Goebbels, está escrito: "Podemos definir o judeu como a encarnação do complexo de inferiori dade reprimido. Por isso a forma mais profunda de atingi-lo é designá-lo por sua essência. Pode-se chamá-lo de canalha, patife, mentiroso, criminoso, homicida e assassino. No íntimo, ele pouco se sentirá atingido. Fixe-se nele o olhar durante al gum tempo, calmamente, e se diga então: 'O senhor é um ju deu!' No mesmo instante ele ficará inseguro, desconcertado, com a expressão de quem se sente culpado ..." Uma mentira, assim como uma piada, é tanto mais forte quanto mais verdade houver nela. A observação de Goebbels é verdadeira, com exceção da referência mentirosa à "expres são de quem se sente culpado". A pessoa interpelada não se sentiu culpada. Perdeu, isso sim, a segurança anterior, que se transformou numa sensação de desamparo, pois a constata ção de sua condição de judeu tirou-lhe o chão debaixo dos 2 34 O nazismo permaneceu doze anos no poder na Alemanha. 276
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pés, deixando-o sem qualquer possibilidade de esperar um entendimento ou uma luta de igual para igual. Tudo o que, na LTI, se aplica aos judeus visa a colocá-los completamente - e de maneira insuperável - fora da ger manidade. Ora são concebidos como Volk der Juden [ povo judeu] , ora como jüdische Rasse [ raça judaica] , ora indicados como Weltjuden [judeus do mundo] , ora como membros das internationale Judentum [ do judaísmo internacional] . Em to dos os casos, o que interessa é considerá-los não alemães. Não estão mais autorizados a exercer profissões como a de médico e a de advogado. Mas como os judeus também precisam de médicos e de advogados, que devem surgir de suas próprias fileiras (pois não podem manter qualquer contato com os alemães) , então esses médicos e advogados são denominados Krankenbehandler [tratadores de doentes] e Rechtskonsulenten [consultores jurídicos] . Em ambos os casos a intenção é não somente alijá-los como também ridicularizá-los. No caso do Konsulent, essa situação é mais nítida, pois no passado já se falava do Winkelkonsulent, 2 35 em contraposição ao advogado diplomado, reconhecido pelo Estado. No caso do Kranken behandler, o desprezo consiste em ressaltar a negativa do títu lo profissional oficial. As vezes não é fácil compreender por que uma expressão é carregada de desprezo. Por que a designação nazista Juden gottesdienst [serviço religioso dos judeus] será depreciativa, se não significa nada de diferente da expressão neutra jüdischer Gottesdienst [serviço religioso judaico] ? 2 3 6 Presumo que seja porque, de alguma maneira, lembra crônicas de viagens exó ticas, algum culto africano. E aqui é provável que eu esteja na pista do motivo verdadeiro: o "serviço religioso dos judeus" 2 35 Expressão pejorativa para um advogado pouco competente. 2 36 Em Judengottesdienst, a palavra Juden [judeus] aparece com mais des taque do que em jüdischer Gottesdienst. 277
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é consagrado ao deus dos judeus, um deus tribal, um ídolo, que não é a divindade única e universal à qual se dedica o "ser viço religioso judaico". Relações sexuais entre judeus e aria nos eram chamadas de Rassenschande [desonra racial] . Julius Streicher,237 o Gauleiter [chefe de província] da Francônia, de nominava a sinagoga de Nuremberg - que mandou destruir no que chamou de "hora solene" - a "desonra de Nurem berg': além de chamar as sinagogas em geral de Ri:iuberhohle [ cova de ladrões] . Nesse caso, não é preciso investigar por que a expressão sugere distanciamento e desprezo. Insultar o ju daísmo é trivial. É muito difícil que Hitler e Goebbels se refi ram aos judeus sem algum complemento: gerissen [ladino ] , listig [ manhoso] , betrügerisch [ fraudulento ] , feige [covarde] . E não faltam injúrias que a mentalidade popular remete ao as pecto físico: plattfüssig [que tem pés chatos] , krummnasig [que tem nariz aquilino] , wasserscheu [que tem medo de água] . Os mais cultos preferem usar "parasita" e "nômade': A pior ofensa que se pode fazer a um ariano é chamá-lo de Judenknecht [vas salo do judeu] . Se uma mulher ariana não quiser se separar do marido judeu, então ela é uma Judenhure [prostituta de ju deus] . Para se referir à camada intelectual usa-se krummnasi ger Intellektualismus [ intelectualismo do nariz torto ] . Será que podemos descobrir alguma mudança, algum pro gresso, alguma classificação no uso desses insultos ao longo de doze anos? Sim e não. A pobreza da LTI é grande, e as grosse rias que usa em janeiro de 1 945 são as mesmas que usava em janeiro de 1 933. Apesar de os elementos serem iguais, uma mudança fica terrivelmente evidente quando se analisa um discurso ou um artigo de jornal do início ao fim. Basta lembrar as expressões "judeuzinho" e "peste negra': usadas por Hitler em Mein Kampf em tom de desprezo e de medo. Um dos chavões repetidos e parafraseados com mais 2 37 Julius Streicher ( 1 885- 1 946) foi editor de Der Stürmer, o pasquim ale mão antissemita mais violento. 2 78
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frequência pelo Führer é a ameaça de fazer com que os judeus em breve já não tenham mais motivos para rir de algo (tal ameaça se transformou depois na afirmação, repetida com a mesma insistência, de que o riso já sumira dos lábios deles) . É verdade. Isso fo i confirmado por aquela amarga piada que diz que só em relação aos judeus Hitler cumpriu a palavra empenhada. Mas, pouco a pouco, até mesmo o Führer perde a vontade de rir, bem como toda a LTI. Ou melhor, ela se defor ma em um riso convulsivo, se transforma em máscara atrás da qual o medo da morte e o desespero, finalmente, procuram se esconder em vão. O diminutivo "judeuzinho" deixou de ser usado nos últimos anos de guerra, mas percebe-se o horror da "peste negra" por trás de todas as expressões de desprew e de arrogância fingida, por trás de todas as imposturas. Talvez a expressão mais contundente dessa situação seja o artigo que Goebbels publicou no Reich em 2 1 de janeiro de 1 945 sob o título Die Urheber des Unglücks der Welt [ Respon sáveis pela infelicidade no mundo] . Os russos, que já se en contravam diante de Breslau,238 e os aliados, que estavam na fronteira oeste, são chamados de Soldner dieser Weltversch worung einer parasitiiren Rasse [ mercenários desse complô mundial de uma raça parasitária] . "Por aversão à nossa cultu ra, que [os judeus] consideram muito superior à sua mentali dade de nômades'', eles enviam milhões de pessoas à morte, por aversão à nossa economia e às nossas instituições sociais, "porque estas já não deixam liberdade de movimento para suas atividades parasitárias. [ . . . ] Onde quer que você s po nham a mão, sempre estarão tocando em judeus! " Mas o sor riso deles já desapareceu completamente! Assim, dessa vez, "o poder judaico vai ruir". De qualquer forma, o poder ju daico e judeus, não mais o "judeuzinho". 238
As tropas russas ocuparam o campo de Auschwitz em 27 de janeiro de 1 945. 279
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Caberia perguntar se essa insistência constante na infâ mia e na inferioridade dos judeus, essa hostilidade contra eles, não tenderia a provocar um efeito atenuante e contraditório. A pergunta poderia logo ser ampliada para incluir o valor e a durabilidade de toda a propaganda de Goebbels. Poderia ge rar outra dúvida: um questionamento ao pensamento nazista no campo da psicologia de massas. Mein Kampf, de Hitler, insiste em afirmar a necessidade de manter a massa na ig norância e explica claramente como intimidá-la contra qual quer reflexão. Um dos principais recursos para isso é martelar sempre, repetidamente, as mesmas teorias simplistas que não podem ser rebatidas. Quantas partes da alma do intelectual (sempre isolado) também pertencem às massas que o cercam! Lembro-me agora da pequena farmacêutica da Prússia Oriental, com sobrenome lituano, que conheci nos três úl timos meses de guerra. Acabara de passar em um exame di fícil na faculdade. Tinha cultura geral. Opunha-se veemen temente à guerra e não sentia simpatia pelos nazistas. Sabia que o fim deles estava próximo e desejava isso ardentemente. Quando estava de plantão noturno, conversávamos longa mente. Ela percebia qual era a nossa posição e pouco a pouco ousava manifestar a sua. Isso ocorreu durante a nossa fuga da Gestapo, com nomes falsos. Nosso amigo de Falkenstein nos ofereceu refúgio e tranquilidade por algum tempo. Dormía mos no quartinho do fundo de sua farmácia, sob um quadro de Hitler... - Nunca suportei sua arrogância em relação aos outros povos - dizia a pequena Stulgies. - Minha avó é lituana. Por que eu ou ela devemos valer menos do que qualquer mulher de sangue puramente alemão? - Sim, toda a sua doutrina se baseia na pureza do sangue, no privilégio germânico, no antissemitismo ... Ela me interrompeu: 280
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- Com relação aos judeus, podem até estar certos, pois, sem dúvida, é outra coisa ... - A senhorita conhece algum pessoalmente? - Não, eu sempre evitei a companhia deles. São terríveis. A gente lê e ouve tanta coisa sobre eles ... Procurei uma resposta que pudesse conciliar prudência e esclarecimento. Essa jovem deveria ter no máximo treze anos quando o nazismo começou. Que poderia saber? Que pontos de referência poderia ter? Nesse ínterim tocou, como sempre, o alerta máximo. Era mais seguro não descer ao porão, onde havia líquido infla mável. Encolhemo-nos sob os pilares sólidos da escada. O pe rigo, para nós, não era excessivo, pois o objetivo dos pilotos devia ser Plauen, um lugar mais importante. Mesmo assim, passamos por um longo e terrível minuto que se estendeu de maneira cruel. Esquadrilhas poderosas, em formação cer rada, sobrevoavam baixo a intervalos curtos, de modo que sentíamos tremer e chacoalhar tudo à nossa volta. Bombas podiam cair a qualquer instante. Eu via diante de mim as ima gens da noite de Dresden.239 Só conseguia pensar em uma fra se: as asas da morte rugem, não é força de expressão, as asas da morte rugem de verdade. A mocinha, apertando com força o pilar, totalmente concentrada, respirava alto e com dificul dade, soltando um gemido reprimido a duras penas. Finalmente os aviões foram embora. Pudemos nos levan tar e sair de baixo da escada escura e fria. Retornar à farmá cia, quente e clara, era retornar à vida. - Agora vamos dormir - falei. - Minha experiência diz que não haverá outro alarme antes de amanhã cedo. Sem mais, a mocinha, em geral tão afável, respondeu: - Esta é a guerra judaica. 2 39 Referência ao grande bombardeio de Dresden pela aviação aliada en tre 13 e 15 de fevereiro de 1 945. Klemperer estava na cidade. 281
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OS ÓCU LOS J U DEUS
Em geral era minha mulher quem me trazia o boletim do Exército sobre a guerra, quando voltava do centro da cidade. Eu não me atrevia a ficar parado diante de nenhum cartaz in formativo ou alto-falante. Na fábrica, nós, judeus, tínhamos de nos contentar com o relatório da véspera. Perguntar a um ariano sobre os últimos telegramas era considerado "falar de política" e poderia nos levar diretamente para um campo de concentração. - E Stalingrado, enfim, já acabou? - Pois sim! Depois de uma luta heroica, conquistamos um apartamento de três cômodos com banheiro. Apesar de ter sido defendido, sofreu sete contra-ataques. - Por que tanta ironia? - Porque eles nunca vão conseguir. Estão se esvaindo em sangue. - Ora, você enxerga tudo com óculos judeus. - E agora você também começa a usar a linguagem dos judeus! Senti vergonha. Eu, como filólogo, sempre atento para captar as particularidades linguísticas de cada situação e de cada grupo, tentando usar um linguajar neutro, isento de in fluências externas, nesse caso deixei-me influenciar pelo meio. (É assim que se corrompe o ouvido, a faculdade de registrar. ) Mas eu podia ser desculpado. Um grupo que viva sob a mes ma pressão, em especial uma pressão hostil, sempre desenvol ve alguma peculiaridade linguística, da qual o indivíduo não consegue escapar. Vínhamos de regiões, classes sociais e pro fissões diferentes. Nenhum de nós era jovem e maleável. Al guns eram avôs. Da mesma forma que há trinta anos, quando 283
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eu era professor na Universidade de Nápoles e morávamos em um hotel à beira-mar, sempre lotado de turistas, eu alimenta ra a ideia de escrever uma peça chamada "Hotel-Labruyere':24º agora, com mais razão, eu pensava em uma série de "tipos" judaicos. Conosco viviam dois médicos, um conselheiro do Tribunal Regional, três advogados, um pintor, um professor do ensino secundário, uma dezena de comerciantes, uma de zena de industriais, vários técnicos e engenheiros e - rari dade entre judeus - um trabalhador sem qualificação, se mianalfabeto. Havia partidários da assimilação e sionistas. Havia pessoas cujos antepassados viviam na Alemanha ha via séculos e que não conseguiam se desvincular da identi dade alemã. Outros mal tinham chegado da Polônia e ainda usavam o dialeto materno, mais próximo do yiddisch que do alemão. Éramos os portadores da estrela amarela em Dres den, operários de fábrica e varredores de rua, moradores das Judenhauser, além de os prisioneiros da Gestapo. Como na prisão, como no Exército, logo se estabelecia uma nova comu nidade que encobria as individualidades, como se uma mão de verniz tivesse sido aplicada sobre as comunidades anterio res, criando novos hábitos linguísticos. Na véspera da primeira notícia, ainda incerta, da queda de Mussolini, à noite, Waldmann bateu na porta de Stühler. (Di vidíamos com os Stühler e com os Cohn a cozinha, o saguão de entrada e o banheiro - era difícil haver algum segredo en tre nós. ) No "passado", Waldmann fora um bem-sucedido co merciante de peles. Agora se tornara porteiro da Judenhaus e também tinha de ajudar a transportar para o cemitério os ca dáveres dos moradores das Judenhauser e da prisão. 240 J. de Labruyere ( 1 645- 1 696), escritor moralista francês que descreveu usos e costumes da sua época com muita ironia. Os chamados "tipos Labruyere" não descrevem propriamente personagens, mas qualidades (dissimulação, falsidade, simplicidade, rusticidade etc.), sempre em tom satírico. 284
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- Vossas Senhorias permitem que eu entre? - perguntou. - Desde quando você é tão cerimonioso? - veio a voz de dentro. Waldmann respondeu: - O final está próximo. Preciso treinar para recuperar o tom com que tratava meus clientes. Recomeço aqui com Vos sas Senhorias. Ele falava sério, não estava brincando; a esperança fazia com que desejasse recuperar, no uso da língua, o nível social dos outros tempos. - Du hast wieder mal die jüdische Brille auf der Nase [Você pôs os óculos de judeu de novo ] - disse Stühler do umbral da porta. (Era um homem melancólico, que passara por mui tas decepções na vida.) - Você vai ver, ele resistiu a Rõhm241 e a Stalingrado, não será por causa de Mussolini que haverá de cair. A linha divisória entre du [você] e Sie [ senhor] era bem incerta entre nós. Uns, especialmente os que tinham partici pado da Primeira Guerra Mundial, empregavam você, expres são que usavam no tempo do Exército; os demais preferiam senhor, como se assim conseguissem preservar a condição de outrora. A ambiguidade afetiva do termo "você" ficou clara para mim naqueles anos. Quando um operário ariano me chamava de você com naturalidade, mesmo sem qualquer ex pressão adicional de consolo, eu entendia como uma palavra de ânimo, um reconhecimento da nossa igualdade humana. Porém, se viesse da Gestapo, que nos chamava de "você" por princípio, então me ofendia como se fosse um tapa na cara. Por outro lado, alegrava-me muito o "você" que vinha dos operários na fábrica (onde, apesar das ordens da Gestapo, não 24 1 Ernst Rõhm ( 1 887- 1 934) foi um dos fundadores e comandante das SA, braço armado do Partido Nazista. Muito rejeitado, principalmen te por oficiais do Exército, acabou sendo preso por Hitler e assassina do por membros das SS. 285
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era possível manter os judeus completamente isolados) , não só por ser um protesto contra a barreira imposta pela estrela, mas também porque eu o reconhecia como um sinal de que desaparecera ou, pelo menos, diminuíra a desconfiança em relação ao burguês e catedrático. A d iferença na forma de falar entre os diversos estratos so ciais não é apenas estética. A funesta desconfiança que existe entre as pessoas cultas e os proletários repousa, em grande parte, nos hábitos linguísticos diferentes. Quantas vezes, na queles anos, me perguntei como devia me comportar... O tra balhador adora criar frases com expressões suculentas, que re metem à digestão. Se eu fizer o mesmo, ele perceberá que minha fala não vem do coração e vai achá-la hipócrita. Entre tanto, se eu falar de acordo com a minha formação, como aprendi em casa e na escola, ele vai achar que sou ein feiner Pinsel [ um pincel habilidoso] . 242 Mas as mudanças de linguagem no interior do nosso gru po não eram somente uma acomodação parcial à rudeza da linguagem do trabalhador. Adotamos expressões relacionadas com a estrutura social e os hábitos. Quando alguém faltava ao trabalho não se perguntava se estava doente, e sim se obti vera autorização do médico para krank geschrieben werden [ faltar por estar doente] , pois somente o registro do médico lhe dava o direito de faltar por doença. Antes, quando alguém perguntava quanto ganhávamos, a resposta era "ganho tanto por mês': ou "meu salário é de tanto por ano"; agora dizíamos "levo 30 marcos por semana para casa". Sobre quem recebesse mais dizia-se "o salário dele vem em eine dickere Lohntüte" [ um envelope mais recheado] . Quando dizíamos que alguém fazia um trabalho pesado a palavra tinha um sentido exclusi vamente físico: carregava caixas ou empurrava carretas ... 242
Expressão idiomática que pode ser traduzida como arrogante o u "me tido a bacana". 286
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Ao lado dessas expressões próprias da linguagem do tra balhador circulavam outras, em parte provenientes do humor negro, em parte um subterfúgio para disfarçar a nossa situa ção. Nem sempre dava para saber com segurança se o signifi cado dessas expressões era puramente local ou, para usar um termo filológico, se tinham significado germânico comum. No início, quando as palavras prisão e Lager 243 ainda não eram sinônimos de morte, em vez de preso dizia-se "viajou". Ainda não se estava no Konzentrationslager, tampouco em sua forma simplificada e mais genérica KZ, mas sim no Konzertlager [campo de concerto] . De todos os verbos, o que possuía sig nificado mais trágico era melden [ apresentar-se] . Sich melden significava "ter de se apresentar à Gestapo" depois de uma convocação. Isso estava ligado a maus-tratos, e cada vez mais queria dizer "não voltar para casa': As principais causas para a Gestapo exigir o comparecimento eram o uso da estrela ama rela de forma pouco visível e a divulgação de notícias falsas sobre Greuelnachrichten [ atrocidades] . Para isso criou-se um verbo simples: greueln [ cometer atrocidades] . Se alguém tives se ouvido "notícias de uma rádio estrangeira': o que ocorria diariamente, então se dizia entre nós que as notícias vinham de KOtzschenbroda. Em nossa linguagem, KOtzschenbroda que ria dizer Londres, Moscou, Beromünster e Rádio da Liberda de. Quando havia dúvidas sobre uma notícia, dizia-se que ela viera da "rádio peão" ou da Jüdische Miirchenagentur [Agên cia Judaica da Carochinha] . Quando se falava do funcionário gordo da Gestapo encarregado de cuidar das questões judai cas - não, dos Belange [ interesses] judeus -, então ele era sempre chamado de Judenpabst [papa dos judeus] , outra das palavras mais sujas de Dresden. 243 Forma reduzida de Konzentrationslager ou "campo de concentração", que de maneira abreviada era chamado de KZ, que se pronuncia katcét. 287
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Pouco a pouco uma terceira característica se somou à adap tação à linguagem dos operários e às expressões surgidas na nova situação. Como o número de judeus decrescia - pois, isolados ou em grupos, os jovens desapareciam rumo à Polô nia e à Lituânia e os idosos iam para Theresienstadt -, um número reduzido de casas foi suficiente para abrigar os judeus remanescentes em Dresden. Esse decréscimo ganhou uma nova expressão na linguagem dos judeus. Não era mais neces sário dar o endereço completo de cada um, bastava dar o nú mero das poucas casas situadas em diversos bairros da cidade: esse mora na 92, aquele na 56. Em seguida, os poucos judeus remanescentes foram diziemiert [dizimados] , muito mais do que dizimados: a maioria teve de abandonar as Judenhiiuser, escorraçados para as barracas do campo de concentração de Hellerberg, de onde, poucas semanas depois, foram enviados aos verdadeiros campos de extermínio. Sobraram apenas os que tinham casamentos mistos, ou seja, os que estavam muito enraizados na Alemanha, desvinculados da comunidade judai ca. Judeus que não preservavam qualquer tradição judaica eram dissidentes ou "cristãos não arianos': termo que mais tar de foi desautorizado e desapareceu antes de a guerra acabar. Eles conheciam pouco ou nada dos costumes e ritos judaicos, e menos ainda da língua hebraica. A terceira característica de seu linguajar - difícil de estabelecer com segurança, mas nem por isso menos presente - era marcante: com um sentimen talismo adocicado pelo prazer de contar velhas histórias, gos tavam de relembrar os tempos de mocidade e refrescar a me mória, uns dos outros, com recordações esquecidas. Era uma fuga do cotidiano, um momento de alívio. Estamos todos juntos no intervalo do cafezinho da manhã. Um dos colegas conta que em 1 889 entrara como aprendiz na empresa de cereais Liebmannsohn, em Ratibor, e que o ale mão falado por seu chefe era muito esquisito. Cita expressões, 288
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e alguns ouvintes ficam radiantes. Eles se recordam, outros pedem explicações sobre isso e aquilo. - Quando fui aprendiz em Krotoschin - começa a dizer Wallerstein. Antes que conseguisse concluir, o Obmann [ capataz] Grü nebaurn lhe rouba a palavra: - Krotoschin! Vocês conhecem a história do Schnorrer [pedinte] de Krotoschin? Grünebaurn é o melhor contador de piadas e casos de ju deu. Seu repertório é inesgotável. É impagável, faz o dia pare cer mais curto. Com ele, as piores depressões vão embora. Seu canto do cisne foi a história do imigrante que não pôde ser admitido no cargo de auxiliar de sinagoga porque não conhe cia o alfabeto alemão, mas conseguiu tornar-se conselheiro comercial em Berlim: no dia seguinte não compareceu ao tra balho. Pouco depois soubemos que ele ist geholt worden [ fora buscado] pela Gestapo. Do ponto de vista filológico há ligeiras nuanças entre holen [buscar] e sich melden [ apresentar-se] ; holen não só é usado há mais tempo corno também é mais abrangente. Na LTI, sich melden, que é reflexivo, só ganhava um sentido secreto quan do se referia a judeus e à Gestapo, ao passo que geholt werden [ser buscado ] abarcava judeus, cristãos e até mesmo arianos (esses, aliás, maciçamente no verão de 1939 ) . Pois holen, na LTI, queria dizer "ser levado para a prisão ou para o quartel". Já que a partir de 1 ° de setembro passamos a ser vítimas ino centes da guerra, toda a mobilização anterior foi um geholt werden "na calada da noite, sem que os outros ficassem saben do': Na LTI, o parentesco entre holen e sich melden vem de que esses dois procedimentos cruéis e cheios de consequências se diluem em um cotidiano neutro; tornados banais, enfraque cem a sensibilidade do espírito, corno se fossem fatos corri queiros; sua gravidade sombria se perde. 289
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Grünebaum "foi buscado". Três meses depois, sua urna fu nerária chegou de Auschwitz e foi enterrada no cemitério ju daico. No último período da guerra, quando se generalizou o assassinato por inalação de gás, a cortesia do envio das urnas cessou. Durante algum tempo, porém, por assim dizer, par ticipar dos enterros foi nosso dever dominical e quase tam bém um passeio. Sempre chegavam duas ou três urnas juntas. Enquanto honrávamos os mortos tínhamos a oportunidade de rever os companheiros de infortúnio que viviam em ou tras Judenhiiuser e trabalhavam em outras fábricas. Há muito tempo não havia mais rabino, mas o "judeu com estrela"244 encarregado de administrar o cemitério lia um necrológio preparado com frases feitas. Na homenagem, era como se o defunto tivesse morrido de morte natural. O cântico fúnebre judaico245 era acompanhado pelos poucos que ainda sabiam pronunciá-lo. A maioria não sabia. Quando alguém pergun tou o significado do texto ao oficiante, ele respondeu: - O sentido pode bem ser esse ... - O senhor não saberia traduzir literalmente? - perguntei, interrompendo-o. - Não, lembro-me somente da melodia. Já faz tanto tem po que aprendi, estava afastado de tudo isso ... O cortejo que acompanhou Grünsbaum foi especialmente numeroso. Enquanto seguíamos a urna, do átrio até o lugar da sepultura, a pessoa ao meu lado sussurrou: - Como era mesmo o nome do cargo que aquele conse lheiro comercial não conseguiu em Krotoschin? Se não me engano, era Schammes, 246 não é? Jamais esquecerei essa histó ria do coitado do Grünsbaum. 244 Não havia judeu sem estrela. Klemperer menciona a estrela para en fatizar. 245 Chamado kadish. 246 Responsável pela sinagoga. 290
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Enquanto acompanhava o féretro, ele repetia na cadência dos passos: " Schammes em Krotoschin, Schammes em Kro toschin:' A doutrina racial nazista forjou o conceito de Aufnorden [tornar mais nórdico] . 247 Não sei julgar se ela foi bem-sucedi da, mas sei que aconteceu o inverso: ela fez os judeus reassu mirem a sua Aufjudung [ condição judaica] - até mesmo aqueles que procuravam evitá-la. Não conseguíamos mais deixar de encarar tudo pela óptica judaica, ou seja, com die jüdische Brille [os óculos de judeu] . Qualquer acontecimento, comunicado ou livro era visto ou lido com "óculos de judeu': que aliás não eram sempre iguais. No início, e ainda durante um bom tempo, eles revestiam as coisas com uma rósea espe rança. Es ist nicht halb so schlimm! [Não é tão grave assim! ] Quantas vezes ouvi essa fórmula consoladora, quando, deso lado, levava a sério as notícias de vitórias e os números de pri sioneiros capturados, conforme os comunicados do Exército! Mas depois, quando a situação dos nazistas se agravou, quan do eles não conseguiam mais ocultar a derrota, quando os aliados se aproximaram das fronteiras alemãs e depois as ul trapassaram, quando as cidades foram sendo destruídas pelas bombas inimigas, uma depois da outra - somente Dresden parecia tabu -, então os judeus trocaram de óculos. A queda de Mussolini foi o último acontecimento que eles enxergaram com os óculos antigos. Como, apesar de tudo, a guerra conti nuava, perderam a confiança e foram para o extremo oposto. Deixaram de acreditar no fim próximo da guerra. Atribuíam ao Führer poderes mágicos que nem seus seguidores, agora cheios de dúvidas, conseguiam mais lhe atribuir. 2 47 Verbo composto da partícula "auf " e do substantivo "Norden': o nor te, recupera uma realidade política racial e demográfica. Trata-se de uma série de leis e mandados visando a restituir ao povo alemão as características nórdicas que, supostamente, existiam originariamente. 291
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Estávamos sentados no porão da Judenhaus, onde havia um lugar especial para os arianos. Foi um pouco antes da ca tástrofe de Dresden. Tremendo de frio, mais entediados que temerosos, aguardávamos o fim do alarme aéreo máximo. Sa bíamos por experiência que não aconteceria nada conosco. O ataque aéreo devia visar a Berlim, já tão martirizada. Ha via muito não nos sentíamos tão distantes de uma depressão. À tarde, minha mulher ouvira a rádio de Londres na casa de amigos arianos. Tomara conhecimento do último discurso de Thomas Mann, um belo discurso humano que expressava certeza na vitória. Não somos afeitos a sermões, que em geral nos irritam, mas esse nos trouxe um novo alento. Eu desejava compartilhar um pouco do meu bom humor com os companheiros de infortúnio. Aproximava-me de um grupo, de outro. - Vocês ouviram o comunicado de hoje? Estão a par do mais recente discurso de Thomas Mann? De todos os lados recebi recusas. Uns temiam as conversas proibidas: - Guarde suas ideias para si, não quero ir para o campo de concentração. Outros, como Steinitz, diziam amargurados: - Mesmo que os russos estivessem diante de Berlim, a guerra ainda duraria anos; tudo o mais não passa de otimis mo histérico! Durante tantos anos dividimos as pessoas em otimistas e pessimistas, como se pertencessem a duas raças. Quando se perguntava "Que tipo de pessoa ele é?", a resposta invariavel mente era "É um otimista" ou "É um pessimista". Vindo de bocas judias, isso era o mesmo que dizer "Hitler está para cair" ou, ao contrário, "Hitler está firme". Agora só havia pes simistas. A sra. Steinitz superava o marido: - Mesmo que ocupem Berlim, isso não há de mudar nada. A guerra prosseguirá na Baviera do Norte pelo menos 292
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por mais três anos. E para nós, dá na mesma se ela vai durar três ou seis anos. Não sobreviveremos. Zerbrechen Sie endlich Ihre alte jüdische Brille [Veja se você quebra esses seus óculos velhos de judeu de uma vez por todas] . Três meses depois Hitler estava morto e a guerra acabara. Nem o casal Steinitz nem os outros que naquela noite estavam sentados conosco no porão dos judeus viram isso. Haviam sido soterrados sob os escombros da cidade. 248
248 Klemperer volta a se referir ao bombardeio aliado que destruiu Dres den em 1 3 de fevereiro de 1 945, deixando dezenas de milhares de vítimas. 293
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A LI NGUAGEM DO VENCEDOR
A cada vez era como se eu estivesse levando de novo um tapa na cara. Era pior do que ter de suportar o tratamento pejora tivo e os xingamentos da Gestapo. Nem meus protestos nem minhas advertências me ajudaram a me conformar, nem qual quer um dos "tipos Labruyere" que eu imaginara em fantasia conseguiram me livrar dessa humilhação. Pobre Elsa Glauber, acostumada ao raciocínio lógico, você foi uma boa germanista apaixonada pelo seu objeto de estu do, uma verdadeira assistente do professor: ajudava nos semi nários e orientava os alunos. Quando casou e teve filhos, con tinuou filóloga, purista da língua e professora - por vezes até em demasia, a ponto de os maledicentes a chamarem pelas costas de Herr Geheimrat [ senhor conselheiro privado ] .249 Durante muito tempo você me ajudou com o esmero de sua maravilhosa biblioteca clássica, conservada de maneira tão curiosa! Os judeus só eram autorizados a ter em casa livros judai cos, se é que se lhes permitia ter algum. Mas Herr Geheimrat sentia um forte apego aos seus clássicos, publicados em edi ções belíssimas. Afastada do ensino universitário havia uma dúzia de anos, era esposa de um comerciante culto e bem sucedido que a Gestapo havia designado para o doloroso car go de presidente da Congregação Israelita, o que fazia dele o intermediário entre algozes e vítimas, ao mesmo tempo res ponsável e desamparado, atormentado por ambos os lados. A essa altura, os filhos de Elsa já começavam a ler esses livros 249 Título dado a Goethe, o mais importante que podia ser conferido a um cidadão. 295
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preciosos, sob sua orientação. Como ela conseguira salvar esse tesouro das mãos da Gestapo, que vasculhava tudo sem pa rar? Ora, de uma maneira simples e honesta! Se o editor de um volume se chamava Richard M. Meyer, Elsa conseguia es ticar o M. abreviado para torná-lo um Moisés; ou conseguia convencer os policiais de que o germanista Pniower tinha ori gem judaica; ou então os esclarecia de que o verdadeiro nome do famoso Gundolf era na realidade Gundelfinger, judaico. Entre os germanistas há tantos escritores que não são arianos que, graças a eles, as obras de Goethe, de Schiller e de muitos outros puderam transformar-se em "livros judaicos". Além disso, Elsa conseguiu preservar a ordem e o espaço de sua biblioteca porque o palacete do presidente "foi decla rado" uma Judenhaus. A família teve de se restringir a usar poucos aposentos, mas continuou entre as quatro paredes. Pude usufruir fartamente dos clássicos "judeus" e conversar prazerosamente com Elsa sobre questões importantes do nos so trabalho. Nessas conversas, é claro, vinham à tona questões referen tes à nossa desesperadora situação. Eu não saberia dizer se Elsa era mais judia ou mais patriota. Conforme a pressão do momento, havia uma disputa entre ambas as formas de pen sar e sentir. Frases patéticas se encaixavam facilmente no meio de nossas sóbrias conversas cotidianas. Ela contava amiúde como se empenhava para que os filhos pudessem crescer sob a autêntica fé judaica, mas assimilando também, apesar das humilhações do momento, a fé na Alemanha - ela sempre dizia das ewige Deutschland [a Alemanha eterna] . - Eles têm de aprender a pensar como eu, têm de ler Goethe como se fosse a Bíblia, têm de ser Fanatische Deutsche [ alemães fanáticos] . Lá vem de novo o tapa na cara. - O que você diz que seus filhos têm de ser, Frau Elsa? 296
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- Alemães fanáticos, como eu. Somente a germanidade fanática poderá purificar a nossa pátria da não germanidade atual. - Você não percebe o que está dizendo? Não se dá conta de que fanático e alemão, quero dizer o alemão a que você se refere, não têm nada a ver uma coisa com a outra, que, que . . . Respondi amargurado, d e maneira desordenada e confusa, com lacunas, o que reforçava ainda mais a minha ênfase. Dis se-lhe o mesmo que escrevi no capítulo "Fanático". Terminei assim: - Você não percebe que está usando a linguagem dos nos sos arqui-inimigos ... e assim está sendo vencida, traindo a sua própria germanidade? Se não você, que é tão instruída, que zela pela Alemanha eterna, imaculada, quem poderá entender e evitar a linguagem do vencedor?... É compreensível que, em nosso confinamento forçado, desenvolvamos um modo pró prio de expressão, sejamos obrigados a empregar termos que se moldam ao repertório da burocracia nazista e nos dizem respeito, combinando-os aqui e ali com os hebraísmos sono ros do yiddish. Mas essa submissão à linguagem do vencedor, justamente desse vencedor... Minha veemência deixou Elsa consternada. Ela chegou a perder o ar de superioridade da Herr Geheimrat. Admitiu o erro e prometeu corrigir-se. Em outra ocasião, quando en fatizou de novo o "amor fanático" pela obra lphigenie, de Goethe, emendou rapidamente em tom conciliatório: - É mesmo, eu não devo dizer isso. É que acabei me acos tumando a falar assim depois da Umbruch [ revolução, trans formação ] . 250 - Depois da Umbruch? 2 50 Aqui, no sentido de revolver, escavar a terra para afofá-la. Muitos ale mães se referiam à ascensão do nazismo como Revolução Alemã. 297
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- O senhor recrimina até mesmo essa palavra? Nesse caso, está redondamente enganado. É um termo que alcança uma dimensão poética. É como se aspirássemos a doce fragrância da relva sendo revolvida. Estou certa de que não foi criado pelo pessoal de Hitler. Deve ser do círculo de Stefan George. - Com certeza. Mas os nazistas se apropriaram dessa palavra porque ela combina bem com a expressão Blut und Boden [ sangue e terra] , usada para Verherrlichung der Scholle [ reverenciar o torrão natal ] , para reforçar o Bodensti:indigkeit [vínculo com a terra ] , o habitante nativo com o qual o nazis mo se identificou. Contaminaram-na de tal forma com suas mãos infectadas que nenhuma pessoa levemente sensata há de querer empregá-la nos próximos cinquenta anos ... Ela me interrompeu e passou ao contra-ataque: eu era um purista, um pedante, um intransigente ... um fanático. Pobre Elsa Glauber. Não tivemos mais notícias dela e de sua família. A última informação que chegou foi a seguinte: "Foram levados embora de Theresienstadt."251 Eu gostaria de me lembrar dela com todo o seu brilho. Pois, apesar do precio sismo estético e da postura independente de Herr Geheimrat, foi uma pessoa que merece muito respeito, de cuja erudição e coragem profissional sou um grande devedor. Entretanto, esse obituário se torna uma acusação. Mas acusar a filóloga absolveria parcialmente os demais, aqueles que, estando menos envolvidos com a questão da lin guagem, cometeram o mesmo pecado. Todos pecaram, usan do alguma palavra anotada no caderno de culpas da minha memória. Por exemplo, havia o jovem K., comerciante, sem interesse literário, plenamente convencido da sua germanidade, bati zado ainda bebê como protestante, sem qualquer vínculo com 251 Theresienstadt era um campo de concentração. Depois da guerra, Klemperer soube que a familia foi assassinada em Auschwitz. 298
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a religião judaica, sem o menor pendor para aspirações sio nistas. Mesmo assim, adotou a expressão das Volk der Juden [ a nação judaica] , que empregava repetidamente, tal como era usada pelo hitlerismo, como se existisse essa nação no lu gar de alemães, franceses etc., e como se o Weltjudenschaft [judaísmo mundial] - fórmula nazista que ele repetia como um papagaio - designasse intencionalmente essa unidade nacional. Havia outra pessoa que era o oposto exato de K., quer no sentido físico, quer no psicológico. Era S., nascido na Rússia, com traços de quem vem da Mongólia, inimigo implacável da Alemanha e de todos os alemães, já que, para ele, cada alemão era um nazista convicto. Era um nacionalista sionista da fac ção mais radical. Quando reivindicava os direitos desse nacio nalismo judaico, falava de seus volkische Belange [ interesses étnicos] . 252 Havia também o dentista, não, o Zahnbehandler [tratador de dentes] F. Também era um homem muito loquaz diante dos pacientes indefesos - o que se pode responder com a boca escancarada? Como S., era inimigo mortal de todos os alemães e de tudo que fosse alemão, sem exceção, mas não tinha ligação nem com o sionismo nem com o judaísmo em geral. Era dominado por uma anglofilia desvairada, que se devia a uma estada na Inglaterra em circunstâncias felizes de sua vida particular. Qualquer instrumento, qualquer peça de roupa, qualquer livro, qualquer opinião tinha de vir da Inglaterra, pois do contrário carecia de qualidade. Rejeitava firmemente tudo que procedesse da Alemanha, mesmo da Alemanha de outros tempos. Os alemães eram charakterlich 2 5 2 Cf. Dicionário Porto: étnico, nacionalista, racista. Volkisch faz parte do linguajar nazista, é LTI por excelência. Muitas palavras que Klemperer assinala como integrantes da LTI já perderam essa conotação, como Umbruch. Volkisch, certamente, não. Talvez nunca perca. 299
LTI
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minderwertig [ caráter inferior] . Ele não percebia que, ao em pregar esse termo predileto, ajudava a difundir um neologis mo nazista. (Nem mesmo os adeptos da "nova era"253 parecem perceber isso, pois também empregam o termo charakterlich.) A pedagogia nazista desejava, antes de tudo, que seus alu nos fossem nazistas convictos, com uma forma de pensar ab solutamente correta, conforme a óptica nazista. Essa era a ava liação principal, mais importante do que talento, habilidade e conhecimento. Parece-me que a difusão desse advérbio novo veio da linguagem escolar, da necessidade de empregá-lo nos certificados e nos diplomas, onde o conceito charakterlich gut [ de bom caráter] significava "nazista irrepreensível". A expres são abria as portas para qualquer carreira. Nosso "tratador de dentes" sentia a mais profunda anti patia do nosso "tratador de doentes': ou seja, o médico, con tra quem desferia sua loquacidade sem hesitar. No auge da carreira, durante a Primeira Guerra Mundial, o "tratador de doentes" havia sido médico do estado-maior. Usava normal mente a linguagem dos oficiais de 1 9 1 4, sem perceber que en riquecia a terminologia que Goebbels difundia. Referia-se a quantos Engpasse [ impasses] tinha superado e quantas Krisen gemeistert [ crises tinha administrado] . Um colega do nosso médico, por motivos totalmente di versos e de maneira muito esquisita, também fazia uso da LTI. Antes de 1 933 o dr. P. só percebia que era alemão e médico. Não desperdiçara nenhum momento da vida com problemas de religião e de raça. Considerava o nazismo uma aberração, uma enfermidade que haveria de desaparecer sem grandes tragédias. Agora estava impedido de exercer a profissão, era obrigado a trabalhar na fábrica como capataz em um grupo ao qual eu mesmo pertenci durante um bom tempo. 2 53 Klemperer refere-se ao período posterior ao nazismo. 300
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Sua amargura se manifestava de forma estranha: apro priou-se de todas as expressões hostis dos nazistas contra os judeus, as de Hitler em particular, e as usava com tanta facili dade que não se percebia mais se era um escárnio ou uma for ma de autodepreciação. O hábito se tornara tão forte que ele só se dirigia a nós usando a palavra "judeu" antes do nome. - Judeu Lõwenstein, hoje você vai trabalhar na cortadei ra menor. Judeu Mahn, aqui está seu atestado de doente para procurar o judeu dos dentes. [ Referia-se, é claro, ao nosso dentista. ] Os membros do grupo se acostumaram com esse tom, no início porque achavam engraçado, depois por hábito. Alguns deles, Fahrjuden [judeus que usavam transporte] , tinham per missão para andar de bonde; outros, Laufjuden [judeus pedes tres ] , tinham de ir a pé, o que os distinguia. A higiene na fá brica era bastante precária. Alguns não se incomodavam com isso e se lavavam lá mesmo. Eram os Waschjuden [judeus que se lavam] , ao passo que outros, os Saujuden [judeus porcos] , preferiam lavar-se quando chegassem em casa. Os novatos no grupo não deviam achar de bom gosto essas denominações, mas nunca as levaram a sério a ponto de criar conflitos. Quando, no intervalo do almoço, falávamos de problemas relacionados à nossa situação, lá vinha o nosso capataz. Usava frases de Hitler com tanta convicção que ficávamos sem sa ber se devíamos considerá-las como suas. Uma vez, por exem plo, Mahn estava contando que na véspera o controle notur no na 42 não o incomodara, pois os funcionários mais velhos da polícia, ao contrário dos da Gestapo, eram majoritaria mente antigos social-democratas. (Éramos obrigados a estar em casa às nove da noite no verão e às oito no inverno; esse controle cabia à polícia. ) O dr. P. apareceu e começou a fa lar: "O marxismo trabalha sistematicamente para entregar o mundo nas mãos dos judeus:' Em outra ocasião falava-se das ações de uma empresa. O doutor disse em tom convincente: 301
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"Com as ações, o judeu se insere sub-repticiamente no círcu lo da produção nacional, tornando-a objeto de tráfico ilícito:' Mais tarde, quando pude estudar o livro Mein Kampf com mais profundidade, percebi que longos trechos me soavam familiares. Coincidiam perfeitamente com as frases do nosso capataz, que eu anotara em pedacinhos de papel para escre vê-las no Diário. Ele sabia de cor frases bastante extensas do Führer. Nós aceitávamos as extravagâncias, para não dizer as ob sessões, do capataz, às vezes achando graça, às vezes resigna dos. Elas me pareciam o símbolo do estado de submissão to tal dos judeus. Aí era a vez de Bukowzer juntar-se a nós, e a paz acabava. Bukowzer era idoso e doente, irascível. Arrepen dia-se do forte envolvimento que tivera no passado com a cul tura alemã, o espírito liberal e o europeísmo. Ficava agitado quando via um judeu dizer algo que soasse como aversão ou mesmo frieza em relação ao judaísmo. Quando ouvia as de clarações do capataz, suas grossas veias da testa e do crânio calvo se inflavam, e se punha a berrar: Ich dulde nicht, dafl unsere Religion diffamiert wird! [Não tolero que nossa religião seja difamada! ] . Sua cólera fazia o médico citar frases novas com mais ênfase, a ponto de eu sentir medo de que Bukowzer pudesse sofrer um ataque apoplético. Ele urrava e, arfando, repetia a mesma expressão, de origem francesa, que era a pre dileta de Hitler: Ich lasse mich nicht diffamieren! [Não me dei xo difamar! ] . O ódio entre os dois vassalos da LTI só termi nou em 1 3 de fevereiro de 1 945.254 Ambos j !lzem soterrados sob os escombros da Judenhaus da Sporergasse ... Tivesse essa submissão se manifestado somente na lingua gem cotidiana, pelo menos teria sido possível compreender suas razões. Ao falar, somos menos atentos e dependemos mais das coisas que vemos ou ouvimos constantemente. Mas 254 Data do bombardeio de Dresden. 302
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o que dizer da linguagem impressa dos judeus, que sabida mente passava por controle, tratando-se de textos redigidos pelos próprios autores? Ao escrever, podiam ponderar as pa lavras, pesando-as na balança, avaliando-as mais uma vez du rante a releitura. Bem no início, quando ainda havia alguns periódicos ju daicos, li esse título em um discurso fúnebre: "Em memória do nosso Führer Levinstein". Aqui, Führer se referia ao presi dente de uma comunidade judaica. Eu pensei com meus bo tões: que mau gosto constrangedor... Mas a um orador, ainda mais a um orador fúnebre, se devem conceder atenuantes, pois ele se esforça para mostrar-se à altura do momento. Agora, nos anos 1 940, não circulava mais nenhuma revista judaica nem se ouvia qualquer discurso judaico em público. Em contrapartida, nas ]udenhiiuser se encontrava literatura moderna especificamente judaica. Logo após a Primeira Guer ra Mundial houve um afastamento entre os alemães judeus e os outros alemães. O sionismo se difundiu pelo Reich. Surgi ram editoras e círculos de livros marcadamente judaicos, que publicavam obras de história e de filosofia exclusivamente judaicas, afora obras literárias de autores judeus sobre temas judaicos e judaico-alemães. Tudo isso era oferecido por meio de subscrições, ou, quando eram séries, de assinaturas. No futuro, algum historiador da literatura interessado em ele mentos sociológicos e culturais procurará edições desse tipo e tentará descobrir como eram distribuídas. Entre nós ainda havia grande quantidade de publicações assim, não arianas. Nosso amigo Steinitz, em especial, possuía uma ampla co leção. Ele considerava um dever cultural e religioso assinar todas as coleções que lhe ofereciam. Em sua casa encontrei textos de Buber, romances do gueto, a História judaica de Dubnov, 255 a de Prinz etc. O primeiro livro com que me de255 Simon Dubnov ( 1 860- 1 94 1 ) , judeu alemão, historiador. 303
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parei foi um volume da Associação Judaica do Livro: Do gueto para a Europa; o judaísmo na vida intelectual do século XIX, Berlim, 1936, de Arthur Eloesser.256 Apesar de não tê-lo co nhecido pessoalmente, cresci com ele, por assim dizer. Quan do meus interesses literários começaram a despontar, nos anos 1 890, ele era crítico teatral do jornal Vossische Zeitung, posição que àquela época me parecia uma das mais importan tes e mais invejáveis. Se eu tivesse de emitir hoje um parecer abalizado sobre a obra de Eloesser, diria que se adequava per feitamente aos critérios do jornal Tante Voss daquela época, ainda anterior a Ullstein.257 Não se pode dizer que a produ ção fosse estimulante, mas era cuidadosa. Não se pode dizer que fosse revolucionária, mas continha um liberalismo ho nesto. Seus textos eram escritos sem qualquer estreiteza nacio nalista, em um alemão impecável, sempre visando à Europa. (Afora isso, lembro que Eloesser escreveu uma excelente tese de doutoramento sobre a dramaturgia francesa no Iluminis mo. ) Ninguém pensaria que esses textos pudessem ter sido escritos por um não alemão. E agora, que mudança! Da pri meira à última linha percebia-se literalmente o desconsolo de um fracassado, de um marginalizado. Pois a epígrafe do livro, tomada de empréstimo de um parente americano do autor, diz: " We are not wanted anywhere': que em alemão significa algo como Juden überall unerwünscht [judeus indesejados em qualquer lugar] .258 (Nos primeiros anos de Hitler havia avi sos no vidro das portas dos restaurantes� Juden unerwünscht [judeus indesejados] ; ou, às vezes, ''für fuden verboten" [proi2 56 Arthur Eloesser ( 1 870- 1 937), historiador da literatura alemã. 2 57 Referência ao maior jornal da Alemanha, fundado em 1 704. Cons taram entre seus colaboradores Frederico, o Grande, Lessing e Rathe nau. Foi fechado em 1 934 por ser liberal e por pertencer à família judia Ullstein, sua última proprietária. 2 5 8 Frase de Otto Klemperer ( 1 885- 1 97 1 ) , primo do autor, que foi consi derado um dos maiores maestros do século XX. 304
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bido para judeus ] . Mais tarde as placas foram dispensadas, pois a proibição tornou-se generalizada. ) No final do livro, o autor menciona o enterro de Berthold Auerbach, judeu pie doso, alemão, patriota ardente, falecido no início de 1 882. Nessa ocasião, Fr. Theodor Vischer diz que se Auerbach fosse vivo, se levantaria da tumba, ao que Eloesser acrescenta em tom conclusivo: "Mas sob o mesmo solo está enterrada a épo ca do poeta e de seus amigos, a época do liberalismo como visão de mundo, bem como o tempo dos judeus alemães que nela depositavam esperança:' O que me deixou mais chocado no livro de Eloesser não foi a resignação indefesa com que esse literato liberal e to talmente assimilado aceita a exclusão, tampouco sua adesão parcial, forçosa e circunstancial ao sionismo - o desespero e a busca de um novo ponto de apoio eram compreensíveis; mas o tapa na cara, sempre ele de novo! Nesse livro, escrito com tanto esmero, encontra-se a linguagem do vencedor usada com tanto servilismo que todas as características da LTI rea parecem de novo e de novo. A condensação simplista no sin gular, der hoffende Jude [o judeu esperançoso] , a dissociação simplista da humanidade, der deutsche Mensch [o homem ale mão ] , aparecem à exaustão . . . Quando, em Berlim, se passa do Iluminismo de Nicolai 259 para a filosofia crítica, isso signi fica einen starken Umbruch [uma revolução forte] ... Os judeus se sentiam gleichgeschaltet [ equiparados] , ou "sintonizados" com os alemães nas questões culturais.. Der Paria, de Michael Beers,260 é uma peça getarnt [camuflada] , e o Almansor 261 de Heine é um judeu getarnt... Wolfgang Menzel aspira a uma .
259 Fridrich Nicolai ( 1 733- 1 8 1 1 ), editor e escritor alemão. Sua editora foi o centro do Iluminismo em Berlim. 2 60 Michael Beers ( 1 800- 1 833), autor dramático alemão. Der Paria, peça em um ato escrita em 1 825, defendia a emancipação dos judeus. 26 1 Tragédia lírica escrita por Heinrich Heine ( 1 797- 1 856) em 1 820. 305
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autarquia completa na vida intelectual alemã. O aguerrido Bõrne262 vive anos kiimpferisch [viris] . Ao contrário de Heine e Disraeli, não se deixa desconcertar por (nenhuma) melodia e ( nenhum) místico Anruf des Blutes [chamamento de san gue] . O drama realista moderno ausgerichtet [deu o recado] à sociedade: ela era a culpada pela situação das relações so ciais... Também aparece, é claro, Das Gesetz des Handels [a lei da ação ] , expressão de Clausewitz263 muito usada pelos na zistas, pois incitava a matança. Além de aufziehen [estimular, dar corda] ,264 volkhaft [ originário do povo] , Halbjude [meio judeu] e Mischling [mestiço] e Vortrupp [vanguarda] e tutti quanti... Por ser da mesma coleção e do mesmo ano, o livro de Eloesser estava bem ao lado de Ancestrais e netos, um "roman ce em forma de contos': de Rudolf Frank. Anotei na época em meus Diários: nesse livro, a LTI deslocou-se para a intimida de. Ainda hoje não saberia me expressar melhor se quisesse rever o texto. É certo que o vocabulário nazista estava presente em pala vras como Sippe, Gefolgschaft, aufziehen etc., que soavam de maneira tão mais inadequada quanto mais o autor se inspira va no estilo narrativo de Goethe. Mas ele se entregara profun damente à linguagem do vencedor, não só no sentido formal. Com uma poética enfadonha, contava a história de uma fa mília de emigrantes alemães que em 1 935 se instalara na Bir mânia e da nostalgia que todos sentiam da pátria. Cultivavam esse sentimento, lembrando experiências vividas pelos ante passados na terra natal... A realidade alemã daquele momen to era invocada em uma frase curta. Ao explicar por que ti262
Ludwig Bõrne ( 1 786- 1 837), escritor alemão que liderou o movimen to Jovem Alemanha. 263 Carl von Clausewitz ( 1 780- 1 83 1 ) , militar prussiano, o mais famoso teórico da guerra moderna. 2 64 Ver o capítulo 7 deste livro. 306
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nham abandonado a querida Renânia para viver no exterior exótico, o autor escreveu: "Tinham motivos, eram judeus." Qualquer outro elemento que se referisse à Alemanha apare cia em forma de romance histórico, cujos protagonistas eram sempre alemães extremados, apaixonados pela Alemanha, fiéis às tradições e à cultura alemãs. Era de supor que em algum trecho dos diálogos e nas convicções desses emigrantes, que continuavam a amar a Alemanha e seus ancestrais, aparecesse um justificado ódio contra aqueles que os haviam banido. Mas não! Ao contrário! Para eles, tratava-se de um destino trágico: seu coração tinha de arcar com o amor ao mesmo tempo pelo alemão clássico e pelo hebraico clássico. Os na zistas quase não mereciam censura por tê-los expulsado do paraíso, pois em questões essenciais os expulsos sentiam e jul gavam da mesma forma que eles. Casamentos mistos entre alemães e judeus? "Ora, ora! O que Deus separou o homem não deve unir!" (em dialeto do Reno) . Cantemos o "Lied [ canto] do torrão natal do poeta de Düsseldorf", o nostálgico: "Por que estou tão triste? Éramos nômades e continuamos nômades, mesmo contra a nossa vontade."265 Nem mesmo sabemos construir casas em estilo próprio, de forma que nos adaptamos ao estilo dos outros (o que, em linguagem nazista, se diz "estilo parasita") . Agora, por exemplo, construiremos a sinagoga em estilo pagode 266 265 Heinrich Heine é o poeta de Düsseldorf. Esse verso é de seu livro de Lieder ( 1 823- 1 824) dedicado a Lorelei. Esse Heimatlied evoca a Hei matkunst [arte nativa] , movimento literário regionalista do início do século XX que opunha à "literatura decadente" (simbolismo, natura lismo) das grandes cidades os valores idealizados do retorno à nature za e ao camponês. O líder desse movimento, Adolf Bartels, antissemita declarado, facilitou sua ligação com a poesia nazista Blut-und-Boden [sangue e terra] . 266 Templo ou monumento memorial da lndia em forma de torre com diversos andares e telhados terminados em curva. 307
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e nossa habitação se chamará Laubhüttenland [ terra dos ta bernáculos] . Nos primeiros anos do nazismo havia uma faixa com essa frase da LTI: Deine Hand dem Handwerk [ Consagra-te ao ofí cio manual] , em contraposição aos judeus, constantemente acusados por Hitler e seus cúmplices de comerciantes e In telligentzbestien [bestas da intelligentsia] . O livro de Frank glo rifica uma família judaica que havia quatro gerações preserva va o ofício de artesãos, apresentando-a como exemplo moral, pregando expressamente o "retorno à natureza e ao trabalho manual': Ao mesmo tempo estigmatiza um cineasta, que tam bém estava na Birmânia e nutria a ideia de filmar lá - "Espe ra e verás que produção irei aufziehen [ montar] para eles" -, apresentando-o como renegado e depravado. Usa a história antij udaica de que judeus envenenaram poços durante sé culos; o judeu acusado bebe quatorze copos da água envene nada para purificar-se e provar sua inocência! "E a água dos rios e das fontes penetrou nele, em seu corpo, em suas veias, em seu ser e em seus sentimentos:' Agora, purificado da cul pa, ganha uma casa no Reno e jura não abandoná-la jamais: "Inclina-se para a terra em profunda reverência, em direção ao solo, cuja seiva ingerira." Pode-se expressar a Blubodoktrin [ doutrina do sangue e da terra] 267 de maneira mais poética? No final, quando relata a respeito de uma jovem mãe e de sua filha ainda mais jovem - ambas estão prestes a dar à luz crianças para a nova pátria -, o autor escreve em tom solene, sem se dar conta do ridículo: "Duas mães ... como duas irmãs, elas trazem uma estirpe nova para sua terra fértil:' Quem não 2 67 Blubodoktrin é a abreviação de Blut-und-Boden-Doktrin, "doutrina do sangue e da terra". A partir dessa expressão de Oswald Spengler, Wal ther Darré, futuro ministro da Agricultura do Terceiro Reich, fundou sua ideologia racista. Nela, o camponês apresentava todas as virtudes raciais nórdicas: coragem, tenacidade, combatividade etc. 308
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percebe a sintonia perfeita com a doutrina racial e com o modo como o Terceiro Reich valorizava as mulheres? Li até o fim, a contragosto, pois um historiador da literatu ra não tem o direito de pôr um livro de lado só porque a obra lhe causa repugnância. O único personagem que me pareceu simpático foi Fred Buchsbaum, o "pecador" que na Birmânia se manteve fiel à sua profissão de cineasta, como em seu país natal. Não permitiu que o despojassem de sua natureza, de seu europeísmo, de seu presente. Rodou comédias, mas não encenou comédias para si mesmo nem consigo mesmo. Não, apesar de a linguagem do vencedor ter sido adotada em todas as Judenhiiuser, foi só uma escravização irrefletida. Não representou um reconhecimento da doutrina nem uma crença nas mentiras. Percebi tudo isso em um domingo de manhã. Estávamos os quatro na cozinha. Stühler e eu ajudávamos nossas mulhe res a lavar a louça. A mulher de Stühler, uma bávara forte e saudável, não escondia a origem robusta e consolava o mari do impaciente: - Quando você puder voltar a viajar por sua empresa de confecção, e esse momento há de chegar, então teremos de novo uma empregada. Stühler continuou enxugando o prato, quieto, com movi mentos firmes. Depois disse, exaltado: - Não vou viajar nunca mais . . . Eles estão certos. É im produtivo, quero me livrar desse negócio sujo . . . Quero ser jardineiro ou qualquer coisa do gênero, quero estar perto da natureza ... Não usamos impunemente a linguagem do vencedor. Aca bamos por assimilá-la e passamos a viver conforme o modelo que ela nós dá.
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Com Seliksohn trocávamos algumas coisas. Ele era diabético e nos trazia batatas. Em contrapartida, lhe oferecíamos pe quenas porções de carne e verdura. Logo demonstrou que sentia verdadeira simpatia por nós dois, o que me intrigava e me emocionava. Odiava todas as coisas alemãs e rotulava de malucos ou hipócritas os usuários da estrela amarela, en tre os poucos que ainda sobravam, que continuavam a amar o país. Ele próprio nascera em Odessa e viera para a Alema nha com quatorze anos, durante a Primeira Guerra Mundial. Seu objetivo era Jerusalém, apesar de ter cursado a escola e a universidade na Alemanha, ou, segundo dizia, justamente por causa disso. Tentava me convencer de que minha postura era insensata. A cada prisão, a cada suicídio, a cada notícia de morte nos campos de concentração, sempre que nos encon trávamos - o que ocorria cada vez mais frequentemente nossas discussões se tornavam mais veementes, o que o levava a dizer: - Apesar de tudo, você pretende continuar sendo alemão e até mesmo amando a Alemanha? Daqui a pouco vai fazer uma declaração de amor a Hitler e Goebbels! - Eles não são a Alemanha. Quanto ao amor, bem, ele também não é o cerne da questão. Hoje, por sinal, encontrei uma coisa bela a esse respeito. Você já ouviu falar de Julius Bab?26a - Sim, um dos escritores judeus berlinenses, não é mesmo? 268 Julius Bab ( 1 880- 1 955), escritor alemão. Colega de Klemperer no en sino fundamental, emigrou em 1 933. 311
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- Pois bem, na biblioteca de Steinitz existe, Deus sabe como, um exemplar de uma edição fora de comércio desse autor. Meia centena de poemas, publicados em forma de ma nuscrito somente para os amigos, pois ele não se considerava um poeta lírico verdadeiramente criativo e achava que por trás de· seus versos ressoava a melodia de outros poetas. Sua modéstia mostra dignidade. Ao longo da obra percebe-se algo de George, algo de Rilke, em uma linguagem mais moderada que a natural. Mesmo assim, uma estrofe me sensibilizou de tal maneira que quase não percebi essa filiação. Anotei-a nos Diários. Logo a saberei de cor, de tanto que penso nela; dois poemas dedicados à Alemanha, um de 1 9 1 4 e outro de 1 9 19, que começam com a mesma declaração: "E tu, amas a Alema nha? - Pergunta mais tola, a tua! / Posso amar meu sangue, meu cabelo, a mim mesmo? / Amor não é façanha e ganho?! / Da forma mais profunda possível e sem alternativa voltei-me para mim mesmo, / E a esse país, que sou eu, eu mesmo:' Se o verso sobre façanha e ganho não imitasse tanto Stefan Geor ge, eu poderia sentir inveja. Não somente o poeta e eu, mas milhares de outras pessoas sentem o mesmo. - Autossugestão, autoengano no melhor dos casos, ou pura mentira, passando naturalmente por estágios interme diários. - Quem escreveu o mais belo poema da Primeira Guerra Mundial? - Você está pensando no afetado Canto de ódio, de Lissauer?269 - Bobagem! Penso no seguinte: "Lá embaixo no Danú bio estão dois corvos". . . Espero estar citando corretamente. Não é uma autêntica canção popular alemã, essa que o judeu Zuckermann27º compôs? 269
Ernst Lissauer ( 1 882- 1 938), escritor alemão. 2 70 Hugo Zuckermann ( 1 88 1 - 1 9 1 4), escritor alemão. 312
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- É mesmo muito autêntica, ou seja, artisticamente re produzida e tão sem autenticidade como a Lorelei. 271 Você certamente está a par da reconversão de Heine ao judaísmo, mas é bem provável que não saiba nada sobre o sionismo de Zuckermann, nem sobre seus poemas sionistas. Na verdade, é bem como estava escrito no quadro de avisos da sua univer sidade e em outros lugares: "Quando o judeu escreve em ale mão, ele mente!" - É desesperador. Nenhum de vocês consegue escapar da linguagem do vencedor, nem você, que vê em qualquer ale mão um inimigo! - Eles falam muito mais a nossa língua do que nós a de les. Aprenderam conosco. A única diferença é que consegui ram transformar tudo em falsidade, em crime. - Como assim? Eles aprenderam conosco? O que você quer dizer com isso? - Você se lembra das primeiras manifestações públicas em 1 933? Quando os nazistas fizeram os primeiros grandes atos contra os judeus? "Via de mão única para Jerusalém! " e "Der weifte Hirsch [Cervo branco] 272 expulsa os judeus': O que diziam as faixas, as imagens e os cartazes? Um judeu seguia o cortejo e carregava uma grande haste com um cartaz onde es tava escrito: Hinaus mit uns! [ Fora conosco! ] . - Sim, ouvi falar e supus tratar-se de uma piada de hu mor negro. - Não, tudo se passou assim mesmo. Esse "Fora conosco! " é mais antigo que o hitlerismo. Nós não falamos a linguagem do vencedor: Hitler é que aprendeu com Herzl.273 271 Lorelei é uma figura mítica da região do Reno, evocada pelos român ticos Brentano e Eichendorf. A versão mais misteriosa e patética foi composta por Heinrich Heine em 1 827. 27 2 Der weifle Hirsch: bairro residencial nos arredores de Dresden. 27 3 Theodor Herzl ( 1 860- 1 904), jornalista j udeu vienense. Criador do sionismo político que passou a lutar por um Lar Nacional Judaico na 313
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- Você supõe que Hitler tenha lido algo de Herzl? - Não, não acredito que alguma vez ele tenha lido qualquer coisa que pudesse prestar. Ele só absorveu fragmentos de cultura geral e repetiu, exagerando, coisas confusas que pode riam ser úteis para sua loucura. Esse é o gênio ou o espírito diabólico de sua loucura, ou seu aspecto criminoso, chame como quiser, explique como quiser. Ele apresenta tudo que consegue absorver de uma maneira que cativa as pessoas pri mitivas e transforma em animais de rebanho os que já tinham alguma inteligência. Quando, no início de Mein Kampf, ele fala do ódio aos judeus a partir de suas experiências em Vie na, há uma relação com o sionismo, que ele certamente co nheceu por lá. Mais uma vez, trata tudo de modo sórdido e vulgar: o rapaz judeu de cabelo preto e sorriso satânico esprei ta a ariana tourinha para nela desonrar a raça alemã, preten dendo conduzir a sua própria raça inferior, o povo dos judeus, até a ambicionada dominação do mundo. Cito de memória, mas quase ao pé da letra. Os pontos principais são esses! - Eu sei. Poderia até lhe dizer de maneira mais precisa onde está essa passagem, pois o nosso capataz é bom em cita ções de Hitler, e essa é uma das suas preferidas. Ela continua assim: "Após a Primeira Guerra Mundial, os judeus teriam trazido o negro até as margens do Reno para destruir a raça branca superior, por uma degeneração forçada." Mas o que isso tem a ver com os sionistas? - Com certeza ele aprendeu com Herzl a ver os judeus como um povo, como uma unidade política, reagrupando-os sob o termo "judaísmo mundial". - Não é uma censura terrível que você levanta contra Herzl? Palestina, especialmente após o pogrom de Kishinev, promovido pelo czar Nicolau II em 1 882, e o caso Dreyfus, uma prova do antissemitis mo europeu no final do século XIX. 314
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- Que culpa tem Herzl se um Bluthund [cachorro sangui nário ] como Hitler roubou suas ideias e se os judeus alemães não o ouviram a tempo? Agora é tarde demais. Agora vocês nos procuram. - Eu não. - Você! Logo você vai fazer uma declaração de amor a Hitler e Goebbels e usar a expressão de Rathenau:274 o seu coração é germano e louro. Os judeus alemães seriam uma espécie de tribo alemã, a meio caminho entre os alemães do norte e os nascidos na Suábia. - Não concordo com o mau gosto do coração louro ger-. mânico, mas uma espécie de tribo alemã, considerada em um contexto puramente espiritual, isso poderia aplicar-se a nós, às pessoas cuja língua materna é o alemão e cuja cultura é alemã. "A linguagem é mais do que sangue! ", na expressão de Franz Rosenzweig. Não tenho muitas afinidades com ele, cujas cartas recebi da Geheimrat Elsa. Mas ele pertence ao ca pítulo Buber e agora estamos tratando de Herzl. - Não adianta falar com você, que não conhece Herzl. Tem de conhecê-lo. É necessário para sua formação. Vou ver se encontro algo para você ler. Essa conversa me perseguiu durante dias. O fato de eu nunca ter lido nada de Herzl seria mesmo falta de cultura? Como explicar que nunca me sentira atraído a ler algo dele? É claro que já havia ouvido falar nele. Já me deparara com o movimento sionista algumas vezes. A primeira havia sido no início do século em Munique, quando uma associação judai ca tentou me atrair para o movimento. Eu dei com os ombros, 274 Walther Rathenau ( 1 867- 1 922), industrial, escritor e político alemão, de origem judaica, ministro das Relações Exteriores durante a Repú blica de Weimar. Defendia que os judeus deviam se opor ao sionismo, integrando-se completamente à sociedade alemã. Foi assassinado por oficiais do Exército ligados a uma organização de extrema direita. 315
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pois me parecia algo muito distante. Em seguida, alguns anos antes da Primeira Guerra Mundial, em Caminho para a liber dade, de Schnitzler, e logo a seguir em uma palestra que pro feri em Praga. Nessa cidade, passei algumas horas com estu dantes sionistas em um café e fiquei mais convencido de que se tratava de uma questão austríaca. Lá, onde era comum di vidir o Estado em nacionalidades que se toleravam e se com batiam mutuamente, poderia muito bem existir uma nacio nalidade judaica. Na Galícia austríaca, onde se concentrava uma maciça população de judeus que continuava a manter idioma e hábitos próprios, vivendo em isolamento espontâ neo, como se estivesse em um gueto, na mesma situação de grupos judaicos na Rússia e na Polônia, onde a opressão e a perseguição lhes despertavam o desejo ardente de uma pá tria melhor, lá era compreensível que houvesse sionismo. Che gava a parecer inconcebível que ele só houvesse surgido nos anos 1 890, com Herzl. Na verdade, ele já existira muito antes naquelas regiões, apresentando-se em uma forma política embrionária. A única inovação de Herzl foi ter usado de maneira deci siva o momento político e ter disseminado nos judeus que viviam no Ocidente, sob condições realmente europeias e emancipadas, a intenção de fazerem parte de um só povo que devia retornar. 275 O que isso tinha a ver comigo? O que isso tinha a ver com a Alemanha? Eu sabia que havia judeus sionistas na província de Posen e conhecia um movimento sionista em Berlim que editava um jornal. Mas em Berlim havia muitas coisas excên tricas, exóticas, esquisitas, como um clube chinês. O que isso tinha a ver comigo e com o meu círculo de convivência? Eu me sentia tão seguro da minha germanidade, da minha con dição europeia, de meines Menschentums [ minha pertença à 2 75 A referência, é claro, é ao retorno
à
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Palestina.
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humanidade] , de viver no século XX . Sangue? ódio racial? Não hoje, não no coração da Europa! Também não esperá vamos que houvesse guerras, a não ser em regiões distantes como os Bálcãs, a Ásia, a África. Até junho de 1 9 1 4 eu consi derava pura fantasia tudo o que se escrevia sobre esse retorno às condições da Idade Média. Só levava em conta o que se re feria à cultura e à paz. Então veio a Primeira Guerra Mundial. Minha confiança na solidez da cultura europeia ficou abalada. Depois, é claro que eu percebia, dia após dia, a onda nazista e antissemita: vi via entre professores e estudantes, e às vezes penso que eles eram piores - além de mais culpados - do que os cidadãos comuns. Também não me passou despercebido que o movi mento sionista se fortalecia como uma reação de legítima de fesa. Mas não me preocupava com isso. Eu simplesmente não lia nenhuma das publicações judaicas, as quais, mais tarde, quando morava nas Judenhiiuser, procurei juntar (o que não foi fácil) . Essa minha recusa em enxergar terá sido teimosia ou indiferença? Acho que nem uma coisa nem outra. Terá sido uma forma de me apegar à Alemanha com um amor que não queria reconhecer a rejeição? Não, não se tratava de nada pa tético, e sim de algo óbvio. Os versos de Bab dizem tudo o que se pode dizer sobre isso. (Será que ele ainda pensaria da mes ma forma? Eu o conheci com doze, treze anos e nunca mais o vi. ) Estou me aprofundando demais em meus Diários de 1 942 e me afastando das "anotações do filólogo': Mas não. Isso faz parte do tema. Naquela época, estava preocupado em saber se somente eu considerava as coisas co mo falsas ou incompletas; se fosse esse o caso, eu devia des confiar das minhas observações atuais, pois então não era a pessoa adequada para tratar do tema judaico. A oportuni dade de falar sobre isso ocorreu em minha visita semanal a Markwald, um homem de setenta e tantos anos, quase com pletamente paralisado mas mentalmente lúcido. De tantas em 317
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tantas horas, quando as dores se tornavam insuportáveis, sua corajosa mulher lhe aplicava injeções de morfina. Havia anos a situação era essa, e ainda poderia durar muitos outros. Ele queria rever os filhos, que tinham emigrado, e conhecer os netos. "Mas se me enviarem para Theresienstadt morrerei, pois lá não terei morfina." Ele foi para Theresienstadt, sem a cadeira de rodas, e morre!J lá, a mulher sempre ao seu lado. Em certo sentido ele também era uma exceção entre os usuários da estrela, tanto quanto o operário sem qualificação na nossa fábrica: seu pai, que possuía uma propriedade rural, estabelecera-se muito tempo atrás na Alemanha central, e ele próprio, agrônomo, assumira a propriedade até ser convida do a ocupar um alto cargo na Secretaria de Agricultura da Saxônia durante a Primeira Guerra Mundial. Às vezes ele me contava sobre o Schweinemord [ massacre dos porcos] , 276 uma história que também pertence à seção judaica. Foi uma acusação usada repetidamente para incriminar os judeus, im putando-lhes a intenção de deixar os alemães morrerem de fome. Agora os nazistas tomavam medidas semelhantes, mas com um nome diferente. O que na Primeira Guerra se cha mara jüdischer Mord [ massacre realizado pelos judeus] tor nou-se deutsche Vorausschau [prevenção alemã] e volksverbun dene Planwirtschaft [ economia planejada para o povo] . Mas as conversas com o paralítico não tratavam apenas de questões agrárias. Ambos os Markwald mostravam grande in teresse em política e literatura, e liam bastante; os aconteci mentos dos últimos anos haviam despertado a sua atenção, assim como a minha, para os problemas dos judeus alemães. Mas nem eles escapavam da linguagem do vencedor. Deram me para ler um longo, elegante e bastante completo manus276 Walter
Darré, ideólogo e ministro da Agricultura do nazismo, escre veu em 1 933 O porco como critério dos povos nórdicos e semitas e em 1 937 O massacre dos porcos. 318
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crito que comprovava que a família deles vivia na Alemanha havia séculos. A história era contada com um uso abusivo do vocabulário nazista, e o livro como um todo era uma con tribuição à "teoria da Sippe" [ clã] , ou Sippenkunde [ genea logia] , que não escondia certa simpatia pelas leis autoritárias do novo regime. Eu conversava com Markwald sobre o sionismo, pois que ria saber se o movimento havia sido importante na Alema nha. Administradores têm o hábito de considerar as coisas sob o ponto de vista estatístico. Sim, ele também conhecera esse "movimento austríaco"; também havia notado que depois da Primeira Guerra Mundial ele crescera entre nós, sob a pres são do antissemitismo, mas nunca se tornara um verdadeiro movimento no Reich alemão. - Aqui sempre foi um movimento de uma pequena mi noria, de um grupo. A maior parte dos judeus alemães não podia mais se separar da cultura alemã. Não conseguíamos imaginar que a assimilação pudesse sofrer um revés ou ser desfeita. Os judeus alemães poderiam ser exterminados, mas não entdeutschen [ "desalemanizados" ] , ainda que eles mesmos se esforçassem para isso. Então contei-lhe o que Seliksohn me dissera a respeito da possível influência de Herzl sobre o nazismo. - Herzl? Quem é? - O senhor também não leu nada dele? - É a primeira vez que ouço falar nele. A sra. Markwald confirmou que também não o conhecia. Faço essa anotação para me justificar. Além de mim, deve ter havido muito mais gente na Alemanha que desconheceu o sionismo até o fim. Um adepto tão extremado da assimilação, "cristão não ariano" e agrônomo era nesse caso uma teste munha confiável e até particularmente boa, justamente por ter ocupado um alto posto, o que lhe permitiu ter uma visão 319
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ampla. A frase les extrêmes se touchent [os extremos se encon tram] serve também para explicar por que os partidos anta gônicos são os que mais sabem uns dos outros. (Em 1 9 1 6, quando me recuperava no hospital militar em Paderborn, o seminário de um arcebispo me fornecia o que havia de me lhor sobre o Iluminismo na literatura francesa. ) Hitler teve seus anos de aprendizagem na Áustria; da mesma forma que trouxe consigo a Verlautbarung [ comunicação ] para a lingua gem burocrática do Reich, deve ter trazido em seu íntimo pa lavras e pensamentos de Herzl. Pouco depois dessas conversas e considerações, Seliksohn me trouxe dois volumes de Herzl, os escritos sionistas e o pri meiro volume dos Diários, publicados em Berlim pela editora Judaica em 1 920 e 1 922. Eu os li consternado, beirando o de sespero. Minha primeira anotação nos Diários dizia: "Senhor, protej a-me dos amigos! Nesses dois volumes encontra-se, com facilidade, material para comprovar muitas coisas que Hitler, Goebbels e Rosenberg afirmam contra os judeus; isso não requer grande habilidade nem para interpretar nem para distorcer." Mais tarde busquei as semelhanças e as diferenças entre algumas palavras-chave e citações dos textos de Herzl e de Hi tler. Graças a Deus, havia também diferenças entre ambos! Sobretudo Herzl nunca teve qualquer pensamento opres sor, muito menos pensou em exterminar povos estrangeiros. Nunca propôs a ideia de uma raça ou um povo eleito, nem de uma superioridade que lhe desse o direito de dominar o res tante da humanidade, considerado inferior, ideia que estava na base do horror nazista. Ele só exige igualdade de direitos para um grupo de oprimidos, só quer um espaço modesto e limitado, mas seguro, para um conjunto de pessoas maltra tadas e perseguidas. Só emprega a palavra untermenschlich [ subumano] para definir os maus-tratos que os judeus da Ga lícia sofriam. Além disso, não é um homem de mente estreita 320
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ou estúpido, não é inculto e grosseiro como Hitler, não é um fanático. Gostaria de sê-lo, mas fica a meio caminho; não con segue suprimir dentro de si a razão, a ponderação e o senso humanitário. Só por alguns momentos se vê como um emis sário divino que detém o destino nas mãos. A questão que co loca a si mesmo é se seria um mero folhetinista fantasioso e não um segundo Moisés. Só um propósito seu permanece inalterado, aparecendo claramente em todos os projetos: a necessidade de se criar uma pátria para as massas judaicas não emancipadas e opri midas no Leste Europeu, as quais continuavam sendo um povo. Porém, mal se defronta com o lado ocidental do pro blema e já incorre em contradições. O conceito de povo per de consistência e não se consegue entender se questões gover namentais serão entregues à condução de um ditador ou de um parlamento. Questões de diferenças raciais não lhe dizem respeito, mas quer proibir casamentos mistos; sente-se ligado com "melancolia" à cultura e à língua alemãs, que quer con servar, trasladando tudo para a Palestina. Mas o povo judaico, como coletividade, é composto pela massa uniforme dos ju deus dos guetos da Europa Oriental etc. etc. etc. Com todas essas vacilações, Herzl não parece ser um gê nio, mas apenas uma pessoa afável e interessante. Entretanto, quando quer se impor como enviado de Deus, sente-se obri gado a estar à altura da missão. O apelo conceituai, ético e linguístico dos judeus ao Messias se assemelha de maneira grotesca e aterradora ao dos alemães. Ele demole tudo com que se confronta, destrói tudo que se lhe contrapõe, é o Führer que assume a missão do destino: tornar real o desejo inconsciente de seu povo, das massas que ele deve converter em povo. O Führer "tem de ter um olhar duro'� mas também precisa ter sensibilidade para captar a psicologia e as neces sidades da massa. Não obstante sua liberdade de pensamento e seu anseio pelo progresso científico, criará lugares de pere321
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grinação para a fé pueril das massas e saberá tirar proveito da própria auréola. "Vi e escutei como nasceu a lenda a meu res peito'', ele anota após uma assembleia. "O povo é sentimental, as massas não enxergam com clareza. Acho que não têm uma ideia clara a meu respeito. Começa a elevar-se uma névoa va porosa em torno de mim, que talvez se torne a nuvem pela qual caminharei:' Todos os meios são bons para a propaganda: é possível tirar vantagem da massa ingênua com ensinamentos da orto doxia ou com viagens a lugares de peregrinação; pode-se che gar aos círculos cultos e assimilados oferecendo-lhes "propa ganda do sionismo em formato esnobe'', com referências, por exemplo, às baladas de Judá, de Bõrries von Münchhausen,277 e às ilustrações de Mosche Lilien278 na Associação Vienense de Senhoras. ( Lembro-me agora que Münchhausen, antes da Primeira Guerra Mundial, havia declamado suas poesias so bre Judá em diversas associações judaicas; mas já durante o Reich de Hitler foi celebrado como um grande poeta alemão e entendeu-se com os nazistas às mil maravilhas como Blubo mann; 2 79 antecipo aqui aonde quero chegar. ) A suntuosidade externa e os símbolos aparentes são algo bom e indispensável; é necessário atribuir valor a uniformes, bandeiras e cerimô nias. Os críticos incômodos são tratados como inimigos de Estado. A resistência às medidas importantes deve ser vencida "com dureza implacável'', lançando suspeitas e insultos con tra os que pensam de modo diferente. Quando os assim chamados Protestrabbiner [ rabinos con testadores] , movidos por fortes razões intelectuais, atacam 277 Bõrries voo Münchhausen ( 1 874- 1 945), poeta alemão, compositor de baladas com temas cavalheirescos e lendas da Idade Média. 27 8 Mosche Lilienblum ( 1 843- 1 9 1 0) , escritor judeu, um dos fundadores do sionismo. 279 Abreviatura de Blut-und-Boden-Mann, literalmente "homem do san gue e da terra". 322
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o sionismo político que inclui o Ocidente, Herzl declara: "No ano que vem, em Jerusalém! "28º "Nos últimos decênios da de cadência nacional" - ele se referia à assimilação -, alguns rabinos tinham atribuído a essa antiquíssima expressão de bons votos o "significado insípido" de que a Jerusalém da ex pressão tradicional podia chamar-se Londres, Berlim ou Chi cago. "Se as tradições judaicas forem interpretadas dessa for ma, restará do judaísmo não muito mais do que o salário anual que esses senhores recebem." Sedução e ameaça devem ser bem dosadas e caminhar emparelhadas: ninguém deve ser forçado a emigrar; hesitantes e retardatários não estarão bem nem aqui nem acolá. Na Palestina, o povo judeu "haverá de procurar seus verdadeiros amigos entre aqueles que lutaram e sofreram pela causa no tempo em que não se colhiam honras, mas insultos". Se essas frases e expressões são usadas pelos dois líderes, então Herzl colocou armas terríveis nas mãos de Hitler. Ele quis forçar os Rothschild a usar a fortuna em favor do povo judeu, mas até aqui eles mantiveram os exércitos das grandes potências trabalhando exclusivamente para seu próprio en riquecimento. Como o povo judeu reunido - sempre ou vindo: "Somos uma unidade, somos um povo!" - se afirmará e se imporá? Resposta: intervindo como poder financeiro nos acordos de paz das potências europeias beligerantes. É grande a possibilidade de isso ocorrer, pois, mesmo depois da cria ção de um Estado judeu, muitos judeus continuarão a viver em outros países. Quantas possibilidades de interpretação se abrem aqui para o nazismo! Pessoas semelhantes, linguagens semelhantes. Conte-se o número de vezes em que as recepções, os discursos, as mi sérias do regime de Hitler são qualificados de "históricos': 28° Frase que se canta no final do jantar da Páscoa judaica. 323
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Quando Herzl explica suas ideias ao redator-chefe da Neue Freie Presse durante um passeio, também é um "momento his tórico"; quando alcança um minúsculo sucesso diplomático, o triunfo passa a fazer parte da história universal. Há um mo mento em que ele confessa nos Diários que sua vida privada terminava para que sua existência histórica começasse ... As coincidências entre ambos - ideológicas, estilísticas, psicológicas, especulativas e políticas - prosseguem e se esti mulam mutuamente! De tudo o que Herzl usa para funda mentar a unidade do povo, só um elemento se adapta per feitamente aos judeus: eles têm um adversário e perseguidor comum. Sob esse ponto de vista, Hitler fundiu os judeus de todas as nações no Weltjudentum [judaísmo mundial] . Dada a mania persecutória e a astúcia distorcida do seu delírio, ele concretizou o que antes só existia no mundo das ideias; con seguiu mais adeptos para o sionismo e o Estado judaico do que o próprio Herzl. De quem Hitler poderia aprender coisas mais importantes e úteis para seus fins? Essa pergunta retórica exige mais do que uma tese de dou torado, caso se queira respondê-la com precisão. Não há dú vida de que o sionismo estimulou e enriqueceu a doutrina nazista. Mas não há de ser fácil determinar com exatidão o que Hitler e seus colaboradores extraíram do sionismo. A dificuldade reside no fato de que Hitler e Herzl se nu trem em grande parte do mesmo legado. Já nomeei a raiz ale mã do nazismo: o romantismo estreito, limitado, pervertido. Se eu acrescentar o romantismo kitsch, então a comunhão intelectual e estilística de ambos os líderes estará definida do modo mais exato possível. Herzl costuma citar Guilherme II como seu modelo. Ele conhece a origem psicológica da pose heroica de Guilherme - o braço atrofiado sob o bigode em ponta - e se sente ainda mais próximo do imperador. O novo Moisés dos judeus também sonha com uma guarda com cou324
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raças prateadas. Hitler, por sua vez, via Guilherme como um corruptor do povo, mas dividia com ele, superando-o, as ex travagâncias heroicas e a preferência pelo romantismo kitsch. Também conversei sobre Herzl com Geheimrat Elsa, que naturalmente o conhecia. Não nutria um sentimento especial por ele, nem grande simpatia nem forte aversão. Ela o via como demasiadamente "vulgar': pouco "intelectual': Ele nu tria boas intenções em relação aos pobres Ostjuden [judeus do leste] , disse, e sua luta por eles tinha méritos incontestáveis. - Mas, quanto a nós, judeus alemães, ele não tem nada a nos dizer; aliás, está completamente superado no movimento sionista. As tensões políticas que ocorrem lá não me dizem respeito; nem os nacionalistas mais rigorosos nem os comu nistas pró-soviéticos estão de acordo com Herzl, um burguês moderado. Só me interessa a liderança espiritual do sionis mo, que hoje, sem dúvida, está com Buber. Eu venero Martin Buber.281 Se não estivesse tão fanaticamente, oh!, perdão, se não estivesse totalmente ligada à Alemanha, seria partidária incondicional dele. O que o senhor diz sobre o romantismo kitsch de Herzl é exatamente isso. Em contrapartida, Buber é um autêntico romântico, de muita pureza e profundidade. Eu diria quase um romântico alemão. O fato de que ele no fim das contas opte por um Estado próprio para os judeus em parte é culpa de Hitler e em parte, meu Deus!, ele vivia em Viena. Só vivendo aqui, no Reich, alguém se torna um verda deiro alemão. O melhor de Buber, mas de uma germanidade pura, o senhor vai encontrar em um amigo dele, Franz Ro senzweig. 282 Eu lhe dou as cartas de Rosenzweig. 2 81 Martin Buber ( 1 878- 1 965), filósofo, escritor e pedagogo judeu de ori gem austríaca, humanista e ligado ao movimento sionista. Precursor do diálogo entre religiões e entre árabes e judeus. 282 Franz Rosenzweig ( 1 886- 1 929), filósofo e teólogo nascido na Alema nha numa família judia assimilada. Lutou no Exército alemão na Pri meira Guerra Mundial. 325
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Ela me entregou um volume valioso, que possuía em du plicata e mais tarde me deu de presente. Lamento sempre sua perda, pois ele lançou uma visão muito esclarecedora sobre a história do pensamento de sua época. "Eis aqui alguns textos de Buber. . ." ( Breve observação para tranquilizar minha cons ciência de filólogo: meus Discursos Uvios283 são muito pouco "lívios"; originam-se dos Diários que escrevi, dia após dia, sob a impressão dos acontecimentos ainda frescos, com os sons ainda nos ouvidos. ) Buber não era desconhecido para mim; vinte ou trinta anos atrás era citado como filósofo da religião. Mas era a primeira vez que eu tomava contato com Rosen zweig, autor menos conhecido, morto prematuramente. Buber é tão místico e tão romântico que inverte a essência do judaísmo. A evolução mostrou que a natureza judaica se nutre de um racionalismo radical e de uma ideia de Deus des materializada. A cabala e as manifestações tardias de eferves cência mística representam fenômenos de reação à tendência principal, sempre dominante e decisiva. Para Buber, ao con trário, a mística judaica exerce o papel essencial e criativo, ao passo que a ratio judaica representaria austeridade e degene ração. É um grande estudioso das religiões. Para ele, o homem religioso por excelência é o oriental, mas os judeus atingiram o nível de religiosidade mais elevado. Como mantiveram du rante séculos contato estreito com o Ocidente, que tem outras aptidões, cabe aos judeus fundir as melhores qualidades inte lectuais do Oriente e do Ocidente e retransmiti-las para am bos os lados. Nessa passagem entra em jogo o romântico, inclusive o fi lólogo romântico (não o político, como Herzl): em matéria de religião, os judeus tiveram na Palestina o seu momento cul minante; não são nômades, desde a origem são um povo de camponeses, todas as imagens bíblicas remetem a isso. "Seu 2s3
A maneira de Tito Lívio. 326
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Deus era o senhor do campo, suas festas eram festas campes tres e sua lei era a lei do campo." E "qualquer que fosse o nível espiritual geral que a profecia conseguisse atingir, [ . . ] seu es pírito haveria de querer revestir sempre um corpo feito dessa terra particular de Canaã ..." Na Europa, a alma judaica ( "que passou por todos os céus e infernos do Ocidente") , sobretudo a alma dos judeus "adaptados", sofre danos. Mas quando ela "pisa o solo materno, volta a ser criativa': Buber se entrega aos raciocínios e sentimentos próprios do romantismo alemão e do mundo da linguagem romântica, em especial da poesia e da filosofia neorromânticas, com seu distanciamento do coti diano, sua solenidade sacerdotal e sua tendência à escuridão cheia de mistérios. Com Rosenzweig é quase a mesma coisa, mas ele não se perde tanto no misticismo nem abandona a li gação com a Alemanha. Quero permanecer no meu campo específico, que é o da LTI; nem a essência do judaísmo nem a justificativa do sionis mo são meu tema. (Um crente judeu poderia chegar à con clusão de que esta segunda diáspora, a maior do nosso tempo, responde aos desígnios de Deus, tal qual a primeira; mas, sem dúvida, nem a primeira nem a segunda tiveram origem em um Deus do campo, pois a verdadeira missão que esse Deus deu ao seu povo consistia precisamente em não ser um povo, não estar ligado a nenhuma barreira física ou espacial, para servir à ideia pura, sem raízes. Sobre isso, e sobre o sentido do gueto como "barreira" que cerca uma particularidade intelec tual, sobre a barreira que se transformou em laço estrangu lador, sobre a evasão dos principais portadores da missão o "grande Spinoza", diz Buber, em contradição evidente com sua própria doutrina - e sobre a fuga e a expulsão posterior... Deus do céu!, quanto já filosofamos sobre isso! E de que ma neira catastrófica esse "nós" se reduziu aos poucos que ainda estão vivos! ) .
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Permaneço em minha área. O mesmo estilo, que é caracte rístico de Buber, as mesmas palavras, que na boca dele adqui rem luz própria, como Bewiihrung [ prova de competência] , das Einmalige [o singular] e Einmaligkeit [ a singularidade] quantas vezes encontrei esses termos no lado nazista, em Ro senberg e outros menores, em livros e artigos de jornal. De tempos em tempos eles gostavam de aparecer com ares de fi lósofos; · pois isso impressionava a massa. Há um parentesco estilístico entre Rosenberg e Buber, há semelhança em mais de um conceito, como, por exemplo, em colocar a agricultura e o misticismo acima do nomadismo e do racionalismo. Essa se melhança não é mais desconcertante do que a analogia entre Hitler e Herzl? Mas, em ambos os casos, a explicação do fenô meno é a mesma: o romantismo, não somente o kitsch, mas também o autêntico, domina a época. Inocentes e envenena dores, vítimas e algozes, todos saíram da mesma fonte.
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A MALDIÇÃO DO SU PERLATIVO
Há quarenta anos publiquei meu único artigo em um jornal americano. O New- Yorker Staatszeitung, que saía em alemão, publicou um texto meu em comemoração aos setenta anos de Adolf Willbrandt,284 cuja biografia escrevi. Quando recebi o exemplar dedicado ao autor, fiquei com uma imagem ruim da imprensa americana. Minha opinião deve ser injusta, pois as generalizações mentem. Mesmo assim, essa imagem retorna va com nitidez sempre que alguma associação de ideias, mes mo fraca, me levava a pensar no jornalismo americano. Atra vessando a coluna de meu artigo sobre Willbrandt, bem no meio das linhas, havia um traço sinuoso que fazia propagan da de um purgante com um texto que começava assim: "O ser humano possui 10 metros de intestinos:'285 Isso foi em agosto de 1 907. Nunca pensei tanto nesses in testinos como no verão de 1 937. Quando o Partido Nazista realizou seu congresso em Nuremberg, anunciou-se que, en fileirados, os artigos sobre o evento publicados na imprensa alemã alcançariam 20 quilômetros, formando uma coluna que chegaria à estratosfera. Desmentiam-se assim as calúnias do exterior, que diziam que a imprensa alemã estava em de cadência. Na mesma época, quando Mussolini visitou Berlim, noticiou-se que haviam sido gastos 40 mil metros de tecido, em bandeiras, na decoração das ruas. "Confusão entre quantidade e qualidade, eis aí americanis mo da pior espécie", anotei naquela oportunidade. Que os 284 Adolf Willbrandt ( 1 83 7- 1 9 1 1 ) , escritor alemão, foi diretor do jornal Süddeutsche Zeitung, de Munique, depois de ter sido diretor do Teatro de Viena. 28 5 O autor usa a medida americana, 30 pés. 329
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jornalistas do Terceiro Reich eram bons aprendizes dos ame ricanos percebia-se pelo uso cada vez maior de letras em ne grito que apareciam amiúde nas manchetes, bem como pela reiterada omissão do artigo antes dos substantivos destacados, como no exemplo Volkischer Beobachter baut grofttes Verlags haus der Welt [Võlkischer Beobachter constrói maior casa edi torial do mundo] . As tendências militar, esportiva e comercial se uniam numa concisão enxuta. Será que o desvario dos americanos por números seria semelhante ao desvario nazista? Já naquela época eu tinha dúvidas a respeito disso. Não haveria uma ponta de humor naqueles " 1 0 metros de intestinos"? Não se podia perceber uma sinceridade ingênua nas cifras exageradas da publicidade americana? Seria como se o anunciante dissesse: "Caro leitor, eu e você bem gostamos de exagerar um pouquinho, mas nos entendemos, não é? Somos cúmplices, não somos? Nem eu estou mentindo nem você se deixa enganar, já que tira as suas conclusões de acordo com o que considera melhor. Conve nhamos, minha propaganda não é enganosa. Graças ao super lativo, ela simplesmente penetra na sua memória .de forma mais duradoura e mais agraqável! " Algum tempo depois, vi o livro de memórias Ich fand kei nen Frieden [ Não encontrei paz] , do jornalista americano Webb Miller, cuja edição alemã foi publicada pela editora Rowohlt em i 938. A paixão pelos números aparecia ali em uma declaração honesta. Bater recordes fazia parte da profis são. Mais honroso do que elaborar reflexões profundas era noticiar fatos usando os números da maneira mais ágil e mais exata possível. Miller menciona com orgulho que anunciara o início da guerra da Abissínia 45 minutos antes dos outros correspondentes, com precisão absoluta de detalhes (3 de ou tubro de 1 935, 4:44h, 4:55h, 5:00h). Sua breve e realista des crição de uni avião que sobrevoa os Bálcãs culmina na se330
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guinte frase: "Massas brancas (pesados bancos de nuvens) passavam voando ao nosso lado à velocidade de 1 00 milhas por hora." O que de pior se pode dizer da veneração americana pelos números é que se trata de autovalorização ingênua e de au toestima desmedida. Lembro-me de novo daquela anedota do elefante proposto como tema de redação a pessoas de diver sas nacionalidades. O americano decide escrever: "Como ma tei meu milésimo elefante': O alemão da piada, com seus ele fantes da guerra de Cartago, ainda pertence a um povo de pensadores, poetas e sábios estranhos a este mundo, vivendo em uma época que terminou há mais ou menos 1 50 anos. O alemão do Terceiro Reich, confrontado com a mesma ques tão, responderia: "Abati um número inconcebível dos maio res elefantes do mundo com a melhor arma do mundo:' O hábito da LTI de usar números pode ser uma imita ção dos usos e costumes americanos. Entretanto distingue-se de duas maneiras, não só pelo uso descabido do superlativo como pela crueldade consciente e a impostura sem escrúpulos. Os comunicados do Exército mostram números gigantescos de inimigos capturados; canhões, aviões e tanques contam-se aos milhares e dezenas de milhares, o número de prisioneiros chega a centenas de milhares. No fim do mês aparecem longas listas de números ainda mais inverossímeis. Quando a referên cia é ao número de inimigos mortos, então se abandona a exa tidão dos dados e surgem expressões que mostram a falta de imaginação: unvorstellbar [ inimaginável] e zahllos [ incontá vel ] . Durante a Primeira Guerra Mundial, a clareza e a objeti vidade dos boletins militares eram motivo de orgulho. A mo déstia dos boletins dos primeiros dias de guerra, apresentada até mesmo com algum charme, ficou famosa: "O objetivo de signado foi atingido." É certo que não se consegue manter sempre essa sobriedade, mas, como ideal de estilo, ela perma necia no horizonte, sem se perder completamente. 331
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Os comunicados do Terceiro Reich adotavam o superlativo de improviso. Quanto mais a situação se agravava, mais au mentava o seu uso, tornando-se desmesurado, até que a essên cia da linguagem militar - sua exatidão disciplinada - pas sou para o extremo oposto, para o fantástico, o imaginário. O caráter fabuloso do número de capturados torna-se mais nítido, pois nem sequer se mencionam as perdas. Nos filmes, as cenas de batalhas só mostram pilhas de cadáveres inimigos. Durante e depois da Primeira Guerra Mundial, a lingua gem do Exército e da guerra se infiltrou na linguagem civil. A peculiaridade da Segunda Guerra Mundial consistiu em que a linguagem do partido, a LTI propriamente dita, invadiu a linguagem militar e a devastou. A destruição total, que con sistiu em suprimir a limitação dos números e introduzir pa lavras como unvorstellbar e zahllos, foi gradativa. No início, só os correspondentes e os comentaristas se permitiam usar es sas palavras extremas. Depois foi a vez do Führer em suas fa las. Só no final os comunicados das forças armadas lançaram mão delas. O espantoso, aqui, era o caráter grosseiro da mentira, que transparecia nos próprios números. A doutrina nazista acre dita na estupidez das massas, consideradas incapazes de ra ciocinar. Em setembro de 1 94 1 o boletim do Exército dizia que 200 mil homens estavam cercados em Kiev. Poucos dias depois, nesse mesmo cerco, anunciaram-se 600 mil prisionei ros. Devem ter acrescentado toda a população civil ao núme ro de soldados. Na Alemanha, antes, era comum achar graça da imprecisão dos dados que vinham do Leste da Ásia. Nos últimos anos da guerra, os relatórios japoneses e alemães competiam no exagero. Pairava a dúvida: quem aprendia com quem? Goebbels com os japoneses ou vice-versa? O abuso dos números não aparece só nos comunicados de guerra. Nos primórdios de 1 943 todos os jornais publicaram que 46 milhões de cadernos de leitura, os assim chamados 332
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livros postais militares, haviam sido enviados aos soldados. Às vezes números menores também causavam impacto. Em novembro de 1 94 1 Ribbentrop 286 afirma que podíamos con tinuar a guerra por mais trinta anos. Em 26 de abril de 1 942 Hitler declara no Parlamento que Napoleão combatera na Rússia a uma temperatura de 25° negativos, mas que ele, o marechal Hitler, combatia a 45° negativos e já combatera a 52º negativos. Nessa superação do modelo ilustre - era ain da o tempo em que ele apreciava ser considerado um estra tegista e ser comparado a Napoleão -, além do ridículo in voluntário, parece-me que se copia o modelo americano dos recordes. Tout se tient, segundo os franceses, ou "tudo está interliga do': Essa expressão de origem Hundertprozentig [cem por cen to] americana vem do título do romance de Upton Sinclair,287 que foi amplamente difundido na Alemanha. Durante doze anos esteve na boca do povo, às vezes acompanhada de uma expressão complementar: "Cuidado com aquele cara, ele é um 'cento e cinquenta por cento'." Esse americanismo inconteste precisa ser comparado com o adjetivo "total': pretensão fun damental e palavra-chave do nazismo. "Total" representa o valor numérico máximo, tão cheio de significado em sua calculabilidade realista quanto os exces sos românticos unvorstellbar e zahllos. Todos se recordam das consequências funestas para a Alemanha da expressão totaler Krieg [guerra total ] , anunciada como um programa. Mesmo fora do âmbito bélico é possível encontrar o termo "total" na LTI: um artigo no Reich valorizava totale Erziehungssituation [o ambiente da educação total] em uma escola para moças de 2 86 Joachim Von Ribbentrop ( 1 893- 1 946) , ministro das Relações Exterio res de Hitler entre 1 938 e 1 945. 28 7 Upton Sinclair ( 1 878- 1 968), escritor americano. O romance citado é de 1 920. 333
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rígida observância nazista; em uma vitrine vi um jogo de ta buleiro que se chamava das totale Spiel [o jogo total] . Tout se tient. Os superlativos numéricos estão ligados ao princípio de totalidade, mas chegam também ao domínio re ligioso. Uma das aspirações básicas do nazismo é que uma re ligião germânica consiga substituir o cristianismo semita e não heroico. O adjetivo ewig [ eterno] , que suprime as fron teiras da duração, é usado com frequência: "eterna vigilância'� "duração eterna das instituições nazistas" e Tausendjiihriges Reich [ império milenar] , uma expressão mais impositiva e mais impactante que Terceiro Reich, quando tomada no sen tido religioso. É natural que o emprego do retumbante núme ro mil também seja apreciado, mesmo fora do âmbito religio so. Foram anunciadas "mil reuniões" para reforçar os ânimos em 1 94 1 , depois que as guerras-relâmpago não conseguiram obter vitórias decisivas. Pode-se chegar ao superlativo numérico também pelo lado inverso: a palavra einmalig [único] expressa o sentido superla tivo tanto quanto o termo "mil': Servindo de sinônimo para "excepcional'� despida de sentido numérico, a expressão estava em voga na filosofia e na poética neorromântica no final da Primeira Guerra Mundial. Stefan Zweig, Rathenau, pessoas que apreciavam a elegância e a inovação estilísticas, usam o termo. A LTI, e com predileção especial o próprio Führer, usam "único" amiúde e muito levianamente, de modo que seu aspecto numérico aparece de maneira cômica. Logo após a campanha da Polônia, doze oficiais foram promovidos a ma rechais-de-campo por seus atos de heroísmo "únicos". Cada µm demonstrou valor em uma batalha específica? Doze acon tecimentos "únicos" e doze marechais "únicos" equivalem a uma dúzia? (A partir daí a mais alta patente militar, de mare chal-de-campo, é depreciada e se cria uma nova patente su prema, de marechal-do-Reich.) 334
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Mas os superlativos numéricos correspondem apenas a um grupo específico de superlativos. Pode-se dizer que esta é a forma linguística mais usada pela LTI, o que é fácil de com preender, pois o superlativo é o melhor instrumento à dispo sição do orador e do agitador, a forma propagandística por ex celência. Por isso o Partido Nazista reservou para si o seu uso, tolhendo por decreto a propaganda comercial: em outubro de 1 942, disse-me Eger, nosso vizinho de quarto naquela época (no passado, proprietário de uma das mais conceituadas lojas de moda em Dresden; naquele momento, operário de fábrica, logo em seguida fuzilado por "tentativa de fuga" ) , uma circu lar proibira o uso do superlativo em anúncios comerciais. - Se, por exemplo, alguém escrevesse: "O senhor será atendido pelos melhores especialistas", era preciso trocar por "pessoal bem treinado': Além do superlativo dos números e de palavras assemelha das, podemos distinguir três tipos de superlativos, todos usa dos em profusão: a forma regular do superlativo dos adjetivos, as expressões isoladas que têm um valor superlativo inerente ou às quais se pode atribuir um valor superlativo, e as frases impregnadas de superlativos. Os superlativos regulares possuem um encanto especial quando são muito usados. Quando, há pouco, apresentei a versão "nazificada" da piada do elefante, lembrava-me da fra se usada pelo generalíssimo Brauchitsch,288 em seu tempo, _ para "apimentar" uma ordem militar: os melhores soldados do mundo receberam as melhores armas do mundo forneci das pelos melhores trabalhadores do mundo. Ao lado das formas regulares de superlativo, aqui se encon tra a palavra recheada de conteúdo superlativo, tal como a LTI 288 Walter von Brauchitsch ( 1 88 1 - 1 948), marechal-de-campo alemão. Su cedeu von Fritsch em 1 938 no comando do Exército do Reich e per maneceu no posto até 1 94 1 . 335
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usava no cotidiano. Quando, em ocasiões muito solenes, os poetas da corte celebravam a fama do Rei Sol no estilo afeta do do século XVII, diziam que l'univers [o Universo ] o con templava. A cada discurso, a cada manifestação de Hitler, du rante todos os doze anos - pois ele só se calou no final -, sempre veio à tona a seguinte manchete como estereótipo ofi cial: Die Welt hOrt auf den Führer [o mundo escuta o Führer] . Quando se vencia uma batalha grande, dizia-se que fora "a maior batalha" da Weltgeschichte [ história universal] . So zinha, porém, a palavra "batalha" rende pouco: travavam-se "batalhas de aniquilação". ( De novo se aposta despudorada mente no esquecimento das massas: quantas vezes se elimina o inimigo cuja morte já foi anunciada antes! ) Welt [mundo] sempre é um bom prefixo para o superlati vo: o Japão, país aliado, evolui de grande potência para Welt macht [potência mundial ] . Judeus e bolcheviques são Welt feinde [ inimigos mundiais] . Encontros entre o Führer e o Duce são welthistorische Stunden [ momentos importantes da história mundial] . Outra palavra com sentido superlativo se melhante a Welt é Raum [ espaço, região ] . Desde a Primeira Guerra Mundial não se diz mais a batalha de Kõniggrãtz ou de Sedan, mas Die Schlacht im Raume von. . . [a batalha que ocorreu na região de ... ] , o que indica a extensão dos combates. A ciência da geopolítica, favorável ao imperialismo, também pode ter contribuído para o uso frequente dessa palavra. Na representação do espaço há a sensação sedutora do ilimitado. Em 1 942, ao prestar contas, um Reichskomissar [comissário do Reich] afirma que nos últimos mil anos der ukrainische Raum [o espaço ucraniano] "nunca fora tão bem administrado, com tanta justiça, magnanimidade e modernidade como agora sob a direção da nossa Grande Alemanha nacional-socialista': "Espaço ucraniano" se encaixa melhor do que simplesmente "Ucrânia" no superlativo milenar e soa melhor com a tríade de substantivos abstratos. 336
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Grofizügig [ magnânimo ] e grofideutsch [ grande alemão ] são termos muito antigos, usados para enfatizar a grandilo quência das frases. A LTI abusou de tal forma do sufixo grofi [grande] - por exemplo, Grofikundgebung [ grande manifes tação ] , Grofioffensive [ grande ofensiva] , Grofikampftag [ dia da grande batalha] etc. - que ainda durante o período nazista o líder nacional-socialista Bõrries von Münchhausen protestou contra essa prática. Além de Welt e Raum, historisch [histórico] é outra pala vra carregada de sentido superlativo e usada com exagero. É historisch o que se instala por longo tempo na memória de um povo ou da humanidade, passando a exercer influência duradoura. Na LTI, porém, historisch é atribuído a todas as ações dos dirigentes nazistas, civis ou militares, mesmo as mais óbvias. Para os discursos e decretos de Hitler tem-se à disposição o supersuperlativo welthistorisch [ de importância histórica mundial] . Qualquer bravata serve para impregnar frases inteiras com teor superlativo. Escuto no rádio da fábrica uma frase qualquer, pronun ciada em uma manifestação no Palácio de Esportes de Berlim. É verão de 1 943, Goebbels e Speer discursam. Começa assim: "A grande manifestação será transmitida pelas emissoras do Reich. As emissoras do protetorado, 289 da Holanda, França, Grécia, Sérvia... e dos Estados aliados, Itália, Hungria e Romê nia, estão em rede." Isso continua por algum tempo. Obtém se assim um efeito superlativo ainda mais forte no imaginário popular do que com a manchete Die Welt hort auf den Führer [o mundo escuta o Führer] , porque aqui se vê o mapa-múndi nazista. Depois de Speer apresentar cifras descomunais re ferentes a armamentos, Goebbels exalta ainda mais os suces289 Os nazistas chamavam a atual República Tcheca e a atual Eslováquia, que mantinham sob ocupação desde 1 938, de "protetorado da Boê mia-Morávia': 337
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sos alemães, contrapondo a exatidão das estatísticas alemãs à "acrobacia judaica dos números" dos inimigos. Contar vantagens e desprezar: não há um só discurso do Führer que não abuse exaustivamente de ambas as coisas, enumerando de maneira prolixa as próprias proezas e xingan do depreciativamente o adversário. O estilo áspero de Hitler era polido por Goebbels em uma retórica refinada. A forma mais medonha de malversação do superlativo se deu em 7 de maio de 1 944. É iminente o desembarque das forças anglo americanas no litoral do Atlântico e vem escrito no Reich: "A maior preocupação do povo alemão é que a invasão não se realize... Se o inimigo quiser iniciar esse empreendimento im pensado, com tanta frivolidade, então, boa-noite!" Para quem vê as coisas retrospectivamente, é o cúmulo do espanto. Será que um leitor atento, na época, não poderia per ceber o desespero por trás dessa máscara de certeza absoluta na vitória? A maldição do superlativo não apareceu aqui com clareza? Essa maldição está presente em todas as línguas. Em toda parte, o exagero permanente pede nc;>vos excessos que, de tão reforçados, conduzem ao ceticismo e, finalmente, à descrença. Isso ocorre em toda parte, mas algumas línguas são mais pro pensas ao superlativo que outras: nos países latinos, nos Bál cãs, no Extremo Oriente e provavelmente também na Améri ca do Norte toleram-se doses de superlativo mais elevadas do que na Alemanha. O que nesses outros países se sente como uma leve e agradável elevação de temperatura aqui se sente como uma febre. Talvez seja essa a razão, ou uma razão a mais, de o superlativo ter invadido a LTI com tamanho ímpe to: epidemias grassam com mais virulência quando aparecem pela primeira vez. Hoje se pode dizer que no século XVII, sob influência ítalo-espanhola, a Alemanha conheceu essa doença da lingua gem; mas a ostentação daquela época foi um tumor benigno 338
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destituído da intenção venenosa de usar deliberadamente a demagogia contra o povo. O superlativo maligno da LTI é um fenômeno sem pre cedentes na Alemanha. Por isso seus efeitos são devastadores desde o primeiro momento. Faz parte de sua natureza refor çar-se continuamente até atingir o nível da insensatez e da ineficácia, produzindo efeitos opostos à sua intenção. Quan tas vezes anotei em meus Diários que essa ou aquela frase de Goebbels era uma mentira descarada e que ele não podia ser considerado um gênio da propaganda? Quantas vezes fiz piadas sobre seu Maul und Stirn [ miolo mole e cara dura] ? Quantas vezes escrevi insultos amargos como reação às suas mentiras desavergonhadas que pretendiam representar a "voz do povo" e recuperar o ânimo? Não há uma vox populi [voz do povo] , mas voces populi [vozes do povo] . A verdadeira é aquela que determina o rumo dos fatos, o que só podemos perceber a posteriori. Nem dá para afirmar, com segurança, se todos os que riram ou se in dignaram com as mentiras descaradas de Goebbels permane ceram imunes a elas. Durante o período em que fui professor em Nápoles, quantas vezes ouvi dizer de tal ou qual jornal e pagato [é pago] , ou seja, mente para agradar a quem o con trola. No dia seguinte, as mesmas pessoas que tinham gritado Pagato! acreditavam de pés juntos em outras mentiras pu blicadas no mesmo jornal. P<:> r quê? Porque eram publicadas com letras graúdas e outras pessoas acreditavam nelas. Em 1 9 1 4 eu achava que isso se devia à ingenuidade e ao temperamento dos napolitanos. Afinal, já em Montesquieu aparece: Plus peuple qu'ailleurs [ Lá se é mais povo do que em outros lugares] . Desde 1 933 estou seguro do que sempre su pus mas não queria. admitir: é fácil criar esse plus peuple qu'ailleurs em qualquer lugar. No psiquismo de cada pessoa culta há uma porçãozinha de alma que é povo. Em algum momento minha acuidade crítica não será capaz de me defen339
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der das mentiras - a qualquer momento serei dominado pela mentira que me bombardeia por todos os lados, quando dei xarem de existir à minha volta aqueles que ainda duvidam da mentira, inicialmente poucos, cada vez menos, até desapare cerem todos. Não, a maldição do superlativo não é tão simples como se ria de supor pela lógica. É certo que a bravata e a mentira aca bam se sufocando e sendo reconhecidas como tais; no final, para muitos, a propaganda de Goebbels havia se tornado uma bobagem ineficaz. Mas também é certo que a propaganda, mesmo quando reconhecida como mentira e bravata, conti nua a surtir efeito, desde que se tenha o descaramento e a cara dura de sustentá-la de maneira imperturbável. A maldição do superlativo nem sempre é autodestrutiva, mas quase sempre destrói o intelecto daqueles que se contrapõem a ela. Talvez Goebbels fosse mais esperto do que eu estava disposto a acei tar. A bobagem ineficaz talvez não fosse nem tão boba nem tão ineficaz. Diários, 1 8 de dezembro de 1 944: à hora do almoço o rádio transmitiu uma notícia extraordinária, a primeira há muitos anos! Bem no estilo dos tempos da ofensiva e das "batalhas de aniquilação" : "Lançamos um grande ataque-surpresa a partir de posições fortificadas no Atlântico [ ... ] depois de uma breve mas potente salva de artilharia [ ... ] tomamos de assalto a primeira posição americana ..." Por trás disso tudo mal se esconde um blefe desesperado. Lembro do final de Don Car los, de Schiller: "Que esta seja minha última impostura. É a tua última." 20 de dezembro de 1 944: Goebbels fala há semanas do esforço alemão de resistência. Segundo ele, a imprensa alia da estaria chamando isso de "milagre alemão". É miraculoso. A guerra ainda pode durar muitos anos ...
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CAPITU LO 3 1
I NTERROMPER O IMPULSO AO MOVI M ENTO
Em 1 9 de dezembro de 1 94 1 o Führer, agora já também gene ralíssimo, dirige um apelo ao front do Leste. As palavras mais importantes foram mais ou menos estas: "Depois de vitórias eternas e sem precedentes na história da humanidade, lutando contra o mais perigoso inimigo de todos os tempos, agora os exércitos do Leste devem interromper aus dem Zug der Bewe gung [o impulso ao movimento ] para iniciar uma guerra de posição, por causa da brusca chegada do inverno. Meus sol dados! Vocês vão entender, meu coração é todo seu . . . mas meus pensamentos e minha determinação estão totalmente voltados à aniquilação do inimigo, ao final vitorioso da guer ra ... Deus, Nosso Senhor, não negará a vitória aos seus sol dados mais intrépidos! " Essa exortação assinala uma reviravolta decisiva não so mente na história da Segunda Guerra Mundial, mas também na história da LTI. Como guinada linguística, representa uma dupla sinalização no habitual tecido de presunções, aqui leva das ao delírio. A exortação fervilha de superlativos de triunfo, mas o pre sente se transformou em futuro. Desde o início da guerra vê se por toda parte um anúncio coberto de bandeiras com esta mensagem otimista: Mit unsern Fahnen ist der Sieg! [A vitória está com nossas bandeiras! ] . Até então se dizia aos aliados que eles tinham sido definitivamente vencidos, especialmente os russos, e que jamais conseguiriam voltar à ofensiva depois das derrotas iniciais. Eis que agora a vitória é postergada para um tempo indefinido, sendo necessário colocá-la nas mãos de Deus. Daí em diante a palavra Endsieg [vitória final] ganha força como expressão de nostalgia e de espera, por meio da 341
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fórmula usada pelos franceses na Primeira Guerra Mundial: on les aura [vamos pegá-los] . Traduzida como "a vitória será nossa': foi usada em um cartaz e em um selo que mostra a águia do Reich tentando capturar a cobra inimiga� A reviravolta não se manifesta só no tempo dos verbos. Os grandes esforços não conseguem dissimular que "avançar" se transformou em "retroceder"; buscam-se posições em que se agarrar. Bewegung [ movimento] se cristalizou em Stellungs front [front de trincheiras] : na LTI essa palavra significa muito mais do que em qualquer outra língua. Em inúmeros textos e artigos, em inúmeras expressões e diferentes contextos sem pre nos disseram que Stellungskrieg [guerra de trincheiras] era um erro, uma fraqueza, um pecado que o Exército do Tercei ro Reich jamais cometeria, agora ou em qualquer tempo, pois Bewegung era a quinta-essência do nacional-socialismo, sua característica principal, sua vida; depois da Aujbruch [parti da] , palavra sagrada da LTI e emprestada do romantismo, ja mais haveria sossego. Não havia espaço para ceticismo, pon deração, willenschwach [ fraqueza] , coisas do regime anterior. Não se devia deixar as coisas exercerem influência sobre nós, e sim influenciá-las, conforme a Gesetz des Handelns [lei da ação] criada por Clausewitz e usada na guerra ad nauseam, até cair no ridículo. Em estilo pomposo, para exibir cultura, é preciso ser dynamisch [ dinâmico] . O futurismo de Marinetti 29º influenciou o fascismo italia no e também os nacional-socialistas. Um expressionista ale mão chamado Johst, amigo de diversos escritores que se tor naram comunistas, foi presidente da Academia de Letras do 290
Marinetti ( 1 876- 1 944), escritor italiano e ativo participante no mo vimento artístico denominado futurismo nas primeiras duas décadas do século XX. Seus seguidores foram adeptos do fascismo, mas se afas taram de Mussolini quando ele se tornou ditador. Esteve no Brasil em 1 923. 342
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Reich. Tendenz [tender a] , um movimento vigoroso dirigido a um objetivo, tornou-se o mandamento absoluto, elementar e universal. Movimento é de tal forma a essência do nazismo que ele se denomina die Bewegung [o movimento] . Munique, sua cidade natal, passou a ser chamada die Hauptstadt der Bewegung [a capital do movimento] . Apesar do hábito de pro curar palavras sonoras e excessivas para descrever tudo que considera importante, o nazismo manteve a singeleza do ter mo movimento, que lhe é tão caro. Um desejo de movimento e ação domina o vocabulário da LTI. Sturm [ímpeto, assalto] está presente no início e no fim: começou com as SA, Sturmabteilungen [ divisões de assalto] , e quando chegou finalmente à Volkssturm [ milícia popular] ,291 variação da Landsturm de 1 8 1 3,292 tudo praticamente tinha acabado. As SS possuíam o Reitersturm [assalto de cavalaria] , o Exército as Sturm trupps [ tropas de assalto ] e os Sturm geschütze [canhões de assalto ] , e o nome do jornal publicado para atiçar o ódio contra os judeus era Der Stürmer [Aquele que Assalta] . As primeiras ações heroicas das SA chamaram-se Schlag artige Aktionen [ ações fulminantes] , e o jornal de Goebbels chamava-se Angriff [ataque] . A guerra tinha de ser uma Blitz krieg [guerra-relâmpago ] . De modo geral, o jargão dos espor tes nutre a linguagem cotidiana da LTI. A vontade de agir produz novos verbos. Livrar-se dos ju deus era entjuden [ "desjudaizar" ] . Passar todos os negócios para as mãos dos arianos era ariesieren [ "arianizar" ] . Purifi car o sangue dos antepassados requeria aufnordnen [ "torná291
Por meio de decreto datado de 25 de setembro de 1 944, quando a guerra se aproximava do fim, Hitler promulgou a ordem de criar a Volkss turm, uma tropa militar formada por homens entre 1 6 e 60 anos. 292 Referência à decisão da Prússia, em 1 8 1 3, de incorporar ao Exército todos os homens de 17 a 50 anos. 343
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lo mais nórdico" ] . Verbos intransitivos passam a ser transiti vos para acompanhar as novas possibilidades da tecnologia. Emprega-se fliegen [voar] quando se "pilota" uma máquina grande e quando se transporta por aviões; botas e provisões "voam". A mesma coisa com o verbo frieren [congelar] : con gelam-se verduras, quando antigamente se tratava de resfriá las, o que era muito mais sutil. Aqui aparece também a intenção de se exprimir de manei ra mais sucinta e mais rápida. A mesma intenção transforma o Berichterstatter [correspondente da imprensa] em Berichter [correspondente] , o Lastwagen [caminhão] em Laster ou LKW [abreviatura de Lastkraftwagen, outra palavra para caminhão] , o Bombenflugzeug [ avião bombardeiro ] em Bomber [bombar deiro ] . No limite, substitui a palavra pela abreviatura. Assim a sequência Lastwagen, Laster e LKW corresponde a uma gra dação normal, que evolui, em um crescendo, do positivo ao superlativo. A preferência pelo superlativo e, de modo geral, toda a retórica da LTI decorrem do princípio do movimento. Agora, porém, é preciso mudar tudo, passando do movi mento à paralisia, ou melhor, ao retrocesso! Charlie Chaplin consegue seu efeito de maior comicidade quando, durante uma fuga precipitada, imobiliza-se subitamente como se fos se uma figura de cera ou uma estátua. A LTI não pode cair no ridículo. Precisa disfarçar o fato de que o seu Aufwii.rts! ["Para frente e para o alto ! " ] se tornou Abwii.rts! [ "Meia-volta, vol ver! " ] . Não pode admitir que esse discurso dirigido às tropas do Leste marque sua fase final. É óbvio que sempre se procu rou dissimular: desde a Primeira Guerra Mundial a palavra Tarnung [ disfarce ] , dos contos da carochinha, tornou-se uma expressão consagrada. Até aqui, porém, o que se encobria era o ato criminoso. A partir de agora se encobre a impotência: Seit heute morgen erwidern wir das Feuer des Gegners [Hoje, desde cedo, revidamos o fogo inimigo ] , dizia o boletim de guerra. 344
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É preciso evitar a expressão Stellungsfront [front de trin cheiras] , contrária ao princípio do Terceiro Reich e de triste memória na Primeira Guerra Mundial. Também se deve es conder tanto quanto possível que os repolhos daqueles tem pos terão de retornar às mesas. A LTI ganha uma expressão nova, que começa a aparecer constantemente: beweglicher Ver teidigungskrieg [guerra de defesa em movimento] . Já que te mos de admitir que agora somos forçados a nos defender, pelo menos podemos preservar a nossa autenticidade, graças à expressão "móvel", "em movimento". Não nos defendemos no espaço restrito de uma trincheira; combatemos com am pla liberdade espacial em uma fortaleza de dimensões gigan tescas. Nossa fortaleza se chama Europa, e durante muito tem po se fala do Vorfeld [ campo avançado ] 293 da África. Do ponto de vista da LTI, Vorfeld é uma palavra duplamente feliz, pois, de um lado, significa que ainda temos liberdade de movimen to; de outro, significa que, se quisermos, podemos abandonar nossa posição na África sem que isso represente uma perda significativa. Mais tarde, a "fortaleza Europa" se tornará "for taleza Alemanha" e bem no final passará a ser "fortaleza Ber lim'', pois o Exército alemão não deixou de se movimentar, nem mesmo nos últimos tempos da guerra. Nunca se disse que se tratava de uma retirada contínua, sempre encoberta por sucessivos véus. Os termos Niederlage [derrota] , Rückzug [ retirada] e Flucht [ fuga] nunca foram pro nunciados. Em vez de Niederlage dizia-se Rückschlag [ revés] , que aparenta ser menos definitivo; em vez de Flucht usava-se vom Feind absetzen [ distanciar-se do inimigo ] . O inimigo nunca conseguia durchbrechen [penetrar] , apenas einhbrechen [ irromper] ; na pior das hipóteses havia tiefe Einhbrüche [ ir rupções profundas] , sempre contidas ou bloqueadas, pois o 293 Ao pé da letra, é a área que fica defronte e antecede o campo onde será travada a batalha. 345
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nosso front tinha elasticidade. De tempos em tempos, para ne gar que o inimigo estivesse em vantagem, assumíamos por vontade própria um Frontverkürzung [encurtamento do front] ou uma Frontbegradigung [ retificação do front] . Enquanto essas medidas estratégicas ocorriam no exterior era possível esconder do povo a gravidade da situação. Na pri mavera de 1 943, no Reich do dia 2 de maio, Goebbels inovou ao lançar um diminutivo gracioso: "Em alguns pontos peri féricos das operações de guerra padecemos de anfiillig sein [ligeira fragilidade] ." Anfiillig se diz de pessoas suscetíveis a resfriados, a distúrbios estomacais, mas não de pessoas seria mente doentes ou que estejam enfrentando uma situação crí tica. Goebbels tratou essa "fragilidade" como uma sensibilida de excessiva do nosso lado e uma fanfarronice dos inimigos: "Os alemães, mimados por tantas vitórias, reagem intensa mente a qualquer revés, enquanto os inimigos, habituados a ser golpeados, alardeiam com grande exagero o mais insigni ficante sucesso periférico:' A abundância de eufemismos é tanto mais espantosa quanto mais intenso é seu contraste com a visceral pobreza da LTI. De fato, havia até mesmo algumas metáforas esparsas, embora não fossem criação da LTI. Seguindo o modelo do "general Danúbio'', que em Aspern294 se interpôs no caminho do marechal Napoleão, o marechal Hitler copia o "general Winter" [ inverno] , que passa a ser uma personalidade muito citada. Lembro-me somente do "general Hunger" [ fome] , mas com certeza ouvi muitas outras alegorias de generais. Dificul dades que não podiam ser negadas eram chamadas de Engpass [ gargalo] , expressão quase tão bem escolhida quanto Vorfeld, pois também insinuava a ideia de movimento (de quem quer forçar passagem) . Certa vez, um correspondente dotado de 2 94 Aldeia austríaca no distrito de Viena onde ocorreu a batalha de As pern em 1 809. "General Danúbio" é uma referência irônica ao rio que impediu o avanço das tropas de Napoleão. 346
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refinado senso linguístico ressaltou esse aspecto, devolvendo a expressão ao sentido original, apagado pela metáfora. Rela tou que um comboio de blindados se aventurara a passar por um gargalo entre dois campos minados. Esses eufemismos suaves, usados para descrever situações graves, duraram muito tempo, já que os inimigos, em con traste com o hábito alemão da Blitzkrieg, empreendiam so mente Schneckenoffensive [ ofensiva de lesmas] e avançavam em Schneckentempo [ ritmo de lesma] . Somente no último ano de guerra, quando não havia mais como esconder a tragédia, ela recebeu um nome um pouco mais claro, mesmo assim ainda ambíguo. As derrotas passaram a ser chamadas de "cri ses': mas a palavra nunca aparecia sozinha: ou se desviava a atenção da Alemanha para a "crise mundial" ou para a "crise dos Abendliinder" [países ocidentais] , ou se usava uma expres são que logo se torno � um estereótipo: gemeisterte Krise [ cri se administrada] . ''Administrar" consistia em resgatar, expres são usada para dizer que alguns regimentos haviam escapado aos cercos nos quais divisões inteiras haviam sido perdidas. Também se "administrava" a situação quando não se admitia ter sido empurrado pelo inimigo para dentro das fronteiras alemãs, preferindo-se dizer que se havia permitido que eles entrassem no território alemão para exterminar os que avan çassem mais. "Nós os deixamos entrar. Em 20 de abril295 ha verá grandes mudanças." Ouvi isso em abril de 1 945. 296 Finalmente chegou a "nova arma': cristalizada em uma fór mula, a letra V, convertida em palavra mágica, dotada do po der fabuloso do superlativo. Se o VI não deu certo, se o V2 permaneceu sem efeito, por que não perseverar na esperança do V3 e do V4?297 295 Data do aniversário de Hitler. 2 96 A Alemanha se rendeu em 7-8 de maio de 1 945. 297 V l e V2 foram foguetes desenvolvidos pelos alemães. Disparados do continente, os V2 atingiam Londres. 347
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Eis o último grito de desespero de Hitler: "Viena será no vamente alemã, Berlim continuará alemã e a Europa jamais será russa." Agora que seu poder acabou, ele suprime até mes mo aquele tempo futuro da vitória final, que há muito substi tuíra o tempo presente original. "Viena será novamente ale mã" - é preciso sugerir aos crédulos que o impossível ainda pode ocorrer. Um dos "V" haverá de conseguir! Revanche estranha da letra mágica: "V" foi inicialmente o sinal de reconhecimento entre os combatentes clandestinos na Holanda ocupada: significava Vrijheid [liberdade] . Os nazis tas apropriaram-se desse sinal, deram-lhe o sentido de "vitó ria" e despudoradamente impingiram à antiga Tchecoslová quia, país tiranizado com mais crueldade do que a Holanda, ter sempre à vista nos selos postais, nas portas dos automó veis, nos vagões dos trens, em toda parte, em lugar bem visí vel, esse sinal fraudulento de vitória. Então, na fase final da guerra, o "V" passou a representar a abreviatura de Vergeltung [ represália, desforra] , emblema da "nova arma" que deveria nos vingar e pôr fim ao sofrimento infligido à Alemanha. Mas os aliados avançavam inexoravelmente. Não houve oportuni dade de lançar outras armas "V" sobre a Inglaterra, tampou co de proteger as cidades alemãs das bombas inimigas. Quan do nossa Dresden foi destruída, não houve sequer um disparo defensivo, nenhum avião alemão decolou ... A represália che gou, mas contra a Alemanha.
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Em uma carta, Rathenau menciona que ele fora favorável a uma paz negociada, contra a qual Ludendorff298 se insurgira para auf Sieg kiimpfen [lutar até a vitória] , conforme sua pró pria expressão. A linguagem provém do turfe, onde se aposta ou para vencer ou por uma boa classificação. Rathenau, um esteta, critica essa expressão, colocando-a entre aspas, indig nado com seu uso em questões bélicas, apesar de originar-se de um esporte apreciado pela antiga aristocracia e pelos gru pos mais feudais do corpo de oficiais. Havia tenentes e ca pitães de cavalaria cujos sobrenomes pertenciam às famílias mais aristocratas. Para o senso refinado de Rathenau, isso não servia como atenuante para a grande diferença entre jogos es portivos e a gravidade sangrenta da guerra. O Terceiro Reich se empenhou em ocultar essa diferença. Jogos pacíficos, criados para preservar a saúde do povo, que aparentavam um ar de inocência, tornaram-se treinamentos bélicos, tratados na consciência popular como coisas tão sé rias como a guerra. Aos olhos de Hitler, os acadêmicos da re cém-criada Escola Superior de Esportes eram no mínimo tão importantes quanto os outros acadêmicos, ou mais impor tantes ainda. Essa avaliação era corroborada e encorajada em meados da década de 1 930 pelos nomes atribuídos às marcas de cigarros: fumava-se Sportstudent [ estudante que pratica es portes] , Wehrsport [esporte de defesa] ,299 Sportbanner [porta bandeira do esporte] e Sportnixe [ ninfa do esporte] . 298
Erich von Ludendorff ( 1 865- 1 937), general alemão, chefe do estado maior entre 1 9 1 6 e 1 9 1 8, durante a Primeira Guerra Mundial. 299 O Dicionário Porto traduz, significativamente, como "preparação mi litar''. 349
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Outro elemento que contribuiu para a popularização e glorificação do esporte foi a Olimpíada de 1 936 em Berlim. Nesse evento internacional o Terceiro Reich fez muita ques tão de que o mundo o visse como a liderança cultural do mundo civilizado. Como a proeza física era colocada no mes mo pedestal que a cultural, ou até mesmo acima, a Olimpía da foi tratada com tanto destaque que até o preconceito racial ficou em segundo plano no meio do deslumbramento, como foi o caso da campeã de florete, a judia Hélene Meyer, conhe cida como die blonde He [a loura He] , autorizada a disputar para arrebatar essa vitória para a Alemanha, e o campeão de salto, um negro americano300 que foi festejado como se um nórdico ariano tivesse conseguido um feito magistral. A revis ta Berliner Illustrierte mencionou o "tenista mais genial do mundo", para logo em seguida comparar seriamente uma vi tória olímpica às ações de Napoleão. O prestígio conferido à indústria automobilística - fosse pelas Strassen des Führers [ estradas do Führer] ou pelas corri das dentro e fora do país, apresentadas como feitos heroicos - concede ao esporte uma terceira forma de valorização e ampliação de seu prestígio. Tudo que fortalece os esportes mi litares e as Olimpíadas ocupa o centro das atenções, desvian do a atenção do problema crucial do desemprego. �tes que os esportes de defesa, as Olimpíadas e as "estra das do Führer" pudessem entrar em cena, Hitler já nutria uma paixão simples e brutal. Em Mein Kampf, quando discute os "fundamentos pedagógicos do Estado volkisch [ racial] " e tra ta os esportes detalhadamente, estende-se mais longamente sobre o boxe. Suas considerações culminam com a frase: "Se toda a nossa elite intelectual, em vez de ter tido uma forma ção tão grã-fina, tivesse aprendido a lutar boxe, jamais teria ocorrido uma revolução alemã de cafetães, desertores e outros 3 00 Klemperer refere-se a Jesse Owens. 350
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canalhas:' Pouco antes, Hitler defendeu o boxe da acusação de ser um esporte brutal, talvez com razão, pois não sou espe cialista no assunto; entretanto, sua maneira raivosa de falar transforma esse esporte em uma atividade boçal ( não prole tária, não popular) . Tudo isso tem de ser levado em consideração quando se pretender captar o papel que os esportes tiveram nos textos de Goebbels, unser Doktor [ nosso doutor] . Há anos Goebbels é chamado de dr. Goebbels, há anos ele próprio assina os ar tigos como doutor, e no partido esse título alcança o mesmo prestígio que tinha na época dos doutores fundadores da Igre · ja. 3 01 Nosso doutor é o formador de opinião e constrói a lin guagem das massas, mesmo que tome de empréstimo alguns chavões do Führer e mesmo que Rosenberg, como filósofo do partido, esteja à frente de uma instituição que compreende, entre outros, um Instituto para Pesquisa do Judaísmo. Goebbels lança seu princípio diretor em 1 934 na Parteitag der Treue [ Convenção Partidária da Lealdade] , que recebeu esse nome para apagar qualquer vestígio da revolta do general Rõhm: Wir müssen die Sprache sprechen, die das Volk versteht. Wer zum Volke reden will, mufl, wie Martin Luther sagt, dem Volk aufs Maul sehen [ Temos de falar a língua que o povo compreende. Quem quiser se comunicar com o povo tem de fazer como Martinho Lutero dizia, olhar para a fuça do povo ] . O local de onde o conquistador e Gauleiter da capital do Reich - mesmo no final, quando Berlim já não passava de uma ca pital moribunda, em frangalhos, isolada do mundo, quando várias partes do Reich havia muito estavam nas mãos dos ini migos -, o local de onde Goebbels mais se dirige aos berli nenses é o Sportpalast [ Palácio dos Esportes] , e a linguagem que lhe parece mais próxima do povo, e à qual ele recorre com mais facilidade, é a do esporte. Nunca lhe passou pela cabeça 301
Alusão a Martinho Lutero, também chamado de doutor. 351
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que é uma afronta comparar o heroísmo militar com o de sempenho esportivo. Guerreiro e esportista se encontram no Gladiatorentum [ser gladiador] , sinônimo de heroísmo. Para ele, toda disciplina do esporte é válida como forma de expressão. Essas palavras lhe soam tão familiares, acostuma se tanto com o uso de metáforas esportivas, que deixa de per ceber seu aspecto metafórico. Eis uma frase de setembro de 1 944: Uns wird der Atem nicht ausgehen, wenn es zum Endspurt kommt [ Não nos faltará fôlego quando chegar a etapa final] . Ao dizer isso, não creio que Goebbels tivesse diante de si a imagem do ciclista ou do fundista no momento do último es forço. Afirmava com segurança que o campeão seria "aquele que alcançasse a fita de chegada, mesmo que fosse somente uma cabeça na frente dos outros". Nesse caso o detalhe sugere que ele usa a imagem de modo verdadeiramente metafórico, lembrando o final de uma corrida de cavalos. Em outra oca sião assistimos em sua fala a uma partida inteira de futebol com todos os seus termos técnicos. Em 1 8 de julho de 1 943, Goebbels escreveu no Reich: "Da mesma forma que o estado de ânimo dos vencedores de um jogo de futebol é diferente quando entram e deixam o campo, assim também se sentirá um povo se uma guerra terminou ou se começou ... Nesse es tágio [ inicial] da guerra, o conflito militar não podia de jeito nenhum ser considerado aberto. Combatíamos exclusivamen te na grande área do inimigo ..." Agora pedem que os parcei ros do Eixo capitulem!3º2 "É como se o capitão de um time perdedor exigisse que o time vencedor, ganhando a partida de 9 x 2, se retirasse de campo. Qualquer time que concordasse com isso exporia seus jogadores ao ridículo e eles mereceriam ser humilhados. O jogo estava ganho, faltando somente ga rantir a vitória." 302 Mussolini foi destituído em 25 de julho de 1 943. O Partido Fascista italiano foi dissolvido três dias depois. 352
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Às vezes o nosso doutor mesclava expressões de diversos esportes. Em setembro de 1 943 ele ensina que não se demons tra força somente batendo, mas também encaixando golpes. A principal preocupação é jamais mostrar as pernas bambas. "Senão'� ele continua, mudando do boxe para o ciclismo, "cor remos o risco de ficar para trás, abgehangt [subordinados] ." A maioria das imagens, as mais fáceis de ser lembradas e as mais brutais, sempre foram tiradas do boxe. Eis a frase que Goebbels encontrou para expressar coragem após a tragédia de Stalingrado, que tantas vidas custou: "Depois de passar um pano nos olhos para limpar o sangue, enxergar melhor e par tir para o próximo round, estaremos de novo com as pernas firmes." Poucos dias depois: "Um povo que até agora só lutou boxe com a mão esquerda, protegendo a direita para usá-la sem piedade no próximo round, não tem motivos para con ciliações:' Na primavera e no verão seguintes, quando as ci dades alemãs estavam desmoronando, com os moradores ten do de fazer sob escombros os enterros uns dos outros, quando a esperança na vitória final dependia das ilusões mais absur das, Goebbels encontrou as seguintes imagens para a situação: "Depois de ter alcançado o título mundial de pugilismo, um boxeador não fica mais fraco, mesmo que o adversário lhe te nha quebrado o nariz." E: "O que faria até mesmo um senhor elegante se fosse atacado por três maus elementos que estives sem mais interessados em nocauteá-lo do que em seguir as regras do boxe? Tiraria o paletó e arregaçaria as mangas."3º3 Essa é a imitação mais grosseira da admiração plebeia pelo boxe, a admiração que Hitler explora. O que se encontra por trás dela, escondida mas bem nítida, é a promessa vã da arma nova, desconhecida. Quero fazer justiça a todas as grosserias da propaganda de Goebbels: a duração e a extensão de seus efeitos falam por si. 303 Essa expressão foi usada com frequência no discurso nazista. 353
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Mas não creio que as figuras do boxe tenham atingido seus objetivos. É certo que tornaram popular a figura do nosso Doktor, bem como da guerra, mas em um sentido diferente do pretendido: elas esvaziaram o que havia de heroico, oferece ram brutalidade e, por fim, veio a indiferença própria dos mercenários ... Em dezembro de 1 944 o Reich publicou um artigo encora jador do renomado escritor Schwarz van Berk. Sua reflexão era apresentada de maneira desapaixonada: "Poderá a Alema nha perder por pontos essa guerra? Digo que não." Seria in correto falar aqui de um coração brutal, como nas frases que Goebbels encontrou para o desastre de Stalingrado. Mas de sapareceu todo o sentimento da imensa distância que separa o boxe e a guerra. Esta última perdeu a grandeza trágica ... Vox populi. . sempre de novo a questão. Entre os que viven ciaram tudo isso, qual será a voz decisiva? Nas semanas finais da nossa fuga, que coincidiu com o fim da guerra, encon tramos um grupo que seguia para uma aldeia da Alta Baviera, próximo a Aichach. Estavam ocupados cavando buracos fun dos. Ao lado havia os que observavam, alguns mutilados de guerra, de uniforme, tendo somente uma perna ou um braço, outros com idade avançada; começavam uma conversa ani mada. Ficou claro que eram soldados do Volkssturm, que, ins talados nos buracos, deveriam usar suas armas para atirar nos veículos inimigos que passassem. Durante esses dias, com tudo em colapso, eu tinha ouvido repetidamente as mais ex traordinárias profissões de fé na vitória próxima; mas o que se dizia ali era que não tinha mais sentido resistir, que essa guerra fútil estava por acabar e a derrota era um fato consu mado. A conversa seguia assim: - Pule no buraco. - Para dentro de minha própria cova? ... Eu não. - E se te ameaçassem com a forca? .
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- Está bem, então eu desceria, mas levaria uma toalha comigo. - Todos deveríamos levar, para agitá-la como uma ban deira branca. - Tenho uma ideia melhor. Eles são americanos, são des portistas. Nós deveríamos jogá-la como se joga a toalha no ringue ...
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GEFOLGSCHAFT304
Sempre que ouço a palavra Gefolgschaft revejo diante de mim duas imagens da nossa Gefolgschaftssaal [ sala do pessoal da fábrica] na Thiemig & Mõbius. Acima da porta, em letras grandes, lemos Gefolgschaftssaal. As vezes um cartaz fica pen durado na porta: "Judeus! ': Na porta do banheiro ao lado há o mesmo cartaz, como uma advertência. Quando isso aconte ce, providencia-se para a sala, que é muito comprida, uma mesa em formato de ferradura, com as cadeiras correspon dentes e os ganchos nas paredes para pendurar casacos. Esses ganchos ocupam a metade do comprimento de uma das pa redes longitudinais, enquanto na parede transversal se encon tram o púlpito e um piano de cauda. Além disso só há o mes mo relógio elétrico que se vê pendurado em qualquer fábrica ou escritório. Se os dois cartazes não estiverem mais pendurados, então o púlpito estará coberto por um tecido com a suástica, e ban deirinhas com suásticas enfeitarão uma foto de Hitler. Uma guirlanda entrelaçada com bandeirinhas com suásticas, da al tura de uma pessoa, ornamenta toda a sala, rodeando a pa rede revestida de madeira. Quando isso acontece, a simpli cidade de sempre se torna festiva. Nossa meia hora de almoço é mais alegre, pois precisaremos deixar o local quinze minu tos mais cedo: logo depois do horário de trabalho a sala será judenrein [purificada da presença dos judeus] , recuperada as sim para seus usos culturais. 304 Comitiva, séquito, grupo de seguidores, partidários, sequazes ou adep tos. Na Idade Média a palavra representava a fidelidade do vassalo ao suserano. Na linguagem nazista significava o conjunto de operários de uma fábrica. 357
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Tudo isso tem a ver, por um lado, com as severas reco mendações da Gestapo e, por outro, com o senso humanitá rio do nosso chefe, o que lhe custou riscos e dissabores, mas para nós valeu um pedaço de salsicha de cavalo da cantina ariana. A Gestapo recomendara a mais severa separação entre os judeus e os empregados arianos. Era difícil ou mesmo im possível cumprir essa determinação durante o trabalho pro priamente dito; em contrapartida, a rigidez era maior no ves tiário e no refeitório. O sr. M. poderia ter nos enfiado em qualquer porão lúgubre e apertado, mas nos permitia usar a sala de festas, bem mais clara. Quantos problemas e aspectos da LTI passaram pela mi nha cabeça nessa sala quando eu ouvia as eternas discussões dos colegas, referindo-se ora à questão básica - sionismo ou, apesar de tudo, a cultura alemã -, ora, com mais fre quência e maior amargura, ao privilégio daqueles que não precisavam usar a estrela amarela, ora a questões mais fúteis. Mas o que mais me incomodava, novamente a cada dia, era que nenhuma discussão conseguia apagar a palavra Gefolg schaft. Toda a falsidade de sentimentos, característica do na zismo, todo o pecado mortal de mentir conscientemente, transferindo questões da razão para a esfera dos sentimentos, de modo a deformá-las e obscurecê-las deliberadamente, tudo isso me vem à mente quando me lembro dessa sala, onde nas festas se espremia a Gefolgschaft dos arianos da fábrica depois que saíamos. Gefolgschaft! Que tipo de pessoas eram aquelas que se jun tavam lá? Eram operários e empregados de escritório que re cebiam remuneração correspondente às obrigações contra tadas. Entre eles e os empregadores tudo era regido pela lei; era possível, mas inútil e talvez incômodo, que existisse alguma re lação de amizade entre os chefes e alguns indivíduos. A regula mentação que governava todos era a lei fria e impessoal. Mas na Gefolgschaftssaal essa regulamentação perdia a clareza: Ge folgschaft, essa palavra lhes impunha a antiga tradição alemã, 358
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tornando-os vassalos dos patrões, comprometidos com uma dívida diante dos senhores feudais, nobres cavaleiros. Seria essa metamorfose um jogo inocente? Claro que não. Dava um sentido guerreiro a um relacio namento pacífico; reprimia a crítica, conduzia ao mesmo princípio inerente à frase espalhafatosa que se lia em todas as faixas e painéis: Führer, befiehl, wir folgen! [ Führer, ordene e obedeceremos! ] . Tudo isso se alcança com o mero retorno à poética do ale mão arcaico, por sua antiguidade e por se afastar do cotidia no da língua. Às vezes basta anular uma sílaba para que se altere o estado de espírito de uma pessoa, canalizando seus pensamentos para outro caminho ou mesmo substituindo-os por um estado de espírito crédulo, fácil de comandar. Irrom pe a obrigação da fé. A sonoridade de Bund der Rechtswahrer [Ordem dos Guardiães da Justiça] é mais solene que a mera Vereinigung der Rechtsanwiilte [ Ordem dos Advogados] , Amts walter [ intendente] impressiona mais que Funktioniir [ funcio nário] . Quando leio Amtswaltung [ intendência] na entrada de um escritório, em vez de Verwaltung [ administração ] , tenho a impressão de algo sagrado. Em qualquer desses escritórios não sou apenas atendido, como o compromisso profissional requer, mas sou betreut [ orientado] . Aquele que me orienta torna-se credor de uma dívida de gratidão. Tentarei jamais ofendê-lo; não farei qualquer tipo de exigência, muito menos demonstrarei desconfiança. Será que minha denúncia contra a LTI não está avançando muito? Afinal, betreuen [orientar] é uma expressão sempre em uso e Treuhiinder [ fiduciário] é um termo do Código Civil.305 305 O radical treue significa fidelidade. Os Treuhiinder der Arbeit [ comis sários do trabalho] eram nomeados pelo Estado para acompanhar pa trões e empregados. Era mais comum que se colocassem ao lado do patronato. Esse nome também foi dado aos gerentes das empresas ex propriadas de proprietários judeus. 359
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É certo que o Terceiro Reich usou o verbo betreuen com fre quência e extravagância. Durante a Primeira Guerra Mundial os estudantes no Exército eram versehen [providos] com ma terial de estudo e frequentavam cursos que visavam a manter atualizada a sua formação. Já na Segunda Guerra Mundial eles eram fernbetreut [ orientados à distância] , e o termo betreuen passou a fazer parte de um sistema. A questão central, objetivo desse sistema, era o Rechts empfinden [ sentimento de justiça] . Nunca havia menção ao Rechtsdenken [pensamento de justiça ] , ou ao senso de justiça, mas somente a um gesundes Rechtsempfinden [ saudável pen samento de justiça] , sendo que saudável significava estar de acordo com o desejo e a conveniência do partido. Depois do caso Grünspan3 06 o povo foi estimulado a se apoderar dos bens dos judeus, em uma espécie de gesundes Rechtsempfin den, devolvendo ao termo Bufle [penitência] sua leve conota ção de alemão antigo. Para justificar os incêndios bem organizados, especialmen te nas sinagogas, era necessário usar palavras mais fortes e de maior alcance. A mera alusão a um pensamento saudável era muito fraca. Assim surgiu uma frase que falava da kochende Volksseele [ alma do povo em ebulição ] . É óbvio que não se tratava de expressão cunhada para uso corrente, mas as pala vras spontan [ espontâneo] e Instinkt [ instinto ] passaram a in tegrar o patrimônio fixo da LTI. Instinkt desempenhou um 306 Herschel Grünspan ( 1 9 1 1 - 1 942) era filho de judeus tchecos que fo ram deportados da Alemanha para a Polônia em 1 938. Para chamar a atenção mundial para o problema judeu na Alemanha, matou Ernst voo Rath, secretário da embaixada alemã em Paris. O atentado foi vingado com inúmeros pogroms [ massacre de judeus] e incêndios de sinagogas na chamada Kristallnacht [ Noite dos Cristais] , em 9 de no vembro desse ano, em toda a Alemanha. Em 1 940 Grünspan caiu pri sioneiro dos nazistas e foi enviado para um campo de extermínio, onde morreu em 1 942. 360
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papel preponderante até o final do regime: um verdadeiro germano reage quando há um apelo aos instintos. Após 20 de julho de 1 944,307 Goebbels escreve que a tentativa de assassi nar Hitler só podia ser explicada em termos de uma Über wuchern der Krafte des Instinkts durch solche eines diabolischen Intellekts [ usurpação das forças do instinto por um intelecto diabólico ] . Aqui, a preferência da LTI por tudo que tem a ver com emoção e instinto é levada ao cúmulo: a horda de carneiros segue o chefe, mesmo quando ele se lança no mar. (Ou, se gundo Rabelais, quando é lançado nele. Quem sabe com que intenção Hitler se lançou no mar de sangue em 1° de setem bro de 1 939, iniciando a guerra, e até que ponto seus crimes e erros anteriores forçaram-no a entrar nessa aventura insana?) A LTI insiste no aspecto emocional. Só às vezes essa associa ção com a tradição lhe é útil. Algumas coisas têm de ser leva das em conta. Desde o início foram tensas as relações entre o Führer e grupos nacionalistas que ele enxergava como concor rentes; mais tarde, quando não há mais por que temê-los, usa parcialmente seu conservadorismo e germanismo exacerbado. Da mesma forma, também espera poder contar com o apoio dos trabalhadores da indústria, pois o americanismo e a téc nica não podem ser desprezados; mesmo assim, a glorificação do camponês apegado à terra, avesso a inovações, se manteve até o fim. A fórmula nazista Blubo 3 08 foi cunhada para ele, ou melhor, extraída de seu modus vivendi. 307
Data do frustrado atentado que o conde von Stauffenberg realizou contra Hitler. 308 Blubo era uma abreviação de Blut und Boden [sangue e terra] , expres são que antecede o nazismo, mas foi apropriada por ele. Consta em Der Untergang des Abendlandes [A decadência do Ocidente) , de Os wald Spengler, de 1 9 1 8 - 1 922, e em Das Reich ais Republik, de August Winnig, de 1 928, que inicia com Blut und Boden sind das Schicksal der Volker [sangue e terra são o destino dos povos] . Em 1 930, Walter 361
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A partir do verão de 1 944 renova-se de modo triste um termo do baixo-alemão que há tempos pertence à história: Treck.3 09 Antes disso, sabia-se somente dos Trecks, ou cara vanas, de bôeres migrando pela África à procura de terra. Agora, caravanas de refugiados e desabrigados percorriam to das as estradas, vindos do Leste, retornando para a heim [casa, pátria] em território alemão. É evidente que o termo heim também disfarça uma antiga dose de afetação que remonta aos começos gloriosos. Aquela época se dizia: Adolf Hitler führt die Saar heim! [Adolf Hitler consegue de volta a re gião do Saar! ] . Com a insolência bem-humorada dos berli nenses, Goebbels viajava para as antigas colônias alemãs na África para ensinar as crianças negras a cantarem em coro: Wir wollen heim ins Reich! [ Queremos retornar ao nosso lar no Reich! ] . Agora, no entanto, um povo de colonos desenrai zados retorna ao lar nas piores condições, com os parcos re cursos que eventualmente tenham conseguido preservar. Em meados de julho, li em um jornal de Dresden o artigo "O Treck dos 350.000': publicado no único outro jornal. (Além do jornal do partido, chamado Freiheitskampf [ Luta pela Li berdade] , só havia um outro jornal, razão pela qual não me preocupei em anotar seu nome. ) Essa descrição, que apareceu em vários jornais com pequenas variações, é exemplar e inte ressante por duas razões: mais uma vez se apresenta o espíriDarré escreveu que Neuadel aus Blut und Boden [a nova nobreza do sangue e da terra] era a fórmula do Terceiro Reich. A expressão Blut und Boden se relacionava com Rasse und Volkstum [ raça e povo] para indicar o forte enraizamento do povo em seu espaço vital. Certo tipo de poesia camponesa patriótica foi denominada "poesia Blut und Boden". 309 Palavra holandesa que significa "migração". A "grande Treck" foi a mi gração dos bôeres para a África ( 1 834- 1 839). Eles se fixaram na colô nia do Cabo e, sob pressão dos britânicos, conquistaram a África do Sul, dominando e expulsando as populações negras. 362
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to camponês de maneira sentimentaloide e cheia de heroís mo, como, nos anos de paz, nas festas da colheita no Bücken berg;3 1 0 além disso, ela junta descaradamente todos os condi mentos da LTI. Ressuscitaram assim, de maneira decorativa, algumas palavras que, por causa da miséria reinante, haviam caído em desuso. Esses 350 mil colonos conduzidos do sul da Rússia para o Warthegau3 1 1 eram deutsche Menschen besten deutschen Blutes und aufrechten Deutschtums [ alemães do me lhor sangue alemão, dotados de um germanismo verdadeiro] , sob comando alemão. O número de nascimentos anuais entre 1 94 1 e 1 943 cresceu de 1 7 mil para 40 mil. Eram de uma bio logisch unverdorbenen Leistunsfiihigkeit [capacidade produtiva biológica não corrompida] . Eram dotados de von unvergleich lichen Bauern und Siedlungsfreundigkeit [ uma incomparável disposição para ser camponeses e colonos felizes] , com um erfüllt von fanatischem Eifer für die neue Heimat und Volksge meinschaft [empenho fanático para a nova pátria e comunida de] e assim por diante. A observação final - de que por todas essas razões mereciam ser reconhecidos como vollwertige Deutsche [ alemães do mesmo status] , uma vez que seus jovens há muito tempo pertenciam às SS - permitia concluir que seu domínio da língua e da cultura alemãs deixava muito a de sejar. De qualquer forma, nessa einmalige Treck [ migração úni ca] , a comunidade camponesa mais uma vez foi envolvida em uma aura de romantismo, mesmo que no início se tratasse só de um entusiasmo por tudo que fosse tradicional. Entretanto, o próprio mestre da propaganda e da LTI, in teressado no todo, soube desfazer a ligação original entre tra310 A
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partir de 1 933 começou a ser realizada anualmente uma cerimônia oficial no monte Bückenberg, na Westfália, o Erntedanktag [ dia de agradecimento pela colheita] . Região da Polônia que foi "purificada" de judeus e de poloneses em 1 939, para ser em seguida "germanizada", passando de 325 mil habi tantes alemães em 1 939 para 950 mil em 1 943. 363
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Goebbels ressurge toda uma flora do asfalto, e cada uma des sas flores é venenosa. Berlim é o monstro do asfalto. Seus jor nais, produtos da journaille judaica, são Asphaltorgane [ órgãos do asfalto ] . Ali, a bandeira revolucionária do Partido Nazista tem de ser fincada na marra. "O judeu asfaltou o caminho para a depravação com frases e promessas hipócritas'', repre sentadas pelo marxismo e a ausência de pátria. O ritmo louco desse "monstro do asfalto tornou as pessoas sem coração e insensíveis': Vive aqui "uma massa disforme do proletariado mundial anônimo", e o proletariado berlinense é ein Stück Heimatlosigkeit [o representante da ausência de pátria] ... Mais do que qualquer coisa, Goebbels sente faita de jede patriarchalische Verbindung [ qualquer vínculo patriarcal] em Berlim. Ele mesmo vinha da região do Ruhr, onde mantivera contato com operários da indústria, gente diferente: lá ainda existia o "enraizamento nativo dos tempos imemoriais'', e os bodenstiindigen Westfallen [ westfalianos autênticos] represen tavam o elemento básico da população. Naquela época, no início da década de 1 930, Goebbels cultivava o tradicional Blubo, contrapondo a terra ao asfalto. Posteriormente será mais cuidadoso na preferência pelo lavrador. Mesmo assim, serão necessários doze anos para ele retirar o insulto contra as pessoas do asfalto. Ao se retratar, continua mentiroso: não confessa que ele mesmo pregara a execração da população ur bana. Em 16 de abril de 1 944, sob os danos terríveis dos bom bardeios, escreve no Reich: "Sentimos o maior respeito pelo ritmo de vida indestrutível das nossas cidades grandes e pela vontade inquebrantável de viver da sua população, que não pode ter vivido de forma tão desenraizada, no asfalto, quanto nos faziam crer livros bem-intencionados mas excessivamen te teóricos... A força vital do nosso povo está tão arraigada aqui quanto na população camponesa alemã." Naturalmente, não é que se tenha esperado tanto tempo para cortejar e exaltar sentimentalmente a classe trabalha365
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dora; antes já haviam procurado angariar sua simpatia por meio de sentimentalismo barato. Depois do "caso Grünspan'', Himmler, então ministro da Polícia, proibiu os judeus de di rigir carros, não só por causa da Unzuverliissigkeit [ falta de confiança] , mas também porque eles ofendiam a deutsche Verkehrsgemeinschaft [ comunidade de trânsito alemã] pela im pertinência de dirigir die von deutschen Arbeiterfii usten gebau ten Reichsautostraften [nas estradas do Reich construidas pelos trabalhadores alemães] . A mescla de emoção e tradicionalismo sempre conduz aos camponeses e aos seus Brauchtum [usos e costumes] , palavra sentimental da poética do alemão antigo. Em março de 1 945, todos os dias eu quebrava a cabeça para compreender um quadro na vitrine do jornal diário de Falkenstein. Mostrava uma bela casa tradicional de aldeia, meio de madeira, com uma frase de Rosenberg, dizendo que uma antiga casa camponesa alemã possuía "mais liberdade es piritual e maior poder criativo do que todos os arranha-céus e todos os barracões de zinco somados". Procurei em vão uma justificativa plausível para essa afirmativa. Ela só pode ser en contrada na insolência nórdico-nazista que substitui pensa mento por emoção. Mas, no reino da LTI, a sentimentalização das coisas não implica de forma alguma retornar a qualquer tradição. Pode ligar-se livremente com o cotidiano, empre gando expressões do lugar-comum ou neologismos aparen temente muito prosaicos. Bem no inicio, no mesmo dia, eu anotei: "Propaganda do Keminski:3 12 cesto de petiscos do ti po 'Prússia', 50 marcos; cesto de petiscos do tipo 'Pátria', 75 marcos." Na mesma página, instruções oficiais para o Eintopf [prato único] . 313 Que técnica grosseira e provocativa, usada 3 1 2 Hotel em Berlim. 3 1 3 Prática alimentar dominical introduzida a partir de 1 936 por Hitler, que consistia em um cozido preparado em um caldeirão, para ser mais econômico. 366
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inicialmente na Primeira Guerra Mundial, de servir-se dos sentimentos patrióticos para fazer propaganda de uma refei ção! Que esperteza e habilidade, dar esse nome a uma receita alimentar! O mesmo prato para todos, para a Volksgemein schaft [ comunidade do povo] , baseado no que há de mais bá sico e necessário, a mesma simplicidade para ricos e pobres a serviço da pátria, tudo encapsulado em uma só palavra: Ein topf. Todos comemos o que foi preparado com frugalidade em uma mesma panela, tudo cozinhado junto. Comemos da mes ma panela única ... É provável que a expressão Eintopfjá estivesse difundida há tempos como termo técnico da cozinha: do ponto de vista do nazismo, foi genial tê-la introduzido na linguagem oficial da LTI, carregada de sentimento. No mesmo plano se encontra o termo Winterhilfe [ajuda de inverno] . Mentia-se como se hou vesse doações voluntárias, quando na verdade era um imposto obrigatório. Outra sentimentalização foi a oficialização de es colas para ]ungen [ rapazes] e Miidel [ garotas] , em vez de Kna ben [meninos] e Miidchen [ meninas] , quando os Hitlerjungen e as deutschen Miidel desempenhavam um papel fundamental no sistema educacional do Terceiro Reich. É óbvio que se tra tava de uma sentimentalização com conotação deliberada mente negativa: ]ungen e Miidel soavam não só mais populares e desenvoltos do que Knabe e Miidchen como também mais grosseiros. Miidel, em especial, abre caminho para a posterior Waffenhelferin [ auxiliar militar feminina] , palavra ambígua que não pode nem deve ser confundida com Flintenweib [ mu lher armada com fuzil ] 3 14 - pois caso contrário se poderia confundir Volkssturm [milícia popular] com partisans. Quando no último minuto - nem dava mais para falar de hora - aparece a intenção de debandar para a guerra de 3 1 4 Expressão nazista para designar as mulheres incorporadas ao Exército Vermelho ou aos grupos da resistência nas zonas ocupadas. 367
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guerrilhas, apela-se para um nome que provoca calafrios, como nos contos de horror: a rádio oficial chamava os guer rilheiros alemães de Wehrwolfe [bicho-papão ] . Era mais um recurso à tradição antiga, ao mito. Assim, no final do Terceiro Reich a língua revelava mais uma vez a monstruosa reação, o recurso absoluto aos primórdios da humanidade, ainda pri mitiva e predadora; desmascarava-se a verdadeira natureza do nazismo. O sentimentalismo aparecia de maneira mais inofensiva, mas também com mais hipocrisia, quando, na geografia polí tica, por exemplo, falava-se da Bulgária como Herzland [terra do coração ] Bulgarien. Aparentemente isso apenas assinalava a posição central do país em relação ao grupo de países limí trofes; mas, por trás, havia uma declaração de amizade em re lação a uma Herzland. Finalmente, a palavra usada com mais força e maior frequência pelos nazistas, para obter um efeito emocional, era Erlebnis [vivência] . O uso comum da lingua gem diferencia claramente: "Desde o nascimento até a morte vivemos todas as horas, mas, para algo se tornar uma vivên cia, só devemos considerar as experiências fora do comum em que a paixão vibra e percebemos como as ações do destino se convertem em vivência." A LTI, intencionalmente, transporta tudo para a esfera do Erleben [vivido ] . ''A juventude erlebt [ revive] a experiência de Guilherme Tell", consta em um cartaz que me ficou na memória, entre muitos outros. O objetivo mais profundo des sa palavra ficou claro quando o diretor regional da Câmara de Publicações do Reich para a Saxônia entregou à imprensa em outubro de 1 935, por ocasião de uma semana do livro, o seguinte texto: "Mein Kampf é o livro sagrado do nacional socialismo e da nova Alemanha; é necessário que ele seja durchlgelebt [vivido até o fim] . . : Todas essas coisas passavam pela minha cabeça quando eu entrava na Gefolgschaftssaal. Todas pertenciam à Gefolge '
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CAPIT U LO 33 I GEFOL GSCHA FT
[ comitiva] dessa palavra, haviam surgido a partir da mesma tendência ... No final do período que passei na fábrica encontrei na Judenhaus um romance do poeta George Hermann,3 15 autor de Jettchen-Gebert. Tratava-se de Eine Zeit stirbt [Morte de uma época] . Desde a sua concepção, o livro, embora publi cado pelo Círculo Judaico, fora fortemente influenciado pelo nazismo em ascensão. Não sei por que não analisei a obra em meus Diários. Anotei somente uma situação, uma frase: ''Antes de começar a cerimônia fúnebre da amante de Gum pert, a mulher dele deixa a capela do cemitério de forma apressada, seguida por sua Gefolgschaft, de maneira menos apressada, mas sempre solícita." Naquela época entendi isso como uma ironia judaica, tão odiosa para o nazismo, já que denunciava a hipocrisia do sentimento. Disse a mim mesmo: o livro dá uma estocada na palavra inchada, fazendo-a mur char pateticamente. Hoje entendo essa passagem de maneira diferente. Penso que havia amargura profunda, não ironia. Qual seria o propósito último daquele sentimentalismo pre sunçoso? O sentimento não tinha um fim em si, não era um objetivo, era apenas um meio e uma passagem. O sentimento tinha de reprimir o pensar. Ele próprio tinha de provocar um estado de apatia entediada, de abulia e de insensibilidade. Afi nal, de onde havia saído essa enorme massa de carrascos e de torturadores? O que faz uma perfeita Gefolgschaft? Ela não pensa nem sente - ela segue.
3 1 5 George Hermann ( 1 87 1 - 1 943}, escritor alemão que criticava a vida provincial e pequeno.-burguesa de certos meios berlinenses. Morreu no campo de concentração de Birkenau. 369
CAPIT U LO 3 4
UMA 0 N ICA SILABA
Para ser sincero, só no último ano vi e ouvi diretamente, não em fotos de jornais ou pelo rádio, manifestações nazistas. Pois mesmo na época em que ainda não usava a estrela - depois, isso era evidente - eu me refugiava imediatamente em algu ma rua lateral ao perceber que cruzaria com uma dessas de monstrações. Se não fizesse isso, teria de saudar a odiada ban deira. No último ano, porém, fomos colocados em uma das duas Judenhiiuser da Zeughausplatz. A vista do hall de entrada e da cozinha dava justamente para a Carolabrücke. Em soleni dades pomposas realizadas no Kõnigsüfer - como um dis curso de Mutschmann ou uma alocução de Streicher, que era o Gauleiter3 16 da Francônia -, as colunas das SA e das SS, da HJ e do BDM desfilavam na ponte. Quisesse ou não, eu os via e ouvia, e sempre ficava impressionado. Em desespero, pergun tava a mim mesmo: que impacto esses cortejos não causariam em pessoas com senso crítico menos aguçado que o meu? Poucos dias antes do nosso dies ater [ dia funesto] , o fatí dico 13 de fevereiro de 1 945,317 eles desfilaram sobre a ponte com toda a firmeza, cantando a plenos pulmões. A melodia soava um pouco diferente das marchas entoadas pelos bávaros durante a Primeira Guerra Mundial. Era mais dura, mais gri tada, menos melódica. Mas os nazistas sempre exageravam em tudo que era militar, e assim eles marchavam lá embaixo, na mesma antiga ordem, cheios de fé no regime. Há quanto tempo Stalingrado caíra e Mussolini fora derrubado? Há 316 317
Líder do Partido Nazista em qualquer um dos Estados. Mais uma referência de Klemperer ao grande bombardeio da aviação aliada sobre Dresden. 371
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quanto tempo os inimigos haviam alcançado e cruzado as nossas fronteiras, e generais alemães haviam tentado assassi nar o Führer? Mesmo assim, todos continuavam marchando. O mito da vitória final permanecia vivo ou, pelo menos, to dos aceitavam a obrigação de acreditar nele. Eu conhecia algumas letras, que captara aqui e acolá. Era tudo tão brutal, tão pobre de espírito, tão desprovido de qual quer senso artístico. Kameraden, die Rotfront und Reaktion erschossen, I Marschiern im Geist in unsern Reihen mit [Cama radas que o front vermelho e a reação fuzilaram I Marchem conosco no espírito de nossas fileiras] : eis a poesia de Horst Wessel. Impronunciável, exige que se quebre a língua. Talvez as palavras Rotfront e Reaktion estejam no nominativo e os camaradas fuzilados estejam presentes no espírito dos brau nen Bataillone [batalhões marrons ] que desfilam; também pode ser que os camaradas sejam prisioneiros das neue deutsche Weihelied [o novo canto sagrado alemão ] , como é chamado no livro escolar oficial, foi composto por Wessel em 1 927 -, o que estaria mais perto da verdade, e desfilem em espírito com seus amigos das SA. Mas, entre os que marcham e os que assistem, quem estava pensando em questões de gra mática ou de estética? Quem estava preocupado com o con teúdo? A melodia e o passo de marcha, algumas expressões ou frases isoladas que se dirigiam aos heroischen Instinkte [ instin tos heroicos] - como Die Fahne hoch! ... Die Strasse frei dem Sturmabteilungsmann!. . . Bald flattern Hitlerfahnen . .. [ Bandei ra para o alto!... Liberem as ruas para os soldados da Sturm abteilung'... . Pois as bandeiras de Hitler já estão esvoaçando] - eram suficientes para agitar os ânimos e criar a atmosfera almejada, não é? Logo me lembro do primeiro golpe que abalou a seguran ça na vitória alemã. Com que habilidade a propaganda de Goebbels soube reverter a pesada e terrível derrota em uma -
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quase-vitória, um triunfo supremo do espírito militar! Um comunicado do front, em particular, chamara a minha aten ção. Essa página, como todas as demais de meus Diários anti gos, estava longe de casa, em Pirna, mas mesmo assim podia vê-la claramente diante dos olhos: segundo esse comunicado, soldados alemães da linha de frente haviam jurado fidelidade eterna a Hitler e à sua missão quando receberam dos russos uma tentadora proposta de rendição. No início do movimento, esses Sprechchõren [jograis ] 3 18 eram comuns; teriam ressurgido lá longe, durante a catástrofe de Stalingrado, no exterior, enquanto aqui dentro quase não os ouvíamos mais. Só faixas sem charme faziam lembrá-los. Eu já me perguntara várias vezes, e agora isso passava de novo por minha cabeça, por que o efeito dos jograis era mais forte que o das músicas cantadas em coro. Imagino algumas razões: como a língua é expressão do pensamento, essas frases repe tidas subjugam a razão. Os jograis batiam direto, com punho cerrado, no bom senso do ouvinte, anulando-o. No canto, a melodia é um invólucro que atenua o impacto sobre a razão, conquistada pelo viés do sentimento. Além disso, a música cantada pelos que estão marchando não se dirige aos ouvin tes parados nas calçadas; estes são cativados somente pelo som da correnteza que escoa. A comunhão dessa correnteza pro duz-se mais naturalmente pelo canto dos que marcham do que pelo jogral, pois na melodia os estados de espírito se en contram, enquanto na frase declamada em uníssono o pensa mento de um grupo tem de encontrar o seu ponto de união. O jogral é mais artificial e mais encenado, mas produz um efeito propagandístico mais poderoso que o canto. Depois de tomarem o poder, os nazistas puderam deixar o jogral de lado, pois ele perdeu a razão de ser. (No essencial, o 31 8 Tratava-se de slogans repetidos em coro por todos os participantes de uma manifestação ou desfile. 373
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mesmo se aplica a slogans que eram usados nos congressos do partido e em outras ocasiões solenes, bem como às frases en trecortadas das manifestações Deutschland, erwache! Juda, verrecke! Führer befiehl! [Acorda, Alemanha! Estrebucha, Ju deu! Führer, ordena! ] e assim por diante.) O que me deixava especialmente atônito é que não se con siderava necessário abandonar essas canções grosseiras, repe tidas há muito tempo: não se via motivo para evitar os jograis, tampouco para diminuir as fanfarronadas e as ameaças pre sentes nas letras das músicas. Blitzkrieg [ guerra relâmpago] fora alterada para Nervenkrieg [ guerra de nervos] , e vitória passara a ser vitória final. Agora, a grande ofensiva começava a empacar, e então . . . para que enumerar tudo o que havia dado errado? Mas eles prosseguiam marchando e cantando como antes, aceitando tudo como antes. Em nenhum trecho dessa cantoria monótona se podia perceber um distanciamen to que pudesse induzir à mais tênue esperança ... Mesmo assim, havia um sinal de esperança que teria agra dado ao filólogo se ele o tivesse percebido. Só depois descobri esse consolo, que estava em uma única sílaba, mas então ele só teve para mim um valor científico. Vale a pena retomar do começo. Após a Primeira Guerra Mundial, os aliados, vencedores, queriam retirar do hino alemão o refrão Deutschland über alies [Alemanha acima de tudo] . Isso não era justo, pois über alies in der Welt [ acima de tudo no mundo] não expressa apetite expansionista, somente valoriza o sentimento de estima do pa triota pela pátria. Mais constrangedor era o hino do soldado: Siegreich woll'n wir Frankreich schlagen, Ruflland und die ganze Welt [Vitoriosos, queremos acabar com a França, com a Rús sia e com o mundo todo ] . Mesmo aqui, não há como compro var um verdadeiro imperialismo: poder-se-ia dizer que se tra tava de uma canção típica de guerra. Quem a cantava sentia-se um defensor da pátria e desejava se impor derrotando triun-
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falmente os inimigos, por mais numerosos que fossem. Não se menciona a anexação de territórios inimigos. Compare-se isso com um dos cantos mais característicos do Terceiro Reich, que já em 1 934 começou a ser impresso no Singkamerad [Camarada cantor] , livro escolar da Deutsche Jugend [ Juventude Alemã] . Publicado pela União dos Profes sores Nacional-socialistas do Reich, passou a ter significado oficial e geral: Es zittern die morschen Knochen / der Welt vor dem roten Krieg. / Wir haben den Schrecken gebrochen / fUr uns war's ein grofler Sieg. / Wir werden weitermarschieren, / wenn alies in Scherben fiillt, / denn heute gehort uns Deutschland / und morgen die ganze Welt [ Os ossos fracos do mundo tre mem diante da guerra vermelha. Rompemos o medo, para nós a vitória foi grande. Continuaremos marchando, mesmo que tudo fique em ruínas, pois hoje a Alemanha é nossa, e amanhã será todo o mundo ] . Essa canção entrou na moda logo após a vitória interna do Führer, que em todos os dis cursos ressaltava o desejo de paz. Mesmo assim, já se falava em arruinar tudo até conquistar o mundo, reduzindo-o a um monte de escombros. Para que não pairassem dúvidas sobre esse anseio de conquista, os primeiros versos das duas estro fes seguintes repetiam que o mundo todo se tornaria "um amontoado de escombros" e que seria inútil que "os mundos" (no plural) tentassem resistir. Depois de cada estrofe, o refrão assegura três vezes que amanhã o mundo todo será nosso. O Führer discursava pela paz, enquanto seus Pfimpfe [ me ninos] e Hitlerjungen [jovens hitleristas] eram obrigados a cantar essas estrofes infames entra ano, sai ano. Elas e o hino nacional da deutsche Treue [ fidelidade alemã] ... No outono de 1 945, quando falei em público pela primei ra vez sobre a LTI, fiz uma referência ao Singkamerad, que só pude conhecer nessa época, e citei a canção dos zitternden morschen Knochen [tremor de ossos frágeis] . Após a palestra, um ouvinte ofendido aproximou-se do palco e disse: 375
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- Por que o senhor cita de maneira errada questões tão importantes? Por que quer imputar aos alemães a ambição de dominar o mundo, que nem mesmo no Terceiro Reich nós ti vemos? Essa música não diz que o mundo tem de ser nosso. - Venha conversar comigo amanhã - respondi. - O se nhor poderá ver o livro de canções da escola. - O senhor está enganado, Herr Professor, vou lhe trazer o texto correto. Ele veio no dia seguinte. O meu Singkamerad, sexta edição, de 1 936, publicado por Franz Eher de Munique, "autorizado e muito recomendado para as escolas pela Secretaria da Edu cação da Baviera': já estava aberto na página certa. A data do prefácio era: Bayreuth, Lenzing3 19 de 1 934. Lá estava: Heute gehort uns Deutschland, und morgen gehort ihr die Welt [Pois hoje a Alemanha é nossa, amanhã será o mundo todo] . Não havia o que discutir... Havia sim. O homem me mostrou um belo caderno de canções em miniatura, que podia ser preso por um fio na casa de um botão: Das Deutsche Lied; Lieder der Bewegung, heraus gegeben vom Winterhilfswerk des deutschen Volkes [ Canção ale mã; Canções do Movimento, publicadas pelo Escritório de Apoio para o Inverno ao Povo Alemão ] . A data: 1 942- 1 943. A capa vinha enfeitada com os emblemas nazistas: suástica, runa das SS etc. No meio das canções apareciam de novo os "ossos frágeis': suficientemente grosseiros, mas com retoques no ponto decisivo. O refrão agora dizia und heute, da hort uns Deutschland / und morgen die ganze Welt [e hoje a Alemanha nos ouve e amanhã o mundo todo] . Soava bem mais inocente. Como o mundo já estava bastante em ruínas por causa da voracidade alemã, e como agora, no inverno de Stalingrado, nada levava a prever uma vitória alemã, o retoque precisava ser ressaltado e comentado. Fora acrescentada uma quarta es3 1 9 Denominação arcaica para março. 376
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trofe na qual os conquistadores e opressores pretendiam apre sentar-se como amigos da paz e combatentes pela liberdade, reclamando da interpretação maldosa do canto original. O texto da nova estrofe era o seguinte: Sie wollen das Lied nicht begreifen, sie denken an Knechtschaft und Krieg. / Derweil unsre Acker reifen, du Fahne der Freiheit flieg! / Wir werden weiter marschieren, wenn alies in Scherben fii llt. / Die Freiheit stand auf in Deutschland / und morgen gehort ihr die ganze Welt! [Eles não querem entender o canto, eles pensam em guerra e servidão. Enquanto nossos campos verdejam, tu, bandeira, tremulas pela liberdade! Continuaremos marchando, mesmo que tudo caia em ruínas. A liberdade despertou na Alemanha e amanhã o mundo lhe pertencerá! ] . Quanta ousadia para deturpar a verdade! Quanto desespe ro para atrever-se a tamanha mentira. Complicada e confusa, talvez essa quarta estrofe nem tenha vingado, diante da gros seira simplicidade das três anteriores, cuja selvageria original não podia ser disfarçada. Mas as garras se retraíam. Parece que o abandono da sílaba terrível conseguiu se impor. É preciso estar atento. Na autoconsciência nazista, a fronteira passa exa tamente entre gehoren [ ser dono ] e horen [ouvir] . Projetado sobre esse canto nazista, o abandono dessa sílaba representa Stalingrado.
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CAPIT U LO 3 5
DUCHA ESCOCESA
Depois de eliminar Rõhm e dar um rápido banho de sangue em seus capangas, o Führer fez o Parlamento ratificar que ele agira rechtens [ de acordo com a lei] . A expressão remete ao alemão arcaico. Mas a ação dos partidários de Rõhm, em vez de receber um nome alemão como Aufstand [sublevação] , Aufruhr [ rebelião ] , Meuterei [ motim] , Abfall [ derrocada] , re cebeu o nome Rohmrevolte [ revolta de Rõhm] . É certo que as sociações fonéticas inconscientes ou semiconscientes influí ram nisso Sprache, die für dich dichtet und denktf 320 , como no caso do Kapp-Putsch [golpe de Estado de Kapp] , pa lavra que pode ser associada, não só em termos sonoros, mas no plano das ideias, ao termo kaputt [ estragado, quebrado ] . Mesmo assim, é curioso que em uma ocasião um vocábulo alemão seja reforçado e em outra se use um termo estrangei ro para o mesmo objeto. Da mesma forma, usa-se Brauchtum [usos e costumes tradicionais] , palavra teutônica, mas Nu remberg, cidade oficial dos congressos do partido, é chamada de Traditionsgau [distrito da tradição] . Alguns estrangeirismos que passaram para o alemão são muito apreciados: Bestallung [provimento do cargo] em vez de Approbation [licença para exercer a profissão ] ; Entpfl.ich tung [desobrigação ] em vez de Emeritierung [ aposentadoria] ; e é de bom tom dizer Belange [ importância, significado, per tinência] em vez de Interesse [ interesses] . Humanitiit assumiu um ranço judaico-liberal, enquanto Menschlichkeit, palavra mais alemã, ganhou outro significado. Em contrapartida, só é possível chamar o mês de março de Lenzing no contexto de -
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32° Frase de Schiller já citada antes: "Língua que pensa e poetiza por ti." 379
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Bayreuth, cidade de Wagner - o nome dos meses em alemão antigo não conseguiu se impor, apesar de todas as runas e dos brados Sieg-Heil! Em minhas reflexões sobre Gefolgschaft3 21 mencionei algu mas razões que explicariam por que o uso do alemão antigo permaneceu limitado. Mas essa limitação só consegue expli car a presença das palavras estrangeiras mais usuais. Há razões especiais para que a LTI aumente o número e a frequência de uso de termos estrangeiros em relação à época anterior, o que é claramente perceptível. Em cada discurso ou comunicado, o Führer se deleita com o uso de dois estrangeirismos que poderiam ser perfeitamen te evitados e não fazem parte do alemão coloquial: diskrimi nieren, que ele pronuncia como diskrimieren, e diffamieren. O verbo diffamieren, mais adequado para conversas de salão, soa estranho em sua boca, já que seus xingamentos habituais costumam aproximar-se mais do vocabulário típico de um criado bêbado. Quando discursou ao inaugurar a "ajuda para o inverno" de 1 942- 1 943 - nessa época, toda sinalização de caminhos da LTI convergia para Stalingrado -, disse que os ministros das potências inimigas eram Schafskopfe [ imbecis ] e Nullen [nulidades] , que era impossível distinguir uns dos outros, que a Casa Branca era governada por um Geisteskranker [ doente mental] e Londres, por um Verbrecher [ criminoso] . Referin do-se a si mesmo, declarou que não existia mais a "assim chamada cultura de antigamente, mas somente a estima pelo guerreiro resoluto, portador dos dotes necessários para ser o Führer de seu povo". Ele recorre a outros empréstimos de termos estrangeiros, não por falta do equivalente em alemão. Em especial, ele é sempre o Garant [ fiador (em francês) ] e não o Bürge [ fiador 321
Ver capitulo 33. 380
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(em alemão ) ] da paz, da liberdade alemã, da independên cia das pequenas nações e de todas as demais causas nobres, aquelas que ele mesmo traiu. Qualquer coisa que enalteça ou reflita sua glória como Führer é considerada de importância si:ikular [secular] . Ocasionalmente usa alguma expressão no estilo de Frederico, o Grande, ameaçando os funcionários in disciplinados com gemeiner Kassation [ cassação sem aviso ] , quando seria suficiente dizer fristlose Entlassung [ demissão sumária] ; no alemão mais vulgar, que ele fala, bastaria dizer Hinauswurf [expulsão] ou Fortjagen [ enxotar] . O palavrório de Hitler é completamente refeito por Goebbels, tendo em vista diversos usos ornamentais. Além disso, a guerra enriqueceu o vocabulário nazista com termos estrangeiros. Pode-se estabelecer uma regra muito simples para o emprego racional desses termos. Ela deveria ser, mais ou menos, a seguinte: só os use quando não encontrar o cor respondente simples e exato em alemão; e, nesse caso, não hesite em usá-los tais como são. A LTI viola essa regra por ambos os lados: quando busca aproximações germanizantes (cada vez mais raramente, pelas razões já indicadas) e quando abusa de estrangeirismos des necessários. Quando falava de Terror ( Lufterror [terror aéreo] , Bombenterror [terror das bombas] e, naturalmente, Gegen terror [ contraterror] ) e de Invasion, trilhava por terreno bem conhecido, mas os Invasoren são novos e Agressoren são per feitamente supérfluos. Para liquidieren [liquidar] há um sem número de opções disponíveis: tõten [ matar] , morden [assassi nar] , beseitigen [eliminar] , hinrichten [ executar] , entre outras. Até mesmo Kriegspotential [potencial bélico ] , repetidamente usado, poderia ser facilmente substituído por Rüstungsgrad ou Rüstungsmoglichkeit [ quantidade ou capacidade de armamen to] . Quem cometesse o pecado do Defaitismus francês, ma quiado para o alemão como Defi:itismus [ derrotismo] , oferecia 381
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o pescoço à guilhotina, pois estava propondo a Wehrkrafts zersetzung [ desmoralização das forças armadas] . Quais as razões para preferir a sonoridade da palavra es trangeira, tão ressoante, aqui ilustrada em poucos exemplos? Em primeiro lugar, a própria sonoridade. Mas, se procurar mos os diferentes motivos até o último detalhe, descobrire mos que também há o desejo de encobrir coisas indesejáveis. Hitler é um autodidata quase sem instrução. (É só ouvir a insuportável galimatias [verborragia] dos seus discursos cul turais em Nuremberg; a única coisa pior que essa mixórdia tí pica de um Karlchen Miesnick [ zé-ninguém] 322 é a adulação servil com que é admirada e citada. ) Na condição de Führer, orgulha-se de não ligar para a "assim chamada formação cul tural antiga" e valoriza o saber que adquiriu por si mesmo. Qualquer autodidata gosta de ostentar termos estrangeiros, que são sua vingança. Estaríamos sendo injustos com o Führer se quiséssemos explicar sua preferência por estrangeirismos só por vaidade e pela consciência das próprias limitações. Hitler conhece com terrível precisão a psicologia da massa que é incapaz de de senvolver um raciocínio próprio e deve permanecer nessa condição. A palavra estrangeira impressiona e é tanto mais imponente quanto menos compreendida for; nesse caso, des concerta e anestesia, sobrepondo-se ao pensamento. Afinal, schlechtmachen [ caluniar] pode ser entendido por qualquer alemão, mas diffamieren é outra coisa: compreendida por poucos, seu efeito é mais intenso e solene. (Que se pense no efeito da liturgia em latim no serviço religioso católico. ) Goebbels, cuja máxima era dem Volk ins Maul sehen [olhar para a fuça do povo] ,323 também dominava a magia do estran geirismo. O povo aprecia ouvir e usar palavras estrangeiras, e 322 323
Mies, de Miesnick, vem do yiddich e significa "repugnante". Ver capítulo 32. 382
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espera isso do Doktor, título que remonta aos primórdios de Goebbels. Outra consideração pode ser feita sobre o Doktor. Indepen dentemente do reiterado desdém do Führer pela Intelligenz, pelas pessoas cultas, pelos professores e tantos outros - por trás de todas essas apelações sempre se descobre o ódio ao pensamento, proveniente da má consciência -, o Partido Na zista desejava manter ao seu lado essa perigosa camada social. O Doktor e sua propaganda não eram suficientes. Rosenberg, envolto em um estilo filosófico e profundo, era necessário. Em seu programa, também o Doktor adotou algo do jargão da fi losofia vulgar. O que poderia ser mais natural para um parti do político que se autodenomina Bewegung [ movimento] do que invocar o espírito de Dynamik [ dinamismo] e elevar essa palavra a um grau mais erudito? No âmbito da LTI existem, de um lado, livros especiali zados e eruditos, e, de outro, literatura popular com um re toque de cultura. Todos os jornais sérios (penso, sobretudo, no Reich e no Deutsche Arbeiter Zeitung [ DAZ] , sucessor do Frankfurter Zeitung) publicam matérias pretensiosas, artigos com conteúdo, redigidos em linguagem empolada, misterio sa, cheia de preciosismo, esnobismo e pompa. Um exemplo, escolhido ao acaso entre muitos: em 23 de novembro de 1 944, quando o fim do Terceiro Reich se aproxi mava, o DAZ encontrou espaço para publicar um artigo de um certo dr. von Werder, provavelmente recém-doutorado, que escrevera o livro Landflucht ais seelische Wirklichkeitk [ �xodo rural como realidade psicológica] . O que o autor tem a dizer já foi dito infinitas vezes e pode ser expresso da seguin te forma: quem quiser combater o êxodo rural não só terá que melhorar a renda dos camponeses, mas deverá considerar fa tores psicológicos por duas vertentes: levar atrativos culturais e vantagens da cidade para as aldeias (oferecendo cinema, rá dio, livrarias) e valorizar as qualidades da vida no campo por 383
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meio da educação. O jovem autor - e, nesse contexto, mais importante: também jornalista - usa a linguagem dos mes tres nazistas. Enfatiza a necessidade de uma "psicologia para a população rural" e diz: "O ser humano não é um mero agente econômico deixado por conta de si mesmo; tem corpo e alma, pertence a um povo e age conforme predisposições psicorra ciais." Por isso, é necessário "entender em profundidade o ver dadeiro significado do êxodo rural". A civilização moderna, "com a supremacia extrema da razão e da consciência'', desa grega o estilo de vida original da pessoa do campo, cujo "fun damento natural repousa nos instintos e nos sentimentos, no que é primordial e inconsciente". A Bodentreue [ fidelidade à terra] desses camponeses foi prejudicada por " 1 . mecanização do trabalho agrícola e transformação radical dos seus produ tos em objetos de comércio; 2. isolamento e extinção dos usos e costumes do campo e dos hábitos locais; 3. reificação e ur banização da vida social rural." Assim surge "a carência psico lógica que aparece no êxodo rural'', quando considerada seria mente como "realidade espiritual". Por isso a ajuda material deve ser um paliativo, pois é preciso encontrar remédios es pirituais - músicas populares, hábitos etc. -, bem como "meios culturais modernos, como cinema e rádio, para elimi nar as tendências internas à urbanização': O autor prossegue por um bom tempo nesse tom. É o que denomino nazisti schen Tiefenstil [ estilo nazista profundo ] quando aplicado a qualquer ramo da ciência, da filosofia e da cultura. Não é "re tirado da boca do povo'', tampouco é compreendido pelo po vo; pertence aos homens cultivados que aspiram à distinção. O ápice da retórica nazista não está nessa contabilidade que separa cultos e incultos, e impressiona as massas com pe daços de erudição. O grande desempenho, aquele em que a mestria de Goebbels é incomparável, consiste em misturar elementos estilísticos heterogêneos. Não, esse não é o termo exato. O que Goebbels faz é saltar subitamente de um extre384
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mo a outro, do erudito ao plebeu, do tom sóbrio e racional para o sentimentalismo das lágrimas contidas com esforço, da simplicidade de um Fontane ou da vulgaridade berlinense para o tom patético do defensor da fé e do profeta. O efeito é como uma reação da pele, fisicamente eficaz, similar àque le produzido pela ducha escocesa324 e seu choque térmico: primeiro quente, depois frio. O sentimento do ouvinte (o pú blico de Goebbels é sempre ouvinte, mesmo quando lê os ar tigos do Doktor nos jornais) nunca está em repouso, é cons tantemente jogado de um lado para outro, de modo que o espírito crítico não tem tempo de se recompor. Em janeiro de 1 944, artigos nos jornais comemoraram os dez anos de existência da secretaria de Rosenberg.325 A inten ção era render homenagens especiais a esse filósofo e arauto da doutrina pura, que soube ser mais profundo e elevar-se mais alto que Goebbels, cujo ministério visava apenas à pro paganda de massas. Mas, de fato, essas reflexões acabaram proclamando muito mais a glória do Doktor, pois as compa rações deixavam claro que Rosenberg só dominava os regis tros profundos, enquanto Goebbels controlava não só esses, mas também todos os demais registros de um órgão ressoan te. (Mesmo os maiores admiradores do Mythus 326 não po diam falar de uma originalidade filosófica, que teria colocado Rosenberg acima dessa comparação. ) O modelo mais aproximado d o estilo tenso de Goebbels é um sermão da Igreja medieval, em que um realismo e um verismo intrépidos na expressão se unem ao páthos mais puro do êxtase da oração. Mas o estilo do sermão medieval emana 3 2 4 Jato de água quente imediatamente seguido de jato de água fria, e vice-versa. 3 2 5 Rosenberg tinha o pomposo título de "delegado do Führer para a su pervisão de toda educação e instrução espiritual e ideológica do Par tido Nacional-socialista". 3 26 Goebbels era o Doktor, enquanto Rosenberg era o Mythus. 385
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da pureza da alma, dirigindo-se a um público ingênuo, que ele procura elevar da pobreza de espírito ao âmbito da transcen dência. Goebbels, em contrapartida, apela sutilmente para a impostura e a anestesia. Após o atentado de 20 de julho de 1 944,327 quando não havia mais dúvidas sobre o estado de espírito do povo e seu conhecimento da situação, Goebbels escreve em seu estilo desenvolto que "somente alguns velhotes remanescentes dos tempos ancestrais" podiam duvidar de que "o nazismo é não somente a maior, mas a única possibilidade de salvação do povo alemão". Em outra ocasião, em uma só frase, pinta a tragédia das cidades bombardeadas com um quadro idílico, cotidiano e simpático, que na LTI se dizia volksnah [próximo do povo ] : "Dos escombros e das ruínas, as bocas dos fogões voltam a brincar com o fogo, com seu nariz curioso saltando para fora dos tabiques de lenha:' Sentem-se saudades de um alojamento tão romântico. Ao mesmo tempo, experimen tamos a nostalgia do martírio: estamos no meio da heiligen Volkskrieg [ guerra santa popular] . Como as pessoas cultas não podem ser deixadas de lado, o registro de Rosenberg tem de ser incluído: estamos na "maior crise da civilização ociden tal". Temos de desempenhar o nosso Auftrag [papel] histórico (Auftrag soa mais festivo que o desgastado estrangeirismo Mission [ missão] ) , e "nossas cidades em chamas são tochas no caminho da realização de um mundo melhor". Em uma anotação específica indiquei qual papel o nosso esporte mais popular desempenhou nesse sistema de "ducha escocesa': Em um artigo no Reich de 6 de novembro de 1 944, Goebbels alcançou o mais afrontoso auge do estilo totalitário da linguagem nazista. Escreveu que precisávamos ficar aten tos para que a "nação permaneça de pé com firmeza e não caia no chão jamais". Logo depois dessa imagem retirada do 3 2 7 Ver nota 1 53, capítulo 1 8. 386
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boxe, prosseguiu: o povo alemão conduzia essa guerra como "um julgamento de Deus". Talvez eu tenha considerado excepcional essa passagem, semelhante a tantas outras, porque me lembrei dela inten samente, várias vezes. Atualmente, qualquer pessoa que venha a Berlim para tratar de assuntos na Administração Central de Ciências, na Wilhelmstrasse, se hospeda de preferência no Adlon (ou melhor, no que restou do antigo esplendor desse hotel berlinense) , o local mais confortável, que fica defronte. As janelas do restaurante dão justamente para as ruínas da mansão do ministro da Propaganda, local onde seu cadáver foi encontrado. Já estive nessas janelas uma dezena de vezes, sempre recordando o tribunal de Deus que ele evocava, antes do último gesto com o qual deixou o mundo.
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A PROVA DOS NOVE
Na manhã de 13 de fevereiro chegou a ordem para remover de Dresden os usuários remanescentes da estrela amarela. Até então protegidos da deportação por viverem em casamentos mistos, estavam agora à mercê da verdade final. Teriam de ser eliminados em campo aberto, pois Auschwitz havia tempos caíra em mãos inimigas328 e Theresienstadt estava seriamente ameaçado. Na noite desse mesmo 1 3 de fevereiro, porém, a catástrofe abateu-se sobre a cidade: bombas caíam, casas desmorona vam, fósforo jorrava por toda parte, vigas em chamas tomba vam sobre cabeças arianas e não arianas. A tempestade de fogo matava judeus e cristãos. Mas, para os setenta portado res remanescentes da estrela, que sobreviveram, foi a salvação: no meio do caos tornou-se possível fugir da Gestapo. Essa fuga rocambolesca me deu uma prova consistente da minha intuição de filólogo: até o momento, tudo que eu co nhecia da LTI, ao menos da língua falada, provinha dos es treitos círculos das Judenhiiuser e das fábricas de Dresden, além da Gestapo, naturalmente. Agora, nos últimos três me ses de guerra, atravessamos cidades e aldeias da Saxônia e da Baviera, passamos por estações de trem, estivemos em um sem-número de barracas e abrigos antiaéreos, sempre de novo em estradas sem fim, com pessoas de todas as regiões, todos os cantos e rincões, todas as cidades alemãs, todas as classes sociais, todas as idades, jovens e idosos, cultos e incultos, por tadores de diferentes ódios e - ainda! - aqueles que con tinuavam a reverenciar Hitler e mantinham a fé nele. Todos, 328 O Exército Vermelho tomou Auschwitz em 27 de janeiro de 1 945. 389
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literalmente todos, tivessem qualquer sotaque, fossem do sul, do oeste, do norte ou do leste, todos falavam a mesma LTI que em minha região eu ouvira no dialeto da Saxônia. Nessa fuga, às minhas anotações só precisei acrescentar complementos e confirmações. Esse período caracterizou-se por três fases. A intermediária, em março, durou três semanas. A floresta ganhava dia a dia contornos primaveris mais intensos, mas sua aparência mantinha um ar natalino, pois os galhos esta vam carregados com fitas prateadas de papel-alumínio, que também jaziam no solo, brilhando, lançadas pelos aviões ini migos para prejudicar o funcionamento da aparelhagem ele trônica dos alemães. Dia e noite eles voavam sobre nossas ca beças com um barulho ensurdecedor, muitas vezes na direção da infeliz região vizinha de Plauen. Em Falkenstein tive um período de sossego que me per mitiu um pouco de dedicação aos estudos, mas não me trou xe paz de espírito. Ao contrário. Mais do que nunca o estudo da LTI me valeu como Balancierstange [vara do equilibrista] . A única expressão nazista nova com que me deparei constava nas braçadeiras de alguns soldados: Volksschiidlingsbekiimpfer [ equipe de combate aos parasitas do povo] .329 Muitos agentes da Gestapo e da Polícia Militar tinham sido mobilizados, pois a região estava cheia de soldados em licença, que tentavam desertar, e também de civis que desejavam escapar do serviço na Volkssturm [milícia popular] .33 0 Era fácil perceber que eu não estava mais em idade de prestar serviço militar. Mesmo assim, uma charada antiga do Volkssturm dizia: "O que é o 3 2 9 A empresa alemã que fornecia o gás letal para os campos de extermí nio, o Zyklon B, chamava-se Internationale Gesellschaft für Schiidlings bekiimpfung GmbH [Sociedade Internacional de Combate a Parasitas] . A respeito d o Zyklon B, veja o filme Amém!, produção alemã d e 2005. 330 Guarda residencial alemã, composta de idosos e rapazes. Foi instituí da em outubro de 1 944, nos últimos meses de guerra. 390
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que é que tem prata no cabelo, ouro na boca e chumbo nas pernas?" Além disso, ao permanecer nas proximidades de Dresden eu corria o risco de ser reconhecido. Afinal, fora ca tedrático durante quinze anos, trabalhara muito tempo na formação de professores e dirigira, aqui e acolá, os exames de Abitur [ final do nível secundário ] . Se me prendessem e me matassem, minha mulher e nosso fiel amigo também teriam de arcar com as consequências. Não havia jeito. Tudo era uma tortura: andar pelas ruas e, principalmente, entrar em locais para comer. Bastava alguém me olhar fixa mente para eu ficar inquieto, sem conseguir suportar calma mente o olhar. Se não fosse necessário, não teríamos ficado nem um dia nesse perigoso esconderijo. Mas o quarto dos fundos da Apotheke am Adolf-Hitler-Platz [ farmácia na Pra ça Adolf Hitler] , onde dormíamos sob a foto do Führer, foi o último asilo depois que tivemos de deixar a casa de nossa querida Agnes. Na medida do possível, quando não procu rávamos passeios em bosques afastados, eu me deixava ficar quieto no quarto. Lia tudo que pudesse melhorar a minha percepção da LTI. Na verdade, lia tudo que me caía nas mãos e percebia mar cas dessa língua por toda parte. Era realmente totalitária: aqui, em Falkenstein, isso se impôs em meu espírito mais do que nunca. Sobre a escrivaninha de Sch. encontrei um pequeno livro, publicado, segundo ele me disse, no final da década de 1 930: Das iirztliche Teerezept, herausgegeben von der deutschen Apo thekerschaft [ Receita de chá medicinal, publicada pelo Conse lho Nacional dos Farmacêuticos] . Primeiro me pareceu tratar se de um documento cômico, depois tragicômico, finalmente trágico. Com frases genéricas, usava a pior forma de subser viência à doutrina dominante. Quando aparecia uma oposi ção quase imperceptível, ela era seguida por atenuantes de 391
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puro servilismo, revelando um descompromisso com o futu ro da ciência. Anotei algumas passagens por extenso. ''Amplas camadas do nosso povo rejeitam o consumo de remédios industrializados. Registra-se a tendência de pedir renovadamente a prescrição de medicamentos naturais que não tenham sido processados nem por laboratórios nem por fábricas. As ervas e as misturas de ervas extraídas de nossos prados e bosques têm uma conotação de algo familiar e au têntico. Seu uso medicinal confirma o poder de cura tradi cional, conhecido desde tempos imemoriais. O vínculo com o sangue e a terra reforça a confiança em nossas plantas me dicinais:' Até aqui prevalece o aspecto cômico, pois é cômico ver como os slogans e pontos de vista nazistas conseguem pene trar em textos científicos. Entretanto, após essa reverência hu milhante e captatio benevolentia,331 não há como deixar de defender os interesses comerciais e os da medicina. Sob o manto do tradicionalismo germânico, do amor à natureza e do anti-intelectualismo, tomando de empréstimo o "discurso sempre sedutor sobre a toxicidade dos produtos químicos", vinha a crítica sutil ao charlatanismo crescente, que, "despro vido de qualquer senso crítico", negociava plantas medicinais alemãs misturadas "sem critérios': deixando médicos sem pa cientes e laboratórios sem clientes. Mas como essa solução era atenuada por desculpas e complacência, o autor reverenciava os pontos de vista e a vontade do partido governante: "Não é à toa nem por falta de escolha que até mesmo nós, médicos, químicos e farmacêuticos qualificados, usamos chás medici nais, mas não de forma exclusiva, tampouco indiscriminada mente." Chegou a hora de que, entre todos os "médicos que se propõem estar na vanguarda, manifeste-se o desejo de dar continuidade às terapias com o emprego desses chás, empe33 1 "Precauções oratórias" que marcam o início de um discurso. 392
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nhando-se em atender ao desejo e à sensibilidade natural do povo onde for possível. Terapias que usam ervas e chás medi cinais, também chamadas fitoterápicas, representam somente um aspecto do conjunto da terapia medicamentosa, aspecto que não pode ser subestimado se quisermos manter e assegu rar a confiança dos pacientes. A confiança do povo nos médi cos não pode ser abalada, sob nenhuma das circunstâncias acima citadas, e ela depende do constante empenho dos mé dicos em um trabalho minucioso, baseados em bons conheci mentos, conscientes do dever..." A captatio inicial passou a ser uma capitulação mal dissimulada. 332 Encontrei alguns exemplares de revistas farmacêuticas e médicas, e vi em todos o mesmo estilo e as mesmas pérolas estilísticas. Anotei para mim mesmo: "Lembrar-se da 'mate mática nórdica', há tempos mencionada pelo jornal Freiheits kampf, citando Kowalewski, primeiro reitor nazista da nossa Universidade Técnica de Dresden. Não se esquecer de pesqui sar também outros ramos científicos em que a LTI se alastrou de maneira epidêmica." Da ciência natural, retornei à minha própria área quando Hans me trouxe publicações literárias recentes que estavam em sua biblioteca particular. (Ele continuava a ser, como há trinta anos, um homem das ciências humanas e da filosofia. Ser dono de farmácia e usar um botão do partido era neces sário para levar uma vida tranquila, pois não usá-lo lhe cus taria muitos dissabores; entretanto, quando se tratava de aju dar um amigo, corria riscos e deixava a tranquilidade de lado. Teria sido demasiado pedir-lhe que fizesse o mesmo na polí tica em geral.) Ele me trouxe dois livros novos, um de histó ria, outro de história da literatura. Pelas tiragens percebia-se 332 A Alemanha é o pais de origem da erva-de-são-joão, ou Johannis kriiuter, muito antiga, cujo nome cientifico é Hypericum perforatum, também usada no Brasil como antidepressivo. 393
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que eram obras influentes. Estudei esses livros e teci comen tários sobre eles, sob o ponto de vista da LTI. Anotei para mim mesmo: "No futuro, não bastará simplesmente proibir esse tipo de leitura para o público em geral; será necessário mos trar com clareza aos professores os traços característicos e os pecados da LTI. Tomei alguns exemplos para seminários de história e língua alemãs." Em primeiro lugar, o livro Geschichte des deutschen Volkes [História do povo alemão ] , de Friedrich Stieve. Livro volu moso, publicado em 1 934. Entre o verão de 1 939 e 1 942 al cançara doze edições, segundo o prefácio da nona edição; os fatos relatados incluíam a anexação da Tchecoslováquia e a re tomada dos Sudetos.333 Se surgiu alguma edição depois dessa (o que considero improvável) , não deve ter acrescentado nada ao desenrolar da história, pois um mês antes da eclosão da nova guerra mundial o autor conclui com um grito de júbilo: "O incomparável progresso alemão foi alcançado sem qual quer derramamento de sangue." Faz, ainda, a terrível compa ração de que o Reich alemão havia chegado até aqui "pairan do sobre o curso do tempo, como um baluarte de dignidade e estabilidade, sendo portador de uma profecia luminosa para o futuro, como as edificações construídas por Adolf Hitler". A tinta do meu exemplar ainda não estava bem seca e as pri meiras dessas edificações - "que, em sua compacidade maci ça e estruturada, encarnam simbolicamente a força e a tran quilidade em uma unidade luminosa" (o destaque para a força da arquitetura também é LTI ) - já estavam sendo postas abaixo pelas bombas inimigas. O livro de Stieve é como um engodo eficaz, um veneno embrulhado em migalhas inocentes. Nas quinhentas páginas 333 Parte da Prússia Oriental. Após a assinatura do Tratado de Versalhes, esteve sob tutela internacional antes de ser ocupada pela Lituânia e depois pelas tropas alemãs em março de 1 939. A região foi libertada pelo Exército Vermelho em 1 944. 394
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da obra há longos capítulos que, não obstante o páthos contí nuo, são escritos com certo grau de ponderação. O estilo e o conteúdo não apresentam distorções violentas, de modo que até um leitor acostumado a pensar pode sentir confiança. Po rém, quando a mentalidade nazista aparece, todos os registros da LTI a acompanham. "Todos" não quer dizer "muitos", pois a LTI é pobre, quer e tem de ser pobre, só se reforçando pela repetição. Martela sempre a mesma coisa. Em momentos solenes, positivos ou negativos, o sangue é chamado a contribuir, outro sinal de pobreza. Se "até mesmo um Goethe" venerava Napoleão, então a "voz do sangue" es tava "com anemia': Quando o governo Dollfuss334 toma posi ção contra os nacional-socialistas austríacos, diz-se que ele se opõe à "voz do sangue': E quando, logo depois, as tropas de Hitler invadem a Áustria, soa finalmente die Stunde des Blutes [ a hora do sangue] , com o que die alte Ostmark zum ewigen Deutschland heimgefunden hat [ o antigo Marco Leste conse gue retornar à Alemanha, seu lar eterno ] . 335 Ostmark, ewig e heimfinden: não se pode dizer que não se jam palavras neutras. Fazem parte da língua alemã há séculos e provavelmente continuarão a integrá-la no futuro. Entretan to, no contexto da LTI são expressões decididamente nazistas, inseridas em um registro linguístico específico, características e representativas desse registro. Ostmark substitui Osterreich [Áustria] e significa ligação com a tradição, veneração dos an cestrais, aos quais invocamos, com ou sem razão, cujo legado pretendemos conservar e cujo testamento queremos cumprir. Ewig [ eterno] segue a mesma direção: somos os elos de uma corrente que se originou em tempos imemoriais e, passando 334 Engelbert Dollfuss ( 1 882- 1 934), político austríaco, líder do Partido Social-cristão. Chanceler desde 1 932, opôs-se à anexação da Áustria à Alemanha. Foi assassinado em 25 de julho de 1 934, durante um golpe fracassado das SS em Viena. 335 Como fica claro a seguir, "Marco Leste" é uma referência à Áustria. 395
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por nós, deve prosseguir rumo a um futuro distante, pois sempre fomos e sempre seremos; Ewig é o caso extremo da hi pérbole numérica nazista, que por sua vez é um caso especial do hiperbolismo geral da LTI. Quanto a Heimfinden [ retorno ao lar] , é uma das expressões rapidamente tornadas suspeitas, com forte conotação emotiva; tem origem na glorificação do sangue e arrasta consigo o uso excessivo de superlativos. Tradition und Dauer [tradição e continuidade] , dois con ceitos muito usuais na historiografia, não bastam para defi nir o estilo do historiador. Mas Stieve prova fidelidade ao na cional-socialismo ortodoxo justamente ao inundar seu texto com expressões nazistas que pertencem ao registro dos sen timentos. Uma força unbiindig [ indômita] estimula címbrios e teutô nicos,336 cuja invasão da Itália inicia essa história. Um anseio unbiindig instiga os germanos a "lutar contra tudo e contra todos"; uma paixão unbiindig explica, desculpa e até enobrece os piores excessos dos francos. Furor teutonicus é visto como um título de glória para os "filhos vigorosos do norte": "Que esplendor ousado ilumina sua irrupção; sem desconfiar da perfídia ao redor, ela estava totalmente eingestellt [ ligada] à força do sentimento avassalador e ao poder daquele impulso interno que os fazia regozijar de alegria ao atacar o inimigo." Destaco o termo eingestellt, cujo significado original esta va muito enfraquecido antes de a LTI existir. Também é possí vel encontrar em Stieve a insensibilidade nazista à justaposi ção bruta de expressões mecânicas e afetivas. Ele escreve sobre o Partido Nazista: "O partido foi incumbido de tornar-se o potente motor da Alemanha, o motor da ascensão espiritual, 336 Originários da embocadura do Elba, esses povos germânicos em preenderam a partir de 1 20 a.e. uma migração para o sul, invadindo a Gália e o norte da atual Itália, antes de ser derrotados em 1 02 e 1 0 1 a.e. por Mário. 396
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da devoção ativa, do contínuo despertar, tendo em vista a for mação do Reich recém-criado:' A característica geral do estilo de Stieve é a ênfase unilate ral com que valoriza os sentimentos, já que, para ele, tudo, absolutamente tudo, decorre dessa característica básica glorificada e privilegiad� - dos germanos. Ela define a estru turação política, já que se mede a capacidade de um líder pelo porte de seu Gefolgschaft [ séquito ] , e o Gefolgschaft repousa "pura e simplesmente em uma submissão interna e voluntá ria; sua instituição demonstra claramente a importância que os germanos atribuem aos sentimentos". É dos sentimentos que emana sua fantasia e sua devoção re ligiosa, capacitando-os a divinizar a natureza, "aproximando os da terra': fazendo-os desprezar o intelecto. O sentimento os conduz ao infinito, e assim se estrutura a tendência fundamen talmente romântica do caráter germânico. O sentimento os torna conquistadores, lhes confere a "convicção alemã de que sua vocação é dominar o mundo". Entretanto, a preponderância do sentimento produz uma situação em que, além da necessidade de dominar o mundo, também há o desejo de fugir dele. Por isso, não obstante o culto à vida, o Aktivismus, aparece uma inclinação especial para o cristianismo. Assim que o desenrolar da história permite - e o fato de ele não ter forçado isso prematuramente o diferencia dos de mais ideólogos do partido -, Stieve introduz o judeu como antagonista da pessoa sensível. A partir desse ponto acumu lam-se as expressões especificamente nazistas, ou melhor, elas se complementam em sentido negativo. Zersetzung [ decompo sição, desagregação, dissolução] passa a ser uma palavra cen tral. Começa com a /unges Deutschland [jovem Alemanha] .337 337 Movimento literário alemão ( 1 830- 1 850) lançado por Heinrich Heine, Ludwig Bõrne e outros autores politicamente engajados, como Gutz kow e Herwehg. Rejeitava o nacionalismo e demais dogmatismos. 397
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"Dois poetas judeus, Heinrich Heine e Lion Baruch, aliás, Ludwig Bõrne depois do batismo"338 são os primeiros dema gogos saídos do auserwiihlten [povo eleito] . ( Parece-me que auserwiihlten é primeira expressão irônica do nazismo. ) O es pírito materialista da época favorece as disposições hereditá rias dessa raça estrangeira e as características adquiridas no exílio, que alimentam o materialismo. Agora o vocabulário nazista pode ser ampliado: niederrei ftende Kritik [ crítica destrutiva] , zerfasernder Intellekt [ intelec tualismo esfarrapado] , todliche Gleichmacherei [nivelamento mortal] , Auftiisung [ dissolução ] , Unterhohlung [ minar] , Ent wurzelung [ desenraizar] , Durchbrechung der nationalen Schranke [ extravasar os limites nacionais] ; Marxismus für So zialismus, denn der wahre Sozialismus gehort dem Hitlertum [marxismo em vez de socialismo, pois o verdadeiro socialismo pertence ao hitlerismo ] , enquanto o falso é fruto das heresias do judeu Karl Marx. (Usar "judeu" Marx, "judeu" Heine, em vez de simplesmente Marx e Heine, é uma forma de agressão estilística que, em retórica, aparece no antigo epitheton ornans [ epíteto decorativo] . ) A derrota na Primeira Guerra Mundial reforça esse aspecto da LTI: teuftischen Giften der Zersetzung, von roten Hetzern [venenos diabólicos de desagregação, dos provocadores vermelhos] . O terceiro elemento de reforço nasce da postura beligeran te contra o bolchevismo e o comunismo: aparecem as hordas sinistras dos batalhões vermelhos. Então vem o coroamento da obra e a apoteose do desem penho estilístico da linguagem nazista: surge o salvador, o sol dado desconhecido, o homem da Grande Alemanha, o Führer. Agora os slogans aparecem um atrás do outro. A linguagem 338 Ludwig Bõrne ( 1 786- 183 7) lamentou sua adesão ao protestantismo em 1 8 1 8 como diese torichte Verschwendung [desperdício insensato] . Escre vendo em alemão e francês, foi um grande publicista e um combatente do antissemitismo. Seu conflito com Heine foi de cunho político. 398
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dos Evangelhos, terrivelmente prostituída e colocada a servi ço da LTI, culmina com a frase: "Pelo poder supremo de sua fé, o homem que estava no topo, usando a antiga profecia, conseguiu reanimar o enfermo prostrado no chão, dizendo lhe 'Levanta-te e vai':' Já destaquei a pobreza da LTI. No entanto, ela chega a ser rica no texto de Stieve, se comparada com a retórica de Wal ther Linden em Geschichte der deutschen Literatur [História da literatura alemã] , de 1 937, certamente um livro famoso reeditado três vezes pela editora popular Reclam, apesar de ter quinhentas páginas. Passou a ser um manual básico para alu nos e estudantes, pois na época de Hitler resumia as avalia ções oficiais mais comuns sobre literatura, formuladas confor me as normas vigentes. Durante a década de 1 920, o autor, que teve a sorte de falecer antes do colapso do Terceiro Reich, editou a Zeitschrift für Deutschkunde, dedicada à literatura ale mã, em que eu mesmo cheguei a publicar uma série de arti gos. Depois disso ele soube se reciclar com facilidade, pois es clarecia tudo a partir de um único ponto de vista, explicando qualquer coisa com duas palavras, quase sempre associadas e, do ponto de vista da LTI, idênticas. Qualquer corrente de pensamento ou obra literária, qual quer autor, é arthaft [próprio da espécie] ou volkhaft [próprio do povo] .339 Segundo Linden, quem não possuir essas quali dades não tem direito a existir, pois seus valores éticos e esté ticos serão recusados. Isso se repete, às vezes a cada página, às vezes a cada parágrafo. "Pela segunda vez, na cavalaria, depois da poesia heroica das cortes dos príncipes germânicos, nasceu uma cultura de alto nível, criativa e arteigene [própria da espécie] ." 339 Palavras de tradução difícil. O sufixo haft aproxima a palavra do subs tantivo. Arthaft seria "em conformidade com a espécie, jeito de ser, gê nero"; volkhaft seria "em conformidade com o povo". 399
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"Fora da Itália, o humanismo tornou-se a antítese de tudo que é volkstümlich [ próprio dos hábitos do povo] e arteigene." "Só o século XVIII foi capaz de transformar as riquezas do espírito e da sensibilidade em unidade e totalidade orgânica de uma nova vida arteigene: foi no renascimento nacional do movimento alemão a partir de 1 750:' Leibniz é um "pensador universal arthaft de alma alemã': Os sucessores colocaram em sua doutrina um excesso de ideias überfremden [ estrangeiras] . O "sentimento de isolamento específico arthaft alemão" de Klopstock. A interpretação da Grécia antiga por Winckelmann reu niu zwei artverbundene Volker [ dois povos indogermanos] solidários. Em Gotz von Berlichingen, uma bodenentstammte Volksart [ espécie étnica autóctone] e o heimisches Recht [ direito nati vo] sucumbiram a uma volksfremd [ordem estranha ao povo] baseada em submissão escrava, que se impôs por meio do di reito romano artfremd [estranho à espécie] ... "Lõb Baruch (Ludwig Borne) ", judeu batizado, e Friedrich Ludwig Stahl, também batizado como Jolson, um liberal e o outro conservador, ambos são igualmente culpados pelo abandono da germanischen Ordnungsgedankens [ ideia germâ nica de ordem] e pelo Entfernung vom arthaften Staatsdenken [ afastamento do pensamento nacional arthaft] . A poesia lírica e a Balladik volkhaft [balada popular] de Uhland contribuíram para despertar o ser Artbewusstse ín [ consciente da espécie] . "No realismo amadurecido, a sensibilidade arthaftgerma nisch [ característica germânica] vence novamente o esprit francês e a literatura jornalística liberal judaica." Wilhelm Raabe combate "a desespiritualização gradual do povo alemão sob influências artfremd ': 400
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Die arthafte deutsche Bewegung, der Realismus [ o movi mento característico alemão, o realismo ] termina com os ro mances de Fontane. Paul Lagarde ist um eine arthaft Religion bemüht [ empenha-se por uma religião alemã específica] . Houston Stewart Chamberlain foi artechter [ mais puro ] do que o alemão de Rembrandt,340 ofereceu ao povo alemão art eigene Geistesheroen [heróis espirituais puros] mais de uma vez, despertou "a visão germânica da vida para a potência criadora volkische [ racial] ·: 341 Todos esses exemplos estão espremidos em pouco menos de sessenta linhas, e ao listá-los tive de deixar de fora a ner vosen Entartung [ degeneração nervosa] e a Kampf zwischen Oberfliichenliteratur und ewiger arthafter Dichtung [luta entre a literatura superficial e a eterna poesia característica e pura] , assim como o esforço para constituir uma vida intelectual arthaft e espalhar a cultura volkhaft. Em torno de 1 900, Bartel e Lienhard iniciaram a "contra corrente volkhaft". Quando se chega aos grandes precursores da literatura volkhaft, como Dietrich Eckart e os demais li gados diretamente ao nacional-socialismo, não é de estra nhar que tudo esteja entranhado em arthaft, volk [povo] e blut [sangue] . Só se dedilha essa corda da LTI, que é a mais popular. An tes de ler essa História da literatura alemã, eu conheci na mi nha própria casa o seu lado mais vulgar e mais tosco. Em cada busca domiciliar, Clemens, o agente da Gestapo "que batia", dizia para minha mulher: Du artvergessenes Weib! Weiflt du nicht... [Tu, mulher perdida para tua espécie, não sabes que ... ] 34° Chamberlain era inglês de nascimento e genro de Richard Wagner. Foi um ideólogo do nacional-socialismo alemão. ''Alemão de Rembrandt" é uma referência a Julius Langbehn ( 1 85 1 - 1 907), escritor regionalista e crítico literário, autor de Rembrandt ais Erzieher [ Rembrandt como educador] . 34 1 Para a tradução de volkische, ver nota 252, capítulo 28. 401
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e Weser, o agente "que cospia': complementava: Weiflt du nich, dafl schon im Talmud steht, "eine Fremde ist weniger wert ais eine Hure"? [Tu não sabes que no Talmud consta que "uma es tranha vale menos que uma prostituta"?] . Isso se repetia sem pre, palavra por palavra, como a frase declamada pelo mensa geiro de Homero: Du artvergessenes Weib! Weiflt du nicht... Durante todos esses anos, principalmente nas semanas em Falkenstein, repeti para mim mesmo a pergunta para a qual não consigo encontrar resposta até hoje: como foi possível que intelectuais perpetrassem tamanha traição à cultura, à ci vilização e à humanidade? Os agentes da Gestapo eram bestas humanas, apesar de terem patentes de oficiais; é preciso ter paciência com gente desse tipo, que vai continuar existindo. Mas uma pessoa culta como esse historiador da literatura! Atrás dele me vem à memória uma fila de literatos, poetas, jornalistas, acadêmicos. Traição por todo lado. Aí aparece um tal Ulitz,342 que escreveu a história de um estudante judeu atormentado e a dedicou ao amigo Stefan Zweig.343 Depois, justamente no momento de maior perigo para os judeus, apresentou uma descrição caricatural de um judeu praticante da usura para provar fidelidade à tendência dominante. E Dwinger? No romance que escreveu na prisão na Rússia, durante a Revolução Soviética,344 não menciona atividades ou atrocidades por parte de judeus. Ao contrário, as duas únicas referências a judeus em toda a trilogia descre vem ações humanitárias de uma mulher judia e de um comer ciante judeu. Depois, justamente no período de Hitler, surge 342 Arnold Ulitz ( 1 888- 1 97 1 } , romancista alemão. 343 Stefan Zweig ( 1 88 1 - 1 942 ), escritor austríaco de ascendência judaica. Humanista e pacifista, teve seus livros queimados em praça pública pelos nazistas. Exilado, suicidou-se no Brasil. 344 Nessa trilogia, A paixão alemã ( 1 929- 1 932), o autor descreve sua ex periência como prisioneiro na Rússia durante a Primeira Guerra Mundial. 402
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a figura de um comissário judeu sanguinário. Em um ensaio publicado em 1 944 na Velhagen-und Klasing-Hefte, que em outros tempos foi uma revista de bom nível, encontro tam bém o engraçado Hans Reimann, da Saxônia, que descobre as características gerais dos judeus e as piadas sobre eles: "Der Glaube der Juden ist Aberglaube [a fé do judeu é uma supers tição] , seu templo é o clube local, seu Deus é o proprietário de uma grande loja de departamentos . . . A tendência ao exa gero está tão presente na cabeça judaica que fica difícil distin guir entre o intelectualismo putrefato e as bobagens daquele povo de pé chato." (Observem a "ducha escocesa" em um es paço tão pequeno: intelectualismo putrefato e bobagens da quele povo de pé chato! ) Estou relatando a miscelânea que li nos dias que passei em Falkenstein. Talvez mais interessante do que esse mergu lho reiterado e sempre incompreensível na traição - pois uma doença do espírito e uma tendência súbita para o crime ainda não são trágicas em si -, talvez mais fácil de explicar e mais trágico seja o escorregão meio inocente nessa mesma direção, tal como se pode ver em Ina Seidel, que caminha para o romantismo de coração puro até chegar tardiamente a com por hinos a Hitler, o messias alemão, nessa altura coberto de sangue dos pés à cabeça. Mas não posso resolver esse assunto em meu caderno de anotações. Preciso estudá-lo mais pro fundamente ... Entre os traidores encontrei até um antigo conhecido da Primeira Guerra Mundial, Paul Harms, jornalista político ale mão estimado pelos amigos e respeitado pelos adversários. Lembro-me das infindáveis conversas que tivemos no Merkur, café dos escritores de Leipzig. Nessa época, apesar de deixar o BerlinerTageblatt para escrever no Leipziger Neuesten, politica mente mais à direita, Harms não assumira a posição de pro vocador nem parecia um obstinado. Além de ser erudito e ter boas ideias, era uma pessoa correta. Conhecia os horrores da 403
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guerra e reconhecia a insanidade dos planos alemães de domi nar o mundo. Sabia avaliar a força dos países inimigos. Passa ram-se muitos anos sem que eu ouvisse nada a seu respeito, pois, atarefado com meus assuntos, restringia-me à leitura de jornais locais. Caso estivesse vivo, estaria mais perto dos oi tenta anos do que dos setenta, aposentado. Mas eis que vejo de novo o Leipziger Neuesten. A cada três ou quatro dias aparecia um artigo político com a antiga rubrica P.H. Não era mais o Paul Harms que eu conhecera. Era uma das mais de cem va riações dos textos semanais de Goebbels que eram distribuí dos pela imprensa alemã. Tratavam do Weltjudentum [judaís mo mundial] e da "estepe':345 da traição da Inglaterra diante da Europa ou da abnegação da combativa Alemanha para li bertar o Ocidente. Era toda a LTI, comprovando tristemente a minha prova dos nove. Triste prova. Essas linhas me falavam com sotaque pessoal, com entonação próxima, com palavras familiares, mas inesperadas quando pronunciadas por alguém conhecido. No verão seguinte eu soube que Paul Harms fale cera poucos dias antes da entrada dos russos em Zehlendorf. Senti quase um alívio. Ele fora salvo pelo gongo, subtraído da justiça dos homens, como diz a expressão religiosa. A LTI não me invadia só por meio de livros e jornais, nem de conversas rápidas durante a angustiante permanência em locais de refeição: era também falada, todo o tempo, no am biente civilizado da farmácia. Com a idade, o nosso amigo passara a ver os fatos do cotidiano, mesmo os mais terríveis, com uma indulgência que beirava a displicência, dizendo que eles não tinham importância diante da eternidade: den ewigen Belangen [ isso pertence ao eterno ] . Não se preocupava em repetir o jargão peçonhento. A filha, que também era sua au xiliar, não considerava que fosse um jargão, mas sim a lingua gem da fé em que fora criada, da qual não havia como se afas345 Referência pejorativa à Rússia. 404
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tar. Parecia a jovem farmacêutica lituana, da qual falei em ''A guerra judaica". Uma vez, durante um pesado ataque aéreo - as asas da morte ainda rugiam, passando da fórmula literária à vida real em voo rasante sobre os telhados da cidadezinha intimidada, com bombas explodindo sobre Plauen -, o veterinário local teve de permanecer conosco. Era loquaz, mas não era dado a conversa fiada. Pôs-se a falar sem parar, procurando acalmar os clientes apavorados pelo alarme, esforçando-se para des viar a atenção. Começou a contar sobre as maravilhas de uma arma nova - não, das novas armas que já estavam prontas e seriam usadas a partir de abril, quando passariam a ter um papel decisivo na guerra. - O avião de um só lugar é muito mais eficiente que o V2. Derrubará as esquadrilhas de bombardeiros. Voa a uma velo cidade fantástica e por isso só atira para trás, pois é mais rá pido que o próprio tiro. Abaterá os aviões inimigos antes que consigam lançar as bombas. Os testes finais foram concluídos e a produção em massa está em andamento. De verdade! Ele disse tudo isso, e pelo tom da voz podia se perceber que acreditava nesse conto da carochinha. Mais ainda: pela expressão dos ouvintes podia-se perceber que acreditaram na história, pelo menos durante algumas horas. - Crês que esse homem conta essas mentiras deliberada mente? - perguntei ao nosso amigo mais tarde. - E tu mes mo sabes que são apenas histórias? - Ele é uma pessoa séria, não mente - respondeu Hans. - Com certeza ouviu falar nessa arma. Afinal, por que não pode haver alguma verdade nisso? E por que não se pode dar um pouco de consolo às pessoas? No dia seguinte ele me mostrou uma carta que acabara de receber de outro amigo, diretor de uma escola na região de Hamburgo. De acordo com Hans, eu teria gostado mais desse amigo do que do veterinário, pois ele possuía uma sóli405
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da base filosófica, era um idealista puro, voltado para ques tões humanitárias, e se opunha radicalmente ao regime na zista. Esqueci-me de relatar que o veterinário não falara so mente na arma miraculosa, mas também, com a mesma crença, em um fenômeno que estava se repetindo: wonach von giinzlich eingestürtzten Hiiusern nur "die Wand mit dem Hitler bild" stehen geblieben sei [casas bombardeadas, nas quais so mente a "parede com o quadro de Hitler" permanecia de pé] . O amigo filósofo antinazista da região de Hamburgo não acreditava em armas miraculosas nem em mitos. Mostrava-se desesperado. Escrevera o seguinte: ''Apesar da situação deses peradora, existe o desejo de que haja uma Wende [virada] , um milagre, porque unsere Kultur und unser Idealismus dem An sturm des vereinten Materialismus der Welt untergehen [nossa cultura e nosso idealismo não podem ser subjugados pelo materialismo mundial] ! " Ao ler, respondi: - Só falta o assalto da estepe! Não te parece que teu ami go esteja totalmente em consonância com a Alemanha con temporânea? Quando alguém ainda espera uma virada que depende de Hitler.. . Wende é uma palavra artificial muito apreciada pelo hitlerismo. No mapa que usávamos na fuga, o distrito da farmácia de Falkenstein é delimitado por duas áreas rurais. Inicialmente nos dirigimos à aldeia vêndica346 de Piskowitz, perto de Ka menz. Lá vivia a nossa fiel Agnes, camponesa viúva com dois filhos. Trabalhara conosco durante muitos anos, e depois nos enviava pessoas de sua região, sempre que alguma moça se ca sava. Sabíamos que nos receberia calorosamente, e era prová vel que nem ela nem ninguém da aldeia soubesse que eu esta346 Os vênedos são um antigo povo eslavo que habitava do Vístula ao Volga. Segundo a Wikipedia, esse povo também pode ser chamado de Elbslawen [ eslavos do rio Elba] . 406
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va na mira das leis raciais de Nuremberg. Nossa intenção era lhe contar a verdade, confiantes em que seus cuidados conosco seriam redobrados. Se nada de inesperado acontecesse, ficaría mos escondidos na aldeia isolada, onde - sabíamos - havia um intenso sentimento antinazista. Se a religiosidade católica do povo local não bastasse, ajudaria a sua origem vêndica. Es sas pessoas tinham forte ligação com a língua eslava, que os nazistas queriam apagar, forçando-os a alterar os hábitos e a educação religiosa. Sentiam-se eslavos e estavam magoados com a divinização dos germânicos. Já ouvíramos muitas vezes isso de Agnes e de sua gente. Além disso, os russos já estavam em Gõrlitz. Brevemente estariam em Piskowitz, onde conse guiríamos sua proteção. Meu otimismo era acompanhado por uma sensação de eu foria: havíamos preservado a saúde, e a incrível salvação esta va próxima, como nos contos de fadas. Quando abandona mos Dresden, reduzida a incêndios e escombros, a visão da destruição nos convencera de que o fim da guerra era imi nente. Mas o otimismo ficou abalado - ou melhor, se inver teu - quando o prefeito da localidade perguntou se eu tinha parentes não arianos (eu havia dito que meus documentos tinham sido queimados). Foi muito difícil responder "não" aparentando indiferença. Senti medo de ter levantado suspei tas. Soube depois que se tratava de uma pergunta de praxe; aquele senhor não desconfiara de mim. Mas, a partir daí, o barulho dos fuzis de 1 9 1 5, que atiravam nos corpos caídos, não me saiu mais da memória, às vezes alto, às vezes baixo, incomodando-me mais do que a própria explosão das grana das. Essa sensação foi bem mais angustiante em Falkenstein e só acabou no dia em que os americanos entraram na Ba viera. Nem as bombas, nem os voos rasantes, nem mesmo a morte me causavam medo - mas a Gestapo, sim. Sempre aquela sensação de pavor de ter alguém em meu encalço, al guém com quem eu esbarraria de frente, alguém que me es407
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peraria em casa para me buscar. "Holen!" Jetzt spreche ich auch schon in dieser Sprache! ["Buscar! " Agora eu também falo essa língua! ] . O que importa é não cair em mãos inimigas! Suspi ro angustiado a cada dia! Houve alguns momentos calmos em Piskowitz, aldeia pa cata, um mundo à parte, completamente antinazista. Até o prefeito preferia permanecer distante do partido e do governo. É claro que a política nazista também havia chegado a esse vilarejo. Na minúscula escrivaninha da sala de estar comuni tária da casinha típica de aldeia, no meio de contas a pagar, cartas de família, envelopes e blocos de carta, também havia livros escolares. Por cima, o Atlas escolar alemão, publicado por Philip Bouhler,347 homem da chancelaria do Reich, com assinatura do autor em fac-símile, distribuído em todas as escolas da Alemanha, até nos rincões mais recônditos. Só se consegue perceber o verdadeiro descalabro desse texto quan do se observa a data de publicação: setembro de 1 942. A essa altura já se sabia que a tão almejada vitória alemã era im possível, e a grande questão era como evitar uma derrota completa. O que se fez, nesse contexto, foi colocar nas mãos das crianças um conjunto de mapas que mostravam o Grofi deutschland als Lebensraum [espaço vital da Grande Alema nha] , incluindo o "Governo Geral com Varsóvia e o distrito de Lemberg", o "Comissariado do Reich para os territórios do Leste" e o "Comissariado do Reich para a Ucrânia". A Tche coslováquia, na condição de "Protetorado da Boêmia e da Morávia", e os Sudetas aparecem destacados em cor especial como integrantes do Reich. As cidades alemãs resplandecem com os nomes de honra nazistas: "Nuremberg, capital do mo347 Philip Bouhler ( 1 899- 1 945), político alemão filiado ao Partido Nazis ta desde 1 922. Chefe da chancelaria a partir de 1 934, foi também pre sidente da Comissão Oficial de Censura e principal defensor da euta násia no Terceiro Reich. 408
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vimento e cidade dos congressos do partido': "Graz, cidade do levante popular", "Suttgart, cidade dos alemães expatriados", "Celle, sede do tribunal da propriedade rural hereditária do Reich': 348 Em vez de Iugoslávia, havia o "Território Militar da Sérvia". Os gau [distritos administrativos] nazistas estavam em outro mapa; em mais um, as colônias alemãs. Em letras bem pequenas na margem inferior dessa folha estava escrito: Unter Mandatsverwaltung [sob mandato administrativo] . Como será que uma pessoa vÇ o mundo hoje, se na mais tenra e indefesa infância tudo isso lhe foi transmitido em cores vivas? Ao lado do Atlas, que do ponto de vista linguístico era um glossário importante da LTI, havia também um livro de arit mética cujos exercícios baseavam-se em números do Versailler Diktat [Tratado de Versalhes] e da Arbeitsbeschaffung durch den Führer [geração de trabalho pelo Führer] .349 Havia tam bém um livro que contava histórias encantadoras de um Adolf Hitler paternal, dedicado a crianças e animais. No mesmo pequeno espaço da escrivaninha, porém, havia " um antídoto ao nazismo: um nicho sagrado com a Bíblia vêndica e um crucifixo igual à maioria dos crucifixos que vía mos nas ruas da aldeia. Eu não saberia dizer se o catolicismo, em si mesmo, poderia ser considerado um antídoto se não ti vesse havido essa insistência na preservação da própria língua. Digo isso porque, além da Bíblia e dos livros escolares que en contrei na casa, minha leitura principal era um livro grosso, bastante manuseado: Stadt Gottes [ Cidade de Deus] , de Santo Agostinho. Havia uma Zeitschrift für das katholische Volk, re vista ilustrada para o povo católico, de 1 893- 1 894, cheia de 348 A "Lei para a fazenda hereditária", promulgada em 29 de setembro de 1 933, protegia os camponeses como "fonte de sangue do povo ale mão''. Se o camponês pudesse provar sua condição de ariano, sua fa zenda passava a ser inalienável. 349 Há cenas desse tipo no filme A vida é bela, de Roberto Benini, laureado com o Oscar em 1 999. ·
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ataques contra a verjudete Loge [loja maçônica judaizada] , os judeus liberais e os social-democratas subservientes. Na me dida do possível, defendia os pontos de vista de Ahlwardt,350 só se afastando dele em último caso. É verdade que não trans mitia um antissemitismo racial, o que me fez ver novamente a que ponto Hitler havia agido de maneira habilmente de magógica (ou, para usar suas palavras, volksnah [próximo do povo] ) ao fazer do judaísmo o traço que unia grande parte dos seus inimigos. Mas o antissemitismo católico da década de 1 890 não me autorizava a fazer analogias com o momento atual. Pois quem levasse a sério a fé católica estaria agora próximo dos judeus, compartilhando uma hostilidade implacável a Hitler. A biblioteca da casa abrigava mais um livro grande, antigo e bastante manuseado, mas que não permitia qualquer con clusão a respeito da posição dos moradores. O camponês já falecido fora apicultor, e o compêndio era um anuário para criadores de abelhas do Barão August von Berlepsch.351 O au tor, que escreveu a introdução ao livro em 1 5 de agosto de 1 868, em Coburg, era não somente especialista no assunto como também um grande moralista e um cidadão pensante. "Conheço muitas pessoas", diz, "que antes de se tornarem criadores de abelhas gastavam todo o tempo livre no bar mais próximo, bebendo, jogando cartas ou travando discussões políticas estéreis. Quando se tornaram criadores de abelhas passaram a ficar em casa com a família. No bom tempo pas savam as horas de lazer com as abelhas, e nas estações des favoráveis liam revistas sobre a criação, faziam reparos no 350 Alemão antissemita, influente do final do século XIX, importante idealizador do que viria a ser o nacional-socialismo. Foi condenado várias vezes por difamação. 351 August von Berlepsch ( 1 8 1 8 - 1 877), teólogo e apicultor, autor de obras sobre a vida das abelhas. 410
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apiário e consertavam os equipamentos, ou seja, apreciavam a vida doméstica e o trabalho. Esse é o Schibboleth 35 2 do ci dadão sério ... Agnes e seus vizinhos pensavam de forma diferente. Todas as noites promoviam reuniões que denominávamos Wendische Spinnstube [sala de fiandeiras vêndicas] . O fato de nos permi tirem participar era uma grande prova de confiança. O lugar do encontro era a casa do cunhado de Agnes, pessoa de inte resses variados. Apesar de católico e vêndico fervoroso, dizia: "Conseguimos chegar a Rügen.353 Portanto, nosso território deveria ir até lá:' Ele pertencera aos "capacetes de aço': mas os deixara quando foram absorvidos pelo Partido Nazista. Havia um vaivém intenso na cozinha, que era aconche gante, quente e espaçosa. As mulheres permaneciam senta das, costurando, com os homens em volta, em pé, fumando. Crianças entravam e saíam. O centro das atenções era um rá dio imponente em torno do qual um grupo se concentrava. Enquanto uns tentavam sintonizar a estação, outros faziam sugestões, discutiam sobre o que tinham acabado de ouvir e mandavam os demais ficar quietos quando havia algo impor tante. Na primeira vez que entramos na sala havia bastante barulho, apesar de o rádio estar ligado. Quase em tom de des culpas, o cunhado de Agnes me disse: "É Goebbels. O rádio captou meio sem querer. O outro programa é daqui a dez minutos:' Foi nesse 28 de fevereiro de 1 945 que ouvi Goebbels pela · última vez. Em termos de conteúdo, era igual ao que falava e publicava nos jornais nesse período final: metáforas espor tivas brutais, reafirmações da vitória final e um desespero mal disfarçado. Mas seu modo de falar me pareceu mudado. "
35 2 Palavra hebraica do Antigo Testamento. Significa "senha". 353 Ilha situada no mar Báltico, que foi sucessivamente dominada por di ferentes povos ao longo da história. Hoje pertence à Alemanha. 411
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Não havia mais modulação na voz. Falava lentamente, o tim bre em cadência uniforme, medida, com pausas, como um bate-estacas. "O outro" era uma designação geral, sintética, que in cluía todas as transmissões radiofônicas que vinham de Bero münster ( Suíça) , de Londres e de Moscou: Rádio Soldado, Rá dio da Liberdade e outras. Todos sabiam que essa escuta proi bida era punida com a morte, mas mesmo assim conheciam os horários, as frequências e os demais pormenores de cada estação. Consideravam-nos ingênuos porque até então não conhecíamos "o outro". Ninguém procurou nos esconder es sas escutas clandestinas, realizadas sem grandes precauções e sem aura de mistério. Por meio de nossa amiga Agnes já per tencíamos à aldeia, cuja posição era unânime: todos aguar davam o fim próximo de Hitler e a chegada dos russos. Discutiam-se os êxitos, as iniciativas e os planos dos alia dos. Até as crianças participavam. Não dependiam somen te do "outro" : também traziam para casa notícias de fora. Pois aqui não choviam só tiras de papel-alumínio, como em Falkenstein, que davam à floresta de pinheiros ainda nevada um ar de Natal. Também caíam panfletos, cuidadosamente catados e lidos. Quase sempre, eles comunicavam o mesmo que "o outro", com apelos para que os alemães se libertassem de um governo louco e criminoso, que pretendia continuar uma guerra perdida e levar a Alemanha à destruição com pleta. As crianças eram proibidas de catar esses papéis, mas a proibição não funcionava: todos os li3:m com atenção e concordavam com o que diziam. Certa vez, Yuri, neto de Agnes, chegou brandindo um caderno intitulado "Os artigos de guerra, de Goebbels", com uma cabeça típica de um guer reiro nazista na capa (metade águia, metade vândalo) . "Este não precisamos queimar, recebemos na escola um igualzi nho!" À esquerda apareciam as frases inculcadas nas mentes das crianças e à direita os aliados refutavam, ponto por ponto, 412
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as afirmações nazistas. Particularmente informativa e esclare cedora foi a resposta à alegação de que a guerra tinha sido aufgezwungen [ imposta] ao Führer, amante da paz ( "guerra imposta" é uma das expressões mais estereotipadas da LTI ) . A aldeia podia obter informações sobre a situação d e duas outras fontes: os patéticos comboios com camponeses fugiti vos da Silésia, que eram autorizados a parar brevemente no acampamento Maidenlager, um enorme agrupamento de bar racas verdes do antigo weiblicher Arbeitsdienst [posto de tra balho feminino ] , e os artilheiros da Baviera que retornavam a cavalo do front, sem armas, e que tinham permissão para des cansar ali. De maneira particularmente curiosa, havia outro tipo de esclarecimento: citações bíblicas. O pai de Agnes, idoso m.as cheio de vigor, contava longamente a história da rainha de Sabá para prever a chegada dos russos. No início, eu quis en quadrar o impacto da Bíblia na LTI como um fenômeno es tritamente rústico, mas logo me lembrei do álamo de Babis nau, 354 assim como das predições astrológicas amplamente disseminadas entre o povo e a classe dirigente. O estado de ânimo em Piskowitz não era desesperador. A guerra não lhes causara um sofrimento especial. Nenhuma bomba caíra nesse vilarejo modesto, que nem sequer tinha sirene. Quando soava o alarme distante, como sempre acon tecia, continuava-se a dormir tranquilamente, se fosse noite. Durante o dia se assistia com interesse a um espetáculo: de al titudes enormes, enxames de setas prateadas, com um dedo de comprimento, cruzavam o céu azul, emergindo das nuvens e desaparecendo nelas. Nessas ocasiões, invariavelmente, um dos observadores lembrava os demais: Und Hermann hat gesagt, er wolle Meier heiften, wenn ein feindlicher Flieger nach Deutschland hereinkiime! [ E Hermann disse que pas&aria a se 354 Ver capítulo 10, "Criação espontânea". 413
LTI
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chamar Meier se um único avião inimigo penetrasse na Ale manha! ] . Alguém respondia: Und Adolf hat die englischen Stiidte ausradieren wollen! [ E Adolf queria apagar as cidades inglesas do mapa! ] . Essas duas frases nunca foram esquecidas, nas cidades e no campo, enquanto outras frases, jogos de pa lavras ou brincadeiras tiveram apenas um dia de fama. Como todos os demais habitantes da aldeia, matávamos leitões: embora ninguém temesse os russos, era preferível co mer os leitões a deixá-los para os libertadores. O inspetor de carne examinava-a com um microscópio, o açougueiro e seu ajudante recheavam as salsichas, vizinhos das redondezas vi nham dar uma olhada e fazer comparações e, enquanto isso, todos contavam piadas ou brincavam de adivinhações. Passei por uma experiência semelhante à da Primeira Guerra Mun dial: em 1 9 1 5 ouvi a mesma música francesa que ouvira em um vilarejo em Flanders, Sous les ponts de Paris, que dois anos antes estivera na moda, mas que nesse ínterim fora substituí da por canções mais atuais. De maneira semelhante, o povo de Piskowitz e seu inspetor de carne divertiam-se com uma charada do início da guerra, que também se fazia em Dresden e com certeza nas demais cidades alemãs logo após o início da guerra com a Rússia: qual o significado da marca de cigar ros Ramsés? Russlands Armée macht schlapp Ende September [O Exército russo cairá até o final de setembro ] . Mas havia uma leitura invertida: Sollte England siegen, muss Adolf raus [ Se a Inglaterra vencer, Adolf tem de sair] . Vale a pena estu dar o deslocamento desses chistes por época, espaço e cama da social. Contaram-me que, certa vez, a Gestapo lançara uma dessas brincadeiras em Berlim para verificar em quanto tem po e de que forma chegaria a Munique. Participei da Schlachtfest [ festa da matança do porco] meio deprimido, sentindo-me um pouco ridículo e um tanto su persticioso. O porco deveria ter sido morto uma semana an tes. A essa altura os aliados encontravam-se a 20 quilômetros 414
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de Colônia, e os russos estavam para tomar Breslau. Asso berbado de tarefas, o açougueiro fora obrigado a cancelar a matança. Interpretei esse fato como um presságio. Disse a mim mesmo: se o porco sobreviver a Colônia e Breslau, então vou sobreviver e ver o fim da guerra e de meus carrascos. Por isso a carne do porco me caiu mal: Colônia e Breslau conti nuavam firmes. Durante o almoço do dia seguinte, enquanto comíamos porco de novo, chegou o prefeito: recebera ordem para eva cuar qualquer morador de outro local, pois na manhã seguin te tropas de combate seriam aquarteladas ali. As cinco da tarde um veículo nos levaria para Kamenz, de onde um .transporte para refugiados nos deixaria na região de Bayreuth. De pé, em caminhão aberto, espremido entre homens, mulheres e crian ças, sob uma chuva miúda misturada com neve, sem capo tes, senti que estávamos em uma situação desesperadora. Mas o pior estava por vir, três semanas depois. Pois em Kamenz ainda tínhamos a possibilidade de declarar em um guichê: "Fomos desalojados por bombardeio e recebemos alojamento privado em Falkenstein': e podíamos esperar que alguém nos ajudasse. O "centro de recepção" - conceito deplorável, mas consolador - dos últimos dias do Terceiro Reich agonizante ainda nos recebia. Mas ao ter que deixar Falkenstein - pois Hans fora forçado a abrigar duas farmacêuticas de Dresden que poderiam me reconhecer facilmente, e a guerra ainda não terminara -, onde encontraríamos um abrigo seguro? Pode ríamos ser descobertos em qualquer lugar. Nos doze dias de fuga que se seguiram, passamos muita fome, tivemos de dormir no chão de pedra da estação ferro viária, bombas foram lançadas sobre nosso trem em marcha, aguardamos refeições em saguões, caminhamos a vau por ria chos durante a noite, contornando pontes destruídas, ficamos agachados em bunkers, suamos, trememos de frio, congelamos com calçados ensopados, ouvimos os roncos dos voos rasan415
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tes - mas o pior continuava a ser o permanente medo dos controles e de uma eventual prisão. Hans nos dera dinheiro e meios de subsistência suficientes, mas se recusara a nos forne cer veneno, como pedimos - "Poupe-nos de cair nas mãos dos inimigos, eles são piores que a morte!" -, para usar em caso de extrema necessidade. Finalmente nos afastamos de Dresden. A paralisia e a de sagregação da Alemanha aumentavam rapidamente, o fim do Terceiro Reich era iminente. O medo de sermos descobertos diminuiu. Na aldeia de Unterbernbach, perto de Aichach, para onde fomos levados como refugiados e onde estranhamente não havia saxões - somente silesianos e berlinenses -, temía mos, como todos, os intermináveis voos rasantes e o dia em que os americanos, que já estavam em Augsburg, viriam nos überrollen.355 Acho que überrollen foi o último neologismo militar que ouvi. Deve estar relacionado com o predomínio das tropas motorízadas. Em agosto de 1 939 vimos como os cidadãos de Dresden foram buscados na calada da noite, de maneira indigna e clandestina, para formar o Exército. Agora estávamos vendo a maneira indigna e clandestina como se dispersavam. Abando nando o front desintegrado, surgiam pequenos grupos de in divíduos que saíam furtivamente dos bosques em busca de vestimenta civil, comida e repouso por uma noite. Alguns ain da acreditavam na vitória, outros sabiam que tudo chegara ao fim. Mesmo assim, vestígios da linguagem anterior, triunfalis ta, apareciam nas falas. Entre os refugiados e os moradores ninguém mais acredi tava minimamente na vitória ou na sobrevivência do regime. As críticas amargas dos camponeses de Unterbernbach eram 355 Passar por cima; avançar rapidamente e alcançar; surpreender tropas em retirada. 416
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iguais às dos camponeses de Piskowitz. A diferença é que os vêndicos haviam mostrado sua hostilidade desde o início, quando os da Baviera haviam jurado pelo Führer. Ele lhes pro metera tantas coisas, e algumas cumprira. Mas há muito tem po acumulavam-se decepções. O povo de Unterbernbach po deria visitar a sala comunitária vêndica de fiar, o povo de Piskowitz poderia ir a Unterbernbach. Não se entenderiam pela fala, mesmo que os de Piskowitz falassem alemão (o que nunca faziam entre si) , mas chegariam logo a um acordo sobre o modo de pensar: agora, todos rejeitavam o Terceiro Reich. Encontrei entre os camponeses de Unterbernbach grandes diferenças morais, que anotei sentindo remorsos: "Nunca mais diga 'o camponês', ou 'o camponês bávaro', lembre-se sempre de 'o polonês', de 'o judeu' ! " O responsável pela aldeia, há muito insatisfeito com o partido mas impedido de aban donar o cargo, prestativo e benevolente com os refugiados, civis ou militares, era um exemplo de bondade, tal como o padre descreve no sermão dominical (anotação do sermão de 22 de abril: Stat Crux dum volvitur orbis [A cruz permanece enquanto o mundo gira] ; frase atemporal e inatacável, mas agora forte contra os nazistas! Tarefa especial: o sermão no Terceiro Reich, o eufemismo e a fala franca, a semelhança com o estilo da Enciclopédia) . Por outro lado, a pessoa designada para nos abrigar na primeira noite recusou acesso a água, di zendo que a bomba d' água do estábulo estava quebrada (mais tarde se comprovou que era mentira) e ordenando que désse mos um jeito de desaparecer. Entre esses extremos, um núme ro infinito de variações: nossos anfitriões, por exemplo, esta vam mais próximos da extremidade má que da boa. Quanto ao uso da LTI, era sempre o mesmo: maldizia-se o nazismo com expressões nazistas. Em toda parte se falava na Wende [virada] , com ou sem esperança, a sério ou de brin cadeira. Independentemente das opiniões, todos falavam no assunto fanatisch [ com fanatismo ] . E, é claro, todos discu417
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tiam o apelo final do Führer no front oriental, que citava as "incontáveis unidades novas" e acusava os bolcheviques "que assassinam velhos e crianças, humilham mulheres e moças como prostitutas de caserna, enquanto o resto marcha para a Sibéria". Por mais que eu tenha vivido tantas experiências nos últi mos dias de guerra (e depois, no retorno para casa) - vivido de fato, e não na acepção mentirosa do regime de Hitler -, não encontrei nada a acrescentar nem a descartar no que havia estudado sobre a LTI no espaço restrito do nosso calvário. Ela englobou e contaminou totalmente a sua Grande Alemanha. Só preciso acrescentar dois símbolos visíveis do fim do na zismo. Em 28 de abril de 1 945 circulavam rumores de que os americanos estavam próximos. No entardecer, unidades mili tares se retiraram a pé, em especial a Juventude Hitlerista jovens embrutecidos, mais que soldados - e um grupo de oficiais do estado-maior que estava ocupando o moderno e bonito edifício oficial, situado na entrada da aldeia no lado sul. Durante a noite houvera uma hora de intenso fogo de artilharia, com obuses passando sobre o povoado. Na manhã seguinte encontramos no banheiro um documento em papel preto e vermelho, rasgado ao meio, muito grande para ser jo gado no vaso sanitário e que havia permanecido lá algumas horas. Era o certificado de juramento do nosso hospedeiro. O texto dizia que o "Tyroller Michel tinha prestado a Rudolf Hess, representante do Führer Adolf Hitler, juramento de obe diência e lealdade incondicional e absoluta a ele e aos che fes designados por ele, em Munique, no Traditionsgau, em 26.4. 1 936". Por volta do meio-dia houve momentos inquietantes. Soa vam disparos vindos da floresta. Ouvia-se zumbido de balas nas proximidades. Havia escaramuças por perto. Então, um 418
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comboio de tanques e canhões passou pela estrada que cru zava a aldeia: tínhamos sido überrollt. No dia seguinte, quando apresentamos mais uma vez as queixas sobre as precárias condições de alojamento e ali mentação, nosso gentil amigo Flamensbeck sugeriu que nos m:udássemos para o prédio da administração, agora vazio. A maior parte dos aposentos tinha um pequeno fogão de fer ro, no qual podíamos preparar o café da manhã. Encontramos na floresta galhos de pinho para acender o fogo e juntamos o suficiente para o almoço. Na mesma tarde comemoramos a mudança para as novas acomodações. Esses alojamentos nos propiciaram um conforto especial. Durante uma semana in teira não precisamos nos preocupar com galhos de pinheiro nem com ramos secos, pois tínhamos combustível muito me lhor. Nos tempos áureos do nazismo, integrantes da Juventude Hitlerista e outros da mesma laia tinham vivido ali, enchendo os aposentos com quadros do Führer com belas molduras de madeira, frases nazistas escritas também em madeira, ban deiras e suásticas de madeira. Tudo isso - além da enorme suástica sobre o portão da entrada e o painel de madeira do Stürmer356 no saguão - foi removido e colocado no chão, formando um monte. Próximo à entrada ficava o sótão ilu minado onde passamos algumas semanas. Durante a primei ra semana, com imensa felicidade, consegui manter o aposen to aquecido só com quadros de Hitler, molduras de Hitler, suásticas de madeira e bandeiras nazistas. Quando queimei o último quadro, chegou a vez do painel do Stürmer. Não consegui retirá-lo da parede nem com pon tapés. Encontrei na casa uma machadinha e um serrote. Ten tei com a machadinha, tentei com o serrote, mas a moldura resistiu. Era madeira maciça. Depois de tudo o que tínhamos passado, meu coração não aguentava mais grandes esforços. 356 O Atacante, folhetim nazista totalmente voltado contra os judeus. 419
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- É mais divertido e mais saudável catarmos gravetos na floresta. - disse minha mulher. Assim, mudamos de combustível, e o painel do Stürmer permaneceu intacto. Ainda hoje, quando recebo correspon dência da Baviera, lembro-me dele.
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POS FÁC I O
WEJEN AUSDROCKEN...
Agora que o peso sobre nós diminui e é questão de tempo que eu reassuma as minhas antigas funções, começo a me pergun tar qual tarefa deve me ocupar primeiro. Naquele tempo, eles me privaram do meu século XVIII. Este livro e os Diários fo ram salvos por minha mulher, que os levava regularmente para uma amiga em Pirna. Era provável que ela tivesse sobre vivido e os manuscritos também. Havia motivos para pensar assim: é sempre provável que uma clínica médica seja poupa da, e Pirna, até onde eu sabia, não sofrera bombardeios pesa dos. Mas onde conseguiria material bibliográfico para conti nuar a trabalhar sobre meus iluministas? Além disso, estava muito preocupado com os acontecimentos do período na zista, que em tantos aspectos me transformaram em outra pessoa. Em outros tempos, pensei com muita frequência em "o alemão': "o francês", em vez de observar a diversidade de alemães e franceses. Não teria sido muito luxo ou egoísmo ter me absorvido exclusivamente em atividades científicas, evi tando a enfadonha política? Havia muitos pontos de interrogação, muitas observações, muitas experiências nos Diários. Talvez fosse a hora de trans mitir esses ensinamentos. Eu devia me ocupar, primeiro, do que armazenara nos anos de sofrimento ou isso seria um projeto vão e pretensioso? Enquanto refletia a esse respeito, colhendo gravetos de pinheiros ou descansando sobre a mo chila, vinham-me à mente duas pessoas, cujas opiniões anta gônicas me faziam pender para um lado e para o outro. Primeiro, havia a tragicômica figura de Kãtchen Sara. No início completamente cômica, manteve um ligeiro halo de comicidade quando seu destino já estava selado em tragédia 421
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absoluta. Kãtchen era o único nome que constava no registro civil357 e na certidão de batismo, ao qual se mantinha fiel, usando ostensivamente uma corrente com uma pequena cruz que ficava sobre a estrela judaica compulsória. Acrescentara o nome Sara por exigência do regime nazista. O doce prenome no diminutivo não era inadequado para essa senhora cardíaca de sessenta anos. Pois ela ria e chorava quase ao mesmo tem po, a intervalos curtos, lembrando uma criança cuja memó ria se apaga como um quadro-negro. Durante dois anos cruéis dividimos a moradia com Kãtchen Sara. No mínimo uma vez por dia ela entrava sem bater em nosso quarto, e em algumas manhãs de domingo já estava sentada em nossa cama quando acordávamos. Repetia: Schreiben Sie auf- das müssen Sie auf schreiben! [Anote, o senhor tem de anotar isso! ] . Em seguida, relatava emocionada a última busca domiciliar, o último sui cídio, o último corte nos cartões de racionamento. Acreditava em meu ofício de cronista. Em sua visão infantil, parecia que só eu relataria aquela época, anotando todos os fatos. Ela sem pre me via na escrivaninha, escrevendo. Depois de me lembrar da voz infantil e apaixonada de Kãt chen, eu ouvia a voz - meio pesarosa, meio sarcástica - do bom amigo Stühler, que se juntou a nós quando fomos rea grupados. Isso aconteceu muito mais tarde, quando Kãtchen Sara já havia desaparecido para sempre na Polônia.358 Stühler também não sobreviveu para ver a redenção. Pôde permane cer no país e morreu de doença, livre da Gestapo, mas tam357 Trata-se de um nome no diminutivo, já que o normal é Kãthe. 358 Em 26 de maio de 1 940, os Klemperer foram obrigados a mudar-se para a primeira Judenhaus, onde conheceram Kãtchen "Sara" Voss, meio infantilizada e carente de contato humano. Ela se tornou a prin cipal fonte de informações sobre a tragédia em curso. Apesar de ter sido uma presença invasiva na privacidade do casal, Victor Klemperer sempre a tratou com muito carinho. Enviada para Auschwitz, foi ex terminada. 422
P O S FÃ C I O 1 WEJEN A USDR OCKEN . . .
bém vítima do Terceiro Reich: se não tivesse passado por tan ta penúria, esse homem jovial teria tido mais resistência ao mal. Ele sofreu mais do que a pobre Kãtchen, pois sua alma não era como um quadro-negro, fácil de apagar. Vivia ator mentado de preocupação com a mulher e o filho. Este, um jo vem muito capaz, não podia frequentar a escola por causa das leis raciais. - Pare de escrever tanto e tenha mais uma hora de sono - era o que me dizia, sempre que lhe contava que havia levantado muito cedo. - Sua escrita coloca-o em risco. O se nhor acha que está vivenciando algo muito especial? O senhor não sabe que milhares de outras pessoas estão sofrendo mi lhares de vezes coisas piores? O senhor não acha que inúme ros historiadores escreverão sobre tudo isso? Terão material melhor e visão mais ampla que a sua. O que o senhor conse gue ver daqui? O que consegue anotar aqui, confinado? To dos têm de ir para a fábrica, muitos apanham, ninguém liga mais quando recebe uma cusparada na cara ... Às vezes essa conversa ia longe, quando nas horas livres es távamos na cozinha, ajudando as mulheres a enxugar a louça e lavar verdura. Não me deixei confundir. Levantava-me todos os dias às 3:30h da manhã. Antes de começar o trabalho na fábrica, ano tava tudo o que tinha acontecido na véspera. Dizia a mim mesmo: tu ouves com teus próprios ouvidos e tu vês o coti diano, justamente o cotidiano, o corriqueiro, o que é comum, exatamente o que é despojado de heroísmo, de brilho ... Mais ainda: eu me segurava em minha vara de equilibrista e ela me segurava... Agora que o perigo passou e uma vida nova se abre, per gunto-me como devo preenchê-la, se não é vaidade e perda de tempo me aprofundar nos Diários que se acumularam. Kãtchen e Stühler debatem em mim. Uma palavra me fez tomar a decisão. 423
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Entre os refugiados no vilarejo havia uma trabalhadora berlinense com duas filhinhas. Nem sei como as coisas acon teceram. Começamos a conversar, antes mesmo da chegada dos americanos. Eu já tinha sentido prazer em ouvir, em ple na Alta Baviera, o mais puro sotaque berlinense. Ela era uma pessoa amável e logo percebeu que compartilhávamos o mes mo pensamento político. Revelou que seu marido fora preso por ser comunista. Se ainda estivesse vivo, devia estar em um batalhão punitivo, Deus sabia onde. Com uma ponta de or gulho, contou que também passara um ano na prisão. Havia sido libertada por causa da superlotação das cadeias e da ne cessidade de operárias. - Por que você foi presa? - perguntei. - Porque empreguei certas palavras... Wejen Ausdrücken [por causa de expressões] . Ela ofendera o Führer, os símbolos e as instituições do Ter ceiro Reich. Para mim, foi a revelação. Essas palavras Wejen Ausdrücken - me fizeram ver com clareza. Retomei o traba lho nos Diários. Decidi liberar minhas mãos da vara do equi librista e usá-las para escrever. Assim surgiu este livro. Menos por vaidade, mais wejen Ausdrücken. -
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i • impressão, agosto de 2009
Impressão: Prol Editora Gráfica,
SP
Papel da capa: Cartão supremo 250g/m2 Papel do miolo: Pólen bold 70g/m2